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O rolex de Macron, ex-banqueiro vestido de rei

"Macron faz lembrar a todos os franceses o seu patrão: um sabichão educado que despreza os seus trabalhadores", disse o Financial Times. Com razão.

Numa entrevista na tv francesa, a tentativa de Macron de retirar discretamente o Rolex que tinha no pulso deu ainda mais nas vistas.
Numa entrevista na tv francesa, a tentativa de Macron de retirar discretamente o Rolex que tinha no pulso deu ainda mais nas vistas. © Créditos: Ludovic Marin/AFP

A jornalista norte-americana Jane O’Reilly disse, na década de 80, que George Bush (pai) fazia lembrar a todas as mulheres o seu primeiro marido. "E não era suposto ser uma piada", escreveu no New York Times.

"Há duas ou três gerações de mulheres neste país que passaram horas e horas a explicar o movimento das mulheres aos seus primeiros maridos. E os maridos pareciam ouvir, e concordar que uma cidadania de segunda classe deveria ser abolida, para então sem hesitar perguntarem: 'Querida, onde estão as minhas meias limpas?'"

O Financial Times pegou nesta "piada" para falar de Emmanuel Macron, a propósito da crise política e social em França e do polémico projecto-lei sobre o aumento da idade da reforma, dos 62 para 64 anos: "Macron faz lembrar a todos os franceses o seu patrão: um sabichão educado que despreza os seus trabalhadores."

O tique-taque do Rolex parece marcar o tempo de uma bomba-relógio.

Talvez o Financial Times (um jornal para e dos patrões) tivesse a intenção de uma piada. Mas, parafraseando O’Reilly, há duas ou três gerações de trabalhadores em França que passaram horas e horas a explicar aos seus patrões (da empresa ao chefe da République) que o coração do Estado Social (pensões, saúde, educação, habitação, direitos laborais) não se coaduna com medidas neo-liberais.

E os patrões pareciam ouvir, e até, por vezes, concordar. Quando os trabalhadores diziam "direito ao trabalho", os patrões ouviam "flexibilidade laboral"; quando diziam "direito à educação", ouviam "cheque-ensino2. Defendiam enfim que com uma legislação robusta as leis do mercado poderiam ser controladas, para então sem hesitar perguntar: "Mas já viste a nova proposta das parcerias público-privadas para a saúde?"

E é assim como patrão que Macron vai para a televisão de Rolex no pulso explicar a sua posição nas "negociações" sobre a nova lei das pensões depois de ter largado a "bomba atómica" (e já não é a primeira vez nesta legislatura) ao recorrer ao artigo 49.3 da Constituição, que permite fazer avançar projectos-lei sem aprovação parlamentar. Macron decretou "excepcionalmente" o 49.3 porque temia não ter maioria no Parlamento para a lei passar.

Como "um pequeno ex-banqueiro vestido de rei" (diz o FT), a meio da entrevista na televisão francesa, Macron dá-se conta de que tinha levado o relógio, avaliado em milhares de euros, para uma conversa em que pedia mais sacrifícios aos trabalhadores, em protesto nas ruas há dois meses. A tentativa de o retirar discretamente deu ainda mais nas vistas.

Macron não é "só", ao contrário do que disse Manuel Carvalho no Público, um "Presidente amigo do mercado". Ele é o CEO da França. Que dizer do relógio de um ex-banqueiro da Rothschild, que esteve na aquisição da Cofidis, na recapitalização do jornal Le Monde pela Siemens, e na compra de uma subsidiária da Pfizer pela Nestlé? O relógio é uma "natural" extensão, no pulso, de um modo de estar na vida e na política.

Em dois mandatos, já ficou claro que "mesmo muitos dos que votaram nele [Macron] nunca gostaram dele", diz o FT. Nas últimas eleições (2017 e 2022), Macron emergiu sempre como "o mal menor" na chantagem do status quo da República numa suposta "luta" contra a extrema-direita de Marine Le Pen (ou na suposta "derrota" da mesma). A figura do presidente francês, diz o FT, passou em 60 anos de "homem-providência" para "pelo menos não é o diabo".

Mas o "diabo" não dorme e o tique-taque do Rolex continua. O "diabo" não surge da caverna "bárbara", para onde "o mal menor" pretende empurrá-lo, apenas quando há eleições. O "diabo" está aí, cresce e alimenta-se da caverna que é a degradação dos direitos laborais e económicos apresentados como "oportunidades" pelo centro moderado, sempre muito bem vestido.

De mandato para mandato, o centro moderado vai rasgando as vestes – "o diabo, jamais!" #nãopassará – enquanto empenha o futuro de gerações e gerações (do trabalho ao clima) por um Rolex. De mandato para mandato, o centro moderado continua a ser engolido pela sua absoluta incapacidade de resistir (ou conscientemente cedendo) às pressões do capital para o desmantelamento do Estado Social, eliminando direitos, desfalcando as instituições, vendendo aos pedaços, como num leilão, estruturas centrais do Estado.

O Financial Times comenta que a crise na França está dividida em três eixos: "A economia e as finanças públicas; as disparidades sociais pelo país; e a crise das instituições da 5ª República, começando pela presidência e os partidos políticos."

Na economia e finanças, a questão das pensões é muito mais complexa do que a mera caricatura do "privilégio" sobre a idade formal da reforma, e uma gota de água face ao custo das medidas durante a pandemia (165 mil mihões) e o choque energético (cerca de 100 mil milhões), bem como compromissos de Macron em investir em energia nuclear (50 mil milhões) e defesa (10 mil milhões até 2030)". E quanto mais dura a guerra na Ucrânia mais estas variáveis se agravarão.

Sobre as disparidades sociais temos assistido a uma enorme degradação da vida dos trabalhadores franceses. O FT é suspeito nestas matérias por isso cita o jornalista Guillaume Duval, autor de "L'impasse: comme Macron nous mène dans le mur" ("O beco sem saída: como Macron nos encosta à parede"), para nos dizer o óbvio: "Durante 40 anos, os sucessivos governos têm pedido aos franceses que aceitem 'reformas' que reduzem os seus direitos civis. Estas têm degradado os serviços públicos na saúde, educação, nos transportes, entre outros, corroendo em simultâneo o poder de compra e agravando as condições laborais. Os franceses estão fartos."

Ao mesmo tempo, os partidos do eixo centro-moderado, como o Partido Socialista e o Partido Republicano, parecem aprofundar um caminho de desaparecimento do espectro político nos últimos 15 anos.

O tique-taque do Rolex parece marcar o tempo de uma bomba-relógio. Como avisava o colete de um manifestante dos protestos das últimas semanas: "Olha para o teu Rolex. É a hora da revolta."

(Autora escreve de acordo com a antiga ortografia.)

Raquel Ribeiro, entre a Europa e a América Latina

Raquel Ribeiro nasceu no Porto, em 1980. É jornalista e escritora. Doutorou-se no Reino Unido com uma tese sobre a ideia de Europa na obra de Maria Gabriela Llansol. Foi colaboradora do jornal Público, foi bolseira Gabriel García Márquez da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, na Colômbia, e da Universidade de Nottingham, com o projeto War Wounds, sobre testemunhos da presença cubana na guerra civil de Angola. Viveu em Cuba e no Reino Unido. "Este Samba no Escuro" é o seu segundo romance. Deu aulas em Oxford e Edimburgo. É investigadora do Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova da Lisboa.

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