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O conceito de reificação em História e consciência de classe, de Georg Lukács - Glauber Ataide - Dissertação de mestrado

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS 
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS 
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA 
 
 
 
 
GLAUBER ATAIDE 
 
 
 
 
 
 
 
O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM 
HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE, DE GEORG 
LUKÁCS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Belo Horizonte 
 2020 
2 
 
GLAUBER ATAIDE 
 
 
 
 
 
 
 
 
O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM 
HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE, DE GEORG 
LUKÁCS 
 
 
 
 
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS 
GERAIS 
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS 
HUMANAS 
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO 
EM FILOSOFIA 
 
 
Dissertação de mestrado apresentada ao 
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da 
Universidade Federal de Minas Gerais. 
Orientador: Prof. Dr. Verlaine Freitas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Belo Horizonte 
2020 
3 
 
 
4 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
5 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico essa dissertação à Geisa. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
6 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
À minha esposa e filhos, por compreenderem a presença-ausente que a 
confecção de uma dissertação requer. Tive que passar muitas e longas horas isolado em 
meu escritório, tal qual um Gregor Samsa alienado de todo convívio social. 
À minha professora de história do ensino médio que me emprestou, sem eu 
pedir, o Manifesto do partido comunista, de Marx e Engels. Talvez ela nunca leia isso e 
não saiba como influenciou parte de quem sou hoje. 
Aos diversos camaradas de lutas sociais, com quem muito aprendi tanto na 
teoria, quanto na prática. Combatemos juntos aos humilhados e ofendidos desta terra, 
juntos ao que não possuem casa, aos que não possuem emprego e também àqueles que, 
mesmo trabalhando, mal conseguem sobreviver com seu salário. 
Ao povo humilde, por me ensinarem a virtude da coragem ao realizar ocupações 
por moradias, a virtude da rebeldia ao cruzar os braços e realizar greves, e a virtude da 
solidariedade e do espírito comunitário ao se apoiarem mutuamente. Estes são os que 
mais sentem os efeitos da reificação e protestam contra ela. 
Aos companheiros de diretoria do sindicato, pelas lições e companhia em 
(quase) três gestões consecutivas, e em especial à Rosane Cordeiro. Sem sua 
intervenção eu não poderia, como proletário que sou, ter assistido às aulas da pós-
graduação na UFMG, que acontecem apenas no período da tarde. 
Ao meu orientador, Verlaine Freitas, por ter me acompanhado desde o TCC, 
passando pela iniciação cientifica, chegando até ao mestrado. Aos colegas Veronica 
Campos e Rodrigo Pithon. Também ao Guilherme Malta, pelo companheirismo e pelas 
longas conversas sobre o idealismo alemão; ao Felipe Torres, pela ansiedade que 
compartilhamos para passar neste concurso de mestrado, e à Regina Sanches, que me 
deu muitas dicas sobre como chegar até aqui. 
 
7 
 
RESUMO 
 
Neste trabalho investigaremos inicialmente as categorias de totalidade e 
mediação, através das quais Lukács pensa todo o problema da reificação. Em segundo 
lugar, analisaremos a unidade mínima, nuclear, da qual se desdobra a estrutura da 
consciência reificada: a mercadoria. Na sequência, veremos de que maneira a troca de 
mercadorias, como forma dominante de intercâmbio entre os homens, afeta toda a 
estrutura de consciência, de modo a tornar o proletariado um híbrido bizarro de humano 
e inumano, a chamada “mercadoria consciente de si”. Por último, investigaremos como 
o proletariado, sendo o sujeito-objeto idêntico do processo histórico, pode superar o 
fenômeno da reificação através de uma práxis transformadora da realidade social. 
 
Palavras-chave: reificação, marxismo, idealismo alemão 
 
 
 
8 
 
ABSTRACT 
 
In this work we will initially investigate the category of totality, through which 
Lukács articulates the problem of reification. After that we will analyze the smallest and 
nuclear unit from which the structure of reification unfolds itself: the commodity. Next 
we will show how the commodity exchange, as the main form of interchange between 
human beings, affects the whole structure of their consciousness in such a way that it 
turns the proletarian into a bizarre hybrid of human and non-human, the so called 
“commodity conscious of itself”. Lastly, we will investigate how the proletariat, being 
the identical subject-object of the historical process, might overcome reification through 
a transforming praxis on the social reality. 
 
Keywords: reification, marxism, german idealism 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
9 
 
ÍNDICE 
 
Introdução...................................................................................................... 10 
Capítulo 1. As categoria de totalidade e mediação ....................................... 13 
1.1 A perda da totalidade ............................................................................. 13 
1.2 A totalidade em Kant ............................................................................. 15 
1.3 A totalidade de Hegel a Marx ................................................................. 18 
1.4 Totalidade e práxis ................................................................................. 27 
1.5 A mediação ............................................................................................ 28 
Capítulo 2. O núcleo originário da reificação ............................................... 34 
2.1 O fetichismo da mercadoria ................................................................... 36 
2.2 O fetichismo em Marx ........................................................................... 37 
2.3 O fetichismo em Lukács ......................................................................... 42 
2.4 Manifestações do fetichismo .................................................................. 46 
Capítulo 3. A mercadoria consciente de si .................................................... 50 
3.1 As classes sociais no marxismo .............................................................. 52 
3.2 O desenvolvimento da consciência proletária ......................................... 61 
Capítulo 4. O proletariado como sujeito-objeto idêntico ............................. 65 
4.1 A constituição do sujeito histórico em Hegel .......................................... 65 
4.2 O sujeito-objeto idêntico se efetiva na história ....................................... 74 
4.3 As antinomias do pensamento burguês ................................................... 78 
4.4 O primado da filosofia prática ................................................................ 82 
4.5 Superação da reificação? ........................................................................ 87 
Considerações finais ...................................................................................... 93 
Referências ................................................................................................... 100 
 
 
 
 
10 
 
INTRODUÇÃO 
 
A reificação (Verdinglichung) é “a realidade imediata e necessária para todo 
homem que vive no capitalismo”1. Segundo Feenberg2, ela é uma forma de 
objetividade, e se refere à máscara conceitual que o mundo social assume na era 
burguesa ao se tentar compreendê-lo através de categorias racionais formais. Honneth3 
resume o conceito, em sua forma mais básica, como um processo cognitivo através do 
qual algo que em si não possui propriedades de coisa — como, por exemplo, relações 
humanas — passa a ser visto como tal. 
O termo se origina, etimologicamente, do substantivo alemão Ding, que significa 
“coisa”. O prefixo ver- indica aqui um movimento de transformação, de modo que o 
verbo verdinglichen significa “coisificar”, e em sua forma substantivada — 
Verdinglichung —, “coisificação”. Em vários idiomas, como português, inglês, francês e 
espanhol, predomina a forma latina do termo,a partir do radical res, que tem o mesmo 
significado que Ding. Daí a tradução de Verdinglichung, nestas línguas, 
respectivamente como “reificação”, “reification”, “réification” e “reificación”. 
A forma acabada do conceito surgiu no contexto de uma crítica à ciência e à 
filosofia alemã no fim do século XIX e início do século XX. Este foi um período de 
rápido crescimento industrial, acompanhado pelo surgimento de uma ideologia 
cientificista que atingiu até mesmo a interpretação da obra de Marx dentro do 
movimento comunista internacional.4 História e consciência de classe, a obra de Lukács 
na qual ele publicou, pela primeira vez, o tema desta dissertação, polemiza contra tal 
tendência. 
A principal categoria filosófica utilizada anteriormente para tratar dos 
fenômenos que a reificação visa explicar era a alienação. Tratar deste tema sem 
relacioná-lo às suas determinações ou fundamentos sociais era parte do Zeitgeist5. Karl 
Marx, todavia, representa um ponto de ruptura. Mesmo abordando o tema de maneira 
breve ou marginal, apontou a relação dialética existente entre a base econômica e os 
 
1 HCC, p. 391. 
2 FEENBERG, 2011, p. 179. 
3 HONNETH, 2005, p. 19. 
4 FEENBERG, 2015, p. 492. 
5 BLUMENTRITT, 1988. 
11 
 
fundamentos do conhecimento, entre a forma da mercadoria e a forma do pensamento. 
A alienação não era apenas uma categoria psicológica, mas uma categoria do real.6 
Já no século XX, ao desenvolver este conceito em maior profundidade, Lukács 
também manterá este fundamento real — a estrutura da mercadoria — como ponto de 
partida de sua análise, investigando, daí em diante, os principais desdobramentos que a 
troca de mercadorias como forma generalizada de intercâmbio entre os homens imprime 
sobre a estrutura da consciência. 
O desenvolvimento da filosofia clássica alemã e da ciência moderna é analisado 
por Lukács também neste sentido, como desdobramento de uma estrutura de 
consciência já reificada. No caso da filosofia, essa estrutura se constitui como o limite 
intransponível das chamadas “antinomias do pensamento burguês”, cuja solução será 
buscada em uma prática pelo idealismo alemão. 
A trajetória intelectual de Lukács reproduziu, em um microcosmo, o percurso da 
própria filosofia alemã. Ele passou, inicialmente, por um ciclo de transição de Kant a 
Hegel — o chamado período de Heidelberg —, que foi seguido pela fase na qual ele 
caminha de Hegel a Marx. História e consciência de classe é uma obra deste segundo 
período, e por isso ele a chamou de “meu caminho para Marx”.7 Embora tendências 
aparentemente conflitantes possam coexistir lado a lado em um período de mudanças, 
Lukács enxerga uma linha de continuidade neste processo: a ética “impele à prática, ao 
ato e, assim, à política. Esta, por sua vez, impele à economia, o que leva a um 
aprofundamento teórico e, por fim, à filosofia do marxismo.”8 
Por isso Lukács também caminha no sentido de buscar a superação das 
chamadas antinomias da razão — ou, mais exatamente, de sua causa originária, a 
reificação — em uma prática e, mais especificamente, na práxis do proletariado, o qual 
se constitui como o sujeito-objeto idêntico do processo histórico. Tanto esta práxis 
quanto este sujeito seriam, para o filósofo húngaro, a realização do programa inconcluso 
da filosofia clássica alemã, o qual se articularia em três pontos: 1) o princípio da prática, 
2) o método dialético e 3) a história como realidade.9 
Em nossa pesquisa buscamos compreender como Lukács articulou o conceito de 
reificação, demonstrando quais foram suas fontes, quais os conceitos auxiliares 
 
6 LOTZ, 2013, p. 185. 
7 HCC, p. 1. 
8 HCC, p. 5. 
9 FEENBERG, 2011, p. 186. 
12 
 
utilizados e quais os passos de sua reflexão. O olhar de nosso estudo se direciona, 
portanto, de Lukács para trás, não para frente.10 Em que pese a enorme influência do 
conceito de reificação para o surgimento do chamado marxismo ocidental e também da 
Escola de Frankfurt, nosso recorte não comporta estes desdobramentos. Refazer o 
percurso intelectual de Lukács revela-se uma tarefa complexa, instigante e 
enriquecedora, que possibilita compreender melhor não apenas os destinos de seu 
conceito, mas também sua atualidade. 
Ao discutirmos o conceito de totalidade no primeiro capítulo, nossa análise 
também se concentrará apenas em História e consciência de classe, deixando de lado 
tanto obras anteriores, como A teoria do romance (1916), quanto posteriores, como A 
particularidade do estético (1964) e Ontologia do ser social (1964-1971), nas quais o 
conceito também é discutido. 
A obra principal que estudamos neste trabalho, História e consciência de classe, 
aparece abreviada como HCC. Utilizamos principalmente a tradução brasileira de 
Rodnei Nascimento, mas sempre cotejando com o texto original, Geschichte und 
Klassenbewußtsein. As contribuições de comentadores em alemão, inglês e francês 
foram traduzidas por nós e incorporadas diretamente no corpo do texto. 
 
 
10 Utilizamos também obras do próprio Lukács posteriores a HCC, redigidas pouco após a 
publicação desta obra e antes de sua ruptura conceitual com a mesma. 
13 
 
CAPÍTULO 1. AS CATEGORIA DE TOTALIDADE E MEDIAÇÃO 
 
A análise do conceito de reificação na obra de Lukács pressupõe um exame da 
categoria de totalidade.11 O surgimento deste fenômeno pode ser considerado, de certa 
forma, como uma perda da visão da totalidade12, e o seu desaparecimento, ou a 
desreificação, só pode se dar através de uma práxis específica também articulada a ela. 
Segundo Lukács, a totalidade é “um problema categorial e, mais precisamente, um 
problema da ação transformadora”13, sendo um elo entre a dialética e a reificação, seu 
horizonte metodológico e objeto de resolução.14 
Em um prefácio de 1967 a História e consciência de classe, Lukács afirma que 
nesta obra a totalidade ocupou o centro do sistema, tendo mais importância que o 
próprio fator econômico. Isso aparece de maneira explícita em Rosa Luxemburgo como 
marxista, o segundo artigo de História e consciência de classe: “Não é o predomínio de 
motivos econômicos na explicação da história que distingue de maneira decisiva o 
marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.”15 
 
1.1 A perda da totalidade 
 
Considerada por Lukács um fator chave para o surgimento da reificação na 
sociedade capitalista, a perda da totalidade teve como base concreta a especialização do 
trabalho.16 A necessidade humana de apreender a totalidade nos leva a pensar que a 
própria ciência teria “despedaçado a totalidade da realidade”, isso é, perdido o sentido 
da totalidade justamente por força da especialização, pois, desde a era moderna, 
investiga fatias cada vez menores do real, de maneira cada vez mais vertical e profunda, 
de modo que quanto mais uma ciência progride, mais ela volta as costas aos problemas 
ontológicos. 
 
11 CHARBONNIER, 1998, p. 31 
12 CHARBONNIER, 1998, p. 20 
13 HCC 392. 
14 CHARBONNIER, 1998, p. 31 
15 HCC 105 
16 HCC 228 
14 
 
Segundo Lukács, esta perda progressiva da totalidade se manifestou também na 
história da filosofia moderna. A sociedade burguesa, ao mesmo tempo em que, com o 
desenvolvimento da ciência, dominava cada vez mais os detalhes de sua existência 
social, perdia a “possibilidade de dominar intelectualmente a sociedade enquanto 
totalidade.”17 A filosofia clássica alemã, em seu esforço para dominar a totalidade do 
mundo como autoprodução do sujeito do conhecimento, baseada na concepção de o 
pensamento ser capaz de compreender apenas o que ele mesmo produziu, “esbarrou 
contra a barreira intransponível do dado, da coisa em si. Se não quisesse renunciar à 
apreensão da totalidade, deveria tomar o caminho da interioridade.”18 
A consequência inevitável deste princípio foi considerar possível a apreensão da 
totalidade através da arte. A partir da Crítica da faculdade do juízo, de Kant, surge na 
filosofia críticaalemã uma nova concepção de natureza, determinante do ser humano 
autêntico, em sua real essência, liberado das formas sociais falsas e mecanizantes, 
enquanto totalidade acabada, em que liberdade e necessidade coincidem.19 A 
importância sem precedentes da estética e da filosofia da arte para uma concepção total 
de mundo, a partir do século XVIII, não se deveria ao florescimento artístico, mas sim à 
função “teórica, sistemática e ideológica que o princípio da arte assume neste 
momento.”20 A realização da totalidade na arte foi uma tentativa de resolver de forma 
concreta as antinomias insolúveis no plano teórico. 
Uma ciência que tente unificar todos os campos do saber através da filosofia não 
pode alcançar a coesão do todo, à qual as ciências particulares “renunciaram 
conscientemente ao se distanciarem do substrato material do seu aparato conceitual.”21 
Isso não seria possível por meio da filosofia que ainda não rompeu com a barreira do 
formalismo mergulhado na fragmentação e que tente, de maneira acidental, costurar os 
campos do saber considerados totalmente independentes uns dos outros, fechados em si 
mesmos e regidos por leis internas próprias. Para alcançar tal coesão seria necessária 
uma orientação radicalmente diferente, revelando “os fundamentos, a gênese e a 
necessidade desse formalismo”22, de modo a não ligar mecanicamente as ciências 
particulares, mas sim remodelá-las interiormente por um método filosófico capaz dessa 
 
17 HCC 259 
18 HCC 260 
19 HCC 286 
20 HCC 287 
21 HCC 238 
22 HCC 238 
15 
 
unificação. Isso somente é realizável fora do campo da filosofia burguesa, não pelo fato 
de inexistir um desejo de tal síntese, mas por isso ser impossível no terreno da 
sociedade capitalista.23 A história tem demonstrado que a filosofia continua 
apresentando como tendência fundamental “reconhecer os resultados e os métodos das 
ciências particulares como necessários [...], e atribuir à filosofia a tarefa de desvendar e 
justificar a base da validade dos conceitos assim formados.”24 Correntes filosóficas 
episódicas, como as que tentam abarcar todo o saber de maneira enciclopédica, ou que 
suspeitam do valor do conhecimento formal em relação à “vida viva” (como é o caso 
das filosofias irracionalistas), são exceções que apenas confirmam a regra. A atitude da 
filosofia em relação às ciências particulares é a mesma dessas em relação à realidade 
empírica. A conceituação formalista das ciências particulares torna-se, para a filosofia, 
um “substrato imutavelmente dado.”25 
 
1.2 A totalidade em Kant 
 
A crítica de Lukács a Kant se dá no contexto de sua análise do formalismo na 
filosofia. Segundo Martin Jay26, foi a categoria de totalidade que permitiu a Lukács 
investigar e criticar as chamadas “antinomias do pensamento burguês” e uma de suas 
principais contradições: entre forma e conteúdo, característica do filósofo de 
Königsberg. A fonte dessas antinomias, de maneira geral, repousa na natureza 
contraditória da própria existência burguesa, e por isso o exame de Lukács, de 
perspectiva contextualista (considerando o marxismo uma forma de contextualismo), 
tem como ponto de partida o período de consolidação da burguesia enquanto classe 
social dominante, justamente quando Kant redigiu suas três críticas. 
Desenvolvendo a discussão de Marx sobre o fetichismo da mercadoria em O 
capital e valendo-se de contribuições de Bergson, Simmel e Weber, Lukács introduziu o 
conceito de reificação para “caracterizar a experiência fundamental da sociedade 
burguesa.” Este termo, Verdinglichung, não encontrado nas obras de Marx, significa “a 
 
23 HCC 238 
24 HCC 238 
25 HCC 239 
26 JAY, 1984, p. 109. 
16 
 
petrificação de processos vivos em coisas mortas, as quais aparecem como uma 
‘segunda natureza’.”27 
Segundo Charbonnier28, a totalidade é uma exigência prática da razão. Uma 
exigência “método-lógica” (méthodo-logique), pois a razão, como faculdade, visa 
compreender a realidade através de sua apropriação tanto sincrônica quanto diacrônica. 
Diante da crescente pulverização dos campos investigativos da realidade em setores 
cada vez mais autônomos, aumenta o tensionamento entre a apropriação da realidade 
(produzindo a cada dia mais questões e problemas) e a disponibilidade real de 
resultados (geralmente muito parciais). Faltaria uma articulação global dos diferentes 
campos de investigação do real, pois se as segmentações são, por um lado, cômodas, 
elas não têm, por outro, vocação à substancialidade. 
A totalidade, contudo, não pode ser compreendida em ato, como um objeto, 
capaz de produzir um conceito. Ela deve ser compreendida dialeticamente, ligando o 
pensamento à ação.29 
Maurice Merleau-Ponty30 também argumenta neste sentido, afirmando que a 
totalidade em Lukács não é uma totalidade metafísica, do absoluto, de todos os seres 
possíveis e atuais, mas uma “totalidade da empiria”, a “reunião coerente de todos os 
fatos que conhecemos”: 
Quando o sujeito se reconhece na história e reconhece a história nele mesmo, 
não domina o todo como o filósofo hegeliano, mas está ao menos empenhado 
numa tarefa de totalização, sabe que para nós nenhum fato histórico adquirirá 
todo o seu sentido a menos que tenha sido ligado a todos aqueles que 
podemos conhecer, tenha sido inserido, a título de momento, numa única 
empresa que os reúne, inscrito numa história vertical, registro das tentativas 
que tinham um sentido, de suas implicações, de suas sequências concebíveis. 
 
Esta “totalidade da empiria” de que fala Merleau-Ponty, vale ressaltar, não 
significa abarcar todos os fatos materiais ou sociais, não é uma mera inversão de sinal 
da totalidade buscada pelo pensamento metafísico: “não podemos considerar um 
método como totalizante se ele trata do conteúdo de ‘todos os problemas’ (o que, 
evidentemente, é impossível)”.31 Centrais não apenas para o conceito de reificação, mas 
 
27 JAY, loc. cit. 
28 CHARBONNIER, 1998, p. 5. 
29 Ibid., p. 6. 
30 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 33. 
31 HCC 392 
17 
 
para a própria obra de Marx32, “a categoria de totalidade, o domínio universal e 
determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx 
recebeu de Hegel”, de modo que não seria, portanto, “o predomínio de motivos 
econômicos na explicação da história” o que distinguiria “de maneira decisiva o 
marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.”33 Essa categoria 
constitui o princípio revolucionário não apenas na sociedade, mas também na ciência.34 
No que diz respeito à transformação social, a totalidade é portadora de seu 
princípio revolucionário, pois determina o ponto de partida e de chegada do método 
dialético, seu pressuposto e suas exigências. Sem a categoria de totalidade, a revolução 
social passa a ser vista como um ato isolado, sem conexão com a evolução social, de 
modo que o aspecto revolucionário do marxismo se perde, passando a ser visto como 
uma recaída nas revoltas operárias primitivas ou no blanquismo.35 
Outro aspecto que configura a totalidade como portadora do princípio 
revolucionário na ciência é que esta surge, na leitura de Marx, de uma necessidade 
ontológica objetiva do real. Daí a necessidade de forjar ferramentas categoriais capazes 
de apreender a pluralidade do real em múltiplos níveis ontológicos ou de objetividade. 
A categoria de totalidade tem como função e objeto precisamente a articulação dialética 
desta pluralidade.36 
A abordagem marxiana difere qualitativamente daquela da tradição kantiana. Na 
Crítica da razão pura a categoria de totalidade é desenvolvida como um conceito puro 
do entendimento e aparece subsumida à classe de “quantidade” na “Tabela das 
categorias”. Lukács afirma que a dialética transcendental “gira sempre em torno da 
questão da totalidade”. “Deus” e “alma”, por exemplo, seriam apenas “expressões 
mitológicas para o sujeito unitário, ou, para o objeto unitário, da totalidade dos objetosdo conhecimento, pensado como acabado (e completamente conhecido).”37 A 
 
32 HCC 20 
33 No prefácio de 1967 a História e consciência de classe, em meio a diversas autocríticas sobre 
o seu trabalho lançado quatro décadas antes, Lukács ainda reconhecia, embora com algumas ressalvas, 
que um dos méritos desta sua obra foi “ter restituído à categoria de totalidade [...] a posição metodológica 
central que sempre ocupou nas obras de Marx” (HCC 21). 
34 HCC 106 
35 HCC 109. O blanquismo foi uma corrente de esquerda formada a partir das doutrinas do 
revolucionário francês Louis Auguste Blanqui. Os blanquistas acreditavam que a revolução seria obra 
apenas de um pequeno e seleto grupo de revolucionários, e que somente após a tomada do poder através 
de um Putsch, ou golpe, o povo seria envolvido. 
36 CHARBONNIER, 1998, p. 28. 
37 HCC 248 
18 
 
totalidade, em Kant, é uma categoria extensiva (quantitativa), e se aproxima da figura 
matemática da exaustão, sendo impossível conhecê-la. Uma das funções da coisa em si 
é limitadora justamente neste sentido, e expressa a “impossibilidade de apreender a 
totalidade a partir dos conceitos formados nos sistemas racionais parciais.”38 Já em 
Hegel, Marx e Engels, o acento recai sobre a dimensão intrinsecamente qualitativa da 
totalidade. Segundo Charbonnier39, ela é também uma categoria intensiva, propriamente 
ontológica, pois é dentro de uma totalidade que o conhecimento dos atos se torna 
possível enquanto conhecimento da realidade. 
Kant tentou, com a Crítica da razão prática, saltar rumo a uma práxis que não 
havia sido encontrada unicamente pela razão pura teórica. Sua solução permaneceu, no 
entanto, ainda formal e abstrata. A categoria de totalidade não desempenhou nenhum 
papel neste esforço de articulação entre teoria e práxis, o que viria a ser alcançado em 
Marx com a mediação de Hegel. 
 
1.3 A totalidade de Hegel a Marx 
 
Hegel já havia afirmado que “a verdade é o todo”, ressaltando, com isso, o 
aspecto contraditório e histórico da realidade40. Por ser contraditória, ela não pode ser 
reduzida a nenhuma de suas partes e, por ser histórica, não se confunde com os seus 
diversos momentos. Desde Heráclito, o pensamento dialético confere prioridade 
ontológica do todo sobre as partes, “como uma característica própria da realidade, como 
realidade ‘mais real’ do que as partes que a integram”41. 
A totalidade em Hegel é dividida, fragmentada devido a sucessivas alienações 
do Espírito. O Espírito Absoluto, ao final do processo de alienação (Entfremdung), se 
reconcilia em uma totalidade harmoniosa em que as partes então se reconhecem em sua 
racionalidade como pertencentes ao todo. A falta de clareza dos escritos de Hegel, 
porém, permitiu uma leitura ora idealista, ora materialista, com as categorias derivando 
por vezes do pensamento e, em outras, da realidade42. 
 
38 HCC 250 
39 CHARBONNIER, 1998, p. 29. 
40 FREDERICO, 1997, p. 39. 
41 Ibid., p. 39. 
42 Ibid., loc. cit. 
19 
 
Marx toma Hegel como ponto de partida43 mas, em lugar das peripécias do 
Espírito, tem-se agora a saga da vida social dos homens. O homem torna-se um ser 
ativo, desprendendo-se da natureza através do trabalho e fazendo dela o seu objeto. O 
mundo social também se torna um produto da atividade humana, reafirmando-se, com 
isso, uma visão monista e o primado da totalidade44. 
A história mundial, para Marx, era decifrável apenas quando suas interligações 
totalizantes surgiam objetivamente das condições do desenvolvimento e da concorrência 
capitalistas espalhadas por todo o globo. O capitalismo gerou um mundo à sua imagem 
e semelhança, destruindo a exclusividade natural anterior das nações individualizadas45. 
Foi somente com Marx que a categoria de totalidade, que se constitui na 
essência do método dialético para Lukács, se tornou de fato uma “álgebra da 
revolução”. Isso não ocorreu através de uma simples inversão materialista de Hegel, 
mas justamente porque a categoria de totalidade, isso é, “a consideração de todos os 
fenômenos parciais como elemento do todo, do processo dialético, que é apreendido na 
unidade do pensamento e da história”, foi mantido nessa inversão46. 
Isso se manifesta na forma como Marx articula a relação totalizante entre sujeito 
e objeto na tomada dos meios de produção pelo proletariado. Sendo o objeto, isso é, as 
forças produtivas, uma totalidade que existe apenas dentro de um intercâmbio universal, 
e sendo sua apropriação o desenvolvimento das capacidades individuais que 
correspondem aos instrumentos materiais de produção, apenas o proletariado poderia 
delas se apropriar. A apropriação de um objeto total pode se dar apenas por um sujeito 
também total47. 
Enquanto a ciência burguesa atribui ou “realidade”, com um realismo ingênuo, 
ou uma autonomia “crítica” àquelas abstrações que, por um lado, resultam de uma 
separação dos objetos de investigação, e por outro, de uma divisão do trabalho e 
 
43 De acordo com Lukács, Marx nunca abandonou o método filosófico de Hegel, isso é, a 
posição dominante do conceito de totalidade. Mesmo a polêmica de Marx contra a visão “idealista” da 
história se dirigia muito mais aos discípulos de Hegel do que ao próprio mestre. A identidade hegeliana 
dialética de pensamento e ser, a concepção de sua unidade como unidade e totalidade de um processo 
também constitui a essência da filosofia da história do materialismo histórico (HCC 116). 
44 FREDERICO, 1997, p. 39. 
45 BOTTOMORE et al, 1983, p. 381. 
46 HCC 106 
47 BOTTOMORE et al, 1983, p. 381. 
20 
 
especialização, o marxismo supera (aufhebt) essas separações, tornando-as momentos 
dialéticos48. 
Um exemplo pode ser encontrado quando Marx critica a economia política 
inglesa como expressão da divisão do trabalho, do pensamento alienado. Marx exigia, 
pelo contrário, a reprodução conceitual do todo ao invés de conhecimentos parcelares 
que apenas reproduzem o esfacelamento do mundo burguês. A sociedade capitalista é 
totalidade viva e articulada, e não pode ser compreendida “pelas visões parciais do 
economista, do sociólogo, do historiador, etc.”.49 
De acordo com Lukács50, neste isolamento das ciências em campos de pesquisa 
específicos, neste fatiamento artificial da realidade, o que importa é saber se este 
movimento é apenas um meio para o conhecimento do todo, sendo integrado “no 
contexto correto de conjunto que ele pressupõe e ao qual apela”, ou se conhecimento 
parcial e abstrato permanece isolado e um fim em si mesmo. É por essa razão que para o 
marxismo, não há áreas ou campos do saber isolados, como uma ciência jurídica, uma 
economia política ou uma história autônomas, por exemplo, mas apenas uma única 
“ciência histórico-dialética, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como 
totalidade”. 
Não apenas o objeto do conhecimento é determinado pelo ponto de vista da 
totalidade, mas também o próprio sujeito. Os fenômenos sociais são considerados pelas 
ciências burguesas sempre a partir do ponto de vista do indivíduo isolado, mas este 
ponto de vista é incapaz de abranger os fenômenos em um todo integrado. Ele pode, 
quando muito, levar a aspectos de um domínio parcial, mas quase sempre a algo apenas 
fragmentário, a fatos desconexos ou a leis parciais abstratas. A totalidade, para 
Lukács51, “só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma 
totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar o objeto 
como totalidade.” Por essa razão, apenas as classes sociais, e não os indivíduos isolados, 
podem representar este ponto de vista na sociedade moderna. 
Esta perspectiva se apresenta também na obra de Marx através de sua concepção 
de que a superestrutura não tem história, isso é, que ela não possui uma história 
autônoma, independente, movida por leis próprias. Desta maneira, as artes, o direito e a 
 
48 HCC 106 
49 FREDERICO, 1997, p. 40. 
50 HCC 107 
51 HCC 107 
21 
 
religião,por exemplo, não se desenvolvem sozinhos, movidos por leis internas, mas 
expressam o movimento geral da sociedade52. 
A totalidade concreta é a reprodução conceitual da realidade, não sendo 
simplesmente um dado imediato para o pensamento53. Segundo Marx, “o concreto é 
concreto porque é uma síntese de muitos determinantes particulares, isso é, uma unidade 
de elementos diversos”54. Essa reprodução intelectual da totalidade, todavia, ainda não é 
a própria estrutura do real: “No pensamento, o concreto aparece como processo de 
síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora ele seja o real ponto de 
partida e, por isso, também o ponto de partida da intuição e da representação”55. Esta 
reprodução da realidade não deve se confundir com sua própria construção. O conceito 
de totalidade, embora pareça colocar uma grande distância entre si e a realidade e 
reproduzi-la de maneira “não científica”, é a única categoria capaz de compreendê-la56. 
O concreto, no entanto, não pode ser encontrado, como pensa a ciência 
burguesa, no indivíduo empírico e histórico, quer se trate de uma pessoa, de uma classe 
ou mesmo de um povo. Quando pensa ter encontrado aí o mais concreto, é quando ela 
está mais longe dele: a sociedade como totalidade efetiva, isso é, “a organização da 
produção num determinado nível do desenvolvimento social e a divisão de classes que 
opera na sociedade”57. Ao não apreender o real dessa maneira, a ciência burguesa 
apreende como concreto algo de completamente abstrato. Este só pode aparecer na 
relação com a sociedade enquanto totalidade. 
Todo conhecimento da realidade é, antes de tudo, conhecimento de uma 
realidade determinada historicamente, espacialmente, etc., podendo ser decomposto em 
dois movimentos sucessivos: analítico e sintético. A partir da percepção de um concreto 
obtemos, analiticamente e partindo das entidades abstratas, as determinações mais 
simples; neste estado, então, é necessário fazer o caminho de volta, retornando 
sinteticamente ao concreto de onde se partiu. Este concreto, agora, não é mais o mesmo, 
mas está qualitativamente superior, sendo não mais apenas um concreto percebido, uma 
 
52 FREDERICO, 1997, p. 40. 
53 HCC 76 
54 MARX, 1961, p. 632. 
55 Ibid., loc. cit. 
56 HCC 78 
57 HCC 140 
22 
 
representação caótica de um todo, mas um concreto pensado, uma totalidade rica de 
múltiplas determinações e relações58. 
O conhecimento é um processo genético de reconstrução da totalidade real em 
uma totalidade pensada. A concepção marxiana da totalidade enquanto realidade 
pensada, enquanto concreto de pensamento, é um produto do ato de pensar, do 
conceber. O todo pensado, tal como aparece no espírito, é um produto do cérebro 
pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, mas de um modo 
que difere da apropriação espiritual do mundo artístico, religioso ou prático59. 
É importante notar que tal concepção de apropriação do real, como encontrada 
em Marx, é muito mais elaborada que a chamada “teoria do reflexo”, a qual seria uma 
simples duplicação do real no espírito, haja vista que esta totalidade concreta não é 
simplesmente dada ao pensamento. Dessa maneira, qualquer totalidade é 
necessariamente dialética, unidade da diversidade e diversidade da unidade60. 
Para Lukács, a totalidade é o verdadeiro ponto de partida para compreender, seja 
na vida social ou econômica, todas as partes. O momento particular não é uma parcela 
de uma totalidade mecânica que pode ser composta a partir de tais parcelas. Cada 
momento tem em si a possibilidade de desenvolver, a partir de si, toda a riqueza do 
conteúdo da totalidade, de modo que dentro de uma totalidade dialética, os momentos 
particulares carregam em si a estrutura da totalidade61. 
O benefício teórico da totalidade é imenso, seja de um ponto de vista global, da 
teoria do conhecimento, seja de um ponto de vista mais específico, para uma 
compreensão da evolução do modo de produção capitalista. “A fecundidade da 
totalidade se atesta precisamente em sua capacidade metodológica de pensar a realidade 
na abundante multiplicidade de suas facetas”62. Ela permite pensar a diversidade na 
unidade, sem isolar (hipostasiar) cada um de seus momentos. Ela também torna possível 
ligar, conectar dialeticamente o que pode parecer num primeiro momento desprovido de 
relação imediata, mas não se tornando um mero ajuntamento sem princípios. A dialética 
não é nem eclética, nem uma soma. 
 
58 MARX, 1961, p. 632. 
59 Ibid., loc. cit. 
60 Ibid., p. 30. 
61 Ibid., loc. cit. 
62 Ibid., loc. cit. 
23 
 
A inovação de Lukács63 consiste em que, graças à totalidade, ele analisa a íntima 
conexão entre o fenômeno da reificação, que caracteriza o capitalismo de sua época, e 
uma metodologia científica que, participante desta reificação, a redobra. Isso lhe 
permite não apenas compreender a unidade dialética das contradições da sociedade 
burguesa e de seu modo de produção capitalista, mas também esclarecer sua 
significação e sua gênese. 
A utilização deficiente da categoria de totalidade impede o conhecimento real 
até mesmo de fenômenos isolados64. A integração na totalidade, cuja condição é admitir 
que a verdadeira realidade histórica é precisamente o todo do processo histórico, “muda 
não somente nosso julgamento sobre o fenômeno isolado de maneira decisiva, mas 
também provoca uma mudança fundamental no conteúdo desse fenômeno, enquanto 
fenômeno isolado.”65 A oposição entre a atitude que isola os fenômenos históricos e o 
ponto de vista da totalidade torna-se ainda mais nítida quando comparadas as 
concepções burguesa e marxiana da função da máquina: 
As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da 
maquinaria não existem pelo fato de não nascerem da própria maquinaria, 
mas sim de sua utilização capitalista! Sendo assim, uma vez que a 
maquinaria, considerada isoladamente, encurta o tempo de trabalho, enquanto 
seu uso capitalista prolonga a jornada de trabalho; uma vez que, por si só, 
ameniza o trabalho, enquanto seu uso capitalista aumenta sua intensidade; 
uma vez que, por si só, representa uma vitória do homem sobre as forças da 
natureza, enquanto seu uso capitalista o coloca sob o jugo dessas forças; uma 
vez que, por si só, aumenta a riqueza dos produtores, enquanto seu uso 
capitalista os empobrece etc., o economista burguês explica que a 
consideração da maquinaria em si prova rigorosamente que todas essas 
contradições patentes não passam de uma aparência da realidade comum, 
mas que, em si, isto é, também na teoria, não existem.66 
 
Do ponto de vista metodológico, a concepção burguesa considera a máquina de 
maneira isolada, em sua pura facticidade, como uma mônada. Sua função no processo 
 
63 Ibid., p. 31. 
64 HCC 313 
65 HCC 314 
66 MARX apud LUKÁCS, 2012, p. 314. Traducão alterada. Como o texto se mostra um pouco 
confuso na primeira frase, reproduzimos toda a citação no original: “Die von der kapitalistischen 
Anwendung der Maschinerie untrennbaren Widersprüche und Antagonismen existieren nicht, weil sie 
nicht aus der Maschinerie selbst erwachsen, sondern aus ihrer kapitalistischen Anwendung! Da also die 
Maschinerie an sich betrachtet die Arbeitszeit verkürzt, während sie kapitalistisch angewandt den 
Arbeitstag verlängert, an sich die Arbeit erleichtert, kapitalistisch angewandt ihre Intensität steigert, an 
sich ein Sieg des Menschen über die Naturkraft ist, kapitalistisch angewandt den Menschen durch die 
Naturkraft unterjocht, an sich den Reichtum des Produzenten vermehrt, kapitalistisch angewandt ihn 
verpaupert usw., erklärt der bürgerliche Ökonom einfach, das Ansichbetrachten der Maschinerie beweise 
haarscharf, daß alle jene handgreiflichen Widersprüche bloßer Schein der gemeinen Wirklichkeit, aber an 
sich, also auch in der Theorie gar nicht vorhanden sind.” (MARX, 1962, p. 465). 
24 
 
de produção capitalista é vista como eternae, assim como toda mônada, não interage 
com as outras. Nenhuma forma estrutural — seja uma máquina, uma grande 
personalidade ou uma época — pode ser apreendida de maneira imediata pelo 
historiador ou pelo indivíduo que a vive. Ela deve ser apreendida, antes, na dissolução 
dos objetos em processos, isso é, considerando o desenvolvimento histórico como 
totalidade67. 
Em cada parte da realidade apreendida dialeticamente está contida a totalidade, e 
aqui também a analogia com uma mônada se torna evidente. Isso só pode se dar, no 
entanto, se cada aspecto isolado for considerado como “ponto de passagem para a 
totalidade”, sem recair no imediatismo68. O método dialético pode se desenvolver a 
partir de cada aspecto do real, como demonstrado metodologicamente pela própria 
estrutura da Lógica, de Hegel, na qual o capítulo que trata do ser, do não-ser e do vir-a-
ser contém em si toda a filosofia hegeliana. De forma semelhante, o capítulo sobre o 
fetichismo da mercadoria, em O capital, também oculta em si toda a obra de Marx, 
considerando que o proletariado é uma mercadoria e que isso implicaria, por 
consequência, o autoconhecimento do proletariado como conhecimento da sociedade 
capitalista69. Para Lukács70, “cada elemento comporta a estrutura do todo”, de modo que 
“o conhecimento de toda a sociedade pode ser desenvolvido a partir da estrutura da 
mercadoria.” 
A categoria de totalidade “não reduz [aufheben] seus vários elementos a uma 
uniformidade indiferenciada, a uma identidade”71. A aparente independência que os 
vários elementos do real possuem no modo capitalista de produção — como a máquina 
— é uma ilusão que pode ser desvelada como tal apenas à medida em que são colocados 
em uma relação dinâmico-dialética uns com os outros, à medida em que são percebidos 
como momentos de um todo igualmente dialético-dinâmico72. Um exemplo deste 
procedimento pode ser encontrado, segundo Marx, no fato de que na sociedade 
capitalista, produção, distribuição, troca e consumo não são idênticos, mas membros de 
uma totalidade, aspectos diferentes de uma unidade. Uma determinada forma de 
produção determina formas definidas de consumo, distribuição e troca, assim como 
 
67 HCC 316 
68 HCC 344 
69 HCC 343 
70 HCC 393 
71 HCC 83 
72 HCC 84 
25 
 
relações definidas entre estes diferentes elementos. Uma interação ocorre entre estes 
vários elementos, como é o caso com todo corpo orgânico73. 
As formas objetivas de todos os fenômenos sociais mudam constantemente no 
curso de suas incessantes interações dialéticas, de modo que a inteligibilidade dos 
objetos se desenvolve em proporção ao que conseguimos apreender de sua função na 
totalidade à qual pertencem. Esta é a razão pela qual apenas a categoria de totalidade 
possibilita a compreensão da realidade enquanto processo social. Ela pode dissolver as 
formas fetichistas produzidas necessariamente pelo modo capitalista de produção e 
possibilitar que sejam vistas como meras ilusões. A objetividade de um fenômeno pode 
ser percebida em seu caráter histórico, transitório, apenas em sua relação com a 
totalidade .74 
A ilusão do fetichismo abarca todos os fenômenos da sociedade capitalista, 
mascarando seu caráter histórico, transitório. Esta ocultação só é possível pelo fato de 
que “todas as formas de objetividade, nas quais o mundo aparece necessária e 
imediatamente ao homem na sociedade capitalista, ocultam [...] as categorias 
econômicas”, de modo que elas apareçam como se fossem relações entre coisas quando, 
na verdade, dizem respeito a relações entre os homens. É apenas a partir do ponto de 
vista da totalidade do método dialético que se torna possível o “conhecimento real do 
que ocorre na sociedade”. A totalidade rompe o caráter reificado das categorias 
econômicas da sociedade capitalista75. 
O ponto de vista metódico do todo, que se constitui como o problema central e a 
condição primordial do conhecimento da realidade, é um produto da história em dois 
sentidos. No primeiro, somente com o surgimento histórico do proletariado — através 
das condições econômicas que o produziram —, a possibilidade objetiva e formal do 
materialismo histórico pôde surgir como conhecimento. No segundo, somente no curso 
da evolução do proletariado é que essa possibilidade formal se tornou real76. 
Esta evolução social, contudo, aumenta cada vez mais a tensão entre os 
momentos parciais e a totalidade. Enquanto, por um lado, o sentido imanente da 
realidade irradia com um brilho cada vez mais forte o sentido do devir, ela tem, por 
outro, uma ligação cada vez mais profunda com a vida cotidiana, de modo que a 
 
73 MARX, 1961, p. 630. 
74 HCC 85 
75 HCC 87 
76 HCC 100 
26 
 
totalidade “afunda-se nos aspectos momentâneos, espaciais e temporais dos 
fenômenos”77. 
Seja qual for o tema específico em discussão, a totalidade do processo histórico 
é sempre o problema principal de que trata o método dialético. A expressão literária ou 
científica de um problema aparece sempre como a expressão de uma totalidade social, 
de suas possibilidades e limites, de modo que “a história de um determinado problema 
torna-se efetivamente uma história dos problemas.”78 
Lukács vê nas obras A acumulação do capital¸ de Rosa Luxemburgo, e O 
Estado e a revolução, de Lênin, dois exemplos de aplicação da categoria de totalidade 
na realidade social. Tanto Luxemburgo quanto Lênin teriam tecido uma exposição 
histórico-literária da gênese do problema a ser analisado, ressaltando o processo 
histórico cujo resultado “constitui sua abordagem e sua solução” (HCC 118). Tal 
procedimento, que pode ser identificado no jovem Marx, é o próprio conceito hegeliano. 
O conceito, para Hegel, não é uma representação mental, como o uso comum do termo 
pode sugerir, mas um objeto visto em sua lógica imanente de desenvolvimento. O 
conceito, na dialética, dissolve a rigidez dos objetos e os transforma em processos. É 
assim que Lênin e Luxemburgo analisam os objetos de suas obras. 
O abandono da categoria de totalidade de Hegel e Marx leva, inevitavelmente, 
de volta à “ética imperativa abstrata da escola kantiana”79. O individualismo 
metodológico, isso é, aquele método que parte do indivíduo isolado, é o lado subjetivo 
da ausência da categoria de totalidade, a qual deságua, por sua vez, no fatalismo. Para o 
indivíduo isolado, seja ele capitalista ou proletário, o mundo só pode ser visto como que 
subordinado a leis imutáveis e a um destino brutal e absurdo, completamente estranhos 
a ele. A própria realidade social também é vista como submetida a leis eternas, diante 
das quais o indivíduo que visa transformar o mundo tem apenas duas saídas, sendo 
ambas falsas e aparentes: 1) tentar manipular tais “leis eternas” através da técnica ou 2) 
transformar o interior do homem, a única esfera que permaneceu livre (ética). Como a 
mecanização do mundo, no entanto, mecaniza também o próprio homem, tal ética 
permanece abstrata e “apenas normativa, e não realmente ativa e criadora de objetos, 
mesmo em relação à totalidade do homem isolado do mundo”80. 
 
77 HCC 103 
78 HCC 117 
79 HCC 124 
80 Ibidem, loc. cit. 
27 
 
 
1.4 Totalidade e práxis 
 
O conceito de totalidade em Lukács tem forte influência hegeliana, sendo de 
importância central na obra de ambos. Em Hegel, a “totalidade concreta” constitui o 
início do progresso e do desenvolvimento, cujo resultado “é o ‘todo idêntico a si 
mesmo’ que recobre a imediatez original na forma de ‘determinação transcendente’ 
através do ‘sistema de totalidade’.81“ 
A fragmentação capitalista do processo de trabalho separou o produtor do 
processo global de produção, deixando de lado o caráter humano do trabalhador e 
desencadeando a atomização da sociedade em “indivíduos que produzem 
irrefletidamente, sem planejamento nem coerência82.” Isso trouxe reflexos não apenas 
sobre o pensamento, a ciência e a filosofia do capitalismo, mas também sobre a própriaconsciência do trabalhador individual. A reificação seria, neste sentido, uma perda da 
totalidade. 
O domínio da categoria de totalidade, isso é, a capacidade de apreender a 
totalidade da sociedade enquanto totalidade concreta histórica, é a única superioridade 
do proletariado sobre a burguesia e também seu instrumento de desreificação. A 
burguesia, enquanto for a classe dominante, sempre disporá de mais recursos, poder, 
formação, organização e conhecimento do que o proletariado. Através da categoria de 
totalidade, contudo, este pode “compreender as formas reificadas como processos entre 
os homens”, elevar à consciência o sentido imanente do desenvolvimento e transpô-lo 
para a prática83. 
Neste sentido, a totalidade leva a uma prática pois transforma não apenas o 
objeto do conhecimento, mas o próprio sujeito. Este não pode ser, contudo, apenas um 
indivíduo isolado. Este, quando muito, pode conhecer apenas aspectos de um domínio 
parcial, algo fragmentário como “fatos” desconexos ou leis parciais abstratas. O sujeito 
que tenta apreender a totalidade deve ser ele próprio uma totalidade, e isso somente as 
classes sociais podem ser84. 
 
81 BOTTOMORE et al, 1983, p. 381. 
82 HCC 105 
83 HCC 390 
84 HCC 107 
28 
 
A superação da reificação passa pela aplicação da categoria de totalidade à 
prática do proletariado, através de uma “referência concreta às contradições que se 
manifestam concretamente no desenvolvimento global, e com a conscientização do 
sentido imanente dessas contradições para a totalidade do desenvolvimento85.” Esta 
relação com a totalidade, no entanto, “não exige que a plenitude extensiva dos 
conteúdos esteja conscientemente integrada nos motivos e nos objetos da ação.” Antes, 
importa apenas que “haja uma intenção voltada para a totalidade, que a ação cumpra a 
função [...] na totalidade do processo”.86 
De maneira geral, a totalidade dialética em Lukács não se limita à investigação 
da realidade. Ela é também um guia para a ação política, inseparável da reflexão teórica. 
A totalidade fornece um enorme ganho de inteligibilidade no que se refere à sociedade 
capitalista e sua história, relacionando todo momento particular à totalidade do processo 
histórico. Enquanto categoria, ela forma um entroncamento entre a dialética e a 
reificação, de modo que a análise da reificação pressupõe, logicamente, a categoria de 
totalidade, às vezes como horizonte metodológico e objetivo de resolução e, por outras, 
como uma terapia social, incluindo a superação do capitalismo87. 
 
1.5 A mediação 
 
As categorias de totalidade e mediação estão de tal forma imbricadas que uma 
totalidade social sem mediação seria, segundo Mészáros88, como “liberdade sem 
igualdade”, um “postulado vazio e abstrato”. Segundo o discípulo de Lukács, “a 
‘totalidade social’ existe por e nessas mediações multiformes, por meio das quais os 
complexos específicos – isto é, as ‘totalidades parciais’ – se ligam uns aos outros em 
um complexo dinâmico geral que se altera e modifica o tempo todo”.89 
O culto direto da totalidade, sua mistificação como imediaticidade, sem as 
mediações, só poderia produzir um mito, e um mito perigoso, como provou o nazismo.90 
Neste sentido, Konder91 chama a atenção para o fato de que “intuir o todo” sem a 
 
85 HCC 391 
86 HCC 392 
87 Ibid., loc. cit. 
88 MÉSZÁROS, 2013, p. 58. 
89 Ibid., loc. cit. 
90 Ibid., loc. cit. 
91 KONDER, 1984, p. 46. 
29 
 
consideração pelas partes, sem as necessárias mediações, é irracionalismo, sendo este 
um dos pontos que Hegel criticava na perspectiva de totalidade (do absoluto) de 
Schelling, chamado-a de “uma noite na qual todas as vacas são pardas”.92 
Não havia espaço para a imediaticidade no sistema de Hegel. Em sua Ciência da 
Lógica, ao discutir sobre o início da ciência, ele rejeita a ideia de que o ponto de partida 
deve ser algo externo ao próprio sistema, pois isso seria a afirmação de um princípio 
não-mediado, e todo e qualquer conceito é mediado. Ele sugere então tentar encontrar o 
princípio da filosofia em um conceito que parece imediato, ou que pelo menos temos a 
impressão de experimentar de forma imediata, e o que melhor se apresenta para este 
propósito é o conceito de Ser. Após examinar este princípio, todavia, Hegel percebe que 
este também se mostra afetado por uma série de determinações, de modo que sua 
imediaticidade era apenas aparente.93 
Em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas ele apresenta, nos parágrafos 61 a 
78, uma detalhada discussão sobre o conceito de mediação. Ela é aquilo que mantém a 
unidade do sistema e uma característica daquilo que pode ser apreendido através de 
categorias. Um objeto mediado é não-ilimitado, não-absoluto e não-independente. 
Categorias são sinônimos de conceitos, e compreender – pensar através de conceitos – 
significa apreender um objeto na forma de um condicionado e mediado. Se a mediação 
aponta para a natureza da relação entre conceitos dentro de uma totalidade, então a 
dialética é o elemento-chave para expor o todo. A dialética é a metodologia auxiliar 
com a qual a natureza mediada de nosso conhecimento é desvelada.94 
Adorno afirma que a mediação, para Hegel, significa a transformação que se 
espera que um conceito sofra no momento em que se tenta apreendê-lo. Ela é o 
momento do tornar-se (Werden) colocado necessariamente em cada ser. Sendo a 
dialética a filosofia da mediação universal, isso significa que não existe nenhum ser que 
não seja ao mesmo tempo um vir-a-ser.95 
Uma das definições de Lukács sobre a mediação é que esta seria a expressão 
pensada da própria estrutura dialética do ser, a qual se constitui de antagonismos e 
oposições dissolventes e produtoras de novos antagonismos. Ela é a forma lógica na 
qual podemos reproduzir no pensamento a processualidade dialética da existência (Sein) 
 
92 Ibid., loc. cit. 
93 SANDKÜHLER, 2005, p. 73. 
94 Ibid., loc. cit. 
95 ADORNO, 2017, p. 32. 
30 
 
e, com isso, cada resultado do processo realmente como resultado, e não como um 
produto metafisicamente enrijecido, solidificado.96 
Marx percebeu a importância da categoria de mediação em Hegel e, na disputa 
entre Feuerbach e o filósofo de Jena nesta questão, ficou com este último. Em seu 
ensaio filosófico sobre Moses Hess e os problemas da dialética idealista, publicado 
pouco após HCC e ainda antes da ruptura conceitual que Lukács faria posteriormente 
com importantes aspectos desta obra, Lukács discute a questão da mediação e aponta os 
erros da crítica de Feuerbach a esta categoria. 
O solo metodológico equivocado do qual Moses Hess parte é sua rejeição 
feuerbachiana do conceito hegeliano de mediação. Feuerbach teve o cuidado de tentar 
diferenciar sua posição de tentativas anteriores de alcançar o conhecimento imediato, 
como a de Jacobi, por exemplo. Mesmo que ele tivesse tido razão, contudo, teria-se 
perdido aqui uma das principais conquistas da filosofia hegeliana, um dos pontos que 
continha em si a possibilidade de se desenvolver em uma dialética materialista: a 
possibilidade metodológica de apreender e reconhecer a realidade social do presente em 
sua efetividade e, mesmo assim, ter com ela uma relação crítica, no sentido de uma 
atividade prático-crítica. Certamente havia em Hegel apenas a possibilidade desta 
passagem, mas justamente aqui Marx se ligou diretamente a Hegel e rejeitou a crítica de 
Feuerbach.97 
Os chamados “socialistas verdadeiros”, corrente que Marx e Engels criticam no 
Manifesto do partido comunista e da qual Moses Hess fazia parte, cometeram o erro de 
considerar Hegel, desde seu ponto de partida, um mero “idealista”, e converteram sua 
dialética objetiva do processo histórico em uma simples dialética do pensamento. Esta 
falsa concepção da obra hegeliana fez com que percebessem a crítica de Feuerbach 
como uma possível saída de seus impasses teóricos. 
O que Feuerbach e os jovens hegelianos – dos quais os “socialistasverdadeiros” 
também eram parte – tinham em comum era o fato de que todos tratavam a mediação 
como algo puramente da esfera do pensamento. Em seu Fundamentos da filosofia do 
futuro, Feuerbach afirma que “verdadeiro e divino é apenas aquilo que não precisa de 
provas, o que [...] fala por si de maneira imediata [...] Tudo é mediado, afirma a filosofia 
hegeliana. Mas algo é verdadeiro apenas quando não é mais mediado, mas imediato [...] 
 
96 LUKÁCS, 2013, 668. 
97 Ibid., p. 665. 
31 
 
Quem pode estabelecer a mediação como necessidade, como lei da verdade?”.98 A 
mediação, para Feuerbach, não passava de um meio formal para a comunicação do 
imediato e evidente conteúdo do pensamento.99 Em sua Crítica à filosofia hegeliana ele 
afirma claramente: 
O pensamento é uma atividade imediata, na medida em que é independente ... 
A demonstração não é nada mais do que mostrar que aquilo que eu falo é 
verdadeiro; nada mais do que o retorno da exteriorização do pensamento à 
fonte original do pensamento ... A demonstração tem agora apenas na 
atividade de mediação do pensamento para outros o seu fundamento. 
Quando quero provar alguma coisa, então eu o provo para outros ... Toda 
demonstração é, consequentemente, não uma mediação do pensamento em e 
para o pensamento mesmo, mas uma mediação através da linguagem, à 
medida que é minha, e ao pensamento dos outros, à medida que é deles ... À 
filosofia hegeliana falta unidade imediata, certeza imediata, verdade 
imediata.100 
 
O idealismo de Hegel, ao contrário do que Feuerbach esperava com esta crítica, 
não foi superado. Lukács afirma que isso fez apenas com que o utopismo eticizante 
fosse elevado ao seu mais alto grau filosófico e que se estabelecesse o fundamento 
epistemológico deste, pois uma certeza imediata, uma verdade imediata evidente pode 
ser alcançada em apenas dois pontos. 
O primeiro é que as formas sociais de nosso presente nos são dadas de maneira 
imediata, e quanto mais sofisticadas e complexas (ou mediadas, para usar uma 
expressão hegeliana), mais imediatamente evidentes. No que diz respeito aos 
fundamentos econômicos sociais, esta imediaticidade é percebida como mera ilusão do 
ponto de vista do proletariado. Este ato de percepção, esta compreensão clara 
(Durchschauen), no entanto, não muda nada na certeza imediata, já que esta é a forma 
de existência de nosso presente. Ela pode, entretanto, dar uma direção ao nosso 
comportamento prático em relação a ela, o qual reage modificando o comportamento 
imediato. Lukács fornece dois exemplos para ilustrar este ponto: o primeiro é sobre 
nossa existência enquanto indivíduos isolados no capitalismo. Isso nos é simplesmente 
dado e conseguimos perceber de maneira imediata, mas também podemos apreendê-lo 
como resultado do desenvolvimento do capitalismo. Quando este é o caso, tal saber 
permanece como um mero fato teórico, e a estrutura individualista não é alterada, mas 
permanece em sua imóvel imediaticidade. Outro exemplo, mas que serve apenas como 
 
98 FEUERBACH, 2016, p. 47. 
99 LUKÁCS, 2013, p. 668. 
100 FEUERBACH apud LUKÁCS, 2013, p. 668. 
32 
 
ilustração psicológica, ocorre também em relação ao nosso conhecimento da teoria 
copernicana e nossa experiencia diária imediata de que é o sol que nasce e se põe, e não 
que é a terra que gira. Apenas a tendência prática para a transformação dos fundamentos 
sociais desta própria imediaticidade – e também aquelas não tão obviamente visíveis – 
é capaz de causar uma comportamento transformador.101 
Este problema estrutural influenciou tanto o pensamento de Hegel quanto o de 
Feuerbach. O primeiro tratou a questão como meramente lógica e teórica, e com isso as 
categorias de mediação se tornaram independentes e se tornaram “essências” 
(Wesenheiten), se separaram do processo histórico real, do solo de sua verdadeira 
inteligibilidade (Begreifbarkeit) e se enrijeceram em uma nova imediaticidade. 
Feuerbach, por sua vez, conduziu sua polêmica exclusivamente pelo aspecto 
problemático da solução hegeliana e deixou de perceber não só a correta colocação do 
problema por Hegel e o progresso que ele já tinha alcançado, mas também o próprio 
problema em si. Ele tratou toda a questão da mediação como um puro problema de 
lógica, que poderia ser solucionado em parte unicamente pela lógica, e em parte fazendo 
recurso à percepção imediata, à sensibilidade. 
O segundo ponto que Lukács menciona é a evidência imediata da utopia ética. 
Ela diz respeito ao fato de que as formas de objetividade do meio são dadas aos 
indivíduos imediatamente, e que o grau de sua evidência imediata não fornece, nem de 
longe, nenhuma medida de sua essência supra-histórica. Elas são, de um lado, a 
consequência das forças objetivas daqueles poderes econômicos que lhe causam e, por 
outro, o desdobramento dos interesses de classe decorrentes da situação social. A utopia 
só pode levar, por isso, à aparência de uma práxis, a uma pseudo-práxis que, ou deixa 
intocada a estrutura da realidade objetiva, ou que não é capaz de apresentar como 
problema concreto a transição da realidade presente para a realidade “transformada”. A 
nova realidade – a utopia - é apresentada como uma situação, como um estado, uma 
condição já pronta (Zustand) e contrastada com a presente realidade objetiva, sem 
apresentar o caminho que leva de uma à outra. 102 Entre presente e futuro falta a 
mediação real, pois nos elementos do presente, nas tendências que ela trouxe e tornou 
problemáticas, as forças reais para ir além de si não foram reconhecidas.103 Ao falarmos 
sobre a possibilidade de superação de reificação, mostraremos a relevância da categoria 
 
101 Ibid., loc. cit. 
102 Ibid., p. 670. 
103 Ibid., p. 661. 
33 
 
de mediação para articular a relação entre teoria e práxis, entre consciência de classe e 
partido. 
 
 
 
34 
 
CAPÍTULO 2. O NÚCLEO ORIGINÁRIO DA REIFICAÇÃO 
 
A investigação lukácsiana do fenômeno da reificação tem seu ponto de partida 
na unidade nuclear, mínima, de todo e qualquer problema da objetividade e de suas 
respectivas formas correspondentes de subjetividade na sociedade capitalista: na 
estrutura da mercadoria. A “solução deste enigma”, isso é, da estrutura da mercadoria, 
seria uma exigência de todo problema nesse estágio de desenvolvimento da 
humanidade. 
Este procedimento, que parte de um elemento nuclear do qual se desdobram 
todas as características do objeto investigado, foi inspirado por Hegel e Marx. Lukács 
observa que assim como o capítulo da Lógica de Hegel sobre o ser, o não-ser e o vir-a-
ser contém em si toda a filosofia hegeliana, poder-se-ia dizer talvez que o capítulo sobre 
o caráter fetichista da mercadoria, de forma semelhante, “oculta em si todo o 
materialismo histórico, todo o autoconhecimento do proletariado como conhecimento 
da sociedade capitalista”.104 
A máxima de que “todo início é difícil” se aplica, segundo Marx, a todas as 
ciências, o que justificaria o fato de a análise da mercadoria apresentar as maiores 
dificuldades de compreensão em sua obra.105 A mercadoria é a célula econômica da 
sociedade capitalista. Assim como é mais fácil estudar um corpo já inteiramente 
formado do que suas células, é mais fácil tentar compreender o capitalismo por inteiro 
do que investigar a forma mercadoria do produto do trabalho ou a forma do valor da 
mercadoria. 
Nem todo produto é uma mercadoria. Em sociedades primitivas, a produção é 
essencialmente para satisfazer necessidades de suas comunidades, sejam elas pequenas 
(famílias) ou grandes (tribos ou clãs). Os primeiros grandes impérios que tinham por 
base a agricultura não apresentavam grandes diferenças econômicas em relação aos 
posteriores. O rei da Babilônia, por exemplo, era chamado de “Camponês da Babilônia” 
e “Pastor de homens”. No Egito, o faraó e sua administração eram chamados de Pr’o, 
que significava algo como “a grande casa”. A totalidade do estadoeconômico dessas 
 
104 HCC 343 
105 MARX, 1962, p. 11. 
35 
 
sociedades era como um grande Estado produzindo valores de uso para satisfazer suas 
necessidades.106 
Com o surgimento das profissões independentes, as quais não requeriam um 
esforço coletivo para sua realização (como a agricultura, por exemplo), aparece um 
novo tipo de produção. Antes, camponeses-artesãos que moravam em comunidades 
traziam ao mercado apenas o excedente de sua produção, aquilo que restava depois de 
satisfeitas as necessidades de suas famílias e comunidades. Agora, o artesão 
especialista, não mais ligado a nenhuma comunidade, tais como o ferreiro ou oleiro 
itinerantes, por exemplo, não mais produz valor de uso para satisfazer suas 
necessidades, mas a totalidade de sua produção é voltada para a troca. Ele só pode 
adquirir seus meios de subsistência (como roupas, alimentação, etc.) através da troca de 
seus produtos. O artesão separado da comunidade não produz mais produtos, mas 
apenas valores de uso, mercadorias destinadas ao mercado.107 
Este artesão, contudo, ainda é o proprietário de seus próprios meios de produção. 
Nestes sistemas simples de produção podia-se encontrar de tudo à venda no mercado: 
leite, pão, matérias-primas, botas, etc., mas não uma mercadoria especial que só 
apareceu no capitalismo: a força de trabalho. Esta não era vendida, pois seu possuidor, o 
artesão, era dono de suas próprias ferramentas. Ele trabalhava sozinho, era dono de sua 
própria indústria. Será apenas no capitalismo que o possuidor da força de trabalho não 
mais possuirá os meios de produção, sendo incapaz de aplicar sua força de trabalho ao 
seu próprio negócio. Para não morrer de fome, ele deve vender esta mercadoria especial, 
a força de trabalho, ao capitalista. Agora, no mercado, ao lado de lã, queijo e máquinas, 
aparece uma nova mercadoria: a força de trabalho.108 
Todas as mercadorias são trocadas por seu valor real, o qual é calculado através 
do tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-las. Num primeiro momento 
tem-se a impressão de que o capitalista se enriquece ao vender a mercadoria por um 
preço maior que seu valor real, mas isso é apenas aparente. O preço da mercadoria para 
o consumidor final corresponde ao preço real da mercadoria, e o lucro do empresário 
consiste no fato de os custos de produção da mercadoria serem menores que seu valor 
real. Isso só é possível devido a uma propriedade específica da força de trabalho: uma 
vez consumida, ela gera um valor maior que o seu próprio. Todas as mercadorias, ao 
 
106 MANDEL, 1976, p. 58. 
107 Ibid., loc. cit. 
108 BUCHARIN, 1921, p. 17. 
36 
 
serem consumidas, se deterioram, mas a mercadoria força de trabalho produz um valor a 
mais, um Mehrwert, comumente chamado de mais-valia. 
A mercadoria é composta por duas porções de riqueza: uma diz respeito ao seu 
custo de produção, e a outra corresponde ao valor a mais que lhe foi transferida pelo 
trabalhador no momento de sua produção. Estas duas partes são indissociáveis, de modo 
que só é possível separá-las 1) destruindo a própria mercadoria ou 2) trocando-lhe por 
dinheiro. Neste segundo caso, a riqueza contida na mercadoria é decomposta e pode ser 
dividida em partes: uma quantidade é devolvida ao trabalhador sob a forma de salário, 
outra é destinada a cobrir os custos de produção com maquinário, energia, matéria 
prima, etc., e uma outra parte, aquela do valor a mais da mercadoria (mais-valia) é 
embolsada pelo capitalista.109 
Marx não parte, vale ressaltar, de um conceito básico, como o valor, por 
exemplo, mas sim de um fenômeno material elementar, que é a mercadoria, a base do 
sistema capitalista. Segundo Mandel110, seria incorreto afirmar que o método de Marx 
consiste em partir do abstrato para o concreto. Ele parte, na verdade, de elementos do 
concreto material em direção ao abstrato teórico, para então reproduzir a totalidade 
concreta em sua análise teórica. O concreto, em toda sua riqueza, é sempre a 
combinação de inúmeras abstrações teóricas, mas o concreto material, isso é, a 
sociedade burguesa, já existe antes desta empreitada científica, determinando-a em 
última instância e permanecendo como um ponto de referência para testar a validade da 
teoria. 
2.1 O fetichismo da mercadoria 
 
A análise do fetichismo da mercadoria é essencial para se compreender o 
fenômeno da reificação. Segundo O’Kane111, a reificação em Lukács é uma tentativa de 
ampliar, de continuar, de estender a teoria marxista, de modo que ela também seja 
aplicável em importantes facetas da realidade sociocultural contemporânea que não 
estavam originalmente incluídas na crítica da economia política de Marx. Tais aspectos 
incluem instituições tais como o Estado e a burocracia, além de alguns específicos 
modos de consciência. O fetichismo da mercadoria, ademais, também será importante 
 
109 TONET; LESSA, 2012, p. 30. 
110 MANDEL, 1976, p. 20. 
111 O'KANE, 2013, p. 83. 
37 
 
para compreender a unidade sujeito-objeto do proletariado de que vamos tratar no 
quarto capítulo desta dissertação, pois na seção de O capital que trata sobre no 
fetichismo da mercadoria está contido todo o materialismo histórico, todo o 
autoconhecimento do proletariado enquanto conhecimento da sociedade capitalista.112 
2.2 O fetichismo em Marx 
 
O termo “fetiche” deriva do francês “fétiche”, o qual remete ao latim “facticius”, 
isso é “artificial”, “fictício”. Uma das definições de fetiche lhe designa como um objeto 
de culto das civilizações primitivas, um objeto ao qual se atribui poderes mágicos ou 
benéficos.113 A analogia religiosa parece ser mesmo o que Marx tinha em mente ao 
abordá-lo em O capital, haja vista que nela encontraremos uma relação entre a 
mercadoria e a religião e também um comentário sobre o cristianismo como a religião 
mais apropriada ao capitalismo. É um trecho repleto de referências a magia, mistério e 
necromancia.114 
Paul Ricoeur115 afirmou que Marx era um dos “mestres da suspeita”, ou mestre 
da escola da suspeição. Segundo o filósofo francês, o método de Marx é de 
desmistificação. Ele parte de uma suspeita em relação às ilusões da consciência e 
emprega um estratagema para decifrá-la, para mostrar o que jaz oculto, fora do alcance 
da aparência imediata. 
Este é o procedimento que ele emprega na seção em que analisa o fetiche da 
mercadoria, no primeiro capítulo de O capital. Marx começa dizendo que a mercadoria 
parece, num primeiro momento, algo extremamente simples, mas que seu exame 
revelará toda uma complexidade insuspeita. Considerada do ponto de vista de seu valor 
de uso, isso é, que através de suas propriedades ela satisfaz necessidades humanas ou 
que essas propriedades são produtos do trabalho humano, ela não possui nada de 
misterioso. É muito claro que o homem, através de sua atividade, transforma a matéria 
natural de uma maneira que lhe seja útil, como a madeira que é transformada em uma 
mesa, por exemplo. 
O argumento de Marx se concentra, num primeiro momento, em identificar 
como surge o fetichismo e como ele é um aspecto fundamental e inevitável no 
 
112 HCC 343 
113 FLECK, p. 143. 
114 HARVEY, 2010, p. 38. 
115 RICOEUR, 1970, p. 32. 
38 
 
capitalismo. O caráter místico da mercadoria não emerge nem do seu valor de uso e nem 
do conteúdo da determinação do valor, e isso por duas razões. Primeiro pelo fato de que, 
sejam quais forem as variadas formas de trabalho ou de atividades produtivas, é uma 
verdade fisiológica que estas são funções do organismo humano e que cada uma dessas 
funções são sempre o gasto ou o consumo do cérebro, dos nervos, dos órgãos, dos 
sentidos, etc. Em segundo lugar, o que jaz na raiz da determinação do valor, que é o 
tempo de duração deste gasto ou a quantidade de trabalho, é claramente distinguível da 
qualidade do trabalho. Em todos os casos, este tempo de trabalho, que custa a produção 
dos meios de vida, deve interessar aoshomens, embora não de maneira uniforme. E, 
finalmente, à medida que os homens trabalham uns para os outros, o seu trabalho toma 
uma forma também social.116 
A forma misteriosa da mercadoria surge da própria forma da mercadoria, e isso 
de três maneiras: 1) a igualdade entre os diversos tipos de trabalho humano assume a 
forma física da igual objetividade do valor dos produtos do trabalho; 2) a medida do 
gasto da força de trabalho humano através de sua duração assume a forma da grandeza 
do valor dos produtos do trabalho; e 3) as relações dos produtores assume a forma de 
uma relação entre os produtos do trabalho. O misterioso caráter da forma-mercadoria 
consiste “simplesmente no fato de que a mercadoria reflete as características sociais do 
próprio trabalho dos homens como características objetivas dos próprios produtos do 
trabalho.”117 Ela também reflete a relação social entre os produtores e a soma total de 
trabalho (Gesamtarbeit) como uma relação entre coisas, fora das relações sociais 
existentes. 
A fim de esclarecer as sutilezas metafísicas no processo de transformação dos 
produtos do trabalho em mercadorias, Marx traça uma analogia entre a mercadoria e a 
religião. Na religião, os produtos do cérebro humano aparecem como figuras 
autônomas, hipostasiadas e possuindo uma vida própria, e nessa forma entram em 
relação com os homens e também entre si. No mundo das mercadorias acontece o 
mesmo. Inicialmente oriundas dos próprios homens, as mercadorias se separam destes e 
se relacionam tanto entre si quanto com estes. No mundo da religião, assim como no 
mundo das mercadorias, opera o processo de alienação, no sentido de que há uma 
 
116 MARX, 1962, p. 85. 
117 MARX, 1962, p. 86. 
39 
 
exteriorização do homem em objetos nos quais ele posteriormente não mais se 
reconhece. 
Neste trecho é clara a influência de Feuerbach sobre Marx. Em sua principal 
obra, A essência do cristianismo, Feuerbach pretende demonstrar que o cristianismo é a 
forma mística e alienada do próprio homem: “o segredo da teologia é a antropologia”. 
Feuerbach faz a religião retroceder ao firme solo da experiência, mostrando que Deus é 
uma projeção das maiores qualidades do gênero humano (entendido como 
Gattungswesen). O conhecimento de Deus é o autoconhecimento do homem. O 
movimento de Marx aqui também vai neste sentido: o segredo da mercadoria são as 
relações sociais entre os homens. 
Os homens não percebem, entretanto, as relações entre si. O contato dos homens 
uns com os outros se dá através das mercadorias. As relações dos diferentes tipos de 
trabalho só aparecem mediante a troca dos produtos de seu trabalho, inicialmente 
objetos de uso, tornados mercadorias. Os produtores não percebem as relações sociais 
de seu trabalho social como o que realmente são, isso é, como relações sociais imediatas 
entre os indivíduos. Tudo aparece invertido: as relações entre as pessoas são relações 
coisificadas, e as relações entre as coisas, relações sociais.118 
Este relacionamento entre os produtores, tornado oculto pelas mercadorias, fica 
mais claro ao compreendermos, por exemplo, a origem do que consumimos 
cotidianamente. Num primeiro momento, ao tentarmos explicar a origem de um simples 
pão francês, poderíamos dizer que ele veio de uma padaria, adquirido através de uma 
troca em dinheiro: o comerciante nos forneceu o pão em troca de algumas moedas. Mas 
devemos levar a questão mais a fundo: como o pão foi produzido? De onde vieram seus 
ingredientes? Seguindo nesta trilha de investigação vamos descobrir toda uma complexa 
cadeia produtiva que nos remeterá do padeiro ao agricultor na produção do trigo, o qual, 
por seu turno, fez uso de máquinas e ferramentas que, por sua vez, também foram 
produzidas por outros trabalhadores em uma fábrica metalúrgica. Nesta fábrica o 
processo se repete: o aço, o minério, o cobre e outras matérias primas também foram 
extraídas da natureza por outros trabalhadores, de modo que a cadeia parece não ter fim. 
Cada um dos trabalhadores que encontramos neste processo também consome, por sua 
 
118 MARX, 1962, p. 87. 
40 
 
vez, aquele mesmo pão francês do qual partiu nossa investigação. Marx e Engels119 
afirmam que o capital é um produto social e que, em última análise, só pode ser 
colocado em movimento pela atividade de todos os membros da sociedade. 
A mercadoria manifesta suas duas faces no ato de troca: a de coisa útil e de coisa 
de troca. Esta separação, contudo, se torna prática apenas quando este processo já se 
expandiu de tal forma e com tal importância que coisas úteis passam a ser produzidas 
especificamente para a troca, de modo que o valor é levado em consideração já no 
momento da produção. A partir de então o trabalho privado dos produtores toma 
também um duplo caráter social: por um lado ele deve, como trabalho útil determinado, 
satisfazer determinadas necessidades sociais que não são suas e se tornar parte da soma 
total de trabalho (Gesamtarbeit), da divisão social do trabalho. Por outro, este trabalho 
deve satisfazer as múltiplas necessidades dos próprios produtores, de modo que cada 
trabalho privado útil seja intercambiável. Esta igualdade entre os diferentes tipos de 
trabalho, contudo, só pode se dar através de uma abstração de sua desigualdade 
efetiva.120 Esta abstração é a redução ao caráter comum de todo tipo de trabalho, que é o 
gasto ou consumo de força de trabalho. 
Este duplo caráter social do trabalho privado é refletido ou espelhado no cérebro 
do indivíduo, tendo em sua consciência a mesma forma que apresenta no processo 
social de troca dos produtos. O caráter socialmente útil de seu trabalho privado aparece 
na forma de que o produto do trabalho deve ser útil para outros, e o caráter social da 
igualdade dos diversos tipos de trabalho se reflete em sua consciência na forma do 
caráter comum, enquanto valores, dessas diversas coisas materiais, que são os produtos 
do trabalho.121 
Ao trocarem seus produtos uns com os outros, os homens não os relacionam 
enquanto valores, pois essas coisas são, para eles, apenas um tegumento, uma casca, um 
invólucro material que envolve trabalho humano igual, homogêneo, equivalente. O que 
acontece no processo de troca é justamente o contrário.122 No momento em que os 
produtores igualam seus produtos na troca enquanto valores, o que eles estão fazendo é 
igualar seus diversos tipos de trabalho enquanto trabalho humano. É nesta passagem que 
 
119 MARX, ENGELS, 1977b, p. 475. 
120 MARX, 1962, p. 87. 
121 MARX, 1962, p. 88. 
122 MARX, 1962, p. 88. 
41 
 
Marx, como um psicanalista das relações sociais no capitalismo, faz a emblemática 
afirmação: “eles não sabem, mas o fazem” (“Sie wissen das nicht, aber sie tun es”). O 
valor, continua Marx, não traz escrito em sua testa o que ele é. Ele transforma cada 
produto em um hieróglifo social, de modo a esconder, camuflar, escamotear sua 
essência. Os homens tentam, posteriormente, fazer o caminho reverso para decifrar este 
enigma, para chegar ao que está por trás do segredo de seus próprios produtos sociais, 
pois “a determinação dos objetos de uso enquanto valores são, para eles, um produto 
social assim como a linguagem”123. A descoberta científica de que os produtos do 
trabalho, enquanto valores, são apenas expressões materiais (sachliche) do trabalho 
humano gasto (verausgabten) em sua produção, embora faça época no desenvolvimento 
humano da humanidade, não é capaz, contudo, de afastar a forma objetiva 
(gegenständlichen) do caráter social do trabalho. 
O produtor se interessa agora pela quantidade de produtos que pode trocar pelo 
seu. A proporção pela qual é possível trocar um produto por outros parece emanar da 
própria natureza do produto, da mesma forma que uma tonelada de ferro equivale, em 
valor, a três gramas de ouro, por exemplo, ou uma tonelada de ferro equivale a uma 
tonelada de ouro quanto ao peso, embora sejam diferentes em todas

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