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Falso frei não envia graduações à Justiça, anexa homenagens e defende ‘experiência prática’

Justiça Federal determinou que peritos judiciais do Caso Samarco comprovassem currículo

Atendendo a uma determinação da Justiça Federal, a defesa do falso frei Phillip Neves Machado anexou, na noite da última sexta-feira (16), quatro “diplomas” - nenhum de universidade ou formação acadêmica - ao processo do Caso Samarco e uma manifestação apontando que ele, nomeado como perito judicial no processo, possui “conhecimento prático” e, por isso, estaria habilitado para atuar na perícia.

No início de junho, a Itatiaia mostrou o “frei” Phillip Machado já recebeu quase R$ 2 milhões da Justiça Federal, através de pagamentos da Fundação Renova, para atuar como perito socioeconômico no processo referente às indenizações feitas pela mineradora Samarco, proprietária da barragem de Fundão, que se rompeu em 2015. Nos autos, ainda estavam previstos para ser repassados a Machado mais R$ 900 mil.

Depois de questionada pela reportagem, o juiz federal Michael Procópio de Avelar, responsável pelo caso, determinou que todos os peritos do caso anexassem provas de seus currículos e especializações. Na época de sua nomeação, Machado afirmou à Justiça ter doutorado e mestrado em universidades da Itália, Portugal e Holanda.

Na última sexta, no entanto, a defesa do falso frei anexou somente quatro diplomas de homenagens: dois feitos pela “Sociedade Brasileira de Heráldica, Medalhística, Cultural e Educacional”, em que estabelecem o título de Comendador da instituição a Phillip Machado, um diploma de homenagem da Cooperativa dos Agricultores Familiares Flor do Amazonas, que põe Machado como “cooperado de honra por sua contribuição com nossos projetos” e outro do Instituto Luterano de Ensino Superior de Porto Velho (Ulbra), em que a instituição agradece o perito judicial pela “participação na formação de nossos acadêmicos”.

No diploma da Cooperativa dos Agricultores Familiares Flor do Amazonas, há ainda a menção de uma marca do “Frango du Frei”. Em contato com a entidade, a Itatiaia apurou que a marca foi feita em homenagem à atuação de Phillip Machado na época em que atuava como consultor da empresa Santo Antônio Energia, em Roraima.

Na manifestação anexada à Justiça Federal, a defesa de Phillip Machado pontua que os trabalhos do falso frei enquanto perito judicial - e também em outras instituições - “sempre foi de qualidade indiscutível. Seus relatórios e visitas in loco contam com esmero e técnica, além de demonstrarem, por si só, que o PERITO possui conhecimento à altura do cargo”, argumenta.

A manifestação não cita nenhuma formação acadêmica de Machado, mas pontua experiências profissionais, como consultorias a empresas privadas de energia e a participação no Comitê Técnico da Fundação Renova. “Ao longo do processo, todos os trabalhos técnicos requisitados foram prestados com inegável esmero e correção. Não podia se esperar menos do presidente de um renomado comitê técnico de sócio economia. Note-se que nunca houve uma alegação sequer de incorreção na metodologia empregada nas perícias de PHILLIP. Nenhum perito auxiliar ou contraparte contestou a capacidade de suas conclusões em contribuir com uma percepção clara e tecnicamente adequada, de todos magistrados que presidiram a demanda, sobre a realidade dos fatos”.

Além dos diplomas e da manifestação, a defesa de Phillip Machado enviou ofícios extrajudiciais à Fundação Renova, ao Instituto Transforma, à Santo Antônio Energia, à Novonor e à Unesco solicitando comprovaçoes de sua atuação profissional junto às entidades. A defesa não anexou nenhum pedido enviado às universidades em que o perito judicial disse possuir graduações.

A manifestação da defesa confirma, ainda, que Phillip Machado de fato não é frei, como se apresentava. “Sua jornada profissional no ramo iniciou-se logo após abandonar os estudos no Seminário Nossa Senhora do Paraíso, em São Paulo, ainda jovem, quando se apaixonou pelo diálogo social, especialmente em sua interseção com a Igreja Católica”, mostra o posicionamento.

À Justiça Federal, Phillip Machado pontuou ser doutor em Geopolítica e Conflitos Internacionais pela Pontifícia Universidade Gregoriana, na Itália, mestre em Filosofia pela Universidade de Coimbra, em Portugal, mestre em Teologia pelo Instituto Santo Inácio de Loiola, professor convidado da Universidade Católica de Lisboa, consultor internacional da ONU (Organização das Nações Unidas) e da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

Confissão

Seis dias depois da reportagem da Itatiaia, Phillip Neves Machado enviou uma gravação de voz a pessoas que atuam junto aos atingidos pelo rompimento da barragem de Mariana, e, na mensagem, pediu perdão por ter “mentido muito” e afirmando que, no tempo certo, irá “revelar toda a verdade”.

“Caros amigos, quero com grande pesar assumir minhas culpas e pedir implorar o perdão de todos vocês. Menti muitas vezes. Poderei depois, aos que quiserem e me derem as oportunidade explicar passo a passo porque fiz isso. Penso que, por favor, não me façam mais nada de mal. Minha vida já está destruída. Eu quero recomeçar com a verdade. Por favor, me perdoem”, disse Machado.

Em outro momento do áudio, Machado diz que ainda irá revelar toda a verdade sobre o caso, “desde o primeiro dia até hoje”. “Eu estou organizando tudo para fazer a minha defesa naquilo que é possível e direi a todos vocês, em breve, toda a verdade, desde o primeiro dia até o dia de hoje. Não se assustem e acreditem, eu não sou um bandido”, desabafou.

Além de mentir sobre possuir uma série de especializações, doutorados e mestrados em universidades europeias, Machado também inventou ser frei da Ordem Premonstratense, ramo do catolicismo fundado pelo santo holandês São Norberto. Tanto a Arquidiocese quanto os Premonstratenses que atuam em Minas negaram conhecer Phillip Machado.

As polêmicas de Machado não param por aí. Entre 2018 e 2021, ele atuou como integrante do Comitê Técnico da Fundação Renova. Em abril do ano passado, foi nomeado pela Justiça como perito judicial.

Investigação

Depois da Itatiaia revelar o caso, o Ministério Público Federal (MPF) requereu à Polícia Federal a instauração de um inquérito policial para investigar a atuação do falso frei Phillip Neves Machado como perito judicial no caso do rompimento da barragem de Mariana, da Samarco, que tramita na Justiça Federal.

De acordo com o procurador da República Carlos Bruno Ferreira da Silva, chefe da força-tarefa do caso Samarco, “trata-se de possível ocorrência dos delitos de falsificação de documento público e de documento particular e falsidade ideológica”.

Em entrevista à Itatiaia no dia 7 de junho, o procurador da República Carlos Bruno Ferreira da Silva, chefe da força-tarefa do Caso Samarco, afirmou que, se forem comprovadas as fraudes, decisões da Justiça Federal que tiveram como base relatórios de Machado podem ser anuladas - a investigação, no entanto, ainda é muito inicial.

“Se forem comprovadas as irregularidades na especialização e currículo do perito judicial, é possível que sejam anuladas as perícias efetuadas e até decisões que foram baseadas nos laudos e relatórios desse perito. Mas é tudo muito inicial ainda, precisamos comprovar de fato a fraude e, se comprovada, se os relatórios do perito de fato foram utilizados como base central em decisões. Então ainda é muito cedo para falar, inclusive porque um dos maiores males do processo do Rio Doce , entre tantos problemas, e a ausência de avanços das perícias, em especial judiciais, quase 8 anos após a tragédia”, afirmou à Itatiaia o procurador.

O procurador da República apontou, ainda, considerar imprópria a escolha de Phillip Machado como perito judicial, uma vez que ele chegou a atuar no Comitê Técnico da Fundação Renova entre 2018 e 2020. “De fato, sendo confirmada, considero imprópria a escolha como perito que tenha histórico de ter atuado por uma das partes. Seria impróprio inclusive se tivesse atuado por outra das partes, como pelo MP ou em assessorias de atingidos. A confiança na imparcialidade é essencial para o juízo e seus auxiliares”, diz.

Lucas Ragazzi é jornalista investigativo com foco em política. É colunista da Rádio Itatiaia. Integrou o Núcleo de Jornalismo Investigativo da TV Globo e tem passagem pelo jornal O Tempo, onde cobriu o Congresso Nacional e comandou a coluna Minas na Esplanada, direto de Brasília. É autor do livro-reportagem “Brumadinho: a engenharia de um crime”.
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