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FUTURO

DO TRABALHO
Os efeitos da Revolução
DIGITAl na sociedade

Organizadores
Rodrigo de Lacerda Carelli
Tiago Muniz Cavalcanti
Vanessa Patriota da Fonseca
República Federativa do Brasil

Ministério Público da União


Antônio Augusto Brandão de Aras
Procurador-Geral da República

Humberto Jacques de Medeiros


Vice-Procurador-Geral da República

Ministério Público do Trabalho


Alberto Bastos Balazeiro
Procurador-Geral do Trabalho

Maria Aparecida Gugel


Vice-Procuradora-Geral do Trabalho

Escola Superior do Ministério Público da União


Paulo Gustavo Gonet Branco
Diretor-Geral

Manoel Jorge e Silva Neto


Diretor-Geral Adjunto

Pareceristas
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Procurador Regional do Trabalho

Max Emiliano da Silva Sena


Procurador do Trabalho
Escola Superior do Ministério Público da União
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dos autores.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca da Escola Superior do Ministério Público da União)

F996 Futuro do trabalho: os efeitos da revolução digital na sociedade /


organização : Rodrigo de Lacerda Carelli, Tiago Muniz Cavalcanti,
Vanessa Patriota da Fonseca. – Brasília : ESMPU, 2020.
472 p.
ISBN 978-65-88299-01-2
ISBN (eletrônico) 978-65-88299-00-5
1. Ministério Público do Trabalho (Brasil). 2. Meio ambiente do
trabalho – Brasil. 3. Relação de trabalho – Brasil. 4. Mercado de
trabalho. 5. Trabalho, inovação tecnológica. 6. Aplicativo de tecnologia.
7. Saúde do trabalhador. 8. Trabalhador – proteção. I. Carelli, Rodrigo de
Lacerda (Org.). II. Cavalcanti, Tiago Muniz (Org.). III. Fonseca, Vanessa
Patriota da (Org.). IV. Título.
CDD 342.6

Distribuição gratuita. Venda proibida.


Sumário

Apresentação
Rodrigo de Lacerda Carelli, Tiago Muniz Cavalcanti
e Vanessa Patriota da Fonseca.........................................................................................9

Texto introdutório

Automação, inteligência artificial e proteção laboral: patrões


algorítmicos e o que fazer com eles
Valerio De Stefano......................................................................................................... 21

Primeiro capítulo · Programação algorítmica e subordinação


cibernética: a sociedade do controle e a falácia da autonomia

O trabalho em plataformas e o vínculo de emprego: desfazendo


mitos e mostrando a nudez do rei
Rodrigo de Lacerda Carelli........................................................................................ 65

Gestão algorítmica e o futuro do trabalho


Jeremias Adams-Prassl.............................................................................................. 85

Controle e contrato hiper-realidade: a relação de emprego na


era da economia orientada a dados
José Eduardo de Resende Chaves Júnior............................................................101

A lei sobre o TVDE e o contrato de trabalho: sujeitos, relações


e presunções
João Leal Amado..........................................................................................................117

Neuromarketing e sedução dos trabalhadores: o caso Uber


Ana Carolina Reis Paes Leme.................................................................................139
Formas de contratação do trabalhador na prestação de serviços
sob plataformas digitais
Murilo Carvalho Sampaio Oliveira.......................................................................157

Os empregados das plataformas


Emmanuel Dockès........................................................................................................171

As novas tecnologias e o trabalho: proteção para o empregado


e para o ser humano
Maria Cecília Alves Pinto......................................................................................... 191

Condições transparentes de trabalho, informação e subordinação


algorítmica nas relações de trabalho
Luciane Cardoso Barzotto, Ana Paula Silva Campos Miskulin
e Lucieli Breda............................................................................................................... 211

Segundo capítulo · Proteção do trabalhador: intimidade, vida privada,


saúde e segurança

O trabalhador transparente: relações trabalhistas e redes sociais


Joaquín Pérez Rey...................................................................................................... 227

O panóptico pós-moderno no trabalho


Maria Cecília Máximo Teodoro e Karin Bhering Andrade...........................251

Algumas considerações sobre segurança e saúde dos trabalhadores


no trabalho 4.0
Teresa Coelho Moreira.............................................................................................. 273

Proteção de dados do trabalhador e a questão do necessário


consentimento: uma abordagem a partir da Lei n. 13.709/2018
Aldacy Rachid Coutinho............................................................................................291

A indústria 4.0: impactos nas relações de trabalho e na saúde


dos trabalhadores
Rômulo Soares Valentini.......................................................................................... 301

Jurimetria e predição: notas sobre uso dos algoritmos e o


Poder Judiciário
Adriana Goulart de Sena Orsini.............................................................................313
Nanotecnologia: da revolução 4.0 à proteção da vida
Patrick Maia Merísio................................................................................................. 333

Terceiro capítulo · Precarização do trabalho: da crise do sindicalismo à


regulação do trabalho em plataformas digitais

Trabalho digital, “indústria 4.0” e uberização do trabalho


Ricardo Antunes......................................................................................................... 347

O crowdsourcing e os desafios do sindicalismo em meio à


crise civilizatória
Vanessa Patriota da Fonseca................................................................................. 357

AB5 para democracia: segurança econômica e a regulação do


trabalho do bico na Califórnia
Veena B. Dubal............................................................................................................ 373

Tecnologias e o futuro dos sindicatos


Francisco Gérson Marques de Lima.................................................................... 387

Revolução digital: a demanda social pela regulação do trabalho


Paula Freitas de Almeida.........................................................................................403

Neotaylorismo digital e a economia do (des)compartilhamento


Carlo Benito Cosentino Filho..................................................................................417

Representação coletiva dos trabalhadores em


plataformas digitais
Sidnei Machado............................................................................................................431

Zona cinzenta do emprego, poder do empregador


e espaço público
Christian Azaïs, Patrick Dieuaide e Donna Kesselman................................ 441

Os impactos jurídico-sociais da automação no mundo do


trabalho e a hermenêutica da prevenção
Wilson Engelmann.....................................................................................................459
Apresentação

Os avanços da humanidade sempre foram associados às gran-


des transformações tecnológicas, e estas têm tido papel funda-
mental nas mudanças ocorridas desde o período denominado de
“Revolução Industrial”. A tecnologia sempre se destaca do mundo
da indústria e passa a conviver de forma pervasiva no dia a dia
de todas as pessoas. Se os motores mecânicos e a energia elétrica
foram e ainda são cruciais para o desenvolvimento da sociedade e
a melhoria de vida das pessoas, atualmente estamos convivendo
com inovações tão rápidas e tão mais importantes quanto aquelas,
tais como os sistemas que convertem a escrita em áudio, essen-
ciais para pessoas com deficiência visual; os aplicativos que auxi-
liam pessoas com deficiência auditiva por meio da tradução para a
Língua Brasileira de Sinais (Libras); a possibilidade de comunicação
quase gratuita entre pessoas em qualquer parte do globo terrestre
por meio dos aplicativos de mensagens ou pelas redes sociais oni-
presentes nos hoje amplamente acessíveis e potentes dispositivos
móveis celulares; o apoio na navegação nas cidades, permitido por
mapas digitalizados que mostram o caminho para se chegar a qual-
quer destino desejado; a detecção precoce de alguns tipos de cân-
cer somente possível com o auxílio de algoritmos; ou os diferentes
glicosímetros eletrônicos para a saúde dos portadores de diabetes.
A tecnologia passou não somente a ser parte da nossa vida como
cada vez mais há a crença de que ela resolverá todos os problemas
do mundo, desde encontrar a alma gêmea por obra e graça de apli-
cativos, até nos livrar da indiscutível crise ambiental que vivemos,
por meio do uso da geoengenharia climática. É uma crença que
vem sendo chamada criticamente de “solucionismo tecnológico”.1

1 MOROZOV, Evgeny. La locura del solucionismo tecnológico. Buenos Aires: Katz/


Capital Intelectual, 2016.

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Se a vida não é só de sombra, ela tampouco é apenas de luz. A partir
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

de diversos problemas verificados e relacionados com esse verda-


deiro fetiche da tecnologia, que permitiu seu avanço às vezes de
forma acrítica e sem amarras por algumas décadas, os pensado-
res começaram a alertar sobre os riscos que a sociedade passou a
enfrentar. São apontados os perigos para o futuro da humanidade
pela explosão da cibernética,2 pela possibilidade de criação de uma
nova raça humana dominante e que subjugaria as raças tidas como
inferiores3 e pela construção a olhos vistos de um capitalismo de
vigilância com grandes consequências para a liberdade das pes-
soas. 4 Entretanto, não são somente os estudiosos que passaram
a fazer esses alertas. A imprensa diuturnamente apresenta não
somente as ameaças, mas também as lesões já ocorridas e visíveis
ocasionadas pelas mais novas tecnologias, sendo denunciados os
atos das empresas do Vale do Silício, no ensolarado estado norte-
-americano da Califórnia, ou também da obscura China e de seu
incrível avanço tecnológico. Passaram a ser cotidianas notícias
como fraude em eleições em vários países do mundo por meio do
uso conjugado de técnicas psicológicas e do Big Data para a mani-
pulação de eleitores em redes sociais,5 da utilização de inteligência
artificial em drones para assassinato de pessoas6 e da criação de
estado de vigilância total por meio de reconhecimento facial aliado
ao Big Data e à implementação de sistema de pontuação social.7 As
ameaças à democracia e à humanidade são apresentadas também
em diversos documentários, como Privacidade Hackeada.8

2 LANIER, Jaron. Quién controla el futuro? Buenos Aires: Debate, 2015.


3 HARARI, Yuval Noah. Homo deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo:
Companhia das Letras, 2016.
4 ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism. The fight for a human
future at the new frontier of power. London: Profile, 2019.
5 Disponível em: https://www.theguardian.com/uk-news/2020/jan/04/cambrid
ge-analytica-data-leak-global-election-manipulation. Acesso em: 6 jan. 2020.
6 Disponível em: https://www.forbes.com/sites/kalevleetaru/2019/04/19/ai-pac
kage-delivery-drones-are-just-killer-robots-in-waiting/#1ef3f b616265.
Acesso em: 6 jan. 2020.
7 Disponível em: https://futurism.com/america-social-credit-system-china.
Acesso em: 6 jan. 2020.
8 PRIVACIDADE hackeada. Direção de Karim Amer e Jehane Noujaim. EUA:
Netflix, 2019. 1 vídeo (114 min).

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O mundo do trabalho, certamente um dos mais atingidos por

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


esse novo cenário, não poderia ficar de fora da análise crítica.
Acentuou-se, nos últimos tempos, a preocupação com a forma pela
qual as tecnologias, emergidas principalmente com a Revolução
Digital, estão afetando negativamente a vida dos trabalhadores.
Os olhares voltam-se para questões como invasão de privacidade
decorrente do monitoramento eletrônico; excesso de trabalho e
ausência do direito à desconexão; substituição de trabalhadores por
máquinas e desaparecimento de profissões e postos valorizados de
trabalho pela sua substituição por trabalhadores com menos quali-
ficação; formas precárias de contratação de trabalhadores que pres-
tam serviços por meio de plataformas digitais; efeitos das novas
tecnologias na saúde física e mental dos trabalhadores; enfraque-
cimento das organizações sindicais devido à quebra dos laços de
sociabilidade e ao isolamento; gamificação e captura psicológica do
trabalhador; amplificação das desigualdades de gênero, raça e ori-
gem; entre tantas outras questões igualmente preocupantes.
A parte já não tão opaca dessa evolução tecnológica – que implode
empregos ou os substitui por postos menos valorizados, precariza
relações de trabalho, aliena e escraviza o gênero humano, ameaça
a vida e o meio ambiente, destrói a subjetividade do trabalhador e
amplia o fosso da exclusão social – precisa ser cada vez mais pau-
tada e estudada para que caminhos possam ser traçados de modo a
colocar os seres humanos novamente como fim e como condutores
da evolução da sociedade. Esses caminhos devem ser construídos
interdisciplinarmente pela Sociologia, pela Economia, pela Ciência
Política, pelo Direito e por todas as demais áreas do conhecimento.
A definição do sentido desse trajeto não está nas mãos dos juris-
tas, mas estes enchem de sentido a árdua tarefa de, no processo de
criação jurisprudencial e construção doutrinária, trazer os saberes
dos outros ramos da ciência quanto aos fatos sociais, a fim de bus-
car uma hermenêutica estruturante, alicerçada nos princípios e
nas normas constitucionais e internacionais, que contribua para o
desenvolvimento sustentável e para a redução da pobreza, da mar-
ginalização e das desigualdades sociais.
Deve-se ver além da superfície ao analisar-se a nova modalidade
de externalização produtiva denominada crowdwork, em que tare-
fas são postas à disposição de uma multidão de trabalhadores por
meio de uma chamada aberta com o uso da internet. Serviços dos

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mais diversos – desde a tradução de um texto até o desenvolvi-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

mento de um sistema informacional – são contratados por meio de


plataformas genéricas que conectam solicitantes e fornecedores no
espaço territorial global, promovendo e estimulando a competição
entre trabalhadores em uma escala nunca antes vista, e minando
as formas atuais de organização, representação e defesa desses
mesmos trabalhadores.
Atualmente, atividades tradicionais, como as de transporte, entrega
e limpeza, são ofertadas por meio de aplicativos no trabalho
on-demand. O controle do trabalho, nesse modelo de produção
também conhecido como Uberismo, é realizado por programação
algorítmica estabelecida pelas empresas detentoras das platafor-
mas, mas o trabalhador é contratado sob demanda, sem vínculo de
emprego, sem um mínimo salarial garantido. Não há remuneração
pelos tempos mortos. Mortos, por certa interpretação equivocada
e às vezes mal-intencionada da legislação realizada por determi-
nadas empresas, estão os direitos constitucionais clássicos à limi-
tação da jornada de trabalho, ao amparo da Previdência Social,
ao descanso semanal remunerado, às férias e a todas as demais
garantias decorrentes da relação de emprego.
Uma análise mais aprofundada precisa ser conferida ao modelo
de organização dos trabalhadores, pois, no contexto da Revolução
Digital, a noção de categoria profissional, as formas tradicionais
de realização de assembleias e a limitação territorial das entidades
sindicais podem ter perdido sentido – ou ao menos precisam de
um rearranjo. O sindicalismo precisa ser reinventado ou, melhor
ainda, reinventar-se.
Esse mesmo olhar, consentâneo com os direitos humanos, deve
ser buscado quando da análise da utilização e da manipulação de
dados do trabalhador ou da apreciação dos métodos engenhosos de
captura de sua psiquê, que o leva a se sentir em um jogo aprisio-
nante e a destinar maior tempo da vida a serviço da empresa.
Em tempos de pós-verdade, repete-se o mantra de que quanto
mais direito, menos trabalho. Incute-se no imaginário coletivo que
empregado é colaborador, parceiro, microempreendedor. Ele é um em-
preendedor de si mesmo que não detém os meios de produção e
está perdendo a esperança de dias melhores. Urge pôr a tecnolo-
gia a favor da humanidade e da natureza. Insta alterar o curso

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dessa história. Roga-se por uma meta global: um pacto social pela

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


vida e pela sobrevivência do planeta. Afinal, qual o futuro que
queremos? Essa é a pergunta ao redor da qual os debates devem
ser realizados para recolocar a sociedade de volta no comando e
acabar com o encantamento da cibernética que esconde a mani-
pulação realizada por um pequeno número de pessoas por meio
de seus obscuros programas e algoritmos.
Embalada pelo propósito de promover um amplo debate na socie-
dade sobre o assunto, a Escola Superior do Ministério Público da
União (ESMPU) realizou, em oito capitais e no Distrito Federal, ao
longo do ano de 2019, o simpósio Futuro do trabalho: os efeitos da
revolução digital na sociedade. Em todas as edições, deixou-se claro
que o futuro do trabalho que ali se buscava não era baseado em
um futurismo adivinhatório, mas que a pretensão era discutir
as mudanças atuais que sofrem as relações de trabalho. Não era
basicamente sobre futuro que se debatia, mas sim sobre presente
do trabalho e possíveis transformações e bifurcações. O futuro já
chegou sob a forma de uma tela táctil pela qual uma comida pode
ser comandada por dois ou três cliques e chegar às casas das pes-
soas em curto prazo de tempo. O futuro já chegou sob a forma de
um trabalhador precário e desprovido de direitos ou de proteção
social pedalando sofregamente uma bicicleta alugada pelas ruas da
cidade, carregando em uma mochila nas costas a comida coman-
dada em dois ou três cliques. O futuro a se discutir é justamente
o futuro a ser construído pelas pessoas, após acordarem da ine-
briante e fatigante alucinação da tecnologia como meio e fim da
sociedade. Nessa perspectiva de presente-futuro ou futuro-pre-
sente, foram travadas ricas discussões, a partir de vários pontos de
vista e diversas abordagens realizadas por especialistas brasileiros
e estrangeiros. Mostrou-se patente desde o início que a riqueza das
discussões que tomaram corpo nos eventos precisava circular e
gerar mais discussões e, portanto, mais conhecimento, para além
do público que compareceu aos simpósios. Imbuídos desse mis-
ter, os palestrantes foram convidados a apresentar artigos sobre
os temas debatidos, e eles nos brindaram com textos tão densos e
necessários quanto prazerosos e surpreendentes.
O texto introdutório – Automação, inteligência artificial e proteção
laboral: patrões algorítmicos e o que fazer com eles –, assinado pelo
consultor da Organização Internacional do Trabalho e professor

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de Direito do Trabalho na Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

Valerio De Stefano, traz um panorama sobre o tema central do livro.


Na sequência, os artigos foram divididos em três capítulos. No pri-
meiro, intitulado Programação algorítmica e subordinação ciberné-
tica: a sociedade do controle e a falácia da autonomia, os textos anali-
sam as novas roupagens da subordinação e dos demais pressupos-
tos da relação de emprego no ambiente das plataformas virtuais.
Os autores se debruçam sobre as novas formas de organização do
trabalho e dissecam sua natureza jurídica. Miraram e apuraram,
com destreza, os mecanismos de controle dos trabalhadores no
denominado Uberismo.
Abrindo o capítulo, temos o estudo do professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro e procurador do Trabalho Rodrigo de
Lacerda Carelli, que desfaz mitos em relação ao trabalho em empre-
sas-plataformas, delineando alguns conceitos básicos como market-
place, aplicativos e plataforma, que são essenciais para se enten-
der o fenômeno do trabalho em plataformas digitais. Em seguida,
Jeremias Adams-Prassl, professor da Universidade de Oxford,
Reino Unido, disseca a gestão algorítmica e o futuro do trabalho.
José Eduardo de Resende Chaves Júnior, o “Pepe”, uma das grandes
referências no estudo do trabalho e da tecnologia no Brasil e pro-
fessor da Pós-Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais,
apresenta a noção de “contrato hiper-realidade” como caracterís-
tica central da relação de emprego na sociedade de dados. João Leal
Amado, professor da Universidade de Coimbra, Portugal, mostra
que o contrato de trabalho não é definido por aquilo que se pro-
mete fazer, mas sim pelo modo que se promete fazer, ou seja, não
é orientado pelo tipo de atividade, e sim pela circunstância de a
atividade ser prestada sob a autoridade e a direção do empregador,
e que assim deve ser buscado no caso de trabalho em plataformas
digitais. Ana Carolina Reis Paes Leme enfrenta a questão da sedu-
ção dos trabalhadores pela técnica do neuromarketing, realizando
estudo de caso sobre a empresa Uber. O juiz do Trabalho e pro-
fessor da Universidade Federal da Bahia Murilo Carvalho Sampaio
Oliveira apresenta as formas de contratação de trabalhadores em
plataformas digitais, centrando também seus estudos na Uber.
Indo direto ao ponto, o artigo de Emmanuel Dockès, professor de
Paris-Nanterre, França, já desde o seu título denomina os traba-
lhadores por demanda de “empregados das plataformas”, buscando

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ver por trás da novidade a real atividade econômica e o modo com

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


que são prestados os serviços pelas empresas. A desembargadora
do Trabalho em Minas Gerais Maria Cecília Alves Pinto debruça-
-se juridicamente sobre os pressupostos da relação de emprego
e analisa os problemas encontrados na verificação da relação de
emprego com plataformas digitais. A professora da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul e juíza do Trabalho Luciane Cardoso
Barzotto, a magistrada Ana Paula Silva Campos Miskulin e a advo-
gada Lucieli Breda tratam em seu artigo do direito de informação e
da subordinação algorítmica nas relações de trabalho.
No segundo capítulo – Proteção do trabalhador: intimidade, vida pri-
vada, saúde e segurança –, os artigos examinam as repercussões
das novas tecnologias e do novo modelo organizacional na saúde
física e psíquica dos trabalhadores; analisam, ademais, a captura
da subjetividade, o uso de dados (sensíveis ou não) e a invasão da
privacidade desses mesmos trabalhadores.
Esse capítulo se inicia com artigo do professor da Universidade
Castilla-La Mancha, Espanha, Joaquín Pérez Rey, que aborda as
consequências jurídicas das redes sociais nas relações traba-
lhistas. Maria Cecília Máximo Teodoro, professora da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, em coautoria com Karin
Bhering Andrade, apresenta o panóptico pós-moderno no traba-
lho, que se dá por meio da coleta de dados e do constante controle
do trabalhador, dentro e fora do ambiente laboral. A professora da
Universidade do Minho, Portugal, Teresa Coelho Moreira trata da
questão da segurança e da saúde dos trabalhadores na chamada
indústria 4.0. Por sua vez, Aldacy Rachid Coutinho, professora
da Universidade Federal do Paraná, aborda a importante ques-
tão da proteção de dados do trabalhador e a aplicação da legisla-
ção específica no âmbito da relação de emprego. Rômulo Soares
Valentini, professor da Pós-Graduação na Universidade Federal
de Minas Gerais, também interroga sobre o impacto da indústria
4.0 nas relações de trabalho, centrando na questão da saúde psí-
quica dos trabalhadores. Adriana Goulart de Sena Orsini, profes-
sora da Universidade Federal de Minas Gerais e desembargadora
do Trabalho, apresenta estudo em que trata da jurimetria, ana-
lisando o uso dos algoritmos e a inteligência artificial no Poder
Judiciário. Patrick Maia Merísio, procurador do Trabalho em São
Paulo, aborda a questão da nanotecnologia, mostrando seus às

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vezes imperceptíveis mas importantes impactos e analisando as
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

possíveis formas de regulação.


Por fim, no terceiro capítulo, o leitor será remetido para aborda-
gens a respeito da Precarização do trabalho: da crise do sindicalismo
à regulação do trabalho em plataformas digitais. Os textos clarificam
os meandros da crise do sindicalismo e a necessidade premente
de reinvenção da atuação sindical e questionam a regulamentação
laboral, fazendo prospecções para um futuro próximo.
O professor da Universidade de Campinas Ricardo Antunes abre o
capítulo traçando um painel sobre as relações de trabalho atuais,
com ênfase no trabalho digital, a indústria 4.0, o contrato inter-
mitente e a uberização do trabalho. Vanessa Patriota da Fonseca,
procuradora do Trabalho em Pernambuco, após realizar uma aná-
lise do crowdsourcing e do trabalho em plataformas, demonstra seu
impacto nas crises do sindicalismo e da civilização. A professora da
Universidade da Califórnia – Hastings – Veena B. Dubal comenta o
projeto de lei denominado AB5, que se tornou a lei-marco mundial
que traz para o âmbito e a proteção do Direito do Trabalho os traba-
lhadores da Gig Economy. Francisco Gérson Marques de Lima, pro-
fessor da Universidade Federal do Ceará e procurador do Trabalho,
relaciona as tecnologias com o futuro dos sindicatos, propondo
a reinvenção das entidades sindicais. Paula Freitas de Almeida,
pesquisadora da Universidade de Campinas, aborda a Revolução
Digital, tendo como suporte a divisão internacional do trabalho e
o neoliberalismo e o crescimento do trabalho autônomo no Brasil.
Carlo Benito Cosentino Filho, professor da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Pernambuco, revela a falsidade da expres-
são “economia do compartilhamento” e alerta para a necessidade de
restauração da consciência de classe dos trabalhadores. O profes-
sor da Universidade Federal do Paraná Sidnei Machado apresenta
as dificuldades da representação coletiva dos trabalhadores em pla-
taformas digitais. Os franceses Christian Azaïs, do Conservatoire
National des Arts et Métiers, Patrick Dieuaide, de Paris Sorbonne
Nouvelle, e Donna Kesselman, de Paris-Est Créteil, trazem a noção
de zona cinzenta para explicar o movimento vivo da regulação do
trabalho e a ação dos atores no espaço público. Para encerrar o capí-
tulo e a obra, Wilson Engelmann, professor da Universidade do Vale
do Rio dos Sinos, aborda, sob o olhar da hermenêutica da prevenção,
os impactos jurídico-sociais da automação no mundo do trabalho.

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Importa ressaltar que os textos que integram a presente obra não

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


representam, necessariamente, a visão dos organizadores e tam-
pouco a posição institucional do Ministério Público do Trabalho,
mas apresentam pontos de vista plurais e até mesmo divergentes, o
que é bastante salutar para as atividades e as publicações da Escola
Superior do Ministério Público da União (ESMPU), espaço acadê-
mico voltado para a construção democrática do conhecimento.
O livro leva o leitor a despertar para a gravidade do problema e
faz um contraponto racional necessário à ideologia neoliberal e ao
pensamento único e sua tendência precarizante e flexibilizante,
consubstanciando-se como forma de resistência no campo cientí-
fico. Sem visão crítica, resistência e mudança de rumos, a tecnolo-
gia criada para conectar pessoas e países findará desconectando
o trabalhador de si mesmo e o Direito do Trabalho da realidade.
O futuro do trabalho não será traçado por uma máquina dotada
de inteligência artificial. Ele será desenhado por seres humanos.
As decisões tomadas por máquinas são projetadas por pessoas e
são sempre políticas e não técnicas. Entender isso é o primeiro
passo para entender que a tecnologia deve ser dominada, regulada
e utilizada em prol da sociedade, e não deve somente beneficiar
um pequeno número de seres humanos que a controlam. Cabe à
sociedade discutir e construir o futuro do trabalho: em resposta à
Revolução Digital, deve vir a Revolução Humana.

Rodrigo de Lacerda Carelli


Tiago Muniz Cavalcanti
Vanessa Patriota da Fonseca
Organizadores

17
TEXTO INTRODUTÓRIO
Automação, inteligência artificial e proteção
laboral: patrões algorítmicos e o que fazer
com eles1-2

Valerio De Stefano
Professor de Direito do Trabalho na KU Leuven, University
de Leuven, Bélgica.

Resumo: Este texto visa preencher algumas lacunas no debate geral


sobre a automação, a introdução de novas tecnologias no local de
trabalho e o futuro do trabalho. Esse debate se tem concentrado, até
agora, no número de postos de trabalho que serão perdidos em razão da
inovação tecnológica. Em vez disso, o presente artigo examina questões
relacionadas à qualidade dos postos de trabalho nos mercados de
trabalho no futuro. Examina as implicações de práticas como a “análise
de pessoas” e a utilização de grandes volumes de dados e de inteligência
artificial para gerir a força de trabalho. Sublinha uma característica
frequentemente negligenciada do contrato de trabalho, nomeadamente o
fato de conferir ao empregador autoridade e prerrogativas de gestão sobre
os trabalhadores. Assinala que uma função vital do Direito do Trabalho
consiste em limitar essas competências e prerrogativas para proteger
a dignidade humana dos trabalhadores. Diante disso, argumenta que,
mesmo que fosse introduzida uma Renda Básica Universal, a existência
de prerrogativas gerenciais ainda levaria à necessidade de uma regulação
do trabalho, já que esta legislação vai muito além da proteção da renda dos
trabalhadores. Destaca os benefícios das abordagens baseadas nos direitos

1 Este texto se baseia no artigo “‘Negotiating the algorithm’: automation,


artificial intelligence and labor protection”, publicado em um número especial
da revista Comparative Labor & Policy Journal (DE STEFANO, 2019). O artigo e
a edição especial foram publicados no âmbito da bolsa Odysseus “Employment
rights and labour protection in the on-demand economy”, que o autor recebeu da
FWO Research Foundation – Flanders.
2 Tradução de Rodrigo de Lacerda Carelli.

21
humanos para a regulação do trabalho, a fim de proteger a privacidade
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

dos trabalhadores contra o monitoramento eletrônico invasivo. Conclui


destacando o papel crucial da negociação coletiva e dos parceiros sociais
na gestão da automação e do impacto da tecnologia no local de trabalho,
a fim de assegurar uma abordagem vital de “humano-no-comando”.

Palavras-chave: Inteligência artificial. Automação. Humano no comando.


Direito do Trabalho.

Abstract: This paper aims at filling some gaps in the mainstream debate
on automation, the introduction of new technologies at the workplace
and the future of work. This debate has concentrated, so far, on how
many jobs will be lost as a consequence of technological innovation. This
paper examines instead issues related to the quality of jobs in future
labor markets. It examines the implications of practices such as “people
analytics” and the use of big data and artificial intelligence to manage
the workforce. It stresses on an oft-neglected feature of the contract of
employment, namely the fact that it vests the employer with authority and
managerial prerogatives over workers. It points out that a vital function of
labor law is to limit these authority and prerogatives to protect the human
dignity of workers. In light of this, it argues that even if a Universal Basic
Income were introduced, the existence of managerial prerogatives would
still warrant the existence of labor regulation since this regulation is
about much more than protecting workers’ income. It then highlights the
benefits of human-rights based approaches to labor regulation to protect
workers’ privacy against invasive electronic monitoring. It concludes by
highlighting the crucial role of collective regulation and social partners in
governing automation and the impact of technology at the workplace, to
ensure a vital “human-in-command” approach.

Keywords: Artificial intelligence. Automation. Human-in-command.


Regulation.

1 · Introdução
Em 2013, a publicação de um artigo agora mundialmente famoso
dos acadêmicos de Oxford Carl Frey e Michael Osborne sobre
“como os empregos são suscetíveis à informatização” estimulou
um debate gigantesco sobre automação e as ameaças relaciona-
das à perda irrestrita de empregos e ao desemprego em massa
(FREY; OSBORNE, 2013). Pode-se dizer que esse debate se concen-
trou fortemente no número de empregos que serão perdidos para
a automação. De fato, o debate acadêmico e político sobre essas

22
questões tem adotado uma abordagem “quantitativa”, tentando

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


estimar o número de trabalhadores que poderiam ser excluídos de
um emprego como consequência de avanços tecnológicos.3 Alguns
estudos têm criticado essas estimativas, apontando algumas de
suas possíveis falhas e concentrando-se também nos potenciais
benefícios do progresso tecnológico em termos de criação de
emprego. 4 Até agora, porém, esse debate não considerou suficien-
temente os aspectos qualitativos relacionados com a automação do
trabalho. Muito menos atenção, de fato, tem sido dedicada à qua-
lidade dos empregos que permanecerão, mas que exigirão intera-
ções crescentes entre seres humanos e ferramentas tecnológicas,
tanto nas formas de máquinas avançadas quanto de softwares usa-
dos para gerenciar negócios e processos de produção.5
Parece tomar-se como pressuposto que esses “empregos do futuro”
exigirão altas habilidades técnicas, que novas máquinas e progra-
mas, complementados por inteligência artificial, absorverão tare-
fas rotineiras, domésticas e perigosas e que os trabalhadores afor-
tunados que permanecerem empregados terão acesso a empregos
altamente recompensadores, com a tecnologia desempenhando um
papel libertador para eles. Portanto, de acordo com essa visão, em
vez de se concentrar na qualidade desses empregos, os reguladores
deveriam se preocupar em garantir que o maior número possível
de pessoas adquira as habilidades necessárias para ser empregado
nesses papéis emancipados; eles também deveriam prever medidas
para absorver choques ocupacionais determinados pela automação
e mitigar suas consequências sociais para os trabalhadores que
serão deslocados e não serão capazes de desenvolver essas habi-
lidades de alto nível ou não encontrarão emprego porque haverá
menos disponíveis (MCKINSEY GLOBAL INSTITUTE, 2017).
Esta narrativa, no entanto, segue uma abordagem tecnodetermi-
nista que deve ser questionada. Para começar, ela pressupõe que os

3 Ver, por exemplo, o bastante conhecido trabalho de Frey e Osborn (2013).


Para uma aprofundada discussão de processos industriais, ver Wolfgang
Dauth et al. (2017).
4 A literatura neste tópico já é enorme. Ver David Autor (2015, p. 3) e OECD
(2016, 2018). Ver, para uma discussão crítica geral, David Kucera (2017). Para
uma profunda discussão jurídica, ver Cynthia Estlund (2018).
5 Uma exceção é o Eurofound (2018).

23
avanços tecnológicos sempre implicarão progresso, particularmente
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

para os trabalhadores afortunados que desenvolveram as habilidades


para permanecer no emprego após a introdução de novas máquinas
e processos de negócios. No entanto, esse pressuposto corre o risco
de se revelar excessivamente otimista. Embora seja provavelmente
verdade que a tecnologia será capaz de automatizar algumas tarefas
rotineiras e desagradáveis, também irá aumentar a possibilidade de
a gestão empresarial monitorar cada vez mais as atividades laborais
de uma forma não desejável para o trabalhador.6 Software e hardware
já estão se disseminando em locais de trabalho modernos que per-
mitem aos gestores dar instruções aos trabalhadores sobre o traba-
lho que fazem e controlar seu desempenho por meio de ferramentas
digitais (MOORE; AKHTAR; UPCHURCH, 2018).7 A inteligência arti-
ficial, o uso de big data e a “gestão por algoritmo” já são uma reali-
dade no mundo do trabalho,8 podendo levar a práticas empresariais
muito intrusivas. Os riscos associados a essas práticas estão quase
ausentes do debate geral sobre o futuro do trabalho e sobre os efeitos
da automação, ainda que, como se argumenta mais adiante, a intro-
dução de maquinaria avançada no local de trabalho possa aumentar
substancialmente esses riscos.
Outro pressuposto que segue esta abordagem tecnodeterminista
é que esses desenvolvimentos são inevitáveis – em outros termos,
eles são o preço a pagar para se beneficiar das recompensas do pro-
gresso tecnológico. Assim, limitar o funcionamento das novas tec-
nologias no local de trabalho reduziria inevitavelmente o progresso
das economias e das sociedades em geral, supondo que esses limites
poderiam teoricamente ser impostos por meio da regulação. Além
disso, a narrativa dominante sobre a automação também pode levar
à impressão de que uma regulação sobre a introdução de novas fer-
ramentas e máquinas tecnológicas e suas implicações na quanti-
dade e na qualidade dos empregos não pode ser implementada e que
qualquer tentativa de governar os efeitos dos avanços tecnológicos
dificultaria a inovação e levaria a perdas econômicas.
Estas suposições devem ser todas questionadas. Já existe em vários
países do mundo regulação destinada a atenuar os efeitos poten-
cialmente prejudiciais da utilização de dispositivos tecnológicos

6 Ver, a seguir, a Seção 2.


7 Ver também o artigo de Antonio Aloisi e Elena Gramano (2019).
8 Ver Frank Pasquale (2015) e Emanuele Dagnino (2017).
24
na qualidade do emprego e na dignidade humana dos trabalhado-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


res. Além disso, muitos países já dispõem de regulação destinada
a diminuir o impacto social das dispensas em massa e da perda de
postos de trabalho, também associada à automação e à inovação
tecnológica. O impacto econômico negativo dessa regulação não
está provado. Pelo contrário, um forte envolvimento dos parceiros
sociais e dos reguladores na gestão de potenciais despedimentos
em massa está associado a elevados níveis de produtividade e ino-
vação, para além dos benefícios para os trabalhadores.9
Mais importante ainda, a regulação é também fundamental para
determinar como a automação e a introdução de novas tecnologias
terão impacto na qualidade dos postos de trabalho que serão afe-
tados por elas, não se concentrando apenas em sua quantidade. A
legislação laboral e a negociação coletiva devem desempenhar um
papel muito mais central para que esses fenômenos ocorram de
uma forma que respeite a dignidade humana e os direitos funda-
mentais dos trabalhadores – contudo, esses aspectos ainda estão
pouco estudados no vasto debate sobre a automação e o futuro do
trabalho. A presente contribuição quer preencher algumas dessas
lacunas neste debate. A próxima seção começa a fazê-lo indicando
como algumas inovações tecnológicas podem levar a práticas
gerenciais intrusivas que ampliariam esses riscos.

2 · Monitoramento dos trabalhadores tecnologicamente


otimizados: inteligência artificial, big data e os riscos da
discriminação algorítmica
As ferramentas tecnológicas e os sistemas de supervisão informa-
tizados são cada vez mais utilizados para gerir a mão de obra em
locais de trabalho modernos. A vigilância dos trabalhadores não
é, por óbvio, nada nova; historiadores de organização empresarial
como David Landes há muito relataram que a concentração de tra-
balhadores em fábricas começou a ocorrer antes da mecanização,
para vigiar e dirigir o trabalho melhor do que era possível em pro-
cessos baseados de forma dispersa nos domicílios dos trabalhado-
res (LANDES, 1969). Os modelos de negócio fordistas-tayloristas
também foram baseados no monitoramento extensivo dos traba-
lhadores (STONE, 2004).

9 Ver a Seção 4.
25
A tecnologia da informação e a inteligência artificial10 permitem,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

no entanto, o monitoramento das atividades dos trabalhadores em


proporções antes impensáveis, bem como a coleta e o processa-
mento de uma enorme quantidade de dados sobre essas atividades
(DAGNINO, 2017). Cada vez mais trabalhadores, por exemplo, uti-
lizam instrumentos portáteis (wearables) que permitem registrar
seus movimentos e sua localização minuto a minuto, medindo tam-
bém seu ritmo de trabalho bem como as pausas. Dados recolhidos
por meio de dispositivos portáteis, incluindo crachás sociométricos,11
são frequentemente analisados utilizando inteligência artificial para
avaliar a produtividade e a aptidão dos trabalhadores para execu-
tar determinadas tarefas (MOORE; AKHTAR; UPCHURCH, 2018).12
Instrumentos portáteis também são usados ou experimentados em
depósitos logísticos e outros locais de trabalho para direcionar os
trabalhadores para a sua próxima tarefa. As mercadorias, em depó-
sito da Amazon, por exemplo, são armazenadas aparentemente de
forma aleatória. Os trabalhadores da Amazon são guiados por fer-
ramentas tecnológicas até o próximo item a ser selecionado e pro-
cessado, um sistema que também permite que a empresa rastreie e
meça automaticamente a velocidade e a eficiência de cada trabalha-
dor. Trabalhadores com desempenho abaixo do esperado de acordo
com as métricas dos sistemas automatizados de vigilância podem
receber avisos ou ver seu contrato de trabalho rescindido automati-
camente “sem intervenção dos supervisores” (LECHER, 2019).13

10 O termo “inteligência artificial”, neste artigo, é usado como referência à chamada


“inteligência artificial estreita” ou “inteligência artificial fraca”, ou seja, a
inteligência artificial usada para executar uma única tarefa, como – conforme
diz uma descrição comumente usada – “jogar xadrez ou Go, fazer sugestões
de compra, previsões de vendas e previsão do tempo”. Este é o único tipo de
inteligência artificial que existe hoje em dia. Mesmo os carros automotores são
considerados apenas uma soma de várias IAs específicas, e o mesmo se aplica
aos motores de tradução online. IA específica é comumente oposta a “IA geral”,
ou seja, “o tipo de Inteligência Artificial que pode entender e raciocinar seu
ambiente como um ser humano”, o que ainda não foi desenvolvido. As citações
diretas são de Ben Dickson (2017). Para uma discussão mais ampla da distinção
entre IA “forte” e “fraca”, ver Jerry Kaplan (2016).
11 Ver abaixo nesta seção.
12 Ver também Ivan Manokha (2017).
13 No artigo, Lecher (2015) relata: “A Amazon diz que os supervisores são capazes
de anular o processo”. Ver também Chris Baraniuk (2015).

26
Sistemas GPS permitem monitorar a posição e a velocidade dos

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


motoristas de caminhão e van, bem como dos motoristas e entre-
gadores que trabalham em plataformas por demanda. Esses sis-
temas também podem ser utilizados para verificar, por exemplo,
se os trabalhadores se reúnem em locais específicos, para reagir
à organização coletiva ou evitá-la (DE STEFANO, 2016). De forma
semelhante à dos trabalhadores de depósito que utilizam siste-
mas automatizados de direção, os trabalhadores de plataforma
são designados para a próxima tarefa pelos algoritmos do apli-
cativo, que também são projetados para medir a velocidade e a
dedicação do trabalhador na realização das tarefas, incluindo o
cálculo da pontuação e das avaliações que os clientes atribuem
aos trabalhadores. Más pontuações ou desempenho abaixo dos
padrões do algoritmo podem levar à exclusão do trabalhador da
plataforma e, portanto, ao “desligamento”, facilitado pelo suposto
status de autônomo desses trabalhadores (ALOISI, 2016). E isso
não se limita às tarefas “na rua”. Os trabalhadores dos “marke-
tplaces de freelances” online e os trabalhadores domésticos que são
contratados por plataformas para trabalhar nas casas dos clien-
tes vivem em constante preocupação com as notações e com a
forma como os algoritmos das plataformas têm em conta as clas-
sificações para direcionar o próximo trabalho (FOUNDATION
FOR EUROPEAN PROGRESSIVE STUDIES, 2017).
A forma como funcionam esses sistemas de gestão raramente é
transparente, uma vez que as empresas não partilham os métodos
pelos quais são recolhidas e processadas as notas e os comentá-
rios dos clientes sobre as atividades dos trabalhadores. O gerencia-
mento pela pontuação também está se espalhando cada vez mais
além do trabalho por plataforma, com aplicativos que permitem
processar feedbacks de clientes e restaurantes sobre garçons de
forma individual (O’DONOVAN, 2018; FILLOON, 2018).
Também não se deve partir do princípio de que as formas intensi-
ficadas de vigilância se limitam aos empregos com baixos salários
ou de “colarinho azul”. As práticas de RH que recorrem a formas
de inteligência artificial que facilitam a “gestão por algoritmo” e o
“monitoramento eletrônico do desempenho” também são ampla-
mente utilizadas em ocupações de colarinho branco. O monitora-
mento de desempenho eletrônico (EPM, na sigla em inglês) foi des-
crito por Phoebe Moore et al. (2018) como incluindo “monitoramento

27
de e-mail, escutas telefônicas, rastreamento de conteúdo de com-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

putador e tempos de uso, monitoramento de vídeo e rastreamento


por GPS”. Segundo esses pesquisadores,
os dados produzidos podem ser utilizados como indicadores de
produtividade; indicação da localização dos empregados; uso de
e-mail; navegação no site; uso de impressora; uso de telefone;
até mesmo tom de voz e movimento físico durante a conversa.
(MOORE; AKHTAR; UPCHURCH, 2018).

Esses dados, juntamente com o uso de instrumentos analíticos


de big data, também constituem a base da práticas chamadas de
People Analytics (“Análises de Pessoas”). Estudos jurídicos pionei-
ros sobre esse tema, realizados por Matthew Bodie et al., definem
People Analytics como:
um processo ou método de gestão de recursos humanos baseado no
uso de “big data” para capturar insights sobre o desempenho do tra-
balho. A ideia central é que o julgamento subjetivo não estruturado
não é rigoroso ou confiável como forma de avaliar talentos ou criar
políticas de recursos humanos. Em vez disso, grandes conjuntos de
dados, geralmente dados quantitativos, devem formar a base para a
tomada de decisões no espaço de RH. (BODIE et al., 2016).

Os dados são, portanto, recolhidos a partir de um vasto leque


de fontes.14 Uma das empresas na vanguarda dessas práticas, a
Humanyze, informa em sua página que metadados podem ser obti-
dos a partir de “registros de hora de e-mail e chamadas, número
de mensagens de chat enviadas e duração das reuniões podem ser
medidos para descobrir padrões sobre como as equipes realmente
trabalham”. Isso não significa necessariamente que o conteúdo
real das mensagens e chats seja examinado, pois a empresa afirma
incluir “nenhum nome ou conteúdo nos metadados”.15
No entanto, mesmo que esses dados de conteúdo individual não
sejam recolhidos ou sejam efetivamente anonimizados, as práticas
de coleta podem ser altamente invasivas e destinadas a detectar

14 Para uma análise exaustiva realizada por uma autoridade pública das
práticas comuns do EPM, ver o Grupo de Trabalho “Proteção de Dados” do
art. 29º (agora, o Comitê Europeu para a Proteção de Dados), Opinion 2/2017
on data processing at work, adopted on 8 June 2017.
15 Disponível em: https://www.humanyze.com.

28
elementos altamente pessoais,16 incluindo o nível de interação com

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


os colegas e até mesmo o humor dos trabalhadores, por exemplo,
por meio do uso dos chamados “crachás sociométricos”. Trata-se de
dispositivos portáteis que permitem monitorar a localização dos tra-
balhadores, os seus movimentos e também, pela utilização de micro-
fones e vozes incorporadas, analisar o humor dos trabalhadores sem
gravar o conteúdo de suas conversas (FISCHBACH et al., 2009).
O EPM também tem sido utilizado para monitorar os trabalhado-
res em situações de teletrabalho e de “contratos de trabalho inteli-
gente”, que permitem aos trabalhadores exercer as suas atividades
fora dos locais de trabalho tradicionais e, por conseguinte, estão
geralmente associados a maior autonomia dos trabalhadores (THE
WORKPLACE..., 2018; SOLON, 2017). Empresas como a Crossover
vendem sistemas, como a ferramenta de produtividade Worksmart,
para monitorar teletrabalhadores e outros trabalhadores remotos,
capturando a tela de seus computadores em intervalos fixos e cole-
tando dados adicionais, incluindo, como explica o site da empresa,
“atividade de teclado, uso de aplicativos, capturas de tela e fotos de
webcam para gerar um cartão de ponto a cada 10 minutos”. Esse car-
tão de ponto é depois partilhado com os trabalhadores e os seus ges-
tores por meio de um “livro de registro onde todos os seus cartões de
ponto são exibidos e um painel resume os seus cartões de ponto para
lhe mostrar como passou o seu tempo”.17 Outras empresas comercia-
lizam software de filtragem para web, como a Interguard, que regis-
tra e relata dados como o histórico da web e a utilização da banda
larga “quer o empregado esteja dentro ou fora da rede”.18
Todos esses dados também podem ser processados mediante fer-
ramentas de IA que classificam os trabalhadores em várias métri-
cas de desempenho. Em 2019, por exemplo, o jornal The Guardian
relatou que dezenas de empresas no Reino Unido, incluindo vários

16 De acordo com o Grupo de Trabalho “Proteção de Dados” do art. 29º: “O


risco não se limita à análise do conteúdo das comunicações. Assim, a
análise de metadados sobre uma pessoa pode permitir uma monitorização
pormenorizada, igualmente invasiva da privacidade, da vida e dos padrões de
comportamento de uma pessoa”.
17 Disponível em: https://www.crossover.com/worksmart/#worksmart-produc
tivity-tool.
18 Disponível em: https://interguardsoftware.com/web-filtering.html.

29
escritórios de advocacia, empregaram a IA para examinar o com-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

portamento dos empregados, também para identificar “influencia-


dores” e “formuladores de mudanças” na força de trabalho (BOOT,
2019). Curiosamente, essa prática não é tão nova. Cathy O’Neill dis-
cutiu o caso de uma empresa, a Cataphora, que em 2008 comercia-
lizou um sistema para identificar “geradores de ideias” na força de
trabalho mediante a análise de e-mails e mensagens corporativas.
Quando bateu a recessão de 2008, os gerentes de RH começaram a
despedir pessoas, começando por aqueles que tinham um desem-
penho ruim sob as métricas da Cataphora. O’Neill, que é matemá-
tica e cientista de dados, explica que esses programas correm o
risco, entre outras coisas, de serem altamente imprecisos, pois são
baseados em dados limitados (O’NEILL, 2016).
Os programas de bem-estar patrocinados por empresas também
usam software como o Fitbit para controlar a condição física dos
empregados (AJUNWA; CRAWFORD; SCHULTZ, 2017). Isso, entre
outras coisas, pode contribuir para o acesso à informação rela-
cionada com as atividades fora de serviço dos trabalhadores. A
vigilância das atividades fora do local de trabalho também não é
nada de novo, basta pensar aqui no Departamento Social da Ford,
que investigou notoriamente os estilos de vida dos trabalhadores
da empresa. No entanto, a diluição das fronteiras entre trabalho
e vida, a constante interconexão com dispositivos de TI e servi-
ços digitais, como redes sociais e dispositivos tecnológicos que
permitem coletar dados de condutas online e offline de indivíduos,
possibilita o acesso a um fluxo e quantidade de informações que é
muito difícil de quantificar e limitar com antecedência. Artigos na
imprensa também relataram casos de práticas de monitoramento
que visavam à prevenção de fraudes por meio da espionagem de
atividades e status de redes sociais (SOLON, 2017).
Os dados pessoais recolhidos na internet, também por via do
acesso à informação disponível nas redes sociais, são cada vez
mais utilizados para tomar decisões de recrutamento (DAGNINO,
2017), e a prática de pedir aos empregados que revelem as suas
senhas das redes sociais está também a se alastrar, de modo que
18 estados dos EUA aprovaram legislação que a proíbe explicita-
mente (BODIE et al., 2016).
People Analytics e EPM, é claro, às vezes podem estar enraiza-
dos em necessidades genuínas do negócio, como a promoção da

30
produtividade e o aumento dos níveis de segurança, também para o

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


benefício de empregados individualmente considerados. Os weara-
bles que analisam dados de fitness, por exemplo, podem ser utiliza-
dos para mitigar riscos de saúde e segurança, incluindo o estresse,
e para prevenir acidentes (THE WORKPLACE..., 2018). Os trabalha-
dores também podem estar interessados em utilizar sistemas que
os ajudem a manter o foco em suas tarefas, quando estão tanto no
local de trabalho quanto fora dele, e em ter suas atividades regis-
tradas com precisão para que – se algo der errado – eles possam
provar que agiram diligentemente. As empresas e os trabalhadores
também podem estar interessados na prevenção de comportamen-
tos ilícitos, como fraudes e formas de assédio que podem ocorrer
online. Além disso, as práticas de RH, como a People Analytics, tam-
bém se baseiam na ideia de que a inteligência artificial pode aju-
dar a gerir melhor a força de trabalho, eliminando preconceitos
individuais dos supervisores e substituindo-os por métricas mais
objetivas e neutras (BODIE et al., 2016). A utilização da inteligência
artificial e de outros instrumentos tecnológicos para supervisionar
as atividades de trabalho não deve, portanto, ser considerada como
necessariamente negativa.
No entanto, as práticas acima referidas podem também conduzir
a uma intrusão muito grave na vida privada dos trabalhadores e
violar materialmente a sua privacidade (HENDRICKX, 2015), ao
permitir que a gestão tenha acesso a informações muito íntimas,
incluindo, por exemplo, a utilização de dados baseados em pedidos
de seguro médico sobre a intenção de engravidar e sobre a possibi-
lidade de contrair uma doença (AJUNWA; CRAWFORD; SCHULTZ,
2017). Wearables e câmeras de segurança, programas que registram
atividades online e offline, bem como capturas de tela de computa-
dores, também podem se transformar em práticas extenuantes de
vigilância sem fim. Longe de promover o desempenho da força de
trabalho, esses modelos também podem gerar estresse, bem como
reações adversas, e causar quedas bruscas na eficiência e na produ-
tividade (MOORE; AKHTAR; UPCHURCH, 2018).
Além disso, a ideia de que a gestão por algoritmo e a inteligência
artificial podem forçosamente levar a práticas de RH mais objetivas
e sem viés pode ser substancialmente errada. O risco é que esses
sistemas reflitam os preconceitos de seus programadores huma-
nos e se concentrem apenas em suas ideias em torno da produti-
vidade e do desempenho no trabalho, por exemplo, descartando ou
31
penalizando candidatos a emprego ou trabalhadores com deficiên-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

cia ou com características que diferem das expectativas dos pro-


gramadores. A escassez de diversidade nas empresas de tecnolo-
gia também pode exacerbar esses fenômenos. Num parecer oficial
sobre inteligência artificial, o Comitê Econômico e Social Europeu
observou recentemente:
O desenvolvimento da IA está atualmente ocorrendo dentro de um
ambiente homogêneo que é composto principalmente por homens
jovens e brancos, com o resultado de que (intencionalmente ou
não) as disparidades culturais e de gênero estão sendo incorpora-
das na IA, entre outras coisas porque os sistemas de IA aprendem
com dados de treinamento.

O Comitê alertou contra o conceito errado de que os dados são, por


definição, objetivos. Ao contrário, os dados “são fáceis de manipular,
podem ser tendenciosos, podem refletir preconceitos e preferências
culturais, de gênero e outros e podem conter erros” (EUROPEAN
ECONOMIC AND SOCIAL COMMITTEE, 2017).
O risco, portanto, é que a gestão por algoritmo e a inteligência arti-
ficial no local de trabalho, longe de terem resultados neutros e de
reduzirem a discriminação, possam aumentar as práticas discri-
minatórias (BODIE et al., 2016). Já existe uma vasta literatura que
destaca como a tomada de decisões baseada em algoritmos pode
perpetuar as práticas discriminatórias e a marginalização de gru-
pos vulneráveis, especialmente quando a coleta de dados é fraca
(PASQUALE, 2015; NOBLE, 2018). Essa forma de tomada de deci-
são é frequentemente baseada em dados que traduzem comporta-
mentos passados (O’NEILL, 2016). Se esses comportamentos forem
tendenciosos, a probabilidade de que qualquer processo de decisão
automatizado propague essas tendenciosidades no futuro é muito
alta (EUBANKS, 2018). Imagine um sistema de digitalização auto-
mática de CVs para contratação ou promoção. Se esse sistema for
construído com base em dados sobre as contratações anteriores na
empresa ou no setor, há uma grande chance de que ele possa imitar
as práticas de recrutamento anteriores. Se, por sua vez, essas práti-
cas forem discriminatórias ou enviesadas, elas podem ser perpetu-
adas no futuro, e, o que é pior, isso ocorreria sob uma “aura” de obje-
tividade percebida, geralmente creditada às máquinas. Também
não seria simples eliminar a discriminação apenas instruindo os
algoritmos a ignorar dados sensíveis como gênero ou raça, já que

32
softwares sofisticados ainda poderiam reconhecer e penalizar os

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


sujeitos sub-representados na contratação anterior com base em
outros dados. Por exemplo, poderiam usar certos tipos de interrup-
ções na carreira para reconhecer mulheres, ou códigos postais ou
nomes e sobrenomes para identificar membros de minorias. Esse
risco é ainda mais grave quando essas práticas são baseadas na
inteligência artificial de autoaprendizagem, com o software sendo
capaz de reprogramar seus próprios critérios e métricas para
alcançar um resultado predefinido muito geral, como a melhoria
da produtividade no trabalho. A falta de transparência e o risco de
desumanização do trabalho seriam, então, ainda mais exacerbados.
Também não se deve partir do princípio de que uma visão unidi-
mensional da produtividade e da eficiência incorporada nas tecno-
logias de inteligência artificial conduza necessariamente a melho-
res resultados empresariais. Algoritmos estão sendo usados fre-
quentemente para implementar práticas de trabalho just-in-time
que determinam os números da força de trabalho e a modificam de
acordo com a demanda de negócios esperada, contribuindo, assim,
para uma casualização dos padrões de trabalho e instabilidade de
emprego e de renda que vai muito além dos “suspeitos de sempre” da
economia de plataforma. Um estudo realizado por várias universida-
des sobre trabalhadores no comércio varejista, por exemplo, mostra
que os algoritmos destinados a promover a eficiência dos negócios
podem levar a resultados insatisfatórios, pelo fato de esses algorit-
mos serem baseados numa noção muito limitada de eficiência e, por-
tanto, não levarem em conta os diversos custos ocultos associados à
instabilidade de horários (ADLER-MILSTEIN et al., 2018).19
Uma dimensão frequentemente negligenciada das formas avança-
das de automação é o seu papel potencial na introdução de uma
gestão dos trabalhadores baseada na tecnologia, facilitada pela
inteligência artificial. Um robô inteligente é, na definição proposta
pelo relatório do Parlamento Europeu discutido nesta seção, aquele
que tem a “capacidade de adquirir autonomia por meio de sensores
e (ou) do intercâmbio de dados com o seu ambiente (interconectivi-
dade) e da análise desses dados” e a “capacidade de adaptar os seus
comportamentos e ações ao seu ambiente”. Não é impossível intro-
duzir robôs que recolham os dados pessoais dos trabalhadores,

19 Ver também a discussão sobre as escalas automatizadas em Berg (2019).

33
nomeadamente medindo os seus dados biológicos por meio da
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

interação com aplicações de fitness e wearables, para aumentar a


produtividade ou adaptar o ritmo ou outras características do tra-
balho às condições específicas dos trabalhadores. Isso é particular-
mente verdade para os co-bots, que são, por definição, destinados a
ter uma interação física direta com os seres humanos e a partilhar
espaços de trabalho com os trabalhadores.
Além disso, o uso de inteligência artificial, a gestão por algoritmo
e a análise de pessoas são, por si sós, uma forma de automação de
papéis gerenciais e gerenciais médios. Gerir e disciplinar os traba-
lhadores da plataforma por meio das avaliações dos trabalhadores
é, sem dúvida, um modo de terceirizar para os clientes a avaliação
do desempenho do trabalho, o que é facilitado por algoritmos (DE
STEFANO, 2016). O EPM tem também o potencial de automatizar
cada vez mais as funções centrais do negócio, como RH, e deslocar
as ocupações administrativas associadas, acrescentando-as à lista
de profissionais que podem ser severamente afetados pela automa-
ção, juntamente com advogados e médicos (KAPLAN, 2016).
Por conseguinte, as implicações dessas práticas de gestão merecem
atenção séria por parte dos decisores políticos e dos estudiosos, e
as consequências para a privacidade, a diversidade, o emprego e a
produtividade das empresas devem ser cuidadosamente avaliadas.
Mesmo medidas bem-intencionadas, como os programas de bem-
-estar, correm o risco de se transformarem em formas de controle
distópico e paternalista, a menos que se faça uma reflexão séria
sobre o uso da tecnologia no local de trabalho.
O paternalismo por trás do EPM está bem representado nesta decla-
ração do CEO da Awareness Technology, a empresa que comercia-
liza a Interguard, um sistema de monitoramento para trabalhado-
res locais e remotos: “Se você é pai e tem um filho ou filha adoles-
cente chegando tarde em casa e não fazendo sua lição de casa, você
pode se perguntar o que eles estão fazendo. É a mesma coisa em
relação aos empregados” (SOLON, 2017).
Comparar empregados com filhos e filhas menores de idade não é
novidade. Ao discutir a privacidade e as prerrogativas gerenciais dos
empregadores no local de trabalho, Matthew Finkin (2017) lembra
que, em 1884, a Suprema Corte do Tennessee não se opôs a que um
empregador dissesse aos empregados onde fazer suas compras –

34
pois se um pai poderia ordenar onde seus filhos adquirissem merca-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


dorias, assim os empregadores poderiam fazê-lo em relação a seus
empregados. Para além da ironia de encontrar argumentos antigos
de alguma forma replicados nos cenários de trabalho de ponta, a
possibilidade de uma gestão que complique indevida e excessiva-
mente a autonomia e a privacidade dos trabalhadores é uma carac-
terística estrutural do contrato de trabalho (HENDRICKX, 2014).
Como apontam os estudiosos Bodie et al., a menos que a regula-
ção limite especificamente as prerrogativas gerenciais, “no local
de trabalho, não há proteção legal contra a vigilância per se [...]”. E
acrescentam: “A necessidade de monitoramento decorre de nossa
concepção legal de emprego, que é baseada no controle: um empre-
gado é aquele cujo trabalho é controlado por seu empregador”, e é o
direito do empregador de dirigir especificamente as atividades do
empregado “que separa empregados de contratados independentes”
(BODIE et al., 2016). A próxima seção examinará essas característi-
cas estruturais do contrato de trabalho, que muitas vezes são negli-
genciadas nas ciências sociais, com exceção do Direito.

3 · O lado “oculto” da regulação do emprego:


prerrogativas de gestão, controle e subordinação
Uma presunção comum em relação à regulação do emprego é que
esta é protetora. No entanto, embora o fortalecimento da posição
do trabalhador no mercado de trabalho ou no decurso da relação
de trabalho seja um dos objetivos do Direito do Trabalho, não é
o seu único objetivo. O Direito do Trabalho também confere aos
empregadores amplos poderes para gerir a sua força de trabalho –
traduzidos pela ideia de “prerrogativas de gestão”.20 Esses poderes
são muitas vezes considerados como pressupostos, como se fossem
conferidos pela natureza. Com efeito, as prerrogativas de gestão não
são apenas o resultado de fatores socioeconômicos, como o menor
poder de negociação dos trabalhadores ou a propriedade de máqui-
nas e outras formas de capital por parte dos empregadores. Em vez
disso, os poderes de gestão dos empregadores são também juri-
dicamente sustentados por disposições explícitas ou implícitas da
regulação do emprego que os incorporam à relação de trabalho em
muito maior medida do que ocorre com outras relações reguladas

20 Nota do tradutor: poder empregatício, no Direito do Trabalho brasileiro.

35
pelo direito contratual ou pelo direito de propriedade (SUMMERS,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

2000; ANDERSON, 2017; DAVIDOV, 2016; DE STEFANO, 2017).


Como já foi referido, uma característica fundamental da relação
de emprego, que pode ser encontrada em países e tradições jurí-
dicas diversas, é o poder hierárquico – ou controle – dos empre-
gadores sobre os trabalhadores (INTERNATIONAL LABOUR
ORGANIZATION, 2006). Esse poder consiste em três prerrogativas
principais: (I) o poder de atribuir tarefas e de dar ordens e diretri-
zes unilaterais aos empregados; (II) o poder de monitorar tanto a
execução dessas tarefas quanto o cumprimento dessas ordens e
diretrizes; e (III) o poder de sancionar tanto a execução indevida ou
negligente das tarefas atribuídas quanto qualquer desobediência a
ordens e diretrizes dadas legalmente.
A presença de poder hierárquico, controle e prerrogativas geren-
ciais em uma relação de trabalho tem sido tradicionalmente esta-
belecida – seja estatutariamente ou pela jurisprudência – como
o elemento distintivo do status de emprego em contraste com o
trabalho autônomo e, portanto, como uma porta para a proteção
do trabalho em muitas legislações (COUNTOURIS, 2011). Nos sis-
temas de common law, a noção desses poderes e prerrogativas dos
empregadores é designada pelo conceito de “controle”, referido no
final da seção anterior. O controle, nomeadamente a possibilidade
de dirigir, acompanhar e disciplinar o trabalho, é um dos princi-
pais testes para determinar a existência de uma relação de traba-
lho nos países de common law. Os países de civil law, por sua vez,
expressam a noção de controle sob o conceito de “subordinação”.
O Código Civil italiano refere-se aos empregados como lavoratori
subordinati (trabalhadores subordinados), ou seja, pessoas que tra-
balham “dependendo e sob a direção” de um empregador.21 A Cour
de Cassation francesa considera que o elemento fundamental de
uma relação de trabalho é o “vínculo de subordinação”, ou seja,
a execução do trabalho sob a autoridade de um empregador que
tem o poder de dar ordens e instruções, de fiscalizar a sua execu-
ção e de sancionar o incumprimento por parte dos seus [trabalha-
dores] subordinados na execução desse trabalho.

As prerrogativas de gestão, o controle e a subordinação respon-


dem a necessidades econômicas e organizacionais específicas

21 Art. 2.094 do Código Civil italiano.


36
das empresas. Na doutrina de Direito do Trabalho, é agora quase

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


comum fazer referência às obras de Ronald Coase para dar conta da
função econômica vital dos contratos de trabalho, ou seja, permitir
que as empresas diminuam os custos de transação, reduzindo a
necessidade de procurar e selecionar continuamente contrapartes
no mercado, negociar termos e condições dos contratos e executá-
-los para a condução de uma atividade econômica (COASE, 1937). A
internalização da produção nas empresas, substituindo as transa-
ções de mercado por organizações hierárquicas e trocas unilaterais
que permitem ignorar a necessidade de obter o consentimento da
outra parte para cada operação comercial ou responder e adaptar-
-se a qualquer mudança imprevisível no ambiente empresarial, é
uma das principais razões pelas quais a empresa existe, em termos
“coasianos” (COASE, 1960).22 O contrato de trabalho, ao proporcio-
nar às empresas o poder hierárquico discutido acima, é um dos
principais “tijolos” jurídicos da empresa moderna. As prerrogativas
gerenciais permitem que os empregadores operem seus negócios
e respondam rapidamente a circunstâncias que não poderiam ser
exatamente previstas no momento da negociação do contrato. Em
outras palavras, eles permitem que os empregadores não precisem
obter continuamente o consentimento dos empregados e lhes dão
autoridade para emitir ordens unilaterais, dentro dos limites do
que é razoável e lícito, e para monitorar sua execução e sancionar
os trabalhadores recalcitrantes. Por outras palavras, o contrato de
trabalho continua a basear-se no consentimento mútuo e, por con-
seguinte, bilateral das partes no momento de sua celebração, uma
vez que os trabalhadores têm de aceitar celebrar o contrato livre-
mente. No entanto, uma vez o contrato em vigor, estão sujeitos às
prerrogativas unilaterais dos empregadores, que já não necessitam
do seu consentimento para dirigir, supervisionar e disciplinar a
sua execução laboral, dentro dos limites do que é razoável e lícito
no âmbito do sistema contratual e jurídico em causa.
A possibilidade de os empregadores não necessitarem obter o con-
sentimento dos empregados para implementar e executar suas
decisões unilaterais já havia sido apontada por estudiosos do
Direito como uma das funções principais da relação de trabalho
décadas antes da famosa análise de Coase (PEDRAZZOLI, 2001).
Já em 1915, o estudioso italiano Ludovico Barassi escreveu que a
subordinação inerente ao contrato de trabalho

22 Ver também David Marsden (1999).


37
implica uma afirmação unilateral da vontade do credor da obra
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

[ou seja, o empregador], uma afirmação senhorial e imperativa,


que não necessita de reunir no curso da relação um consenti-
mento real do trabalhador, porque ele já se comprometeu no con-
trato a submeter-se a esses comandos de maneira inquestioná-
vel. (BARASSI, 1915-1917).

O conceito de subordinação em civil law, a noção de controle em


common law e as prerrogativas gerenciais que lhes correspondem
e fazem do contrato de trabalho um elemento crucial da produção
capitalista não vieram à tona por acaso, como mero resultado de
fatores socioeconômicos (DEAKIN; WILKINSON, 2005; MERRITT,
1982). Pelo contrário, derivam de intervenções legislativas precisas
introduzidas em eras pré-industriais e no início da industrializa-
ção. Deakin e Morris (2005), por exemplo, referem-se aos Master
and Servant Acts promulgados na Grã-Bretanha no século XIX e à
legislação aprovada em tempos anteriores que previa a redução dos
salários e a prisão de empregados e trabalhadores por “pequeno
delito, falsidade ou mau comportamento”. A fuga e a recusa de tra-
balhar também foram sancionadas criminalmente, e a prisão por
violação das obrigações contratuais dos empregados foi também
uma prática adotada pelos tribunais e consagrada na legislação,
juntamente com sanções penais por desvio de bens e matérias-pri-
mas dos mestres. Nas colônias britânicas também foi introduzida
a legislação dos mestres e servidores, tornando-se uma caracte-
rística regular dos países de common law (HAY; CRAVEN, 2005).
Nos Estados Unidos, os chamados “códigos negros” promulgados
nos estados do Sul, após o fim da Guerra Civil, regulamentaram
opressivamente o trabalho dos afro-americanos, obrigando-os
a celebrar contratos de trabalho anuais, perpetuando formas de
dominação análogas à escravidão e tornando a vagabundagem um
crime punível com o trabalho penal (ANDERSON, 2016). Também
em países de civil law, foi introduzida regulação penal e de direito
público semelhante para policiar a força de trabalho, por exemplo
a legislação que impõe o livret du travail, que assegurava que os
trabalhadores não abandonariam seu local de trabalho em busca
de outra ocupa­ção sem o consentimento de seus empregadores
(STEINMETZ, 2000; VENEZIANI, 1986).
Com o tempo, o costume e a prática, esse modelo autoritário de
cumprimento das obrigações contratuais de servos e trabalha-
dores infiltrou-se na construção de common law do contrato de

38
trabalho e na noção de subordinação da civil law. Como Deakin e

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Morris observam na análise de Alan Fox, as prerrogativas geren-
ciais “não resultam simplesmente do poder de barganha superior
do empregador antes do contrato” (FOX, 1974). Elas são “sustenta-
das por certas normas legais que hoje assumem a forma da com-
mon law implícita nos termos do contrato de trabalho”, tais como
a obrigação de fidelidade e obediência dos empregados, “que pode
ser rastreada em muitos casos até a legislação do mestre e servo do
século XIX e anterior” (DEAKIN; MORRIS, 2005).
A regulação do emprego, portanto, tem por função muito mais do
que proteger os trabalhadores. Os elementos de proteção acompa-
nham um lado dessa regulação que é muitas vezes negligenciado
nas narrativas principais acerca do contrato de trabalho. O acadê-
mico francês do Direito do Trabalho Alain Supiot (1994) há muito
que analisa essa ambivalência estrutural da regulação do emprego.
Por um lado, essa regulação confere à empresa o poder unilateral
de dirigir, controlar e disciplinar o trabalho humano e, por conse-
guinte, as atividades físicas e mentais dos seres humanos; por outro
lado, tem de reconciliar essas prerrogativas quase “senhoriais” com
o respeito pela dignidade humana dos trabalhadores, necessária em
sociedades democráticas baseadas em princípios de igualdade. Para
esse fim, uma função essencial da regulação do emprego consiste
em racionalizar e limitar as prerrogativas de gestão do empregador.
Essa é uma função que corre o risco de ser negligenciada por expli-
cações simplistas da regulação do trabalho que consideram o con-
trato de trabalho como a mera troca de trabalho por um salário e a
proteção do trabalho como uma forma simples de proteger a renda
dos trabalhadores do poder de negociação superior dos empregado-
res. A seção seguinte trata de algumas dessas narrativas simplistas
que ultimamente têm sido associadas à automação.

4 · A renda básica universal não é suficiente.


A proteção dos direitos humanos e trabalhistas
ainda precisa ser aplicada
As discussões políticas e midiáticas sobre a automação também
estimularam um amplo debate sobre a Renda Básica Universal
(RBU). Numerosos empresários e empresas de tecnologia têm sus-
tentado que uma das respostas para o deslocamento de empregos

39
causados pela automação deve ser a introdução da RBU para mitigar
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

o impacto social do desemprego tecnológico em massa (SADOWSKI,


2016). O debate sobre a RBU é mais amplo e vai além dessas propos-
tas. Vários defensores dos trabalhadores sugeriram a RBU como
uma política progressista que ajudaria a enfrentar desafios signi-
ficativos nos mercados de trabalho modernos, incluindo o desem-
prego tecnológico e o crescimento de formas de emprego precárias
e instáveis.23 Essa é uma questão muito complicada que não pode
ser tratada aqui.24 O que é importante afirmar, no entanto, é que
mesmo que fosse possível implementar um sistema funcional de
RBU, isso não afetaria a estrutura jurídica dos contratos de traba-
lho e da regulação acima referidos.
Os proponentes neoliberais da RBU tomam frequentemente como
certo que esta medida substituiria outros regimes de seguridade
social, incluindo a previdência. Um corolário dessa visão é tam-
bém que, se uma RBU fosse introduzida, a regulação do emprego
poderia ser revertida porque, num sistema em que todos tivessem
acesso seguro à renda, a regulação destinada a segurar um pata-
mar de rendimento dos trabalhadores e a remediar seu fraco poder
de barganha deixaria de ser necessária, também porque a RBU iria
provavelmente aumentar as suas reservas (ZWOLINSKI, 2014).25
Esses pressupostos estão em conformidade com as narrativas con-
vencionais da regulação do emprego e com as abordagens gerais
da política de emprego. Com efeito, o objetivo da abordagem de
fle x­icurity consiste em substituir a proteção dos trabalhadores “no
trabalho” pela proteção “no mercado”, desregulando aspectos da
proteção do emprego e assegurando simultaneamente a renda dos
trabalhadores graças às prestações de desemprego e às políticas
ativas do mercado de trabalho (SCIARRA, 2007).
As políticas que visam substituir a proteção dos direitos traba-
lhistas pela garantia da renda correm o risco de negligenciar uma
característica essencial da regulação trabalhista, que não é apenas

23 Ver, por exemplo, Guy Standing (2004) e Tim Hollo (2016).


24 Ver, entretanto, Brishen Rogers (2019) e os outros artigos sobre a RBU publicados
na mesma edição da revista Comparative Labor Law and Policy Journal.
25 Janine Berg (2019) rejeita igualmente a ideia de que a RBU possa substituir
adequadamente a proteção do emprego.

40
a salvaguarda dos trabalhadores porque eles são economicamente

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


dependentes de seus empregadores e têm fraco poder de nego-
ciação “no mercado”, mas também limitar e racionalizar o exercí-
cio unilateral das prerrogativas gerenciais “no trabalho”, ou seja,
enquanto estão empregados (DE STEFANO, 2014).
A legislação contra a discriminação, a normatização do tempo
de trabalho que protege a saúde física e mental dos trabalhado-
res contra os riscos de fadiga e burnout, as regras que protegem a
privacidade no local de trabalho contra formas abusivas de vigi-
lância, para citar apenas parte da regulação que limita o exercício
das prerrogativas de gestão, não podem ser trocadas pela proteção
“no mercado”. Essa regulação diz respeito a poderes e deveres que
estão a funcionar durante todo o curso da relação de trabalho e não
dependem apenas do poder de negociação superior dos emprega-
dores, mas estão também consagrados nas normas legais. A ideia
de substituir a proteção no trabalho pela garantia da estabilidade
dos rendimentos negligencia aspectos fundamentais da relação de
trabalho, que exigem limites regulamentares que visam proteger
a dignidade humana no trabalho. Isso também deve ser levado em
conta quando se discute a possibilidade de introduzir a RBU ou
qualquer outra forma de proteção de renda – mesmo que fossem
criados, ainda haveria necessidade de regulação do emprego e pro-
teção jurídica “no trabalho”.
As características fundamentais da regulação do emprego e a
sua ambivalência na atribuição de poderes de gestão unilaterais
abrangentes e intensivos que podem diminuir substancialmente
a autonomia dos trabalhadores, por um lado, e limitar e raciona-
lizar esses poderes, por outro, devem ser particularmente levadas
em conta na sequência da automação e da crescente utilização de
ferramentas tecnológicas para orientar a mão de obra. EPM, People
Analytics e o uso de inteligência artificial e big data no local de
trabalho ampliam a possibilidade de supervisionar os trabalha-
dores e monitorar de perto o desempenho das atividades laborais.
Conforme discutido na Seção 2, essas tecnologias podem permi-
tir práticas invasivas flagrantes e levar a resultados arbitrários e
discriminatórios. Na verdade, essas práticas podem levar a uma
“variação genética” das prerrogativas gerenciais, “atualizando-as”
para níveis inéditos. Portanto, deve-se prestar atenção constante
a esses desenvolvimentos, e a regulação é ainda mais necessária

41
para evitar abusos gerenciais que põem em perigo a dignidade
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

humana dos trabalhadores.


Para isso, é também essencial enquadrar os direitos dos traba-
lhadores nos discursos dos direitos fundamentais e dos direi-
tos humanos. A natureza dos direitos trabalhistas como direitos
humanos tem sido debatida há muito tempo (FENWICK; NOVITZ,
2010; ARTHURS, 2006; MANTOUVALOU, 2012) e foi também
consagrada num vasto número de tratados internacionais e fon-
tes de Direito (POLITAKIS, 2007). Uma das razões para reconhe-
cer os direitos trabalhistas como direitos humanos reside preci-
samente na existência de prerrogativas de gestão (DE STEFANO,
2017). Conforme discutido acima, os sistemas jurídicos conferem
aos empregadores autoridade sobre a sua força de trabalho que vai
além das normas sociais e é sustentada pela legislação. Limitar e
racionalizar a autoridade para preservar a dignidade humana –
que é uma das funções essenciais dos direitos humanos – é tam-
bém essencial no local de trabalho.26 A proteção do trabalho, ao
limitar o exercício das prerrogativas de gestão, é também crucial
para garantir que a autoridade dos empregadores não seja exercida
de forma a comprometer os direitos humanos dos trabalhadores.
A abordagem da regulação laboral em matéria de direitos humanos
pode, de fato, revelar-se benéfica também no que diz respeito à pro-
teção da autonomia e da dignidade dos trabalhadores em matéria
de vigilância eletrônica das suas atividades.27 O Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem, por exemplo, interpretou o direito à vida
privada nos termos do art. 8º da Carta de Direitos Fundamentais
da União Europeia. Em processo relativo ao despedimento de um
trabalhador pela utilização da internet no trabalho para fins parti-
culares, numa situação em que o empregador tinha acesso ao conte-
údo das comunicações dos trabalhadores por meio de instrumentos
informáticos, o Tribunal de Justiça estabeleceu que o controle das

26 Para uma ampla discussão sobre como a proteção da dignidade humana e dos
direitos humanos dos trabalhadores pode ser apresentada como elemento
fundamental do Direito do Trabalho, ver as contribuições recolhidas em
Philosophical Foundations of Labour Law (COLLINS; LESTER; MANTOUVALOU,
2019). Para uma avaliação crítica aprofundada dos argumentos baseados nos
direitos humanos nos discursos sobre o Direito do Trabalho, ver, no entanto,
Matthew Finkin (2019).
27 Ver Frank Hendrickx (2019a, 2019b).

42
atividades online pelo empregador, embora admissível em princípio,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


devia ser efetuado proporcionalmente, a fim de evitar arbitrarieda-
des e abusos.28 Entre as salvaguardas que os Estados-Membros têm
de considerar, para determinar se as práticas de vigilância são legíti-
mas, o Tribunal indicou: a circunstância de os trabalhadores serem
devidamente notificados da possibilidade de o empregador poder
controlar a correspondência e outras comunicações; a existência de
razões legítimas para justificar a vigilância das comunicações e o
acesso ao seu conteúdo; a possibilidade de estabelecer práticas de
vigilância menos intrusivas. O Tribunal foi igualmente instado a
analisar, em geral, o alcance do monitoramento e o grau de intru-
são na privacidade dos trabalhadores, estabelecendo uma distinção
entre o acesso aos metadados relativos ao fluxo das comunicações e
o acesso ao conteúdo dessas comunicações.
Esse julgado pode proporcionar um quadro geral de proteção
para as relações no local de trabalho em países que aderem à
Convenção Europeia dos Direitos Humanos do Conselho da Europa.
Nomeadamente, o Conselho da Europa também atualizou recente-
mente a sua Convenção para a Proteção das Pessoas relativamente
ao Tratamento Automático de Dados Pessoais. O novo texto da
convenção, após sua entrada em vigor, prevê o direito de as pessoas
“não serem sujeitas a uma decisão que as afete de forma significa-
tiva, tomada exclusivamente com base num tratamento automa-
tizado de dados, sem que as suas opiniões sejam consideradas”.29
Para os países que também pertencem à União Europeia, podem ser
encontradas mais orientações no Regulamento Geral de Proteção
de Dados (RGPD). O RGPD, no entanto, não é por si só uma panaceia
contra os excessos de gestão por algoritmo e a utilização de IA no
local de trabalho. Em primeiro lugar, os comentadores observaram
que o direito da UE foi interpretado pelo Tribunal de Justiça da UE
(TJUE) no sentido de prever uma proteção inferior no caso de uma
decisão ser tomada com base em inferências subjetivas baseadas
em dados e não em fatos objetivos e verificáveis (MITTELSTADT;
WACHTER, 2019). Esse é um paradoxo, considerando os possíveis
impactos prejudiciais que inferências errôneas podem causar –
imagine se uma decisão sobre contratação ou promoção é tomada

28 Bărbulescu v. Romania, No 61496/08, ECHR 2017.


29 Art. 9º da Convenção revisada.

43
inferindo como alguém com um histórico de crédito particular
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

pode se comportar em um contrato de trabalho, sem levar em


conta quais fatores contribuíram para esse histórico de crédito.
Além disso, até agora, o TJUE recusou-se a alargar o âmbito de aplica-
ção do direito da UE em matéria de proteção de dados visando à cor-
reção dos processos decisórios. E mesmo os dispositivos do RGPD que
parecem proporcionar uma proteção mais significativa nesse domínio
podem revelar-se insuficientes. Por exemplo, o art. 22, n. 1, do RGPD
concede o direito de não estar sujeito a “uma decisão baseada uni-
camente no tratamento automatizado”, quando esta decisão produz
efeitos jurídicos ou “igualmente significativos [...]”.30 Muito provavel-
mente, porém, um elevado número de decisões relativas a questões no
trabalho serão abrangidas pelas exceções a essa regra permitidas pelo
n. 2 do art. 22, sendo “necessárias para a celebração ou execução de um
contrato”.31 Nesse caso, o RGPD exige que os empregadores ou outros
responsáveis pelo tratamento de dados implementem
medidas adequadas para salvaguardar os direitos e liberdades e
interesses legítimos do titular dos dados, pelo menos o direito de
obter intervenção humana por parte do responsável pelo trata-
mento, de expressar o seu ponto de vista e de contestar a decisão.

Por conseguinte, os trabalhadores terão o direito de contestar


decisões totalmente automatizadas que os afetem significativa-
mente. No entanto, essa proteção será em vão, a menos que possam
demonstrar que foi violado um “padrão de tomada de decisão jurí-
dico ou ético executório” específico. Sem essas normas, a proteção
prevista no art. 1º corre o risco de permanecer esvaziada de conte-
údo (MITTELSTADT; WACHTER, 2019).

30 Para uma descrição aprofundada das potenciais insuficiências do art. 22,


ver Luciano Floridi, Brent Mittelstadt e Sandra Wachter (2017). Uma questão
crítica diz respeito à interpretação da palavra “unicamente” neste contexto.
São necessárias normas adequadas para garantir que a participação nominal
das pessoas que sancionam decisões tomadas por mecanismos automáticos
não privará as pessoas em causa da proteção prevista no art. 22.
31 Outro caso de exceção é quando as pessoas em causa dão o seu consentimento
expresso a uma tomada de decisão exclusivamente automatizada. É de
notar, no entanto, que o Grupo de Trabalho do art. 29 (atualmente, o Comitê
Europeu para a Proteção de Dados), na sua Opinion 2/2017 on data processing
at work, adopted on 8 June 2017, observou: “[...] é altamente improvável que o
consentimento seja uma base legal para o processamento de dados no trabalho,
a menos que os empregados possam recusar sem consequências adversas”.

44
Assim, é crucial que padrões e proteções adequados e específicos

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


sejam estabelecidos no mundo do trabalho. A esse respeito, o art.
88 do RGPD constitui uma disposição crucial. Ele prevê que os
Estados-Membros da UE podem introduzir, por lei ou por conven-
ções coletivas, “regras específicas para assegurar a proteção dos
direitos e liberdades no que diz respeito ao tratamento de dados
pessoais dos trabalhadores no contexto do emprego”. Essas regras
devem “incluir medidas adequadas e específicas para salvaguardar
a dignidade humana, os interesses legítimos e os direitos funda-
mentais do titular dos dados”, em especial no que diz respeito aos
“sistemas de controle no local de trabalho”, à transparência do tra-
tamento e da transferência de dados pessoais.32
Essas abordagens supraestatais da proteção da privacidade dos
trabalhadores, baseadas na ideia de tutela dos direitos huma-
nos e fundamentais no local de trabalho, e que respondem espe-
cificamente à necessidade de que as prerrogativas de gestão e
vigilância dos trabalhadores não prejudiquem a sua dignidade
humana, podem orientar a introdução (ou atualização) de regula-
ção laboral destinada a proteger os trabalhadores contra práticas
abusivas de supervisão na sequência da difusão de sistemas de
vigilância reforçados pela tecnologia. Uma abordagem baseada
nos direitos humanos, fundamentada na ideia de que o direito
humano à privacidade só pode ser limitado na medida em que
isso seja indispensável ao exercício de outros direitos humanos
e que quaisquer limitações devem ser proporcionais a esse fim,
pode de fato fornecer um quadro geral significativo de proteção
que pode ser benéfico, em contraste com as abordagens de repa-
ração pontual adotadas em sistemas onde o reconhecimento dos
direitos dos trabalhadores como direitos fundamentais ainda
está atrasado, como nos Estados Unidos,33 e em relação a propos-
tas para governar a inovação tecnológica com base em princípios

32 Art. 18 do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho,


de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz
respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados,
e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de
Dados); ver, para uma primeira observação, Ilaria Armaroli e Emanuele
Dagnino (2019); Frank Hendrickx (2018); e Federico Fusco (2018).
33 Para uma análise do quadro jurídico dos Estados Unidos neste contexto, ver
Frank Pasquale (2015). Ver também Ifeoma Ajunwa, Kate Crawford e Jason
Schultz (2017); Matthew T. Bodie et al. (2016); e Frank Hendrickx (2014).

45
“éticos” muito mais vagos, como o discurso da “IA ética”, atual-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

mente exageradamente em alta (overhyped).


A esse respeito, convém assinalar que as regras de emprego at will
que permitem a rescisão do contrato de trabalho por “qualquer ou
nenhuma razão” podem agravar os riscos de abuso das prerroga-
tivas de gestão (ANDERSON, 2017), em particular no que se refere
às práticas de vigilância que, graças à utilização de tecnologias
e de grandes volumes de dados, permitem o acesso à informa-
ção sobre os dados sensíveis dos trabalhadores e a vida privada.
Mesmo que práticas como identificar características pessoais
protegidas pela legislação em matéria de discriminação fossem
ilegais, a possibilidade de rescindir o contrato de trabalho sem
indicar qualquer motivo pode dar azo a violações que não seriam
fáceis de detectar ou que exigiriam a sanção de longos processos
judiciais. Isso é válido não só para os sistemas jurídicos que ope-
ram ao abrigo de uma regra de “emprego por conta de outrem”,
mas também para os que não preveem soluções eficazes contra
o despedimento sem justa causa ou o acesso à justiça em litígios
laborais, uma vez que a falta ou a escassez de soluções ou custos
judiciais significativos podem desencorajar a ação individual con-
tra violações (DE STEFANO, 2014; ADAMS; PRASSL, 2017). Além
disso, esses riscos não se limitariam apenas à cessação das rela-
ções laborais típicas. O recurso generalizado a regimes de traba-
lho temporário e ocasional, que não exigem um motivo de cessa-
ção da relação de trabalho, aumenta as prerrogativas de gestão e
agrava o risco de abusos, uma vez que os trabalhadores terão difi-
culdade em resistir a práticas de supervisão invasivas para que o
seu regime de trabalho não seja renovado ou seja reduzido a zero
(ALOISI; DE STEFANO, 2019).
Por essa razão, a “proteção no trabalho”, também contra a rescisão
injusta, é fundamental para proteger a dignidade humana no local
de trabalho. As abordagens de direitos humanos podem também
justificar um enfoque universal destinado a alargar a proteção do
trabalho para além do âmbito tradicional da relação de trabalho,
uma vez que a precarização dos mercados de trabalho industria-
lizados e a disseminação do trabalho em plataforma estão a obs-
curecer significativamente a distinção entre empregados e alguns
trabalhadores independentes em termos de práticas de gestão (DE

46
STEFANO, 2016).34 Por exemplo, a prática de capturar imagens

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


de telas de computadores de trabalhadores para monitorar seu
desempenho e sua produtividade há muito vem sendo utilizada
para controlar trabalhadores alegadamente autônomos em plata-
formas como Upwork e outras de crowdwork online (ALEKSYNSKA;
BASTRAKOVA; KHARCHENKO, 2018).
Além disso, uma abordagem da proteção do trabalho baseada nos direi-
tos humanos não pode negligenciar a importância de direitos coletivos
como a liberdade de associação e o direito à negociação coletiva na pro-
teção da dignidade humana no local de trabalho. A função dos direitos
coletivos não é apenas dar aos trabalhadores uma melhor posição para
negociar as condições econômicas de emprego; os direitos coletivos
também atuam como “direitos facilitadores”, possibilitando garantir
e efetivamente fazer valer qualquer outro direito no local de trabalho.
Como tal, os direitos coletivos também servem como um instrumento
fundamental para racionalizar e limitar o exercício das prerrogativas
de gestão, uma vez que permitem contrabalançar uma parte coletiva-
mente organizada com a dimensão intrínseca coletiva e organizacio-
nal das prerrogativas desses empregadores, que podem ser exercidas
numa base individual mas também sobre os trabalhadores no seu con-
junto. Os direitos coletivos, incluindo o direito à negociação coletiva,
permitem passar de um exercício puramente unilateral dessas prerro-
gativas para uma governança consensual do trabalho, exigindo nego-
ciações sobre aspectos da organização empresarial que, na ausência de
relações coletivas, seriam unilateralmente regidos pelos empregado-
res, mediante a autoridade que lhes é conferida pelo sistema jurídico
(LIEBMAN, 1993). A referência à negociação coletiva no art. 88 do RGPD
como um mecanismo para estabelecer normas adequadas e específi-
cas no contexto da coleta e do tratamento de dados para salvaguardar
a dignidade humana e os direitos fundamentais dos trabalhadores
confirma como são cruciais os direitos coletivos para combater os abu-
sos das práticas de gestão automatizada no local de trabalho. A seção
seguinte conclui este artigo explorando como a regulação coletiva é
essencial para garantir uma proteção laboral adequada em tempos de
automação e práticas de vigilância tecnologicamente melhoradas.

34 Para uma proposta pormenorizada sobre a extensão da proteção do trabalho


para além do âmbito da relação de trabalho, incluindo referências adicionais,
ver Nicola Countouris e Valerio De Stefano (2019).

47
5 · Negociar o algoritmo: “humanos no comando”
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

e direitos coletivos para o futuro do trabalho


Conforme discutido na Introdução, o discurso dominante sobre
automação tende a seguir o pressuposto tecnodeterminista de que
a inserção de novas tecnologias irá determinar perdas ou ganhos de
emprego como um processo autônomo e heterogêneo com impacto
nos mercados de trabalho. Essa abordagem, no entanto, não leva
em conta o papel que a regulação do trabalho pode desempenhar
para influenciar esse processo – algo que é de fato surpreendente,
dado o elevado número de instrumentos internacionais e nacionais
que lidam com o impacto da tecnologia no emprego, tais como os
instrumentos que regem as dispensas coletivas.
Os despedimentos coletivos são objeto de regulação internacional,
regional e nacional abundante. Esses instrumentos exigem frequen-
temente que as empresas informem e consultem adequadamente os
sindicatos e os representantes dos trabalhadores e que envolvam os
organismos públicos antes de procederem a dispensas em massa.
A Convenção n. 158 da OIT, de 1982, sobre a cessação da relação de
trabalho, menciona explicitamente que os procedimentos de infor-
mação e consulta devem também ser seguidos quando se preveem
despedimentos por razões “tecnológicas”, com o objetivo de encon-
trar medidas “para evitar ou minimizar os despedimentos” e “ate-
nuar os efeitos negativos de quaisquer despedimentos para os traba-
lhadores em causa, tais como encontrar um emprego alternativo”. A
Recomendação n. 166 da OIT sobre a cessação do contrato de traba-
lho, de 1982, fornece mais orientações a esse respeito.
As disposições relativas à informação e à consulta entre emprega-
dores e trabalhadores em caso de despedimentos estão também
incluídas em fontes regionais de regulação, como a Lei Modelo de
Harmonização da Cessação de Emprego da Comunidade do Caribe
(Caricom) e a Diretiva da UE relativa às dispensas coletivas. São pre-
vistas medidas semelhantes em muitos sistemas jurídicos nacionais.35
No entanto, a existência desse tipo de regulação está longe de ser
suficiente para resolver os problemas decorrentes da automação.

35 A Base de Dados da Legislação à Proteção do Emprego da OIT indica que


mais de 60 países, pertencentes a todos os continentes do mundo, preveem
deveres processuais de informação e consulta em caso de despedimentos
coletivos. Disponível em: http://www.ilo.org/dyn/eplex/termmain.home.
48
Por exemplo, a perda de postos de trabalho pode ocorrer em níveis

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


nunca antes vistos, ou a introdução de novas tecnologias pode ten-
sionar a regulação atual e as relações coletivas. Além disso, essa
regulação visa atenuar as consequências dos despedimentos, mas
não é capaz de os evitar, especialmente se novas máquinas e pro-
cessos empresariais deslocarem um elevado número de postos de
trabalho num curto espaço de tempo. No entanto, os decisores
políticos, os pesquisadores e os acadêmicos não devem partir do
pressuposto de que não existe ou é impossível construir regulação
destinada a atenuar as perdas maciças de postos de trabalho. A
regulação das dispensas coletivas existe, e a sua vigência deve ser
levada em conta quando se discutem o impacto da automação nos
mercados de trabalho bem como o papel que os parceiros sociais e
os reguladores podem desempenhar na gestão desses processos.
Também não se deve partir do princípio de que a regulação sufo-
caria necessariamente a inovação, outro corolário generalizado das
abordagens tecnodeterministas da automação. A regulação das
dispensas coletivas e as leis laborais que asseguram o funciona-
mento dos sistemas de relações laborais e sustentam o papel dos
representantes dos trabalhadores e dos sindicatos podem, pelo con-
trário, ser associadas a resultados econômicos positivos (ADAMS et
al., 2019). A literatura também mostra uma relação positiva entre
instituições coletivas mais fortes e produtividade, eficiência econô-
mica e níveis de emprego (DEAKIN; MALMBERG; SARKAR, 2014).
Por conseguinte, deve-se partir do princípio de que a regulação das
dispensas em massa e a participação dos trabalhadores na gestão
dos despedimentos coletivos podem ser benéficas quando se trata
de processos de automação e de suas implicações sociais.
Além disso, o envolvimento dos representantes dos trabalhadores
pode também ocorrer muito mais cedo do que quando ocorrem
despedimentos reais. Os instrumentos regionais, como a Diretiva
2002/14 da UE, também preveem o dever de participar do diálogo
social para lidar com o impacto previsto da inovação tecnológica.36 A
diretiva prevê deveres de informação e de consulta “sobre decisões
suscetíveis de conduzir a alterações substanciais na organização do
trabalho ou nas relações contratuais”, e “sobre a evolução recente e

36 Diretiva 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de


2002, que estabelece um quadro geral relativo à informação e à consulta dos
trabalhadores na Comunidade Europeia.
49
provável das atividades e da situação econômica da empresa ou do
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

estabelecimento”. Estão igualmente disponíveis exemplos de regula-


ções nacionais que preveem deveres semelhantes.37
Mais importante ainda, o envolvimento dos representantes dos
trabalhadores pode revelar-se particularmente benéfico para gerir
outras implicações das novas tecnologias no local de trabalho,
nomeadamente as que influenciam a qualidade dos empregos que
irão “sobreviver” após a automação. A introdução da inteligência
artificial e o uso de big data e EPM precisam ser governados para
garantir que sistemas que possam permitir uma ampliação sem
precedentes da abrangência e do impacto das prerrogativas geren-
ciais e a intensidade do monitoramento não levem a abusos que
atentem contra os direitos humanos dos trabalhadores.
É necessária regulação que discipline a quantidade de dados reco-
lhidos sobre o desempenho profissional e as características pesso-
ais dos trabalhadores, bem como a forma como são coletados e tra-
tados. Também não se trata apenas de uma questão de proteção da
privacidade. A forma como o trabalho é orientado pelo uso de novas
tecnologias, incluindo wearables e co-bots, entre outras coisas, deve
ser regulamentada para garantir que a procura de maior produti-
vidade não resulte em riscos profissionais e aumento de estresse
para os trabalhadores envolvidos. Os mecanismos disciplinares
facilitados pela tecnologia são outro item fundamental a regular.
Mesmo que fosse possível ter inteligência artificial decidindo sobre
questões como o aumento do ritmo de trabalho ou a intensifica-
ção da produção, essas decisões devem ser sempre implementadas
após uma revisão humana. O mesmo se aplica a qualquer medida
disciplinar tomada à luz dos dados recolhidos através de sistemas
de monitoramento mecânico ou de processos algorítmicos. A ava-
liação do desempenho no trabalho baseada em algoritmos também
deve ser disciplinada, de modo a tornar os critérios de avaliação
transparentes e conhecidos dos trabalhadores e a garantir que

37 A lei sueca sobre o emprego (codeterminação no local de trabalho) (1976:580),


seção 19, por exemplo, obriga os empregadores a “informar regularmente
uma organização de trabalhadores em relação à qual [estão] vinculados por
acordos de negociação coletiva sobre a forma como a empresa está a evoluir
no que respeita à produção e às finanças e sobre as orientações em matéria de
política de pessoal”. São igualmente previstas obrigações análogas quando o
empregador não está vinculado por uma convenção coletiva.

50
sejam evitados resultados arbitrários ou discriminatórios. Para

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


isso, novamente, mesmo que fosse possível ter mudanças e atuali-
zações automáticas na operação dos algoritmos por meio da inte-
ligência artificial de autoaprendizagem, a decisão final de alterar
os critérios pelos quais o desempenho do trabalho é avaliado deve
ser tomada por humanos, tornada transparente e conhecida pelos
trabalhadores e também sujeita a negociação.
O “humano no comando”, abordagem preconizada no parecer do
Comitê Econômico e Social Europeu sobre Inteligência Artificial
(EUROPEAN ECONOMIC AND SOCIAL COMMITTEE, 2017),38
nomeadamente a “pré-condição de que o desenvolvimento da IA
seja responsável, seguro e útil, em que as máquinas permaneçam
máquinas e as pessoas mantenham o controle sobre estas máqui-
nas em todos os momentos”, deve ser estritamente seguida tam-
bém no que diz respeito ao trabalho. O parecer ainda defende espe-
cificamente que “os trabalhadores devem ser envolvidos no desen-
volvimento deste tipo de sistemas complementares de IA, para
garantir que os sistemas são úteis e que o trabalhador ainda tenha
autonomia e controle suficientes (humano no comando), realiza-
ção e satisfação no trabalho”. Para atingir esse objetivo, é também
crucial que qualquer decisão de gestão sugerida pela inteligência
artificial seja sujeita a revisão por seres humanos que se mante-
nham legalmente responsáveis, juntamente com a sua organiza-
ção, pela decisão e pelos seus resultados. O fato de que as decisões
foram tomadas seguindo processos baseados em máquinas nunca
deve ser razão suficiente para excluir a responsabilidade pessoal;
mesmo que a personalidade eletrônica tenha sido introduzida no
sistema jurídico, os seres humanos devem sempre permanecer res-
ponsáveis por qualquer decisão que afete diretamente os trabalha-
dores e qualquer outra pessoa física.
O direito de não estar sujeito a uma tomada de decisão totalmente
automatizada sem intervenção humana está a fazer seu caminho
na regulação supranacional. O art. 9º da Convenção revista do
Conselho da Europa para a Proteção das Pessoas relativamente
ao Tratamento Automatizado de Dados de Caráter Pessoal sobre
o direito de não ser sujeito a um processo automatizado de

38 Ver, agora, também a publicação da OIT (INTERNATIONAL LABOUR


ORGANIZATION, 2019).

51
tomada de decisão sem intervenção humana, acima discutido,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

juntamente com a disposição do RGPD que prevê salvaguar-


das adequadas a esse respeito, constitui um passo no sentido
do estabelecimento de uma abordagem “humano no comando”.
Como argumentado na seção anterior, no entanto, para evitar
que essas disposições permaneçam uma casca vazia, quando se
trata do mundo do trabalho, são necessários padrões e regulação
específicos e adequados neste campo.
Essa regulação terá de permanecer flexível e rapidamente adap-
tável à inovação tecnológica. Por essa razão, para além de um
quadro legislativo geral predefinido, é essencial uma regulação
pormenorizada e específica. A esse respeito, a negociação coletiva
pode desempenhar papel fundamental tanto em nível setorial
quanto na dimensão do local de trabalho, como recorda o art. 88
do RGPD. O direito individual de acesso aos dados e de contestar
os resultados do processo automatizado de tomada de decisões,
embora essencial, não pode ser suficiente num contexto em que
a tecnologia se torna tão generalizada e complexa como discu-
tido nas seções anteriores. Os indivíduos não devem ser deixa-
dos sozinhos para lidar com as complexidades dessa tecnologia
quando querem compreender e contestar as consequências de
suas aplicações sobre eles.
Por essa razão, no mundo do trabalho, os direitos coletivos e a
voz serão cruciais. Os acordos coletivos poderiam abordar o uso
de tecnologia digital, coleta de dados e algoritmos que direcio-
nam e disciplinam a força de trabalho, garantindo transparência,
sustentabilidade social e conformidade com essas práticas com a
regulação. A negociação coletiva também seria fundamental para
a implementação da abordagem “humano no comando” no local
de trabalho. A negociação coletiva poderia, ainda, regular ques-
tões como a propriedade dos dados coletados dos trabalhadores e
avançar até a criação de órgãos bilaterais ou independentes que
possuam e gerenciem alguns dos dados.39 Tudo isso seria tam-
bém coerente com a função fundamental da negociação coletiva

39 A informação, a consulta e a negociação coletiva sobre a coleta e o tratamento


de dados são igualmente recomendadas no âmbito do Código de Conduta da
OIT de 1997, relativo à proteção dos dados pessoais dos trabalhadores. Ver
também Sangeet Paul Choudary (2018).

52
enquanto direito habilitador e mecanismo de racionalização do

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


exercício das prerrogativas de gestão dos empregadores, per-
mitindo afastar-se de uma dimensão puramente unilateral da
governança do trabalho.
A “negociação do algoritmo” deve, portanto, tornar-se objetivo
central do diálogo social e da ação da organização dos empregado-
res e dos trabalhadores. Em 2017, por exemplo, o UNI Global Union
emitiu uma série de propostas de ponta sobre inteligência artifi-
cial ética no local de trabalho (GLOBAL UNION..., 2017). Além disso,
Armaroli e Dagnino (2019) e Phoebe Moore, Martin Upchurch e
Xanthe Whittaker (2018) informam sobre várias convenções cole-
tivas já em vigor em diversos países que regulam a utilização da
tecnologia não só na vigilância dos trabalhadores mas também na
orientação do seu trabalho, para proteger a dignidade humana e a
saúde e segurança no trabalho dos trabalhadores. A esse respeito,
Seifert (2018) prevê igualmente um papel potencialmente crucial
para a negociação coletiva transnacional e relatórios sobre os acor-
dos transnacionais já celebrados sobre a questão da proteção de
dados. Por conseguinte, os parceiros sociais já estão enfrentando
essas questões. 40 Os governos também têm um papel essencial a
desempenhar que vai além de fornecerem um quadro legislativo
geral para regular essas questões substituindo ou complemen-
tando a negociação coletiva específica. Por exemplo, podem tam-
bém utilizar incentivos fiscais para estimular estratégias empre-
sariais tecnológicas, desde que integrem plenamente os objetivos
de sustentabilidade e sejam objeto de diálogo social. Não será um
processo simples ou rápido e exigirá esforços de todas as partes
envolvidas. Entre outras coisas, será necessário gastar recursos
substanciais para assegurar que trabalhadores, gestores, sindi-
calistas e pessoal de RH sejam adequadamente treinados para
lidar com os desafios e as oportunidades que a tecnologia pode
suscitar. A regulação e a governança coletiva desses processos não
serão construídas num só dia. No entanto, são indispensáveis para
garantir que os benefícios dos avanços tecnológicos melhorem as
nossas sociedades de forma inclusiva e global.

40 Recentemente, a OCDE adotou também uma recomendação apelando ao


diálogo social para que desempenhe um papel na introdução e na utilização
da inteligência artificial no trabalho. Ver Organization for Economic
Co-operation and Development (2019).

53
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61
PRIMEIRO CAPÍTULO
Programação algorítmica e subordinação
cibernética: a sociedade do controle e a
falácia da autonomia
O trabalho em plataformas e o vínculo de
emprego: desfazendo mitos e mostrando a
nudez do rei

Rodrigo de Lacerda Carelli


Procurador do Trabalho. Professor de Direito do Trabalho e
do programa de pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Ciências
Humanas (Iesp/Uerj). Mestre em Sociologia e Direito (UFF).

Resumo: Este artigo sustenta que os argumentos das plataformas


digitais que poderiam justificar que seus trabalhadores não seriam
empregados são baseados em mitos ou estão afastados da realidade.
O estudo mostra a diferença entre plataformas que funcionam como
marketplace e aquelas que fazem intermediação de trabalhadores,
sendo estas também diferenciadas daquelas que prestam efetivamente
outros serviços além da mera intermediação e que não podem, assim,
ser consideradas instrumentos digitais de conexão entre clientes e
prestadores de serviços. Argumenta-se, também, que não há ligação
obrigatória e necessária entre trabalho subordinado e rigidez de horário
de trabalho e que o trabalho aferido por produção e por peça de há muito
é utilizado. Também se mostra que o fato de poder negar trabalho, que
não acontece verdadeiramente em grande parte das plataformas, não
retira a condição de empregado e empregador.

Palavras-chave: Plataformas digitais. Vínculo de emprego. Trabalhadores


em plataformas digitais.

Abstract: This paper argues that the claims of digital platforms that could
justify that their workers would not be employed are based on myths
or are detached from reality. The study presents the difference between
platforms that function as a marketplace and those that intermediate
workers, which are also differentiated from those that effectively provide
other services beyond mere intermediation and that cannot, therefore,
be considered as digital instruments of connection between clients

65
and service providers. It is also argued that the claim that workers are
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

independent contractors is not supported by the legal system, because


there is no mandatory and necessary link between subordinated work
and rigid working hours, and that work measured by production or by
piece is used from long ago. It is also shown that the fact of being able
to deny work, which does not really happen in most platforms, does not
remove the condition of employee and employer.

Keywords: Digital platforms. Employment link. Workers in digital platforms.

1 · Introdução
O mundo do trabalho, em praticamente toda parte deste planeta, foi
surpreendido pela invasão de empresas que, apresentando-se como
soluções tecnológicas modernas sob o modelo de marketplace, pro-
põem novas formas de contratação de trabalhadores que, por sua
vez, realizariam seu trabalho de forma independente e alcançariam
sua autonomia organizando seu próprio labor. Essas empresas, por
meio de plataformas eletrônicas baseadas em conexões na grande
rede e a partir de aplicativos instalados em aparelhos smartphones,
realizariam de forma otimizada a ligação entre a oferta de presta-
dores de serviços e a demanda de clientes que desejariam contratar
esses trabalhadores.
Se por um lado algumas empresas mantêm esse modelo de maneira
razoavelmente fiel, por outro uma parte das companhias da dita
gig economy, como por exemplo aquelas que prestam serviços de
transporte de pessoas e mercadorias, faz proveito da ideia como
escudo para poderem prestar serviços sem cumprir as regras
democráticas estatuídas.
O discurso dessas empresas sustenta-se basicamente em dois
argumentos: 1) que realizam apenas intermediação eletrônica entre
oferta e procura, sendo somente empresas de tecnologia que otimi-
zam o “mercado”; 2) que seus trabalhadores são autônomos, pois
não são submetidos a subordinação, tendo em vista que não têm
horário para cumprir e podem inclusive recusar trabalho ofertado.
Esses argumentos não são convincentes, seja pela falta de res-
paldo na realidade, seja por não encontrarem guarida no próprio
Direito do Trabalho e nos conceitos de empregado, empregador e
trabalhador autônomo.

66
Este artigo pretende desmistificar esses dois pontos, que são emba-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


sados em falhas argumentativas pela apresentação de pressupostos
equivocados, ou seja, pretende-se demonstrar que são sustentados
por falácias. Assim, são as premissas de base que serão atacadas
neste artigo, dividido em duas partes: na primeira, será analisada
a organização de plataformas sob a forma de marketplace, demons-
trando-se os casos em que as plataformas assumem a forma de
intermediadoras entre negociantes ou quando há mera retórica; e,
na segunda parte, haverá a análise das figuras do trabalho autô-
nomo e da relação de emprego nas plataformas.

2 · Todas as plataformas digitais são marketplaces?


A ideia de plataformas digitais como marketplaces origina-se da
transposição da ideia de “mercado”, ou feira, para a rede mundial de
computadores. A feira, ou um centro comercial, é um local em que
se reúnem diversos comerciantes independentes a fim de se pode-
rem encontrar vários compradores para a realização de negócios. É
basicamente um local de troca, fazendo encontrarem-se demanda
e procura (LANGLEY; LEYSHON, 2016). O organizador da feira ou
administrador do centro comercial tem como função conceder as
condições para que essas trocas se realizem: oferece o local para sua
realização, facilita o seu acesso, responsabiliza-se pela segurança
e limpeza, podendo também realizar a divulgação para promover
o ambiente. Em razão desse serviço, cobra uma remuneração que
geralmente é baseada em percentual dos negócios realizados.
Pela simples transposição da ideia para a internet, surgiram pla-
taformas digitais no estilo Ebay nos Estados Unidos e Mercado
Livre no Brasil. Em pouco tempo, lojas de e-commerce, ou comércio
eletrônico, em que era replicado o modelo de varejo para o meio
eletrônico, passaram a se organizar também como “marketplace”,
mantendo suas próprias vendas, mas também servindo de plata-
forma para a comercialização de produtos por outros vendedores,
atuando como intermediárias para a realização dos negócios, a
exemplo das Lojas Americanas e da Amazon.
A questão começa a se complicar quando a ideia ultrapassa os con-
fins do comércio e passa a ser aplicada para a oferta de prestação de
serviços (KENNEY; ZYSMAN, 2016, p. 61). O Airbnb é um bom exem-
plo: essa empresa tem como conceito central servir de plataforma

67
digital para unir viajantes a pessoas que desejariam fornecer um
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

imóvel ou parte dele para albergar aqueles por curtos períodos.1 Em


uma visão desencantada, é uma gigante imobiliária online.
Entretanto, a situação adquire contornos ainda mais intrincados
quando os serviços ofertados por meio de plataformas são centrados
no elemento humano: o serviço ou mercadoria, no caso, tem como
parte principal ou predominante um trabalhador, que se coloca à dis-
posição para prestar pessoalmente serviços oferecidos digitalmente.
Assim, essas últimas se apresentam como um marketplace que unirá
trabalhadores a demandantes de serviços. Algumas se declaram
como “classificados virtuais”, fazendo o link entre empregadores em
busca de trabalhadores ideais para suas empresas e profissionais
que necessitam de uma vaga de trabalho para sobreviver, por meio
da publicação de anúncios de trabalhadores, ofertas de emprego e
distribuição direta de currículos. São exemplos dessas companhias
no Brasil a Catho e a Infojobs. Outras plataformas, por sua vez,
fazem a ligação de trabalhadores autônomos com clientes para a
realização de pequenas tarefas, como a GetNinjas ou Workana, sem
qualquer interferência na prestação de serviço. Essas plataformas
em princípio realmente funcionam como um marketplace, fazendo
o trabalho de construção do ambiente a partir do qual esses negó-
cios se realizam, não se imiscuindo, no entanto, nos próprios ne-
gócios realizados por meio da plataforma. Do mesmo modo como
age o Mercado Livre, a plataforma GetNinjas2 apresenta os traba-
lhadores para os interessados sem impor o preço, qualidade do pro-
duto, condições do negócio e sem participar ativamente das etapas
da negociação. Plataformas desses dois tipos funcionam em ver-
dade como agências de emprego, realizando a aproximação entre
ofertas e demanda de postos de trabalho. Na classificação realizada
por Adrian Todolí, essas plataformas são chamadas de “crowdsour-
cing genérico”, ou seja, fazem a distribuição de trabalho a uma mul-
tidão dispostas a prestar vários tipos de tarefas, não prestando um
serviço específico (SIGNES, 2017, p. 22).

1 Além da questão da responsabilidade civil na prestação de serviços,


começaram a ser discutidos outros problemas, como a regulação das cidades
em relação a hotelaria e aluguéis, inclusive quanto a itens de segurança para
os turistas e acesso à moradia para os habitantes dos locais invadidos pela
oferta turística de apartamentos antes ocupados por moradores.
2 https://www.getninjas.com.br/#aboutgenér.

68
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

Figura 1: Jean-Léon Gèrôme. Vente d’esclaves à Rome (1884). Acervo St.


Pétersbourg, l’Ermitage

Por óbvio, desde que a escravidão foi colocada na ilegalidade, é um


problema para a sociedade a existência de um mercado em que seres
humanos são negociados como mercadoria. Não é à toa que o prin-
cípio fundamental da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
é “o trabalho não é uma mercadoria”. Assim, a existência desse mer-
cado de seres humanos somente pode acontecer mediante regulação
rígida que resguarde a dignidade dos trabalhadores, pois o traba-
lho é uma mercadoria fictícia, existindo na realidade seres humanos

69
que trabalham. A criação dessa mercadoria fictícia é essencial para
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

o capitalismo, exigindo, no entanto, justamente pela condição de


ficção, que a negociação seja regulada pelo Estado. Por isso que a
mesma OIT adotou a Convenção n. 181 sobre as “agências de emprego
privadas”, garantindo aos trabalhadores, em suma, direitos de liber-
dade sindical e negociação coletiva, não discriminação, proteção aos
dados e proibição de pagamentos de encargos. Essa convenção apli-
ca-se a “serviços que visam a aproximação entre ofertas e procuras
de emprego, sem que a agência de emprego privada se torne parte
nas relações de trabalho que daí possam decorrer” (Artigo 1º, 1 “a”) e a
serviços que consistem em empregar trabalhadores com o fim de
os pôr à disposição de uma terceira pessoa, singular ou coletiva
(adiante designada “empresa utilizadora”), que determina as suas
tarefas e supervisiona a sua execução (Artigo 1º, 1 “b”).

Para garantir isonomia na busca de postos de trabalho e para que não


haja a concorrência desleal por um trabalhador que tiver mais recur-
sos, perpetuando a desigualdade econômica e social, não é permitida
a cobrança de percentuais ou quantias fixas de trabalhadores por
conta da realização da sua intermediação. Assim, não é permitida nem
mesmo a criação de cobranças indiretas, como “contas premium”, para
facilitar o acesso ao trabalho de uns em detrimento de outros.3
Entretanto, nem toda plataforma de trabalho é realmente um
marketplace. De fato, as plataformas até aqui citadas diferem muito
de outras que não se contentam em realizar a intermediação, mas
tomam providências para a garantia da qualidade da prestação
do serviço, além de imporem preço e remuneração, acabando por
serem protagonistas no serviço e não meras intermediárias entre
negociantes. Os próprios sites, propagandas e aplicativos diferem
substancialmente das plataformas de intermediação de traba-
lhadores, pois explicitamente oferecem os serviços como deles e
garantem aqueles que prestam. Por exemplo, a empresa Parafuzo
apresenta em seu site da internet: “Nossos serviços: limpeza comer-
cial, limpeza residencial e passar roupa”. E posteriormente informa
que garante a qualidade: “Contamos com ótimos profissionais para

3 Art. 7º, § 1º. A citada convenção não foi ainda ratificada pelo Brasil, mas é
aplicada por conta do art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho, devido à
ausência de regras específicas no direito brasileiro. Em relação à cobrança, há
dispositivo na Lei n. 6.019/1974 que proíbe a exigência de qualquer quantia do
trabalhador, mesmo a título de mediação.

70
garantir o melhor serviço. Mas, se acontecer qualquer problema,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


estamos a sua disposição”. 4 Inclusive essa empresa oferece assina-
tura do serviço, em que se pode, por exemplo, pagar mensalmente
na frequência desejada e receber um desconto. Também nesse tipo
de plataforma você não contrata diretamente o profissional, que é
escolhido e direcionado pela própria empresa.
Assim, verifica-se que plataformas desse tipo nada têm de market­
place: elas anunciam e prestam diretamente determinados servi-
ços, não se adequando ao conceito, que só é incorporado por moti-
vos de retórica para obtenção de resultados práticos. A mesma
coisa acontece com plataformas de entrega de comida, merca-
dorias ou pessoas. São plataformas específicas, que prestam e
garantem determinado serviço, não sendo meros marketplaces.
Elas não ficam adstritas à realização de intermediação eletrô-
nica, como um verdadeiro marketplace: elas interferem decisiva e
intensamente no serviço prestado.
Ainda nesse sentido, em relação a plataformas de transporte
de passageiros, não há como se considerar como marketplace a
empresa que controla pontos do serviço como qualidade de auto-
móveis, exames toxicológicos, abordagem a clientes, exige autori-
zação prévia para serviços, mantém setores de qualidade, fornece
insumos para a prestação de serviços e monitora a prestação des-
tes etc. A Cabify, por exemplo, anuncia oferta de transporte seguro
e de qualidade, com alto controle sobre os motoristas, veículos e a
prestação do serviço de transportes. É isso que a empresa vende
em seu próprio site,5 não se trata de uma intermediação entre
clientes e trabalhadores aleatórios, prometendo inclusive ser uma
empresa de “carbono neutro” em relação ao serviço realizado. A
Uber, por sua vez, chega ao máximo de confessar que grava as
corridas em vídeo para segurança, “para resolver disputas entre
motoristas e passageiros” e para “utilizar reconhecimento fácil
para detectar motoristas distraídos e lembrá-los de manter os
olhos na estrada”,6 ou seja, para controlar a prestação de serviços
pela forma mais básica: vigilância e punição.

4 Disponível em: https://parafuzo.com/. Acesso em: 21 out. 2019.


5 https://cabify.com/pt-BR.
6 Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/11/20/technology/uber-recor
ding-rides-privacy.html. Acesso em: out. 2019.

71
É tática já conhecida de empresas de transporte por plataforma
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

digital, para fins de fuga da legislação fiscal e trabalhista, apre-


sentarem-se como empresas de tecnologia que funcionam na
modalidade de marketplace. O Tribunal de Justiça da Comunidade
Europeia (TJCE), julgando a partir de caso da empresa Uber ocor-
rido na Espanha, decidiu que a Uber era empresa de transporte.7
Da mesma forma, no famoso julgamento da Justiça do Trabalho bri-
tânica acerca da condição jurídica dos trabalhadores da empresa Uber
(Aslam, Farrar & others vs. Uber BV & others), afirmou o magistrado:
É, em nosso juízo, irreal negar que a Uber está no mercado como
um fornecedor de serviços de transportes. O senso comum simples
demonstra o contrário. [...] Além do mais, a argumentação do réu
aqui é, nós achamos, incompatível com o fato incontroverso de que a

7 Parágrafos 39 e 40 do acórdão: “39 A este respeito, resulta das informações


de que dispõe o Tribunal de Justiça que o serviço de intermediação da Uber
assenta na seleção de motoristas não profissionais que utilizam o seu próprio
veículo, aos quais esta sociedade fornece uma aplicação sem a qual, por um
lado, esses motoristas não seriam levados a prestar serviços de transporte e,
por outro, as pessoas que pretendessem efetuar uma deslocação urbana não
teriam acesso aos serviços dos referidos motoristas. Além disso, a Uber exerce
uma influência decisiva nas condições da prestação desses motoristas. Quanto
a este último ponto, verifica-se, designadamente, que a Uber fixa, através da
aplicação com o mesmo nome, pelo menos, o preço máximo da corrida, cobra
esse preço ao cliente antes de entregar uma parte ao motorista não profissional
do veículo e exerce um certo controlo sobre a qualidade dos veículos e dos
respetivos motoristas assim como sobre o comportamento destes últimos,
que pode implicar, sendo caso disso, a sua exclusão. 40 Por conseguinte, há
que considerar que este serviço de intermediação faz parte integrante de um
serviço global cujo elemento principal é um serviço de transporte e, portanto,
corresponde à qualificação, não de ‘serviço da sociedade da informação’ na
acepção do art. 1º, n. 2, da Diretiva 98/34, para o qual remete o art. 2º, alínea
a), da Diretiva 2000/31, mas sim de ‘serviço no domínio dos transportes’,
na acepção do art. 2º, n. 2, alínea d), da Diretiva 2006/123. 41 Além disso,
tal qualificação é corroborada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça
segundo a qual o conceito de ‘serviço no domínio dos transportes’ abrange
não só os serviços de transporte, considerados enquanto tais, mas também
qualquer serviço intrinsecamente ligado a um ato físico de movimentar
pessoas ou mercadorias de um local para outro através de um meio de
transporte [v., nesse sentido, acórdão de 15 de outubro de 2015, Grupo Itevelesa
e o., C168/14, EU:C:2015:685, n. 45 e 46, e parecer 2/15 (Acordo de Comércio
Livre com Singapura), de 16 de maio de 2017, EU:C:2017:376, n. 61]”. Versão
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72
Uber coloca no mercado uma “gama de produtos”. Pode-se pergun-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tar: de quem é a gama de produtos senão da própria Uber? Os “pro-
dutos” falam por si mesmos: eles são uma variedade de serviços de
transporte. O Sr. Aslam8 não oferece essa gama, nem o Sr. Farrar9 ou
qualquer outro motorista. O marketing autoevidente não é feito em
benefício de qualquer motorista individual. Igualmente, de forma
autoevidente, ele é feito para promover o nome da Uber e “vende”
seus serviços de transporte. [...] A noção de que a Uber em Londres
é um mosaico de 30.000 pequenos negócios ligados por uma “plata-
forma” comum é para o nosso juízo ligeiramente ridícula.10

O juiz inglês ainda aponta a inverossimilhança da argumentação


de mera ligação entre dois livres contratantes (motorista e cliente)
porque não há nem mesmo um contrato entre os supostos contra-
tantes: os termos contratuais (chamados “termos de uso”) são (1)
entre motorista e empresa e (2) entre empresa e cliente, separada-
mente, fixados unilateralmente pela intermediária. Incrivelmente
não há qualquer instrumento contratual que vincule um contra-
tante (cliente) e um contratado (prestador de serviços).
Desta forma, não há como considerar como marketplace, ou empresa
de tecnologia, quem presta um serviço específico e não age de
forma meramente instrumental em relação ao negócio ofertado.
Uma plataforma no estilo marketplace é uma instrumentalizadora
da prestação de serviços enquanto que a plataforma específica de
serviços condiciona, regra, realiza e garante os serviços prestados.
Não se pode esconder a realidade por detrás da tecnologia. Colocar
trabalhadores precários para carregar mercadorias não é uma
ideia nova, podendo ser remetida ao século XIX, em que as ruas do
Rio de Janeiro e de Salvador estavam cheias de escravos ou negros
libertos, às vezes intermediados por empresas, para a realização
de transporte de mercadorias e de pessoas. Essa realidade não se
altera se os trabalhadores são contratados por intermédio de um
aplicativo de plataforma. Se formos voltar mais no tempo, havia
aluguel de índios escravizados para carregar gente e mercadoria
no século XVII (GOMES, 2019).

8 Um dos autores da ação.


9 Outro autor da ação.
10 Employment Tribunals (Inglaterra), caso Aslam, Farrar & others vs. Uber BV
& others, tradução livre. Original disponível em: https://www.judiciary.uk/
wp-content/uploads/2016/10/aslam-and-farrar-v-uber-reasons-20161028.pdf.

73
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

Figura 2: Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive. Pretos cangueiros (1841). Acervo
do Instituto Moreira Salles

3 · Trabalho autônomo e relação de emprego nas


plataformas digitais
Devemos neste ponto voltar um pouco a conceitos básicos.
As categorias de trabalho subordinado, também conhecido como
emprego, e de trabalho autônomo foram construídas a partir de
uma diferença básica: o trabalhador subordinado está inserido
na atividade econômica alheia enquanto o autônomo realiza ati-
vidade econômica própria. O trabalhador subordinado, ou empre-
gado, presta trabalho em negócio alheio, enquanto que o segundo
realiza negócio próprio. O empregado é, como o próprio nome já
diz, empregado em negócio alheio, no sentido comum de “utilizado”,
ou seja, o emprego é o fato do empregador empregar ou utilizar o
empregado em sua atividade econômica. Por outro lado, o trabalha-
dor autônomo não é empregado por empreendimento alheio, pois
ele mesmo realiza pessoalmente o seu próprio negócio. O trabalha-
dor autônomo tem sua própria empresa ou empreendimento. Uma

74
empresa, seja ela individual ou coletiva, é aquele empreendimento

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


que assume os riscos da atividade econômica, realizando um
negócio próprio. Um trabalhador autônomo é justamente aquele
que realiza um trabalho individual por conta própria, ou seja,
que realiza negócio próprio em empreendimento por ele mesmo
organizado e estruturado; por sua vez, o empregado não realiza
empreendimento, não tem negócio próprio e apenas se insere na
atividade econômica de outrem ou a ela adere. O trabalhador autô-
nomo aufere os rendimentos da sua própria atividade econômica,
enquanto que o empregado recebe uma remuneração fixa ou vari-
ável estipulada por tempo ou produção pelo empregador. O empre-
gado recebe salário, presta serviços de natureza não eventual sob
a dependência do empregador, que assume os riscos da atividade
econômica e admite, assalaria e dirige a prestação de serviços. O
trabalhador autônomo, por sua vez, não é admitido, assalariado e
nem é dirigido em sua prestação de serviços.
Assim, podemos retirar duas dimensões centrais da autonomia
característica do trabalhador autônomo: 1) ele organiza e geren-
cia seu próprio negócio; 2) ele organiza e gerencia o trabalho
dentro do seu próprio negócio. O equívoco na identificação do
trabalho autônomo muitas vezes está na desconsideração de
uma dessas dimensões.
Na primeira dimensão, o trabalhador organiza e realiza seu próprio
negócio. De fato, a autonomia organizativa é própria do sistema capi-
talista, em que aquele que desenvolve uma atividade econômica a
organiza da forma que melhor lhe aprouver. Assim, o preço e as con-
dições dos contratos travados são fixados pelo próprio empreende-
dor. Ele não somente impõe os valores da troca, ou seja, seu preço,
como a forma de recebê-los. Ele não se insere em negócio alheio,
porque nesse caso seria empregado. O trabalhador autônomo –
chamado em alguns países, como Estados Unidos e França, de inde-
pendente – por definição não é dependente de negócio alheio, mas
presta serviços para a sua própria clientela. Assim, o trabalhador
autônomo decide para quem vai prestar serviços a partir da sua
cartela de clientes e determina seu preço e condições, como prazos,
além de definir os meios pelos quais o serviço será prestado.
Na segunda dimensão, o trabalhador organiza o trabalho dentro
do seu próprio negócio. São decorrentes da organização do seu

75
próprio negócio a direção e a distribuição do trabalho necessário
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

para a prestação dos serviços. Se não há heterodireção, ou seja, se o


trabalhador não está sob as ordens de ninguém (sub-ordinare), não
somente impõe o seu próprio ritmo como tem o poder de distribuir
o trabalho para outras pessoas que lhe convierem. É decorrente
dessa condição a possibilidade de se fazer substituir por outros
trabalhadores para a consecução de seu negócio, bem como dizer
quando e como irá realizar seu trabalho.
Dessa forma, não pode alguém ser considerado trabalhador autô-
nomo quando a fixação de preços é realizada por terceiros, como
acontece em algumas plataformas. Do mesmo modo, a definição
da remuneração pela prestação de serviços, ou seja, o percentual
que ficará com o trabalhador, não pode de jeito algum ficar a cargo
da plataforma, sob pena de descaracterizar completamente a auto-
nomia. Ainda mais clara fica a ausência de autonomia quando a
forma de cálculo da remuneração é realizada de forma opaca pela
empresa. Essa falta de independência também ocorre quando há
exigência ou padronização dos meios de realização da atividade
econômica (por exemplo, das condições do automóvel, nos casos de
plataforma de transporte de pessoas; ou do uniforme, em relação a
plataforma de transporte de mercadorias ou comida). As condições
contratuais, como modo de pagamento (por exemplo, em dinheiro
ou cartão), devem ficar a cargo exclusivo do trabalhador para ele
ser considerado autônomo.
Além disso, o trabalho deve ser realizado livre de qualquer tipo
de direcionamento da atividade laboral. O trabalhador autônomo
deve decidir se pode se fazer substituir por outro para cumprir
seus fins. O verdadeiramente autônomo deve conhecer as condi-
ções de prestação de serviço antes de aceitar a contratação, não
havendo como entender possível, por exemplo, somente saber o
destino após aceitar a corrida, no caso de plataforma de trans-
porte. Seria a mesma coisa que a um marceneiro somente pudes-
sem ser revelados a quantidade, a qualidade e o preço dos armá-
rios a serem por ele confeccionados após aceitar a encomenda de
um contratante. Da mesma forma, a autonomia na prestação dos
serviços em uma plataforma de transporte de pessoas somente
poderá existir se o motorista puder negociar as condições de
prestação com o passageiro, inclusive quanto ao trajeto. Além
disso, a avaliação do serviço não pode ser de interesse único da

76
plataforma: os trabalhadores deveriam, para serem considerados

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


autônomos, ser os destinatários diretos da avaliação, tendo acesso
às informações da nota dada (hora, local e cliente). Também não
há como considerar autônomo aquele que não tem nem acesso aos
dados básicos do cliente, como nome e telefone, pois a base do tra-
balho autônomo é o fortalecimento e o progresso do seu negócio
pela formação de clientela.
Fica claro que as plataformas criaram as figuras de trabalhadores
autônomos sem autonomia e independentes sem terem seu próprio
negócio. E devemos constatar que isso não é somente nas platafor-
mas: cresce de maneira generalizada na nossa sociedade o número
de autônomos somente no nome, com o fim de fuga da legislação
em geral. São falsos empreendedores, que não formam negócio por
não terem clientela e por isso não têm qualquer chance de pros-
perar. O verbo empreender afasta-se de sua acepção verdadeira de
realização de atividade econômica própria para se tornar sinônimo
de trabalhar sem direitos em negócio alheio.
Alguns apresentam elementos novos para a caracterização da rela-
ção de emprego que simplesmente não constam na lei. Exemplo
disso é a criação do requisito da exclusividade para a caracteriza-
ção da relação de emprego. O argumento de certas plataformas é
que esses trabalhadores não são empregados, pois podem prestar
serviços a várias empresas ao mesmo tempo. Ora, a exclusividade
nunca foi requisito da relação de emprego. Ao revés, a existência
de vínculo de emprego simultâneo com diversas empresas é e
sempre foi algo corriqueiro em relação a várias profissões, como
as de médico, de enfermeiro e de professor. A lei, inclusive, prevê
regras para a existência de multiplicidade de vínculos, por exemplo
o art. 138 da CLT, que proíbe ao empregado que trabalhe durante
seu período de férias, exceto em decorrência de outro contrato de
trabalho em vigor. Recentemente, a introdução do trabalho inter-
mitente na legislação reforçou esse entendimento pela previsão
expressa da possibilidade de existência simultânea de vínculos de
emprego.11 Assim, nada impede a vinculação empregatícia de tra-
balhador simultaneamente com várias plataformas.

11 Art. 452-A, § 5º, da CLT: “O período de inatividade não será considerado


tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a
outros contratantes”.

77
Outra dessas considerações sem base legal ou mesmo conceitual
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

é a identificação da subordinação com o cumprimento de horários


rígidos. Ora, a rigidez de horários nunca foi exigência para a carac-
terização da relação de emprego. A subordinação, como vimos, é
estar sob a direção de outrem, submetido em negócio alheio que
estipula a forma de trabalho e seu preço e se apropria de seu resul-
tado. A forma de organização do trabalho fica, assim, a critério do
empregador, que pode decidir se o trabalho será verificado por
tempo ou por produção, por exemplo. A existência de contratos de
trabalho em que há a estipulação de horários flexíveis para a pres-
tação de serviços pelo trabalhador data de antes da Consolidação
das Leis de Trabalho, bem como a determinação de metas em vez
de tempo de trabalho.
O teletrabalho é modelo recente de trabalho por produção, previsto
expressamente na legislação como passível de não aplicação das
regras sobre a duração de trabalho, porém as exceções do art. 62
da CLT, como o trabalho externo, existem desde a redação original.
O trabalho em domicílio, ou à distância, nunca descaracterizou o
vínculo de emprego, como expressamente prevê a lei no caput do
art. 6º da CLT, e não há fixação de horário de trabalho nesses casos.
A determinação de jornadas máximas na legislação, como o nome
já diz, é mera delimitação de um teto além do qual não podem ser
estipuladas contratualmente quantidades de tempo à disposição
do empregador. Isso não impede, como nunca impediu, a pactuação
de cargas horárias menores. Além disso, de há muito existe a con-
tratação de trabalhadores horistas, que recebem de acordo com o
tempo de trabalho efetivamente cumprido, apresentando assim fle-
xibilidade de horário. É totalmente contrário à lei e à própria defini-
ção de empregado e empregador tentar aferir a existência da rela-
ção de emprego pela rigidez ou pela flexibilidade na prestação de
trabalho. Perguntas como “o trabalhador tinha hora para entrar?”,
“o trabalhador tinha hora para sair?” e “o trabalhador poderia cum-
prir tarefas de seu interesse durante o horário de trabalho, como
ir ao médico?” não são somente anacrônicas como não correspon-
dem ao ordenamento jurídico. Elas são baseadas em um modelo
antigo típico, mas não único, de arranjo empregatício, originado
de um imaginário fordista que, apesar de prevalente, não é central
às concepções de emprego, empregado e empregador. Outro ponto
importante a ser salientado é a tentativa de descaracterizar a rela-
ção de emprego pela possibilidade de o trabalhador negar a oferta
de trabalho. Contudo, há sim, em algumas plataformas, o controle
78
tanto dos horários quanto da possibilidade de o trabalhador negar

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


chamados. Inicialmente, não há como entender que um motorista
tenha a real possibilidade de recusa se ele não souber qual é o ser-
viço proposto e seu respectivo valor.12 Ora, em algumas platafor-
mas, o motorista simplesmente não sabe o endereço de destino e o
valor da corrida antes de aceitá-la.13 Ademais, em várias platafor-
mas, verificou-se que o não atendimento de chamadas gera puni-
ções,14 desde diminuição da média da avaliação15 e perda de bônus,16
passando por suspensões,17 cursos de reciclagem,18 advertências
por escrito até dispensas pelo meio de exclusão da plataforma.19
Em relação ao horário de trabalho, as empresas costumam man-
ter os trabalhadores na ativa por meio da precificação, em que a
imposição de um pagamento propositalmente baixo fará com que
o trabalhador fique ativado pelo tempo que quiserem. A precifica-
ção20 geralmente calcula, por meio dos dados coletados, e impõe,
por meio do algoritmo, um valor baixo de ganho para o trabalha-
dor, de aproximadamente 1,2 a 1,4 salários-mínimos por período de
44 horas de trabalho semanais. Ademais, certas empresas ainda
organizam incentivos na forma de promoções que definem perí-
odos mínimos de horas de trabalho e número máximo de recusas
em determinado dia ou semana para receber certo valor de bônus.21

12 Cf. https://www.nsctotal.com.br/colunistas/anderson-silva/uber-diz-que-mo
torista-do-aplicativo-nao-pode-perguntar-destino-de.
13 Cf. https://uberbra.com/destino-do-passageiro/.
14 Cf. https://ojs.library.queensu.ca/index.php/surveillance-and-society/article/
download/12911/8493/.
15 Cf. https://www.buzzfeednews.com/article/pranavdixit/uber-ola-drivers-can
cel-india.
16 Cf. https://www.uber.com/pt-BR/blog/como-funciona-taxa-aceitacao-cance
lamento/.
17 Cf. https://uberbra.com/motivos-punicoes-uber/.
18 Cf. https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2019/08/21/o-que-uber-99-e-
cabify-realmente-fazem-com-motoristas-que-tem-nota-baixa.htm.
19 Cf. https://www.theguardian.com/technology/2019/may/31/uber-to-ban-riders
-with-low-ratings.
20 Cf. https://www.conjur.com.br/dl/juiz-reconhece-vinculo-emprego-uber.pdf.
21 https://www.reclameaqui.com.br/cabify/bonus-para-motorista_cUzVrOHa
JwuymeaW/.
79
Contudo, mesmo se o trabalhador tivesse essa possibilidade de
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

recusa, isso não equivaleria a sua desconsideração como empre-


gado ou à desnecessidade de proteção. Ora, o trabalhador inter-
mitente, típico trabalhador por demanda, por expressa previsão
legal, pode recusar chamadas de trabalho, mantendo a condição de
empregado. O trabalhador avulso, da mesma forma, pode recusar
trabalhos propostos, sendo alvo de toda a proteção trabalhista. O
trabalhador por demanda, como é o caso dos trabalhadores em pla-
taforma, tem justamente por característica a mensuração de sua
remuneração pela quantidade móvel de tempo ou de tarefas que se
predispõe a realizar. É um trabalhador por produção: ganha con-
forme produz ou trabalha.
Aqui se deve enfrentar outro mito. Está inculcado no senso comum
que quem aufere ganhos a partir do que produz é um trabalhador
autônomo ou independente. Ora, se produzir for sinônimo de tra-
balhar, o trabalhador por produção, que, como já dissemos, utiliza
um modo de aferição do trabalho bem antigo, era um empreende-
dor e não sabia. O trabalhador por produção, seja ele um cortador
de cana-de-açúcar, seja um operário fabril, seja um vendedor de
loja, aufere ganho de um percentual sobre o resultado de seu tra-
balho. Se produz mais, ganha mais, se produz menos, a remune-
ração é menor. Isso não o caracteriza, por óbvio, de forma alguma,
como empreendedor. A “produção” em atividade econômica alheia,
por definição, é trabalho por conta de outrem, ou seja, é emprego.
Marx (2013, p. 627) traz que esse tipo de trabalho, por produção
ou peça, remonta ao século XIV na Inglaterra e na França e que
também, durante a revolução industrial, causou o erro de alguns
em acreditar que descaracterizaria trabalho subordinado, o que
reputa um erro, pois o salário por peça seria somente uma forma
modificada do salário por tempo. Conforme Marx (2013, p. 623), o
salário por produção “proporciona ao capitalista uma medida ple-
namente determinada para a intensidade do trabalho” e que, como
é possível esse controle de qualidade e intensidade pela própria
forma de aferição do salário, “esta torna supérflua grande parte da
supervisão do trabalho” (MARX, 2013, p. 624). Esse tipo de contrato,
segundo Marx (2013, p. 624), “facilita, por um lado, a interposição
de parasitas entre o capitalista e a assalariado, o subarrendamento
do trabalho (subletting of labour)”, caracteristicamente denomi-
nado de sweating-system, podendo ocorrer também a exploração
do trabalhador pelo trabalhador, na forma de subempreitadas.

80
Também já salientava Marx (2013, p. 624-625) que tal tipo de con-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


trato intensificaria o trabalho pelo próprio interesse do trabalha-
dor em ganhar mais, o que também o levaria a querer prolongar
a sua jornada laboral. O trabalhador levaria a sério a aparência de
que estaria sendo pago por um produto entregue, e não pelo uso
de sua força de trabalho (MARX, 2013, p. 629). Marx (2013, p. 627),
inclusive, entendia que “o salário por peça é a forma de salário mais
adequada ao modo de produção capitalista”.
Um último ponto deve ser tratado, mesmo que rapidamente: aque-
les que negam a possibilidade de existência de vínculo de emprego
entre trabalhadores e plataformas de serviços deixam sempre de
observar a perspectiva do poder empregatício do empregador,
constante do art. 2º da CLT. O poder empregatício tem diversas
facetas ou dimensões: poder diretivo (ou organizacional), poder
regulamentar, poder fiscalizatório ou de vigilância e poder dis-
ciplinar (DELGADO, 2018, p. 786-794). Ora, além de dirigirem o
trabalho realizado, as empresas-plataforma de prestação de ser-
viços costumam regulamentar todo o serviço por meio da impo-
sição dos “termos e condições de uso”, fiscalizam toda a prestação
de serviços por meio eletrônico e exercem o poder disciplinar por
meio de advertências, suspensões e dispensas, tal qual ocorre em
qualquer outra relação de emprego. Portanto, se for encontrado o
poder empregatício em todas as suas facetas, não há como negar a
condição de empregador.

4 · Conclusão
Os mitos invadem a sociedade em todos os seus aspectos, e não
poderia ser diferente em relação ao direito do trabalho. As empre-
sas-plataforma, que podem ser consideradas desenhos digitais de
concepções ideológicas – como as de livre mercado e livre contra-
tação de homens e mulheres, entendidos como empresas em con-
corrência –, agem no mundo para a implementação dessas ideias
de forma afastada da realidade e do ordenamento jurídico. Tenta-se
alterar a realidade pela forma, mudar a coisa pelo nome. Toda ten-
tativa nesse sentido sempre foi vã, a história nos mostra isso.
As plataformas apresentam uma nova forma de organização do
trabalho, mas não têm a capacidade de alterar a realidade das
coisas. Uma pessoa que se ativa em uma plataforma para buscar

81
trabalho automaticamente transforma essa empresa em inter-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

mediadora da mão de obra. O trabalhador continua sendo traba-


lhador, não importando o nome que se dê a ele. Se essa empresa
controla a prestação desses serviços, e o trabalhador não tem
nenhuma autonomia em relação ao seu suposto negócio e modo de
trabalhar, ela é empregadora, e o trabalhador é empregado, nada
alterando o fato de o instrumento de intermediação ser digital, de
a empresa se dizer do ramo tecnológico e rotular o trabalhador de
parceiro ou termo similar.
Um trabalhador, montado em uma bicicleta de aluguel, carregando
uma mochila pesada nas costas a serviço de plataforma, para aten-
der a contrato desta com um restaurante para a entrega de comida
na casa de pessoas em troca de um módico salário, nunca será um
empreendedor, diga o que disser o discurso ideologizado dos pro-
prietários e investidores da plataforma, visão essa que às vezes
cega agentes públicos que deveriam ter um olhar mais atento à
realidade que os rodeia.
É preciso voltar aos conceitos e descer aos fatos para poder ver
e proclamar: o rei está nu! (ANDERSEN, 1995, p. 16-20). Ele está
realmente nu, tanto como estava na clássica história quanto atual-
mente em relação à veste de empresa de tecnologia. Para ver, basta
ter os olhos desencantados como o da criança de Andersen.

Referências
ANDERSEN, Hans Christian. A roupa nova do rei. In: ASH, Russell;
HIGTON, Bernard (Compilação). Histórias maravilhosas de Andersen. Trad.
Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995. p. 15-21.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 17. ed. rev. e


ampl. São Paulo: Ltr, 2018.

GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal


até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

KENNEY, Martin; ZYSMAN, John. The rise of the platform economy. Issues
in Science and Technology. National Academies of Sciences, Engineering
and Medicine, The University of Texas at Dallas- Arizona State University,
32, n. 3, p. 61-69, Spring 2016.

82
LANGLEY, Paul; LEYSHON, Andrew. Platform capitalism: the intermediation

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


and capitalisation of digital economic circulation. Finance and Society, United
Kingdom, 3 (1), p. 11-31, august 2016.

MARX, Karl. O capital: livro I. Tradução Rubens Enderle. São Paulo:


Boitempo, 2013.

SIGNES, Adrián Todolí. El trabajo en la era de la economía colaborativa.


Valencia: Tirant lo blanch, 2017.

83
Gestão algorítmica e o futuro do trabalho*

Jeremias Adams-Prassl
Professor de Direito da Magdalen College and Faculty of
Law, Universidade de Oxford.

Resumo: Os rápidos avanços na automação estão revolucionando


os mercados de trabalho. Este artigo se concentra em um aspecto
comparativamente negligenciado dos debates sobre a automação e
o futuro do trabalho: a ascensão da gestão algorítmica, possibilitada
por formas até então inviáveis de coleta e processamento de dados.
Como o processo de tomada de decisão orientado pela inteligência
artificial está rapidamente se tornando um elemento importante da
maioria das funções do empregador, desde a contratação de trabalha-
dores por meio do monitoramento do desempenho diário, os mode-
los recebidos da regulamentação legal das relações de trabalho são
confrontados com desafios complexos – alguns dos quais, incluindo
a responsabilidade da gestão por decisões-chave no local de trabalho,
podem exigir uma revisão fundamental das normas existentes.
Palavras-chave: Automação. Inteligência artificial. Gestão algorítmica.
Abstract: Rapid advancements in automation are revolutionising
labour markets. This paper focuses on a comparatively overlooked

* A presente contribuição se baseia em um trabalho concebido inicialmente


para uma edição especial da Comparative Labor Law and Policy Journal, sob a
orientação de Valerio De Stefano. Agradeço o financiamento do Economic and
Social Research Council, Grant n. ES/S010424/1, e agradeço aos participantes
do Seminário da OIT sobre Automação e o Futuro do Trabalho, e dos workshops
nas Universidades Hebraicas de Jerusalém, UPF de Barcelona e Universidade
de Viena, pela discussão e pelos comentários, e a Chen Chen pela inestimável
assistência à pesquisa. Estou particularmente grato ao Professor Abi Adams-
-Prassl pelas nossas discussões em curso sobre a economia da automação
do mercado de trabalho, que são centrais para o meu pensamento sobre este
tema. Aplicam-se as habituais cláusulas de exoneração de responsabilidade.

85
aspect of debates surrounding automation and the future of work:
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

the rise of algorithmic management, enabled by hitherto infeasi-


ble forms of data collection and processing. As AI-driven decision-
-making is quickly becoming an important element of most employer
functions, from hiring workers through to daily performance mon­
itoring, received models of the legal regulation of employment rela-
tionships are faced with complex challenges – some of which, includ­
ing notably management accountability for key workplace decision,
may require a fundamental rethink of existing norms.
Keywords: Automation. Artificial intelligence. Algorithmic
management.

1 · Introdução
O futuro do trabalho é um fascínio antigo: a cada nova onda de ino-
vação tecnológica surge uma série de questões espinhosas sobre
seu impacto no mercado de trabalho. Os postos de trabalho serão
substituídos pela nova tecnologia? Caso contrário, como serão refor-
mulados? Quais são as implicações mais amplas tanto para os tra-
balhadores individuais quanto para a regulamentação jurídica em
geral? Os recentes avanços tecnológicos trouxeram de novo à tona
muitas destas questões, nomeadamente no contexto da gig economy,
possibilitada por celulares equipados com processadores poderosos,
ligações rápidas à internet e navegação por satélite de alta precisão.
Os desafios do mercado de trabalho inerentes a um mundo de inter-
mediação laboral baseada em plataformas são consideráveis, desde a
classificação dos trabalhadores e a proteção coletiva dos direitos até
as disposições em matéria de saúde e segurança, impostos e segu-
rança social. Essas questões têm estado, com razão, na vanguarda
da atenção dos tribunais e dos decisores políticos, tanto em nível
interno como em nível internacional.
Ao mesmo tempo, porém, uma exploração detalhada da gig economy
logo encontra um paradoxo de inovação fundamental. Embora seja
indubitavelmente verdade que os elementos (tecnológicos) funda-
mentais subjacentes ao crescimento da gig economy são fenôme-
nos completamente novos, seu impacto na organização do traba-
lho pode ser caracterizado com maior precisão com a continuação
lógica e a extrapolação das tendências de longa data do trabalho
atípico, como explorado num recente relatório da OIT:

86
[...] ao longo das últimas décadas, tanto nos países industria-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


lizados como naqueles em desenvolvimento, tem havido uma
mudança acentuada do emprego normal para o emprego atí-
pico [...] [incluindo] emprego por prazo determinado, trabalho a
tempo parcial, intermediação de empresa de trabalho temporá-
rio e outras relações de trabalho com múltiplas partes, relações
laborais dissimuladas e trabalho por conta própria dependente.
(INTERNATIONAL LABOUR OFFICE, 2016).

Será que as mesmas conclusões são válidas para a ascensão da


Inteligência Artificial (IA) em geral e para a implantação de algorit-
mos de autoaprendizagem cada vez mais sofisticados? Este artigo
argumenta que não: pelo menos algumas das mudanças que esta
última vaga de automação trará ao mundo do trabalho requerem um
repensar fundamental dos elementos-chave do aparelho tradicional
do Direito do Trabalho e da regulação do mercado de trabalho. Isso
não se deve, no entanto, ao tão apregoado rápido deslocamento do
emprego e à consequente necessidade de combater o emprego tec-
nológico em massa. Em vez de retirar os empregos dos trabalhado-
res, sugere-se que os avanços na tomada de decisão orientada pela
IA irão, em primeiro lugar e acima de tudo, alterar as rotinas diárias
dos seus gestores, aumentando e eventualmente substituindo o con-
trole diário humano sobre o local de trabalho: estamos a assistir ao
aparecimento do chefe algorítmico.

2 · Automatizar as decisões dos empregadores


Muito além dos debates habituais sobre automação e substituição
de emprego, o aumento da digitalização em geral, e a IA em par-
ticular, já está começando a ter grande impacto nos modelos de
emprego existentes: desde a redução e o monitoramento dos cus-
tos de transação e a remodelação das assimetrias de informação
até o aumento da polarização do emprego, os impactos serão pro-
fundos (ADAMS, 2018, p. 349).1
Em observação notavelmente premonitória, David Autor, em 2001,
explorou as consequências do “cabeamento do mercado de traba-
lho” (AUTOR, 2001). No entanto, em lugar de causar desemprego

1 Este artigo se baseia numa série de artigos encomendados para uma


edição especial da Oxford Review, explorando o impacto da tecnologia no
mercado de trabalho.

87
em massa, parece que a consequência imediata da automação tem
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

sido um “(re)cabeamento da empresa”: como os custos de coleta e


processamento de dados continuam a cair, os empregadores são
cada vez mais capazes de utilizar tecnologia para monitorar – e
controlar – o local de trabalho em um grau até então inimaginável.
O que significa isso na prática? Ben Waber, presidente de uma
das primeiras start-ups ativas no setor, escreveu extensivamente
sobre a ascensão da “análise de pessoas”, ou seja, “como a tecnolo-
gia de sensoriamento e o big data sobre as organizações em geral
podem ter efeitos massivos sobre a forma como as empresas são
organizadas”. Desde mudar o organograma até alterar as áreas de
café, nenhum aspecto das organizações será intocado pela aplica-
ção generalizada desses dados (WABER, 2013, p. 178). Além disso,
o impacto da gestão de recursos humanos orientada por dados,
argumenta ele, não será de modo algum limitado às grandes cor-
porações (WABER, 2013, p. 191). Embora a visão de Waber da aná-
lise universal de pessoas não tenha (ainda) sido concretizada, as
tendências subjacentes identificadas em seu trabalho estão rapida-
mente a se generalizar. Já em 2015, a The Economist Intelligence Unit
destacou o “crescimento explosivo de TI de big data em RH”, iden-
tificando “grandes investimentos em recursos de TI para apoiar a
análise/planejamento da força de trabalho” (STAHL, 2015).
A primeira, e talvez a mais dura, ilustração da gestão algorítmica
pode ser vista na gig economy, com plataformas que dependem de
mecanismos de avaliação sofisticados para gerenciar sua força de
trabalho. Projetado, à primeira vista, para fornecer aos consumido-
res e trabalhadores um feedback preciso sobre outros provedores
de plataforma, rapidamente se tornou evidente que as avaliações
tinham pouco valor informativo, dada a sua distribuição agrupada
(SLEE, 2015). Em vez disso, como argumentou Tom Slee, os algo-
ritmos de reputação foram concebidos para exercer controle sobre
as forças de trabalho das plataformas, operando como “o chefe do
inferno” (SLEE, 2015, p. 101).
Em vez de meramente sinalizar a qualidade, então, o objetivo real
dos algoritmos de classificação na gig economy era exercer o con-
trole do empregador de inúmeras maneiras. O trabalho baseado
em plataformas, portanto, serviu como um laboratório inicial para
o desenvolvimento de ferramentas de gerenciamento algorítmico.
Hoje, por outro lado, ele se espalhou por todos os setores e locais

88
de trabalho. Ao contrário das previsões futuristas, o advento do

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


gerenciamento algorítmico não é algo sobre o qual possamos espe-
cular: ele já está ocorrendo.
As start-ups e os fornecedores de software estabelecidos compe-
tem na oferta de programas informáticos que prometem apoiar e,
potencialmente, automatizar a tomada de decisões de gestão em
todas as dimensões do trabalho, incluindo todo o espectro socioe-
conômico dos locais de trabalho, bem como todo o ciclo de vida da
relação de trabalho: seja em fábricas ou escritórios, universidades
ou empresas de serviços profissionais, o exercício de funções de
empregador desde a contratação e a gestão de trabalhadores até o
término da relação de trabalho já pode ser automatizado.2
Quando se trata do início da relação de emprego, por exemplo, o
software orientado por IA agora permite que potenciais empre-
gadores realizem uma extensa triagem da atividade online do
candidato; a provedora de software FAMA promete rastrear a
presença na internet dos trabalhadores em uma amplitude e pro-
fundidade sem precedentes.3
A implantação de algoritmos de recrutamento não se limita à sele-
ção em segundo plano: todo o processo, desde a análise de currí-
culos até a classificação de candidatos, a realização de ofertas e a
determinação de níveis salariais, pode ser automatizado – e cada

2 Em trabalhos anteriores, este autor definiu uma “função” de empregador como


uma das várias ações que os empregadores têm o direito ou a obrigação de
tomar como parte do conjunto de direitos e deveres abrangidos pelo âmbito
do contrato de trabalho por tempo indeterminado (PRASSL, 2015, p. 24-25). Ao
analisar os testes estabelecidos do estatuto de emprego, tais como controle,
dependência econômica ou reciprocidade de obrigações para essas funções de
empregador, existem infindáveis mutações possíveis de diferentes cenários
factuais, tornando a categorização puramente com base em decisões passadas
de assistência limitada. O resultado desta análise de conceitos subjacentes a
diferentes padrões de fatos, em vez dos resultados reais numa base casuística,
é o seguinte conjunto de funções, com a presença ou ausência de fatores
individuais a tornarem-se menos relevantes do que o papel específico que
desempenham num determinado contexto – o “princípio da equipolência”
(Äquivalenzprinzip) (NOGLER, 2009, p. 463). Embora essa análise tenha sido
desenvolvida principalmente com base nas jurisdições de Common Law,
trabalho subsequente sugere que a abordagem é capaz de ser desenvolvida de
forma semelhante nas jurisdições de Civil Law (ver, p. ex., PRASSL; RISAK, 2016).
3 Disponível em: https://www.fama.io/about.

89
vez mais –, com consequências às vezes profundamente proble-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

máticas: no início de 2019, a mídia sugeriu que a Amazon tinha


sido forçada a abandonar sua ferramenta de recrutamento auto-
matizado depois que o algoritmo de autoaprendizagem começou
a rejeitar sistematicamente candidatos femininos para cargos de
engenharia dentro da empresa (OPPENHEIM, 2018).
Uma vez que os funcionários são contratados, eles podem se encon-
trar sob o olhar atento do chefe algorítmico: o gerenciamento diá-
rio do mercado interno da empresa (outra função central do empre-
gador) pode ser automatizado de forma similar e em grau surpre-
endente. Um dos fornecedores mais comentados nesse contexto é
a Humanyze, uma empresa que sai do trabalho de Ben Waber e de
seus colegas no MIT. A fim de facilitar a coleta de informações no
local de trabalho, a empresa desenvolveu um crachá para ser usado
pelos empregados durante seus dias de trabalho. Embora o crachá
Humanyze não meça ou grave conteúdo, atividade na web ou ativi-
dades pessoais fora do escritório, ele oferece “sensores para medir
se o participante está em movimento ou ainda sua proximidade
com outros usuários e faróis, se o participante está falando ou não,
e a frequência e duração das interações presenciais”. No entanto, os
empregados têm a certeza de que: “Não, o crachá Humanyze não
rastreia [você] no banheiro”. 4
A informação assim recolhida é então analisada “para descobrir
redes de comunicação informais”. Essas redes de comunicação são
fundamentais para entender como o trabalho é feito em sua equipe
e dentro de sua organização. A gerência
[...] não precisa mais depender de pesquisas ou observações para
entender o que está funcionando (e o que não está). As métricas
[da Humanyze] quantificam os fatores anteriormente não mensu-
ráveis para o sucesso da equipe, como a colaboração e a comuni-
cação, que são essenciais para a produtividade e o desempenho.5

O software de análise da força de trabalho, finalmente, pode até ser


usado para exercer o poder do empregador de encerrar a relação
de trabalho. Quando confrontada com alegações de despedimentos
retaliatórios em resposta a uma atividade sindical concertada num

4 Disponível em: https://www.humanyze.com/resources/data-privacy/.


5 Disponível em: https://www.humanyze.com/solutions#process.

90
dos seus armazéns, a Amazon revelou o uso extensivo da gestão

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


algorítmica: o emprego do reclamante tinha sido rescindido por
falta de produtividade, conforme determinado por um algoritmo
neutro. A gestão local de armazéns, segundo a defesa da empresa,
não tinha tido nenhuma informação, controle ou compreensão dos
detalhes do sistema implantado (LECHER, 2019).

3 · Concentrando controle
As limitações de espaço do presente estudo proíbem maior explo-
ração de como o exercício de toda a gama de funções do emprega-
dor pode ser – e tornou-se – automatizado pelo advento da análise
de pessoas. O quadro que emerge da rica literatura sobre a questão
é claro:6 a automação da gestão permite o exercício de um controle
até agora incrivelmente granular sobre todos os aspectos do dia de
trabalho. No entanto, isso não é apenas um retorno ao taylorismo
(digital): os tipos de dados considerados, os padrões probabilísticos
utilizados na autoaprendizagem e as novas formas de exercício do
controle diferem fundamentalmente das estruturas tradicionais
de gestão em torno das quais o Direito do Trabalho foi concebido.
Uma combinação de coleta de dados em tempo real e análise de
aprendizagem por máquina permite que os empregadores monito-
rem e direcionem sua força de trabalho de forma contínua – enquanto
dispersam a responsabilidade pelos algoritmos. Impulsionadas por
parâmetros imprevisíveis e em rápida evolução, as decisões de gestão
tornam-se difíceis de registrar, ou mesmo de explicar. As restantes
seções deste artigo exploram o consequente paradoxo de controle/
responsabilidade, olhando primeiro para a concentração de controle,
antes de se voltar para a difusão de responsabilidade.

3.1 · Dados
O primeiro elemento na ascensão da análise de pessoas é a coleta
de quantidades inimagináveis de dados: informações de granu-
laridade fina sobre funcionários individuais. Existem três gran-
des fontes de dados no local de trabalho moderno: informações
digitais, sensores e uma tendência crescente de autocontrole de

6 Ver, p. ex., Ales et al. (2018).

91
funcionários. No que diz respeito à informação digital, em pri-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

meiro lugar, um grande número de fornecedores oferece soluções


de software que permitem aos empregadores capturar as ativida-
des digitais dos empregados, desde registros de teclas até capturas
de tela feitas em intervalos regulares (mas aleatórios).7 As informa-
ções sobre chamadas telefônicas, e-mails e outros canais de comu-
nicação podem ser igualmente gravadas. Mesmo quando a verda-
deira natureza dessas comunicações não é divulgada ou analisada,
os chamados “metadados” (por exemplo, a duração e a frequência
das chamadas entre indivíduos específicos ou a dimensão e a data
registrada nos anexos de correio eletrônico enviados a destinatá-
rios externos) podem ser facilmente capturados.
Além dessas migalhas digitais, sensores cada vez mais sofisticados
(como o crachá da Humanyze abordado na seção anterior) permi-
tem a captura de informações físicas: a Uber foi pioneira na utiliza-
ção dos iPhones dos seus condutores para medir a rapidez com que
os indivíduos aceleram e (ou) partem, capturando, assim, padrões
de condução suaves e abruptos.8 A vigilância, crucialmente, não
se limita ao monitoramento imposto pelos empregadores: seja
por meio da utilização de rastreadores de fitness ou de aplicativos
de saúde nos nossos telefones, existe uma tendência crescente
de automonitoramento ou autorrastreamento, cujos resultados
podem ser facilmente combinados com dados coletados no local de
trabalho (NAFUS; NEFF, 2016).
Para além da enorme quantidade de informação que pode ser cap-
turada, o recurso a essas fontes suscita duas outras preocupações:
a primeira é que a fronteira tradicional entre o local de trabalho e
a vida privada dos indivíduos está sendo rapidamente quebrada. A
informação sobre as atividades de fim de semana de um indivíduo
pode ser facilmente combinada com medidas de produtividade da
manhã de segunda-feira, revelando padrões que vão muito além das
preocupações tradicionais dos empregadores. Em segundo lugar,
mesmo nos casos em que a informação é recolhida e armazenada
de forma anonimizada, uma vez que a informação está cada vez
mais organizada em formatos legíveis por máquina, os conjuntos

7 Disponível em: https://support.upwork.com/hc/en-us/articles/211068518-Use


-Your-Work-Diary.
8 Disponível em: https://eng.uber.com/telematics/.

92
de dados de diferentes fontes podem – pelo menos em princípio e

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


sujeitos à legislação em matéria de consentimento e privacidade
no tratamento de dados em jurisdições como a União Europeia –
ser facilmente combinados para criar grandes bases de dados dos
trabalhadores e – de novo, pelo menos em princípio – identificar
rapidamente as pessoas numa empresa.

3.2 · Processamento
Gravar e organizar grandes quantidades de dados por si só não
é suficiente, no entanto: a chave para o crescimento da análise de
pessoas é a disponibilidade de ferramentas cada vez mais pode-
rosas para processar e analisar o que foi capturado. A ascensão
da inteligência artificial em geral, e da aprendizagem automática
em particular, tornou-se objeto de intensa discussão em debates
jurídicos e políticos para além do âmbito do presente inquérito.
É importante notar que a inteligência artificial (do tipo domain-
-specific) não é um conceito novo, ou mesmo um novo termo.9
Historicamente, no entanto, a tecnologia estava restrita aos cha-
mados “sistemas peritos”, em que uma série de decisões foi codi-
ficada em uma complexa árvore de decisão.10
Mais recentemente, o advento de grandes conjuntos de dados e
as quedas precipitadas no custo do poder de processamento ali-
mentaram o aumento da autoaprendizagem – análises probabi-
lísticas de grandes conjuntos de dados, confiando em modelos
estatísticos sofisticados para detectar padrões ou correlações nos
dados (POLSON; SCOTT, 2018). Esse é um passo crucial para nos
afastarmos de nossa compreensão tradicional dos algoritmos: o
aprendizado de máquina é projetado para depender de uma cons-
tante evolução e redefinição de parâmetros – o controle algorít-
mico não está mais confinado apenas às experiências ensinadas
por meio de conjuntos de dados de treinamento e rotinas analíti-
cas pré-programadas (HEAVEN, 2017). Os resultados são estrutu-
ras de decisão em constante mudança: à medida que quantidades

9 Algumas das citações iniciais clássicas incluem McCarthy et al. (2006) e


Turing (1950).
10 Para uma ilustração no contexto do emprego, ver, p. ex., o instrumento do
estatuto profissional do Governo do Reino Unido. Disponível em: https://
www.gov.uk/guidance/check-employment-status-for-tax.

93
crescentes de dados são coletadas sobre os empregados e todos
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

os aspectos de suas vidas de trabalho são examinados continu-


amente, os fatores considerados relevantes para métricas-chave,
como produtividade ou inovação, continuarão a mudar (BENGIO;
COURVILLE; GOODFELLOW, 2016).

3.3 · Controle
Em uma primeira onda de people analytics, a ênfase foi no aumento
do poder de tomada de decisão gerencial: algoritmos de aprendi-
zagem de máquina iriam varrer grandes conjuntos de dados para
insights importantes no local de trabalho, a partir da disposição
dos espaços físicos para comportamentos de equipe produtivos e
improdutivos, e, em seguida, fornecer a automação para a gestão, a
fim de informar suas escolhas.
Pelo menos de uma perspectiva técnica, no entanto, não há nada
inerente às capacidades de tal software para se limitar a infor-
mar os gerentes tradicionais: em princípio, pelo menos, suas deci-
sões reais podem ser totalmente automatizadas.11 O armazém da
Amazon em Baltimore, discutido anteriormente, é um estudo de
caso em questão:
O sistema da Amazon rastreia as taxas de produtividade de cada
colaborador e gera automaticamente quaisquer avisos ou encerra-
mentos relativos à qualidade ou produtividade sem a intervenção
dos supervisores [...]. Se um colaborador receber duas advertências
finais escritas ou um total de seis advertências escritas num perí-
odo de 12 meses consecutivos, o sistema gera automaticamente
um aviso de rescisão. (LECHER, 2019).

Em conjunto, a crescente disponibilidade de dados, o sofisticado


processamento de aprendizagem de máquina e o controle algorít-
mico são ingredientes fundamentais de uma mudança fundamen-
tal que não está apenas no horizonte como uma visão de futuro dis-
tante, mas já se tornando realidade em locais de trabalho em todo
o espectro socioeconômico, como o exemplo do armazém acima

11 Nas jurisdições abrangidas pelo regulamento geral da União Europeia


relativo à proteção de dados, tal abordagem não seria legal, dado o direito
de ter um “ser humano no circuito”, ou seja, de não estar sujeito a decisões
totalmente automatizadas (ver o Regulamento Geral sobre a Proteção de
Dados – RGPD, artigo 22).

94
demonstra. O chefe algorítmico pode pairar sobre cada trabalha-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


dor como um Panoptes dos dias de hoje, o vigilante da mitologia
grega: desde a verificação de potenciais participantes e atribuição
de tarefas, até o controle de como o trabalho é feito e remunerado,
e a penalização do desempenho insatisfatório – muitas vezes sem
qualquer transparência ou responsabilidade. Como disse o juiz
de Distrito dos EUA, Chen, citando Michel Foucault, “um estado
de visibilidade consciente e permanente [...] assegura o funciona-
mento automático do poder” (FOUCAULT, 1979, p. 201).

4 · Dispersar a responsabilidade
Do ponto de vista jurídico, esse aumento dramático do controle
pode, a princípio, ser considerado bem-vindo: a maioria dos sis-
temas de Direito do Trabalho coloca uma ênfase significativa no
controle e (ou) na subordinação como fator-chave para determinar
quando uma relação deve ser abrangida pelas normas de proteção.
Ao mesmo tempo que se concentra dramaticamente o controle do
empregador, no entanto, elementos-chave da gestão algorítmica
também podem ser usados para espalhar a responsabilidade: ques-
tões sobre quem deve ser responsável (a empresa empregadora? Os
designers do software? Os fornecedores de dados de treinamento
contaminados?) já não podem ser necessariamente abordadas com
as ferramentas tradicionais do Direito do Trabalho. Esse é o desafio
técnico fundamental na ascensão da análise de pessoas.
A abrangência do Direito do Trabalho é uma questão contro-
versa há décadas: na maioria dos sistemas jurídicos, o controle e
a subordinação são critérios centrais na definição do trabalhador
(que goza de direitos e proteção jurídica), do seu empregador (que
está sujeito aos deveres correspondentes) e do contrato de traba-
lho entre eles (VAN VOSS; WAAS, 2017). Com base na teoria da
firma de Coase, Deakin e Wilkinson (2005) demonstraram como
esse modelo jurídico desempenha um papel igualmente crucial
na economia da regulação do mercado de trabalho: o Direito
do Trabalho é a contrapartida entre os benefícios do controle
imposto aos empregados e o custo das obrigações de proteção
impostas aos empregadores em troca. As instâncias individuais
de controle gerencial são atribuídas à personalidade (jurídica) do
empregador, a fim de garantir a responsabilização e facilitar a
execução (DAVIES; FREEDLAND, 2006).

95
Uma vasta literatura sobre “trabalho atípico” explorou as impli-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

cações problemáticas dessa abordagem em disposições laborais


que se desviam do paradigma recebido de emprego estável e
aberto para um único empregador.12 Exemplos incluem o fissured
workplace (WEIL, 2014), quando o controle do empregador é exer-
cido por várias partes por meio de contratos de terceirização,
uso de trabalho temporário ou grupos complexos de empresas;
e falso trabalho autônomo, quando o controle do empregador é
contratualmente negado por meio da ficção do status de traba-
lhador independente.13 Assim que a realidade do controle é camu-
flada, os chamados trabalhadores “atípicos” ou non-standard não
podem mais ter acesso às normas básicas de proteção, como o
salário-mínimo ou a lei de discriminação (INTERNATIONAL
LABOUR OFFICE, 2016).
No entanto, sobretudo, os mecanismos que escondem a realidade
do controle do empregador no “trabalho atípico” são fundamen-
talmente jurídicos: desde a utilização do instrumento da pessoa
jurídica (por exemplo, na constituição de filiais) (COLLINS, 1990, p.
353) até o direito dos contratos (por exemplo, na inserção de cláu-
sulas de trabalho independente ou por conta própria nos contra-
tos de trabalho tradicionais) (INTERNATIONAL LABOUR OFFICE,
2013), o problema são os “exércitos de advogados” que elaboram
documentos que simplesmente deturpam os verdadeiros direitos e
obrigações de ambas as partes, como os Tribunais do Trabalho têm
sublinhado repetidamente.14
Em princípio, pelo menos, isso torna relativamente fácil respon-
der à evasão: os mecanismos jurídicos existentes criam a dificul-
dade de atribuir responsabilidades ao empregador controlador,
e os mecanismos jurídicos existentes podem ser utilizados para
a sua recuperação. Doutrinas como a contratação fraudulenta
ou a primazia dos fatos permitem que os tribunais examinem
as cláusulas de trabalho autônomo e se concentrem na reali-
dade do controle do empregador; e o véu da empresa pode ser

12 Para uma síntese, ver, p. ex., Albin e Prassl (2016, p. 209).


13 Ver, p. ex., Autoclenz Limited v. Belcher and Ors (2011) UKSC 41; e Bogg
(2012, p. 328).
14 Aslam and Farrar v. Uber, Case No. ET/2202550/2015, at [73] (London
Employment Tribunal, Judge Snelson).

96
trespassado para combater abusos fraudulentos por parte das

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


entidades controladoras.15
O desafio decorrente do advento da análise de pessoas, por outro
lado, é radicalmente diferente: a gestão algorítmica não depende
de mecanismos legais para ofuscar o controle a fim de escapar à
responsabilidade – ao contrário, mecanismos de controle difusos e
potencialmente inexplicáveis são inerentes ao uso de sistemas de
classificação e algoritmos cada vez mais sofisticados.

5 · Conclusão
A ascensão da gestão algorítmica está lenta, mas, definitiva-
mente, se tornando um ponto focal da análise acadêmica e dos
debates políticos mais amplos em torno do futuro do trabalho. Os
padrões de discurso são reminiscentes daqueles que rodeavam
os primeiros tempos do que era então frequentemente referido
como a “economia do compartilhamento”. Mais uma vez, somos
confrontados com mensagens fortemente conflituosas, justa-
pondo a promessa do futuro do trabalho com previsões terríveis
de exploração (algoritmicamente aperfeiçoada). Na realidade, é
claro, há elementos de verdade em ambas as narrativas: deve-
mos ser muito cautelosos com as soluções regulatórias fáceis
propostas pelos proponentes de ambos os lados, seja uma desre-
gulamentação completa de um lado, seja uma fantasia ludita de
destruir a tecnologia do outro.
O verdadeiro desafio reside em aproveitar o potencial inequívoco
das tendências que irão moldar o trabalho de amanhã, assegu-
rando simultaneamente que ninguém fique para trás em termos
de condições de trabalho dignas e sustentáveis. Mais fundamen-
talmente, isso exige que evitemos cair na armadilha do determi-
nismo (tecnológico): nenhuma das tendências identificadas neste
artigo resulta de uma lógica inexorável. A análise histórica sugere
fortemente que o progresso tecnológico torna o trabalho mais fácil,
mais seguro e mais produtivo. Ao mesmo tempo, no entanto, abre
as possibilidades de abuso, desde a vigilância invasiva da privaci-
dade até o trabalho precário e altamente pressionado.

15 A realidade do contencioso e da execução da lei (enforcement) será, eviden­


temente, significativamente mais complexa (PRASSL, 2015, capítulos 5 e 6).

97
O que é essencial, então, é um verdadeiro sentido de agência, do
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

poder e da dependência nas escolhas regulatórias. A concentração


de nossos esforços depende de incentivos jurídicos e econômicos,
que, em última análise, determinam se a tecnologia é utilizada
para apoiar o trabalho digno – ou se representa uma ameaça real
para ela. Espera-se que os desafios destacados neste artigo contri-
buam com alguns primeiros passos para essa tarefa.

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100
Controle e contrato hiper-realidade:
a relação de emprego na era da economia
orientada a dados

José Eduardo de Resende Chaves Júnior


Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da
3ª Região – Minas Gerais. Doutor em Direitos Funda­mentais.

Resumo: Na era da economia orientada a dados, do capitalismo de


rastreabilidade, da vigilância pós-panóptica, por meio das redes sociais
e de plataformas eletrônicas, o Direito do Trabalho está a demandar um
update doutrinário. Neste estudo, formulam-se dois conceitos operacionais
para lidar com a nova economia da vigilância, nomeadamente: (I) a
transição da sociedade da disciplina (Foucault) para a sociedade do controle
(Deleuze) e (II) o contrato hiper-realidade de trabalho.

Palavras-chave: Capitalismo orientado a dados. Vigilância pós-panóptica.


Economia do compartilhamento. Sociedade da disciplina. Sociedade do
controle. Contrato hiper-realidade de trabalho.

Abstract: In the age of data-driven economy, of traceability capitalism


and post-panoptic surveillance, through social networks and electronic
platforms, labor law is demanding a doctrinal update. In this study, two
operational concepts are formulated to address the new surveillance
economy, namely: (I) the transition from the society of discipline
(Foucault) to the society of control (Deleuze) and (II) the hyperreality-
-contract of employment.

Keywords: Data-driven capitalism. Surveillance capitalism. Post-panoptic


surveillance. Data traceability. Sharing economy. Multitude. Legal
subordination. Alienity. Discipline society. Control society. Hyperreality-
-contract of employment.

101
1 · Introdução
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

Recente relatório da ONU (Digital Economy Report 2019 – value,


creation and capture: implications for developing countries), sob a
direção do Professor Nick Srnicek, do King’s College London, revela
que há sete grandes tendências na área da economia dos dados, a
saber: (I) blockchain, (II) análise de dados (data analytics), (III) inteli-
gência artificial, (IV) impressão em 3D, (V) internet das coisas (IoT),
(VI) automação & robótica e (VII) computação em nuvem. O estudo
aponta também para imensa concentração do mercado global, 90%
situado nos Estados Unidos e China, todo ele centralizado em ape-
nas setenta grandes plataformas digitais (UNCTAD, 2019, p. 34).
O Direito do Trabalho comparado vem sofrendo uma rápida adap-
tação legislativa e jurisprudencial para tentar responder às aluci-
nantes transformações que a economia orientada a dados (data-
-driven economy) vem impondo às relações de trabalho. Citamos
o exemplo da simbólica Lei AB-5 na Califórnia, das decisões das
Cortes Superiores do Reino Unido e de Paris, entre outras.
Nesse sentido, o Direito do Trabalho brasileiro, do ponto de vista
conceitual, precisa acompanhar essa tendência, e por essa razão
demanda um certo update doutrinário para lidar, de uma forma
mais operacional e consistente, com as relações contemporâneas
de trabalho rastreável, regidas pelas plataformas e aplicativos ele-
trônicos, pela inteligência artificial e pelo big data produtivo, sobre-
tudo no âmbito da afetividade, do marketing e da reterritorialização
digital, enfim, da passagem da sociedade metalúrgica para a socie-
dade semiúrgica (BAUDRILLARD, 1972, p. 239).1

1 “Nem toda a cultura produz objectos: o conceito é próprio da nossa


cultura, nascida da revolução industrial. Contudo, mesmo a sociedade
industrial conhece ainda apenas o produto, e não o objecto. O objecto só
começa verdadeiramente a existir com a sua libertação formal enquanto
função/signo, e esta libertação só aparece com a mutação dessa sociedade
propriamente industrial para aquilo a que se poderia chamar a nossa tecno-
cultura Q, com a passagem de uma sociedade metalúrgica a uma sociedade
semiúrgica – isto é, quando começa a pôr-se, para além do estatuto de produto
e de mercadoria (para além do modo de produção, de circulação e de troca
económica), o problema da finalidade de sentido do objecto, de seu estatuto
de mensagem e de signo (do seu modo de significação, de comunicação e
de troca/signo). Esta mutação esboça-se no decorrer do século XIX, mas é o
Bauhaus que a consagra teoricamente. É, portanto, a partir dele que se pode
datar, logicamente, a ‘Revolução do Objecto’” (BAUDRILLARD, 1972, p. 239).

102
A tarefa da doutrina é, de forma analítica, qual coruja hegeliana,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


reconstruir de forma crítica a história do pensamento da tecnologia
no Direito e no trabalho, após o entardecer do mundo da emergência
e da inovação. O Direito sempre esteve a reboque da realidade.
A coruja, a metáfora do conhecimento para Hegel, como se sabe,
parte do mito da Deusa Athena – Minerva em Roma – que se fez
humana para convencer os humanos a respeitarem os deuses, mas
foi vencida pela habilidade de Arachne de tecer teias. Pode-se arris-
car a afirmar que as teias e as redes ressurgem da mitologia greco-
-romana como habilidade essencialmente humana, como potência
virtual para enfrentar a transcendência. A imanência da rede, em
releitura de Espinosa, como potência (potentia) contra a atualização
do poder (potestas); contrapoder, diria Negri.
A potência virtual de emancipação da sociedade em rede tem um
outro lado da moeda: o enredamento. Os fluxos da rede são ema-
nações de sua potência e de seu poder. Negri (2002) nos revela a
disputa política entre a potência constituinte e o poder constituído;
tanto poderes públicos como poderes econômicos que cooptam,
cristalizam e paralisam a potência da multidão conectada.
A inteligência artificial, de aprendizado, passa a ser tecida, ins-
trumentalizada, para captura e armazenamento de dados sociais
na rede. Não há mais especificidade de dados sensíveis; na era do
Big Data, todos os dados são sensíveis, biopolíticos. Até a opção
reiterada por um sabor de pizza comprada via plataforma ele-
trônica passa a ser informação estratégica. Informação é poder;
megadados capturados em rede são escrutinados e transforma-
dos em megapoderes.
A adequação doutrinária e esses novos impactos tecnológicos,
como se verá, dispensa qualquer tipo de alteração legislativa na
regulação do trabalho no Brasil, mas é preciso que os juristas com-
preendam o tom e o grau da evolução do conceito de valor e da
organização produtiva no capitalismo dos dados e das relações
cognitivas, criativas e de afeto.
O que se percebe é que a tendência da economia de plataforma faz
emergir a figura do trabalho fantasma, prestado materialmente
por bilhões de trabalhadores no planeta, que passam a ser arregi-
mentados de forma massiva, com alto grau de aleatoriedade, bai-
xíssima comutatividade e captura da sua energia de cooperação
103
social. O resultado é a exponencial redução da porosidade desse
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

labor, com a consequente derrubada da renda do trabalho.


Diante desse quadro, que, ao contrário de ser espontâneo, é orga-
nizado pelas instâncias de hegemonia, o trabalho mais estratégico
para o capitalismo passa a ser o trabalho que se destina a produzir,
não mercadorias concretas, senão relações, nomeadamente rela-
ções de conhecimento tecnocientífico, relações de ideias, relações
de informação e comunicação e até relações afetivas entre merca-
doria/serviço e o consumidor.
A rede mais enreda que liberta. Barabási (2003) já havia formu-
lado matematicamente essa incômoda constatação. O desabafo
de Umberto Eco, em sua Aula Magna da Universidade de Turin,
após receber a láurea honoris causa em Comunicação e cultura de
mídia, no sentido de que as redes sociais deram estatuto de verdade
à vociferação de uma legião de imbecis, deixou claro que temos
de trabalhar muito ainda para que o sonho de Pierre Lèvy com a
inteligência coletiva não se transforme numa utopia algo ingênua.
Deleuze (1992) diz explicitamente o que a filosofia não é, mas talvez
tenham querido dizer, com Dilthey, que ela é uma conexão. Vale a
pena insistir no sonho inconfidente, libertas quae sera tamen.

2 · Do trânsito da disciplina ao controle


Na era do trabalho intensivo e rastreável, com a exponencializa-
ção da porosidade do lavor, a disciplina cai para segundo plano
nas estratégias de organização da produção. Na sociedade disci-
plinar (Foucault), da fábrica, do capitalismo industrial, havia a
necessidade do disciplinamento individual do trabalhador, até
mesmo no que toca a horário ou assiduidade. A organização da
produção era linear (linha de produção). Na sociedade do controle
(Deleuze), do empreendimento de produção em rede, georreferen-
ciado, tele-escrutinado, é necessário apenas o controle coletivo
e estatístico dos trabalhadores. O ajuste telemático do controle
do trabalho à demanda.
A sociedade disciplinar, conforme formulado por Foucault (1987),
é identificada, a partir do século XVII, como a disciplina dos cor-
pos pelos poderes, por meio da vigilância, que é mais rentável
do que a punição. A vigilância acaba internalizando a autodis-
ciplina do cidadão e do trabalhador. A potência da vigilância
104
sempre é mais eficiente, abrangente e econômica do que o ato de

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


punição (FOUCAULT, 1987).2
A disciplina se espraia do poder político para os poderes econômicos
e privados do cidadão, ou seja, ela se estende do Estado, da prisão
para a família, para a escola, para a fábrica, universidade e hospital.
A fábrica é a tradução para a esfera da produção da sociedade disci-
plinar (FOUCAULT, 1987, p. 169).3 A disciplina é desdobrada no plano
da produção por meio da organização taylorista, da linha de pro-
dução, que estabelece um vínculo linear no trabalho, que se inter-
naliza subjetivamente no operário, como estratégia de disciplina
ética, de vigilância. A potencialidade de a interrupção individual do
trabalho interditar a linha de produção sobrecarrega, no indivíduo,
a responsabilidade pela produção coletiva. Com isso, diminui-se
sobremaneira a necessidade de aplicação do ato de punição.
No início do século passado, esse sistema é desdobrado juridica-
mente para modelo de vigilância jurídica, por meio do contrato
de trabalho subordinado. A disciplina panóptica ganha, assim, sua
potência jurígena, de forma a diminuir a necessidade da aplicação
do ato ineficiente de punição.
Contudo, por outro lado, com a evolução da sociedade industrial,
sobretudo com a crise estrutural deflagrada em 1973 em virtude da

2 “Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,


que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação
de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’. Muitos
processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos,
nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos
XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação” (FOUCAULT, 1987, p. 164).
3 “A fábrica parece claramente um convento, uma fortaleza, uma cidade fechada;
o guardião ‘só abrirá as portas à entrada dos operários, e depois que houver
soado o sino que anuncia o reinicio do trabalho’; quinze minutos depois,
ninguém mais terá o direito de entrar; no fim do dia, os chefes de oficina
devem entregar as chaves ao guarda suíço da fábrica que então abre as portas.
É porque, à medida que se concentram as forças de produção, o importante é
tirar delas o máximo de vantagens e neutralizar seus inconvenientes (roubos,
interrupção do trabalho, agitações e ‘cabalas’); de proteger os materiais e
ferramentas e de dominar as forças de trabalho: A ordem e a polícia que se
deve manter exigem que todos os operários sejam reunidos sob o mesmo
teto, a fim de que aquele dos sócios que está encarregado da direção da fábrica
possa prevenir e remediar os abusos que poderiam se introduzir entre os
operários e impedir desde o início que progridam” (FOUCAULT, 1987, p 169).

105
elevação do preço do petróleo, o padrão de acumulação taylorista
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

perde sua eficácia, seja pela intensificação da concorrência, em


plano planetário, seja pelo aumento dos vínculos de solidariedade
sindical, solidariedade essa que se vê beneficiada tanto pelo modelo
de indivíduo-protagonista na produção linear – por fortalecer sua
capacidade de prejudicar a produção – como pela consolidação de
uma outra ética social, de luta de classe dos não proprietários.
Para o capitalismo, esse é o cenário ideal e necessário para a superação
do padrão de acumulação rígida, que, aliás, já havia se iniciado nos
anos 1950 no Japão. Do taylorismo/fordismo, a produção da grande
indústria desloca-se para o modelo ohnista/toyotista, em que a produ-
ção linear e vertical é substituída por uma concepção mais reticular e
horizontal, de forma de diminuir a capacidade relativa do trabalhador,
individualmente considerado, de paralisação do sistema produtivo.
É certo que outros fatores foram decisivos para o sucesso do sis-
tema da acumulação flexível, como exemplo, o sistema just in time,
mas aqui a preocupação é focar mais na questão da potência disci-
plinar do trabalho, justamente para realçar o trânsito da disciplina
ao controle no plano da relação jurídica de emprego.
É importante salientar que essa transição na quididade da subor-
dinação jurídica não se dá per saltum, porquanto, ainda em sede da
sociedade disciplinar, pode-se perceber que o poder diretivo já não
se explicita necessariamente, sobretudo em atividades simples e
repetitivas. 4 É muito mais tácito do que expresso.
Na sociedade do controle, as tecnologias disruptivas, que emergem
com força no século XXI, potencializam a capacidade relativa de se

4 Assim decidiu recentemente a Suprema Corte de Cassação da Itália: “[...] che il


motivo è manifestamente infondato, essendo consolidato l’orientamento secondo
cui, ai fini della qualificazione del rapporto di lavoro come autonomo o subordinato,
in caso di prestazioni elementari, ripetitive e predeterminate nelle modalità di
esecuzione, il criterio rappresentato dall’assoggettamento del prestatore all’esercizio
del potere direttivo, organizzativo e disciplinare può non risultare significativo,
occorrendo far ricorso a criteri distintivi sussidiari [...]”. (“[...] que o motivo é
manifestamente improcedente, sendo estabelecida a orientação de que, para
fins de qualificar a relação de trabalho como autônoma ou subordinada, no
caso de desempenho elementar, repetitivo e predeterminado nas modalidades
de execução, o critério representado pela submissão do credor ao exercício do
poder gerencial, organizacional e disciplinar pode não ser significativo, pois é
necessário recorrer a critérios subsidiários distintos [...]”) (Ordinanza n. 17384,
de 27 de junho de 2019 – tradução livre).
106
flexibilizar a acumulação do capital, seja na perspectiva da regula-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


ção territorial, seja no plano da produção ou até na esfera do orde-
namento jurídico trabalhista.
Estamos em transição para o capitalismo do compartilhamento,
no qual a acumulação é baseada na captura do produto da coope-
ração social, como resultado do incremento da socialização da pro-
dução, principalmente pela atividade produzida nas redes sociais
e plataformas econômicas (FUMAGALLI; LUCARELLI, 2007, p. 117-
133). Nesse contexto, o capital apropria-se do commons, do conhe-
cimento tácito e codificado da comunidade em rede e acaba por se
apropriar – e de formas assimétricas – das energias de emancipa-
ção que eclodem em meio à colaboração produtiva.
Deleuze (1992), de maneira bem perspicaz, quase premonitória, já
em 1990, havia identificado o início dessa viragem, dessa torção
topológica e de certa maneira sutil, da sociedade da disciplina para a
sociedade do controle, orientada a dados.5
A despeito de a iconografia da sociedade do controle haver sido
vislumbrada por Deleuze, ele próprio defende que Foucault já
descrevera a sociedade disciplinar como aquilo que já não éra-
mos e já estávamos deixando para trás (p. 215-216). E essa nova
sociedade é digital, antes que analógica, e substitui a fábrica
pela empresa, transformando a solidariedade coletiva em con-
corrência, que é transposta da esfera do capital para o coração
do trabalho (p. 221).
Nesse novo mundo da economia, reconstroem-se as subjetivida-
des dos trabalhadores, até mesmo na esfera do poder diretivo;
não se trata mais de identidades, assinaturas, senão de senhas,
cifras e códigos. São amostras e bancos de dados. Os indiví-
duos tornam-se divisíveis, “dividuais”, passíveis de replicação
virtual. Não são necessárias palavras de ordem, seja na organi-
zação do trabalho, seja na organização da resistência sindical
(DELEUZE, 1992, p. 222).

5 A descrição da sociedade do controle aparece em dois textos publicados


originalmente em francês, em 1990 (Controle e Devir – entrevista a Antonio
Negri, p. 209-218; Post-scriptum sobre as sociedades de controle, p. 219-226),
o primeiro deles numa entrevista concedida ao filósofo e cientista político
italiano Antonio Negri. Esses dois textos são publicados em português, em
1992, na obra Conversações, 1972-1990/Gilles Deleuze, tradução de Peter Pál
Pelbart, pela Editora 34.
107
Estatui-se, segundo Deleuze (p. 224), o capitalismo da sobreprodu-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

ção, com a produção deslocada para os países periféricos; não se


compram mais matérias primas e se vendem produtos acabados.
Inverte-se a lógica: compram-se produtos e vendem-se serviços. O
poder empresarial se expressa mais pela tomada do poder acioná-
rio do que pela formação da disciplina do trabalho; mais por fixação
de cotações do que por redução de custos da produção. O poder
empregatício descola-se da disciplina corporal e do tempo de tra-
balho, para o controle da alma e do marketing.
Ao controle já não interessa o confinamento dentro da fábrica, den-
tro de uma jornada fixa, dentro de uma disciplina linear, de um
vínculo jurídico estável, mas, sim, o vínculo etéreo, pós-contratua-
lista, pós-material, sonho de liberdade, mas que engendra agencia-
mentos compromissários, dívidas continuamente diferidas, endivi-
damento recorrente, uma afetação apenas virtual.
O trabalho, sob a égide da sociedade do controle, passa a ser
compatível com vínculos precários, desde que intermitentes,
estendidos, plugados, online, virtuais. São conexões heterogê-
neas, sem identidade, similaridade ou homogeneidade, esva-
ziando o art. 511, § 4º, da CLT. Singularidades produtivas que se
opõem às individualidades e coletividades. Mais relevante que o
contexto social é o hipertexto cultural.
A disciplina opera de forma individualizada sobre o trabalhador.
O controle preocupa-se mais com aspectos estatísticos, coletivos
da subsunção do trabalho alheio. Reforça-se a liberdade individual
e operacional do trabalho, com flexibilização da disciplina, mas
intensifica-se o controle coletivo e o capitalismo da vigilância, na
locução popularizada por Zuboff (2019), um controle pós-panóptico,
com a captura e monetização dos dados, da imagem, dos hábitos
e do comportamento dos trabalhadores e consumidores. O capi-
talismo da vigilância, segundo nosso autor, faz da vivência experi-
mental das pessoas matéria-prima de sua produção. O trabalhador
é declarado “proprietário” de seus dados, e se dissolvem os laços de
solidariedade da categoria profissional, sucedida por uma massa
enredada, antes que por uma multidão espinoseana.
As diferenças entre as sociedades da disciplina e do controle
são muitas vezes de grau e numéricas, antes que qualitativas,
mas distinções que envolvem também a noção, nas palavras de
Engels, comentando Marx (2001), da lei hegeliana de passagem da
108
quantidade à qualidade. Talvez essa noção de transição possa ser

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


traduzida na ideia de mudança de estados quânticos.
Para uma melhor compreensão, parece útil construir um quadro
sinóptico indicativo de tal transição, tendo sempre presente que as
duas formas de sociedade coexistem, imbricam-se, comunicam-se e
se ricocheteiam, não em circularidade, mas de uma forma evolutiva,
espiralada. Não se contrapõem necessariamente, justapõem-se e se
sucedem no tempo, em variações ora gradativas, ora emergentes:

Sociedade da disciplina Sociedade do controle


FOUCAULT DELEUZE
Referências 1. Final séc. XVII 1. Final séc. XX
2. Vigiar e punir 2. Post-scriptum sobre a
sociedade do controle
Características 1. Analógico 1. Digital
2. Durável 2. Descartável
3. Estabilidade 3. Precariedade
4. Jornadas delimitadas 4. Continuum
5. Tempo linear intermitente
6. Máquinas 4. Tempo real
energéticas 5. Máquinas cibernéticas
7. Disciplina individual 6. Controle estatístico
8. Ajuste da 7. Abundância de
produtividade trabalho disponível
individual 8. Captura das
9. Captura do tempo externalidades
de trabalho e da positivas da rede (da
produtividade dos cooperação social e
trabalhadores dos conhecimentos
10. Subsunção formal da comunidade)
do trabalho 9. Subsunção pós-real
11. Subordinação do trabalho
jurídica 10. Alienidade reticular
Ícones 1. Fábrica 1. Empresa
2. Assinatura 2. Cifra – senha
3. Confinamento 3. Endividamento
4. Fidúcia 4. Inovação – disrupção
5. A toupeira 5. A serpente
Finalidade 1. Produção 1. Consumo
2. Corpo 2. Alma e Mente

Fonte: Elaborado pelo autor.

109
O conceito de controle adapta-se melhor que a ideia de subordina-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

ção jurídica como critério de identificação do vínculo empregatí-


cio em relação às novas formas de trabalho. A noção tradicional de
subordinação jurídica, concebida e conectada a partir da disciplina,
é um desperdício de fenomenalidade digital, como até do potencial
de economicidade que a labuta do cidadão trabalhador nas plata-
formas eletrônicas suscita.
O conceito de controle, telemático e informatizado, além do duplo
argumento dogmático de haver sido integrado de maneira explí-
cita ao ordenamento jurídico, tanto a partir (I) do parágrafo único
adicionado ao art. 6° da CLT em 2011, como (II) da recusa à convo-
cação de trabalho do contrato intermitente (CLT, § 3o do art. 452-A),
aproxima-se mais dos critérios adotados no Direito do Trabalho
comparado, qual seja, da alienidade (ajenidad na Espanha), da subor-
dinação tipológica ou aproximativa (Itália) e até do teste ABC,
oriundo da jurisprudência norte-americana e consagrado na Lei
AB-5 do Direito do Trabalho californiano.

3 · Contrato hiper-realidade de trabalho


Realidade-virtual era uma ideia nova. Mas já aparece outra, a de reali-
dade-aumentada (augmented reality), que faz emergir com mais força
ainda o hiper-real. A partir dessas noções, pretendemos oferecer aqui,
de forma concisa, um conceito mais operacional para o Direito do
Trabalho das plataformas virtuais, o de contrato hiper-realidade.
De La Cueva (1959) desenvolveu, como se sabe, a partir de uma decisão
da Suprema Corte do México, a ideia de contrato-realidade, para con-
trapor a prevalência da realidade da prestação do trabalho em detri-
mento, na relação de emprego, de um acordo abstrato de vontades.
Sua perspectiva pretendia superar o contratualismo estrito, fundado
exclusivamente na vontade das partes, num sentido emancipador da
relação de emprego, ou seja, não como simples disposição contratual
sobre a compra-e-venda da energia humana transformadora da natu-
reza, senão como uma instituição que busque elevar o homem a um
patamar de existência digna (DE LA CUEVA, 1959, p. 453).
Na mesma linha, Plá Rodriguez (2015) anota o princípio da prima-
zia da realidade como desdobramento do princípio mater da prote-
ção, não como prevalência factual da realidade, mesmo porque essa
realidade, em essência, é a realidade da prevalência da vontade do
110
mais forte economicamente. A compreensão literal do princípio da

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


primazia da realidade sobre a forma poderia levar à prevalência de
uma condição prejudicial ao trabalhador, em detrimento de uma
disposição contratual ou mesmo norma mais favorável, o que con-
duziria até a uma colisão de princípios do Direito do Trabalho.
Com esses cuidados é que se pretende sustentar aqui a prevalência
da realidade virtual sobre a forma tradicional dos atos jurídicos,
no mundo do capitalismo tecnológico, de modo a configurar um
novo contrato realidade-virtual, no qual o decisivo para se afe-
rir o estrato fático da relação de trabalho, quando dirigida pelas
novas tecnologias de comunicação e informação, é a realidade que
emerge do conjunto de fatores que promove a integração de várias
soluções de comunicações, tecnologias de identificação e rastrea-
mento, redes de sensores e atuadores com e sem fio, protocolos de
comunicação avançada e inteligência distribuída para objetos inte-
ligentes (ATZORI; IERA; MORABITO, 2010).
A primazia da realidade virtual, portanto, se dá como um parâ-
metro jurídico para dirimir controvérsias que decorram das novas
relações de trabalho, com ênfase na prevalência do sistema, do
soft­ware, do aplicativo e até mesmo do algoritmo oriundo do poder
diretivo da empresa sobre disposições abstratas.
Em outras palavras, na produção pós-industrial, prevalece a ges-
tão oriunda da inteligência artificial, e não o acordo de vontade
abstrato das partes. É o determinado pelo algoritmo do aplicativo
que vigora na prática e é o que decorre dessa realidade virtual, do
código-fonte, que deve ser considerado como substrato para a inci-
dência do ordenamento jurídico, não as disposições emanadas da
vontade formal das partes.
Code is law é a frase que foi consagrada por Lawrence Lessig, em
seu livro de mesmo nome (2006). Em sua perspectiva, o determi-
nante, na sociedade tecnológica da informação em rede, é o código-
-fonte dos programas e aplicativos, que prevalece na prática sobre
a regulação normativa, sobretudo no cyberspace, o qual funciona
segundo uma lógica diferente do mundo real.
Falchetto Silva (2017, p. 323) anota com propriedade que
cabe identificar qual é o elemento técnico estruturador das rela-
ções no ciberespaço. A interação dos indivíduos com a rede se dá
por meio do uso de aplicativos, programas de computador, que
111
possibilitam ao usuário acessar informações, alimentar o sistema
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

e tomar ações específicas.

Note-se que o usuário do sistema não tem, nesta condição, qual-


quer controle sobre as regras de funcionamento do aplicativo. Ele
somente pode agir nos limites e formas preestabelecidos. Assim
pergunta-se quem, de fato, detém o poder de definir tais limites e
formas de interação do usuário com o espaço virtual?

Transportando-se tal questionamento para o mundo do trabalho:


na hipótese de oferta de serviços que envolvem trabalho humano,
através de plataformas virtuais, os aplicativos, possui o traba-
lhador condições de avaliar ou de se insurgir contra alterações e
punições do contrato de trabalho virtual? De quem seria o ônus da
prova de alterações prejudiciais quanto ao seu perfil de usuário?

Prosseguindo em sua análise, Falchetto Silva registra que o


código-fonte define
a forma como o espaço virtual, o ciberespaço, é experimentado. É
capaz de moldar comportamentos e regular condutas, criando os
instrumentos pelos quais novas relações e dinâmicas de trabalho
serão constituídas, mantidas e finalizadas (2017, p. 324).

Para Baudrillard (1972), o hiper-real é a ultrapassagem do real, não sua


simples representação, sua cópia, senão sua apresentação, traduzida
em linguagem binária, em bits. Melhor seria pensar em termos de
transpresentação do real, em simulação do real, em transposição
de suas fronteiras legais, sintetizados na ideia baudrillardiana de
simulacro, porquanto o contrato em si já é uma performance, uma
encenação, uma ficção jurídica.
O contrato imerso no mundo dos códigos tem sua própria ficção
jurídica superada pela inexorável hiper-realidade do meio ambiente
virtual, comandado pela programação. Não é mais uma ficção, é
o hiper-real. O simulacro jurídico hiper-real, programável, passa,
assim, a preceder e a regular a realidade virtualizada, a cópia
copiada, a hiper-ficção jurídica, a precessão do simulacro.6

6 Baudrillard formula o conceito de simulacro, que é a simulação que não tem


mais como base o real; o real é apenas referencial, uma realidade-virtual.
O reality show é um modelo hiper-real de simulacro que se emancipa e se
desconecta do compromisso com a realidade. A simulação – o simulacro –
passa a preceder o real (BAUDRILLARD, 1972, p. 8).

112
Em síntese, será o algoritmo que ditará as regras do negócio e da pres-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tação de trabalho, não as estipulações contratuais. Estas servem, sim,
como marco e limite para se aferir eventual supressão de direitos –
contratuais ou legais – daqueles sujeitados ao comando da inteligên-
cia artificial, não como expressão da vontade soberana das partes.

4 · Considerações finais
A transição de uma economia industrial-metalúrgica, material,
analógica, da escassez para uma economia digital e semiúrgica, da
abundância de bits, pós-industrial ainda não nos permite definir os
seus contornos finais, mas já é possível vislumbrar suas tendências
e perigos, sobretudo no que toca ao âmbito da anomia regulatória
e da concentração da riqueza.
Neste momento, quer-nos parecer que os cinco operadores con-
ceituais examinados neste estudo passam a ser úteis para melhor
compreender e operar o Direito do Trabalho sob os influxos do
capitalismo dos dados:
O Direito do Trabalho sob o impacto das tecnologias orientadas a
dados não pode se conter mais apenas na disciplina, individualizada,
foucaultiana; ele deve se dirigir também ao controle deleuzeano,
estatístico e coletivo. O mais estratégico, do ponto de vista da orga-
nização do trabalho, na era do rastreamento de dados e da vigilância
pós-panóptica, não emana da disciplina dos corpos, mas, sobretudo,
do controle da mente, da alma, da criatividade e dos afetos.
O conceito de controle encaixa-se melhor – do que a ideia de subor-
dinação jurídica – como critério de identificação do vínculo empre-
gatício em relação às novas formas de trabalho. O controle, tele-
mático e informatizado, além do duplo argumento dogmático de
haver sido integrado de maneira explícita ao ordenamento jurídico,
tanto a partir do (I) parágrafo único adicionado ao art. 6° da CLT
em 2011, como do desdobramento da possibilidade de (II) recusa
à convocação de trabalho do contrato intermitente (CLT, § 3° do
artigo 452-A), aproxima-se mais dos critérios adotados no Direito
do Trabalho Comparado, por exemplo, as noções de alienidade, (aje-
nidad na Espanha), subordinação tipológica ou aproximativa (Itália)
e até do teste ABC, oriundo da jurisprudência norte-americana e
consagrado na Lei AB-5 do Direito do Trabalho californiano.

113
Se o contrato-realidade foi um construto jurídico para ressal-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

tar os limites do contratualismo puro e duro na esfera tuitiva


do Direito do Trabalho, a ideia de Contrato Hiper-realidade pre-
tende também desvelar a realidade potencializada pela direção
algorítmica, definida no código-fonte e atualizada no trabalho
concreto, de maneira a configurar, assim, uma perspectiva, não
propriamente anticontratualista, senão pós-contratualista da
relação de emprego sob o impacto das novas tecnologias de
vigilância e controle.

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116
A lei sobre o TVDE e o
contrato de trabalho: sujeitos,
relações e presunções

João Leal Amado


Professor associado com agregação da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra. Doutor em Direito.

“The status of Uber drivers has been the subject of a


heated debate recently. This transportation service – which
ingeniously connects drivers with customers through an online
app – is highly popular especially with residents of big cities,
both those (customers) who use it as a cheap and efficient
taxicab, and those (drivers) who enjoy the opportunities
it creates for extra income. There is little doubt that such a
service offers some gains to society. At the same time, it is
quite obvious that the use of new technologies cannot be a
valid excuse for evading the law. […] The same is true with
regard to the status of drivers – the question of whether they
are independent contractors (as argued by Uber) or employees.
If the protection of labour law is needed in such cases, the use
of new technologies such as an online platform should not
matter; it cannot be a valid excuse for evading the law.”

Guy Davidov · The status of Uber


drivers: a purposive approach

Resumo: Este estudo trata da presunção de laboralidade no contexto do


trabalho em plataformas digitais. Tem início com a análise do objeto do
direito laboral, o trabalho assalariado, de execução heteroconformada.
Prossegue chamando a atenção para a ampliação do âmbito subjetivo do
Direito do Trabalho devido às novas formas de produção decorrentes,
sobretudo, da revolução tecnológica. Aborda os elementos do contrato de
trabalho para distingui-lo do contrato de prestação de serviços. Chega

117
à subordinação jurídica e pondera que este é um elemento de geometria
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

variável, que revela zonas cinzentas de difícil demarcação. Ressalta o


problema da simulação fraudulenta que mascara uma relação de trabalho
subordinado sob a capa de um falso contrato de prestação de serviço. Tece
considerações sobre a presunção de laboralidade consagrada pelo artigo 12º
do Código do Trabalho português. Chega, enfim, à Lei portuguesa n. 45/2018,
que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e
remunerado de passageiros em veículos descaracterizados (TVDE), bem
como o regime jurídico das plataformas eletrónicas que organizam e
disponibilizam aos interessados aquela modalidade de transporte. Destaca
que a lei não conferiu às empresas tecnológicas a obrigação de prestar
o serviço de transporte, colocando-as como meras intermediárias de
negócios. E, por fim, tece críticas à lei em comento, ressaltando que se deve
ter cautela ao analisar a sua suposta bondade com a expressa presunção de
laboralidade, uma vez que, embora não enjeite que os motoristas envolvidos
tenham um contrato de trabalho, este não envolve qualquer operador de
plataforma eletrónica, sendo celebrado entre o motorista e o operador
de TVDE. E isto implica que empresas como a Uber não terão, em princípio,
qualquer contrato com os motoristas nelas inscritos.

Palavras-chave: Contrato de trabalho. Subordinação. Contrato de


prestação de serviço. Simulação fraudulenta. Presunção de laboralidade.
Plataformas digitais.

Abstract: This paper deals with the presumption of the employment


relationship in the context of work on digital platforms. It begins
with the analysis of the object of labour law, wage-earning work,
of heteroconformative execution. It further draws attention to the
broadening of the subjective scope of Labor Law in light of the new
forms of production arising, above all, from the technological revolution.
It addresses the elements of the employment contract to distinguish
it from the contract for the provision of services. It arrives at legal
subordination and considers that this is an element of variable geometry,
which reveals grey areas of hard delimitation. It highlights the problem of
fraudulent simulation masking a subordinate employment relationship
under the guise of a false service contract. It has considerations about
the presumption of labour as enshrined in Article 12 of the Portuguese
Labour Code. Finally, it arrives at Portuguese Law nr. 45/2018, which
establishes the legal regime for the activity of individual and remunerated
transport of passengers in uncharacterized vehicles (TVDE), as well as
the legal regime of electronic platforms that organize and make available
to the interested parties that type of transport. It highlights that the
law did not give technological companies the obligation to provide the
transport service, placing them as mere intermediaries of business. And,
finally, he criticizes the law in commenting that one must be cautious
when analyzing its supposed goodness with the express presumption of
118
labor, since, although it does not reject that the drivers involved have

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


an employment contract, it does not involve any electronic platform
operator, being celebrated between the driver and the TVDE operator.
And this implies that companies such as Uber will not, in principle, have
any contract with the drivers registered with them.

Keywords: Employment contract. Subordination. Service contract.


Fraudulent simulation. Presumption of labor. Digital platforms.

1 · Direito do Trabalho e trabalho dependente


1.1 · O direito do contrato de trabalho
É bem sabido que a expressão Direito do Trabalho se mostra, por-
ventura, demasiado ampla e, nessa medida, algo enganador. Com
efeito, nem todo o trabalho prestado nas sociedades hodiernas é
regulado por este ramo do Direito, antes este limita-se, em princí-
pio, a disciplinar as relações laborais marcadas pela nota da subor-
dinação jurídica, pelo dever de o prestador de trabalho obedecer às
injunções patronais, pelo poder do credor de trabalho de comandar
a atividade daquele. É, pois, o trabalho assalariado, dependente, de
execução heteroconformada, aquele que constitui o principal alvo
da atenção do Direito laboral. E é também sabido que, na génese
deste ramo do Direito, foi sobretudo a figura do operário que esteve
presente (fábrica, indústria, proletariado).
De todo o modo, importa sublinhar que o contrato de trabalho não
se define por aquilo que se promete fazer, isto é, pelo tipo de atividade
em questão, mas sim pelo modo como se promete fazer, ou seja, pela
circunstância de essa atividade ser prestada sob a autoridade e dire-
ção do empregador. Produto tardio da Revolução Industrial, nascido
a pensar na fábrica e no operário,1 o Direito do Trabalho cresceu
muito ao longo do século XX, abriu-se a novas realidades, terceiri-
zou-se e sofreu o choque da revolução tecnológica. Nesse processo,
o âmbito subjetivo do Direito do Trabalho foi ampliado considera-
velmente – a fábrica foi substituída pela empresa, o operário pelo

1 “Trabalho massificado, sujeito ao ritmo da máquina, realizado na fábrica –


lugar de propriedade privada do empregador e com os instrumentos deste
– trabalho cujo resultado é propriedade do empregador e trabalho vendido
por unidade de tempo. E de um tempo ele próprio cada vez mais uniforme
e estandardizado – a fábrica exprime também o triunfo do relógio  – que
permite conceber este intercâmbio como a ‘venda’ de energias laborais por
unidade de tempo” (GOMES, 2007, p. 104).
119
trabalhador, a dependência económica pela subordinação jurídica –,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

indo muito além do seu protótipo tradicional, da matriz fabril que


esteve na sua génese. Ora, esta mesma ampliação subjetiva veio
a colocar em crise a unicidade, se não mesmo a unidade, do orde-
namento jurídico-laboral. A expansão importou, inevitavelmente,
uma certa diversificação regimental. Daí que a diversidade norma-
tiva constitua hoje, seguramente, uma das principais característi-
cas do ordenamento jurídico-laboral. Com efeito, surgindo o mundo
do trabalho assalariado, cada vez mais, como uma realidade multi-
forme e heterogénea, compreende-se que o correspondente direito
não possa apresentar-se como um bloco monolítico.
De forma sintética:
o Direito do Trabalho visa regular uma relação que, conquanto surja
em função do livre consentimento prestado por ambos os contraentes,
traduzido na voluntária celebração do contrato de trabalho (neste
sentido, o contrato representa sempre um ineliminável sinal de
liberdade pessoal), surge também como uma relação fortemente
assimétrica, cuja execução à pessoa do trabalhador se encontra pro-
fundamente envolvida. (AMADO, 2019, p. 28, grifo do original).

Daí que, no código genético deste ramo do Direito, se encontre a


sua feição protecionista do contraente débil, a sua função tuitiva do
prestador de trabalho, daquele que, ao prestá-lo, se submete à auto-
ridade, direção e fiscalização de outrem, inserindo-se no respetivo
âmbito de organização.
Para o Direito do Trabalho releva então, sobretudo, o fenómeno
do trabalho assalariado, subordinado, prestado por conta alheia. E
o mecanismo jurídico através do qual se realiza o acesso a esse
trabalho subordinado é o do contrato individual de trabalho.
Recordemos a respetiva noção, tal como se encontra hoje consa-
grada no artigo 11º do Código do Trabalho (CT):
Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singu-
lar se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade
a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a
autoridade destas.

Se cotejarmos a noção vertida no atual CT, de 2009, com a noção


constante do velho Código Civil (CCiv), de 1966, verificamos que se
registam algumas diferenças, julga-se que não muito significati-
vas. Quatro notas merecem, ainda assim, um breve apontamento:

120
I. O CT afirma, expressis verbis, que o trabalhador é, necessaria-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


mente, uma pessoa singular, “de carne e osso”, nunca uma pes-
soa coletiva (já o empregador, como se sabe, tanto poderá ser
uma pessoa singular como coletiva);
II. Ao passo que o CCiv alude à prestação de uma atividade intelec-
tual ou manual, o CT abstém-se de proceder a tal qualificação da
atividade prometida pelo devedor (o que talvez se justifique, tanto
em razão do respeito devido ao princípio da igualdade, como
pela tendencial homogeneização do trabalho inerente à revolu-
ção tecnológica dos nossos dias, que torna algo evanescente a
tradicional distinção entre trabalho manual e intelectual);
III. O CCiv apenas utilizava o singular quando se referia ao empre-
gador (não, claro, no sentido de que este teria de ser uma pessoa
singular, mas no sentido de que este seria apenas um), ao passo
que o CT admite, ainda que em casos contados, que um contrato
de trabalho vincule um trabalhador a vários empregadores (hipó-
tese de pluralidade de empregadores, prevista no artigo 101º do CT).
IV. O CCiv diz que o trabalhador prestará a sua atividade “sob a
autoridade e direção” do empregador, ao passo que o CT afirma
que esta será prestada “no âmbito de organização e sob a auto-
ridade” do empregador. Trata-se de uma nuance legislativa que
acentua o elemento organizativo, em regra empresarial, típico do
contrato de trabalho. A tônica é colocada no elemento da hete-
ro-organização, na inserção funcional do trabalhador numa
estrutura organizativa predisposta e dirigida por outrem. Dir-
-se-ia que a componente organizacional do contrato de traba-
lho, antes implícita, foi agora explicitada pelo legislador.2

2 Talvez seja possível ir mais longe com Fernandes (2017, p. 113-122), para quem
o novo segmento “no âmbito de organização”, em lugar da anterior “direção”,
consiste numa alteração suscetível de agilizar a qualificação do elemento
subordinação, adotando um conceito mais flexível de subordinação laboral, de
forma a abranger as novas formas de organização do trabalho e passando esta
nova matriz de laboralidade a abranger os trabalhadores economicamente
dependentes. Também Fernandes (2018, p. 97-107) considera existir uma
tendência para passar do critério formal da subordinação jurídica (assente
na existência de uma posição de autoridade juridificada de um sujeito sobre
o outro) para o critério material da dependência económica (assente numa
situação de supremacia de facto derivada da posição de um dos sujeitos
perante o mercado e o processo produtivo).

121
Assim, ontem como hoje, analisando a noção legal de contrato
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

de trabalho, conclui-se que este é constituído, essencialmente,


por três elementos: a prestação de trabalho; a retribuição; e, last
but not least, a subordinação jurídica. Quanto a esta última, ela
decorre do facto de o trabalhador se comprometer a prestar a sua
atividade “sob a autoridade e direção” da entidade empregadora
(ou, de acordo com a nova fórmula legal, “no âmbito de organiza-
ção e sob a autoridade” desta), sendo usual dizer que é neste ele-
mento que reside o principal critério de qualificação do contrato
de trabalho – e de distinção deste em face a contratos vizinhos.
A subordinação jurídica consiste no reverso do poder diretivo do
empregador, ou seja, no poder de o credor da prestação conformar,
através de comandos e instruções, a prestação a que o trabalhador
se obrigou, definindo como, quando, onde e com que meios deve
esta ser executada. Por isso o CT afirma que “compete ao empre-
gador estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado,
dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o
regem” (artigo 97º). E também, por isso, o mesmo diploma acres-
centa que o trabalhador deve “cumprir as ordens e instruções do
empregador respeitantes a execução e disciplina do trabalho, bem
como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias
aos seus direitos ou garantias” (artigo 128º, n. 1, e).
Como se depreende da simples leitura dessas normas, a subordi-
nação jurídica conhece limites (sob pena, aliás, de a condição do
trabalhador se degradar a uma condição servil), devendo acres-
centar que também comporta graus distintos, tanto podendo ser
muito intensa como exprimir-se em moldes bastante tênues e até
potenciais (desde logo, a subordinação jurídica não é incompatí-
vel com a autonomia técnico-executiva, típica, por exemplo, das
chamadas “profissões liberais”). E sublinhe-se, por último, que
se trata de uma subordinação de natureza jurídica, a qual não se
identifica com a dependência económica do prestador de ativi-
dade (isto é, com a circunstância de o trabalhador carecer dos
rendimentos do trabalho para satisfazer as suas necessidades
quotidianas). É  certo que esta é uma dupla que, em regra, anda
a par, cumulando o trabalhador a condição de sujeito juridica-
mente subordinado e economicamente dependente – e a lei, como
é óbvio, não pode nem deve ignorar esta tendencial coincidência.
Porém, há casos de divórcio entre ambas, visto que a dependência
económica pode viver desacompanhada da subordinação jurídica

122
(pense-se, por exemplo, em certas hipóteses do chamado “traba-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


lho parassubordinado”),3 sendo a inversa também verdadeira.

1.2 · A questão da qualificação do contrato


A prestação de trabalho pode, decerto, ocorrer ao abrigo de um con-
trato de trabalho. Mas é sabido que nem todo o trabalho humano
é enquadrado por este tipo contratual. A verdade é que, existindo
muitos contratos afins ou vizinhos ao de trabalho, aquele que mais
frequentemente surge na prática e que maiores dificuldades dis-
tintivas suscita é, justamente, o chamado “contrato de prestação
de serviço”. Já conhecemos a noção de contrato de trabalho. O CCiv
também define, porém, os contornos do contrato de prestação de
serviço, nos seguintes moldes: “Contrato de prestação de serviço
é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra
certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem
retribuição” (artigo 1154°). Este último é, aliás, um tipo contratual
muito vasto, abrangendo o mandato, o depósito e a empreitada
(artigo 1155º), mas admitindo, ainda, a existência de modalidades
atípicas de prestação de serviço (artigo 1156º). 4
Se confrontarmos a noção legal de contrato de trabalho vertida no
artigo 1152° do CCiv (e reproduzida, com as alterações já assinala-
das, no artigo 11° do CT) com a noção de contrato de prestação de
serviço vazada no artigo 1154° do mesmo diploma, logo topamos
com alguns traços distintivos essenciais. Assim: I) quanto ao con-
teúdo da obrigação, no contrato de prestação de serviço trata-se de
proporcionar ao credor certo resultado do trabalho, ao passo que,
no contrato de trabalho, está em jogo a prestação de uma ativi-
dade (o trabalhador promete uma atividade laboral, o prestador

3 O artigo 10º do CT estende a tutela concedida por algumas normas laborais


(as respeitantes a direitos de personalidade, igualdade e não discriminação
e segurança e saúde no trabalho) a situações em que ocorra prestação de
trabalho por uma pessoa a outra, sem subordinação jurídica, sempre que
o prestador de trabalho deva considerar-se na dependência económica do
beneficiário da atividade.
4 As maiores dificuldades de distinção colocam-se, porventura, entre o contrato
de trabalho e os contratos de empreitada ou de mandato. Mas os problemas
surgem, por vezes, em relação a outros contratos (contratos de avença, de
agência, de sociedade etc.).

123
de serviço compromete-se a proporcionar um resultado do traba-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

lho); II) quanto à retribuição, esta é um elemento essencial e inde-


fetível no contrato de trabalho (“mediante retribuição”), sendo um
elemento meramente eventual no seio do contrato de prestação
de serviço (“com ou sem retribuição”); III) quanto às instruções do
credor da prestação, no contrato de prestação de serviço não se faz
qualquer menção a estas, ao passo que no contrato de trabalho o
devedor presta a sua atividade “sob a autoridade e direção”, ou “no
âmbito de organização e sob a autoridade” da contraparte.
Em teoria, parece fácil delimitar as figuras, mas a verdade é que,
na prática, a distinção entre ambos os contratos revela-se, ami-
úde, bastante espinhosa. Se bem repararmos, em ambos os con-
tratos pode haver lugar à remuneração do prestador de serviço.
E o certo é que a dicotomia atividade/resultado também não é
muito esclarecedora: toda a atividade tende à obtenção de qual-
quer resultado, sendo que este sempre decorrerá da prestação de
qualquer atividade… Pelo que se diz, o verdadeiro critério distin-
tivo reside, no fundo, na (in)existência de subordinação jurídica
entre as partes da relação: se esta existir, aí teremos um contrato
de trabalho; se esta não existir, aí teremos uma modalidade qual-
quer do contrato de prestação de serviço.
Só que nem assim os problemas qualificativos desaparecem.
A riqueza e a variedade das situações da vida revelam-nos não pou-
cas zonas cinzentas de demarcação difícil, problema que se agrava
se nos esquecermos que, como anteriormente foi referido, a subordi-
nação jurídica é uma noção de geometria variável, comportando uma
extensa escala gradativa (dir-se-ia mesmo que, ao longo do passado
século, este elemento foi-se flexibilizando, tendendo a jurisprudên-
cia a detetá-lo perante formas cada vez menos vincadas de exercício
dos poderes empresariais), ao passo que, no contrato de prestação de
serviço, não deixa de haver espaço para a emissão de algumas ins-
truções genéricas por parte do credor da prestação.
Tudo, portanto, a dificultar a tarefa do intérprete-aplicador do
Direito, o qual, infelizmente, não dispõe de um “subordinômetro”.5

5 A propósito, sublinha-se que a subordinação jurídica, sendo um elemento


decisivo para a caracterização e qualificação do contrato de trabalho, “é
também, simultaneamente, um conceito de enorme problematicidade
aplicativa” (RIBEIRO, 2007, p. 355).

124
Se a isto juntarmos que não existe uma relação necessária entre a

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


natureza da atividade exercida e a respetiva qualificação contratual,
pois, como nota Ribeiro (2007, p. 355), “praticamente todo o labor
humano por conta de outrem pode ser prestado de forma autónoma
ou subordinada”, bem como que, por vezes, existe um desiderato de
mascarar a natureza subordinada da relação por parte dos respeti-
vos sujeitos (maxime por parte do credor dos serviços), então facil-
mente se compreenderá que este constitui um dos grandes desafios
que atualmente se colocam ao Direito do Trabalho.
Como dito anteriormente, é sabido que, desde as suas origens, o
Direito do Trabalho não visa regular todo o trabalho humano, mas
apenas o trabalho prestado em moldes juridicamente subordinados e
hierarquicamente dependentes – isto é, o trabalho de execução hete-
roconformada. E é outrossim bem conhecida a função tuitiva desem-
penhada por esse ramo do Direito, isto é, a feição protecionista assu-
mida por esse ramo do ordenamento jurídico. Não sendo a única, é
inegável que a função de tutela do trabalhador assalariado (da sua pes-
soa e do seu emprego) e de compressão/limitação dos poderes patro-
nais se encontra inscrita no código genético do Direito do Trabalho.
Ora, aqui chegados, dir-se-ia: se o Direito do Trabalho existe, e se
esse ramo do Direito protege os trabalhadores dependentes, com os
inerentes custos para a contraparte, então, numa perspetiva patro-
nal algo simplista, mas nem por isso pouco frequente, o melhor será
que, ao menos na aparência, deixe de haver trabalhadores dependen-
tes… Daí a larga difusão do fenómeno da chamada “fuga ao Direito
do Trabalho” ou “fuga ilícita para o trabalho autónomo” (MARTINS,
1997, p. 355),6 através da dissimulação fraudulenta de uma relação de
trabalho subordinado sob a capa de um falso trabalho independente,
prestado ao abrigo de um suposto “contrato de prestação de serviço”.
Esse fenómeno da manipulação abusiva da qualificação do contrato
é, aliás, bem conhecido dos juslaboralistas, traduzindo-se numa
simulação relativa sobre a natureza do negócio, com o objetivo de
evitar a aplicação da legislação laboral. Trata-se de uma simulação
relativa sobre a natureza do negócio, visto que o negócio osten-
sivo ou simulado (em regra, um qualquer contrato de prestação de

6 Trata-se, conforme indica o autor, de “situações em que intencionalmente se


faz uma errada qualificação das relações de trabalho com o intuito de evitar
a aplicação da legislação laboral” (1997, p. 341).

125
serviço) resulta de uma alteração do tipo negocial correspondente
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

ao negócio dissimulado ou oculto (contrato de trabalho). E tratar-


-se-á de uma simulação fraudulenta, dado que o intuito é o de con-
tornar a legislação laboral.7 In casu, este é um acordo simulatório
do qual, naturalmente, o trabalhador também participa, mas que,
normalmente, lhe é imposto pelo empregador como condição sine
qua non para proceder à respetiva admissão na empresa. Estamos,
pois, perante uma simulação negocial um tanto sui generis, quer
pela circunstância de a cooperação do trabalhador no acordo simu-
latório lhe ser de algum modo imposta pela contraparte, quer pelo
facto de o principal (ainda que não único) prejudicado com a simu-
lação acabar por ser, precisamente, o trabalhador.8

1.3 · O nomen iuris e o “princípio da primazia da realidade”


“Os contratos são o que são, não o que as partes dizem que são”, eis
um princípio geral do Direito que encontra intensa aplicação em
sede juslaboral. Na verdade, as partes são livres para concluir o
contrato x ou o contrato y, mas já não o são para celebrar o contrato
x dizendo que celebraram o contrato y – naquilo, e não nisto, con-
siste a sua liberdade contratual, consagrada no artigo 405° do CCiv
(nos termos do n. 1 deste artigo, “dentro dos limites da lei, as par-
tes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos,
celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir
nestes as cláusulas que lhes aprouver”).
A liberdade contratual não se confunde, pois, com a manipulação
ilícita da qualificação da relação: como diz Carvalho,
a liberdade contratual é a liberdade de modelar e de concluir os
negócios, não a de decidir arbitrariamente da lei a que eles devem
submeter-se (sobretudo se o nomen escolhido não corresponde às
estipulações). (1998, p. 22-23).

Destarte, apurando-se a existência de uma prestação de atividade


em regime de heterodeterminação e a troco de uma retribuição,

7 Sobre estas noções, ver Pinto (2005, p. 466).


8 Sobre as virtualidades e as dificuldades do recurso ao enquadramento
simulatório no âmbito do contrato de trabalho, realçando a importância
preponderante da fase executiva na tarefa de interpretação-qualificação
deste contrato, ver Vicente (2008, p. 57-122).

126
toparemos com um contrato de trabalho, e não com um qualquer

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


contrato de prestação de serviço, ainda que esta seja a designação
contratual adotada pelas partes. Trata-se, afinal, de dar prevalên-
cia à vontade real das partes, desvelada pela execução contratual,
sobre a vontade declarada. A doutrina brasileira alude, a este pro-
pósito, ao chamado “princípio da primazia da realidade”, precisa-
mente para vincar que as relações jurídico-laborais se definem pela
situação de facto, isto é, pela forma como se realiza a prestação
de serviços, pouco importando o nome que lhe foi atribuído pelas
partes. Com efeito, para o Direito do Trabalho, interessa menos o
que as partes dizem do que aquilo que elas fazem, porque o que
fazem ao longo da relação ilumina a real vontade das partes, isto
é, espelha com fidelidade aquilo que elas querem. Ademais, reitera-
-se, aquilo que elas dizem ou escrevem é, quase sempre, aquilo que
uma delas diz ou escreve e a outra se limita a aceitar e subscrever.9

1.4 · A qualificação contratual e a presunção de laboralidade


Como resultado anteriormente exposto, as questões ligadas à
qualificação do contrato em causa, designadamente no tocante à
prova da existência de uma relação de trabalho subordinado, assumem
uma importância decisiva em matéria de efetividade do Direito do
Trabalho. Em princípio, querendo o trabalhador fazer valer direitos
decorrentes da legislação laboral e suscitando-se a questão prévia
da qualificação da relação, recairia sobre o trabalhador, nos termos
gerais, o ónus de provar a existência, in casu, de um contrato de tra-
balho (recorde-se que, segundo o artigo 342°, n. 1, do CCiv, “àquele
que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos
do direito alegado”), ou seja, estando o ónus da prova a cargo do
trabalhador, caber-lhe-ia demonstrar a existência dos elementos
constitutivos do contrato de trabalho: retribuição, prestação de tra-
balho e factos que habilitassem o tribunal a concluir pela presença
de subordinação jurídica. E, nos casos de dúvida, era muito fre-
quente o recurso jurisprudencial ao chamado “método indiciário”,

9 Na recente Diretiva da União Europeia, n. 2019/1152, de 20 de junho de


2019, relativa a condições de trabalho transparentes e previsíveis na União
Europeia, considera-se, em conformidade com o acima escrito, que “a
determinação da existência de uma relação de trabalho deve basear-se nos
factos relativos à efetiva prestação de trabalho e não no modo como as partes
descrevem a relação” (Considerando n. 8).

127
de controlo múltiplo, em ordem a formular um juízo global sobre
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

a qualificação contratual. Assim, o tribunal recorria a uma bate-


ria de elementos indiciários como forma de testar a existência de
uma situação de autonomia ou de subordinação na prestação de
trabalho, tais como os referentes ao local de trabalho (quem deter-
mina e controla o local de execução da prestação?), ao horário de
trabalho (existe um horário definido para o desempenho da ativi-
dade laboral?), à modalidade da remuneração (certa ou variável?), à
titularidade dos instrumentos de trabalho (propriedade do credor
ou do devedor dos serviços?), à eventual situação de exclusividade
do prestador de serviços (existe dependência económica deste em
face do beneficiário dos serviços?), ao enquadramento fiscal e de
segurança social, ao próprio nomen iuris escolhido etc.
Tratava-se, repete-se, de meros tópicos indiciadores da existência
de subordinação jurídica, cuja verificação tinha de ser demons-
trada por quem estava onerado com o ónus da prova do contrato –
o trabalhador. Ora, se a prova dos elementos constitutivos do con-
trato de trabalho é, muitas vezes, difícil, poder-se-ia, para obviar
a tal dificuldade, recorrer a uma presunção legal de existência de
contrato de trabalho. Isso consta, aliás, da Recomendação n. 198 da
OIT (sobre a relação de trabalho), adotada em 15 de junho de 2006,
a qual preconiza que a legislação dos Estados-Membros estabeleça
uma presunção de contrato de trabalho, baseada em indícios rele-
vantes (artigo 11º, b). Foi o que veio a ser feito pelo nosso legislador,
a partir do CT de 2003, procurando, ao menos prima facie, contra-
riar a “fuga ao Direito do Trabalho” a que acima se aludiu. O legis-
lador estabeleceu, pois, uma presunção de laboralidade – a qual, por
definição, deveria facilitar a prova da existência de um contrato de
trabalho, perfilando-se como uma técnica de combate à dissimula-
ção ilícita de relações laborais.
Após dois ensaios claramente falhados, feitos em 2003 e em 2006,10
o atual CT consagra a referida presunção de laboralidade no seu
artigo 12º, n. 1, agora nos seguintes termos:
Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação
entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela
beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:

10 Para indicações sobre as duas primeiras versões da presunção de laboralidade,


em termos críticos, ver Amado (2019, p. 66-68).

128
a. A atividade seja realizada em local pertencente ao seu benefici-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


ário ou por ele determinado;
b. Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados per-
tençam ao beneficiário da atividade;
c. O prestador de atividade observe horas de início e de termo da
prestação, determinadas pelo beneficiário desta;
d. Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa
ao prestador de atividade, como contrapartida desta;
e. O prestador de atividade desempenhe funções de direção ou
chefia na estrutura orgânica da empresa.
O novo artigo 12º do CT não é, naturalmente, uma norma perfeita
e isenta de críticas. Longe disso, como procuraremos demonstrar
na parte final deste texto. Contudo pensamos que, à terceira ten-
tativa, o legislador finalmente acabou por estabelecer uma pre-
sunção de laboralidade com algum sentido útil. A lei seleciona um
determinado conjunto de elementos indiciários, considerando que
a verificação de alguns deles (dois?) bastará para a inferência da
subordinação jurídica. Assim, a tarefa probatória do prestador de
atividade resulta consideravelmente facilitada. Doravante, pro-
vando o prestador que, in casu, se verificam algumas daquelas caracte-
rísticas, a lei presume que haverá um contrato de trabalho, cabendo à
contraparte fazer prova em contrário. Desse modo, comprovando-se,
por exemplo, que a atividade é realizada em local pertencente ao
respetivo beneficiário e nos termos de um horário determinado por
este, ou provando-se que os instrumentos de trabalho pertencem
ao beneficiário da atividade, o qual paga uma retribuição certa ao
prestador desta, a lei presume a existência de um contrato de tra-
balho. Tratando-se de uma presunção juris tantum (artigo 350° do
CCiv), nada impede o beneficiário da atividade de ilidir essa pre-
sunção, demonstrando que, a despeito de se verificarem aquelas
circunstâncias, as partes não celebraram qualquer contrato de tra-
balho. Mas, claro, o onus probandi passa a ser seu (dir-se-ia que a
bola passa a estar do seu lado), pelo que, não sendo a presunção
ilidida, o tribunal qualificará aquele contrato como um contrato de
trabalho, gerador de uma relação de trabalho subordinado.
Pelo exposto, também para o julgador esta presunção reduz a com-
plexidade da valoração a empreender, dado que, pelo menos num

129
primeiro momento, ele poderá concentrar-se nos dados que inte-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

gram a presunção, circunscrevendo a base factual da sua aprecia-


ção. De certa forma, esta presunção representa uma simplificação
do método indiciário tradicional, visto que, como ponto de partida,
ela dispensa o intérprete de proceder a uma valoração global de
todas as características pertinentes para a formulação de um juízo
conclusivo sobre a subordinação. Trata-se, porém, como vamos ver,
de uma presunção construída tendo em conta as formas de prestar
trabalho típicas do séc. XX. O surgimento do chamado “trabalho
4.0”, em particular o trabalho prestado com recurso a platafor-
mas eletrónicas (work-on-demand via apps, como sucede no caso
dos motoristas que prestam serviços sob a marca Uber), veio criar
novos desafios, aos quais, porventura, a atual presunção de labo-
ralidade constante do CT não consegue dar resposta satisfatória.

2 · A Lei n. 45/2018, de 10 de agosto, e a presunção


de laboralidade
O legislador lusitano veio recentemente regular esta matéria, de
forma um tanto peculiar. Com efeito, segundo se lia na Exposição
de Motivos da Proposta de Lei n. 50/XIII – que pretendia esta-
belecer o regime jurídico da atividade de transporte individual
e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados
(TVDE, “transporte em veículo descaracterizado a partir de pla-
taforma eletrónica”), bem como o regime jurídico das platafor-
mas eletrónicas que organizam e disponibilizam aos interessados
aquela modalidade de transporte –,
as empresas tecnológicas que instituem e organizam, a partir de
plataformas digitais, mercados de serviços de transportes atuam
como intermediários de negócios desse tipo e não como prestado-
res dos serviços contratualizados a partir dessas plataformas.

Daí resulta, acrescenta-se na Exposição de Motivos, que,


além de não outorgarem elas próprias os contratos de transporte,
estas plataformas não têm a obrigação de prestar o serviço, ou
tão-pouco se caracterizam por disponibilizar os meios humanos e
materiais afetos à prestação de serviço.

Obedecendo a esta premissa, a lei entretanto publicada – Lei


n. 45/2018, de 10 de agosto – distingue a figura do operador de

130
TVDE, pessoa coletiva que efetua transporte individual remune-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


rado de passageiros, da figura do operador de plataformas eletró-
nicas, definidas estas como
infraestruturas eletrónicas da titularidade ou sob exploração de pes-
soas coletivas que prestam, segundo um modelo de negócio próprio,
o serviço de intermediação entre utilizadores e operadores de TVDE
aderentes à plataforma, na sequência [de reserva] efetuada pelo utili-
zador por meio de aplicação informática dedicada (artigo 16º).

Nesses termos, os operadores de plataformas eletrónicas dedi-


car-se-iam, sobretudo, a prestar serviços de intermediação da
conexão entre o utilizador (leia-se: o passageiro)11 e o operador do
serviço de TVDE, bem como ao processamento do pagamento
do serviço de TVDE por conta do respetivo operador (cobrando
uma taxa de intermediação, a qual não pode ser superior a 25% do
valor da viagem, nos termos do artigo 15º, n. 3).12
O contrato com o motorista, esse, será celebrado pelo operador de
TVDE e não pelo operador de plataforma eletrónica. Como se lê no
artigo 2º, n. 3, da lei,
[a] prestação de um serviço de TVDE inicia-se com a aceitação, por
um motorista ao serviço de um operador, de um pedido de transporte
entre dois pontos submetido por um ou mais utilizadores numa
plataforma eletrónica e termina com o abandono pelo utilizador
desse veículo, depois de realizado o transporte para o destino sele-
cionado, ou por qualquer outra causa que implique a cessação de
fruição do veículo pelo utilizador. [Grifo nosso].

11 Nos termos do artigo 5º, n. 1, da lei, “o serviço de TVDE só pode ser contratado
pelo utilizador mediante subscrição e reserva prévias efetuadas através de
plataforma eletrónica”.
12 Sobre os serviços disponibilizados pelos operadores de plataformas eletrónicas, vd.
o disposto no artigo 19° da lei. Entre esses serviços, contam-se o de disponibilizar
mecanismos transparentes, credíveis e fiáveis de avaliação da qualidade do
serviço pelo utilizador, nomeadamente por botão eletrónico de avaliação relativo
a cada operação, bem como o botão eletrónico para apresentação de queixas (n.
1, d), assim como a identificação do motorista, incluindo o seu número único
de registo de motorista de TVDE e fotografia (n. 1, e). Em vez, é expressamente
proibida a criação e a utilização de mecanismos de avaliação de utilizadores por
parte dos motoristas de TVDE ou dos operadores de plataformas eletrónicas (n. 5
do mesmo artigo). A atividade de operador de plataformas eletrónicas está sujeita
a licenciamento, nos termos do artigo 17°, procurando a lei estabelecer garantias
quanto à idoneidade de tais operadores (artigo 18°).

131
E, como decorre do disposto no artigo 10º, “apenas podem conduzir
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

veículos de TVDE os motoristas inscritos junto de plataforma ele-


trónica” (n. 1). O motorista de TVDE, que presta serviço ao operador
de TVDE, deve preencher, cumulativamente, diversos requisitos,
entre eles o de “dispor de um contrato escrito que titule a rela-
ção entre as partes” (n. 2, e). E, na mesma lei, acrescenta-se que o
operador de TVDE observará todas as vinculações legais e regula-
mentares relevantes para o exercício da sua atividade, incluindo as
decorrentes da legislação laboral, de segurança e saúde no trabalho
e de segurança social (artigo 9º, n. 2).13
Decorre da lei que o contrato escrito, celebrado entre o motorista
e o operador de TVDE, pode ser, mas não tem de ser, um contrato
de trabalho. A lei prevê ambas as hipóteses, a do motorista vincu-
lado por contrato de trabalho e a do motorista independente (assim
resulta com clareza, desde logo, do n. 12 do artigo 10°, relativo ao
regime de organização do tempo de trabalho). Porém, o artigo 10°,
n. 10, da Lei n. 45/2018 determina que
[a]o vínculo jurídico estabelecido entre o operador de TVDE e o
motorista afeto à atividade, titulado por contrato escrito assinado
pelas partes, e independentemente da denominação que as partes
tenham adotado no contrato, é aplicável o disposto no artigo 12.º
do Código do Trabalho.

Assim, a lei faz expressa remissão à presunção de laboralidade


estabelecida no CT, afirmando e confirmando a sua aplicação nesta
sede. Note-se, porém (e este é um ponto absolutamente decisivo
para se compreender o alcance desta norma): a lei refere-se ape-
nas ao vínculo contratual existente entre o operador de TVDE e o
motorista; a lei não se refere ao vínculo contratual entre o operador
de plataforma eletrónica e o motorista, porque parte do princípio
de que este vínculo contratual não existirá.
Desse modo, segundo a lei portuguesa, empresas como a Uber, por
exemplo, serão típicas operadoras de plataforma eletrónica, pres-
tando serviços de intermediação entre os utilizadores/passageiros
e os operadores de TVDE. E estes operadores de TVDE, enquanto

13 Norma esta replicada pela lei, exatamente nos mesmos termos, para o
operador de plataformas eletrónicas, no artigo 17°, n. 11. E também a atividade
de operador de TVDE está sujeita a licenciamento, com a lei a estabelecer
regras tendentes a garantir a respetiva idoneidade (arts. 3º e 4º).

132
pessoas coletivas dedicadas a efetuar transporte individual remu-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


nerado de passageiros, é que prestarão esse serviço e contratarão
os motoristas necessários para esse efeito, em regime de contrato
de trabalho ou não. Aparentemente, o motorista não celebrará
qualquer contrato com o operador de plataforma eletrónica, ainda
que, para exercer a atividade, o motorista tenha de estar inscrito
nesta. E a verdade é que a lei não deixa de colocar na esfera do ope-
rador de plataforma eletrónica deveres típicos da entidade empre-
gadora, designadamente em matéria de controlo do tempo de tra-
balho prestado pelo motorista e de respeito pelos limites máximos
previstos. A este propósito, veja-se, sobretudo, o disposto no artigo
13°, com a epígrafe, “Duração da atividade”, no qual se pode ler:
Os motoristas de TVDE não podem operar veículos de TVDE
por mais de dez horas dentro de um período de 24 horas, inde-
pendentemente do número de plataformas nas quais o motorista
de TVDE preste serviços, sem prejuízo da aplicação das normas
imperativas, nomeadamente do Código do Trabalho, se estabele-
cerem período inferior (n. 1);

Os operadores de plataformas eletrónicas devem implementar


mecanismos que garantam o cumprimento dos limites referidos
no número anterior (n. 2);

As plataformas eletrónicas devem conservar durante dois anos


os registos de atividade dos operadores TVDE, motoristas e veí-
culos, de acordo com o seu número único de registo de moto-
rista de TVDE (n. 3).

Acresce que, nos termos do artigo 20°, n. 3, relativo aos deveres


gerais dos operadores de plataformas eletrónicas, “o sistema infor-
mático deve registar os tempos de trabalho do motorista, e o cum-
primento dos limites de tempo de condução e repouso”,14 ou seja,

14 Também o artigo 14° evidencia o papel central dos operadores de plataforma


eletrónica nesta matéria, ainda que, cremos, dele resulte alguma repartição
de tarefas entre operadores de plataforma eletrónica e operadores de TVDE.
Assim, segundo este preceito, relativo ao controlo e limitação da atividade,
cabe ao operador da plataforma eletrónica assegurar o pleno e permanente
cumprimento dos requisitos de exercício da atividade previstos na lei (n. 1),
devendo bloquear o acesso aos serviços prestados pela plataforma por parte
dos operadores de TVDE, motoristas ou veículos que incumpram qualquer
dos requisitos referidos na lei, sempre que disso tenha ou devesse ter
conhecimento (n. 2). Todavia, segundo o n. 3 do mesmo artigo, o acesso à
plataforma eletrónica de motoristas de TVDE que não cumpram os requisitos

133
de forma altamente inovadora e até surpreendente,15 se pensarmos
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

na jurisprudência que se tem produzido a este respeito, por todo o


resto do mundo, a lei portuguesa coloca uma terceira entidade de
permeio entre o operador de plataforma eletrónica (suponhamos: a
Uber ou outra empresa do género) e o motorista. Dir-se-ia que, em
regra, há três intervenientes neste processo: a Uber, o motorista e o
passageiro. Contudo, em Portugal há quatro,16 porque quem presta
o serviço de transporte remunerado de passageiros não é propria-
mente o motorista, antes é, necessariamente, uma outra empresa,
distinta da operadora de plataforma eletrónica – o chamado “ope-
rador de TVDE”. E este operador, pessoa coletiva, é que celebrará
contrato com os motoristas…
O juízo sobre a bondade da lei portuguesa nessa matéria, com o seu
expresso apelo à presunção de laboralidade, não pode, pois, deixar
de ser muito cauteloso. A lei portuguesa, em matéria de transporte
individual e remunerado de passageiros através de plataforma
eletrônica, não enjeita que os motoristas envolvidos tenham um
contrato de trabalho. A lei até afirma que, independentemente da
denominação que as partes tenham dado ao contrato celebrado, a
esse contrato será aplicável a presunção de laboralidade constante
do artigo 12° do CT. Mas atenção! O contrato aqui em causa, ao qual
se aplica a dita presunção, não envolve a Uber ou qualquer outro

referidos no número anterior ou que tenham deixado de reunir estes, após


o acesso à atividade, é da responsabilidade do respetivo operador (fica-nos a
dúvida sobre se a lei, aqui, se refere ao operador de plataforma eletrónica ou
ao operador de TVDE, mas cremos que se tratará deste último), sem prejuízo
dos poderes cometidos ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I. P., e
demais entidades fiscalizadoras.
15 Esta configuração relacional já se encontrava presente na Proposta de Lei n.
50/XIII, suscitando alguma preocupação nos autores que tiveram ensejo de
comentar essa proposta de diploma, em perspetiva jurídico-laboral, por tender
a obnubilar a possível relação de trabalho subordinado estabelecida entre o
motorista/operador de TVDE e o operador de plataforma eletrónica. Neste
sentido, ver também Amado e Santos (2016, p. 111-127) e Vicente (2018, p. 86-92).
16 Note-se, contudo, que esta existência de quatro entidades só ocorre no caso
do setor de transporte, porque a lei em apreço trata do regime jurídico da
atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos
descaracterizados. Apenas, pois, relativamente a estas plataformas. No que
concerne a outras plataformas que não executem este tipo de atividades,
como acontece, por exemplo, com a Glovo, que também opera em Portugal, o
regime a aplicar será o geral e não o desta lei.

134
operador de plataforma eletrónica. Este contrato será celebrado

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


entre o motorista e o operador de TVDE. E isto, como é óbvio, faz
toda a diferença, porque implica que empresas como a Uber não
terão, parece, qualquer contrato com os motoristas nelas inscritos (!),
pois se verifica aqui a interposição, ex vi legis, de uma outra e nova
entidade – o operador de TVDE, que, poderá, este sim, assumir o
estatuto de entidade empregadora do motorista.
Veremos como todo este processo se vai desenrolar. Veremos se a
realidade dos factos vai corresponder ao desenho traçado na Lei n.
45/2018. Por nós, diríamos apenas que parece haver aqui operadores
em excesso, quiçá demasiadas pessoas coletivas, para efetuar este
tipo de transporte de passageiros… Veremos se o operador de TVDE
e o motorista são, realmente, pessoas distintas, entre as quais se
celebra um contrato, eventualmente um contrato de trabalho, ou se,
pelo contrário, haverá casos (porventura muitos, porventura a maio-
ria…) em que o motorista constituirá, para o efeito, uma pessoa cole-
tiva com familiares seus ou até, quiçá, uma sociedade unipessoal, de
que ele será o sócio único, para se dedicar a este tipo de atividade e
celebrar consigo mesmo, enquanto motorista, um contrato de tra-
balho – assim deixando livre de vinculações contratuais laborais, ao
menos prima facie, o operador de plataforma eletrónica…17
Veremos, pois, se a interposição de pessoas prevista na lei portu-
guesa não se traduzirá, em alguns casos, numa interposição fictícia
de pessoas, de certa forma organizada ou estimulada pelo legisla-
dor. Se de interposição fictícia se tratar, isto é, se, ao contrário do
que o legislador supõe, vier realmente a existir uma relação contra-
tual entre o operador de plataforma eletrónica e o motorista (desig-
nadamente pelo facto de este e o operador de TVDE serem, afinal,
um só, o motorista “pejotizado”), também, nesse caso, será aplicável
a presunção vertida no artigo 12° do CT.
Dito isto, importa reconhecer a inadequação da presunção de
laboralidade, nos moldes atualmente estabelecidos pelo CT,
para enfrentar os problemas emergentes das novas formas de

17 A isto chama-se, no Brasil, “pejotização”, um expediente fraudulento, um


“meio legal de praticar uma ilegalidade, que se caracteriza pela exigência dos
tomadores de serviços para que os trabalhadores constituam pessoas jurídicas
como condição indispensável para a prestação dos serviços” (FRANCO FILHO,
2013, p. 317). Resta aguardar e ver o que realmente irá suceder entre nós; ver
como e quem irá atuar, em Portugal, no domínio do TVDE.

135
trabalhar através de plataformas eletrónicas e de apps. Fatores
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

como a propriedade dos equipamentos e instrumentos de traba-


lho,18 a existência de um horário de trabalho determinado pelo
beneficiário da atividade, o pagamento de uma retribuição certa
etc., são indícios clássicos de subordinação jurídica, mas são indí-
cios escassamente operacionais para enfrentar os novos tipos
de dependência resultantes da prestação de serviços para uma
determinada empresa, via apps…
Em síntese, a nova lei, que estabelece o regime jurídico da atividade
de transporte individual e remunerado de passageiros em veícu-
los descaracterizados a partir de plataforma eletrónica, fazendo
expressa remissão para a presunção de laboralidade constante
do artigo 12° do CT, suscita, na sua vertente jurídico-laboral, duas
questões fundamentais: a primeira, a de apurar até que ponto o
modelo desenhado pela lei tem tradução na realidade da vida, por-
que esse modelo pressupõe a inexistência de qualquer contrato de
trabalho entre a empresa operadora de plataforma tecnológica e o
motorista, em virtude do aparecimento em cena de um outro ator,
o operador de TVDE; a segunda, a da provável necessidade de atu-
alizar os índices de subordinação jurídica vertidos no artigo 12° do
CT, índices estes, porventura, adequados para o trabalho do séc.
XX, mas já não para o trabalho do séc. XXI e da era digital em que
agora quase todos vivemos e muitos trabalham.
Dir-se-ia, em suma, que, um pouco por toda a parte, os tribunais
têm experimentado consideráveis dificuldades para procederem ao
enquadramento jurídico do trabalho prestado através de platafor-
mas tecnológicas, registando-se flutuações significativas quanto à
qualificação deste como trabalho subordinado, trabalho autónomo
ou trabalho “parassubordinado”. Em todo o caso, as decisões judi-
ciais assumem sempre a existência, neste âmbito, de três sujeitos:
a plataforma tecnológica, o trabalhador ou prestador de serviços e

18 O CT exige que os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados


pertençam ao beneficiário da atividade (artigo 12°, b). A este propósito, a
Lei n. 45/2018 esclarece que, para os referidos efeitos, se considera que
os equipamentos e instrumentos de trabalho são todos os que sejam
pertencentes ao beneficiário ou por ele explorados por aluguer ou qualquer
outra modalidade de locação (n. 11 do artigo 10°). De resto, pode discutir-se se o
instrumento de trabalho, no caso das plataformas digitais de condução, será
o automóvel ou a própria plataforma, visto que só com esta é que se verifica a
ligação entre o condutor e o cliente.

136
o cliente. E a discussão se centra na qualificação da relação jurídica

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


que se estabelece entre a empresa que opera através da plataforma
tecnológica e os que lhe prestam serviços remunerados, de forma
autónoma ou subordinada (por exemplo, entre a Uber e os respeti-
vos motoristas).19 Ora, quanto a isto, como se assinalou, a lei portu-
guesa não deixa de conter uma originalidade assaz curiosa.

Referências
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FERNANDES, Liberal. A noção de contrato de trabalho no Código de


2009: evolução ou continuidade? Questões Laborais, Coimbra, ano XXIV,
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Coimbra: Almedina, FDUNL, 2018. p. 97-108.

FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Dicionário brasileiro de direito do


trabalho. São Paulo: LTr, 2013.

19 A este propósito, merece destaque a reflexão de Guy Davidov. O autor


(DAVIDOV, 2017, p. 9), a despeito de reconhecer que existem alguns sinais
de autonomia no caso destes motoristas (“they have a relatively high degree
of freedom to choose how much to work and when to do so”), bem como que a
titularidade do automóvel é do próprio motorista, não deixa de concluir que os
sinais de controlo/subordinação e de dependência económica em face da marca
sob a qual e para a qual trabalham apontam para a ideia de que os motoristas
da Uber, atenta a sua vulnerabilidade perante esta, não devem ser excluídos da
tutela juslaboral, seja pela via da sua consideração como employees, tout court,
seja pela via da sua qualificação como trabalhadores parassubordinados.

137
GOMES, Júlio. Direito do trabalho. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

MARTINS, Pedro Furtado. A crise do contrato de trabalho. Revista de


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PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 4. ed. Coimbra:
Coimbra Editora, 2005.

RIBEIRO, Joaquim de Sousa. As fronteiras juslaborais e a (falsa)


presunção de laboralidade do artigo 12.º do Código do Trabalho. In:
RIBEIRO, Joaquim de Sousa. Direito dos contratos: estudos. Coimbra:
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VICENTE, Joana Nunes. A fuga à relação de trabalho (típica): em torno da


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VICENTE, Joana Nunes. Implicações sociais e jurídico-laborais da


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SILVA, Paulo Renato Fernandes da (org.). A reforma trabalhista: reflexos
da reforma trabalhista no direito do trabalho, no direito processual do
trabalho e no direito previdenciário. São Paulo: LTr, 2018. p. 86-92.

138
Neuromarketing e sedução dos
trabalhadores: o caso Uber

Ana Carolina Reis Paes Leme


Analista Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho
da 3ª Região. Doutoranda e Mestra pelo Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).

Resumo: O problema dos motoristas e ciclistas da Uber vem sendo


tratado de maneira diminuta no Brasil, deixando-se de apontar aspectos
relevantes relacionados à forma como a sociedade e os próprios
trabalhadores enxergam essa relação jurídica. A proposta do presente
artigo é indicar as ferramentas de Neuromarketing, em conjunto com
técnicas de publicidade, teoria das cores e captura da subjetividade, que
a empresa vem utilizando para convencer o público em geral de que
seu trabalho não é exploratório do capital humano e que, por isso, não
se relaciona ao Direito do Trabalho nem é por ele protegido. O tema-
-problema, qual seja, como se dá a relação entre o Neuromarketing e a
sedução dos motoristas e ciclistas da Uber no impedimento do acesso
à justiça, terá como marco teórico a concepção do Neuromarketing e
objetivará verificar em qual medida as técnicas de contramarketing
podem auxiliar na via de direitos.

Palavras-chave: Direito do Trabalho. Vínculo empregatício. Uber.


Neuromarketing.

Abstract: The problem of Uber drivers and cyclists has been addressed
lightly in Brazil, failing to point out relevant aspects related to the way
society and the workers themselves view this legal relationship. The
purpose of this paper is to indicate the Neuromarketing tools, together
with advertising techniques, color theory and subjectivity capture,
which the company has been using to convince the general public that
its work is not exploratory of the human capital and that it is, therefore,
not related to or protected by Labor Law. The problem-theme, namely,
how is the relationship between Neuromarketing and the seduction of

139
Uber drivers and cyclists in preventing access to justice, will have as its
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

theoretical framework the conception of Neuromarketing and will aim to


verify in what extent countermarketing can assist in the rights path.

Keywords: Labor Law. Labor contracts. Uber. Neuromarketing.

1 · Introdução
O presente artigo visa a demonstrar como a empresa Uber uti-
liza técnicas do Neuromarketing, da ciência comportamental, da
teoria das cores e dos princípios cromáticos para capturar a sub-
jetividade de trabalhadores a fim de atrair, de maneira sutil, uma
multidão de motoristas e ciclistas “independentes” e formar um
exército de “autônomos”, além de conseguir o engajamento dos
clientes que, inclusive, defendem a marca. Tudo isso com o obje-
tivo de viabilizar seu negócio e maximizar seu crescimento expo-
nencial, em nível quase planetário.
Os motoristas e ciclistas da Uber, em tese, são empreendedores ou
donos de “empresas independentes”, em vez de empregados tradi-
cionais. Isto lhe permite minimizar os custos de mão de obra, na
linha das empresas de custo marginal zero,1 bem como transfe-
rir riscos ou mesmo se blindar contra eles. Todavia, defender essa
suposta autonomia significa não poder obrigar os motoristas e
ciclistas a comparecerem em um local e horário específicos. E essa
incerteza quanto à disponibilidade poderia causar estragos em um
serviço cujo objetivo é transportar passageiros e alimentos sem
interrupções, quando e onde quiserem os usuários.
Ao que tudo indica, a solução para essa indesejada incerteza, então,
vem sendo a inserção de incentivos psicológicos e outras técnicas
descobertas pela ciência comportamental no algoritmo, para influen-
ciar quando, onde e por quanto tempo os motoristas e ciclistas tra-
balham. Foram elaboradas estratégias para criar um sistema, em
tese, perfeitamente eficiente sob a ótica da empresa: um equilíbrio
entre a demanda e o fornecimento de motoristas e entregadores de
alimentos com o menor custo para os passageiros e para a empresa.
A conta não fecha, contudo, para os trabalhadores, como se veri-
fica em uma série de dados que demonstram a precarização de

1 Como descrito na obra de Rifkin (2016).

140
suas condições, como a baixa remuneração e a transferência dos

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


ônus do negócio para estes (LEME, 2018b). Por que, então, eles
continuam se sujeitando a essas condições de trabalho e aten-
dendo às expectativas da empresa? Seria apenas por necessidade
ou falta de outro trabalho?
Em entrevista a Scheiber, Michael Amodeo, o porta-voz da Uber,
afirmou que a empresa mostra áreas de alta demanda como forma
de incentivar a continuidade do uso do aplicativo. Entretanto, em
sua visão, “qualquer motorista pode parar de trabalhar literal-
mente ao toque de um botão – a decisão de dirigir ou não é 100%
deles” (SCHEIBER, 2017, tradução livre).
Acontece que essa decisão de dirigir ou não, na realidade,
não é 100% dos trabalhadores, em virtude das técnicas de
Neuromarketing utilizadas para entrar na mente dos motoristas e
ciclistas e influenciá-los a trabalhar sempre mais. E é esse o tema
abordado no presente artigo, que tem como objetivo compreender
como as ferramentas do Neuromarketing e da ciência comporta-
mental vêm sendo utilizadas no caso Uber.

2 · A captura da subjetividade e a investigação do


Ministério Público do Trabalho: a denúncia e o inquérito
Philip Kotler, considerado o “mestre do marketing”, ensina que “o
papel mais importante do marketing digital é promover a ação e
a defesa da marca” e o “do marketing 4.0 é reconhecer os papéis
mutáveis do marketing tradicional e do marketing digital na obten-
ção do engajamento e da defesa da marca pelos clientes”, estratégia
utilizada pela Uber (KOTLER, 2017, p. 69).
A prova de que a Uber se utiliza de técnicas da ciência compor-
tamental pode ser obtida da análise dos depoimentos dos seus
empregados que comandavam a logística e a operação no Brasil.
Em 14 de março de 2016, o Ministério Público do Trabalho (1ª
Região) recebeu denúncia sigilosa contendo a seguinte notícia de
fato: “os mais de mil motoristas da Uber estão sem amparo jurí-
dico, a empresa não cumpre a lei”. Foi instaurado o Inquérito Civil
n. 001417.2016.01.000/6.
No curso da investigação, o Ministério Público do Trabalho, por meio
da Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região, requisitou à
141
investigada Uber que informasse os nomes dos empregados formais
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

no Brasil que foram dispensados nos doze meses anteriores, o que


resultou em nove ex-empregados da Uber do Brasil Tecnologia Ltda.
intimados, a fim de instruir o procedimento investigatório e averi-
guar possíveis ilícitos trabalhistas praticados no território brasileiro.
No mencionado procedimento investigatório, consta o depoimento
do coordenador de operações que manteve vínculo empregatício
com a Uber do Brasil de janeiro a julho de 2016. Em sua declaração,
ele esclareceu que “o objetivo da empresa é ter eficiência, evitando-
-se a catástrofe, ou seja, ter o maior número possível de motoristas,
desde que estes não causem qualquer mal à imagem da empresa”
(BRASIL, 2016, p. 161-184; 212-214).
Conforme informou o gerente-geral, havia bloqueio de motoristas
por inatividade (“desativar quem trabalhasse pouco”) e suspensões
por recusa de corridas solicitadas2 (“a taxa de aceitação mínima era
de 80% dos pedidos”). Afirmou que se “lembra de um caso de um
motorista que foi excluído por recrutar motoristas da Uber para
outro concorrente” e que o setor de marketing monitorava as horas
online de todos os motoristas e a quantidade de pedidos de clientes
atendidos (BRASIL, 2016, p. 161-184; 212-214).
O coordenador de operações explicou, detalhadamente, como
funcionavam as suspensões e os banimentos do aplicativo, com
a desativação no caso de média abaixo de 4,4. Indicou ainda o
padrão de atendimento, pressupondo balas e água, trajes sociais,
ar-condicionado, etc. (BRASIL, 2016).
Pessoas ouvidas no inquérito do MPT prestaram informações
detalhadas sobre a política de incentivos, no sentido de garantir
um pagamento mínimo por hora de ativação (e não somente pela
viagem); ou seja, remuneravam-se os motoristas para que ficassem
online durante certos eventos ou datas comemorativas, como pas-
sagem de ano e carnaval.3

2 Ressalte-se que os motoristas não sabem de antemão se o pagamento será feito


em dinheiro ou cartão e, muitas vezes, cancelam as corridas quando chegam a
um local que consideram perigoso e se lhe indica que o pagamento da corrida
será em dinheiro. Assim, são penalizados por adotarem medidas de segurança.
3 No final de 2016, a Uber enviou e-mail a seus motoristas, falando sobre a alta
demanda nos dias 23, 25, 30 e 31 de dezembro e 1º de janeiro, com tabela que

142
Nos autos do inquérito, o ex-gerente-geral informou que “o aplica-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tivo continha funcionalidades para incentivar os motoristas a fica-
rem online por mais tempo, indicando os potenciais ganhos, inde-
pendente da jornada acumulada”. Preocupado com a segurança dos
condutores e passageiros, chegou a questionar seus superiores sobre
o controle da jornada de trabalho dos motoristas; porém, afirmou
que recebeu a seguinte resposta: “não podemos controlar a jornada
porque isso seria um risco trabalhista”. O controle, contudo, sempre
foi realizado por meio do GPS, conforme por ele afirmado.
Confirmando a política de incentivos mediante o próprio algoritmo –
sistema que mostra os ganhos atuais e projeta quais seriam os
futuros –, explicou o ex-gerente de operações que tais mecanis-
mos incentivam o motorista a não desligar o aplicativo. Em suas
palavras, tais incentivos podem parecer “bobos”, mas “funcionam
realmente, acaba virando um cassino”, e os motoristas ficam cada
vez mais tentados a ficar mais horas trabalhando (BRASIL, 2016,
p. 161-184; 212-214).
O fato de parecer “bobo” revela como o controle se faz forte e, ao
mesmo tempo, sutil, quase imperceptível. Na era digital, da nuvem,
que prega a autonomia e a liberdade, há uma neblina que turva a
visão, e o motorista ou o ciclista não percebem que estão sendo
explorados, tendo sua subjetividade capturada (ALVES, 2010).
Entretanto, um olhar mais atento consegue perceber, em meio ao
nevoeiro, as práticas empresariais que muito escondem a reali-
dade, por trás de ardilosos enredos de Neuromarketing.
A subjetividade do trabalhador é capturada, na medida em que este
se vê inserido em um sistema algorítmico como se fizesse parte
de um jogo de videogame, impulsionado, por imagens, sons, cores,
frases, incentivos gráficos luminosos, brilhantes e coloridos, a con-
tinuar apertando o botão e aceitando as corridas, sem ter sequer o
tempo de analisar o custo versus o benefício daquele trabalho.
É certo e até compreensível que muitas empresas tentem conven-
cer os consumidores a comprarem seus produtos e serviços usando

informava o preço bruto por hora que os motoristas poderiam ganhar, que
variava de R$ 35,00 a R$ 70,00. No entanto, há requisitos que podem impedir
os ganhos, pois o trabalhador terá que aceitar no mínimo 85% das viagens e
completar 1,8 viagem por hora dentro dos períodos promocionais.

143
truques psicológicos. O intrigante foi perceber que esses esforços
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

para a força de trabalho são potencialmente transformadores. De


fato, vêm funcionando dia após dia, capturando a subjetividade de
motoristas e ciclistas, como será demonstrado em detalhes a seguir.

3 · Publicidade e propaganda, teoria das cores e


naturalização da autoexploração
No início de 2016, a Uber mostrou ao mundo seu plano de “colocar
mais pessoas em menos carros”, em palestra proferida por seu CEO,
Travis Kalanick (HISTORY, 2016). Defendeu que seu novo modelo de
transporte de passageiros poderia reduzir os congestionamentos, a
contaminação do meio ambiente e os espaços ocupados por estacio-
namentos veiculares ao colocar um número maior de indivíduos em
um menor número de automóveis, por meio de seus smartphones.
Em uma das projeções, Kalanick afirmou que, como empresa, os
sócios se deram conta de que vários usuários solicitavam um con-
dutor simultaneamente e, em razão disso, a logística do aplicativo
teve que ser repensada, para “colocar essas pessoas em um mesmo
carro” (HISTORY, 2016), surgindo a ideia do compartilhamento de
veículos (ride sharing), também chamado de UberPool.
Na ocasião, foram apresentados os supostos resultados de redução
de emissão de toneladas de CO2 nas viagens compartilhadas em São
Francisco, Los Angeles e também em algumas cidades da China. A
cena mais impressionante da apresentação, contudo, foi o plano de
tornar o mundo então cinza em um mundo verde. A projeção apre-
sentava como seria a Uber World após a implantação de todo o projeto
de introdução de parques no lugar de estacionamentos, em um plano
de recuperação do meio ambiente nas grandes cidades espalhadas
pelo globo terrestre. Kalanick expôs, também, seu projeto de self-
-driving car, ou seja, o carro automático que funciona sem motorista,
deixando claro que é do Estado a responsabilidade pela profissiona-
lização ou requalificação dos motoristas que ficarão sem trabalho.
É possível dizer que sempre fez parte da estratégia de marketing da
Uber difundir, como missão institucional, noções como a melhoria
do meio ambiente, a redução da poluição, a retomada das áreas ver-
des das cidades e o incentivo ao compartilhamento de carros, ou
seja, os valores do novo milênio. A empresa também enfatiza que o

144
mais importante são as pessoas a quem serve: os motoristas, já que

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


a “Uber utiliza bits e átomos para criar tecnologias que sirvam às
pessoas, e não o contrário” (HISTORY, 2016).
Destaca-se a aliança que a Uber faz com marcas e valores ligados
ao público jovem. Seus comerciais trazem o bordão “Trabalhe com
a Uber quando quiser”, “Seja seu chefe, dirija seu carro”, contando
com a presença de atores asiáticos, negros, jovens e idosos, sempre
felizes e com tempo para a família, estudos, hobbies e amigos. Isso
porque o motorista tem a liberdade de “tocar seu negócio do jeito
que quiser, sem deixar de lado o que realmente importa”. 4 Os diver-
sos comerciais contam com a presença de pessoas bem-sucedidas,
e a mensagem é a seguinte: “Uber, o motorista privado de todos”.5
As propagandas da Uber são veiculadas internacionalmente. No
Brasil, a primeira campanha publicitária televisiva foi ao ar em
julho de 2017, com o comercial “Jeito Diferente”, no intervalo do
“Fantástico”, da TV Globo. O vídeo traz uma narração em primeira
pessoa de um motorista que conta sobre como “o Uber mudou a
sua vida”. A campanha mostra que o mesmo carro que o motorista
usa para ganhar seu dinheiro e sustentar a família é usado nos
momentos de lazer e descanso (DEARO, 2017).
A empresa, como se nota, utiliza de técnicas de sedução, que vão
desde publicidade e propaganda muito bem elaboradas até técnicas
de Neuromarketing, para convencer clientes, consumidores, moto-
ristas e até o Poder Público de que é um serviço essencial à popula-
ção, mas, na realidade, opera na ilegalidade.
As cores das propagandas, da logomarca e do aplicativo também
são escolhidas para seduzir e ludibriar. O azul, por exemplo, foi a
cor originalmente escolhida para ser a logomarca da empresa e

4 Exemplo da linguagem do “Uber Commercial”, entre várias outras peças


muito bem produzidas que estão disponíveis na plataforma do YouTube,
seguindo o mesmo padrão de mostrar que essa atividade seria secundária e
feita por trabalhadores felizes por seguirem seus sonhos.
5 Outros exemplos de “Uber Commercial” que atrelam o sucesso profissional
à utilização do aplicativo podem ser encontrados em Uber (2014) e Comercial
(2015), e mostram que todos, pessoas negras, brancas, asiáticas, desde
estudantes, casais, famílias, idosos com crianças, empresários, jovens
talentos e pessoas bem-sucedidas podem, igualmente, ter um motorista
privado da Uber. E todos também podem ser motoristas da Uber.

145
também representa o ícone da tecnologia; contudo, é usado quase
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

como uma ilusão de ótica, pois essa tecnologia implantada pela


Uber não está trazendo tranquilidade e conforto para as pessoas.
É falaciosa a bandeira defendida pela Uber de que a empresa leva
em consideração o fator humano em primeiro lugar. Esse azul que
representaria “tranquilidade” está mais para um cinza “poluição”,
devido ao aumento notório de carros alugados após a Uber entrar
em funcionamento no Brasil.
As cores possuem aptidão para gerar efeitos psicológicos nas pes-
soas, influenciando o psiquismo humano com sua eficiência no
domínio estético. Goethe afirmou que a cor ocupa lugar destacado
entre os “fenômenos naturais primários”, pois cada cor produz “um
efeito específico sobre o homem, revelando assim sua presença
tanto na retina como na alma”; daí porque se pode deduzir que
“a cor pode ser usada para determinados fins sensíveis, morais e
estéticos” (PEDROSA, 1982).
Fica claro que o modelo é de poder sobre a subjetividade, para obter o
comportamento desejado não mais por coação, mas como ação livre,
com convicção. A autoexploração é muito mais intensa e funcional.
Para isso, o discurso do marketing se revela o grande modelo de coor-
denação da ação social. Cores, então, também têm o seu papel na
construção de realidades falsas, mas sedutoras aos trabalhadores.

4 · As estratégias de marketing utilizadas pela


Uber no convencimento de motoristas, ciclistas e
do público em geral
As estratégias de marketing surtiram efeitos tanto em relação aos
motoristas e ciclistas quanto aos consumidores e até as institui-
ções, prova disso foi o resultado dos dados colhidos na pesquisa de
campo realizada durante o mestrado da autora deste artigo (LEME,
2018b), que mostrou como é baixo o número de demandas judicia-
lizadas (apenas 137) diante do alto número de motoristas ativos na
plataforma (aproximadamente quinhentos mil em todo o Brasil)
que dirigem a serviço da Uber, além da inexistência de acórdão
favorável à tese dos motoristas, à época.
É interessante dizer que, em países de tradição neoliberal, já existem
decisões reconhecedoras de direitos trabalhistas aos motoristas da

146
Uber, e, no Brasil, não havia sequer um único acórdão até agosto

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


de 2018. Até o momento de redação deste artigo, foram proferidos
apenas dois acórdãos que reconheceram o vínculo de emprego
entre um motorista e a empresa Uber, um do Tribunal Regional do
Trabalho da 2ª Região, e outro da 3ª Região.6
A Uber promove uma desarticulação linguística ao chamar empre-
gado de “microempresário-parceiro”, transporte clandestino de
“Uber”, vínculo empregatício de “parceria”, empregador de “agente de
conexão”, metas de produtividade de “estrelas” e fraude de “mágica”.
Aos olhos do grande público, a “mágica” continua a acontecer. A
chegada da Uber foi espetacular, a empresa atingiu um cresci-
mento exponencial, em nível quase planetário, e foi magnífica sob
a ótica da comodidade, do preço, da rapidez, da informalidade, da
praticidade e da ausência de vínculo social com aquele que dirige o
carro ou pedala, o motorista ou o ciclista.
No entanto, uma análise a fundo revela que a mágica, para aconte-
cer, não considera os integrantes do espetáculo em sua totalidade
e, por isso mesmo, a conta não fecha. Assim, infere-se que, apenas
com uma estratégia de Neuromarketing, foi possível convencer essa
multidão de pilotos (motoristas e ciclistas) a realizar o serviço de
transporte vendido pela empresa.
Segundo a reportagem How Uber uses psychological tricks to push
its drivers’ buttons, veiculada no The NY Times,
[...] empregando centenas de cientistas sociais e cientistas de
dados, a Uber experimentou técnicas de videogames, gráficos e
recompensas de pouco valor que podem levar os motoristas a tra-
balhar mais e com mais afinco – e às vezes em horários e locais
menos lucrativos para eles. (SCHEIBER, 2017, tradução livre).

Scheiber (2017) afirma que essa estratégia de explorar a caracte-


rística de alguns de estabelecer metas de lucro tem como base um
algoritmo semelhante ao recurso da Netflix, que reproduz o pró-
ximo episódio de forma automática. Assim, o motorista recebe a
próxima oportunidade antes mesmo de terminar sua corrida atual.

6 Veja a íntegra da decisão do TRT da 3ª Região traduzida para o inglês e o


espanhol em: https://rodrigocarelli.org/2019/08/13/acordao-do-trt-3a-regiao-
vinculo-de-emprego-de-motorista-com-a-uber-integra-da-decisao-em-
portugues-ingles-e-espanhol/.

147
Esse sistema foi denominado pelo autor de uma “espécie de purga-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

tório legal e ético”, já que a contratação independente remove as


proteções empregatícias, e esse domínio mental pode levar a uma
nova era pré-New Deal.
Acerca da deturpação linguística e da comunicação ostensiva que a
Uber mantém com os trabalhadores a fim de “combater a escassez”,
falou sobre o desespero da empresa para evitar a ausência de aten-
dimento, o que afeta a percepção sobre os surtos de tarifas altas. A
empresa, como técnica, procura encorajar os motoristas a se diri-
girem a áreas de escassez (SCHEIBER, 2017).
O autor relatou, ainda, que a manipulação adotada pela Uber como
estratégia de convencimento é sorrateira. E essa manipulação teve
impactos nos próprios motoristas e ciclistas, chegando ao ponto de
gerentes locais adotarem uma persona feminina para aumentar a
aceitação. Além disso, havia uma preocupação com o abandono da
plataforma antes do bônus de assinatura, fazendo com que o apli-
cativo iniciasse outros incentivos (SCHEIBER, 2017).
Assim, como se concluiu em outra oportunidade (LEME, 2018b),
embora o experimento parecesse “bobo” e inócuo, na verdade, ele
havia sido primorosamente calibrado. A reportagem aponta que os
cientistas de dados da empresa haviam descoberto anteriormente
que, quando os motoristas atingiam o limite de 25 passageiros, sua
taxa de atrito caía acentuadamente (SCHEIBER, 2017).
A utilização de técnicas do Neuromarketing reflete o que psicólogos
e designers de videogames sabem há muito tempo, ou seja, que o
incentivo a um objetivo concreto pode motivar as pessoas a conclu-
írem uma tarefa, o chamado reforço positivo.
Apesar de Amodeo, o porta-voz da Uber entrevistado por Scheiber,
defender, com naturalidade, a prática como se ética fosse, é óbvio,
como afirmou Chelsea Howe, citada por Scheiber (2017), que “a
motivação internalizada é o tipo mais poderoso”. E isto nada mais
é do que a utilização do Neuromarketing.
Scheiber contou, também, que a empresa Lyft já teria descoberto e
usado essa técnica em 2013. Kristen Berman, uma das consultoras
citadas por Scheiber, explicou, em uma apresentação em 2014, que
o experimento teve raízes no campo da economia comportamental,
que estuda as falhas cognitivas que frequentemente distorcem a
tomada de decisão. Sua descoberta central derivou de um conceito
148
conhecido como aversão à perda, que sustenta que as pessoas “não

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


gostam de perder mais do que gostam de ganhar”, disse Berman
(SCHEIBER, 2017). Ainda assim, afirmou Scheiber que Berman reve-
lou, em uma entrevista, que a Lyft acabou decidindo não usar a
abordagem de aversão à perda, o que sugere que a empresa traçou
linhas mais brilhantes no que se refere à manipulação potencial.
Scheiber citou as conhecidas mensagens que os motoristas da Uber
recebem como “incentivo a continuarem dirigindo”, o que, no Direito
do Trabalho, é conhecido como “meta de produtividade”. Tais men-
sagens possuem a intenção de explorar outro tique comportamental
relativamente difundido – a preocupação das pessoas com os objeti-
vos –, induzindo os motoristas a dirigirem por mais tempo.

5 · O trabalho como esteira ou jogo digital


A Uber envia mensagens funcionais aos seus pilotos, sem que estes
necessitem de uma meta específica de renda em mente. A funcio-
nalidade ocorre simplesmente pelo vício no jogo. Não há final, e o
game over só ocorre quando o aplicativo é desligado.
E a Uber tira vantagens desse “ciclo lúdico”. Como bem observou
Scheiber (2017), em suas mensagens para os motoristas, a Uber
incluía um gráfico de um indicador de motor com uma agulha que
se aproximava tentadoramente de um sinal de dólar. Todas essas
métricas podem estimular os impulsos competitivos que incitam
ao jogo compulsivo.
A título de ilustração, transcreve-se o depoimento do motorista
Evanylson, entrevistado na pesquisa etnográfica coordenada por
Rodrigo Carelli (2017, p. 132), que diz não se sentir subordinado e, ao
mesmo tempo, relata estar exatamente numa espécie de jogo; obser-
vando-se essa situação sob a ótica do Direito do Trabalho, mais parece
que o “piloto” da Uber encontra-se em uma espécie de esteira digital:
Não sinto [subordinação em relação à Uber]. É um trabalho como
outro qualquer: tem um aplicativo, as regras deles que eu tenho que
seguir como parceiro do aplicativo [...] Eu gosto daqui porque eu faço
o meu horário, trabalho tranquilo. Trabalhar à noite é mais perigoso,
mas eu gosto. Me sinto como um profissional autônomo: a Uber não
exige o dia ou a hora em que eu tenho que trabalhar. Eu entrei pra
Uber pela qualidade de vida, eu não tinha no meu emprego anterior.
Aqui eu tenho mais liberdade, posso viajar quando quiser. Eu sigo
149
o aplicativo: pra onde ele me levar, eu vou levando. Isso aqui é meio
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

viciante [...] Você quer descansar, mas toca [o alerta de solicitação de


corrida] e você vai de novo. (apud CARELLI, 2017, p. 136).

“A coisa toda é como um videogame”, disse Eli Solomon, motorista


veterano da Uber e da Lyft na região de Chicago, ao entrevistador
Scheiber. Eli disse que às vezes teve que lutar contra o impulso
de trabalhar mais depois de dar uma olhada em seus dados. Além
disso, a Uber pode ir muito além, pois há poucos limites para os ele-
mentos a serem usados, já que a coleta de dados é surpreendente, e
não há controle trabalhista sobre a questão (SCHEIBER, 2017).
Chega-se, assim, ao seguinte contexto: ao mesmo tempo em que o
potencial de controle da programação algorítmica é elevado, a per-
cepção de que se está sendo controlado é muito sutil, o que gera difi-
culdade de o titular do direito reconhecer a lesão. Além disso, com a
exigência de produtividade através de metas disfarçadas de gamifi-
cação, até o Poder Judiciário vem sendo ludibriado pelas avançadas e
sedutoras técnicas de Neuromarketing adotadas pela Uber.

6 · O foco do Neuromarketing no caso Uber: aspecto


midiático-legislativo e judicial
Em um breve artigo, Arussy indica que o botão de compra não
existe, já que o foco do marketing “deve ser no coração do consu-
midor, e não no cérebro”, excluindo o Neuromarketing do marketing
tradicional (ARUSSY, 2009).
O primeiro visa
[...] estudar quais emoções são relevantes no processo de tomada de
decisão dos indivíduos e usar desse conhecimento para otimizar a
efetividade do marketing. Esse conhecimento é aplicado em design de
produto, aprimorando promoções e publicidade, precificação, design
de loja e melhorando a experiência do consumidor como um todo.7

Os estudos de Neuromarketing revelam que os processos de deci-


são dependem em grande medida de áreas cerebrais relacionadas à

7 Conforme o original: “Neuromarketing studies which emotions are relevant


in human decision making and uses this knowledge to improve marketing’s
effectiveness. The knowledge is applied in product design, enhancing promotions
and advertising, pricing, store design and the improving the consumer experience
in a whole”. (WHAT IS…, 2019).
150
emoção – porque inclusive o ritmo de vida limita a possibilidade de

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


racionalizar as decisões se baseando em prós e contras – e que as
novas tecnologias permitem estudar as reações do cérebro a certos
estímulos precisos de sedução, para satisfazer necessidades, dese-
jos, motivações ou aspirações (CONILL-SANCHO, 2012, p. 57-58).
Diante disso, pode-se afirmar que o Neuromarketing compreende o
impacto dos estímulos de marketing por meio da observação e inter-
pretação das emoções humanas,8 a fim de influenciar a tomada de
decisão e mascarar a realidade, dando-lhe contornos ilusórios. A
partir desse conceito, constatou-se a existência de um cenário de
manipulação jurídica por parte da empresa Uber.
Verificou-se que, no caso Uber, o marketing é uma forma de obs-
curecer e, portanto, desencorajar o motorista a lutar por seus
direitos, pois, logo no estágio inicial do processo de reconheci-
mento da violação do direito, o trabalhador é manipulado pela
doutrina do “empreendedorismo”.
Essa estratégia se divide em dois aspectos, quais sejam: (I) midi-
ático-legislativo, com a construção de um aparato publicitário de
enfrentamento aos projetos de lei que visavam a limitar a atuação
da empresa no País e o controle maior por parte do Estado, inclu-
sive exigindo licença para atuação (LEME, 2018a, p. 40); (II) judicial,
mediante propositura de acordos em processos trabalhistas com o
intuito de evitar a formação de jurisprudência de tribunais reco-
nhecedora de direitos trabalhistas aos motoristas.
Para melhor explicitar essa estratégia, pode-se dizer que o modus ope-
randi da Uber se conforma a partir de um mapeamento do órgão julga-
dor, ao fazer análise de risco, tomando como parâmetro a distribuição
do recurso para colegiados de Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs)
em processos nos quais a empresa vislumbrasse possibilidade de reco-
nhecimento de vínculo empregatício, independentemente da decisão
de primeira instância ser procedente ou improcedente.
A título de exemplo, traz-se à baila a pesquisa de campo realizada no
TRT da 3ª Região sobre as ações trabalhistas em curso e arquivadas

8 De acordo com Helena Shigaki, Carlos Gonçalves e Carolina dos Santos (2017),
“uma definição de Neuromarketing foi dada por Luttikhuis, coordenadora de
marketing da Neuromarketing Science & Business Association (NMSBA), que dizia:
‘Neuromarketing tem por objetivo entender o impacto dos estímulos de marketing,
pela observação e interpretação das emoções humanas’ (ZIELINSKI, 2016)”.
151
de motoristas contra a Uber. Utilizando-se a somatória dos dados
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

obtidos por meio da Certidão Eletrônica de Ações Trabalhistas


(Ceat) com os dados levantados na consulta de processos arqui-
vados, o cruzamento de informações revelou que: dentre dezoito
reclamações trabalhistas arquivadas, onze delas tiveram acordo
homologado entre as partes. Assim, somando-se estes onze pro-
cessos já arquivados com o único processo em curso que mostra
acordo homologado (LEME, 2018a), chegou-se a um dado revelador,
que aponta a manipulação das estatísticas contrárias ao reconhe-
cimento da relação de emprego e da própria jurisprudência do TRT
da 3ª Região. Do total de processos em curso e já finalizados con-
tra a Uber, doze tiveram acordos firmados e, em quatorze deles, há
decisões que negam o vínculo.
Explica-se que, se a pesquisa de campo não tivesse lançado mão
dos dados relativos aos processos arquivados, o cenário seria outro.
Isto porque tais processos não figuram na Ceat, ou seja, não se
encontram nos registros. Assim, a Uber claramente se aproveita
dessa situação para moldar um contexto fictício com relação à
jurisprudência dos Tribunais Trabalhistas no tema que lhe é de
interesse: o não reconhecimento de direitos trabalhistas de seus
motoristas. Com isso, dificulta-se propositalmente o acesso à jus-
tiça pela via dos direitos dos trabalhadores que dirigem mediados
pelas plataformas virtuais, nesse caso, a Uber.
Se se parte do pressuposto de que o Neuromarketing tem como obje-
tivo analisar as emoções relacionadas ao processo de tomada de
decisão, é possível entender que este compreende o impacto dos
estímulos de marketing por meio da observação e interpretação das
emoções humanas, com vias de influenciar a tomada de decisão e
mascarar a realidade, dando-lhe contornos ilusórios. E é exatamente
isso o que vem ocorrendo nos casos de motoristas e ciclistas da Uber.

7 · Conclusão
A Uber se utiliza de técnicas de Neuromarketing, das cores e da
ciência comportamental para capturar a subjetividade de trabalha-
dores a fim de atrair de maneira sutil uma multidão de motoristas
e ciclistas “independentes” e formar um exército de “autônomos”.
Com isso, cumpre seu objetivo de viabilizar seu negócio e maximi-
zar seu crescimento exponencial.

152
Seja por meio da desarticulação linguística, da visão do trabalho

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


como esteira ou jogo digital, seja pelas ludibriações midiático-legis-
lativas e judiciais, tanto trabalhadores quanto a própria sociedade
são enganados em relação à natureza e à consequência dos servi-
ços prestados. Por isso, a busca de formas de enfrentamento surge
como imprescindível, tanto as sistêmicas – sugerindo-se aqui a
politização e a articulação das instituições – como as de mobiliza-
ção dos sujeitos (ou indivíduos) e as de enfrentamento coletivo, com
os mecanismos de contramarketing.
A via de acesso encontra-se, assim, congestionada. Dentro de seus
automóveis e em suas bicicletas, motoristas e ciclistas da Uber se
distraem com os avisos coloridos e luminosos cheios de dizeres sedu-
tores, criativos, contemporâneos, criados de forma astuciosa pela
equipe de marketing, e com as articulações linguísticas inerentes ao
mundo eletrônico. Tais jogos de palavras também atraem a atenção
dos usuários, entre os quais se incluem também os operadores da
Justiça. Com isso, a via de acesso aos direitos não flui como poderia.

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155
Formas de contratação do trabalhador na
prestação de serviços sob plataformas digitais

Murilo Carvalho Sampaio Oliveira


Juiz do Trabalho. Professor Adjunto da Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Doutor em Direito pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR).

Resumo: Este artigo trata do debate a respeito das empresas de


plataformas da indústria 4.0 e a reflexão sobre o enquadramento destas
como economia de compartilhamento. Aborda o exemplo do Airbnb
e seus problemas de desregulação. Ao discorrer sobre as plataformas
digitais de trabalho, apresenta a Uber como um caso-modelo. Examina os
argumentos de decisões judiciais e administrativas sobre os motoristas
da Uber para, ao final, apresentar incipientes conclusões.

Palavras-chave: Economia digital. Economia de compartilhamento.


Plataformas digitais de trabalho. Uberização. Precarização do trabalho.

Abstract: This text deals with the debate of the business platforms of
industry 4.0 and the reflection on the framework of these as economy
of sharing. It addresses the example of Airbnb and its deregulation problems.
When dealing with digital working platforms, it presents the Uber as a
model case. It examines the arguments of judicial and administrative
decisions on Uber drivers and, in the end, presents incipient conclusions.

Keywords: Digital economy. Sharing economy. Electronic work platforms.


Uberization. Precarious work.

1 · Introdução: A indústria 4.0 e os novos arranjos


do trabalho
A era contemporânea da eficiência econômica não pressupõe mais
concentração de recursos e meios de produção como em uma
grande fábrica e seus largos estoques. Ao contrário, a potencialidade

157
tecnológica permite que apenas um celular seja o elo com a cadeia
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

produtiva de transporte, como ocorre com a Uber, ou com o meca-


nismo de reserva de hospedagem, exemplo do Airbnb.
São paradigmas dessa indústria 4.0 as empresas de plataformas,
nas quais os meios de produção são basicamente a capacidade de
processamento de informações, a exemplo do Facebook, Google,
Amazon e Netflix. Na atualidade, essas empresas digitais já pos-
suem maior valor do que as típicas empresas fabris. Como con-
sequência dessas disrupções na forma de organizar as empresas,
ocorrem, igualmente, transformações e novos arranjos no modo de
trabalhar por meio dessas plataformas digitais de trabalho.
Este texto corresponde ao resumo da palestra com o mesmo título
ocorrida no dia 21/2/2019, no Simpósio “Futuro do trabalho: os
efeitos da quarta revolução industrial na sociedade”, organizado
pela Escola Superior do Ministério Público da União, em Salvador.
A revisão bibliográfica, pesquisa jurisprudencial e reflexões aqui
apresentadas são resultado da pesquisa realizada na Faculdade de
Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), financiada pelo
Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) no projeto de iniciação cien-
tífica (Pibic) intitulado Uberização do trabalho: análise crítica das
relações de trabalho prestadas pelos aplicativos.

2 · Economia do compartilhamento: o caso Airbnb


No campo da indústria 4.0, muito se propala que a economia do
compartilhamento e que as plataformas eletrônicas representam
um novo “mundo” e uma nova maneira de ser e trabalhar.
A ideia de economia do compartilhamento é a conexão entre con-
sumidores e prestadores de serviços intermediados por empresas
de plataforma ou por redes sociais. O desenvolvimento da internet,
da sua velocidade e da capacidade de armazenagem são os elemen-
tos essenciais para a criação e para as potencialidades da economia
de compartilhamento. Trata-se de uma lógica de eficiência da uti-
lização dos bens, inclusive na perspectiva ambiental, mas também
estruturada na negação do caráter possessivo sobre a propriedade,
que pode e deve ser compartilhada.
No discurso da economia do compartilhamento, preponderam as
propagandas de conexão, envolvimento com a comunidade local e

158
uso compartilhado. O ditado popular inglês What’s yours is mine (o

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


que é seu é meu) é o emblema desse compartilhamento. Por outro
lado, os modelos de empresas de plataforma, tal como a Uber e o
Airbnb, têm sido casos de sucesso empresarial e econômico justa-
mente por se situarem num campo de atividade não regulada.
Assim, o padrão capitalista de organização da economia logo se
apodera do discurso colaborativo e impõe uma tônica tipicamente
sua para as plataformas de comunicação, concebidas inicialmente
sob o regime de economia do compartilhamento. O Ebay, apontado
como ancestral da economia do compartilhamento (SLEE, 2017, p.
241), é um exemplo adequado do que um modelo inicial de “venda
na garagem” de produtos usados e sem mais utilidade para o ven-
dedor tornou-se após apropriado pela lógica capitalista, sendo uma
das maiores plataformas de venda de produtos novos.
Ao contrário do discurso romântico ligado à economia do com-
partilhamento, inclusive com pitadas de anticapitalismo, diversas
empresas de plataformas de comunicação baseiam-se no meca-
nismo de conexão entre pessoas e reproduzem uma lógica típica de
mercado, mas desprovida de qualquer regulação.
Como exemplo dessa atuação à margem da legislação, o Airbnb
surgiu baseado numa tentativa de compartilhar uma residên-
cia sem caráter comercial. A plataforma de “colchão inflável e
café da manhã” logo assumiu o protagonismo por seu sistema
de hospedagem barato, atuando como típica empresa capita-
lista. Consequentemente, evidenciaram-se problemas de regu-
lação, especialmente com o crescimento do sistema de subloca-
ção e a extinção de locações duradouras para dar lugar a novas
locações via Airbnb.
Nessa plataforma, também ocorrem problemas de ordem tribu-
tária, porque se trata de um aluguel sem emissão de notas fis-
cais. Estão ainda implicados conflitos com vizinhos, visto que um
imóvel residencial teria uma escala de utilização semelhante à
de um hotel, gerando confrontos naquela unidade dentro de um
condomínio, a qual terá a movimentação bem superior à de uma
unidade residencial, além de gerar problemas de urbanismo ao
converter bairros residenciais próximos aos centros turísticos
em locais de hospedagem com seus problemas de sazonalidade,
deslocamentos e horários.

159
3 · O trabalho nas plataformas digitais
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

No âmbito do trabalho, atualmente encontram-se diversas plata-


formas digitais, alcançando setores da economia de transportes,
serviços, profissionais liberais, entre outros. Essas plataformas
criam um mercado de pessoas conectado com os consumidores,
que necessitam de serviços específicos oferecidos por outras pes-
soas. A virtualidade da interconexão promove o encontro do tra-
balhador prestador com o consumidor, sujeitos que dificilmente se
encontrariam por meios físicos ou presenciais.
Além da diversidade de plataformas, há também diferenças signi-
ficativas sobre as formas e modos de trabalhar nessas empresas
da indústria 4.0. A despeito da novidade do tema e das incipientes
pesquisas, podem-se dividir os arranjos do trabalho em dois gran-
des campos, seguindo a classificação de Valerio de Stefano: crowd­
work e work on-demand.
[...] Enquanto a primeira envolve a realização de tarefas a partir
de plataformas online, a segunda trata da execução de traba-
lhos tradicionais (como transporte e limpeza) ou de escritório,
demandados em aplicativos gerenciados por empresas. (OITAVEN;
CASAGRANDE; CARELLI, 2018, p. 13).

A ideia de trabalho em multidão (crowdwork) envolve a intensa frag-


mentação do trabalho em tarefas bem simples e que somente se
viabilizam se realizadas simultaneamente por um conjunto con-
siderável de pessoas, uma multidão. Essas tarefas sozinhas não se
constituem numa atividade profissional tradicional, mas, quando
somadas e articuladas na totalidade, formam uma multidão em
trabalho com maior produtividade. O desenvolvimento do algo-
ritmo pela inteligência artificial possibilita que este substitua as
pessoas em tarefas mais simples, como nos sistemas de captcha.
Em contraste, a ideia de trabalho sob demanda envolve a presta-
ção completa, por um trabalhador, de uma atividade classificada
como um serviço.
O trabalho “on-demand” por meio de aplicativos se relaciona com
a execução de atividades laborais tradicionais [...]. Os serviços são
oferecidos por meio de aplicativo, que estabelece e garante um
padrão de qualidade mínimo na realização do trabalho, bem como
seleciona e gerencia a mão de obra. (OITAVEN; CASAGRANDE;
CARELLI, 2018, p. 17).
160
Nos Estados Unidos, foram exemplos iniciais as plataformas digi-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tais de serviços tais como Homejoy e TaskRabbit. Nestas, a venda
é de mera força de trabalho, com serviços de limpeza, carregador,
pedreiro, encanador, entre outros, para o TaskRabbit, e serviços
domésticos de diarista, para o Homejoy (SLEE, 2017, p. 145 e 151).
No entanto, nessas plataformas vários riscos do negócio são repas-
sados ao trabalhador, a exemplo do cancelamento das chamadas,
do tempo de espera não remunerado e do risco social de doença ou
acidente, além das despesas com equipamentos ou veículos.
A faixa salarial desses trabalhadores, a partir de um tempo de
vivência de trabalho via plataforma, é bastante diminuta e, logi-
camente, inversa às propagandas que as plataformas fazem.
Surge, assim, o discurso em que o lema é que esta remuneração é
melhor que nada.
Como síntese, os trabalhadores dessas plataformas são postos, no
prisma formal-contratual, na posição jurídica de parceiros autôno-
mos. São tidos como livres para se ativar ou desativar no horário de
sua escolha; contudo, por ganharem tão pouco, são impelidos sem-
pre a trabalhar o máximo da jornada fisicamente possível. Curioso
que, na condição de autônomos, não têm autonomia para fixar o
preço de seu trabalho, recusar clientes ou mesmo avaliar seu par-
ceiro, a plataforma eletrônica.

4 · O caso Uber
A Uber é o caso de maior destaque e até designado como “econo-
mia-Uber” por ser um modelo de gestão de atividade econômica na
indústria 4.0. O padrão Uber não começou pela própria, mas sim
pela empresa de plataforma denominada Lyft.
A precursora Lyft deu início à virada de aplicativos de transportes
do eixo da economia do compartilhamento para a prática da eco-
nomia capitalista. Nesta plataforma de transporte, os motoristas,
em busca de uma certa quantia de dinheiro, faziam percursos não
programados ou fora do seu roteiro, a fim de coletar passageiros;
ou seja, saiu-se de um padrão em que um motorista proporcionava
carona compartilhada a outra pessoa para um tipo padrão de venda
de um serviço de transporte pelo motorista com seu carro próprio
mediante o pagamento de certa quantia.

161
A Uber foi fundada em 2009 com a proposta de ser uma empresa de
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

transportes de carros de luxo (limusine) sem vinculação, autopro-


clamada como economia do compartilhamento. Em 2013, a Uber
passou a investir em transportes por meio de carros populares
com custo mais barato, para fazer concorrência à Lyft, designando
este serviço como UberX.
O processo de capitalização da Uber foi tão extraordinário que con-
seguiu em pouco tempo arrecadar quantia superior a todo o valor
da somatória de três empresas concorrentes de locação de veículos,
que são a Avis, Hertz e a Enterprise.
É traço caraterístico da Uber a utilização de um algoritmo que
monitora as demandas, cruza os dados de oferta e procura, eleva
os preços e desloca motoristas para atender aos preços majorados,
além de avaliar os motoristas (OITAVEN; CASAGRANDE; CARELLI,
2018, p. 19). Com isso, cria uma “lei de mercado virtual”, claramente
dirigida a lhe favorecer com o chamado “preço dinâmico”.
No estudo empírico de Emilly Guendelsberger, foi detectado que,
em termos percentuais, a Uber cobra em média 28% do valor das
corridas e que as despesas com a operação de veículo correspon-
dem a 19%. Por consequência, um motorista de Uber americano
recebe uma média líquida de 9 dólares por hora de trabalho, per-
centual muito próximo ao de um trabalhador que recebe um salá-
rio-mínimo americano e muitas vezes inferior ao salário-mínimo
de um taxista (SLEE, 2017, p. 118).
Tom Slee explica que, mesmo sendo muito barato o trabalho como
motorista da Uber, esta é uma maneira de receber rapidamente uma
renda para quem, normalmente, faz a conversão do seu patrimônio
(veículo) em capital e tem flexibilidade de horário, sendo também
uma saída emergencial para uma crise econômica (SLEE, 2017, p. 119).
A mudança unilateral da política de preços das tarifas e da reten-
ção da parte da Uber é indicativa de uma forte direção dos serviços
e, por outro lado, de uma situação de vulnerabilidade por parte do
motorista, que não tem as condições econômicas ou jurídicas de
resistir e de exigir equivalência das prestações contratuais.
Na Uber, a vigilância sobre o motorista é ininterrupta. Sabe-se o
seu local exato em tempo real e até se programa a sua próxima via-
gem. Quando o motorista indica que encerrará sua jornada, a Uber

162
lhe envia mensagens de estímulos e até com oferta de premiações

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


para a continuidade da disposição ao trabalho.
Por outro lado, não há escolha do motorista quanto às viagens
demandadas, aliás o trabalhador sequer sabe qual itinerário irá
percorrer com o cliente demandante. Caso o motorista tente burlar
o sistema da Uber recusando corridas curtas, o poder punitivo se
manifesta severamente: “A rejeição de viagens não rentáveis coloca
em risco a continuidade do motorista no aplicativo, uma vez que a
empresa pode suspendê-lo ou excluí-lo” (OITAVEN; CASAGRANDE;
CARELLI, 2018, p. 19).

5 · As decisões judiciais e administrativas sobre o


trabalho em plataformas digitais
No globo, diversas ações judiciais e igualmente demandas admi-
nistrativas foram propostas para verificar a condição de empre-
gado ou não do motorista da Uber. Trata-se de perquirir se aquela
situação propagandeada de parceria e autonomia se mostra, no
plano fático e de acordo com cada ordenamento jurídico nacional,
caracterizadora de vínculo empregatício.
Na Inglaterra, alguns ex-motoristas ajuizaram ação trabalhista
contra a Uber no Tribunal do Trabalho de Londres, sob o número
2202550/2015, com o objetivo de se reconhecerem os autores como
empregados (workers). Foi declarado que o labor do motorista na
Uber é, sob o prisma da realidade dos fatos, dependent work rela-
tionship (relação de emprego), e que o negócio da Uber não é uma
atividade de comunicação, mas sim uma atividade de transporte,
cuja centralidade é o transporte de pessoas em veículos privados.
A decisão inglesa listou 11 evidências que caracterizam o motorista
inglês da Uber como dependent worker, as quais são:
(i) o fato de a Uber entrevistar e recrutar motoristas; (ii) o fato de a
Uber controlar as informações essenciais (especialmente o sobre-
nome do passageiro, informações de contato e destinação preten-
dida), excluindo o motorista destas informações; (iii) o fato de a Uber
exigir que motoristas aceitem viagens e/ou não cancelem viagens,
assegurando a eficácia desta exigência por meio da desconexão dos
motoristas que violarem tais obrigações; (iv) o fato de a Uber deter-
minar a rota padrão; (v) o fato de a Uber fixar a tarifa, e o motorista
não poder negociar um valor maior com o passageiro; (vi) o fato de a

163
Uber impor inúmeras condições aos motoristas (como escolha limi-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

tada de veículos aceitáveis), assim como instruir motoristas sobre


como fazer o seu trabalho e, de diversas maneiras, controlá-los na
execução dos seus deveres; (vii) o fato de a Uber sujeitar motoris-
tas, por meio do sistema de rating, a determinados parâmetros que
ensejarão procedimentos gerenciais ou disciplinares; (viii) o fato
de a Uber determinar questões sobre descontos, muitas vezes sem
sequer envolver o motorista cuja remuneração será afetada; (ix) o
fato de a Uber aceitar o risco da perda; (x) o fato de a Uber deter as
queixas dos motoristas e dos passageiros; e (xi) o fato de a Uber se
reservar ao poder de alterar unilateralmente os termos contratuais
em relação aos motoristas. (FRAZÃO, 2016, p. 2-3).

Em processos administrativos e com o objetivo de concessão de


seguro-desemprego para ex-motoristas da Uber, órgãos adminis-
trativos dos Estados da Califórnia e de Nova York reconheceram
que os motoristas da Uber eram empregados, e não trabalhadores
autônomos, o que lhes garantia o direito ao seguro-desemprego.
Na Califórnia, a decisão foi da California Labor Comission no “case
n. 11-46739 EK”, qualificando a trabalhadora como empregada
(employee) e não como autônoma (independent contractor). Em Nova
York, a decisão foi do State Department of Labor, que reconheceu
que dois motoristas despedidos da Uber não eram freelancers, mas
sim employees, de modo que tinham direito ao unemployment bene-
fits (seguro-desemprego).
Em Madrid, a sentença n. 33, de 2019, da Seção Social, reconheceu
que o entregador da plataforma Glovo era um empregado, sendo
falsa a qualificação de autônomo estabelecida no contrato. Vale res-
saltar que a ação foi movida por uma associação sindical em favor
de um trabalhador e que a decisão de 2019 é oposta à decisão n. 37,
de 2017, do mesmo tribunal.
Na decisão de 2019, o vínculo empregatício foi declarado a partir
do exame crítico das condições reais de trabalho, com decretação
da nulidade da despedida e determinação da readmissão. Adrián
Todolí apresenta os novos indícios que o magistrado espanhol uti-
lizou no caso para reconhecer o liame empregatício:
– duración de la jornada en 40 horas
– criterios a seguir para la compra de productos y relaciones con el
cliente final

164
– límite de 40 minutos en la realización de un encargo (en la cláusula

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


3ª se habla de 60 minutos)
– prohibición de uso de distintivos corporativos propios o diferentes de
los de GLOVOAPP23 SL
– prohibición de uso de la imagen corporativa de GLOVOAPP23 SL y
tampoco en sus perfiles en redes sociales
– debe cuidar sus comentarios en redes
– deberá comunicarse con GLOVOAPP23 SL preferentemente por
correo electrónico
– se establecen en el contrato las interrupciones de la actividad que se con-
sideran justificadas, obligación de preaviso por cese y causas de extinción
– Se lista un total de trece causas justificadas de resolución del con-
trato por parte de GLOVOAPP23 SL relacionadas con incumplimientos
contractuales del repartidor
– prohibición durante y después del contrato de revelar secretos
comerciales o información confidencial con la consiguiente indemniza-
ción por daños en caso de incumplimiento
– se autoriza el acceso de terceros a los datos personales del reparti-
dor. (TODOLÍ, 2019, p. 2).

No Brasil, encontram-se diversas e diferentes decisões judiciais


ligadas à Uber, especialmente no Estado de Minas Gerais. A 12ª
Vara do Trabalho de Belo Horizonte proferiu sentença no processo
n. 0010497-38.2017.5.03.0012 negando a existência de vínculo
empregatício entre a Uber e um ex-motorista.
No caso examinado, o reclamante confessou em seu depoimento
que laborava para um “investidor”, pessoa que era cadastrada na
Uber e que alugava esse “cadastro” para diversos motoristas, o que
ensejou o afastamento do requisito da pessoalidade.
Sobre a onerosidade, entendeu o magistrado que não “existe pro-
messa alguma de pagamento, nem expectativa de ganho” (BRASIL,
2017a, p. 7), isto porque a Uber seria apenas uma empresa de tecno-
logia que ligava passageiros e motoristas, retendo uma percenta-
gem pelo serviço de tecnologia de interligação.
Foi considerado que a relação era pautada pela eventualidade, tendo
em vista que o motorista poderia ficar desativado da plataforma

165
por sua vontade, o que impede a ideia de não eventualidade como
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

“regularidade temporal” (BRASIL, 2017a, p. 7).


Diante da situação da liberdade de ativação do trabalhador na pla-
taforma, considerou a decisão que não havia qualquer exercício de
poder diretivo, fiscalizatório ou disciplinar. Enfatizou que não havia
enunciação de ordens ou determinação de tarefas pela Uber, o que
afasta a subordinação subjetiva. A decisão também cuidou de negar
a caracterização de subordinação estrutural, compreendendo que a
atividade da Uber não é transporte, e sim tecnologia da informação.
Apresentou também diversas considerações sobre as inovações tec-
nológicas, entendendo como normal a imposição de certas regras
de controle, exatamente como manifestação contratual de direitos
e deveres. Apreciou que a retenção de 25% é razoável para o serviço
oferecido pela Uber diante das informações fornecidas, roteiro de
percurso sugerido, suporte de segurança, contabilidade e gestão da
informação, além da garantia de pagamento (BRASIL, 2017a, p. 21).
Em sentido totalmente oposto, a decisão da 33ª Vara do Trabalho de
Belo Horizonte, no processo 0011359-34.2016.5.03.0112, reconheceu
o vínculo empregatício de um motorista da Uber, compreendendo
que esta plataforma atua, na verdade, como uma empresa de trans-
porte que exerce uma subordinação por diretrizes.
A decisão faz um apanhado histórico sobre o Direito do Trabalho
e seu papel de proteção àqueles que vivem alienando sua força
de trabalho. Nos aspectos fáticos do caso, a sentença identifica,
um a um, os requisitos do vínculo empregatício no ordenamento
brasileiro. Encontra a pessoalidade diante da impossibilidade de
cessão da conta na Uber para outro motorista não cadastrado no
sistema, inclusive transcreve que os termos de uso do próprio
site da Uber indicam que a transferência de conta para moto-
rista não cadastrado ensejará a suspensão imediata do usuário.
Neste ponto, refuta a tese patronal de ausência de pessoalidade
pela impossibilidade sistêmica de escolha do motorista pelo pas-
sageiro, considerando que esse dado é irrelevante, pois, na rela-
ção Uber-motorista, perdura a pessoalidade mediante o cadastro/
conta com uso exclusivo e intransferível.
A onerosidade se configura diante da fixação exclusiva dos preços
pela Uber, inclusive com mutação unilateral destes (preço dinâ-
mico), ou seja, ao dirigir o negócio fixando os valores das viagens
166
e impondo um percentual de desconto, a plataforma termina, de

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


modo indireto, fixando o salário “por tarefa” do motorista. Por
outro lado, a concessão de “prêmios”, como praticado pela Uber, é
clara manifestação de onerosidade e assalariamento.
Sobre a não eventualidade, a decisão reconhece que o labor exe-
cutado era habitual e frequente, todavia caracterizado por uma
demanda intermitente (BRASIL, 2017b, p. 17). Pela aplicação da
teoria dos fins do empreendimento, também se manifesta a cor-
relação entre o habitual e indispensável labor do motorista e a
plataforma que vende serviços de transporte em veículo privado,
reconhecendo, pela primazia da realidade, que é esta a verdadeira
atividade econômica da Uber.
Adiante, identifica a subordinação jurídica na dimensão de subor-
dinação por controle do algoritmo e por imposição de um padrão
de trabalho (orientação de vestimenta, oferecimento de água e
bala etc.). O lastro legal desta subordinação por algoritmo é o art.
6º da CLT. Além desta nova dimensão de subordinação, a sentença
adota a concepção estrutural de subordinação, haja vista que
se o autor não tivesse, estruturalmente, inserido na cultura de
organização e funcionamento da Uber, teria poder negocial para
dispor sobre a dinâmica de cada um dos contratos de transporte
que realizasse. (BRASIL, 2017b, p. 27).

Por fim, insinua uma dimensão de dependência econômica, ao


registrar que, após a análise econômica dos custos e despesas
da prestação dos serviços, haveria intensa exploração de mão de
obra pela Uber.
Sua força de trabalho pertencia à organização produtiva alheia,
pois, enquanto a ré exigia de 20 a 25% sobre o faturamento bruto
alcançado, ao autor restavam as despesas com combustível, manu-
tenção, depreciação do veículo, multas, avarias, lavagem, água e
impostos. Tal circunstância evidencia que o autor não alienava
o resultado (consequente), mas o próprio trabalho (antecedente),
ratificando, assim, a dependência própria do regime de emprego.
(BRASIL, 2017b, p. 28).

Dessa segunda decisão mineira, infere-se que as circunstâncias


fáticas dos trabalhadores de plataformas eletrônicas afastam-se
da clássica situação de subordinação jurídica, embora seja relativa-
mente fácil a visualização de um poder fiscalizatório e disciplinar

167
numa subordinação algorítmica (TEODORO, 2017, p. 18), e escanca-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

ram uma clara condição de hipossuficiência, bem expressada nos


baixos salários e longas jornadas.

6 · (Incipientes) conclusões
O modelo Uber é, mais do que uma forma de organizar uma empresa,
essencialmente um modelo de negócio com uma concepção sistêmica
de atividade econômica baseada em tecnologia com custos mínimos.
Contudo, este modelo empresarial ocorre numa zona de desregula-
ção, sem garantia de proteção social para seus trabalhadores.
O trabalho por aplicativo tem se mostrado, assim, como uma intensa
precarização associada à tecnologia e evidente hipossuficiência do
trabalhador. Um dos fatores de sucesso econômico das plataformas
de serviço ou trabalho é estas atuarem numa clara zona de desre-
gulação, sob a aparente forma de plataforma de comunicação, impu-
tando aos seus trabalhadores a forma de parceiros e autônomos.
Agrava ainda mais essa situação de precariedade a transferência dos
riscos da atividade para os trabalhadores, particularmente nos casos
de aplicativos de transportes, sendo eles responsáveis pela aquisi-
ção e manutenção dos veículos, despesas de combustível, impostos
sobre o veículo, seguro por acidente, além de outros, sofrendo ainda
os riscos e o custo econômico da ociosidade, visto que estão disponí-
veis para trabalhar e não receber pelo tempo à disposição.
No caso das decisões judiciais brasileiras, a situação do TRT-MG é
ilustrativa da controvérsia jurisprudencial sobre o tema, embora
prevaleçam, quantitativamente, decisões de improcedência. Aquelas
que reconhecem o vínculo realizam a análise da relação litigiosa com
a totalidade da atividade econômica da Uber e sempre sob o prisma
da primazia da realidade. As decisões de improcedência fazem uma
abordagem limitada à individualidade da relação litigiosa, despre-
zando o contexto em que a Uber empreende seu negócio.
Uma das grandes questões do exame fático-jurídico do trabalho
nessas plataformas é a relativa liberdade do trabalhador para defi-
nir quando se ativar e quando se desativar da plataforma. Nesse
novo estágio de organização da empresa, a questão da definição do
momento de início ou mesmo de término do labor é superada pela
“programação por controle” e, na visão da totalidade do algoritmo,

168
permite estimular ativações ou desativações dos trabalhadores

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


com propagandas e premiações.
Por outro lado, o poder disciplinar também é evidente. Inicialmente,
pode a Uber suspender os motoristas, numa punição branda.
Adiante, a Uber pode, de modo unilateral, excluir o motorista da
plataforma, numa punição à semelhança de justa causa.
Ressalta-se que a questão do preço imposto pela Uber é forte evi-
dência de que a plataforma não é apenas uma intermediadora entre
motorista e passageiro. Se fosse meramente intermediadora, não
poderia nunca impor preços, pois quem medeia não pode estabele-
cer o valor do trabalho alheio.
Como a Uber estabelece os padrões remuneratórios, ela exerce dire-
ção econômica da atividade sob o trabalhador, sujeitando-o a uma
dependência igualmente econômica. No polo oposto, numa auto-
nomia, notadamente de caráter econômico, caberia ao trabalhador
independente estabelecer, como manifestação da sua autonomia e
titularidade sobre sua força de trabalho, o valor do seu labor.

Referências
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FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

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170
Os empregados das plataformas1

Emmanuel Dockès
Professor Titular de Direito do Trabalho na Universidade
de Paris X – Nanterre

Resumo: O presente artigo reflete sobre a relação existente entre os


trabalhadores e as plataformas digitais, sobretudo a partir da decisão
tomada pela Corte de Cassação francesa no caso Take Eat Easy, de 28 de
novembro de 2018, que qualificou como contrato de emprego a relação
existente entre a referida plataforma digital e seus entregadores ciclistas.
Após essa decisão, a maioria desses trabalhadores deve ser qualificada
como empregados na França, o que permitirá que se beneficiem da
proteção do Direito do Trabalho e da Seguridade Social. São analisados os
elementos da relação de emprego, em especial os indícios da subordinação
e a dependência econômica, no caso dos trabalhadores de plataformas
digitais, sendo estudadas decisões já proferidas a esse respeito na França
e em outros países do mundo. Destaca-se a necessidade de se garantir a
proteção do Direito Social a esses trabalhadores, que se encontram em
situação de especial fragilidade, sem exigir que abram mão da flexibilidade
e da liberdade com relação à duração e ao horário de trabalho.

Palavras-chave: Relação de emprego. Plataformas digitais. Caso Take Eat


Easy. Subordinação. Dependência econômica.

Abstract: This paper reflects on the relationship between workers and


digital platforms, especially from the decision taken by the French
Court of Cassation in the Take Eat Easy case of November 28, 2018,

1 Este texto é uma versão modificada e atualizada de um artigo publicado


em francês pela revista Le droit ouvrier, de janeiro de 2019, o qual também
foi publicado na Revista Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, v. 5, n. 1,
Brasília, Centro Universitário do Distrito Federal (UDF), jan./abr. 2019,
p. 65-78. A tradução do francês para o português foi feita por Lorena
Vasconcelos Porto, que é Procuradora do Trabalho, Doutora em Direito e
Professora de Direito do Trabalho.

171
which classified as employment contract the relationship between this
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

digital platform and its delivery cyclists. Following this decision, most
of these workers should be qualified as employees in France, which will
allow them to benefit from the protection of Labour Law and Social
Security. The elements of the employment relationship are analyzed,
especially the signs of subordination and economic dependence in the
case of digital platform workers, and decisions already made in France
and other countries around the world are studied. We highlight the need
to guarantee the protection of Social Law to these workers, who are in a
situation of special fragility, without requiring them to give up flexibility
and freedom regarding working hours.

Keywords: Employment relationship. Digital platforms. Take Eat Easy


case. Subordination. Economic dependence.

1 · Introdução
A decisão da Corte de Cassação francesa no caso Take Eat Easy,
de 28 de novembro de 2018,2 qualifica como contrato de emprego
a relação existente entre uma plataforma digital, Take Eat Easy, e
seus entregadores ciclistas. Ela se destaca, assim, em um dos deba-
tes mais acalorados do Direito do Trabalho, tanto na França como
no exterior, a saber, aquele relativo às novas organizações do traba-
lho e, particularmente, aos trabalhadores das plataformas, às vezes
chamados de “uberizados”.3 Após essa decisão, a maioria desses

2 Corte de Cassação, Câmara Social, 28 de novembro de 2018, Take Eat Easy, n.


17-20.079 PBRI, Sem. jur. soc. 49. 1398, parecer do advogado geral C. Courcol-
-Bouchard e nota de G. Loiseau; SSL 2018-1841, obs. B. Gomez, p. 6 e P. Lokiec, p. 10.
3 Vide especialmente o número especial de La nouvelle revue du travail,
[online], 13/2018; e também J. Dirringer, “Quel droit social en Europe face
au capitalisme de plateforme?”; M. A. Dujarier, “De l’utopie à la dystopie: à
quoi collabore l’économie collaborative?”, Revue française des Affaires sociales,
2018, n. 2, p. 92-100; B. Gomes, Le droit du travail à l’épreuve des plateformes
numériques, tese Paris Nanterre, 2018 e referências citadas; D. Farrel, F. Greig,
A. Hamoudi, “The Online Platform Economy in 2018 – Drivers, Workers,
Sellers and Lessors”, JP Morgan Chase Institute, setembro de 2018. t 15-16;
Benjamin Means e Joseph A. Seiner, Navigating the Uber Economy 49 U.C.
DAVIS L. REV. 1511, 1513 (2016); J. Prassl, Who is a worker?, Law Quarterly
Review, 2017, p. 366; La voix collective dans l’économie de plateforme: défis,
opportunités, solutions, Rapport pour la CES, setembro de 2018, e, sobre esse
último texto, Sophie Robin-Olivier, RDT 2018. 703. Vide também os relatórios
públicos sobre esse tema: O. Montel, L’économie des plateformes: enjeux

172
trabalhadores deve ser qualificada como “empregados”,4 o que per-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


mitirá que se beneficiem, em especial, do Código do Trabalho (salá-
rio-mínimo, férias pagas, representação dos empregados etc.), do
regime geral da Seguridade Social, das garantias em matéria de aci-
dente de trabalho e do seguro-desemprego. O interesse por essas
proteções parece óbvio. Elas permitirão evitar que esses trabalhado-
res se tornem uma espécie de subempregados, mal pagos e superex-
plorados. No entanto, é necessário responder ao argumento muito
comum do efeito perverso5 e mostrar que a aplicação dessas prote-
ções não condenará esse modo de organização do trabalho. Também
será necessário mostrar que o Direito do Trabalho pode ser compa-
tível com a livre escolha, pelo empregado, de seus horários e da dura-
ção de seu trabalho. O Direito do Trabalho e a subordinação às vezes
são temidos pelos trabalhadores como vetores de submissão, a perda
de autonomia. A aplicação do Direito do Trabalho aos trabalhado-
res de plataformas dá a essa matéria a oportunidade de demonstrar
que ela pode limitar o poder de uns, os empregadores, sem reduzir a
liberdade dos outros, os empregados, muito pelo contrário.
Embora permaneçam relativamente marginais no número de tra-
balhadores envolvidos ou no volume de negócios na economia glo-
bal,6 as plataformas de computador certamente fascinam. Trata-se,

pour la croissance, le travail, l’emploi et les politiques publiques, Document


d’études 213, agosto de 2017, Dares (em dares.travail-emploi.gouv.fr); Pôle
interministériel de Prospective et d’Anticipation des Mutations économiques
(Pipame) Enjeux et perspectives de la consommation collaborative, 2015 –
disponível em https://www.entreprises.gouv.fr/; P. Terrasse, Rapport sur
l’économie collaborative, fev. 2016, em https://www.gouvernement.fr, e o
relatório do Igas, de N. Amard e L. C. Viossat, Les plateformes collaboratives,
l’emploi et la protection sociale, em http://www.igas.gouv.fr.
4 Sobre a questão da qualificação como empregado dos trabalhadores das
plataformas, vide especialmente A. Favre, Dr. soc. 2018.547; S. Bini, RDT
2018. 542; Coursier, JCP S 2016. 1400 (quelles normes sociales pour les
entrepreneurs de l’économie collaborative et distributive?); A. Fabre e M.–C.
Escande-Varniol, RDT 2017. Controverse 166; M. Julien e E. Mazuyer, RDT
2018. 189; Th. Pasquier, RDT 2017. 95.
5 Nenhuma proteção social escapou ao argumento tradicional de que essa
proteção arruinará a atividade que protege: vide especialmente A. O.
Hirschman, Deux siècles de rhétorique réactionnaire, Fayard, 1991.
6 Não excede, qualquer que seja o país, poucos por cento da força de trabalho
ocupada: vide especialmente D. Farrel, F. Greig, A. Hamoudi, op. cit.

173
sem dúvida, de uma das principais inovações dos últimos quinze
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

anos nas relações de trabalho. E seus potenciais ainda parecem


estar em transformação. Os otimistas veem nisso o surgimento
de uma liberdade, até mesmo o sinal do próximo desaparecimento
do trabalho subordinado.7 Os pessimistas veem um aumento na
precariedade e na miséria.8 Ambas as visões contêm alguma ver-
dade. É de saudar as novas liberdades expressas nessas organiza-
ções de trabalho, principalmente quanto à liberdade dos horários e
das durações do trabalho que elas permitem. Essas liberdades são
valiosas para os trabalhadores deste setor e devem ser mantidas
em mente. Mas também devemos nos preocupar com o desenvolvi-
mento de uma espécie de subempregados particularmente vulne-
ráveis.9 E, finalmente, não devemos nos deixar cegar pelos aspectos
inovadores do fenômeno, a ponto de esquecer o que permanece.
Esse risco de esquecimento é transmitido por expressões novas,
descontroladamente na moda, às vezes atraentes e publicitárias,
como a “economia colaborativa” ou a “economia do comparti-
lhamento” (sharing economy), às vezes mais descritivas, como a
“economia do bico” (gig economy), às vezes repulsiva como “capi-
talismo de plataformas”.10 Todos esses novos conceitos propagam
a ideia de que nossos conceitos antigos não funcionam mais. Mas
isso é apenas parcialmente correto. Por trás da novidade, real,
se escondem negócios antigos, como o transporte pessoas ou de
produtos, e até organizações antigas de trabalho. Antes da fábrica
taylorista e depois fordista, já havia “finalizadores” e “tarefeiros”,
pagos por tarefa, às vezes muito especializadas, “autônomas” na
fixação de seus horários, muitas vezes proprietários de suas fer-
ramentas e instrumentos de trabalho e, mesmo assim, coloca-
dos em uma situação de submissão e de grande fraqueza.11 Esse

7 S. Mallard, Disruption – Intelligence artificielle, fin du salariat, humanité


augmentée, Dunot 2018; J-P Gaudard, La Fin du salariat, Bourin ed. 2013.
8 Vide especialmente o número especial de La nouvelle revue du travail,
[online], 13/2018.
9 Vide especialmente O. Montel, op. cit., p. 26-29, e M. A. Dujarier, op. cit.
10 Título do número especial de La nouvelle revue du travail, [online], 13/2018.
11 Vide especialmente A. Faure, Petit atelier et modernisme économique, la
production en miettes au XIXe siècle, Histoire, économie et société, 1986, n. 4. p.
531-557; C. Didry, L’institution du travail, La dispute 2016, em especial p. 35 e ss.

174
tipo de trabalho, não apenas dependente mas submisso, embora

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


autônomo em sua organização temporal ou espacial, nunca ces-
sou completamente.12 Há mais permanência no trabalho das pla-
taformas do que se costuma dizer.
E há mais modernidade em nossos antigos instrumentos legais do que
se costuma dizer. Ninguém questiona a modernidade do conceito de
“contrato”, embora anterior à invenção do papel. Comparativamente,
o contrato de emprego e a subordinação que lhe serve de critério são
de um modernismo escancarado.13 O Direito deve se adaptar, mas ele
deve se adaptar à realidade em todas as suas dimensões. Mas as rela-
ções humanas mudam menos rapidamente do que os telefones celula-
res. E o progresso técnico nem sempre é libertador: há também novas
tecnologias a serviço da submissão.
A localização geográfica, expressamente ressaltada pela decisão do
caso Take Eat Easy, de 28 de novembro de 2018, é um desses novos
meios que os mais altos tribunais franceses reconhecem como um

12 Podem-se citar os trabalhadores em domicílio dos artigos L. 7411-1 e seguintes


do Código do Trabalho, cuja qualificação foi gradualmente construída a
partir da Lei de 10 de julho de 1915 (protetora das trabalhadoras em domicílio
na indústria têxtil) para chegar na assimilação de todos os trabalhadores em
domicílio com os empregados, para a aplicação do Código do Trabalho, pela
Lei de 26 de julho de 1957 (atual artigo L. 7411-1 do Código do Trabalho), ou
os taxistas em uma situação de fraqueza e que às vezes são requalificados
como empregados (a favor dessa qualificação, vide as decisões da Corte de
Cassação, Câmara Social, de 19 de dezembro de 2000, Labbane, Les grands
arrêts dudroit du travail, n. 3; Dr. ouvrier. 2001. 241, 2a esp., nota de A. de
Senga; Dr. soc. 2001. 227, nota de A. Jeammaud; de 6 de outubro de 2010,
n. 08-45392; de 3 de novembro de 2010, n. 08-45391; em sentido contrário,
vide especialmente as decisões da Corte de Cassação, Câmara Social, de
1o de dezembro de 2005, G7, n. 05-43031 P; de 17 de setembro de 2008, n.
07-43265; de 5 de maio de 2010, n. 08-45323).
13 A subordinação foi reconhecida como critério central do contrato de
trabalho com a decisão Bardou, de 6 de julho de 1931, DP 1931. 1. 131, nota P.
PIC; Les grands arrêts du droit du travail, op. cit., 4a éd., 2008, n. 1. A noção de
contrato de trabalho foi criada na virada do século XIX para o XX, mas ela
definitivamente suplantou a contratação de serviço (um conceito originado
do direito romano) apenas com a codificação da Lei de 2 de janeiro de 1973.
Isso nos coloca talvez antes da invenção dos computadores, mas bem depois
da invenção da bicicleta e até mesmo do automóvel. Os conceitos de contratos
civis ou comerciais que se gostaria de substituir pela qualificação do contrato
de trabalho são muito anteriores.

175
perigo para as liberdades.14 E esta é apenas uma das muitas novas
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

tecnologias de controle. Em nossa era, que vê o espectro do Big


Brother se tornar uma realidade, voltar aos conceitos contratuais
que negam as relações de poder é, na melhor das hipóteses, uma
fantasia e, na pior das hipóteses, uma mentira. A proteção do Direito
do Trabalho, a ideia do contrato de trabalho e o conceito legal de
subordinação que lhe serve de suporte mantêm, infelizmente, toda
a sua relevância, inclusive em um mundo de novas tecnologias,
talvez especialmente neste mundo povoado por olhos eletrônicos,
avaliação permanente e sanções automatizadas. Os trabalhadores
de plataformas não estão protegidos da subordinação, eles podem
até estar particularmente sujeitos a ela. A decisão do caso Take Eat
Easy, de 28 de novembro de 2018, mostra isso com força.
Trata-se de uma decisão na qual a Corte de Cassação acrescen-
tou todos os sinais que marcam as decisões que são, para os altos
magistrados, as mais importantes.15 A decisão é, portanto, apresen-
tada com toda a força possível pela própria Corte de Cassação. Por
essas razões, mas também pela qualidade de sua motivação, pela
questão da sociedade que ela decide e pelo impacto que promete
ter, essa decisão é, sem dúvida, uma decisão de um tipo desapa-
recido nos últimos anos: é uma grande decisão. O seu impacto foi
imediato, tendo a Corte de Apelação de Paris seguido imediata-
mente o entendimento da Corte de Cassação ao requalificar um
motorista da empresa Uber como empregado.16
A decisão é importante para o Direito Francês, mas também para
o Direito Internacional e Europeu. A qualificação dos trabalhadores
das plataformas é um debate global, no qual as primeiras decisões
judiciais são examinadas com grande atenção. A Corte de Justiça da
União Europeia já abriu caminho para possíveis requalificações, por

14 Vide especialmente as decisões da Corte de Cassação, Câmara Social, de 3


novembro de 2011, n. 10-18.036, Sem. soc. Lamy 2011, n. 1518, obs. P. Flores; Dr.
ouvrier 2011. 153, nota de S. Baradel e P. Masanovic e CE, de 15 de dezembro de
2017, n. 403776, AJDA 2018. 402, concl. A. Bretonneau.
15 A decisão foi tomada por violação da lei; seu número é acompanhado pelas
letras P.B.R.I. e, sobretudo, ela é acompanhada por uma nota explicativa
no sítio eletrônico da Corte de Cassação: https://www.courdecassation.fr/
jurisprudence_2/notes_explicatives_7002/relative_arret_40779.html.
16 Corte de Apelação de Paris, 10-01-2019, n. 18/08357.

176
meio da decisão de 20 de dezembro de 2017,17 que qualifica o Uber

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


como “empresa de transporte”, e não como “empresa da sociedade
da informação”: para a Corte, a plataforma de computador geren-
ciada pelo Uber não é simples intermediária, o que a empresa havia
alegado, pois ela organiza um serviço de transporte no qual os tra-
balhadores estão integrados. E lembramos que, no Direito Francês,
a integração em um serviço organizado já é um forte indício de
subordinação.18 A decisão do caso Take Eat Easy também vem após
outras decisões que ordenaram a requalificação de trabalhadores
de plataformas, entre as quais as decisões muito comentadas da
Corte de Apelação do Trabalho de Londres19 e da Suprema Corte
da Califórnia.20 A decisão da Câmara Social da Corte de Cassação,

17 CJUE 20 dez. 2017, Elite Taxi x Uber, dec. C-434/15, espec. 34-37, RTD eur. 2018.
147, nota. L. Grard e 2018.273, nota. V. Hatzopoulos RDT 2018.150, nota B. Gomes.
18 A integração em um serviço organizado já chegou a ser um critério alternativo
do contrato de trabalho: v. Cass. Pleno 18 de junho de 1976, D 1977, 173, nota A.
Jeammaud. Desde a decisão no caso Société Générale, de 13 de novembro de
1996, n. 94-13187 P, Dr. soc. 1996. 67, nota J.-J. Dupeyroux; JCP E 1997. II. 911,
nota J. Barthélémy; J. Pélissier, A. Jeammaud, A. Lyon-Caen e E. Dockès, Les
grands arrêts du droit du travail, 4. ed. 2008, n. 2, essa integração se tornou um
indício simples, mas forte, de subordinação. Para uma tentativa doutrinária de
retornar à solução do critério alternativo, baseado na integração econômica,
vide C. Radé, Des critères du contrat de travail, Dr. soc. 2013, p. 202.
19 London Employment Appeal Tribunal, 10 nov. 2017, Uber x Aslam, n.
UKEAT/0056/17/DA28 (e, em primeira instância, London Employment Trib.,
28 out. 2015, Aslam e Farrar x Uber, n. 2202550/2015). Sobre essa decisão,
vide nota de J. Prassl, Uber devant les tribunaux. Le futur du travail ou juste
un autre employeur?, RDT 2017. 439. Mais precisamente, a referida Corte
de Londres rejeita a qualificação de trabalhador autônomo, mas ela apenas
reconhece a qualificação de “worker”, um pouco menos favorável do que
aquela de “employee”. Essa diferenciação não é possível no Direito francês
ou norte-americano. Vide, todavia, para uma recusa de qualificação, High
Court of Justice, 5 dez. 2018, (IWGB v. RooFoods Ltd t/a Deliveroo, n. [2018]
EWHC 3342 (admin), Case n.: CO/810/2018) e sobre esse caso M. Vicente, Les
coursiers Deliveroo face au droit anglais, RDT 2018, p. 515.
20 Suprema Corte da Califórnia, 30 de abril de 2018, Dynamex Operations W., Inc.
v. Superior Court, N. S222732, 2018 WL 1999120. Vide também, na Califórnia,
not. O’Connor v. Uber Technologies, Inc., 311 F.R.D. 547 (N.D. Cal. 2013); Berwick
v. Uber Technologies, Inc., N. 11-46739 EK, 2015 WL 4153765, (Cal. Dept. Lab.
June 3, 2015), aff’d No. CGC-15-546378 (Cal. Super. Ct. June 16, 2015); Superior
Court of California 16 jun. 2015, Berwick v. Uber Technologies Inc., aff’d n.
CGC-15-546378; Cotter v. Lyft, Inc., 176 F.Supp.3d 930 (N.D. Cal. 2016).

177
de 28 de novembro de 2018, reforça e confirma uma tendência
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

europeia e internacional. Como primeira decisão de uma Suprema


Corte Nacional sobre esse tema, sua repercussão internacional
parece forte. Além da jurisprudência francesa que ela inaugura, ela
participa também da construção de um movimento jurispruden-
cial internacional em favor de uma qualificação bastante ampla de
“empregados” aplicada aos trabalhadores das plataformas digitais.
A amplitude esperada dessa qualificação (item 2) aparece no
alcance da motivação escolhida, voluntariamente ampla, e no
comentário feito pelos juízes e publicado no sítio eletrônico da
Corte. Mas ela é, sobretudo, apoiada pela força das justificativas e
dos fundamentos de tal qualificação.
O trabalho organizado por plataforma digital, designado sob um
nome ou outro, estará, portanto, amplamente sujeito ao Direito do
Trabalho. Por sua originalidade, ele testará o Direito do Trabalho,
convocando-o a mostrar que ele é capaz de proteger esses trabalha-
dores, de evitar a criação de trabalhadores de segunda categoria mais
fracos e menos protegidos que os empregados habituais, mas tam-
bém a mostrar que ele é capaz de permitir que essas novas organi-
zações de trabalho sobrevivam daquilo que têm de positivo, de liber-
tador, em especial a liberdade que elas concedem aos trabalhadores
na fixação de seus horários de trabalho. Proteger sem aumentar as
submissões: o Direito do Trabalho é capaz de fazê-lo? Parece-nos que
sim, embora algumas adaptações possam ser necessárias marginal-
mente (item 3). É a esse preço e nessa condição que os trabalhadores
das plataformas estarão convencidos da importância da vitória que
a decisão no caso Take Eat Easy representa para eles.

2 · A amplitude da qualificação de empregado


A integração dos trabalhadores das plataformas à relação de
emprego parece ampla (2.2), devido aos motivos e justificativas da
decisão proferida (2.1).

2.1 · Motivos e justificativas de uma requalificação


A decisão utiliza os termos e a motivação normalmente usados na
jurisprudência francesa. Ela reitera a definição de subordinação

178
derivada da decisão do caso Societé Generale proferida pela Corte de

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Cassação francesa de 13 de novembro de 199621 e adotada com muita
regularidade desde então,22 a fórmula habitual relativa à indisponibi-
lidade da qualificação do contrato de trabalho resultante da decisão
do caso Labanne, de 19 de dezembro de 2000.23 A decisão do caso
Take Eat Easy afirma-se, portanto, em conformidade com a tradição
francesa e essa jurisprudência promete ser estável nos princípios.24
Esse classicismo deve ser aprovado. A decisão proferida está em
conformidade com a jurisprudência tradicional. Para integrar os
trabalhadores das plataformas na relação de emprego, não era útil
voltar ao conceito de contrato de trabalho baseado na noção de
subordinação.25 Essa noção tem uma flexibilidade, uma adaptabili-
dade e uma modernidade muito maiores do que se pensa.
A definição de subordinação, decorrente da decisão do caso Societé
Generale, de 13 de novembro de 1996, e adotada na decisão do caso
Take Eat Easy, de 28 de novembro de 2018, é a seguinte: “A relação

21 Soc. 13. nov. 1996, n. 94-13187 P, Les Grands arrêts du droit du travail, op. cit., n.
2; Dr. soc. 1996.67, nota J.-J. Dupeyroux; JCP E, 1997. II. 911, nota J. Barthélémy.
22 Vide especialmente Soc. 1º dez. 2005, G7, n. 05-43031 P, D. 2006. Pan. 410,
obs. E. Peskine; 17 maio 2006, n. 05-43.265; Civ. 2º, 20 de junho de 2007, n.
06-17.146 P; 22 set. 2010, n. 09-41.495; 3 nov. 2010, n. 09-4.215.
23 ”A existência de uma relação de trabalho não depende nem da vontade
expressa pelas partes, nem da denominação que elas deram a seu acordo,
mas das condições de fato em que a atividade dos trabalhadores é exercida”,
fórmula que é retomada da decisão no caso Labbanne, de 19 dez. 2000, n.
98-40572 P, Dr. soc. 2001. 227, nota A. Jeammaud; Dr. ouvrier 2001. 241, nota A.
de Senga; Grands arrêts op. cit., n. 3.
24 A aprovação do artigo L. 8221-6 II do Código do Trabalho, ao lado desses
princípios tradicionais, demonstra mais uma vez que esse artigo não teve um
impacto significativo sobre esses princípios: sobre esse texto, cujo alcance
permanece essencialmente simbólico, vide especialmente G. Auzero, D.
Baugard e E. Dockès, Droit du travail, Précis Dalloz, 32. ed. 2019, n. 204.
25 É possível pensar que a jurisprudência seria mais educativa se reconhecesse
expressamente a influência que ela atribui à dependência econômica na
operação de qualificação, ao lado da subordinação (nesse sentido, vide E.
Dockès, Notion de contrat de travail, Droit social 2011, p. 546). Mas essa
evolução terminológica visa apenas a refletir melhor a jurisprudência, sem
alterar substancialmente seu conteúdo. Vide também a proposta de P. Lokiec
de substituir a “subordinação” pelo “controle”, o que sem dúvida seria um
pouco redutor (SSL 2018-1841, p. 10).

179
de subordinação é caracterizada pela realização de um trabalho sob
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

a autoridade de um empregador que tenha o poder de emitir ordens


e instruções, de controlar sua execução e de punir as faltas de seu
subordinado”. Essa definição é muito estrita, até um pouco estrita
demais, pois ela visa a um tríptico de condições cumulativas: um
poder de comando, um controle e um poder de sanção. Ela também
é redutiva, pois não deixa espaço para a situação de fraqueza, de
dependência, do trabalhador. Mas essa definição não deve induzir ao
erro. A essência da casuística da Corte de Cassação, relativa à qua-
lificação do contrato de trabalho, não está nessa definição, nem na
noção de subordinação: está na prova dessa subordinação. É por oca-
sião da busca dessa prova que a jurisprudência mostra sua recusa a
qualquer posição doutrinária e seu realismo. São adicionados, então,
elementos que revelam a existência real de um comando, mas tam-
bém alguns elementos que se contentam em mostrar a possibilidade
desse comando, em especial graças ao conhecimento ou às compe-
tências do empregador, outros que mostram a fraqueza econômica
de uma parte em relação à outra, outros ainda que se relacionam às
modalidades da remuneração etc.26
O domínio da relação de emprego aparece então como um halo,
apresentando certamente algumas incertezas em suas margens,
mas cujo conteúdo, razoavelmente firme e surpreendentemente
constante desde a década de 1930, é um composto de obediência
– a subordinação no sentido estrito – e de fraqueza – a depen-
dência. Uma obediência limitada e de bom grado, complementada
por uma forte dependência para permitir a qualificação de “empre-
gado”, como no caso dos médicos, independentes no exercício de
sua arte, mas empregados quando são dependentes, por exemplo,
de uma clínica.27 Uma forte obediência possibilita reciprocamente
a superação de uma dependência fraca, como no caso de emprega-
dos domésticos com muitos empregadores-clientes, mas sujeitos
estritamente ao poder de direção de cada um deles.28 Essa flexibili-
dade é uma constante na jurisprudência da Corte de Cassação. Em

26 Para um estudo preciso da casuística da qualificação do contrato de trabalho,


vide especialmente E. Dockès, op. cit.
27 Civ., 25 jul. 1938, DH 1938. 530; Soc. 13 jan. 2000, n. 97-17766 P; Soc. 30 jun.
2010, n. 09-67496.
28 Vide especialmente Soc. 11 mar. 2009, n. 07-43977 P, que infere a existência de
uma subordinação apenas das funções do empregado doméstico.

180
1931, a Corte impôs o critério de subordinação.29 Desde 1932, ela já

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


o flexibilizava, usando, para demonstrar essa subordinação, a situ-
ação de dependência econômica dos empregados.30
No caso dos trabalhadores das plataformas, a dependência geralmente
é forte, porque a clientela passa pela plataforma e é essa plataforma
que, em seguida, organiza e distribui o trabalho. Mas essa dependên-
cia não é total, não sendo exigida exclusividade dos trabalhadores.
A submissão também é forte: na maioria das vezes, verdadeiras
especificações devem ser respeitadas pelos trabalhadores, que
podem ser modificadas pela plataforma, e uma avaliação dos tra-
balhadores é realizada pelo retorno dos clientes, o que é um modo
de controle particularmente eficaz. Mas essa submissão também
não é total, uma vez que os trabalhadores têm grande liberdade na
fixação de seu horário de trabalho.
Por fim, a plataforma se autoriza a desconectar certos trabalhado-
res, principalmente aqueles que são mal avaliados ou que não cum-
priram algumas das exigências da plataforma, o que é uma medida
tomada após condutas consideradas faltosas, em outras palavras,
uma sanção disciplinar.31
Esse composto de dependência, de submissão e de sanções é prova
suficiente de subordinação e, portanto, da qualificação de empre-
gado. Além disso, a Corte de Cassação não considerou necessário
mencionar todos esses elementos no caso Take Eat Easy. Ela se
contentou em ressaltar a existência de um sistema de geolocali-
zação, que permite o controle, e a presença de um poder sanciona-
dor, o que era suficiente a seus olhos para provar a subordinação.
Depois de muitas outras, essa decisão é significativa da relativa
abertura da jurisprudência francesa quanto à qualificação do
contrato de trabalho. E isso promove uma requalificação muito
ampla para os trabalhadores das plataformas, especialmente
entregadores e motoristas de pessoas, que são necessariamente

29 Civ., 6 jul. 1931, DP 1931. 1. 131, nota P. PIC; Les grands arrêts du droit du travail,
op. cit., n. 1.
30 Vide especialmente civ. 22 jun. 1932 (três decisões), 30 jun. 1932, e 1º ago.
1932, DH, 1, p. 145, nota P. PIC e, no mesmo sentido, especialmente Civ., 25
jul. 1938, DH 1938. 530.
31 No sentido do artigo L. 1331-1 do Código do Trabalho.

181
geolocalizados por meio de seus telefones celulares, mesmo que
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

essa geolocalização nem sempre seja permanente, e que são ame-


açados de punição, sendo a mais grave a desconexão permanente,
o que equivale à dispensa.
Note-se que foi com base no argumento da liberdade de horário
de trabalho concedida aos trabalhadores que a Corte de Apelação
de Paris recusou a qualificação de “empregado”. Houve um ver-
dadeiro mal-entendido sobre o que é a relação de emprego. O
empregado é aquele que está sujeito a um poder de direção. Isso
não significa que ele deve estar submetido em todos os aspectos
de sua relação de trabalho. A relação de emprego pode compor-
tar alguma autonomia e liberdade de organização. Essa dose da
liberdade é até mesmo a regra, pois é difícil imaginar um tra-
balho produtivo totalmente restrito que ainda não tenha sido
substituído por robôs. E essa liberdade parcial dos empregados
geralmente é expressa por meio de uma certa margem de escolha
deixada em relação ao horário de trabalho. Não estamos mais no
tempo dos toques de relógio que pontuam a entrada e a saída dos
operários da fábrica. A flexibilização do tempo de trabalho já pas-
sou por lá. Ela muitas vezes tem sido utilizada pelos empregado-
res para obter uma subordinação maior, uma espécie de trabalho
sob demanda. Mas ela, às vezes, também permitiu a abertura de
liberdades reais para os empregados. A “verdadeira autonomia
na organização de seu horário de trabalho”, referida nos artigos
L. 3121-56 e L. 3121-58 do Código do Trabalho, relativos a contra-
tos de preço fixo, nem sempre é uma quimera. E para muitos ela
até mesmo explica o apoio que alguns empregados expressam a
esses contratos de preço fixo, inclusive aqueles que apresentam
perigos significativos, como os contratos de preço fixo em dias.
Essa liberdade de horário de trabalho pode perfeitamente coe-
xistir com severas restrições sobre a natureza do trabalho, as
condições de exercício desse trabalho, a carga de trabalho, sua
intensidade etc. Ela não exclui de forma alguma a subordinação.
A liberdade de horário não é, portanto, uma originalidade dos
trabalhadores das plataformas, mesmo que seja particularmente
forte para esses trabalhadores. E ela não é, ou talvez não seja
mais, exclusiva da relação de emprego.
Portanto, é de se esperar que haja um vasto movimento de inte-
gração na relação de emprego dos trabalhadores das plataformas.
Mesmo que essa integração tenha limites.
182
2.2 · Domínio de requalificação

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Não deve ser deduzido da decisão do caso Take Eat Easy que todos os
trabalhadores que utilizam plataformas digitais para encontrar um
trabalho serão automaticamente qualificados como empregados.
Para que o contrato entre a plataforma e o trabalhador se torne um
contrato de trabalho, ainda é necessário que ele tenha como objeto
essencial ou predominante o trabalho. Por esse motivo, parece que
a classificação de empregado da plataforma não ocorrerá quando
a prestação de trabalho for apenas um acessório, de valor relativa-
mente modesto, comparado àquele dos bens e valores transmitidos
pelo intermediário da plataforma.
Os vendedores em sítios eletrônicos como Le bon coin, Ebay ou
Amazon trabalham, mesmo que apenas porque embalam e enviam
seus produtos. Mas esse trabalho é somente o acessório de sua ati-
vidade comercial. E nenhuma requalificação de contrato de traba-
lho será possível quando essa atividade comercial não for direcio-
nada, gerenciada pela plataforma e eles permanecerem livres para
escolher os bens que oferecem para venda.
A questão do trabalho também não está ausente dos aluguéis tem-
porários de moradias em sítios eletrônicos como o Airbnb, que
geralmente oferecem um serviço de limpeza semelhante ao reali-
zado pelos trabalhadores dos hotéis. No entanto, novamente, nem
a plataforma, nem o cliente, podem ser considerados empregado-
res desses trabalhadores: o serviço é acessório ao fornecimento de
moradia. Somente o locador do apartamento será qualificado como
empregador se ele utilizar funcionários.
A situação dos motoristas é bem diferente. Mesmo que o preço do
transporte que eles fornecem com o seu veículo inclua custos sig-
nificativos de combustível e manutenção do veículo, o seu traba-
lho de motorista continua sendo a parte principal ou pelo menos
uma parte suficientemente importante da relação para que ela
não possa ser considerada um acessório dessa relação. Por outro
lado, a situação é diferente para plataformas de aluguel de veículos
sem motorista, como o Drivy. O trabalho restante, o trabalho de
manutenção e de limpeza do veículo, em particular, não passa de
um acessório do aluguel do veículo. Portanto, podemos pensar que,
novamente, a qualificação de empregado não ocorrerá e que o loca-
dor permanecerá um locador.
183
Parece-nos, portanto, que apenas plataformas que coordenam con-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

tratos cujo objeto é o trabalho, como uma parte essencial ou prin-


cipal, podem ser qualificadas como empregadoras. Essas platafor-
mas de fornecimento de trabalho não são todas empregadoras. É
mais apropriado classificá-las em três categorias.
As primeiras são aquelas que fornecem um tipo específico de tra-
balho coordenado e organizado pela plataforma. O serviço é então
um serviço organizado pela plataforma, sob seu controle, e os clien-
tes são seus clientes. Nesses casos, a plataforma deve ser qualifi-
cada como empregador e os trabalhadores como empregados. Por
exemplo, uma plataforma de limpeza de roupas, assim como plata-
formas de entrega de refeições ou de transporte de pessoas, deve
ser logicamente qualificada como empregador quando ela controla
os trabalhadores e lhes fornece recomendações.
As segundas são aquelas que abrem a possibilidade de os trabalhado-
res oferecerem vários serviços, nos quais a plataforma alega não ter
experiência. Ela não coordena nem conteúdo, nem a maneira como
eles são fornecidos. Aqui pensamos em particular nos muitos sítios
eletrônicos que oferecem pequenos trabalhos chamados de ”faça
você mesmo“. Expertise e competência são apenas aquelas dos tra-
balhadores. Eles não são dirigidos pela plataforma, nem pelos bene-
ficiários de seu trabalho. Nesses casos e nessas condições, as plata-
formas de ”jobbing“ poderiam escapar à qualificação de empregador
e os trabalhadores dessas plataformas seriam considerados traba-
lhadores autônomos. É diferente quando a plataforma reivindica
experiência no campo do ”faça você mesmo“ e exerce um controle.
A plataforma poderia então ser considerada como exercendo uma
direção sobre os trabalhadores que laboram através dela e ser quali-
ficada como empregador. A qualificação de autônomo ou empregado
dos trabalhadores dependerá, assim, logicamente, da presença ou
da ausência de controle e de direção desses trabalhadores invaria-
velmente manuais e encontrados em sítios eletrônicos como Frizbi,
ManoMano, ou desses trabalhadores, em geral artesãos, propostos
por sítios eletrônicos como os das grandes marcas de móveis ou de
venda de material para o ”faça você mesmo“.
Uma última categoria de plataforma, do ponto de vista do Direito do
Trabalho, corresponde a plataformas que atuam como intermediárias
entre um trabalhador e um beneficiário que dirige concretamente

184
a atividade desse trabalhador. Este pode ser em especial o caso de

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


sítios eletrônicos como Amazon Mechanical Turk, Onespace ou, às
vezes, algumas das plataformas de pequenos trabalhos acima men-
cionados. Por meio desses sítios eletrônicos, alguns empreendedores
conseguem um trabalho, geralmente um pequeno trabalho de execu-
ção, que eles supervisionam e dirigem. O trabalho realizado é então
um trabalho subordinado. Mas o empregador, o detentor do poder
de direção, é então o “cliente”, e não a plataforma. Esta é um simples
intermediário. Mas ela é um intermediário em mão de obra. Ela cairá
sob a proibição do empréstimo de mão de obra com fins lucrativos,
quando o trabalhador não tiver nenhuma relação contratual com o
“cliente”.32 Quando uma relação contratual é criada entre o cliente e
o trabalhador, essa relação deve ser qualificada como um contrato de
trabalho, e a plataforma deve ser qualificada como uma empresa de
colocação de mão de obra. Ela está então sujeita, no Direito francês,
às condições dos artigos L. 5321-1 e seguintes do Código do Trabalho
francês e, em especial, não deve exigir remuneração, direta ou indi-
reta, das pessoas que procuram um emprego.33
Como podemos ver, os empregados das plataformas não abrangerão
todos os trabalhadores das plataformas. Mas uma grande parte des-
ses trabalhadores deve ser qualificada como empregados, às vezes
da plataforma, como foi o caso do Take Eat Easy, às vezes do cliente,
como deveria ser quando este último não é um simples consumidor,
mas exerce um verdadeiro poder de direção sobre o trabalhador.

3 · A aplicação do Direito Social às plataformas


O temor suscitado pela aplicação do Direito Social às plataformas
é essencialmente a retomada do temor eterno do custo das prote-
ções em geral e daquelas do Direito Social em especial: todas as
proteções, exceto aquelas que beneficiam as grandes empresas, são
suspeitas de causar desastres econômicos.34 Não se trata de reto-
mar aqui todo o debate sobre a competitividade das empresas, a

32 A proibição do ”marchandage“ e do empréstimo de mão de obra com


finalidade lucrativa está prevista nos artigos L. 8231-1 e L. 8241-1 e ss. do
Código do Trabalho.
33 Art. L. 5321-3 do Código do Trabalho.
34 Vide especialmente A. O. Hirschman, op. cit.

185
solvência do trabalho e o suposto custo do Direito Social. Se alguém
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

levasse a sério todos os temores dos efeitos perversos das prote-


ções, há muito tempo toda atividade deveria ter cessado na França
e os Países Bálticos, quase inteiramente desprovidos de direitos
trabalhistas, deveriam ter se tornado lugares efervescentes de ati-
vidade e de riqueza. Na França, o mais difícil deveria ter sido o ter-
rível período do início dos anos 1980, quando o Direito do Trabalho
era muito mais protetor do que hoje e onde, estranhamente, as
taxas de crescimento eram mais altas35 e a taxa de desemprego,
mais baixa.36 Basta dizer que a aplicação do Direito Social também
permite ganhos, principalmente a produtividade dos trabalhado-
res, limita as desigualdades que devastam as sociedades e permite
a redução de acumulações improdutivas. Como todas as regras que
limitam os possíveis excessos de poder, começando por aquelas da
democracia, as regras do Direito Social são custosas. Mas a história
parece mostrar que se trata de despesas muito bem gastas.37
No que diz respeito às plataformas, recorde-se que o custo das contri-
buições para a Seguridade Social incidentes sobre os baixos salários,
que são em geral a regra no caso de trabalhadores de plataformas,
atualmente é muito baixo na França. Dada a participação da folha de
pagamento no custo total do serviço para o cliente, o aumento ligado
às contribuições sociais desse serviço deve ser relativamente pequeno.
De qualquer maneira, muito baixo para que possamos pensar que isso
acabará com a clientela e fará desaparecer as plataformas.
Algumas questões jurídicas são mais difíceis. A aplicação do Direito
do Trabalho exigirá adaptações significativas às plataformas que
contratam empregados, especialmente quanto às condições gerais
de um contrato de trabalho que deverá ser concluído, em poucos
cliques, com os trabalhadores dessas plataformas.

35 2,5% em 1982 contra uma previsão de 1,8% em 2018.


36 Em 1982, a taxa de desemprego ainda era de 6,9% (variando de pouco menos
de 8% a quase 11% desde 1984, com picos acima de 10% no final da década
de 1990 e em 2014-2016, apesar de dezenas de leis de retrocesso social, sem
efeitos substanciais no desemprego. Mas essa taxa caiu para menos de 8% no
início dos anos 2000, mesmo com a redução onerosa do horário de trabalho.
Essa taxa atualmente está ligeiramente acima de 9%. Fonte: Insee, pesquisa
Emprego, França metropolitana – Dados com ajuste sazonal.
37 Vide em especial S. Deakin, The contribution of labour law to economic
and human development, in The Idea of Labour Law, G. Davidov e B.
Langille eds, p. 156-175.
186
A questão mais difícil é a manutenção desejável da liberdade atu-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


almente concedida à maioria dos empregados das plataformas
quanto à duração e aos horários de seu trabalho. Esta não poderá
mais ser completa. Em especial, o respeito da duração máxima de
trabalho prevista no Código do Trabalho deverá ser imposto – para
maior segurança dos trabalhadores dos serviços de transporte, de
seus passageiros e de outros usuários das estradas.
Mas essa liberdade deve ser preservada o máximo possível. Esta
deveria poder ser bastante ampla, no estado atual do Direito,
sobretudo se forem concluídas convenções coletivas para aprovei-
tar ao máximo as flexibilidades do tempo de trabalho atualmente
permitidas pelo Código do Trabalho francês. Essas regras não per-
mitem que se faça tudo, mas permitem muito. Portanto, é neces-
sário demandar a rápida abertura de negociação coletiva sobre a
organização do tempo de trabalho em plataformas digitais.
Não é proibido pensar que todas essas flexibilidades permanecem
complexas. Portanto, devemos desejar, como proposto na França
pelo Grupo de Pesquisa por um outro Código do Trabalho,38 que
as principais regras legais que limitam a flexibilidade do tempo
de trabalho – para enquadrar o poder do empregador de dispor do
empregado – sejam excluídas quando se provar que o empregado é
o único mestre de sua agenda e da duração de seu trabalho, como
é o caso da maioria dos trabalhadores das plataformas.
A plena integração no Direito do Trabalho da maioria dos empre-
gados das plataformas demandará algumas adaptações pelas con-
venções coletivas, pelos juízes e até marginalmente pelo legislador.
Essas poucas adaptações não são intransponíveis. Elas são o preço

38 Grupo de Pesquisa por um outro Código do Trabalho (”Groupe de recherche


pour un autre Code du travail“ - GR-PACT). Este grupo, em especial, redigiu
uma versão alternativa completa do Código do Trabalho Francês (E. Dockès
coord., Proposition de code du travail, Dalloz 2017), que contém uma seção sobre
empregados autônomos na organização de seu tempo de trabalho, art. 44-3 e
ss. Uma primeira versão da parte deste Código relativa ao tempo de trabalho
foi publicada pela revista Droit social 2016, p. 422 e ss.: os artigos relativos
aos empregados autônomos na organização de seu tempo de trabalho são
reproduzidos nos artigos 17.3 e ss. As proposições de revisão da parte do
Código do Trabalho referente ao tempo de trabalho, propostas pelo GR-PACT,
foram apresentadas na forma de uma proposta de lei à Assembleia Nacional
Francesa, por 24 deputados, em 27 de abril de 2016 (http://www.assemblee-
nationale.fr/14/pdf/propositions/pion3700.pdf).
187
a pagar por uma generalização da aplicação do Direito do Trabalho,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

pela realização de uma proteção mínima dos mais fracos e para que
não se desenvolva uma espécie de subproletariado composto por
trabalhadores mais frágeis do que os mais frágeis dos empregados.
A decisão da Corte de Cassação francesa, ao ordenar a aplicação
do Direito Social à maioria dos trabalhadores das plataformas, os
quais são trabalhadores em situação de fraqueza particular, fez um
trabalho útil. Espera-se que seu potencial espalhado pela Europa e
pelo mundo seja importante, para que essa categoria de trabalha-
dores possa, em todo o mundo, se beneficiar de uma jurisprudên-
cia consciente da realidade da situação desses trabalhadores, da
necessidade de sua proteção e, portanto, da necessidade de qualifi-
cá-los plenamente como empregados.

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188
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FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


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189
As novas tecnologias e o trabalho: proteção
para o empregado e para o ser humano

Maria Cecília Alves Pinto


Desembargadora no Tribunal Regional do Trabalho da
3ª Região. Doutora pela Universidad Pablo de Olavide –
Programa de Doutorado “Desarrollo y Ciudadanía: Derechos
Humanos, Igualdad, Educación e Intervención Social”.

Resumo: Este artigo objetiva fazer um breve estudo acerca dos


pressupostos da relação de emprego, cuja percepção resta dificultada
no atual contexto de intenso desenvolvimento de novas tecnologias
e ferramentas tecnológicas de gestão de mão de obra. O objetivo é
identificar as hipóteses em que o trabalho prestado em prol de outrem,
nos mais diferenciados ambientes, caracteriza vínculo de emprego e
gera para o trabalhador o acesso a direitos trabalhistas, outorgando-lhe
proteção jurídica suficiente para a sobrevivência digna.

Palavras-chave: Emprego. Releitura do art. 3º da CLT. Evolução tecnológica.

Abstract: This article aims to make a brief study on the assumptions


of the employment relationship, whose perception remains difficult in
the present context of intense development of new technologies and
technological tools for labor management. The objective is to identify the
hypotheses in which the work performed on behalf of others, in the most
differentiated environments, characterizes employment relationship
and generates for the worker access to labor rights, granting him/her
sufficient legal protection for dignified survival.

Keywords: Employment. Re-reading of article 3 of CLT. Technological


evolution.

1 · Introdução
Busca-se, com este estudo, efetuar breve análise acerca da proteção do
trabalhador empregado em contexto marcado pelo desenvolvimento
191
de novas tecnologias e ferramentas tecnológicas de gestão de mão
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

de obra, identificando os pressupostos necessários para o reconheci-


mento da relação de emprego. Percebe-se a premente necessidade de
inclusão do trabalhador subordinado no sistema de proteção do tra-
balho estatuído pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como
meio de acesso a direitos e garantias trabalhistas, que irão propiciar
a sua sobrevivência de forma digna.
A tendência é que o reconhecimento das hipóteses em que se esta-
belece autêntica relação de emprego torne-se cada vez mais difí-
cil, uma vez que a percepção dos pressupostos essenciais (art. 3º
da CLT) demandam releitura a partir da concepção tradicional de
análise, levando em conta o contexto de desenvolvimento de ati-
vidades mediante uso de novas tecnologias, que dissimulam a sua
imediata visualização.
Não pode passar despercebido que as novas tecnologias estão
fazendo desaparecer postos de trabalho, com a robotização de inú-
meras atividades, deixando à deriva seres humanos, que necessi-
tam de condições dignas para a sobrevivência. Por essa razão, a
proteção estatal deve voltar-se para o ser humano, que não mais
consegue inserção no mercado de trabalho, mostrando-se insufi-
ciente a proteção jurídica voltada para o empregado, uma vez que
nem todos terão acesso ao emprego formal.
Nesse cenário, marcado por intenso desenvolvimento tecnológico,
há importante dificuldade na compreensão não só das tecnologias
como também da regência normativa incidente sobre as relações
humanas travadas dentro dessa nova realidade.
A partir da internet, que é hoje imprescindível na vida de quase
toda a população mundial, foram desenvolvidas tecnologias diver-
sas e disruptivas que impactam diretamente o mundo do trabalho.
Para Chaves Júnior, o Direito do Trabalho deve atentar para a cir-
cunstância de o capitalismo tecnológico não efetuar a disciplina
dos corpos, mas sim o controle da mente e da criatividade do traba-
lhador (2019, p. 23-24), o que dificulta a identificação dos elementos
caracterizadores da relação de emprego.
No âmbito do transporte de passageiros organizado por meio de
softwares e aplicativos, surgiram questionamentos jurídicos na
área do Direito do Trabalho, acerca da regulamentação do labor

192
executado. As empresas envolvidas negam a sua condição de trans-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


portadoras de passageiros, apresentando-se como meras platafor-
mas digitais, cujo objetivo seria apenas conectar o usuário dos ser-
viços de transporte e o motorista, que, em tese, seria o responsável
pela gestão do próprio negócio.
Esse é o ponto em que as referidas tecnologias são disruptivas, na
medida em que rompem com o padrão e descrevem a atividade de
forma dissociada da realidade, buscando um regramento jurídico
condizente com os seus interesses meramente econômicos, em
detrimento de direitos trabalhistas daqueles a quem é acometida a
tarefa do transporte de passageiros.
Torna-se, assim, necessário verificar a subsunção, ou não, do tra-
balho executado dentro desses ramos inovadores de atividade,
regidos pelas novas tecnologias da informação e de gestão de mão
de obra, às normas protetivas do Direito do Trabalho. Para Ramos
Filho, o Direito do Trabalho é, na verdade, o “Direito Capitalista
do Trabalho”, uma vez que o capitalismo apreendeu esse ramo do
Direito como ferramenta essencial para “fins de organização da
sociedade, segundo os interesses das classes detentoras dos meios
de produção” (2012, p. 14-15). Nesse sentido, o Direito do Trabalho,
resultado de lutas antagonistas empreendidas pelos trabalhadores,
representa também a possibilidade de regulação e de limitação dos
interesses capitalistas na exploração da mão de obra.
No atual contexto, percebe-se que as empresas buscam extrair do
trabalhador mais do que ele pode oferecer e, sob a rotulação de
uma economia colaborativa ou de parceria, deixam com o labo-
rista os riscos da atividade, sem que o tomador dos serviços seja
obrigado a garantir-lhe um patamar remuneratório mínimo, ou
qualquer dos demais direitos trabalhistas, de modo a propiciar-
-lhe uma sobrevivência digna.
Esse é o desafio atual de todos quantos atuam na área do Direito
do Trabalho: apreender os fenômenos gerados pelas novas tecnolo-
gias, analisando caso a caso as relações de trabalho estabelecidas,
incumbindo-lhes verificar a presença ou não dos pressupostos do
vínculo empregatício, tal como disciplinados no art. 3º da CLT. Só
assim será possível averiguar a condição de empregado por parte
de trabalhador, estendendo-lhe a proteção jurídica outorgada pela
legislação trabalhista, em toda a sua extensão, inclusive no que diz

193
respeito à jornada de trabalho, patamar mínimo remuneratório,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

recolhimento de contribuição previdenciária e outros. É o que será


analisado no item seguinte deste estudo.

2 · Vínculo de emprego: pressupostos legais


Segundo Barros, a relação de emprego é espécie da relação de tra-
balho, sendo ambas modalidades de relação jurídica, pautada pela
atribuição de direitos e deveres a cada uma das partes, pressu-
pondo a existência de duas pessoas e de uma norma qualificadora
dessa relação jurídica (2016, p. 147). Afirma essa autora,
Os principais elementos da relação de emprego gerada pelo con-
trato de trabalho são: a) a pessoalidade, ou seja, um dos sujeitos (o
empregado) tem o dever jurídico de prestar os serviços em favor
de outrem pessoalmente; b) a natureza não eventual do serviço,
isto é, ele deverá ser necessário à atividade normal do emprega-
dor; c) a remuneração do trabalho a ser executado pelo empregado;
d) finalmente, a subordinação jurídica da prestação de serviços ao
empregador. (BARROS, 2016, p. 147).

No mesmo sentido, para Russomano (1984, p. 138), o trabalhador é o


gênero, enquanto o empregado é espécie desse gênero. E acrescenta:
O trabalhador autônomo – aquele que presta serviços sem depen-
dência hierárquica – e o trabalhador eventual – aquele que presta
serviços sem continuidade e permanência – não são empregados,
embora sejam trabalhadores. (1984, p. 138, grifo do autor).

Não se pode olvidar a existência de relações de trabalho que tan-


genciam a relação empregatícia, com ela não se confundindo, em
face da regência jurídica que lhes foi dispensada ou também pela
ausência inequívoca dos elementos fático-jurídicos enumerados
pelos arts. 2º e 3º da CLT, citando-se como exemplo os estagiários,
trabalhadores eventuais e autônomos, entre outros.
Analisados os arts. 2º, 3º e 9º da CLT, percebe-se que a prestação de
trabalho pessoal por conta alheia, de forma onerosa e não eventual,
mediante subordinação, gera o enquadramento do trabalhador na
condição de empregado, sendo certo, ainda, que, por força do art.
9º, são “nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de
desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos
na presente consolidação”. Por outro lado, os arts. 2º e 3º da CLT

194
nunca consagraram a exclusividade, mencionada no art. 442-B da

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


CLT, como pressuposto da relação de emprego.
Discorrendo sobre o princípio da primazia da realidade sobre a
forma, ou princípio do contrato realidade, Delgado afirma que ele
decorre da noção civilista, constante do art. 112 do CCB, segundo a
qual o intérprete chamado a examinar as declarações volitivas das
partes deve atentar mais à intenção do que à forma por meio da
qual foi explicitada essa vontade (2018, p. 242).
Verifica-se hoje a existência de dificuldades geradas pelas novas tec-
nologias, que mascaram a percepção dos pressupostos legais do vín-
culo de emprego, em conformidade com os arts. 2º e 3º da CLT. É que
a prestação laboral, em inúmeros casos, pode ocorrer sem a necessi-
dade da presença física do trabalhador no ambiente fabril ou empre-
sarial, desaparecendo a importância da subordinação do seu corpo
físico, passando a um especial momento de captura da mente, inte-
lecto e criatividade. Assim, por meio da internet, smartphones, com-
putadores e outros, o trabalhador conecta-se com o espaço empresa-
rial, sem precisar se deslocar concretamente para o ambiente físico
patronal, pois o importante é a conexão tecnológica.
No caso do trabalho mediado por plataformas digitais, como ocorre
no transporte uberizado, seja controlado pela Uber ou por outra
empresa qualquer, o trabalhador locomove-se com aparente liber-
dade, em veículo de sua propriedade, arcando com todos os cus-
tos de manutenção, podendo ativar-se ou não no sistema, também
com aparente autonomia. Entretanto, sempre que a realidade da
prestação laboral evidenciar a presença dos pressupostos da rela-
ção de emprego, o trabalhador deve receber a proteção dispensada
pela legislação do trabalho na condição de empregado. Com esta
assertiva, não se está defendendo a definição, a priori, de vínculo
de emprego entre todos os motoristas e a Uber ou outra empresa
mediadora desse tipo de trabalho. O que se está afirmando é que o
contrato, na realidade, deve prevalecer sobre a forma eventualmente
pactuada, e, caso identificados na prestação de trabalho os supostos
da relação de emprego, o trabalhador deve ser regido pela CLT.
Dessa forma, segue importante a compreensão dos pressupostos
da relação de emprego, cabendo à Justiça do Trabalho a sua identi-
ficação nos casos concretos que lhe são submetidos a julgamento.
Sempre que necessário, deverão ser efetuadas releituras desses

195
elementos fático-jurídicos imprescindíveis ao estabelecimento do
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

vínculo de emprego, para uma maior aproximação da regência nor-


mativa adequada, mesmo naquelas situações em que novas figuras
e novas reivindicações são deduzidas pelas partes, dando uma pri-
meira impressão de desconformidade com o modelo ditado pelos
arts. 2º e 3º da CLT. Sobre o tema, Oliveira aduz:
O atual panorama laboral, complexo e multiforme, demonstra o
aparecimento paulatino de novas figuras e novas reivindicações,
que têm sido deduzidas na Justiça do Trabalho nem sempre com
referida nomenclatura, mas constantemente com similar essência,
a evidenciar que a legislação ordinária específica frequentemente
não acompanha a dinâmica das relações, embora a apresentação
das pretensões encontre respaldo em normas e princípios inseri-
dos na Constituição Federal e na interpretação sistemática e tele-
ológica do ordenamento. (2010, p. 10).

Constam do art. 3º da CLT os requisitos para a caracterização do


vínculo empregatício, sendo eles a pessoalidade, a não eventuali-
dade, a onerosidade e a subordinação.
O requisito da pessoalidade traz a exigência de que seja o empre-
gado pessoa física, não podendo ser assim considerada uma pes-
soa jurídica, sendo o contrato de trabalho intuitu personae, não
podendo o trabalhador fazer-se substituir por terceiros. Em
alguns casos, percebe-se a exigência patronal de constituição de
empresa para a contratação do trabalhador, valendo-se da pejoti-
zação,1 o que não impede o reconhecimento do vínculo emprega-
tício. Nesse ponto, Delgado afirma que a utilização simulatória da
roupagem da pessoa jurídica, para encobrir prestação de serviços
por pessoa física específica (art. 9º, CLT), não prevalece quando o
exame concreto da situação demonstra que o serviço é prestado
de forma pessoal (2018, p. 339).
Portanto, as tentativas de fraude devem ser escancaradas pela aná-
lise da prova carreada aos autos, descortinando-se a forma adotada,

1 O grupo de estudos constituído no âmbito do MPT concluiu que a pejotização


“consiste em contratação de trabalhador subordinado como sócio ou titular
de pessoa jurídica, mecanismo voltado a mascarar vínculo empregatício por
meio da formalização contratual autônoma em fraude à relação de emprego.
Daí se origina o neologismo ‘pejotização’, no sentido de transformar
artificialmente um empregado em pessoa jurídica” (LIMA et al., 2018, p. 16).

196
para encontrar a verdadeira relação jurídica e tornar visível o pri-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


meiro requisito da relação de emprego, sempre que a realidade
demonstrar que o contrato foi firmado efetivamente com pessoa
física, afetando a prestação de trabalho a ela própria (pessoalidade).
O segundo requisito, o da não eventualidade, assume especial impor-
tância na identificação da relação de emprego quando em ambiente
marcado pelas novas tecnologias (ALVES PINTO, 2017, p. 197-205).
Acerca do tema, Vilhena adverte que “a rigor não se pode estabelecer
um paralelo ou uma relação de contraposição entre eventualidade e
subordinação. Nem entre eventualidade e permanência, que, como a
continuidade, é pressuposto temporal” (1999, p. 358).
Isso porque pode haver trabalho subordinado, caracterizado como
eventual, ou também trabalho eventual não subordinado. Por outro
lado, o trabalho descontínuo pode ou não se caracterizar como even-
tual, dependendo do caso concreto, à luz dos arts. 2º e 3º da CLT.
Vilhena aduz que o trabalho eventual é via de regra subordinado,
ainda “que a prestação de serviços seja ocasional e se destine à
cobertura de uma exigência desligada do normal funcionamento
da empresa – essa é a acepção corrente de trabalho eventual” (1999,
p. 359). E continua, afirmando que essa atividade eventual integra,
ainda assim, o círculo de atividades da empresa, que irá condicionar
a forma e o modo de sua execução às diretrizes que a regem. Essa
conformação é que leva à caracterização do trabalho subordinado.
No que diz respeito à consideração do tempo para a caracterização
de dada prestação de serviço como eventual ou não, Vilhena aduz
que todo contrato de atividade impõe atos contínuos ou atos que,
de forma alternada, podem ou não se repetir, e que “a prestação de
serviços não dispensa o tempo como elo entre os atos de desenvol-
vimento de energia pessoal” (1999, p. 364).
Para viabilizar uma análise mais aprofundada do requisito da não
eventualidade da prestação de serviços, Vilhena sugere sejam har-
monicamente considerados os seguintes elementos:
a) função desempenhada pelo prestador na empresa, se necessária
e permanente ou não; b) forma subordinativa ou não da prestação;
c) condição social de biscateiro do prestador, que denuncia autono-
mia negocial; d) ajuste prévio ou não da natureza da prestação; e)
serviços estranhos, não só ao curso da atividade empresária como

197
à própria expectativa do credor do trabalho; f) preponderância ou
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

não do resultado a ser alcançado pelo trabalho e não deste como


pura atividade. (1999, p. 371).

Vê-se, pois, que o requisito da não eventualidade necessita ser repen-


sado, tal como ocorreu com o requisito da subordinação, que, em
determinado momento, teve o seu conceito elastecido por meio de
releitura da doutrina e da jurisprudência (PORTO; BELTRAMELLI
NETO; RIBEIRO, 2018, p. 122), sendo ampliadas as hipóteses de
identificação do trabalho não eventual. Torna-se relevante, assim,
a análise conjugada da teoria dos fins da empresa com a da fixação
jurídica, sem olvidar os demais elementos apontados por Vilhena
(1999). Desse modo, será não eventual o trabalho oneroso prestado
por pessoa física em regime de subordinação jurídica, desde que
desenvolvido em prol de outrem, uma pessoa física ou jurídica
determinada (teoria da fixação jurídica), inserindo-se também no
padrão dos fins normais do empreendimento. Essa análise assume
especial importância na identificação do vínculo empregatício em
relações de trabalho regidas pelas novas e modernas tecnologias
de gestão empresarial.
Quanto ao pressuposto da onerosidade, constitui ele conteúdo da
relação de emprego, pois é por meio da remuneração que, via de
regra, o trabalhador tem acesso aos meios necessários para a sua
própria sobrevivência, bem como a de sua família; ou seja, a força
de trabalho que é colocada à disposição do empregador demanda,
como contraprestação, o conjunto de verbas remuneratórias legal-
mente asseguradas. Para Delgado, a onerosidade deve “ser enfo-
cada sob a perspectiva do prestador de serviços: apenas nessa pers-
pectiva é que ela constitui elemento fático-jurídico da relação de
emprego” (2018, p. 346). Há situações fronteiriças na identificação
da onerosidade, em que há a prestação laboral sem a contrapres-
tação salarial esperada pelo trabalhador, que pautou a prestação
laboral pela intenção econômica, “com o intuito essencial de auferir
um ganho econômico pelo trabalho ofertado” (DELGADO, 2018, p.
346-347). Assim, quando não for possível identificar a onerosidade
do contrato de trabalho no plano objetivo, pelo pagamento de con-
traprestação remuneratória, deve-se recorrer ao plano subjetivo,
buscando extrair a intenção do trabalhador ao pactuar a presta-
ção laboral, o que se apresenta de vital importância para distin-
guir o trabalho voluntário, comunitário, filantrópico, entre outros,
daquele prestado em situação de emprego.

198
Por fim, o elemento subordinação, que deve estar presente para a

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


caracterização do vínculo de emprego, sofreu importante revisão,
tratando-se de conceito que deve acompanhar as mudanças da rea-
lidade social, não sendo mais visto com a simplicidade dos primór-
dios do Direito do Trabalho. Delgado (2018) afirma que a subordi-
nação deve ser vista em uma dimensão mais ampliada, moderna
e renovada, de forma a permitir a superação de dificuldades de
enquadramento dos fatos novos no âmbito da prestação laboral no
tipo jurídico da relação de emprego, e aponta:
Na essência, é trabalhador subordinado desde o humilde e tradi-
cional obreiro que se submete à intensa pletora de ordens do toma-
dor ao longo de sua prestação de serviços (subordinação clássica
ou tradicional), como também aquele que realiza, ainda que sem
incessantes ordens diretas, no plano manual ou intelectual, os
objetivos empresariais (subordinação objetiva), a par do prestador
laborativo que, sem receber ordens diretas das chefias do tomador
de serviços e até mesmo nem realizar os objetivos do empreendi-
mento (atividades-meio, por exemplo),2 acopla-se estruturalmente,
à organização e dinâmica operacional da empresa tomadora, qual-
quer que seja sua função ou especialização, incorporando, necessa-
riamente, a cultura cotidiana empresarial ao longo da prestação de
serviços realizada (subordinação estrutural). (2018, p. 353).

Para Vilhena, ninguém contrata a subordinação, mas sim os ser-


viços, que podem ser prestados de forma subordinada ou não.
Segundo o autor, não se admite a subordinação da pessoa, mas sim
da atividade ou do modo de prestação laboral. E sintetiza o conceito
de subordinação “como a participação integrativa da atividade do
trabalhador na atividade do credor de trabalho” (1999, p. 478).
Efetuada essa análise acerca dos pressupostos do vínculo de
emprego, com uma aproximação das dificuldades na sua percepção,
importa na sequência apontar exemplos de como as novas tecnolo-
gias podem interferir na correta subsunção das relações de trabalho

2 Essa distinção entre atividades-meio e atividades-fim estabelecida pela


Súmula n. 331 do TST tende a perder importância com o julgamento do RE
n. 958252, referente ao tema 725, em que foi relator o ministro Luiz Fux,
resultando na seguinte tese: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma
de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente
do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade
subsidiária da empresa contratante”. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/
jurisprudenciaRepercussao/abrirTemasComRG.asp. Acesso em: 13 fev. 2018.

199
à legislação vigente, impedindo o trabalhador de acessar a integra-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

lidade dos direitos e garantias, previstos pela legislação trabalhista.

3 · Novas tecnologias e o trabalho:


proteção para o empregado
Diversas são as questões a serem problematizadas no que tange à
correlação entre as novas tecnologias e o trabalho, sendo necessá-
rio um recorte das situações que ora se apresentam para viabili-
zar a análise aqui proposta. Nesse sentido, faz-se uma opção para o
enfrentamento do tema com enfoque no transporte de passageiros
mediado por plataformas eletrônicas, em espaço dominado pelas
novas tecnologias de gestão de mão de obra, pois os debates tra-
vados acerca da regência normativa aplicável à atividade têm sido
acirrados. Alguns estudiosos apostam na presença dos pressupos-
tos do vínculo de emprego nessa modalidade de trabalho, enquanto
outros afirmam não vislumbrar sequer indícios de subordinação, já
que para eles o motorista se estabelece com total autonomia, sem a
presença concomitante dos elementos ditados pelos arts. 2º e 3º da
CLT, razão pela qual devem ser enquadrados como autônomos.
Segundo Chaves Júnior, o desafio do Direito do Trabalho é distin-
guir, no âmbito da economia do compartilhamento, o joio do trigo,
buscando ver, por detrás dessa ideia emancipadora de “consumo
colaborativo”, a atuação de corporações planetárias que dominam
mercados e trabalhadores, aprisionam a energia da cooperação
social, transferem os custos e internalizam de maneira assimétrica
os ganhos, passando a atuar, em determinadas hipóteses, como ver-
dadeiro empregador-nuvem. (CHAVES JÚNIOR, 2017, p. 358).

Por sua vez, Rodrigues questiona se tais plataformas eletrônicas de


conexão entre passageiros e motoristas pertencem a empresas de
tecnologia da informação que exploram algoritmo de simples oti-
mização dessa conexão ou se, ao revés, sob o pretexto de explora-
rem um mero aplicativo, atuam como exploradoras de mão de obra,
apropriando-se da mais-valia do trabalho (2017, p. 214).
A resposta a que chega Rodrigues, após analisar os contratos de ade-
são disponibilizados nos sites das empresas, é no sentido de que elas
fazem o gerenciamento dos pagamentos efetuados pelo passageiro,

200
repassando ao motorista os valores a ele devidos, definindo de forma

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


unilateral o preço de “uso” do aplicativo. Ressalta-se, ainda, que a
empresa avança sobre o resultado econômico gerado pelo trabalho
alheio, o qual deve ser prestado em estrito cumprimento das nor-
mas empresariais, o que acaba por explicitar o seu poder diretivo,
com definição do tipo de veículo, vestimenta a ser adotada, indicação
de meta de desempenho quanto às notas atribuídas pelos usuários
dos serviços, entre outros. O autor identifica nessa modalidade de
trabalho três dos quatro pressupostos do vínculo de emprego, quais
sejam a pessoalidade, a onerosidade e a subordinação, e registra que
o elemento da não eventualidade é que irá ditar o reconhecimento
ou não do vínculo de emprego entre o motorista e a empresa que
disponibiliza o aplicativo (RODRIGUES, 2017, p. 209-219).
No contexto do trabalho mediado por plataformas eletrônicas, em
cenário de tecnologias de ponta, Leme afirma que o poder empre-
sarial não mais se expressa pela disciplina do trabalho, orientando-
-se mais pela fixação de cotações do que pela redução dos custos de
produção, descolando o poder empregatício “da disciplina corporal
e do tempo de trabalho, para o controle da alma e do marketing”
(2019, p. 77). E acrescenta:
Ao controle já não interessa o confinamento dentro da fábrica,
dentro de uma jornada fixa, dentro de uma disciplina linear, de
um vínculo jurídico estável, mas, sim, de um vínculo etéreo, nas
nuvens, pós-contratualista, pós-material. Emerge o contrato reali-
dade-virtual. (LEME, 2019, p. 77).

A questão mais urgente nesse espaço da realidade do trabalho


prestado por motoristas que atuam no transporte de passageiros,
na forma acima delineada, passa pela caracterização ou não de vín-
culo de emprego entre a empresa, proprietária da plataforma digi-
tal e que efetua a conexão com os passageiros, e o motorista, que
atua no transporte, utilizando o seu próprio veículo, cujos custos
de manutenção lhe são atribuídos.
Leme afirma que o modelo de negócio dessas empresas, a despeito
das estratégias de marketing, visa mascarar a real exploração do
trabalho humano, apropriando-se da ideia de cooperação social
para realizar seus fins econômicos, e alerta para a inviabilidade do
modelo de negócio, caso fossem respeitadas as leis tributárias e os
direitos trabalhistas (2019, p. 77-78).

201
Por essa razão, a pesquisa acerca dos pressupostos do vínculo de
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

emprego deverá ter em conta a realidade fática submetida à aná-


lise, podendo ser afirmada a condição de empregado do traba-
lhador, ou não, sobretudo em face da análise do elemento da não
eventualidade, tomado na concepção mais alargada do conceito.
Como asseverado linhas atrás, será não eventual o trabalho inse-
rido no núcleo normal das atividades-fim do tomador dos serviços,
fixando-se o trabalho de forma específica nesse tomador, pouco
importando se é a atividade de natureza contínua ou não, desde
que constatada a pessoalidade na prestação laboral, onerosidade
e subordinação jurídica, subsumindo-se a realidade em exame à
previsão abstrata do art. 3º da CLT.
A importância da análise acerca da configuração de vínculo de
emprego entre os motoristas e as empresas gestoras das plata-
formas eletrônicas mencionadas passa pelo rol de direitos assegu-
rados aos trabalhadores pela legislação trabalhista, a qual exerce
importante limitação do esquema de exploração do trabalho
humano. É a vinculação empregatícia que assegura ao trabalhador
a proteção outorgada pela legislação do trabalho, que, por sua vez,
viabiliza o acesso a uma vida digna pela via dos direitos assegura-
dos ao empregado.
Por outro lado, há a possibilidade de o ser humano sequer con-
seguir inserção no mercado de trabalho, em face da robotização
das atividades e redução de postos, hipótese em que o Estado deve
encontrar uma solução que lhe propicie a propalada sobrevivência
com dignidade. Esse é o tema a ser estudado a seguir.

4 · Novas tecnologias e desemprego:


proteção para o ser humano
O desenvolvimento de novas tecnologias, com automação em
escala ascendente, criação de robôs para a execução de inúmeras
atividades outrora delegadas aos seres humanos e maior produti-
vidade, inspira preocupação com o futuro do emprego, ou melhor,
com o desemprego estrutural e em âmbito global.
Por essa razão, o Fórum de Davos do ano de 2019 adotou o tema
“Globalização 4.0: Moldando uma Arquitetura Global na Era da
Quarta Revolução Industrial” e propôs o debate acerca do avanço
dos processos de automação da produção e suas consequências para
202
o futuro do trabalho. Entre os convidados, está o historiador e escri-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tor holandês Rutger Bregman, autor do livro Utopia para Realistas,
obra que versa sobre os impactos das transformações tecnológicas
no mundo do trabalho, apontando para o aumento da desigualdade
no globo, propondo a criação de uma renda básica universal.3
A renda básica universal ou renda básica da cidadania, também conhe-
cida como ingresso cidadão, é apresentada por Pisarello e Cabo como:
[...] un pago periódico en metálico realizado por el Estado a cada ciuda-
dano o residente de manera incondicional y con independencia de otros
recursos que perciba. Es decir, sin importar si es rico o pobre, con quién
convive o si quiera o no trabajar de forma remunerada en el mercado
laboral formal. (2006, p. 9-18).

Vanderborght e Parijis entendem, como renda básica de cidada-


nia, “uma renda paga por uma comunidade política a todos os seus
membros, em termos individuais, sem comprovação de renda nem
exigência de contrapartida” (2006, p. 23).
Referidos autores afirmam que o programa brasileiro denomi-
nado “Bolsa Família” constitui o passo inicial para a implemen-
tação da renda básica da cidadania (VANDERBORGHT; PARIJIS,
2006). Tal constatação decorre da edição da Lei n. 10.835, de 8
de janeiro de 2004, que instituiu a renda básica da cidadania no
Brasil. 4 Também o programa “Bolsa Família”5 e o benefício assis-

3 Matéria assinada pelo professor Arnaldo Francisco Cardoso. Disponível em:


https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/automacao-e-o-futuro-
do-trabalho-no-forum-de-davos-e-o-brasil-o-que-tem-a-dizer/. Acesso em:
24 fev. 2019.
4 Segundo a Lei n. 10.835/2004, a renda básica da cidadania será objeto de
implementação gradativa, priorizando-se as camadas mais necessitadas da
população, devendo ser suficiente para o atendimento das despesas mínimas
de cada pessoa com alimentação, educação e saúde. Para a fixação do benefício
e a ampliação do contingente populacional atingido, deverá ser levado em
conta o grau de desenvolvimento do País, bem como suas possibilidades
orçamentárias. Confira a íntegra da Lei n. 10.835/2004, que instituiu a renda
básica da cidadania. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2004-2006/2004/lei/l10.835.htm. Acesso em: 13 set. 2010.
5 O “Bolsa Família” foi instituído pela Lei n. 10.836, de 9.1.2004, como programa
destinado à transferência de renda, com condicionalidades. Veja o texto
da lei, na íntegra, no site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2004/lei/l10.836.htm. Acesso em: 13 set. 2010. Rosa Maria Marques vê
no “Bolsa Família” não um direito, mas mero programa, fruto de decisão do
203
tencial (art. 203, V, da CF), devido a idosos e pessoas com defi-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

ciência, mediante teste de meios,6 constituem modalidades de


transferência de renda para camadas mais necessitadas da popu-
lação e, por essa razão, podem ser identificados como embriões da
renda básica da cidadania no Brasil.7
Incumbe ao homem, inclusive por meio dos movimentos sociais,
opor-se de forma determinada e contínua à falácia ideológica difun-
dida pelo pensamento neoliberal, construindo as condições mate-
riais para colocar em prática sua capacidade de fazer e desfazer
os espaços em que vive (HERRERA FLORES, 2007, p. 27), visando
ao resgate integral da dignidade da pessoa humana, que implica o
acesso igualitário aos bens necessários para viver, quer sejam eles
de ordem material, quer sejam de ordem imaterial.
Tomando como critério a corporalidade do ser humano, tem-se que
a remuneração a ser paga pelo trabalho deve ser suficiente para
propiciar o acesso do trabalhador e de sua família aos bens que
viabilizam a vida, sob pena de restar vulnerada a dignidade da pes-
soa humana, proclamada no cenário internacional como direito
humano universal. O salário-mínimo constitui importante instru-
mento de proteção para o trabalhador, sobretudo nos países mais
pobres, onde o risco da superexploração ainda segue existindo.
A Declaração dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 1948,
consagrou entre os direitos trabalhistas a remuneração digna e
justa, como se vê do § 3º do artigo 23, onde consta:

Executivo Federal, cujos benefícios “podem ser extintos por simples ato de
vontade do governo de plantão” (MARQUES, 2005, p. 107-120).
6 A expressão “exigir teste de meios” é utilizada por Rosa Maria Marques,
que questiona a condicionalidade imposta para o acesso ao benefício de
prestação continuada, ao defender a renda básica da cidadania não como
programa assistencial, mas como direito básico de qualquer cidadão
brasileiro, como é compreendido “o acesso aos cuidados com a saúde e o
ensino fundamental” (Ibidem).
7 Para Rosa Maria Marques, “a adoção de uma renda mínima, que dificilmente
poderia ser de valor diferente do que se entende por um salário-mínimo,
exigiria a redefinição dos valores a serem pagos ao trabalhador ativo”. A autora
entende que o salário-mínimo é o piso a ser recebido por qualquer trabalhador,
na ativa ou não, e que o conflito entre o direito à renda mínima e o desejo de
trabalhar deve ser resolvido pela elevação do piso salarial, bem como pela
redução da desigualdade existente no País (MARQUES, 2005, p. 107-109).

204
Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma exis-
tência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescenta-
rão, se necessário, outros meios de proteção social.8

Agora, para receber remuneração, que deve ser justa e satisfató-


ria, antes o ser humano precisa acessar o mercado de trabalho,
cujas vagas disponíveis estão decrescendo em face da roboti-
zação e do desenvolvimento de novas tecnologias. Sem acesso
ao mercado de trabalho, o ser humano perde importância, pois
deixa de lado a posição de consumidor, que é o valor a ela atri-
buído pelo capitalismo.
Partindo de estudos elaborados por teóricos críticos acerca das
ideias hegemônicas incidentes sobre desenvolvimento, capita-
lismo, globalização econômica e neoliberalismo, torna-se neces-
sário desvendar uma nova racionalidade que oriente as ativida-
des produtivas e comerciais, inclusive no campo das tecnologias,
no sentido de priorizar a reprodução material da vida, homem e
natureza colocados em plano de destaque, como sustentado por
Hinkelammert e Mora (2005). É necessário construir outro sen-
tido ético, embasado na solidariedade social e capaz de suplantar
a cultura da acumulação irrestrita de capital, que valoriza o ser
humano apenas na condição de consumidor ou de produtor. Não
é por outra razão que Houtart, falando da globalização das rela-
ções sociais capitalistas, identificou duas posições estáticas para
a pessoa: “Productor o consumidor, he aquí el destino del ser humano
a escala mundial hoy día. Los que no entran en tales estatus devienen
multitudes inútiles” (2008, p. 5).
Entretanto, o ser humano é um ser natural, com necessidades que
vão muito além da mera propensão ao consumo, pois a satisfação
destas necessidades constitui condição que decide sobre a vida e a
morte. As relações mercantis não conseguem discernir entre a vida
e a morte e identificam, como distorção, qualquer resistência à sua
lógica expansionista, visando eliminá-la, o que põe em risco a vida
humana. Também o mercado passa a constituir uma distorção no
desenvolvimento da vida humana (HINKELAMMERT, 2005, p. 71).

8 Texto integral da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível


em: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm. Acesso
em: 13 out. 2011.

205
O item I do art. 25 da Declaração de Direitos Humanos preconiza
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

o direito de todo homem a um padrão de acesso aos bens mini-


mamente indispensáveis para viver, juntamente com sua família,
sem fazer referência específica ao trabalho, aproximando-se mais
da garantia de uma renda básica de cidadania.9
No Brasil, foi editada a Lei n. 10.835, de 8 de janeiro de 2004,10 que
institui a renda básica de cidadania, a partir de 2005, segundo a qual
se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País
e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil,
não importando sua condição socioeconômica, receberem, anual-
mente, um benefício monetário.

A referida lei prevê, ainda, que a renda básica de cidadania deve


ser implementada em etapas, a critério do Poder Executivo, prio-
rizando-se as camadas mais necessitadas da população, com
pagamento de igual valor para todos “e suficiente para atender às
despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e
saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País
e as possibilidades orçamentárias”.
Incumbe aos homens e mulheres que vivem no Brasil coloca-
rem-se atentos às políticas públicas, exigindo a implementação
da renda básica de cidadania, como meio de sobrevivência das
multidões excluídas da possibilidade de consumo pela ausência
de inserção no mercado de trabalho. No atual cenário, marcado
pelo desmanche de direitos, com a flexibilização de direitos tra-
balhistas e previdenciários, constata-se imensa dificuldade em se
implementar a renda básica de cidadania, a despeito de prevista
na legislação nacional. Somente por meio de processos de luta
social, unidos os coletivos em ambiente solidário, pode-se tentar
reverter o atual quadro.
É importante que os debates públicos, no ambiente acadê-
mico e em diversos outros, tragam à luz o problema estrutu-
ral do desemprego, pois as empresas agora também se valem

9 Texto integral da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível


em: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm. Acesso
em: 26 mar. 2019.
10 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/
lei/l10.835.htm. Acesso em: 25 fev. 2019.

206
do fenômeno da desterritorialização, mudando o lugar da pres-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tação de trabalho, quando seus interesses econômicos não são
mais atendidos em determinado espaço, deixando à mercê da
própria sorte inúmeros trabalhadores.
O desemprego caminha a passos largos e precisa ser debatido,
pois, ao que tudo indica, nem todos os trabalhadores consegui-
rão, em futuro breve, acessar o mercado de trabalho. Não obs-
tante, as necessidades de ordem material e imaterial que con-
formam uma vida digna seguem existindo, e os governos muni-
cipal, estadual e federal, no caso do Brasil, devem implementar
políticas públicas que assegurem a sobrevivência digna de todos
quantos vivam no seu espaço territorial. Uma das saídas apon-
tadas pelos estudiosos é a implementação de uma renda básica
de cidadania, como aqui defendido.

5 · Conclusão
O Direito do Trabalho, resultado de lutas antagonistas empreendi-
das pelos trabalhadores, representa a possibilidade de regulação e
limitação dos interesses capitalistas na exploração da mão de obra.
Por essa razão, passou a ser atacado pelos meios de comunicação e
por agentes políticos, como verdadeira distorção, na medida em que
impõe patamares civilizatórios para a referida exploração, sendo
propalada a necessidade de sua flexibilização, sob o discurso ide-
ológico de salvaguardar empresas e empregos por estas gerados.
O atual contexto marcado pelo desenvolvimento de novas tecno-
logias e ferramentas tecnológicas de gestão de mão de obra difi-
culta a identificação dos pressupostos ditados pelo art. 3º da CLT
e, por consequência, o reconhecimento da relação de emprego.
Por outro lado, é possível perceber a premente necessidade de
inclusão do trabalhador subordinado no sistema de proteção do
trabalho estatuído pela CLT, como meio de acesso a direitos e
garantias trabalhistas, dificultando a hiperexploração por parte
das empresas, que se autopropagam como meras otimizadoras
do uso solidário do consumo colaborativo, quando na verdade se
apropriam da energia da cooperação social.
Cabe à Justiça do Trabalho, por meio dos seus julgamentos, fazer
uma releitura dos elementos fático-jurídicos ditados pelos arts.

207
2º e 3º da CLT para a identificação da relação de emprego, sem-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

pre que houver exploração de trabalho prestado por pessoa física,


inserido nos padrões da atividade-fim da empresa beneficiária,
para a qual é dirigida essa prestação de trabalho (não eventuali-
dade), de forma onerosa e subordinada.
O desenvolvimento de novas tecnologias, com a automação em
escala ascendente, faz pressupor um futuro com importante
redução de postos de trabalho e real possibilidade de desem-
prego estrutural em âmbito global, dificultando o acesso das
pessoas a postos de trabalho e ao salário. Nesse cenário, é impor-
tante a inserção nos diversos debates do tema atinente à renda
básica de cidadania, para o amparo do ser humano excluído do
mercado de trabalho.
Esses pensamentos alternativos são classificados por alguns estu-
diosos como utopia, que, para Muniesa, pode ser vista como deri-
vado contraditório da ideologia interiorizada pelo indivíduo, que
faz surgir nele sinais de insatisfação. Trata-se da utopia entendida
como dissenso, em busca do que deve ser, mediante crítica para
criar alternativas (NEUSÜSS et al., 1992, p. 8-9).
Herrera Flores propõe a classificação desses pensamentos críticos
alternativos não como utopias, mas como heterotopias, cuja etimo-
logia remete a “outros lugares”, ressaltando que os seres humanos
devem perceber que a história está sujeita a mudanças constantes
e, por essa razão, devem acreditar na possibilidade de abertura de
processos sociais como reação antagonista às relações de poder
dominantes, para uma transformação emancipadora desta mesma
realidade, criando outros e melhores lugares (2005, p. 55).
No caso do Direito do Trabalho, a aspiração é reconquistar espaços
perdidos, tendo sempre em mira a ideia de que os direitos huma-
nos não são conquistados todos de uma vez e nem de uma vez por
todas. Em diversos momentos, é preciso que os coletivos lesados
por ações governamentais se unam para reconquistar direitos per-
didos, prosseguindo na luta para a sua ampliação, até que seja atin-
gido um patamar mais justo de distribuição de renda, retirando
da pobreza extrema milhões e milhões de pessoas, as quais, seja
por meio do trabalho, seja por meio da renda básica de cidadania,
necessitam aceder ao consumo de bens materiais e imateriais con-
formadores de uma vida digna.

208
Referências

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


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VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de emprego: estrutura legal e


supostos. São Paulo: LTr, 1999.

210
Condições transparentes de trabalho,
informação e subordinação algorítmica
nas relações de trabalho

Luciane Cardoso Barzotto


Juíza Titular da 29ª Vara do Trabalho de Porto Alegre-RS.
Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Pós-Doutora pela Universidade de
Edimburgo – Escócia.

Ana Paula Silva Campos Miskulin


Juíza Titular da Vara do Trabalho de José Bonifácio-SP.
Mestranda em Direito do Trabalho pela Universidade de
São Paulo (USP).

Lucieli Breda
Advogada. Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Resumo: Independentemente de ser considerado autônomo ou subordinado,


qualquer trabalho, mesmo os realizados mediante plataformas, regidos
por algoritmos, serão cada vez mais regrados pelo direito à informação,
a exemplo da Diretiva n. 2019/1152, da União Europeia, sobre condições
transparentes de trabalho. Esta recente diretiva estabelece uma espécie
de direito comum dos contratos de trabalho, a informação. Nos trabalhos
realizados por meio de plataformas, ou por aplicativos, a previsibilidade e a
transparência das informações são direitos fundamentais centrais, motivo
pelo qual entende-se que a Diretiva n. 2019/1152 aplica-se a esses contratos,
numa crescente igualação de direitos, segundo sua melhor interpretação.

Palavras-chave: Informação. Transparência. Subordinação.

Abstract: Regardless of whether it is considered self-employed or under


employment contract, any work, even that performed by intermediary
platforms, governed by algorithms, will increasingly be ruled by the

211
right to information, as in the European Union Directive 2019/1152 on
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

transparent working conditions. This recent Directive establishes a


kind of standard right to information on employment contracts. In
work carried out through platforms or applications, predictability and
transparency of information are central fundamental rights, which is
why Directive 2019/1152 is understood to apply to these contracts, with
increasing equalization of rights according to their best interception.

Keywords: Information. Transparency. Subordination.

1 · Introdução
Em 20 de junho de 2019, foi publicada a Diretiva n. 2019/1152, do
Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia (UE), de modo
a atualizar os termos da Diretiva n. 91/533/CEE, de 14/10/1991, para
garantir condições laborais mais transparentes e previsíveis na UE,
com fundamento no direito à informação, garantindo a adaptabili-
dade do trabalhador ao mercado de trabalho. Essa diretiva, ainda que
criticável por estabelecer apenas um piso mínimo de direitos, traz um
contrato de trabalho absolutamente regrado em termos de obrigações
contratuais e se aplica a todas as relações de trabalho, numa extensão
guarda-chuva de direitos, impondo aos países da UE que a cumpram
até 2022. A ideia é que o empregado tenha segurança sobre o objeto do
seu labor, plasmado por um direito fundamental à informação, ou, nos
termos da diretiva, por condições transparentes de trabalho.
Coincidentemente ou não, nos trabalhos digitais realizados por meio
de plataformas, ou por aplicativos, as expectativas dos trabalhadores
são justamente no sentido de que as exigências patronais tornem-se
claras, a remuneração previsível, invocando-se transparência, mesmo
que se discuta o tipo de relação contratual envolvida: com subordina-
ção, autonomia ou, ainda, regulada sob outras espécies como quase-
-assalariados, parassubordinados etc. (OIT, 2018, p. 105-109).
Neste contexto, discute-se o surgimento de uma nova forma de
expressão da subordinação, a subordinação algorítmica, elemento-
-chave para a caracterização da relação empregatícia. Enquanto na
subordinação clássica a execução do serviço do trabalhador era per-
meada por ordens e fiscalização direta do trabalho por meio da pre-
sença física de ambos os sujeitos, a subordinação algorítmica ocorre
através da presença digital do empregador e mesmo do empregado.
O algoritmo prescreve um roteiro prévio de tarefas, programado por
instrumentos digitais ou aplicativos, em que os comandos laborais ou
212
ordens são dados que informam as obrigações contratuais recíprocas.

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Um contrato de trabalho pactuado em sede europeia e plasmado por
algoritmos terá que incluir as determinações traçadas pela Diretiva n.
2019/1152, a qual define uma série de cláusulas contratuais obrigató-
rias. Mesmo que não se possam dimensionar os efeitos de tal diretriz,
evidencia-se que, na esfera normativa, deveria existir um acréscimo
de transparência nos contratos regidos por aplicativos.
Neste artigo, examinamos brevemente os pontos principais da
Diretiva n. 2019/1152 da União Europeia, na perspectiva do direito
à informação nas relações de trabalho, para, em seguida, verifi-
carmos em que medida a subordinação algorítmica é mediada
pelo direito à informação.

2 · O direito à informação e as condições transparentes


nas relações de trabalho: a Diretiva n. 2019/1152 da
União Europeia
Atualmente, é imensurável a quantidade de informações à disposi-
ção, bem como a velocidade com que estas são disseminadas mun-
dialmente. Tamanha relevância tem ganhado a informação – ou os
dados – que diversos conceitos ligados a ela fazem parte da socie-
dade atual, tais como big data, blockchain, indústria 4.0, entre outros.
Tanto é verdade isso que legislações em âmbito nacional vêm sendo
editadas com fundamento na transparência de informações nas
mais diversas áreas do Direito. É o exemplo do artigo 6º, inciso III, do
Código de Defesa do Consumidor;1 da Lei n. 12.527/2011, sobre a trans-
parência no setor público; do Decreto n. 9.571/2018, acerca das diretri-
zes nacionais sobre empresas e direitos humanos;2 e da recente Lei n.
13.709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

1 “[...] III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,


com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade,
tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; […]”.
2 Como pode ser verificado no art. 6º, inciso VII, acerca da informação sobre
os impactos causados pela atividade empresarial no tocante aos direitos
humanos; também no art. 9º, inciso V, acerca das informações sobre as
medidas adotadas para redução de riscos e impactos negativos aos direitos
humanos. Contudo, a orientação mais importante do decreto no tocante à
informação está contida no art. 11, que trata específica e expressamente do
dever de transparência das empresas.
213
Neste contexto, as relações de trabalho, relacionais por essência
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

(BARZOTTO, 2015), não ficam isentas das inovações em matéria


de informação. Contudo, a legislação trabalhista brasileira ainda é
implícita sobre a temática, como pode ser verificado nos dispositi-
vos celetistas inseridos pela Lei n. 13.467/2017 sobre a comissão de
empregados (arts. 510-A e 510-B da CLT) e sobre o contrato inter-
mitente (art. 452-A, § 1º, da CLT).
No âmbito internacional, as legislações estão mais evoluídas sobre
o assunto e possuem regras expressas sobre o direito à informação
nas relações de trabalho (BREDA, 2019). É o exemplo do Código do
Trabalho de Portugal, que dedica uma subseção específica (Subsecção
IV – artigos 106º a 109º) ao direito à informação sobre os aspectos
relevantes na prestação de trabalho ou ainda sobre o conteúdo do
direito à informação da comissão de empregados (artigos 423º e
424º). O Código do Trabalho (Code du Travail) da França também
possui regras expressas relativas ao direito à informação aplicado às
relações de trabalho, como nos artigos L1233-57-9 a L1233-57-11, que
tratam da necessidade de o empregador informar os trabalhadores
acerca da intenção de encerrar um estabelecimento, ou nos artigos
L2262-5 a L2262-8, sobre a forma de informação e comunicação dos
empregados acerca das convenções e acordos aplicáveis, entre outros.
No âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o direito
à informação está implícito no Preâmbulo da sua Constituição,
aprimorado através dos princípios exteriorizados pela Declaração
de Filadélfia, que fundamenta o exercício da liberdade individual e
coletiva, assegurando a transparência na relação de trabalho.
Também, algumas convenções da OIT possuem referência expressa
ao direito à informação, como a Convenção n. 161 (Serviços de
Saúde do Trabalho – “artigo 13: todos os trabalhadores devem ser
informados dos riscos  para a saúde inerentes a seu trabalho”), a
Convenção n. 148 (Meio Ambiente do Trabalho – artigo 7º, item
2: “os trabalhadores ou seus representantes terão direito a apre-
sentar propostas, receber informações e orientação, e a recorrer a
instâncias apropriadas, a fim de assegurar a proteção contra ris-
cos profissionais [...]”) e a Convenção n. 181 (Agências de Emprego
Privadas – artigo 6º: sobre o tratamento dos dados pessoais dos
trabalhadores pelas agências de emprego privadas).
Além da OIT, na União Europeia (UE), enquanto expressão do
Direito Comunitário, existem vários regramentos que abordam
214
expressamente a questão do direito à informação aplicado às

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


relações de trabalho (BREDA, 2019). Este é o caso da Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia (capítulo IV, deno-
minado Solidariedade, artigo 27º3), da Carta Comunitária dos
Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores da Comunidade
Europeia (artigos 17 e 18: sobre informação, consulta e participação
dos trabalhadores) e da Carta Social Europeia (a Parte I, item 21,
disciplina que “os trabalhadores têm direito à informação e à con-
sulta na empresa”; e a Parte II, art. 2º, item 6, aponta como dever
das empresas informar os empregados, por escrito, dos aspectos
essenciais do contrato ou da relação de trabalho). No âmbito da UE,
em 11/03/2002 foi editada a Diretiva n. 2002/14/CE do Parlamento
Europeu e do Conselho da UE, que estabeleceu um marco na
Comunidade Europeia, pois definiu requisitos mínimos quanto ao
direito à informação e à consulta dos trabalhadores nas empresas
ou nos estabelecimentos situados na UE, e dispôs que, em matéria
de informação e de consulta, o empregador e os representantes dos
trabalhadores devem atuar num espírito de cooperação e no res-
peito pelos seus direitos e obrigações recíprocos (artigo 1º, itens 1 e
3, da Diretiva n. 2002/14/CE).
Sobressaindo-se sobre as diretivas da UE e fundamentada na intensa
circulação de trabalhadores e no reconhecimento da existência de
crescente número de imigrantes em seu território, bem como na
necessidade de criação de novos modelos de trabalho decorrentes
da inovação tecnológica, como refere sua exposição de motivos, no
dia 20/06/2019 foi publicada a Diretiva n. 2019/1152 do Parlamento
Europeu e do Conselho da UE, de modo a atualizar os termos da
Diretiva n. 91/533/CEE, de 14/10/1991, para garantir condições labo-
rais mais transparentes e previsíveis na UE, com fundamento no
direito à informação, garantindo a adaptabilidade do trabalhador ao
mercado de trabalho (artigo 1°, item 1), como referido anteriormente.
Basicamente, para a Diretiva n. 2019/1152, transparência significa
informação. Logo, no seu artigo 3º, determina que o empregador for-
neça por escrito a cada trabalhador uma cópia da diretiva, seja em
papel ou eletronicamente, desde que o trabalhador tenha acesso e
possa imprimi-la, e o empregador possa conservar prova da trans-
missão ou recebimento, o que confirma a importância da diretiva e

3 Dispõe sobre a garantia, aos trabalhadores ou aos seus representantes, de


informação e consulta em tempo útil, nos casos e nas condições previstos
pelo direito comunitário e pelas legislações e práticas nacionais.
215
dos assuntos por ela abordados, primando pelo acesso à informação
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

do seu conteúdo por todo empregado da Comunidade Europeia.


Não bastasse isso, a diretiva em comento possui um capítulo espe-
cífico relativo à “informação sobre a relação de trabalho” (capí-
tulo II) que dispõe, entre outros temas, sobre o dever de infor-
mação dos empregadores aos empregados acerca dos elementos
essenciais da relação de emprego (artigo 4º). Dizem-se elementos
essenciais, para fins desta diretiva, a especificação das partes da
relação de trabalho, o local de trabalho, as atividades que com-
preendem a função a ser realizada, as datas de início e término
(caso contratado por prazo determinado), a remuneração, a dura-
ção da jornada de trabalho, a identificação das normas coletivas
aplicáveis na hipótese de terceirização, a identificação das empre-
sas tomadoras de serviços, entre outras especificidades. Também
fica estabelecido que todas as informações sejam entregues ao
empregado documentalmente no prazo máximo de um mês a
contar do primeiro dia de trabalho (artigo 5º, item 1).
Há determinação também aos Estados-Membros para que garan-
tam que as informações sobre as disposições legislativas, regula-
mentares, administrativas, estatutárias ou relativas a convenções
coletivas de aplicação geral, que constituam o regime jurídico apli-
cável, sejam disponibilizadas gratuitamente, de forma clara, trans-
parente e exaustiva e de modo que estejam facilmente acessíveis à
distância e eletronicamente (artigo 5º, item 3).
A Diretiva n. 2019/1152 faz referência específica às informações
claras que devem ser conferidas aos expatriados (artigos 6º e 7º),
bem como garante condições mínimas de trabalho, como a dura-
ção máxima de seis meses para o contrato de experiência (artigo
8º); a não proibição de trabalho para mais de um empregador desde
que haja compatibilidade de horários (artigo 9º); a previsibilidade
mínima de trabalho em contratos ocasionais (intermitentes), com
dias e horários pré-estabelecidos ou com informação com antece-
dência razoável, podendo o empregado recusar-se caso não cum-
pridas estas exigências, sem qualquer punição, evitando-se prá-
ticas abusivas (artigos 10º e 11º); a transição para outra forma de
emprego após o período experimental (artigo 12º); o fornecimento
de cursos de formação sem custos ao empregado (artigo 13º).
O capítulo IV trata das Disposições Horizontais e garante, no artigo
15º, que, quando um trabalhador não tiver recebido, em tempo
216
devido, a totalidade ou parte dos documentos referidos na diretiva,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


ele deve se beneficiar de presunções favoráveis definidas pelo Estado-
-Membro, embora os empregadores tenham a possibilidade de ilidi-
-las; e (ou) que o trabalhador deve ter a possibilidade de apresentar
queixa à autoridade ou entidade competente e receber uma repara-
ção adequada em tempo útil e de forma eficaz. Além disso, no artigo
18º, assegura que o trabalhador não pode ser demitido ou punido
com o fundamento de ter exercido os direitos que a diretiva lhe con-
fere, podendo exigir ao empregador que apresente motivos devida-
mente substanciados para o despedimento ou medida equivalente.
Esta diretiva, segundo explica Alicia Villalba Sánchez ao analisar a
sua proposta (SÁNCHEZ, 2018, p. 147-150), é um passo decisivo para
a construção de um ius commune aplicável os contratos de trabalho
na UE, proporcionando ao trabalhador o recebimento de informa-
ções básicas sobre suas condições de trabalho e, por outro lado,
garantindo condições mínimas de trabalho.
Foi identificado que, no âmbito da OIT e na UE, o direito à informa-
ção nas relações de trabalho possui diversas regras específicas e
expressas, tratando-se de um costume internacional, podendo vir
a suprir lacunas na legislação trabalhista brasileira, 4 como autoriza
o artigo 8º da CLT, de modo a contribuir para a transparência das
relações de trabalho, nos exatos termos da atual Diretiva da UE
n. 2019/1152. Além da sua aplicabilidade analógica transversa aos
contratos de trabalho em geral no Brasil, assume-se a tese que esta
diretiva se impõe aos contratos digitais, regidos pela subordinação
algorítmica em âmbito europeu.

3 · Subordinação algorítmica no trabalho atual


Dos requisitos necessários à configuração do vínculo empregatício, a
subordinação é o que apresenta maior destaque, por ser o elemento
fático que separa as relações de trabalho empregatícias das autônomas.
A subordinação do empregado contrapõe-se ao poder diretivo do
empregador na relação de emprego e faz com que aquele acolha as

4 Acerca do reconhecimento dos costumes internacionais como fonte de Direito,


o Estatuto da Corte Internacional de Justiça (ONU), em seu artigo 38, assim
dispõe: “A Corte, cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as
controvérsias que lhe forem submetidas, aplicará: [...] b. O costume internacional,
como prova de uma prática geral aceita como sendo o direito; [...]”.
217
orientações empresariais referentes ao modo como o serviço deve ser
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

prestado (DELGADO, 2019, p. 349). A caracterização da subordinação


jurídica como elemento essencial da relação de emprego passou por
vários estágios, assim como os formatos das relações de trabalho, que
também se transformaram ao longo do tempo, de modo que várias
versões têm sido apresentadas para definir o fenômeno. Delgado men-
ciona três dimensões da subordinação: clássica, objetiva e estrutu-
ral. A primeira decorre da obrigação do empregado de acatar o modo
estipulado pelo empregador para a prestação dos serviços; a segunda
deve-se à integração do empregado à finalidade do empreendimento;
e a terceira, de maior amplitude, revela-se pela simples inserção do
trabalhador na estrutura organizacional da empresa, independente-
mente da existência ou não da emissão de ordens diretas.
Ampliando o conceito de subordinação jurídica, Gaspar (2016, p.
186-187) afirma que, na subordinação dita algorítmica ou potencial,
o trabalhador internaliza a fiscalização do próprio trabalho, mas
nem por isso deixa de ser hipossuficiente. Para o autor a subordi-
nação é potencial quando o trabalhador, que não detém o controle
dos meios de produção, “presta serviços por conta alheia, ficando
sujeito, potencialmente, à direção do tomador dos serviços, rece-
bendo ou não ordens diretas desse, em razão de sua inserção na
dinâmica organizacional do tomador”.
A convergência tecnológica, assim entendida como a imbricação entre
as telecomunicações e a computação, juntamente com a internet têm
causado grandes transformações socioeconômicas e, nesse contexto,
surgem novas formas de atividade empresarial (RODRÍGUEZ, 2017, p.
52-53) as quais, certamente, também alteram a dinâmica das relações
de trabalho permeadas por tais tecnologias, inclusive na interpreta-
ção dos elementos que conformam a relação de emprego.
O fluxo de informações que transitam pelas redes aumenta expo-
nencialmente, de modo que a organização social se forma em torno
da informação e marca o momento histórico atual, designando-o
de sociedade da informação (ANTÚNEZ, 2017, p. 110). Desde 1980
a tecnologia da informação contribui para a reestruturação do sis-
tema produtivo, que pode ser identificado como capitalismo infor-
macional (CASTELLS, 2016, p. 75).
Fato é que a presença da tecnologia nas relações de trabalho lança
muitos desafios que transcendem o Direito do Trabalho. Hoje este

218
não mais se preocupa apenas com a questão da automação e subs-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tituição dos homens por máquinas ou por robôs, pois, com a inte-
ração do mundo físico e virtual, ao firmar uma relação, o trabalha-
dor sequer tem ciência de se o outro sujeito do contrato é um ser
humano (AGUIAR, 2018, p. 17).
A margem de atuação do empregado em relação ao modo como
deve executar o serviço tem que seguir os comandos do software,
de forma que o foco passa a ser o resultado do trabalho e não mais
as tarefas empregadas para seu atingimento. As gestões de traba-
lho mais flexíveis atenuam a sujeição hierárquica do empregado,
dificultando a identificação do trabalho assalariado nas novas rela-
ções de trabalho (CHAVES JÚNIOR; MENDES; OLIVEIRA, 2017, p.
169-174). É nesse contexto que os autores defendem que a subor-
dinação deve ser analisada na medida da alienidade do trabalho e
deve ser adjetivada como reticular a fim de se destacar a sua evo-
lução conceitual. E as alterações não param por aí. A chegada das
empresas de plataformas de intermediação de serviço evidencia
como o gerenciamento do trabalho pode ser feito por algoritmos,
programáveis para tomada de decisões que, em regra, sequer pos-
sibilitam a participação do empregado.
No caso dos aplicativos de transporte, por exemplo, o gerencia-
mento por algoritmos é uma das inovações que contribui para a
prestação dos serviços, pois os motoristas que estão espalhados
são combinados algoritmicamente com os passageiros em poucos
minutos, a tarifa é definida conforme a demanda e há necessidade
de poucos humanos para supervisionar o serviço numa escala glo-
bal (LEE et al., 2015, p. 2). Fica evidente, pois, a transição do con-
trole pessoal e direto sobre os serviços para os meios telemáticos
e remotos na legislação brasileira, o que, de acordo com o art. 6º,
parágrafo único, da CLT, em nada altera a essência do conceito da
subordinação jurídica, cuja previsão legal deriva da expressão “sob
dependência”, constante no art. 2º da CLT.

4 · Considerações finais: relação entre condições


transparentes, informação e subordinação algorítmica
Assim como a subordinação assume novos contornos no contexto
das relações de trabalho formalizadas por meios telemáticos e digi-
tais, também o direito à informação passa a ser concebido sob outro

219
enfoque que não apenas aquele referente a um direito de persona-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

lidade, mas a um direito que impregna o conteúdo central de toda


relação contratual laboral, independentemente do tipo adotado.
Segundo Delpiazzo (2009, p. 14), esse direito pode aparecer sob três
designações: I) direito de informação; II) direito à informação; e III)
direito sobre a informação. No primeiro caso, refere-se à informação
como um objeto, que está relacionado aos fenômenos informativos;
no segundo caso, possui três aspectos: o direito de informar, o direito
de informar-se (e de ter acesso às fontes) e o direito de proteção
contra informação disfuncional ou abusiva; e, na terceira acepção,
significa considerar a informação como um bem, suscetível de apro-
priação e, portanto, com valor econômico.
A não participação do trabalhador nas tomadas de decisões e o
desconhecimento das informações coletadas e armazenadas pelas
empresas proprietárias das plataformas, que são as gerenciadoras
dos algoritmos, realçam a assimetria de poder nessas relações de
trabalho, evidenciando a fragilidade da condição do trabalhador, a
quem não resta margem para manobra a partir do momento em
que clica na caixa “li e aceito”.
Nesse cenário, há uma preocupação mundial referente à transpa-
rência nas relações de trabalho atuais, o que fica evidente pela aná-
lise da legislação, conforme exemplificado acima. A Declaração do
Centenário da OIT, ao afirmar que o ser humano deve estar no cen-
tro do mundo do trabalho, reafirma a dignidade deste trabalhador,
ainda que circundado por novos desafios tecnológicos do trabalho
digital, tanto que a Comissão Mundial para o Futuro do Trabalho,
da OIT, no relatório Trabalhar para um Futuro Melhor, reforçou a
importância do controle humano da tecnologia, a favor do traba-
lho digno (OIT, 2019, p. 44). De acordo com referido relatório, faz-se
necessária a implementação de uma regulamentação para contro-
lar o uso de dados e a responsabilidade pelo uso dos algoritmos no
mundo do trabalho. Políticas de transparência devem ser adotadas
pelas empresas para que os trabalhadores não só tomem conheci-
mento das informações que estão sendo rastreadas mas também
para que tenham acesso a seus dados (OIT, 2019, p. 45-46).
Assim, independentemente da classificação do trabalho como autô-
nomo ou subordinado, é imperioso o reconhecimento ao trabalha-
dor do direito à informação, no seu tríplice aspecto. O monopólio

220
assumido pelas empresas quanto ao recolhimento, armazena-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


mento e manuseio dos dados, porém, não deixa de fragilizar o seu
argumento de que são meras intermediadoras do trabalho.
Além da situação específica dos trabalhadores de plataforma e
sua instabilidade jurídica quanto à proteção laboral, assiste-se a
um crescente regramento do contrato de trabalho tradicional –
que passa a ser estritamente detalhado para garantir, de melhor
modo, condições de informação e transparência –, como é o caso
da recente Diretiva n. 2019/1152 da União Europeia, que esmiúça o
conteúdo do que foi contratado, limitando em tese, e espera-se em
concreto, o exercício unilateral do poder empreendedor. Afirma-se
que a informação transparente é mesmo um novo direito funda-
mental laboral decorrente da era do big data e mesmo dos con-
tratos mediados por plataformas, sob o contexto do paradigma
informacional, e aponta-se para a igualação de direitos de todos os
trabalhadores a um conteúdo mínimo, independente das diversas
classificações contratuais e regulamentações jurídicas possíveis.

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a-nivel-da-uniao-europeia. Acesso em: 30 ago. 2019.

223
SEGUNDO CAPÍTULO
Proteção do trabalhador: intimidade,
vida privada, saúde e segurança
O trabalhador transparente:
relações trabalhistas e redes sociais1

Joaquín Pérez Rey


Professor Titular de Direito do Trabalho e da Seguridade
Social na Universidad de Castilla-La Mancha, Espanha.

Resumo: O texto defende que a exposição às redes sociais permite que as


empresas utilizem perfis de trabalhadores para todos os tipos de práticas,
desde a contratação à dispensa, mas é necessário, na ausência de legislação
específica, não cair num automatismo excessivo. As redes impõem normas
de conduta às quais a interpretação jurídica deve ser adaptada. Também
não se deve perder de vista as dificuldades de configuração dos perfis e
o fato de, em muitas ocasiões, o trabalhador não conhecer o círculo de
destinatários das suas publicações, e, por conseguinte, o julgamento de
culpa deve ter em conta esses fatores. Também não se pode prescindir
das restrições impostas pelas regras de proteção de dados ao tratamento
de informações provenientes de redes. Em alguns modelos comparativos
existem mecanismos especiais, ainda que incipientes, para a proteção das
ações coletivas dos trabalhadores que se manifestam por meio das redes
sociais. Finalmente, argumenta que os problemas que as redes sociais
suscitam no âmbito do processo e, especialmente, em matéria probatória
não são menores. O ponto de partida é a possibilidade de recorrer a
conteúdos sociais, desde que não tenham sido alcançados ilegalmente.
A partir daí as dificuldades se concentram em determinar se o que
emerge dos perfis pode ser uma prova confiável, e aqui as dificuldades
são imensas e vão desde a determinação da autoria até a veracidade dos
conteúdos, que são, por outro lado, voláteis.

Palavras-chave: Redes sociais. Relação de emprego. Poderes do empregador.

Abstract: The work argues that exposure to social networks allows


companies to use worker profiles for all types of practices, from hiring to
dismissal, but it is necessary, in the absence of specific legislation, not to

1 Tradução de Rodrigo de Lacerda Carelli.

227
fall into excessive automatism. The networks impose rules of conduct to
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

which the legal interpretation must be adapted. Nor should we lose sight
of the difficulties in setting profiles and the fact that, on many occasions,
workers do not know the circle of recipients of their publications and,
therefore, the guilt judgment must take these factors into account. Nor
can we dispense with the restrictions imposed by data protection rules
on the processing of information from networks. In some comparative
models, there are special mechanisms, albeit incipient, for the protection
of workers’ collective actions that are manifested through social networks.
Finally, it claims that the problems that social networks raise in the process,
and especially in evidential matters, are not minor. The starting point
is the possibility of resorting to social content, as long as it has not been
reached illegally. From this point on, the difficulties focus on determining
whether what emerges from profiles can be a reliable proof, and here the
difficulties are immense and range from the determination of authorship
to the truthfulness of content that is, on the other hand, volatile.

Keywords: Social networks. Employment relationship. Employer rights.

1 · Introdução
Para qualquer pessoa que tenha conhecido os tempos da intimidade
tradicional, aqueles em que as pessoas pugnavam por manter um
âmbito próprio e reservado em relação aos demais, a comprovação de
seu declive (GOÑI SEIN, 2017, p. 21)2 constitui quase uma evidência.
Nos poucos anos que transcorrem entre a dispensa de um trabalha-
dor que, segundo atesta uma ata notarial, trabalha em uma fábrica
durante sua enfermidade3 e a de outro que durante a incapacidade
laboral publica no Facebook fotos de férias em que aparece “tocando
os genitais de uma figura de um índio”,4 muitas coisas mudaram.
Essa alteração fulgurante de hábitos nos coloca questões sobre os
limites da nossa exposição pública voluntária e, no nosso contexto,
sobre como adaptar à era das redes sociais a configuração legisla-
tiva de um contrato, o contrato de trabalho, que mal podia intuir
acabaria por lidar com um trabalhador transparente tanto no seu
trabalho profissional como, o que é mais surpreendente, na sua vida

2 O autor afirma que hoje a tendência é exatamente o oposto do velho direito


de ser deixado em paz e que, na sociedade em rede, o que adquire valor é a
privacidade em um sentido amplo, em termos de controle sobre os dados.
3 STS 23.7.1990 (rec. 145/90).
4 STSJ Andalucía (Sevilla) 29.10.2015 (rec. 2723/14).

228
privada. É uma nova forma de comunitarismo em que toda a pessoa

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


do trabalhador está sujeita à disciplina e ao controle de sua vida pelo
interesse da empresa para a qual trabalha, sem distinção ou separa-
ção entre espaço de trabalho e espaço de privacidade.
Naturalmente que não se trata apenas de um problema laboral, mas
de uma questão que atravessa todas as áreas das relações sociais,
confrontando-nos com perigos por vezes difíceis de imaginar e
mesmo de compreender. Enquanto essas linhas estão sendo escritas,
a rede social mais conhecida, o Facebook, mergulhou em um escân-
dalo chocante decorrente do uso ilegítimo dos dados de milhões de
cidadãos por uma empresa de consultoria com o objetivo de influen-
ciar o voto na eleição presidencial dos EUA e no Brexit (PRECEDO,
2018). As coordenadas em que se move esse evento, muito significa-
tivas para o resto do mundo global em que vivemos, permitem ainda
que apenas intuir as enormes consequências que podem derivar do
acesso aos dados sociais e como estes podem ser determinantes no
fluxo das relações, como o trabalho, que sempre tiveram dificuldades
em separar claramente o privado do puramente profissional.
As dificuldades começam mesmo antes da formalização do contrato
de trabalho. Os processos de recrutamento têm um ponto de partida
essencial nas redes sociais atuais, de modo que as chances de serem
afetados pelo uso de dados “sociais” são muito altas, multiplicando a
possibilidade de ter um impacto negativo sobre o princípio da igual-
dade de oportunidades no acesso ao emprego e o da não discriminação.
Nos domínios da relação de trabalho, a atividade dos trabalhadores
em espaços virtuais é mais uma vez sobrecarregada com repercus-
sões que vão desde a constituição de um mecanismo instrumen-
tal de controle e vigilância da sua atividade até o estabelecimento
da base para a dispensa. Acrescem-se a isso a relevância que as
redes têm para a imagem corporativa da empresa e a forma como,
cada vez mais frequentemente, a sua gestão integra as obrigações
contratuais laborais ou se tornam instrumentos, incentivados pela
própria empresa, para melhorar a interação entre os trabalhadores.5

5 Não se desconsidere que as empresas obtêm benefícios significativos do uso de


redes sociais por seus empregados, uma vez que estas facilitam a colaboração
entre eles, melhoram a eficiência nas operações, promovem a orientação e
a aprendizagem, o branding interno, o desenvolvimento organizacional e o
desenvolvimento de novos produtos e serviços. Ver Mello (2012, p. 165-166,
apud LOWENSTEIN; SOLOMON, 2015, p. 141).

229
Evidentemente, a atividade sindical e representativa encontra
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

nas ágoras virtuais um espaço muito propício para o desenvol-


vimento com capacidade de transbordar o ambiente de negócios,
que é uma fonte muito comum de problemas, e afetar a reputação
e a imagem das empresas.
Finalmente, as questões que as redes sociais colocam ao Direito
do Trabalho encontram uma complexidade especial no âmbito do
processo e, em especial, no campo probatório, uma vez que não é
fácil demonstrar a integridade dos dados que estas fornecem e não
é raro que essa informação seja obtida de forma irregular.
Trata-se, portanto, de um território, o das redes sociais e das suas
implicações jurídico-laborais,6 que, apesar da sua recente emergên-
cia, gera um vasto leque de problemas, para além dos geralmente
colocados pelas novas tecnologias da informação e da comunicação
para o mercado de trabalho no seu conjunto, e que põe em evidên-
cia os limites da legislação que dificilmente os considera, deixando
as soluções para os operadores jurídicos, que nem sempre dispõem
dos instrumentos necessários para oferecê-las.

2 · O acesso empresarial às redes sociais pessoais


do trabalhador
É óbvio que as consequências trabalhistas derivadas de posts, infor-
mações, fotos, expressões, vídeos e tudo, de modo quase ilimitado, que
as mídias sociais podem guardar têm um ponto de partida inevitável:
o acesso do empresário a tais conteúdos. É uma premissa lógica que
constitui o gatilho para muitas decisões empresariais que podem afe-
tar, como já indicamos, desde o recrutamento até a demissão.
O problema é que o acesso das empresas à atividade “social” do
trabalhador não é muitas vezes um inconveniente. Além disso,
a particularidade das redes é que não se precisa invadir o com-
putador profissional do trabalhador para acessá-las, o que nos
levaria ao discurso geral sobre os limites que o poder de controle

6 Que tem sido objeto de atenção em nossa doutrina há algum tempo; sendo assim,
além de outros trabalhos que citaremos ao longo do texto, podemos destacar
os estudos de Cardona Rubert (2010, p. 67 e ss.; e 2013, p. 163-176); Calvo Gallego
(2012); Selma Penalva (2014); e Angulo Garzaro e Angulo Garzaro (2017).

230
empresarial encontra nesses casos, mas elas são acessíveis pela

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


livre navegação na internet.
O acesso aos dados de um perfil numa rede social depende na reali-
dade da própria configuração que o usuário faz da sua privacidade,
para que esta se enquadre desde uma utilização pública ou aces-
sível sem restrições a uma configuração mais restrita e suspeita
com as possibilidades de acesso à informação disponível na rede,
que nem sempre é possível nas redes com maior projeção pública.
De qualquer forma, não será fácil para o usuário limitar os desti-
natários de suas publicações, pois, em última instância, quem abre
um perfil social o faz para se submeter a um certo grau de exposi-
ção que, na maioria dos casos, acaba não sendo controlável, e mui-
tas vezes esse transbordamento ocorre inconscientemente.
Essa última ideia, que pode se tornar muito relevante na dimensão
laboral da informação proveniente de perfis virtuais, deve ser explo-
rada com maior profundidade. Note-se, em primeiro lugar, que a ges-
tão da disseminação do que está incorporado na rede não é exata-
mente simples. A chamada configuração da privacidade pode exce-
der as habilidades dos usuários menos experientes da internet, que
nem sempre estarão cientes dos destinatários do que eles postam
ou compartilham nas redes sociais. Em segundo lugar, e em estreita
relação, importa mencionar que é praticamente impossível ter con-
trole sobre o destino e o acesso dos conteúdos que se incorporam
nas redes sociais. Além das configurações de privacidade, a verdade
é que quando algo é “carregado” na internet social, as possibilida-
des de ultrapassar seu alcance inicial ou esperado são muito altas,
seja porque é compartilhado por “amigos” que têm configurações de
privacidade diferentes, seja porque, no círculo de destinatários ini-
ciais da publicação, são encontrados ou não esperados pelo titular da
conta perfis falsos, seja ainda porque, por meio de “capturas de tela”
ou outros métodos similares, o que é exposto restritamente em uma
rede social acaba sendo disseminado em outras.7

7 Ver, por exemplo, o caso do STSJ Aragón 18.5.2016 (rec. 300/2016), em que os
comentários de uma trabalhadora na sua parede do Facebook são fotografados e
divulgados entre o pessoal da empresa por meio do WhatsApp. Também o caso
em que um dos participantes de um grupo de WhatsApp revela à empresa o
conteúdo: STSJ Andalucía (Sevilla) 22.11.2017 (rec. 3626/2016), que entende que
nesses casos não há obrigação legal de reserva, mas, no máximo, um dever ético.

231
Esses são elementos importantes do ponto de vista do Direito
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

do Trabalho, uma vez que, especialmente quando a atividade no


Facebook ou em redes similares adquire uma dimensão discipli-
nar, é essencial ter em conta essas circunstâncias para avaliar a
culpabilidade do trabalhador. Também não se pode excluir, natu-
ralmente, que essa expansão dos conteúdos reservados viole ini-
cialmente a privacidade ou o sigilo das comunicações. No entanto,
a jurisprudência é relutante em admitir esse tipo de violação, pois
na maioria dos casos são os próprios destinatários da mensagem
inicial que a difundem posteriormente e permitem que esta che-
gue ao conhecimento do empresário.
O que não parece ser possível é impedir, numa perspectiva laboral,
o acesso empresarial aos perfis sociais dos trabalhadores quando
esses são públicos ou mesmo quando os trabalhadores dão volun-
tariamente acesso ao empregador. No entanto, não é apropriado,
e insistiremos depois nesta ideia, extrair sempre de um perfil
público a intenção do trabalhador de comunicar ou expor alguma
informação sem restrições, porque por vezes não saberá que o está
a fazer. Além disso, e este é um vetor que não podemos desenvolver
plenamente, o impacto da legislação europeia em matéria de pro-
teção de dados não pode ser aqui esquecido. O tratamento comer-
cial de dados em rede não seria abrangido pela “exceção nacional”
do artigo 2º da Lei Orgânica Espanhola de Proteção de Dados de
Caráter Pessoal8 e exigiria o consentimento da pessoa envolvida,
mesmo quando as suas publicações fossem abertas.9

8 Trata-se de uma exceção que apenas abrange o “tratamento relativo a


atividades que se inserem no âmbito da vida privada ou familiar dos
indivíduos” (artigo 4º, RD 1720/2007).
9 A Agência Espanhola de Proteção de Dados, em seu relatório 0184/2013,
sustentou que “não há lugar para o tratamento de dados de terceiros que não
tenham [...] dado [o seu consentimento] mesmo que o seu perfil seja aberto,
uma vez que esta circunstância não implica o consentimento dos titulares
para o tratamento dos dados pessoais nele contidos”. O Regulamento (UE)
2016/679, que está prestes a ser aplicado, prevê que “a fim de garantir que o
consentimento foi dado livremente, não deve constituir uma base jurídica
válida para o tratamento de dados pessoais num caso específico em que
exista um desequilíbrio manifesto entre o titular dos dados e o responsável
pelo tratamento” (Considerando 43). Por último, nesse domínio da proteção
de dados no âmbito das redes sociais, é igualmente obrigatória a consulta do
Parecer 5/2009 sobre as redes sociais online, adotado em 12.6.2009 pelo Grupo

232
A alternativa a essas contas abertas é a configuração de perfis res-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tritos que não permitem acesso empresarial. Uma configuração
completamente fechada será muito difícil porque, mesmo nas con-
figurações mais restritivas, há sempre certos dados públicos (nome
de usuário, imagem do perfil, as curtidas, entre outros), mas fora
deles o empregador não pode, sem ilegitimamente transbordar
seus poderes, exigir que o trabalhador ou candidato ao emprego
conceda o acesso às informações contidas em seus perfis. O direito
à privacidade dos trabalhadores seria gravemente violado e por isso
se deve excluir qualquer possibilidade dessa prática empresarial.
No entanto, esse tipo de prática é conhecido, pelo menos fora das
nossas fronteiras. Nos Estados Unidos, observou-se a prática de
exigir que candidatos a emprego e trabalhadores concedam acesso
a seus perfis nas redes sociais, seja incorporando empresas como
“amigos”, seja simplesmente fornecendo códigos de acesso ou
mesmo exigindo a abertura das redes na presença do emprega-
dor. É um procedimento tão difundido, o de exigir senhas de redes
sociais como condição de emprego, que levou mais de vinte esta-
dos norte-americanos, a partir de Maryland, em 2012, a adotar atos
legislativos que visam proibir esse tipo de prática.10
Em 16 de novembro de 2016, a Uniform Law Comission adotou
o Employee and Student Online Privacy Protection Act. Trata-se
de um instrumento de uniformização que se destina a servir de
modelo para os Estados e que, independentemente de sua eficácia,
pode se revelar sugestivo como uma amostra de como abordar
essa regulamentação. Também é interessante porque, para além
do fato de que, como acabamos de explicar, nossa legislação não

de Trabalho sobre a Proteção de Dados do artigo 29, que estabelece algumas


orientações sobre a forma como os responsáveis pelas redes devem proceder
aos ajustamentos em matéria de privacidade que, entre outros objetivos,
visam evitar que os utilizadores publiquem inadvertidamente em áreas
facilmente acessíveis a terceiros, o que é decisivo no caso dos trabalhadores.
10 Muitas dessas leis foram baseadas na lei anterior de Maryland, que proíbe
os empregadores de exigir que os candidatos ou trabalhadores forneçam
nomes de usuário, senhas ou outros mecanismos para acessar suas redes
sociais. Um elenco online dessas leis estaduais está disponível em: http://
www.ncsl.org/research/telecommunications-and-information-technology/
state-laws-prohibiting-access-to-social-media-usernames-and-passwords.
aspx. Acesso em: 14 abr. 2018.

233
permite tais práticas, não é certo que seja suficientemente forte
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

para eliminá-las e sancioná-las adequadamente ou preveni-las


em todas as suas variantes.11
O instrumento baseia-se numa presunção absoluta de que os tra-
balhadores podem ser coagidos a fornecer dados de acesso às suas
redes sociais e que, em muitas ocasiões, terão dificuldade em recu-
sar-se a fornecer esses dados.
Em seguida, proíbe o empregador de exigir que o trabalhador
conceda o acesso às suas redes sociais (seja revelando as senhas,
modificando as configurações de perfil, seja consultando o per-
fil na presença do empregador) e até mesmo solicite sua inclusão
entre os membros da rede do trabalhador (a “solicitação de ami-
zade”), embora não impeça o trabalhador de fazer essa solicita-
ção ao empregador. A proteção se concentra nas contas pessoais,
não naquelas fornecidas pela própria empresa, e não se estende
aos conteúdos que os trabalhadores compartilham publicamente.
Também garante que as empresas não utilizem indevidamente
o login ou a senha para a rede do trabalhador quando involunta-
riamente a acessarem, monitorando os sistemas de computador
necessários para trabalhos de manutenção ou segurança ciberné-
tica. Finalmente, são estabelecidas exceções à proteção, que tam-
bém estão incluídas nas leis estaduais. Nestas, seguindo o modelo
inicial de Maryland, são estabelecidos limites à proteção fornecida
quando o empregador sabe que a conta pessoal do trabalhador
foi usada para fins comerciais, e é aberta uma investigação para
verificar o cumprimento dos regulamentos financeiros; também
quando o trabalhador postou informações da empresa ou financei-
ras em suas contas pessoais sem autorização.
Em nosso ordenamento jurídico, em que não existe uma proibição
explícita a esse respeito e em que não seria inútil incorporá-la, tais
práticas são claramente repreensíveis, pois representam uma inva-
são ilegítima da privacidade que não evita realçar as dificuldades
em detectá-las e, sobretudo, para garantir a indenização dos candi-
datos a um determinado emprego ou dos trabalhadores em geral.
Naturalmente, essa mesma ilegalidade, talvez mais evidente, pode
ser denunciada a partir do acesso não autorizado de empresas a
dados nas redes sociais, utilizando aplicativos que interagem com

11 Nota do tradutor: O autor sempre toma como referência a legislação espanhola.


234
as redes sociais e permitem que os dados sejam delas extraídos. O

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


referido caso da Cambridge Analytica é um exemplo claro dessa
possibilidade fraudulenta de acesso a informação de perfil virtual.
Mas não só, qualquer acesso aos conteúdos privados das redes por
parte do empregador usando maquinações ou fraudes, é claro, não
cabe e dá lugar, entre outras consequências, à nulidade da informa-
ção obtida, algo em que insistiremos quando dedicarmos algumas
linhas à dimensão processual. Tendo apontado essas considerações
sobre as possibilidades e os limites do empregador para acessar
os dados dos trabalhadores incluídos nas redes pessoais, é hora de
passar a uma breve análise das consequências que estas podem ter
no âmbito amplo das relações de trabalho.

3 · Consequências das redes sociais nos processos de


contratação e dispensa
A popularização das mídias sociais traz muitos pontos de contato
com o trabalho, alguns deles certamente ainda estão por aparecer,
mas já existem territórios nos quais já aparecem com frequência.
Vamos nos deter sobre estas breves linhas em dois deles, talvez os
mais comuns: os processos de seleção de pessoal e o exercício do
poder disciplinar empresarial derivado da atividade do trabalha-
dor nas redes. Note-se mais uma vez que esses são fenômenos que
nossa legislação não aborda especificamente, limitando-se a forne-
cer subsídios gerais que nem sempre se ajustam bem às realida-
des virtuais. Precisamente por essa razão, e enquanto a legislação
decide fazer face a essas novas realidades, a negociação coletiva
assume um papel central e também os códigos de conduta destina-
dos a disciplinar a irrupção das novas tecnologias da informação
no local de trabalho com maiores doses de segurança jurídica.

3.1 · As redes sociais nos processos de recrutamento


Nos mecanismos de seleção que determinam as decisões de con-
tratação de trabalhadores, as redes sociais, ou melhor, a informa-
ção que delas se extrai dos candidatos, têm tido durante algum
tempo um grande protagonismo, como reconhecem os agentes que
intervêm nesses processos.12

12 Ver Llorens Espada (2014, p. 53 e ss.). Seguem-se algumas estatísticas sobre a


utilização das redes pelos recrutadores (LLORENS ESPADA, 2014, p. 55-56).
235
Naturalmente, o acesso a essas informações depende em grande
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

medida da forma como os candidatos configuram a privacidade das


suas redes, mas não se deve esquecer que, mesmo quando é escolhido
um perfil restritivo ou limitado e não público, é quase impossível evi-
tar o acesso a determinadas informações que podem ser muito sen-
síveis no âmbito de um processo seletivo. Como é sabido, e tomamos
o Facebook como exemplo dada a sua ampla difusão, existe um certo
nível de informação da conta que pode ser consultado por qualquer
outro membro da rede e sem a necessidade de entrar no círculo de
amigos. Esse é geralmente o caso de fotos de perfil, fotos de capa, par-
ticipação em grupos públicos ou, especialmente, “curtidas” em orga-
nizações, mídia, música, livros, esportes, figuras públicas etc. Na ver-
dade, esses dados quase públicos permitem, mesmo quando a ativi-
dade do sujeito nas redes sociais não é muito intensa, extrair informa-
ções aproximadas o suficiente das convicções do candidato, de seus
interesses ou de preocupações que podem ser instrumentalizadas nas
decisões de contratação, dando origem a decisões discriminatórias
muito difíceis, no entanto, de revelar. Assim, por exemplo, pense-se na
preterição de candidatos derivada do fato de que seus perfis refletem
o interesse em organizações sindicais ou políticas ou certas crenças.
Não se trata somente de que os empregadores, de uma forma mais ou
menos rudimentar, possam usar os likes do Facebook para tomar deci-
sões sobre contratação, mas também de que, como já ocorre em outros
países, é frequente contratar empresas especializadas em “dossiês de
mídia social” sobre candidatos a emprego ou sobre os trabalhadores da
própria empresa.13 Em nosso sistema, como tem alertado a doutrina, a
elaboração de perfis sociais individualizados de candidatos por agen-
tes de intermediação (art. 32, texto consolidado da Lei de Emprego
Espanhola) encontraria limites na proteção de dados que impedi-
riam a transferência dessas informações ao empregador (LLORENS
ESPADA, 2014, p. 63), uma vez que é óbvio que as regras em matéria
de proteção de dados se estendem às que foram recolhidas nas redes
sociais durante os processos de seleção (NORES TORRES, 2016, p. 32).
Desnecessário dizer que a obtenção dessa informação não pode con-
duzir a decisões de recrutamento discriminatórias. Dessa forma,
naturalmente, não seriam justificadas as decisões das empresas

13 Este é o objeto principal de uma empresa como a Inteligência Social, em


cujo website o leitor pode encontrar uma aproximação, que não deixa de ser
preocupante, sobre como funciona a elaboração do social media hiring report.

236
que se baseassem em convicções políticas, religiosas ou sindicais

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


que as redes sociais dos trabalhadores deixem transparecer, entre
outros motivos discriminatórios (para o restante, veja-se o art.
4.2, c, do Estatuto dos Trabalhadores Espanhol). Nesses casos, não
entrando na questão de sua efetividade, concorre em favor do tra-
balhador ou candidato a emprego a tutela antidiscriminatória. No
entanto, frequentemente os dados recolhidos nas redes sociais se
referem à conduta privada dos trabalhadores, muitas vezes mera-
mente recreativa. A tutela antidiscriminatória estende-se a eles,
mesmo que não sejam “atividades protegidas”, para usar a termi-
nologia anglo-saxônica? Para ilustrar o que dizemos, observem-se
alguns exemplos que podem ser extraídos da rede em decisões de
contratação relacionadas a comportamentos expostos nos murais
dos candidatos, como consumo de drogas ou álcool, hobbies musi-
cais, hábitos de finais de semana, interações com o círculo de ami-
gos em questões banais ou de lazer, entre outros.
Finalmente, renove-se aqui a impossibilidade de os candidatos em
processos de seleção serem obrigados a fornecer acesso às suas
redes sociais, o que, como vimos, não é uma prática desconhecida
e que, em nossa legislação, daria origem à infração muito grave
prevista no art. 16.1.c do texto consolidado da Lei de Infrações e
Sanções da Ordem Social, consistente em “solicitar dados pessoais
em processos de seleção”.14
No entanto, o impacto das redes também ocorre no interior das
relações de trabalho, em que os problemas gerados são diversos,
com marcada proeminência do poder disciplinar das empresas
como reação ao “comportamento social” dos trabalhadores.

3.2 · Redes sociais e relação de trabalho, especialmente


a dispensa
Antes de avançar, há que se fazer uma distinção crucial entre a natu-
reza diferente que podem assumir as redes sociais utilizadas pelo
trabalhador. É necessário determinar de antemão se se trata de uma
utilização das redes sociais que faz parte das tarefas contratadas ao
trabalhador, dando origem a um perfil de trabalho ou profissional, ou

14 Que tem, no entanto, algumas limitações e não abrangeria, por exemplo, a


coleta de dados através da navegação pela rede. Ver Nores Torres (2016, p. 31).

237
se se trata de perfis privados, sem que se desconsidere que é bastante
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

comum uma utilização mista de maior ou menor intensidade. Assim,


por exemplo, redes muito focadas no campo profissional, como o
LinkedIn, que incorporam dados a perfis privados, principalmente
conteúdo profissional, ou redes mais gerais, como o Facebook, em
que perfis privados e destinados a compartilhar atividades pessoais
oferecem, no entanto, informações profissionais, como a empresa em
que o usuário trabalha ou algumas atividades deste relacionadas à
relação de emprego de que faz parte.
Não se tratará aqui da utilização puramente profissional das redes
sociais, porque entendemos que, quando a sua utilização é inscrita
dentro da prestação devida pelo trabalhador, pode estender-se a
essas redes as considerações semelhantes às feitas sobre a utiliza-
ção de outros meios informáticos da empresa.15
Menos explorado, mas também profundamente problemático, é
responder às consequências laborais que podem ter certos usos
das redes sociais pessoais dos trabalhadores. Também aqui nos
deparamos com outra amostra, ainda bem significativa, da eterna
dificuldade de delinear com precisão as fronteiras do poder empre-
sarial no contrato de trabalho.
Com essas premissas presentes, a irrupção das redes sociais
trouxe ao âmbito das relações de trabalho diversos problemas que
já começam a surgir nos repertórios da jurisprudência, mesmo que
apenas seja pelo fato de as empresas encontrarem no “armazém”
das redes uma fonte inesgotável de documentos em que possam
fundamentar o exercício de seus poderes.16 É claro que, às vezes,
essa informação joga na direção oposta, por exemplo, como meca-
nismos indicativos da natureza trabalhista da relação,17 ou para
revelar uma intermediação ilegal de mão de obra.
As questões mais frequentes estão relacionadas com o exercício
do poder disciplinar por parte do empregador, sendo que as redes

15 Ver entre os trabalhos mais recentes o de Tascón López (2017, p. 53 e ss.).


Sobre a muito importante mudança de tendência que as decisões do TEDH
podem implicar, ver Gallardo Moya (2017, p. 141).
16 Nem sempre com êxito: STSJ Cantabria 14.12.2015 (rec. 810/2015).
17 STSJ Madrid 29.9.2014 (rec. 483/2014) ou para a desmentir: STSJ Madrid
5.2.2018 (rec. 1028/2017).

238
sociais evidenciam o descumprimento do dever laboral. Assim, está

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


se tornando comum encontrar sanções contra trabalhadores por
opiniões ou ofensas expressas em redes sociais contra a empresa
ou a colegas;18 ou, também em matéria disciplinar, a sanção em
consequência do material compartilhado ou “postado” ser incom-
patível com a situação de afastamento para tratamento de saúde
que levou à suspensão do contrato de trabalho;19 ou, ainda, a vio-
lação à proibição empresarial de publicar imagens de pacientes20
ou instalações.21 Em outras ocasiões, o que as publicações sociais
permitem comprovar é a realização de atividades que impliquem
concorrência desleal.22
Claro que não são os únicos problemas: os próprios trabalhadores,
numa situação inversa, podem ser desrespeitados mediante a uti-
lização das redes sociais pelas empresas.23 Ou quando se acessam
as redes sociais durante a jornada de trabalho e com o computador
da empresa, questão menos interessante para os fins deste estudo,
porque remete ao discurso geral do uso das novas tecnologias da
informação e comunicação da empresa para fins privados.24
Neste âmbito, há também entendimento específico sobre o uso de
redes sociais pelos trabalhadores em empresas ideológicas ou de
tendência, de modo que as declarações feitas nos perfis pessoais

18 Como uma amostra simples: STSJ Extremadura 23.3.2017 (rec. 66/2017); STSJ
Andalucía (Sevilla) 23.3.2017 (rec. 1309/2016); STSJ Canarias (Las Palmas)
27.7.2016, (rec. 385/2016); STSJ Aragón 18.5.2016 (rec. 300/2016); STSJ Galicia
8.10.2014 (rec. 2941/2014).
19 Sem qualquer intenção exaustiva: STSJ Galicia 12.6.2017 (rec. 1554/2017);
STSJ Madrid 5.5.2017 (rec. 722/2016); STSJ Cantabria 10.11.2015 (rec.
765/2015); STSJ Andalucía (Sevilla) 29.10.2015 (rec. 2723/2014); STSJ
Asturias 19.4.2013 (rec. 528/2013).
20 STSJ Madrid 27.11.2017 (rec. 558/2017).
21 STSJ Cataluña, de 13.1.2017 (rec. 6414/2016).
22 Entre outras: STSJ Cataluña 20.10.2017 (rec. 4831/2017); STSJ Galicia 25.4.2013
(rec. 5998/2012).
23 Assim, um pressuposto em que se encontram comprometidas a dignidade
do trabalhador e a sua liberdade de associação em resultado da utilização do
Facebook pelos responsáveis da empresa: STSJ Andalucía (Málaga) 5.4.2017
(rec. 278/2017).
24 Ver, por exemplo, STSJ Extremadura 17.12.2014 (rec. 543/2014).

239
daqueles que ocupam posições não neutras na empresa e que não
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

cumprem com as ideias da organização possam levar a sanções.25


Como se pode ver, trata-se de descumprimentos “clássicos” que
assumem ares de modernidade exclusivamente porque se revelam
por meio de redes sociais, que tornam o trabalhador transparente.
A resposta judicial a esses problemas nem sempre pressupõe essa
dimensão de modernidade. Como já tivemos a oportunidade de
indicar, a abordagem judicial das redes sociais não é geralmente
muito problematizada e tende a limitar-se a incluir na infração
prevista no art. 54 do Estatuto do Trabalhador o comportamento
social do trabalhador, considerando-o muitas vezes mais grave
do que é habitual, por ficar registrado por escrito e ser realizado
mediante publicidade. No entanto, é uma área cheia de incertezas
em que não é possível operar de forma clássica.
Deve-se começar por considerar que, em princípio, a atividade nas
redes sociais, exceto quando faz parte da própria tarefa profissio-
nal, é uma atividade pessoal completamente alheia à relação de
trabalho. O maior ou menor acesso aos posts ou ao seu conteúdo,
por mais lamentável que seja, não transforma a atividade nas redes
numa questão laboral, ainda que nos perfis virtuais se afirme que
o trabalhador presta os seus serviços a uma determinada empresa.
A atividade social também não é transmutada em profissional para
que possa ser avaliada em conjunto pela empresa a fim de verifi-
car, por exemplo, se sua imagem foi comprometida. Tal linha de
ação iria diluir as fronteiras entre as atividades privadas e laborais
do trabalhador, levando a uma restrição inaceitável de seus direi-
tos constitucionais.26 Portanto, os conteúdos das redes sociais que

25 É o caso da dispensa disciplinar de um trabalhador declarada procedente,


responsável pelas redes sociais e pela comunicação de um partido político
que questiona o processo primário de sua organização em suas contas
pessoais no Facebook e no Twitter (STSJ Cataluña 6.7.2017, rec. 2871/2017).
26 Não se trata de pressupostos de laboratório. A informação geral contém
notícias sobre dispensas produzidas fora de empresas ideológicas e nas
quais a suposta não conformidade trabalhista consiste em emitir opiniões
desvinculadas da relação de trabalho e emitidas por redes pessoais que,
no entanto, informam sobre a empresa para a qual o titular do perfil
presta seus serviços. Assim, por exemplo, a demissão de uma funcionária
de uma empresa de avaliação como consequência dos insultos que ela
fez a um líder político (disponível em https://www.infolibre.es/noticias/
politica/2017/09/05/despiden_internauta_que_deseo_las_redes_sociales_

240
fazem parte da atividade privada ou recreativa dos trabalhadores

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


não podem gerar qualquer reação trabalhista, qualquer que seja
seu nível de difusão, a menos que sejam indicativos de um descum-
primento funcional, como ocorre, com certa frequência, nos des-
ligamentos causados pela realização de atividades incompatíveis
com o afastamento para tratamento de doença.
No mesmo sentido, as manifestações em redes que, com ou sem
conteúdo profissional, fazem parte da liberdade de expressão, não
podem logicamente gerar quaisquer consequências negativas.27
Do mesmo modo, não pode ser irrelevante a configuração que o
trabalhador fez de suas redes, de modo que se forem contas restri-
tas, o fato de que a informação se espalhe em algum momento não
anula que isso ocorreu por causas alheias à vontade do trabalhador.
Não é possível, em nossa opinião, presumir a vocação pública de
tudo o que se incorpora nas redes sociais e pressupor que os conte-
údos de relevância em relação ao contrato do trabalho são sempre
públicos, ainda que neles o trabalhador tivesse operado com a dili-
gência ao seu alcance para limitar os destinatários.
Nem sempre a jurisprudência opta por essa posição comedida.
Assim, por exemplo, não é dada relevância ao fato de que a confi-
guração da rede foi privada (embora incluindo alguns colegas de
trabalho) e a mensagem se espalhou por canais além da vontade do
trabalhador (screenshots espalhados pelo WhatsApp). Dessa forma,
a já citada decisão STSJ Aragón 18.5.2016 (rec. 300/2016)28 entende
que, nesses casos, não há
[...] interceptação ilícita de uma comunicação por um terceiro
que não os destinatários, mas que os destinatários da comunica-
ção a divulgaram a terceiros, até que chegou ao conhecimento do
supervisor do autor. Também não houve qualquer conhecimento

que_violen_grupo_arrimadas_69216_1012.html). Não importa quantas


reprovações merece tal conduta, não parece que o trabalho possa ser um
deles, dada a absoluta desconexão do comportamento do trabalhador com o
escopo do contrato de trabalho.
27 STSJ Andalucía (Sevilla) 14.12.2017 (rec. 3707/2016).
28 Ver também essa indiferença no julgado STSJ Galiza 8.10.2014 (rec. 2941/2014),
embora nesse caso pareça haver uma dificuldade processual para apreciar
o caráter fechado da rede em que as desqualificações foram aproveitadas
contra a diocese de Ourense.

241
antijurídico do post. A empresa não violou o direito fundamental
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

ao sigilo das comunicações do autor por não ter acessado sua conta
privada no Facebook. O fato de que inicialmente os destinatários
da mensagem foram apenas alguns amigos e conhecidos do autor
não os impede, como acontece normalmente nas redes sociais, de
divulgar posteriormente essas informações, que a empresa não
tomou conhecimento por ter interceptado comunicações de outras
pessoas, nem por ter acessado ilegalmente seu conteúdo, mas
porque a divulgação dessas informações por seus destinatários
chegou ao supervisor da empresa. Enviar uma mensagem impac-
tante em uma rede social faz com que os destinatários, por sua
vez, frequentemente a divulguem. Quando o trabalhador enviou
esta mensagem numa rede social a uma pluralidade de destinatá-
rios, era previsível que estes, por sua vez, a divulgassem, como o
fizeram, até chegar ao conhecimento da empresa, que não violou
o direito fundamental ao sigilo das comunicações do reclamante.

Continua a alertar a decisão que também não


[...] houve uma intromissão empresarial numa área reservada à
trabalhadora desde o momento em que se dirigiu a vários cole-
gas e a outras pessoas, utilizando uma rede social bem conhe-
cida, para insultar outros trabalhadores da empresa e desejar-
-lhes uma doença grave. O direito à intimidade, que garante
um ambiente privado e reservado diante do conhecimento dos
outros, não pode proteger a conduta de um trabalhador que
insulta gravemente outros trabalhadores em uma rede social,
sabendo da difusão que geralmente têm esses comentários nes-
sas redes. A tese oposta significaria impunidade para comentá-
rios que são seriamente ofensivos a terceiros, o que resultaria em
graves danos à sua imagem e honra.

Como se pode ver, para a decisão é irrelevante que a trabalhadora


não tenha se envolvido na divulgação subsequente da mensagem,
algo que deveria ser integrado no julgamento de culpabilidade da
dispensa. E, sobretudo, pressupõe, o que na nossa opinião é discutí-
vel, que a incorporação, ainda que privada, de conteúdos nas redes
sociais deve ser implicitamente considerada pública, dada a multipli-
cidade de formas pelas quais pode acabar por transcender para além
do círculo inicial de destinatários. É, não se pode negar, uma conclu-
são muito próxima da realidade, mas não passa de uma consequência
prática que, na maioria dos casos, escapa à vontade do trabalhador e
deve ser avaliada ao qualificar a medida disciplinar da empresa. Não
é possível, em nossa opinião, considerar completamente irrelevantes
as restrições que acompanharam a publicação inicial.
242
Além disso, como já advertimos, não é incomum a jurisprudência

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


agravar as consequências derivadas da infração incorporada às
redes sociais por entender que ela é produzida com publicidade,29
especialmente quando se trata de ofensas.
Acreditamos que esse automatismo é repreensível e que esse tipo
de dispensa derivada de opiniões ou informações com transcen-
dência trabalhista incorporada às redes sociais deve dar especial
atenção ao juízo de culpa. Se o trabalhador tomou medidas ao
alcance de um usuário médio para limitar os destinatários de
suas publicações, não é possível entender que a divulgação poste-
rior de suas mensagens, mesmo sem violação dos direitos de pri-
vacidade e sigilo das comunicações, possa dar lugar a punições,
uma vez que se trata de opiniões expressas em esfera privada e
que não quiseram ser tornadas públicas.
O exercício da prerrogativa disciplinar empresarial derivada da
ação virtual dos trabalhadores também encontra algumas outras
desvantagens quando o que é incorporado nas redes pode ser con-
siderado uma manifestação da liberdade sindical. Essa é outra área
que as redes sociais nos obrigam a reconsiderar.

4 · A atividade sindical por meio das redes sociais


Conforme antecipamos, naturalmente também a liberdade sin-
dical encontra nas redes sociais30 um canal de expressão que, em
muitas ocasiões, dota de especial eficácia a defesa dos direitos dos
trabalhadores ao inscrever-se no âmbito da reputação da empresa,
especialmente delicado nos tempos atuais.
Embora pareça claro, não é inútil advertir que a canalização da ati-
vidade sindical por meio de espaços virtuais é acompanhada pelo
arsenal protetor que a Lei Orgânica da Liberdade Sindical (LOLS)
concebe, impedindo, assim, que a atividade sindical em redes esteja
sujeita a restrições ou limitações. Em suma: a atividade sindical
virtual é atividade sindical.31

29 Ver STSJ Andalucía (Sevilla) 8.6.2017 (rec. 2275/2016).


30 Ver a respeito Cardona Rubert e Cordero Gordillo (2015, p. 133-149).
31 E decisivamente ousamos acrescentar uma consideração estratégica,
vividamente, em relação à Confederación Sindical de Comisiones Obreras
(CCOO) (PABLO; LÓRIZ, 2013).
243
No entanto, também aqui o alcance público do que é divulgado nas
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

redes sociais, por vezes de propriedade de sindicatos, significa que


a proteção do direito à liberdade de associação às vezes cede ao
que é considerado “extralimitações”.32 Assim, por exemplo, ocorre
com a dispensa, qualificada como procedente, de um trabalhador
de uma residência da terceira idade que faz uma série de comentá-
rios, de indubitável gravidade, no mural com acesso público que o
seu sindicato mantém no Facebook.33
Ou o fato da trabalhadora, secretária de um sindicato com presença
no comitê de empresa, que, diante de uma situação de não paga-
mento e problemas econômicos do empregador, posta no Facebook
opiniões categóricas contra a direção que são consideradas não pro-
tegidas pela liberdade de expressão nem pela liberdade sindical.34
Para além dos pressupostos concretos, convém recordar a proteção
acrescida que, nesses casos, deve dispensar a circunstância de que
a atividade desenvolvida nas redes se realize no âmbito das páginas
das organizações sindicais ou sirva a fins sindicais. Isso implica que
tal conduta pode estar ligada ao exercício da liberdade de associação,
cuja proteção deve ser tida em conta e pode justificar, especialmente
em circunstâncias de conflito, certas atitudes e comportamentos
que não seriam justificados em qualquer outro contexto. A inclu-
são de restrições adicionais à liberdade de associação pelo simples
fato de utilizar as redes sociais como veículo das suas ações não se
enquadra num conceito finalista como o artigo 28.1 da Constituição
Espanhola. Sem dúvida, a nossa forma de conceber a atividade sin-
dical permite-nos verificar naturalmente um cenário em que ves-
tiários, corredores, refeitórios ou restaurantes foram substituídos
pelas redes como espaço de discussão dos problemas laborais dos
trabalhadores. São tantos os exemplos dessa tendência irreversí-
vel que nos dispensam de os relacionar, mas, por sua relevância e
seu significado, o leitor deve ter presente o recente conflito laboral
que ocorreu no braço espanhol da Amazon, no qual, com diferen-
tes técnicas (hashtag, perfis específicos, streaming, entre outras), as
redes atingiram um protagonismo decisivo. Também aqui pode
haver algum interesse em recorrer a desenvolvimentos que ocorrem

32 Nem sempre: STSJ Andalucía (Málaga) 17.1.2018 (rec. 1939/2017).


33 Trata-se de um pressuposto da STSJ Catalunya 30.1.2017 (rec. 6712/2016).
34 STSJ Murcia, 26.4.2017, rec. 1240/2016.

244
noutros países. Mais uma vez, a experiência dos EUA oferece alguns

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


exemplos interessantes dos efeitos laborais das redes sociais, desta
vez por ocasião da proteção das atividades sociais relacionadas com
as relações laborais (LOWENSTEIN; SOLOMON, 2015).
O National Labor Relations Board (NLRB) interpretou que cer-
tas atividades dos trabalhadores nas redes sociais são protegi-
das pela Seção 7 do National Labor Relations Act (NLRA).35 Nessa
direção, o NLRB interveio com o objetivo de garantir os direitos
dos trabalhadores, sindicalizados ou não, de intervir nas redes
sociais e participar através delas em atividades concertadas em
matéria de condições de trabalho.
As decisões do NLRB a esse respeito podem ser divididas em duas
categorias (STIEGLER, 2015, p. 321-332): por um lado, as relacio-
nadas com o exercício do poder disciplinar pelas empresas como
consequência dos comentários feitos pelos trabalhadores nas
redes sobre as suas condições de trabalho; e, por outro lado, as que
avaliam as políticas das empresas sobre o uso das redes sociais,
visando limitar as possibilidades dos trabalhadores de discutirem
online sobre o seu emprego. Nesse segundo caso, não é necessá-
rio ter realizado ações disciplinares com base nos códigos de con-
duta, mas é possível discutir as próprias políticas da empresa, na
medida em que podem desestimular o direito dos trabalhadores
de realizar atividades protegidas.
O NLRB, que em várias ocasiões enfrentou a utilização das redes
sociais no local de trabalho, parte da premissa de que o NLRA
protege os direitos dos trabalhadores de agirem em conjunto, por
intermédio do sindicato ou não, para abordarem as condições de
trabalho. Essa proteção se estende a certas conversas relacionadas
com o trabalho nas redes sociais, como o Facebook e o Twitter, e
não se estende necessariamente às observações de um trabalha-
dor nas redes sociais se forem meras queixas não apresentadas
no âmbito de uma ação coletiva. Por fim, o NLRB entendeu que as
políticas dos empregadores sobre o uso de redes sociais não devem
ser tão amplas que proíbam os tipos de atividades protegidas pela

35 É importante lembrar que a seção estabelece os direitos dos trabalhadores à


“self-organization, to form, join, or assist labor organizations, to bargain collectively
through representatives of their own choosing, and to engage in other concerted
activities for the purpose of collective bargaining or other mutual aid or protection […]”.

245
legislação trabalhista federal, como a discussão de salários ou con-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

dições de trabalho entre os empregados.


Naturalmente, isso está longe de ser um debate concluído, mas per-
mite que as “atividades protegidas” sejam transferidas dos vestiá-
rios para as redes sociais, configurando-as como um espaço natu-
ral de ação coletiva. Nenhum obstáculo oferece nosso ordenamento
para seguir esse caminho, desde que a mudança do cenário não
dê lugar a interpretações restritivas obtusas que olhem de soslaio
para a imagem corporativa das empresas.
A estação final desta viagem por algumas das consequências labo-
rais das redes sociais leva-nos talvez ao campo mais delicado e
relevante, o do processo.

5 · As redes sociais no processo do trabalho


Parte-se do pressuposto de que entre as amplas possibilidades proba-
tórias permitidas pelo art. 90.1 da Lei Reguladora da Jurisdição Social
incorporam-se os conteúdos das redes sociais quando, evidentemente,
não foram acessados de forma ilegítima. E não há acesso questionável
quando se trata de publicações sem restrições de acesso ou públicas,
ou ainda quando elas chegam ao empregador porque o trabalhador
pediu que ele integrasse seu círculo de “amigos”. Assim, por exemplo,
é válido acessar fotografias que são incorporadas ao Facebook sem
“reserva de privacidade”, reserva que não ocorre quando
[...] não só pelo lugar onde as fotos foram tiradas, com um grande pro-
tagonismo do ator e amigos, quase consubstancial à sua juventude,
quanto pela eventualidade de sua projeção pública pelo Facebook
daqueles, deve ser presumida admitida (a publicação), inclusive,
quando não houve objeção em tirar tais fotos em locais públicos.36

No entanto, no caso de acesso ilegítimo às publicações do Facebook,


estas não podem ser levadas em conta, como ocorre, por exemplo,
quando são obtidas após uma busca no computador do trabalha-
dor, o que não se deve
[...] à realização de trabalhos de reparação no sistema informático
ou no controle e eliminação do vírus, mas entra no computador
para examinar arquivos cujo controle não pode ser considerado
necessário para realizar a reparação em questão (fotografias

36 STSJ Cantabria 10.11.2015 (rec. 765/2015).


246
pessoais, downloads da Internet, rastreamentos de navegação e

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


dispositivos externos à empresa). Dessa forma, não se pode com-
preender que estejamos perante uma descoberta casual, uma vez
que foi além do que a entrada regular para a reparação justificava.
Portanto, a medida adotada pela empresa sem aviso prévio sobre o
uso e controle do computador é uma lesão à privacidade do traba-
lhador demitido, pois a descoberta de arquivos pessoais (fotogra-
fias, downloads da Internet, vestígios de navegação e dispositivos
externos à empresa) não pode ser considerada como prova lícita
para que [...] não possam ser levadas em conta, para fins discipli-
nares, as mensagens emitidas pelo autor na rede social Facebook
através do computador do seu local de trabalho.37

Em nossa opinião, deve-se salientar que, mesmo que o registro


do computador seja justificado, não parece ser possível utilizá-lo
para ingressar no perfil pessoal do trabalhador (usando senhas que
tenham sido armazenadas no computador ou por outros meios). Os
perfis, quando são privados, devem ser considerados impenetráveis
pelo empregador, e, portanto, as provas obtidas pela violação da
privacidade devem ser consideradas ilegais.
No entanto, como observa a doutrina, ao utilizar conteúdos de redes
sociais no processo, o problema não é apenas se foram obtidos legal-
mente, mas também se esses conteúdos são um reflexo exato da
realidade que se pretende reconhecer (SELMA PENALVA, 2014, p.
367-368). E essa é certamente a maior dificuldade que encontram os
conteúdos inseridos em espaços virtuais, pois
não há garantia de sua confiabilidade, podendo refletir meras fic-
ções ou invenções do usuário, para incluir informações reais, mas
não recentes, que produz o efeito de distorcer negativamente a
imagem do trabalhador diante de sua empresa, gerando confusão.
(SELMA PENALVA, 2014, p. 367-368).

Nesse sentido, nem mesmo a autoria das publicações é pacífica, pois


podem ser perfis falsos ou colonizados por pessoas não autorizadas.
Entretanto, também aqui, a jurisprudência que vai surgindo não se
mostra excessivamente questionadora e tende a pressupor tanto a
autoria quanto a veracidade dos conteúdos, embora muitas vezes
com os dados sociais haja outras provas mais tradicionais, e em
outros casos as partes lesadas pela informação virtual não a ques-
tionem, o que poderia explicar essa tendência.

37 STSJ Canarias, Santa Cruz de Tenerife, 6-7-2017 (rec. 12/2017).


247
Essa falta de fiabilidade também não é ultrapassada pela prática
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

habitual de fornecer escrituras notariais que contabilizam a pre-


sença de certas informações na rede num momento específico.
Isso garante que o posterior desaparecimento desses conteúdos
por decisão do titular do perfil não impedirá a sua incorporação
no processo, mas, naturalmente, a intervenção do notário público
não garante nem a autoria nem a veracidade dos conteúdos dos
“murais” (NORES TORRES, 2016, p. 48).

6 · Conclusões
A popularização das redes sociais deu origem, no campo das rela-
ções de trabalho, a uma espécie de trabalhador transparente, cuja
intimidade é facilmente contornada tanto por meios lícitos quanto
por outros que não o são, mas que não são fáceis de detectar. Em
qualquer caso, o trabalhador não pode ser obrigado a permitir ao
empregador o acesso às suas redes pessoais.
A exposição às redes sociais permite que as empresas utilizem perfis
de trabalhadores para todos os tipos de práticas, desde a contratação
à dispensa, mas é necessário, na ausência de legislação específica,
não cair num automatismo excessivo. As redes impõem normas de
conduta às quais a interpretação jurídica deve ser adaptada. Também
não devemos perder de vista as dificuldades de configuração dos
perfis e o fato de, em muitas ocasiões, o trabalhador não conhecer o
círculo de destinatários das suas publicações, e, por conseguinte, o
julgamento de culpa deve ter em conta esses fatores. Também não
podemos prescindir das restrições impostas pelas regras de prote-
ção de dados ao tratamento de informações provenientes de redes.
É necessário que isso não implique uma limitação dos poderes
decorrentes do art. 28.1 da Constituição da Espanha com base em
considerações relacionadas com a imagem das empresas. De fato,
em alguns modelos comparativos existem mecanismos especiais,
ainda que incipientes, para a proteção das ações coletivas dos tra-
balhadores que se manifestam por meio das redes sociais.
Finalmente, os problemas que as redes sociais suscitam no âmbito
do processo e, especialmente, em matéria probatória não são
menores. O ponto de partida é a possibilidade de recorrer a conte-
údos sociais, desde que não tenham sido alcançados ilegalmente.

248
A partir daí, as dificuldades se concentram em determinar se o

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


que emerge dos perfis pode ser uma prova confiável, e aqui as difi-
culdades são imensas e vão desde a determinação da autoria até a
veracidade dos conteúdos, que são, por outro lado, voláteis.

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FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

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250
O panóptico pós-moderno no trabalho

Maria Cecília Máximo Teodoro


Professora dos Programas de Pós-Graduação em Direito
e de Graduação da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-Minas). Líder do grupo de pesquisa
RED – Retrabalhando o Direito. Pesquisadora. Pós-
-Doutora em Direito do Trabalho pela Universidad de
Castilla-La Mancha com bolsa de pesquisa da CAPES.
Doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social
pela Universidade de São Paulo (USP).

Karin Bhering Andrade


Professora de Deontologia Jurídica no Centro de Estudos
Isadora Athayde. Membro da Comissão de Direitos
Sociais e Trabalhistas da OAB-MG. Membro da Comissão
de Direitos Humanos da OAB-MG. Membro do grupo de
pesquisa RED – Retrabalhando o Direito. Pesquisadora.
Advogada. Mestranda na Linha de Pesquisa Trabalho,
Democracia e Efetividade, na Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Graduada em
Direito pela Faculdade Milton Campos.

Resumo: O panóptico de Jeremy Bentham, passando pela “sociedade


disciplinar” na biopolítica de Foucault e pela “sociedade de controle” de
Deleuze, nunca foi tão atual. E, embora com novos contornos dados pela
tecnologia, esses conceitos também fazem parte da inexorável passagem
da sociedade industrial à sociedade do controle, que estabeleceu,
por meio do algoritmo, uma nova lógica de acumulação. Nela, a nova
moeda é não somente o excedente da força de trabalho mas também a
extração dos dados dos usuários das novas tecnologias. Com um novo
petróleo – mas totalmente vinculado à pessoa humana –, a informação,
os hábitos, os desejos e a subjetividade da pessoa alimentam este novo
modelo extremamente rentável, concorrido e de pureza questionável.
Isso porque usuários das redes de computadores e trabalhadores alienam
seus dados acrítica, voluntária e inocentemente, abrindo o livro de suas
subjetividades sem saber o destino, como será o tratamento destas

251
informações e como elas podem afetar suas próprias vidas. O vínculo
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

de emprego apresenta-se como importante fonte de coleta de dados, em


razão da abrangência e dos desdobramentos do poder empregatício, que
permite à empresa monitorar seu trabalhador, cujo controle constante,
dentro e fora do trabalho, acaba por alienar sua subjetividade através
da entrega da sua privacidade, seu direito a desconexão, seu tempo de
lazer e quiçá da sua felicidade e liberdade. Seria a pós-modernidade
chegando à extração da mais-valia, que não se restringe tão somente
ao excedente da força de trabalho, parecendo alcançar por completo a
própria subjetividade do trabalhador.

Palavras-chave: Vigilância. Mais-valia. Panóptico de Bentham.

Abstract: Jeremy Bentham’s Panopticon, passing through the “disciplinary


society” in Foucault’s biopolitics and Deleuze’s “control society”, has
never been so current. Although with new contours given by technology,
they are part of the inexorable passage from industrial society to the
society of control, which, through the algorithm, establishes a new logic
of accumulation. In it, the new currency is not only the surplus of the
workforce, but the extraction of data from users of new technologies.
With a new oil, but totally linked to the human person, the information,
habits, desires, subjectivity of the person feed this extremely profitable,
competitive and questionable new model. This is because computer
network users and workers alienate their acritical data, voluntarily and
innocently, opening the book of their subjectivities without knowing their
fate, what their information will be like, and how it can affect their own
lives. The employment bond is an important source of data collection, due
to the scope and consequences of the employment power, which allows
the company to monitor its worker who, constantly controlled, inside and
outside the work, ends up alienating his subjectivity through giving up
your privacy, your right to disconnect, your leisure time and perhaps your
happiness and freedom. It would be postmodernity reaching the extraction
of surplus value, which is not restricted only to the surplus of the workforce,
but seems to completely reach the subjectivity of the worker himself.

Keywords: Surveillance. Added value. Bentham’s panopticon.

1 · Introdução
Vivemos na era da informação, propiciada pelas novas tecnologias.
As pessoas estão constantemente conectadas, seja via internet,
de um modo geral, seja por alguma rede social, como Instagram,
Facebook ou Linkedin. Essa tecnologia, no entanto, parece carre-
gar em si uma grande contradição, pois, ao mesmo tempo em que

252
ela liberta – permitindo acesso a todo e qualquer tipo de informa-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


ção em tempo real, conectando qualquer pessoa, a qualquer tempo,
em qualquer lugar do mundo –, ela também aprisiona – tornando
as pessoas cada vez mais dependentes, mais controladas, mais
vigiadas, mais alienadas, transformando-as em “fantoches” de um
sistema que coleta seus dados e cria necessidades.
A vida no trabalho e a vida privada também parecem carregar uma
contradição, por vezes se confundindo, deixando de ser vidas distintas
e clivadas, mostrando-se cada vez mais tênue a linha que as separa.
Na medida em que não mais se desconecta, a internet e suas redes
sociais, os aparelhos eletrônicos, como computadores e celulares,
passam a funcionar como partes dos nossos corpos – assim como
são os braços, as pernas e a cabeça.
A imagem passa a ser o principal valor a ser cultivado, cuidado,
vendido e comprado. A supervalorização do “eu virtual” leva à
exposição completa, por vezes involuntária, como de quem busca
uma autoafirmação. No Instagram, por exemplo, fotos são posta-
das com a pretensão de ganhar os famosos likes.1 Através das redes
sociais, explicitam-se as subjetividades, nelas as pessoas mostram
seus hábitos, seus desejos, seus atos, sua vida privada.
Entretanto, na nova lógica de acumulação capitalista, empresas como
Instagram, Facebook, Google, entre outras, fazem da captura dessas
subjetividades a nova moeda do capitalismo, tornando-as extrema-
mente lucrativas, mediante a constante vigilância dos seus usuários.
No capitalismo típico, o trabalhador aliena sua força de traba-
lho para terceiro em troca de uma contraprestação, e o capital,
através do excedente da força de trabalho, extrai o que Marx
denomina de mais-valia.

1 O aplicativo anunciou que fará testes escondendo o número de likes, a fim


de estimular o conteúdo e não a busca por estatísticas: “De acordo com o
Instagram, a alteração começou nesta quarta e vai remover não só o número
total de curtidas, mas também as visualizações em vídeos. ‘Não queremos
que as pessoas sintam que estão em uma competição dentro do Instagram
e nossa expectativa é entender se uma mudança desse tipo poderia ajudar
as pessoas a focar menos nas curtidas e mais em contar suas histórias’,
informou a plataforma”. Disponível em: https://www.hojeemdia.com.br/horiz
ontes/instagram-testa-deixar-de-exibir-curtidas-em-postagens-entenda-o-
porqu%C3%AA-1.728300. Acesso em: 19 jul. 2019.

253
Na nova lógica de acumulação, o capital utiliza-se não só do exce-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

dente da força de trabalho mas também da extração dos dados de


seus usuários para obter lucro. Os usuários, por sua vez, alienam
seus dados e suas subjetividades sem saber para quem, para onde
irão e como isso poderá afetar as suas vidas.
O presente ensaio, portanto, pretende analisar como o controle
acentuado da nova lógica de acumulação afeta o trabalhador, e pro-
põe, como se verá, que uma mudança no agir e uma tomada de
consciência no âmbito das relações de trabalho devem privilegiar o
empregado e partir do seu horizonte de análise, conforme compre-
ende Michael Löwy,2 a fim de lograr possíveis melhorias e limites
para o excesso de controle e vigilância nos dias de hoje.
De fato, Löwy considera que a visão proletária pode e deve ser
capaz de incorporar as verdades parciais produzidas pelas ciên-
cias de nível inferior ou limitadas, sem que isso, necessariamente,
leve ao ecletismo. Para ele, o proletariado, na medida em que
busca a possibilidade objetiva do acesso à verdade, é a classe revo-
lucionariamente mais crítica, embora assuma a limitação da sua
tese ao dizer que esta característica do proletariado “não induz
a uma garantia suficiente do conhecimento da verdade social”
(PEREIRA; AREDES, 2010, p. 8).

2 · O novo mecanismo de vigilância na era


da acumulação
O modelo econômico global, baseado numa nova lógica de acumu-
lação, parece colonizar o Estado, fazendo-o abandonar o projeto de
proteção social e falhar com os trabalhadores. O poder e a ganância
de grandes corporações conquistaram governos, que agem contra
os direitos e interesses de seus próprios trabalhadores.

2 “As análises de Löwy ainda consideram que a visão proletária pode e deve
ser capaz de incorporar as verdades parciais produzidas pelas ciências de
nível inferior ou limitadas, sem que isso, necessariamente, leve ao ecletismo.
Suas conclusões atestam que o proletariado, na medida em que busca a
possibilidade objetiva ao acesso da verdade, é a classe revolucionariamente
mais crítica, mas isso não o induz a uma garantia suficiente do conhecimento
da verdade social”. Disponível em: https://journals.openedition.org/confins/
6544?lang=pt. Acesso em: 19 jul. 2019.

254
Sodré (2015) chama esse novo fenômeno social de “sociedade inci-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


vil”, caracterizando-a como uma nova modalidade de máquina tec-
nossocial. Nesta malha não há mais apenas a máquina estatal, mas
também todas as máquinas organizacionais, tais como empresas,
fundações “do capital, comprometidas com a reorganização do
mundo pela tecnociência e pelo mercado, assim como informacio-
nalmente articuladas” (SODRÉ, 2015, n. p.).
Desse alinhavo da tessitura pública e econômica surgiria a ideia
de midiatização, como um “fenômeno complexo e politicamente
avesso à regulação do Estado e parceiro de formas novas de insti-
tucionalização” (SODRÉ, 2015, n. p.). Nessas circunstâncias o capi-
talismo financeiro mostra sua hegemonia usando dos algoritmos e
do biopoder, fazendo emergir
uma espécie de ponta-cabeça da velha sociedade civil, onde muta-
ções socioeconômicas desconstroem os laços representativos
entre povo e Estado – portanto, a política em sua forma parlamen-
tar – em benefício de formas tecnológicas e mais abstratas de con-
trole social. (SODRÉ, 2015, n. p., grifo do original).

Assim, delineia-se o atual modelo de comércio, vinculado mediante


cadeias de suprimentos globais, em mercados altamente compe-
titivos e de baixo custo, e que leva à criação de postos de tra-
balho pelas empresas transnacionais frequentemente mediante
exploração sem padrões de trabalho decentes, inclusive com o
uso da escravidão moderna, criando uma multidão de miseráveis
vivendo com baixos salários, trabalhos a curto prazo, precários, e
em ambientes de trabalho inseguros.
Nas palavras de Ricardo Antunes, “estamos vivendo a acumula-
ção primitiva da era digital”3 (ANTUNES, 2019). Em análise sobre
o tema, Shoshana Zuboff define essa nova lógica de acumulação a
partir do big data e diz que este “é, acima de tudo, o componente
fundamental de uma nova lógica de acumulação, profundamente
intencional e com importantes consequências”, denominada pela
autora de “capitalismo de vigilância” (ZUBOFF, 2018, p. 18). Para ela,
“essa nova forma de capitalismo de informação procura prever e

3 Palavras ditas pelo sociólogo em banca pública de defesa do Doutorado da


Pontifícia Universidade Católica – Belo Horizonte (5/4/2019).

255
modificar o comportamento humano como meio de produzir recei-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

tas e controle de mercado” (ZUBOFF, 2018, p. 18).


A tese analisa a Google, que foi
a pioneira do big data e com a força desses feitos também foi a
pioneira na lógica de acumulação mais ampla [...] de capitalismo
de vigilância, da qual o big data é tanto uma condição quanto uma
expressão. (ZUBOFF, 2018, p. 24-25).

Tal lógica de acumulação também é compartilhada por empresas


como o Facebook, as startups e os aplicativos (ZUBOFF, 2018, p. 24-25).
A Google é o exemplo por excelência da mudança de trajetória que
a fez passar a usar a tecnologia a favor da vigilância. Para gerar
mais lucros e prevendo que o modelo de serviços pagos poderia ter
efeitos no crescimento do número de usuários, a Google optou por
um modelo de propaganda (ZUBOFF, 2018). Para tanto, porém, per-
cebeu que deveria passar da fase de captura do maior esforço físico
para a captura do produto da cooperação social (FUMAGALLI;
LUCARELLI, 2007). Assim, empreendeu tecnologia para a aquisição
de dados de usuários como matéria-prima para análise e produção
de algoritmos que poderiam vender e segmentar a publicidade por
meio de um modelo de leilão exclusivo, com precisão e sucesso cada
vez maiores (ZUBOFF, 2018, p. 32).
Um exemplo disso é o Street View da Google, lançado em 2007:
“Autoridades alemãs descobriram que, entre outros problemas, os
carros do Street View estavam equipados com escâneres ativados para
extrair dados de redes sem fio privadas” (K.J.; C.C., 2014 apud ZUBOFF,
2018, p. 28-29). Em processo movido contra a Google, concluiu-se que
a empresa participou na coleta não autorizada de dados de redes
sem fio, incluindo dados de redes Wi-fi privadas de usuários de
internet residencial [e que] a Google interceptou intencionalmente
dados com fins comerciais e que muitos engenheiros e superviso-
res da empresa revisaram o código-fonte e os documentos associa-
dos ao projeto. (EPIC, 2014 apud ZUBOFF, 2018, p. 28-29).

A Google firmou um acordo de 7 milhões de dólares, o que, para


uma empresa desse porte, não significa nada (ZUBOFF, 2018, p. 29).
Outro exemplo pode ser tirado da Uber. Segundo o jornal The New
York Times, a Uber passou a adotar vídeos de filmagens dentro dos

256
veículos para resolver disputas entre motoristas e passageiros e

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


melhorar a segurança. Assim, a empresa passou a registrar alguns
passeios como parte de uma ampla iniciativa para capturar dados
mais objetivos sobre o que acontece dentro dos veículos.
Por vários meses, alguns passageiros da Uber no Texas foram gra-
vados em vídeo, quando foram levados para seus destinos. O vídeo
foi armazenado online e poderia ter sido analisado por membros da
equipe de segurança da Uber se o motorista tivesse relatado um
problema com o passageiro.

As gravações de vídeo fazem parte de uma ampla iniciativa da empresa


de carona para capturar dados mais objetivos sobre o que acontece
dentro dos veículos durante as viagens da Uber, onde disputas entre
pilotos e motoristas geralmente acontecem sem testemunhas.

A Uber sofreu anos de reclamações sobre a segurança de seus


passageiros e motoristas, que costumam resolver episódios
sem a ajuda da empresa, e resolveu ações alegando que faz o
suficiente para proteger os passageiros. Mas, à medida que a
Uber aumenta a prática de gravar motoristas e passageiros, a
empresa enfrenta novas pressões sobre a privacidade. “A Uber
já possui esse tesouro de dados altamente pessoais sobre pes-
soas”, disse Camille Fischer, advogada da Electronic Frontier
Foundation. “Quando você monitora a vigilância durante essas
viagens, seja sobre o motorista ou sobre o passageiro, você
obtém uma imagem mais detalhada da vida diária das pessoas”.
(CONGER, 2019, online).

Com requinte jurídico e linguístico, as empresas de plataformas


digitais, a fim de se apropriarem de um trabalho desprotegido e
dos dados sensíveis aos seus “apps”, tentam se mostrar inseridas
no modelo de economia solidária e passar a ideia de consumo cola-
borativo, mas o que se mostrará a seguir é que, na verdade, há o
refinamento do panóptico de Bentham, numa mescla da sociedade
da disciplina de Foucault e do controle de Deleuze.
Portanto, seu “modus operandi consiste em fazer incursões em ter-
ritórios privados não protegidos até que alguma resistência seja
encontrada” (ZUBOFF, 2018, p. 30). A empresa “coloca a inovação à
frente de tudo e resiste a pedir permissão” (D. STREITFELD, 2018
apud ZUBOFF, 2018, p. 30). Ela, portanto, “esgota seus adversários no
tribunal ou eventualmente concorda em pagar multas que represen-
tam um investimento negligenciável para um retorno significativo”

257
(ZUBOFF, 2018, p. 30). Essa prática é denominada por alguns de
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

“imperialismo de infraestrutura” (S., 2011 apud ZUBOFF, 2018, p. 30).


Diante dessa nova lógica de acumulação adotada por empresas
como a Google,
populações não são mais necessárias como fonte de clientes
ou funcionários. Os anunciantes são seus clientes, junto com
outros intermediários que compram suas análises de dados.
(ZUBOFF, 2018, p. 37).

Nas palavras de Varian, chief economist da Google (H.R. apud


ZUBOFF, 2018, p. 41):
Como as transações são agora mediadas pelo computador, podemos
observar comportamentos que anteriormente não eram observá-
veis e redigir contratos sobre esses comportamentos.
De acordo com ele,
se alguém parar de pagar as parcelas mensais do carro, o credor
pode “instruir o sistema de monitoramento veicular a não per-
mitir que o veículo seja iniciado e sinalizar o local onde ele pode
ser retirado”. As companhias de seguros, ele sugere, podem con-
tar com sistemas de monitoramento similares para verificar se
os clientes estão dirigindo com segurança e, assim, determinar
se devem ou não manter o seguro dele ou lhe pagar o prêmio da
apólice. Ele também sugere que se podem contratar agentes locais
remotos para executar tarefas e usar dados de seus smartphones –
geolocalização, marcação de honorário, fotos – para “provar” que
eles realmente realizaram suas atividades conforme previsto no
contrato. (O.E., 1885 apud ZUBOFF, 2018, p. 41).

Big Other é o nome de batismo dessa nova arquitetura universal que


existe em algum lugar entre a natureza e Deus e se configura como
um ubíquo regime institucional em rede e que registra, modifica e
mercantiliza a experiência cotidiana das pessoas, desde o uso de um
eletrodoméstico, de seus próprios corpos, da comunicação do pensa-
mento, tudo com vista a estabelecer novos caminhos para a moneti-
zação e o lucro. O Big Other é o poder soberano de um futuro próximo
que aniquila a liberdade alcançada pelo Estado Democrático de Direito.
É um novo regime de fatos independentes e independentemente con-
trolados que suplanta a necessidade de contratos, de governança e o
dinamismo de uma democracia de mercado (ZUBOFF, 2018, p. 43-44).

258
De acordo com a autora,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


o Big Other existe na ausência de uma autoridade legítima e é em
grande parte livre de detecção ou de sanções. Nesse sentido, o Big
Other pode ser descrito como um golpe automatizado de cima: não
um coup d’État, 4 mas sim um coup des gens.5 (ZUBOFF, 2018, p. 49).

A mesma conclusão se mostra em relação ao meio ambiente de tra-


balho. Devido a essa nova arquitetura, o trabalhador já não mais
consegue sair da vigilância constante de seu empregador, por isso
fala-se em um panóptico pós-moderno, que extrapola os limites da
fábrica e adentra na subjetividade. O algoritmo não só sabe o que a
pessoa deseja como usa seus dados para criar desejos nela; isso se
dá porque hoje, mesmo fora do trabalho, é possível – via internet de
um modo geral, WhatsApp, Instagram, Facebook e até mesmo via
aplicativos (controle digital exercido por empresas como a Uber) –
seu controle e sua vigilância.
O avanço tecnológico contribuiu para a aparição de uma subordi-
nação por algoritmos, em que o controle já não se faz mais por hora
e sim via aplicativo (TEODORO et al., 2017, p. 18). Alain Supiot fala
em uma nova subordinação, dissimulada, pois se torna mais severa
e eficaz do que aquela imposta diretamente pelo chefe de seção, no
antigo “chão de fábrica”, quando o empregado estava sujeito apenas
aos atentos olhos do seu superior hierárquico, dentro do seu horá-
rio de trabalho (SUPIOT, 2000, p. 32 apud MOREIRA, 2016, p. 12).
Nesse sentido, o panóptico de Bentham, em sua acepção original, não
é capaz de ser comparado com essa nova arquitetura. Isto porque, no
panoptismo de Bentham, o controle poderia ser extinto no momento
em que a pessoa desocupasse aquele lugar físico e, de acordo com a
autora, nessa nova arquitetura, não existe essa possibilidade:
Mesmo o panóptico do projeto de Bentham [...] é prosaico em com-
paração com essa nova arquitetura. O panóptico era um projeto
físico que privilegiava um único ponto de observação. A confor-
midade antecipada que ele induzia exigia a produção de compor-
tamentos específicos em quem estivesse dentro do panóptico,
mas esse comportamento poderia ser deixado de lado uma vez
que a pessoa abandonasse esse lugar físico. Na década de 1980,

4 “Golpe de Estado”, em francês.


5 “Golpe das pessoas”, em francês.

259
o panóptico constituiu-se como uma metáfora adequada para os
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

espaços hierárquicos do local de trabalho. Em um mundo organi-


zado segundo os pressupostos de Varian, os habitat dentro e fora
do corpo humano estão saturados de dados e produzem oportuni-
dades radicalmente distribuídas para a observação, interpretação,
comunicação, influência, predição e, em última instância, modi-
ficação da totalidade da ação. Ao contrário do poder centralizado
da sociedade de massa, não existe escapatória em relação ao Big
Other. Não há lugar para estar onde o Outro também não está.
(ZUBOFF, 2018, p. 43-44).

De certa forma, como já citado, a tecnologia é um grande paradoxo:


ao mesmo tempo que ela liberta – pois permite acesso a todo e
qualquer tipo de informação em uma velocidade nunca imaginada
antes, possibilitando o contato com qualquer pessoa, a qualquer
tempo, de qualquer lugar do mundo –, ela aprisiona – pois, quando
se experimenta um fruto proibido, passa a ser impossível a vivên-
cia sem ele (ZUBOFF, 2018, p. 50) e então as pessoas se tornam cada
vez mais dependentes, mais controladas, mais vigiadas, mais alie-
nadas, convertendo-se em “fantoches” de um sistema que coleta
seus dados o tempo inteiro.

3 · A atualidade do panóptico de Bentham


O panóptico de Jeremy Bentham era o local em que os aparta-
mentos dos prisioneiros permaneciam em uma circunferência
enquanto o apartamento do inspetor permanecia no centro dentro
de um edifício circular. O prisioneiro, portanto, permanecia cons-
tantemente vigiado pelos olhos do inspetor (NUNES, 2018, p. 164).
A ideia era a de que, “quanto mais constantemente as pessoas a serem
inspecionadas estivessem sob a vista das pessoas que deviam inspe-
cioná-las, mais perfeitamente o propósito do estabelecimento seria
alcançado”. Para Bentham a “perfeição ideal, se esse fosse o objetivo,
exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante
cada momento do tempo” (BENTHAM et al., 2008, p. 20).
De acordo com Jeremy Bentham, o panóptico seria aplicável a “qual-
quer sorte de estabelecimento no qual pessoas de qualquer tipo neces-
sitem ser mantidas sob inspeção” (BENTHAM et al., 2008, p. 15).
Não importa quão diferentes, ou até mesmo quão opostos, sejam
os propósitos: seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, refor-
mar o viciado, confinar o suspeito, empregar o desocupado, manter
260
o desassistido, curar o doente, instruir os que estejam dispostos em

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


qualquer ramo da indústria, ou treinar a raça em ascensão no cami-
nho da educação, em uma palavra, seja ele aplicado aos propósitos
das prisões perpétuas na câmara da morte, ou prisões de confina-
mento antes do julgamento, ou casas penitenciárias, ou casas de cor-
reção, ou casas de trabalho, ou manufaturas, ou hospícios, ou hospi-
tais, ou escolas. (BENTHAM et al., 2008, p. 19-20, grifos do original).

Diante da análise da forma de poder exercida no panoptismo de


Bentham, Foucault posteriormente estabeleceu três instrumentos:
a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame, o qual
combina os dois primeiros instrumentos – as técnicas da hierar-
quia que vigia e as da sanção que normaliza. O exame é então um
controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, clas-
sificar e punir, conseguindo diferenciar e sancionar os indivíduos
através da visibilidade, sendo por isso que, em todos os dispositivos
de disciplina, o exame é altamente ritualizado. O exame reúne em
si a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração
da força e o estabelecimento da verdade.
No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos
que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujei-
tam. A superposição das relações de poder e das de saber assume
no exame todo o seu brilho visível. (FOUCAULT, 1987, p. 154).

A combinação desses instrumentos possibilitou uma influência


direta e significativa sobre os indivíduos sem a necessidade da
força física, tornando real a possibilidade de “moldar e converter
um indivíduo da condição de um potencial inimigo à de um indi-
víduo útil para a sociedade na qual está inserido” (GUANDALINI;
TOMIZAWA, 2013, p. 28).
Michel Foucault, ao analisar a arquitetura do panóptico de Jeremy
Bentham, em que ele se inspirou, diz que esta tem “o efeito de indu-
zir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade,
que assegura o funcionamento automático do poder”. Uma arquite-
tura capaz de “criar e sustentar uma relação de poder independente
daquele que o exerce”. Foucault ainda esclarece que, em relação ao
vigiado, o “essencial é que ele se saiba vigiado [...]”, uma vez que “ele
não tem a necessidade de sê-lo efetivamente”. Além disso ele “é visto
mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comuni-
cação”. De acordo com o autor, através do panoptismo, “uma sujeição
real nasce mecanicamente de uma relação fictícia”. Para Foucault,
o panóptico tem como “efeito negativo – evitar aquelas massas,
261
compactas, fervilhantes, pululantes, que eram encontradas nos
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

locais de encerramento [...]” (FOUCAULT, 1987, p. 166-167).


Ainda esclarece o autor que “o panóptico pode ser utilizado como
máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, trei-
nar ou retreinar os indivíduos”6 (FOUCAULT, 1987, p. 168). Trata-se
de um mecanismo de poder em que “sua força é nunca intervir, é se
exercer espontaneamente e sem ruído, é construir um mecanismo
de efeitos em cadeia” (FOUCAULT, 1987, p. 170).
Foucault diz que o “panoptismo é o princípio geral de uma nova
‘anatomia política’ cujo objeto e fim não são a relação de soberania,
mas as relações de disciplina” (1987, p. 172). As disciplinas, para o
autor, “funcionam cada vez mais como técnicas que fabricam indi-
víduos úteis” (1987, p. 174).
A sociedade disciplinar, conforme Foucault (1995, p. 42), é
um mecanismo de poder que permite extrair dos corpos tempo e
trabalho, mais do que bens e riqueza. É um tipo de poder que se
exerce continuamente por vigilância e não de forma descontínua
por sistemas de tributos e de obrigações crônicas [...].

Essa extração do “máximo de tempo e de forças” deve-se ao fato de


que as disciplinas se obrigam a
fazer crescer a utilidade singular de cada elemento da multiplici-
dade, mas por meios que sejam mais rápidos e menos custosos, ou
seja, utilizando a própria multiplicidade como instrumento desse
crescimento [...]. (FOUCAULT, 1987, p. 181).

6 A propósito da moldagem de comportamentos, sugere-se o estudo da


experiência de Pavlov sobre o condicionamento clássico, que consiste na
associação de um estímulo inicialmente neutro com um estímulo significativo.
De acordo com o experimento, o cão que salivava originalmente para comida
na boca, pode passar a salivar para uma sineta através de um condicionamento.
“Uma possível explicação para isso é que um estímulo ‘gustativo’ ou ‘apetitivo’
(comida) elicia uma resposta gustativa que, através da produção de estímulos,
auto-estimula o cão. Essa auto-estimulação elicia a resposta de salivar”. Depois
do condicionamento – quando a sineta é tocada antes do ato de se alimentar –,
o estímulo auditivo (sineta), originalmente neutro, passa a eliciar a resposta
salivar. Isto é, após associar o estímulo gustativo com o estímulo auditivo, o
estímulo auditivo que era anteriormente neutro, passa a eliciar respostas
gustativas após um devido tempo de condicionamento. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/%0D/ptp/v18n2/a03v18n2.pdf. Acesso em: 24 jul. 2019.

262
Com a crise dos confinamentos, refina-se a sociedade disciplinar

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


pela sociedade do controle de Gilles Deleuze, seu categorizador. A
sociedade de controle é mais bem explicada como uma mutação
do capitalismo do que como uma evolução tecnológica simples-
mente. Deleuze esclarece que as sociedades de controle operam
por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática
e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo é a
pirataria e a introdução de vírus. Se o capitalismo do século XIX é
de concentração e erige a fábrica como um meio de confinamento,
tendo o capitalista como o proprietário dos meios de produção, o
capitalismo mutante, que gera a sociedade de controle, é de sobre-
produção, não compra mais matéria-prima e já não vende produtos
acabados, mas sim quer vender serviços e comprar ações. Enquanto
aquele se dirigia para a produção, este se dirige para o produto,
seja para a venda, seja para o mercado, apresentando-se dispersivo,
fazendo a fábrica ceder lugar à empresa (DELEUZE, 1992, p. 3).
As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle, e não
mais por formação de disciplina, por fixação de cotações mais do
que por redução de custos, por transformação do produto mais do
que por especialização do produto [...] O marketing é agora o ins-
trumento de controle social, e forma a raça imprudente dos nos-
sos senhores. O controle é de curto prazo e rotação rápida, mas
também contínuo e ilimitado, ao passo que disciplina era de longa
duração, infinita e descontínua. (DELEUZE, 1992, p. 3).

Nos tempos atuais, com o desenvolvimento tecnológico, a vigilância


se faz também de forma eletrônica “dentro de um contexto organi-
zacional por meio de dispositivos tecnológicos diversos como câme-
ras, microfilmes ou computadores [...]” (DE SOUZA; MUÇOUÇAH,
2018, p. 7), bem como via internet, incluindo suas redes sociais –
WhatsApp, Instagram, Facebook –, e até mesmo aplicativos (controle
digital exercido por empresas como a Uber), diante de um cenário
em que poucos vigiam muitos, em uma sociedade expectadora
(MATHIESEN, 1998 apud GUANDALINI; TOMIZAWA, 2013, p. 37).
Este monitoramento nas relações de trabalho tem como objetivos,
exemplificadamente, a neutralização de conflitos, a dominação
da força de trabalho e uma maior produtividade e lucratividade.
Chaves Júnior (2017) explica que, na sociedade de controle, o poder
empregatício descola-se da disciplina corporal e do tempo de tra-
balho para o controle da alma e do marketing.

263
Ao controle já não interessa o confinamento dentro da fábrica,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

dentro de uma jornada fixa, dentro de uma disciplina linear, de


um vínculo jurídico estável, mas, sim, de um vínculo etéreo, nas
nuvens, pós-contratualista, pós-material. Emerge o contrato reali-
dade-virtual. (CHAVES JÚNIOR, 2017, n. p.).

Com a nova lógica de acumulação, a


“realidade” é agora subjugada à mercantilização e à monetarização
e renasce como “comportamento”. Os dados sobre os comporta-
mentos dos corpos, das mentes e das coisas ocupam importante
lugar em uma dinâmica compilação universal em tempo real de
objetos inteligentes no interior de um domínio global infinito de
coisas conectadas. (ZUBOFF, 2018, p. 56).

Visando o lucro e o controle, o fenômeno é capaz de criar, moldar e


até mesmo modificar os comportamentos das pessoas e das coisas,
transformando os desejos, os hábitos, as necessidades e a subjetivi-
dade da pessoa em uma nova moeda do capital.
Estabelece-se, ao mesmo tempo, uma técnica de poder e um processo
de saber, cuja intenção é a de dominar a diversidade, impondo-lhe
uma ordem (DE SOUZA; MUÇOUÇAH, 2018, p. 2). E assim parece se
apresentar a nova realidade num panóptico pós-moderno, em que a
vigilância se apura e passa a também captar os dados sensíveis ao
processo para deles se utilizar. Nas relações de produção, cria uma
dupla apropriação da empresa em relação ao seu trabalhador: pri-
meiro pela extração da força de trabalho; segundo pela extração de
sua subjetividade, através dos seus gostos, desejos, hábitos de con-
sumo, para então se apropriar pela terceira vez, oferecendo à pessoa
exatamente aquilo que ela procura, como num passe de mágica.
Enfim, o que chamamos de panóptico dito pós-moderno invade a
subjetividade do indivíduo, seja como trabalhador, seja como con-
sumidor, captando seus hábitos e desejos, inclusive em seu tempo
de descanso e lazer e, por meio de tais mecanismos, cria necessida-
des artificiais e as vende às pessoas, passando inclusive a ideia de
que não são empregadas, mas empresárias de si mesmas.

4 · Considerações finais: uma mais-valia pós-moderna?


No capitalismo da modernidade sólida (BAUMAN, 2001), o traba-
lhador aliena sua força de trabalho para terceiro em troca de uma

264
contraprestação, e o capital, através do excedente da força de tra-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


balho, extrai o que Marx denomina de mais-valia.
Na nova lógica de acumulação, típica da modernidade líquida
(BAUMAN, 2001) ou tardia (BECK, 2011), o capital passa a se apro-
priar de outros meios de produção, não necessariamente mate-
riais. Esse sistema capitalista de produção se refina de modo que
passa a auferir seus lucros através da extração dos dados das
pessoas, inaugurando um novo modelo de produção, num movi-
mento disruptivo. Esses indivíduos, por sua vez, alienam seus
dados, sem normalmente saber para quem, para onde irão e como
isso poderá afetar as suas vidas.
E é da mesma forma que o trabalhador, constantemente contro-
lado, dentro e fora do trabalho, aliena não só seus dados mas tam-
bém sua subjetividade, sua privacidade, seu direito a desconexão,
seu tempo de lazer e, logo, sua felicidade e sua liberdade.
O desgaste psíquico parece ser a consequência dessas novas for-
mas de gestão do trabalho, marcadas por uma época de acumu-
lação flexível, em que há alta exigência por produtividade e ritmo
de trabalho acelerado. Diante da subordinação acentuada à tecno-
logia e às formas de vigilância, eliminam-se os períodos de des-
canso (VAPIANA et al., 2018).
O empregador, portanto, através do controle excessivo, busca
extrair uma maior produtividade de seu trabalhador bem como
um maior lucro e, ao eliminar o tempo improdutivo do trabalha-
dor, cria uma nova moeda do sistema capitalista através do pro-
duto da cooperação social.
Assim como a Google, o Instagram, o Facebook, entre outros – que
constantemente capturam as subjetividades de seus usuários em
troca de lucro –, a empresa tradicional também aprendeu a captu-
rar as subjetividades de seus trabalhadores. Nesse “novo discurso,
a fim de dissimular a estrutura de classes e conquistar o corpo e a
alma dos trabalhadores”, “os empregados tornam-se colaboradores”
(COUTINHO, 2019, p. 5-6). E, portanto,
pode dizer[-se] que o trabalho rouba ainda mais as felicidades,
invade ainda mais as subjetividades e – no limite – pode inviabili-
zar até mesmo a possibilidade que temos de nos desconectar dele.
(VIANA; TEODORO, 2017, p. 313).

265
O trabalhador despossuído de sua própria subjetividade vivencia
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

uma falsa autonomia e uma verdadeira “Síndrome do Patrão”7 e


esta, como toda síndrome, também gera efeitos nocivos. O primeiro
consiste no esvaziamento do Direito do Trabalho, pois, quando os
trabalhadores não se reconhecem como membros da classe traba-
lhadora, perdem o sentimento de pertencimento, em nome de um
sonho falacioso de ser “patrão” e ganhar mais dinheiro, o que retira
a eficácia das normas e enfraquece esse ramo especializado. O
segundo efeito consiste em o próprio trabalhador se voltar contra o
Direito do Trabalho; afinal, ele, através de uma visão individualista
e egoísta, observa tão somente o que é bom para si a curto prazo
e de maneira imediata, sem se perceber como membro de uma
classe, cuja luta necessita de sua participação (TEODORO, 2015).
Segundo o autor Milton Santos,
como essa ordem desordeira é global, inerente ao próprio processo
produtivo da globalização atual, ela não tem limites; mas não tem
limites porque também não tem finalidades e, desse modo, nenhuma
regulação é possível, porque não desejada. (SANTOS, 2001, p. 86).

É preciso, portanto, um enorme esforço perante todos os operado-


res do Direito, bem como uma mudança de perspectiva e horizonte
ético de apreciação das relações laborais – para que sejam verda-
deiras relações de poder – pelos seus próprios atores, para que se
imponham limites a essa nova lógica de acumulação capitalista,
marcada pelo excesso de vigilância e controle da sociedade, seja
dos usuários, seja dos trabalhadores.
Ademais, conforme explica Pez (2008, p. 11), de acordo com Foucault,
o exercício da liberdade “é um exercício de poder, ou seja, não há
exercício de poder onde não há possibilidade de ação e [...] não há
exercício de liberdade onde não há exercício de poder”.

7 A “Síndrome de Patrão” – em analogia à Síndrome de Estocolmo – surge ou


na vigência da relação contratual – em que o empregado internaliza a ideia de
que “está” empregado, mas que não “será” por muito tempo –, ou nas situações
em que empregado considera mais “vantajoso” patrimonialmente pedir sua
rescisão contratual e constituir sua própria empresa – pejotizando-se em
alguns casos –, passando assim a ser “chefe” tanto de si mesmo como dos
outros – seus futuros empregados –, ou ainda através da internalização da
ideologia da School of Life, pela qual “quem ama o que faz” acaba se tornando
um trabalhador mais dócil e facilmente submetido a condições precárias de
trabalho. (TEODORO, 2015).

266
Logo, em um ambiente de vigilância por parte do empregador,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


somente haverá uma relação de poder quando o empregado desem-
penhar um papel ativo – tanto de aceitação quanto de subversão
– diante dessa vigilância. Caso contrário, não será uma relação de
poder, e sim uma mera coerção. E, não havendo exercício de poder,
não há exercício de liberdade.
Apesar de poder haver pequenos momentos de prazer, como o tra-
balho está na esfera da necessidade, não há que se falar em liber-
dade. Isso porque, diferentemente do contrato civilista, o contrato
de trabalho tem como característica de sua própria essência o poder
diretivo, e é por isso que, “diferentemente da contratualidade civi-
lista, na esfera laboral a liberdade pode esconder uma verdadeira
necessidade” (VIANA; TEODORO, 2017, p. 315). E é dentro da esfera
da necessidade que o contrato de trabalho se aproxima muito mais
do contrato consumerista do que do civilista. Isto porque
o próprio fornecimento e consumo de produtos e serviços, indis-
pensáveis para um viver digno dos consumidores, dentro dos
padrões capitalistas, leva esse contrato a ser menos fruto da esco-
lha e da vontade e muito mais resultado da subordinação do con-
sumidor às suas necessidades. (VIANA; TEODORO, 2017, p. 319).

Na mesma linha, adverte Bauman que


a liberdade do consumidor significa uma orientação da vida para
as mercadorias aprovadas pelo mercado, assim impedindo uma
liberdade crucial: a de se libertar do mercado, liberdade que sig-
nifica tudo menos a escolha entre produtos comerciais padroniza-
dos. (BAUMAN, 1999, p. 277).

Assim, se o consumo pressupõe a renda, esta pressupõe o trabalho.


O capitalismo, permeado pela lógica da destruição criadora, acabou
por moldar, passo a passo – ao longo do tempo –, o perfil dos con-
sumidores e, antes deles, dos próprios trabalhadores, transpondo
o trabalho para o terreno da necessidade, quando não da própria
existência humana (VIANA; TEODORO, 2017, p. 320).
E é porque a “necessidade de consumir, tal como a necessidade
de trabalhar para o outro, são faces da mesma moeda […]” que
tanto uma quanto outra
estão presentes na própria lógica capitalista, em sua essência. Ao
subtrair dos trabalhadores os seus meios de produção, o sistema

267
os tornou necessariamente dependentes do emprego e do consumo.
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

(VIANA; TEODORO, 2017, p. 320, grifo do original).

Partindo dessa premissa para as relações de trabalho, por estas e


outras razões, é que se vislumbra, no agir e na tomada de consci-
ência dos atores das relações de trabalho, desde uma perspectiva
e horizonte do operariado (precariado, se preferir), poder-se-iam
alcançar não somente possíveis soluções para o excesso de con-
trole e vigilância, permitindo maior eficácia horizontal dos direi-
tos sociais albergados na Constituição da República e resgatando
a ética e a dignidade das relações laborais, para que voltem a ser
relações de poder e deixem de ser relações de coerção, como ora se
delineia o trabalho em exatos tempos de modernidade líquida ou
pós-modernidade, paradoxalmente, passando a impressão de que
se está a involuir e a desmoronar o Estado Democrático de Direito.

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271
Algumas considerações sobre
segurança e saúde dos trabalhadores
no trabalho 4.0

Teresa Coelho Moreira


Professora de Direito da Universidade do Minho, em
Portugal. Doutora em Direito.

Resumo: Atualmente, a Inteligência Artificial veio para ficar e incide sobre


inúmeros aspetos da vida das pessoas em geral e dos trabalhadores em
especial desde o momento de formação do contrato de trabalho, passando
pela execução do mesmo e terminando na sua cessação, surgindo novas
formas de prestar trabalho. E os trabalhadores que efetuam estas
atividades estão sujeitos a vários riscos para a segurança e a saúde no
trabalho. Pretende-se neste artigo abordar alguns desses riscos.

Palavras-chave: Inteligência Artificial. Segurança. Saúde. Riscos.

Abstract: Nowadays, Artificial Intelligence is in our daily lives and


workers in particular from the time the contract is formed, through its
execution and termination. With the AI comes new ways of performing
work. And workers who perform these activities are subject to huge risks
to their safety and health at work. This article is intended to address
some of these risks.

Keywords: Artificial Intelligence. Safety. Health. Risks.

1 · Introdução
O progresso da humanidade está, muitas vezes, associado ao fas-
cínio perante a ciência e a tecnologia por originarem inovações
que fazem avançar a humanidade: da roda ao microprocessador,
do ábaco ao computador, da imprensa escrita à internet e à web,

273
inter alia.1 E, atualmente, a Inteligência Artificial2 veio para ficar
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

e incide sobre inúmeros aspetos da vida das pessoas em geral


e dos trabalhadores em especial desde o momento de formação
do contrato de trabalho,3 passando pela execução do mesmo4 e
terminando na sua cessação.5 A própria União Europeia, num
documento de 8 de abril de 2019 sobre Orientações Éticas para
uma IA de Confiança, estabeleceu que se deveria defender sem-
pre o respeito pela autonomia humana, pela transparência, pela
privacidade e pela proteção de dados pessoais das pessoas, asse-
gurando a defesa da igualdade e a proibição da discriminação,

1 Ver o esquema com diferentes fases de evolução apresentado em: RODES;


PIEJUT; PLAS, 2003, p. 11.
2 Há que referir que não existe um conceito unívoco de Inteligência Artificial,
principalmente porque tem de relacionar-se com outro conceito que também
é difícil de definir e que é o de inteligência humana, e que esta coloca várias
questões que ultrapassam, largamente, o âmbito deste nosso artigo, mas,
apenas para referir algumas, desde logo a questão da proteção e propriedade
dos dados que constituem a base de trabalho para a Inteligência Artificial;
ou questões relativas à responsabilidade, por exemplo, no caso dos carros
autónomos; ou o direito à privacidade, porque todos vamos deixando uma
série de pistas digitais que permitem a comparação à entrada de determinados
locais de uma cópia digitalizada e a imagem da pessoa em causa e, em especial,
no caso das relações de trabalho, o trabalhador encontra-se, por esta via,
amplamente radiografado, e informações colocadas online podem perdurar no
ciberespaço por muito tempo, correndo o risco de ficarem completamente
desatualizadas e com a inerente descontextualização dos dados. De notar,
contudo, que o conceito está relacionado com o comportamento que uma
máquina teria e que seria chamado inteligente se fosse feito por humanos, e,
já em 1950, Alan Turing questionou sobre se as máquinas poderiam pensar.
3 Através de novas formas de contratação online, inter alia, com o recurso a um
novo tipo de entrevistas, ou de recurso a plataformas digitais de emprego.
4 Através de, inter alia, um novo tipo de formação ao longo da vida, de um novo
controlo, o controlo eletrónico/digital, um novo tempo de trabalho, ou de um
novo tipo de Direito Coletivo.
5 Ver, para maiores desenvolvimentos, inter alia: INTERNATIONAL LABOUR
ORGANIZATION. Work for a brighter future – Global Commission on the Future
of Work. Geneva: ILO, 2019; CUATRECASAS – INSTITUTO DE ESTRATEGIA
LEGAL EN RRHH. Inteligencia artificial y sus impactos en los recursos humanos y
en el marco regulatorio de las relaciones laborales. Madrid: Wolters Kluwer España,
2018; GARCÍA NOVOA, César; SANTIAGO IGLESIAS, Diana (dir.). 4ª Revolución
Industrial: impacto de la automatización y la inteligencia artificial en la sociedad
y la economía digital. Cizur Menor: Thomson Reuters Aranzadi, 2018; e WORLD
ECONOMIC FORUM. The future of jobs report. Geneva: WEF, 2018.

274
defendendo sempre a pessoa humana nas suas várias vertentes.

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


A própria OIT sustentou o mesmo quando propugna que se deve
fazer uma “uma abordagem da inteligência artificial baseada no
‘ser humano no comando’, que garanta que decisões finais que
afetem o trabalho sejam tomadas por seres humanos”.

2 · Alguns riscos para a segurança e a saúde dos


trabalhadores no trabalho 4.0
Os trabalhadores que efetuam atividades nessas novas formas de
prestar trabalho estão sujeitos a vários riscos para a segurança e
a saúde no trabalho, e estes existem quer sejam verdadeiros tra-
balhadores, quer sejam autónomos, quer tenham contratos equi-
parados a contratos de trabalho, nos termos do art. 10º do Código
do Trabalho Português, aplicando-se-lhes o regime legal a nível
da segurança e saúde no trabalho.
Na verdade, há uma combinação de fatores que está a aumentar
os desafios, e tem de tentar-se evitar o aumento dos riscos físi-
cos e psíquicos desde logo porque não se pode esquecer de que há
alterações demográficas importantes que alteram o mundo do tra-
balho e há a necessidade de assegurar políticas ativas proactivas
que auxiliem neste Novo Mundo do Trabalho. As pessoas estão a
reformar-se cada vez mais tarde, e o facto de muitos dos sistemas
de segurança social serem privados não ajuda a esta questão. Por
outro lado, em muitas destas formas de prestar trabalho dominam
a informalidade e a precariedade, o que não auxilia nada o acesso
dos mesmos a programas de saúde e segurança no trabalho.
Por outro lado, os problemas mentais e físicos afetam comporta-
mentos dos trabalhadores e a própria gestão das empresas. Se pen-
sarmos que um em cada seis trabalhadores europeus já teve algum
problema de foro mental, são cerca de 84 milhões; que a doença
diabetes tipo 2 está a aumentar afetando cerca de 10% da popu-
lação europeia; que 53,1% dos adultos na Europa sofrem de peso
a mais e obesidade muito relacionada com estas novas formas de
prestar trabalho, sobretudo o crowdwork online ou mesmo o teletra-
balho, vemos a necessidade de agir e de atuar. Todas estas situa-
ções trazem inúmeros custos sociais e económicos.6

6 Ver, para maiores desenvolvimentos: EUROPEAN UNION, 2019, p. 25.

275
Nestas novas formas de prestar trabalho, existem inúmeros novos
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

riscos e possibilidade de aumento de alguns anteriores, mas tam-


bém há certa diminuição de alguns riscos tradicionais. Assim, por
um lado, a possibilidade de automatização de uma série de tarefas
pode originar uma diminuição da existência de ambientes perigosos
para a saúde dos trabalhadores. Contudo, esta automatização pode
trazer consigo riscos diferentes associados a um enorme controlo e
transparência, e pela utilização cada vez maior de algoritmos.
Na verdade, atualmente, alguns dos problemas mentais que os tra-
balhadores enfrentam são semelhantes aos de natureza física do
século XIX quando a industrialização alterou a forma de trabalhar.
O aumento do controlo sobre os trabalhadores, a necessidade de ter
de estar constantemente online e disponível, a mudança frequente
de atividades e de trabalhos e o controlo através de algoritmos ele-
vam, e muito, os níveis de stress dos trabalhadores.7
Assiste-se, contudo, a uma diferença a nível dos riscos psicos-
sociais porque há uma mudança bastante importante no tipo
de trabalho, no local de trabalho e na forma como o mesmo é
gerido. Há um desaparecimento cada vez maior entre as fron-
teiras da vida profissional e da vida pessoal com um controlo
cada vez maior associado à ubiquidade destas tecnologias e ao
trabalho nas plataformas digitais. Existe, sem dúvida, um novo
tipo de controlo, o controlo eletrónico do trabalhador, controlo
este desverticalizado, objetivo, incorporado na máquina e no sis-
tema com o qual interage, tornando-se um controlo à distância,
em tempo real, com uma enorme capacidade de armazenamento,
apto a memorizar, cruzar e reelaborar detalhadamente muitos
dos comportamentos dos trabalhadores.
Considera-se, assim, que as características das novas tecnologias
aplicadas à relação laboral estão a permitir a substituição de um
controlo periférico, descontínuo e parcial, realizado pela hierar-
quia humana, por um controlo centralizado e objetivo, incorporado
na máquina, que se verifica em tempo real, originando o apareci-
mento de um novo e sofisticado tipo de controlo que consiste na
reconstrução do perfil do trabalhador, através do armazenamento
e reelaboração de uma série de dados aparentemente inócuos.

7 EUROPEAN UNION, 2019, p. 37.

276
As novas formas de controlo tornaram-se também automáticas,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


não estando os supervisores limitados pelo que podem ver, mas
pela quantidade de dados e de aspetos que conseguem recolher
através do controlo exercido pelos algoritmos. O controlo torna
toda a realidade transparente, provocando a visibilidade do que até
aí era ignorado ou invisível. O olho eletrónico8 torna-se omnipre-
sente e mecânico, conduzindo a sensações de controlo total que
podem alterar os sentimentos do trabalhador e provocar o seu
medo pelo facto de não estar confinado espacialmente ao local de
trabalho, podendo estender-se para outros locais, inclusive sítios
muito íntimos, e por não ter barreiras temporais.9
Por outro lado, o facto de a remuneração não ser contínua, mas à
peça, atendendo a cada microtarefa que realizam, aumenta a pres-
são de tempo. Acresce a isto o facto de que há uma enorme preca-
riedade no pagamento, já que, em alguns casos, mesmo após exe-
cutado o trabalho, este pode ser considerado inaceitável e não pago
pelo cliente, devido à cláusula de satisfação. Na verdade, a intensi-
dade de trabalho, com prazos apertados ou a baixo preço por uni-
dade, sem quaisquer pausas, acarreta a exaustão física e mental de
quem presta os serviços.
Na verdade, os custos com a segurança e a saúde no trabalho são
externalizados para os trabalhadores porque eles não recebem
nada se estiverem doentes e, por isso, têm o ónus de “não terem
direito a ficarem doentes”.
Acresce ainda a falta de uma formação adequada que aumenta
ainda mais o risco de acidentes, até porque muitas das atividades
tipicamente exercidas por trabalhadores das plataformas digitais
pertencem a tarefas que são consideradas particularmente perigo-
sas, como a construção e o transporte.
Na verdade, há uma possibilidade de aumento de potenciais aci-
dentes, não somente pela falta de formação, mas também pela
ausência de clareza na especificação do trabalho, de equipamen-
tos ou de vestuário de segurança. As interrupções e as distrações
com os alertas enviados pela plataforma, durante a execução de um

8 Alusão à obra de Lyon (1994).


9 Para maiores desenvolvimentos, ver: MOREIRA, 2016.

277
serviço, podem ser fatais dependendo da atividade do trabalhador,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

como é o caso do motorista ou do rider. Por outro lado, a interpe-


netração das atividades laborais e não laborais também dificulta a
concentração no trabalho, bastando imaginar quando o trabalho é
realizado no domicílio do trabalhador.
Não apenas. Faltam por vezes as qualificações necessárias e até
exigidas por lei para certos tipos de atividades.
Existem ainda riscos físicos, para além dos psicológicos, associados
a uma exposição permanente a campos eletromagnéticos, fadiga
visual e problemas musculoesqueléticos.
A questão fundamental é que a natureza dos riscos depende cla-
ramente das circunstâncias em que o trabalho é efetuado e que
estão relacionadas com a ausência de uma regulamentação jurí-
dica sobre estas, o tipo de plataformas, a natureza da atividade que
vai ser desenvolvida, o modo e o local desta, as condições de tra-
balho, como o tempo de trabalho, o eventual desfasamento entre
a qualificação do trabalhador e a atividade que lhe é atribuída e o
mercado mundial em que compete.10 E a digitalização, sem dúvida,
traz inúmeros novos riscos e desafios ao nível da segurança e da
saúde no trabalho, sobretudo a nível ergonómico, já que trabalham
longas horas sentados, o que levanta problemas a nível de saúde
física,11 organizacional e psicológica. Contudo, também não podem
ser esquecidas todas as novas oportunidades que são criadas.12
Na verdade, não se pode deixar de atender a que a tecnologia é em
si mesma neutra, o mesmo não se podendo dizer do homem que a
utiliza, cujo leitmotiv é o controlo das pessoas. Conforme a história
tem vindo a demonstrar ao longo do tempo, tão curto e tão longo,
as inovações tecnológicas só dependem da utilização que lhes é
dada pelo homem. Na realidade, é a implementação da tecnologia
que cria os riscos para a segurança e a saúde no trabalho.

10 Neste mesmo sentido, ver: FERNÁNDEZ AVILÉS, 2018, p. 34-35.


11 Relativamente à ergonomia, há que ver que muitas destas atividades são
sentadas, originando um enorme sedentarismo por parte das pessoas,
chegando a utilizar-se a expressão sitting is the new smoking (EUROPEAN
AGENCY FOR SAFETY AND HEALTH AT WORK, 2018, p. 49).
12 Ver para maiores desenvolvimentos: EUROPEAN AGENCY FOR SAFETY
AND HEALTH AT WORK, 2018, p. 6 e ss.; e VIFORCOS, 2018, p. 611-612.

278
Torna-se assim necessária uma atuação proactiva de identifica-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


ção dos riscos para a segurança e a saúde dos trabalhadores nesta
constante mutação de locais de trabalho.
É essencial tentar antecipar as mudanças tecnológicas que estão
a incidir sobre o trabalho, as formas de organização do mesmo e
um novo tipo de controlo. E esta antecipação tem de ser feita atra-
vés da formação contínua mesmo antes de se entrar no mundo do
trabalho, nomeadamente integrando as matérias de segurança e
saúde no trabalho na educação e formação em geral e depois no
mundo do trabalho, porque permite que todos se adaptem melhor
aos riscos que emergem para a segurança e a saúde no trabalho
(ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2019, p. 59).
A própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) defende
um direito universal à aprendizagem ao longo da vida e à recon-
versão profissional, já que aquela aprendizagem compreende,
para além das competências necessárias para trabalhar, o desen-
volvimento das capacidades necessárias para participar numa
sociedade democrática.
A crescente irrelevância de onde e quando o trabalho é realizado
e a maior especialização significam que o processo produtivo não
para nas portas da fábrica, agora fábrica virtual, o que origina novas
necessidades de formação para empregadores e trabalhadores. A
criatividade e as social skills, as digital skills, as soft skills, juntamente
com a capacidade de trabalhar em grupo, tornam-se ferramentas
essenciais para o sucesso quer das empresas, quer dos próprios tra-
balhadores e, por isso, a necessidade de formação contínua. Os riscos
são grandes e desconhecidos e, por isso, a necessidade de formação.
Na verdade, neste mercado de trabalho, as tradicionais hard skills
– competências técnicas – são insuficientes, cabendo um papel
acrescido às denominadas soft skills, isto é, às competências com-
portamentais e sociais, criando-se até as hibrid skills, que mistu-
ram competências técnicas com cognitivas, tentando transformar
os perdedores em ganhadores. Torna-se fundamental investir nesta
formação porque muitos aspetos da personalidade humana, desde
logo a intuição, por agora, são dificilmente automatizados.
Atualmente, crê-se que, mais do que nunca, certas capacidades
humanas, certas skills, como a perceção, a consciência, a resolução

279
de problemas complexos e a tomada de decisões são essenciais. E,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

por isso, deve apostar-se, e muito, na formação.


Nestas novas formas de prestar trabalho, a divisão do trabalho em
microtarefas, assim como o desaparecimento do posto de trabalho
tradicional, gera bastante insegurança para quem efetua este tipo
de atividades, convertendo-se em mais um risco para a segurança
e a saúde dos mesmos. Através desta fragmentação da atividade, os
trabalhadores são quase obrigados a estarem permanentemente à
procura de novas atividades e a tentar compatibilizar todas para
conseguirem um rendimento condigno.13 E esta constante procura
de novas tarefas, com exigências diversificadas, demanda forma-
ção específica e preparação adequada, o que levanta mais riscos
para a segurança e a saúde dos trabalhadores.
Ao analisar-se estas condições, sem dúvida que muitas indicam que
a flexibilidade temporal não significa liberdade, mas sim o seu con-
trário, tornando-se cada vez mais difícil a conciliação dos tempos
de trabalho com os tempos pessoais. Cremos que a oportunidade
do anytime-anyplace não pode tornar-se no always and everywhere.
Atualmente, os trabalhadores são muitas vezes avaliados pelos
resultados que apresentam e não pelo trabalho que realizam, o que
pode originar a sua intensificação, bem como dos tempos de traba-
lho. Há cada vez mais a confusão entre o que é urgente e o que é
importante, o que origina um aumento da Síndrome de Burnout ou
FOMO – fear of missing out –, forma de ansiedade social que origina
que os trabalhadores desenvolvam quase uma relação obsessiva
com as comunicações profissionais (DEGRYSE, 2016, p. 45).
Por outro lado, a reduzida compensação económica que recebem,
já que têm de assumir vários gastos, leva a que muitos trabalhem
imensas horas sem qualquer respeito pelos tempos de trabalho.
Assim, os intervalos de descanso entre as jornadas de trabalho são
reduzidos, o que aumenta, e muito, o perigo para a saúde física e
psíquica dos trabalhadores.

13 Aliás, de acordo com os dados apresentados pelo Joint Research Centre


Science for Policy Report (PESOLE et al., 2018, p. 35-36), em média, mais de
metade dos trabalhadores nas plataformas digitais realizam mais de um tipo
de tarefas através dessas plataformas: cerca de 40% realizam entre duas a
três tarefas de diferentes tipos, e 20%, pelo menos três.

280
E este é outro risco psicossocial, que é a imposição do cumprimento

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


mínimo de metas ou de trabalhos sob pena de desativação do tra-
balhador da plataforma. Mesmo na ausência desta exigência, quem
se dispõe a trabalhar para as plataformas tem de ter consciência
de que a inatividade não lhe permite receber uma boa avaliação
e pode originar até a sua desativação. Por isso, o trabalhador pre-
fere comprometer os seus períodos de desconexão, por não contar
com outra alternativa a não ser estar sempre disponível. E não nos
podemos esquecer de que a avaliação a que são sujeitos por parte
dos clientes não atende aos eventuais problemas psicossociais que
estejam a atravessar, às responsabilidades familiares que tenham
ou a outras situações que podem originar que o trabalhador não
consiga realizar corretamente a sua atividade. Crê-se até que mui-
tas vezes os clientes se esquecem de que também são muitos deles
trabalhadores e se comportam de forma diferente.
Na verdade, há uma enorme competição entre trabalhadores. E os
trabalhadores destas plataformas têm de competir entre si para
conseguir a tarefa ou a microtarefa que devem executar e que pode
ser um elemento fundamental para a reputação que têm, pois a
reputação muitas vezes aumenta quando o trabalhador completa o
maior número de tarefas e estas têm uma pontuação mais elevada.
Desta forma, quem aceitar mais tarefas terá melhor reputação –
questão referida em várias decisões jurisprudenciais um pouco
por todo o mundo –, e isto origina que tenha mais trabalho para
realizar podendo originar uma espiral de sobrecarga de trabalho.
Claramente, esta pressão para conseguir uma boa avaliação dos
clientes, aliada a um eventual excesso de trabalho, traduz graves
riscos para a saúde física e psíquica dos trabalhadores (MOORE
et al., 2018, p. 9). Por exemplo, no caso dos riders, a necessidade de
obter uma pontuação elevada para não perderem as próximas cor-
ridas e conseguirem manter um nível de pontuação elevado pode
originar que cometam erros, infrações do Código de Estrada ou
que vão trabalhar quando não estão em boas condições de saúde.14
Na verdade, a maioria deles, ao fazerem entregas, não recebem
qualquer formação de segurança. Ademais, os trabalhadores não
possuem equipamentos de segurança adequados, como o colete de
visibilidade, e são incentivados a dirigir em condições climatéricas

14 Neste sentido: FERNÁNDEZ AVILÉS, 2018, p. 53.

281
adversas ou ao final da tarde ou até à noite com pouca visibilidade,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

a que acresce a pressão para concluir rapidamente a tarefa desig-


nada e a distração no trânsito em virtude dos ruídos produzidos
pela plataforma no telemóvel. Algumas plataformas emitem um
alerta sobre o trabalho com uma janela temporal para que o tra-
balhador tenha que confirmar rapidamente se o aceita. E, perante
estas condições, os riders ficam propensos a multas ou acidentes.
Há um grande problema com as avaliações, que podem gerar cons-
trangimentos, situações de assédio, de ciberassédio, discrimina-
ções e depressões ou até o simples receio do trabalhador com a
avaliação dos clientes. E estas avaliações podem ser extremamente
injustas, já que a má avaliação não está necessariamente relacio-
nada com o desempenho do trabalho. Nos serviços de transporte
ou plataformas de passeio, por exemplo, é provável que o condutor
possa obter uma avaliação mais baixa por atraso em virtude de
serem horas de ponta ou pela perda de cobertura de dados móveis,
ou ter ficado sem internet. Ou também é possível ter uma avalia-
ção mais baixa pelo facto de ter um carro que não esteja muito
limpo devido à chuva ou ao local em que o condutor precisou circu-
lar. Diante dessa conjetura, o problema consiste na desativação por
parte da plataforma do trabalhador sem sequer lhe dar oportuni-
dade de se justificar ou de se defender (MOORE, 2018, p. 8).
Também o facto de se trabalhar juntamente com robots pode gerar
insegurança e stress dos trabalhadores, assim como o mau fun-
cionamento dos mesmos pode originar ciberataques e o controlo
que podem exercer sobre os humanos pode originar um aumento
enorme a nível do tecnostress. Desta forma, o efeito da automati-
zação na saúde e na integridade dos trabalhadores não pode ser
analisado apenas no plano da segurança e da saúde, mas também,
e de forma muito especial, no plano psicossocial, porque podem
reduzir-se alguns riscos físicos, mas aumentam os riscos psicoló-
gicos ou, pelo menos, surgem novas fontes de stress. Há empresas
que atualmente têm milhares de collaborative robots – cobots. Só
a Amazon tem mais de 100 mil cobots que reduziram o tempo de
formação dos trabalhadores para cerca de dois dias.
Os trabalhadores atualmente trabalham várias vezes ao lado de sis-
temas de Inteligência Artificial ou cobots, e muitos são avaliados,
controlados, auxiliados e geridos por estes, o que origina para muitos
maiores níveis de ansiedade, stress devido à perda de controlo sobre

282
a sua própria responsabilidade, assim como um aumento enorme do

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


controlo que é realizado. Por outro lado, este controlo constante tam-
bém pode afetar a saúde dos trabalhadores por sentirem que estão
constantemente a ser avaliados. E há mais riscos para a saúde dos
trabalhadores quando, por exemplo, há uma colisão entre os huma-
nos e os robots que pode originar reações imprevisíveis por parte
destes, riscos de segurança onde a internet pode afetar o software
dos mesmos e riscos para o meio ambiente, já que a degradação de
sensores e até a atuação humana podem originar problemas.
O trabalho atualmente está a ser cada vez mais coordenado por
algoritmos e, no futuro, toda a gestão de recursos humanos pode vir
a depender bastante da Inteligência Artificial com o estabelecimento
de perfis. É sem dúvida nesta área que várias questões se levantam
para a segurança e a saúde dos trabalhadores, desde logo com a
quantidade maciça de dados pessoais que circulam sobre as pes-
soas e que permitem a criação de perfis dos mesmos como pequenas
peças de puzzles. O denominado human analythics é utilizado para
recrutamento de trabalhadores, para promoção dos mesmos, para
aferir quem mais facilmente não se irá manter no emprego e para
selecionar os futuros líderes. Servem ainda para cruzar informação
sobre dados pessoais inclusive sensíveis para verificarem o estado
de saúde e a moral dos trabalhadores. E atualmente cerca de 40% de
empresas admitem recorrer à Inteligência Artificial (PWC, 2017).
Contudo, relativamente a estes, defende-se que têm de ser passí-
veis de ser auditadas as decisões tomadas automaticamente e não
pode deixar de atender-se ao Regulamento Geral de Proteção de
Dados, que proíbe o estabelecimento de decisões totalmente auto-
matizadas e o profiling, bastando ter em atenção o Considerando 71
da diretiva, que estabelece:
O titular dos dados deverá ter o direito de não ficar sujeito a
uma decisão, que poderá incluir uma medida, que avalie aspe-
tos pessoais que lhe digam respeito, que se baseie exclusivamente
no tratamento automatizado e que produza efeitos jurídicos que
lhe digam respeito ou o afetem significativamente de modo simi-
lar, como a recusa automática de um pedido de crédito por via
eletrónica ou práticas de recrutamento eletrónico sem qualquer
intervenção humana. Esse tratamento inclui a definição de perfis
mediante qualquer forma de tratamento automatizado de dados
pessoais para avaliar aspetos pessoais relativos a uma pessoa sin-
gular, em especial a análise e previsão de aspetos relacionados

283
com o desempenho profissional,15 a situação económica, saúde, pre-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

ferências ou interesses pessoais, fiabilidade ou comportamento,


localização ou deslocações do titular dos dados, quando produza
efeitos jurídicos que lhe digam respeito ou a afetem significativa-
mente de forma similar [...],

assim como o art. 22º com a epígrafe Decisões individuais automa-


tizadas, incluindo definição de perfis, isto é, onde não há qualquer
intervenção humana no processo decisório. Contudo, é importante
realçar, tal como o faz o Grupo de Trabalho do art. 29º,16 que,
para que se considere haver uma intervenção humana, o respon-
sável pelo tratamento tem de garantir que qualquer supervisão da
decisão seja relevante, e não um mero gesto simbólico. Essa super-
visão deve ser levada a cabo por alguém com autoridade e compe-
tência para alterar a decisão e que, no âmbito da análise, deverá
tomar em consideração todos os dados pertinentes.17

Este seguimento total que pode ser produzido através do próprio


instrumento de trabalho, contínuo, total, em tempo real, que per-
mite um enorme controlo à distância espacial mas sobretudo tem-
poral, regista todos os comportamentos do trabalhador e diminui-
-lhe a liberdade e a autonomia, já que sabe que está a ser constante-
mente vigiado e controlado.18 Aliás, este controlo permanente tem

15 Grifos nossos.
16 UNIÃO EUROPEIA, 2016, p. 23.
17 O Grupo de Trabalho do Artigo 29, nas Orientações sobre as decisões
individuais automatizadas e a definição de perfis para efeitos do Regulamento
(UE) 2016/679 (UNIÃO EUROPEIA, 2016, p. 21), esclarece que: “O artigo
22º, nº 1, estabelece uma proibição geral da tomada de decisões com base
exclusivamente no tratamento automatizado. Esta proibição aplica-se
independentemente de o titular dos dados adotar uma medida relativa ao
tratamento dos seus dados pessoais”.
18 Aliás, este controlo total feito por GPS foi um dos argumentos utilizados
pela Cour de Cassation numa decisão de 28 de novembro de 2018, sobre a
qualificação como contrato de trabalho do trabalho realizado na plataforma
Take Eat Easy, e onde se pode ler que: “Dès lors qu’ils constataient, d’une part,
que l’application était dotée d’un système de géo-localisation permettant le suivi en
temps réel par la société de la position du coursier et la comptabilisation du nombre
total de kilomètres parcourus, de sorte que le rôle de la plateforme ne se limitait pas
à la mise en relation du restaurateur, du client et du coursier, et, d’autre part, que
la société disposait d’un pouvoir de sanction à l’égard du coursier, constatations
dont il résultait l’existence d’un pouvoir de direction et de contrôle de l’exécution
de la prestation du livreur caractérisant un lien de subordination, les juges du

284
sido muitas vezes considerado como um argumento para qualifi-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


car o contrato como um contrato de trabalho.
Estas tecnologias têm uma capacidade inquisitória que parece não
ter limites e que afeta o próprio contrato de trabalho, chamando a
atenção para uma profunda mudança no próprio poder de controlo
porque grande parte do seu exercício, dado o carácter ambivalente
destas novas tecnologias, será feito à distância, passando este
poder de elemento eventual da atividade para uma parte própria
da atividade laboral. Há, assim, uma extensão do poder de controlo
tanto do ponto de vista qualitativo como quantitativo, assim como
uma descentralização da subordinação e uma dificuldade em dis-
tinguir entre a estrutura de controlo, o seu objeto e a sua finalidade,
na medida em que todas estas vertentes parecem estar integradas
numa mesma função e momento temporal com a própria atividade
laboral do trabalhador. Há, assim, um enorme aumento do poder
de controlo do empregador sem que exista, simultaneamente, uma
articulação de formas de contrapeso a esse poder.
Contudo, há vários aspetos positivos da automatização. Na verdade,
a utilização de veículos autónomos, a automatização de determina-
das tarefas, a utilização de robots e até de drones podem reduzir
a exposição dos trabalhadores a espaços que apresentam riscos,
como espaços fechados, com elevados níveis de ruído, ou traba-
lho em alturas, assim como a diminuição de tarefas repetitivas.
Contudo, estas mesmas tecnologias podem produzir riscos para a
saúde e a segurança dos trabalhadores, nomeadamente quando se
trabalha com os denominados robots colaborativos, ou cobots, e nos
primeiros tempos os acidentes podem aumentar, bastando pensar
se os sensores colocados nestes últimos para auxiliar no trabalho
ficarem danificados, os riscos de acidentes aumentam19 e quem será

fond ne pouvaient écarter la qualification de contrat de travail”, tendo o mesmo


decidido na Cour d’appel de Paris, numa decisão de 10 de janeiro de 2019, “Il
doit également être relevé que le contrôle des chauffeurs utilisant la plateforme Uber
s’effectue via un système de géolocalisation, le point 2.8 du contrat stipulant que : ‘(...)
les informations de géolocalisation du chauffeur seront analysées et suivies par les
services Uber lorsque le chauffeur est connecté et l’Application Uber est disponible
pour recevoir des demandes de service de transport, ou lorsque le chauffeur fournit
des services de transport (...)’, peu important les motivations avancées par la société
Uber BV de cette géolocalisation”.
19 Ver: THE FUTURE… (2018); e EUROPEAN AGENCY FOR SAFETY AND
HEALTH AT WORK, 2018, p. 47-48.

285
o responsável? Quem fabricou o cobot? Ou a empresa que utiliza
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

o cobot? A complexidade aumenta assim como a própria noção de


acidente de trabalho. Ou, se pensarmos nos casos em que um tra-
balhador tem como atividade “tomar conta” de uma máquina, pode
receber notificações e atualizações nos telemóveis ou objetos pes-
soais em horas que deveriam ser de descanso, e claramente levan-
tam-se questões de stress e de falta de conciliação entre tempo de
trabalho e tempo de vida pessoal.
Por outro lado, existem ainda os chatbots, utilizados em call centres,
que servem para responder automaticamente a certas questões
colocadas pelos clientes. Aqueles chatbots podem libertar os traba-
lhadores destes locais de algumas tarefas repetitivas, mas podem,
simultaneamente, trazer novos problemas para os trabalhadores
relacionados com o stress de serem substituídos por aqueles, o
receio do desemprego, e, por isso, os trabalhadores têm de ter for-
mação sobre a utilização destes e para que servem.

3 · Conclusões
O desafio atualmente é o da adaptação prática dos regimes tra-
dicionais em matéria de segurança e saúde no local de trabalho
às novas formas de prestar trabalho que decorrem das tecnolo-
gias digitais e aos riscos profissionais inerentes. Assim, um dos
desafios atuais é o de antecipar os riscos destas novas formas de
prestar trabalho, já que os riscos psicossociais têm consequências
a nível físico, incluindo doenças cardiovasculares, musculoes-
queléticas, hipertensão, e problemas a nível do foro mental como
Síndrome de Burnout, depressão, entre outros (ORGANIZAÇÃO
INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2019, p. 55-56).
Defende-se, contudo, que não existem obstáculos para a aplicação
dos princípios sobre segurança e saúde no trabalho a quem traba-
lha nas plataformas digitais. Na verdade, esta tutela encontra-se
relacionada com a dignidade da pessoa humana e também com a
ideia de trabalho decente.
Esta proteção começa logo na fase de seleção porque todo o pro-
cesso pode ser qualificado de estressante, pois há uma enorme com-
petição entre todos, já que a plataforma vive da reputação que tem
online. Esta reputação tem influência nas condições laborais de quem

286
presta atividade para ela e na possibilidade de vir ou não a obter uma

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


nova tarefa, o que origina imediatamente riscos para a segurança
e a saúde dos trabalhadores, porque podem sujeitar-se a trabalhar
em ambientes insalubres, com más condições de trabalho, sob uma
enorme pressão e sem qualquer limite do tempo de trabalho.
Contudo, preconiza-se que não pode ser assim. O trabalho tem de
adaptar-se ao homem, e não o oposto. E o desafio é grande porque
tem de conseguir encontrar-se um justo equilíbrio entre a segu-
rança e a saúde dos trabalhadores e as novas formas de prestar tra-
balho, onde se exigem uma maior flexibilidade das relações labo-
rais, uma utilização cada vez mais intensiva das novas tecnologias
e uma virtualização das próprias relações de trabalho. Defende-se
a prevenção como princípio basilar, princípio este que se aplica a
ambos os sujeitos da relação de trabalho, considerando-se, ainda,
que a solução tem de ser encontrada a nível internacional, já que as
questões colocadas são claramente transnacionais.
A Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a condi-
ções de trabalho transparentes e previsíveis na União Europeia, de
20 de junho de 2019, poderá ser o início de um caminho ou, pelo
menos, uma esperança ao defender uma mesma tutela para todos.
Contudo, uma das grandes questões é que, com os avanços na
Inteligência Artificial e com estas novas formas de prestar traba-
lho, a tecnologia will be done to you e não will be there for you. E esta
mudança traz grandes questões que necessitam de ser pensadas e
tratadas em nível internacional.
O stress, o tecnostress, a ansiedade e a depressão são muitas vezes
comuns devido à precariedade destas formas de prestar trabalho, à
falta de previsibilidade nestas zonas cinzentas de trabalho, à intensifi-
cação do mesmo, ao controlo constante e permanente, ao facto de se
trabalhar juntamente com robots e à correspondente falta de autono-
mia, ao ciberassédio, e às pressões da própria Inteligência Artificial
para a intensificação do trabalho conhecido como o digital whip.
Na verdade, os riscos psicossociais incluem o isolamento, a depen-
dência da tecnologia, a sobrecarga de informação, o esgotamento
e os problemas posturais. Todo o trabalho em plataformas digitais
pode aumentar o risco do stress através da avaliação e da classifica-
ção contínua do desempenho, de mecanismos de concorrência para

287
a atribuição do trabalho, da retribuição incerta e do esbatimento
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

das fronteiras entre a vida profissional e a vida pessoal e familiar.


Finalmente, a insegurança do trabalho e a incerteza do amanhã,
características deste tipo de trabalho, são fatores que contribuem
para as más condições de saúde entre este tipo de trabalhadores.
Torna-se assim essencial tentar encontrar respostas a estas novas
situações, e uma delas passa logo pela formação ao longo da vida,
com um novo tipo de formação, constante para todos os trabalha-
dores e dirigida a estas novas questões que se levantam, já que hoje
em dia a maior parte dos trabalhadores não vai trabalhar a vida
toda para um único empregador ou realizar sempre a mesma ati-
vidade, e, por isso, a segurança e a saúde no trabalho não podem
direcionar-se apenas para os riscos de uma só atividade, mas da
vida profissional em geral, tratando de temas como, inter alia, a
insegurança no trabalho, a precariedade, a ansiedade e o stress.
Por outro lado, parece-nos que deve fazer-se a ligação entre políti-
cas de segurança e saúde e políticas públicas de saúde porque esta
ligação pode originar a necessidade de promover locais de traba-
lho mais saudáveis que previnam o surgimento de doenças através
de melhorias na organização. Parece que questões como nutrição
que permita o acesso a uma alimentação saudável durante o tempo
de trabalho, o aumento da atividade física, dormir-se bem, ter-se
em atenção os riscos psicossociais, abordar os riscos psicossociais,
podem ser o caminho, assemelhando-se-nos que existe a possibi-
lidade de uma boa ligação entre vários mecanismos de serviços de
saúde e segurança no trabalho com serviços de saúde públicos ou
privados para apoiar a saúde dos trabalhadores, na medida em que
existe um crescente reconhecimento da ligação entre a saúde e a
segurança no trabalho com a prevenção de riscos psicossociais e
outras doenças como hipertensão, diabetes, doenças cardiovas-
culares, desordens gastrointestinais e outras doenças que têm
originado muitas mortes (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO
TRABALHO, 2019, p. 60).
Deve ter-se em atenção, como a própria OIT20 defendeu, que a segu-
rança e a saúde no trabalho devem ser reconhecidas como prin-
cípios e direitos fundamentais do trabalho e, por isso, apesar de o
futuro ser incerto e apresentar muitos desafios e dificuldades, pare-
ce-nos ser a altura para empregadores, trabalhadores e parceiros

20 INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION, 2019, p. 12.

288
sociais aproveitarem a oportunidade para tentar criar um futuro

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


do trabalho mais saudável e seguro para todos.

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290
Proteção de dados do trabalhador e a
questão do necessário consentimento: uma
abordagem a partir da Lei n. 13.709/2018

Aldacy Rachid Coutinho


Professora Doutora Titular de Direito do Trabalho da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), aposentada.
Professora do Centro Universitário Univel.

Resumo: O presente artigo tem como finalidade analisar a tutela dos


dados pessoais dos trabalhadores como expressão dos direitos humanos.
O Estado adotou, na sua função reguladora, política pública de proteção
da inviolabilidade da vida privada e do direito à privacidade a todas
as pessoas pela Lei Geral de Proteção de Dados, Lei n. 13.709/2018, o
que inclui os trabalhadores. Os empregadores, como limite ao poder
diretivo, devem ter o consentimento dos seus empregados para obter
informações pessoais, indicando quais os dados e para que fim serão
fornecidos. A necessidade e a finalidade, assim como o tratamento dos
dados pessoais, devem ser comunicados aos empregados como condição
de validade do consentimento.

Palavras-chave: Direitos humanos. Dados pessoais. Proteção. Empregado.

Abstract: This article aims to analyze the protection of workers’ personal


data as an expression of human rights. The State adopts, in its regulatory
function, public policy to protect the inviolability of privacy and the right
to privacy to all persons by the General Data Protection Law, 13.709/2018,
which includes workers. Employers, as a limit to management, must
have previous consent of their employees to obtain personal information,
indicating what data and for what purpose is provided. The need and
purpose and processing of personal data shall be communicated to
employees as a condition of the consent’s validity.

Keywords: Human rights. Personal data. Protection. Employee.

291
1 · Introdução
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

O exercício da cidadania, correspondente ao direito a ter direitos,


pressupõe a atuação estatal por meio de políticas públicas garan-
tidoras, que se constituem, entre outras, em marcos regulatórios
a serem observados, impreterivelmente, nos espaços sociais, o que
inclui a atuação das corporações. O Estado não pode se destituir
da sua função reguladora dos comportamentos, deixando à própria
sorte o cidadão diante dos avanços da revolução digital. Não por
outra razão, então, a existência de legislação específica que trata da
proteção de dados em tempos de inteligência artificial e de domí-
nio tecnológico do viver em sociedade, em si considerada, é desde
logo medida de impacto positivo.
Particularmente no tocante ao trabalhador, para além da condição
de cidadão, a sua inserção em um modelo específico de vínculo jurí-
dico o coloca em situação de maior vulnerabilidade ante o poder
empregatício. Dessa forma, não basta estabelecer direitos, é impe-
rioso que se assegure a concretização e a efetividade destes dentro
dos limites temporais e geográficos da organização produtiva.
A transformação dos dados pessoais em commodities tem sido razão
de preocupação por Estados que, para assegurar níveis de tutela
e garantias, estabelecem a necessidade do controle pelo conheci-
mento, o qual deve pautar as ações dos sujeitos na sociedade digi-
tal. Inúmeros casos de subtração e escândalos de hackeamento de
dados noticiados deixam todos em alerta. Entre eles, cumpre lem-
brar os casos revelados na mídia, tanto da Cambridge Analytica –
inclusive com dados do Facebook –, que interferiu na eleição do
Presidente Trump nos Estados Unidos da América e no Brexit,
entre outros (CADWALLADR, 2018), quanto da contratação de
pessoas para escutar conversas privadas pela Apple (GUTIÉRREZ,
2019), demonstrando o hackeamento da privacidade.
O avanço da tecnologia e o tráfico de dados tornam ainda mais
indefensa e exposta a situação em que se encontra o trabalhador,
na medida em que os riscos do uso indevido dos dados pessoais não
têm sido uma questão que venha demonstrando preocupação no
âmbito das relações empregatícias.
Agregue-se, como problemática, primeiramente o reconhecimento
do poder empregatício que não vem expresso na legislação laboral

292
e, assim, não está limitado ou controlado de modo específico pelas

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


regras jurídicas celetárias; ademais, desde sempre vem aceito
como dessumido da necessidade da própria gestão da organização
produtiva, ou seja, ocupa um espaço naturalizado e intocável.
Em segundo lugar e não menos importante, a normativa da con-
tratualidade trabalhista no modelo do emprego que abre flancos
para violações ao sistema de proteção de dados pessoais. Imperioso
salientar, nesse trilhar, que não há forma imposta para a celebração
de um contrato de trabalho, podendo ser concluído pelo comporta-
mento dos envolvidos, ante a caracterização do vínculo emprega-
tício pela verificação da ação de trabalhar com pessoalidade, conti-
nuidade e subordinação, de forma onerosa. O início da execução de
um contrato de trabalho na sua forma tácita, concluído por com-
portamento concludente, não condiz com a necessidade de mani-
festação de consentimento para fornecimento de dados pessoais
e a desconsidera. Além disso, discute-se se o contrato de trabalho
não seria um contrato de adesão, exatamente pela fragilidade da
manifestação de vontade, aceita tão só como aderente.
Há de se atentar, então, para a necessidade de tomada de consciên-
cia em torno da obrigatoriedade da observância dos termos da Lei
de Proteção de Dados pessoais, aplicável no âmbito dos contratos de
trabalho, o que é empreendido a partir do consentimento necessário.

2 · Políticas públicas e o papel do Estado


O Estado editou a Lei Geral de Proteção de Dados, Lei n. 13.709/2018,
com as alterações da Lei n. 13.853/2019, que dispõe sobre a pro-
teção de dados pessoais, com vacatio legis de 24 meses,1 pelo que
entrará em plena vigência em 14 de agosto de 2020. Nenhuma
disposição específica é destinada aos trabalhadores, mas seu con-
teúdo lhes é aplicável, devendo ser observada, pela imperativi-
dade, em todos os pactos laborais.
As normas constitucionais, princípios e regras devem ser efetiva-
dos; assim, pelo trânsito e como expressão da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, inciso III), que é o ponto de partida e não de chegada,

1 Salvo os arts. 55-A a 55-L, 58-A e 58-B, conforme art. 65, que entraram em
vigor a partir de 28 de dezembro de 2018.

293
os direitos fundamentais adentram o campo das relações de trabalho
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

corporificados na pessoa do trabalhador, que está tutelado na inviola-


bilidade do seu direito à liberdade e à igualdade (art. 5º, caput), à inti-
midade, à vida privada, à honra e à imagem (art. 5º, inciso X), quando
do exercício do direito fundamental social ao trabalho (art. 6º).
Merece destaque a previsão constitucional de sanção expressa para
a inviolabilidade da vida privada, no art. 5º, inciso X: “[...] assegurado
o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente da
sua violação”. Muito antes, então, da edição da Lei de Proteção de
Dados Pessoais, os trabalhadores já tinham seus dados pessoais
tutelados em decorrência da incidência das normas constitucio-
nais vigentes, com consequências previstas; no entanto, medidas
de cautela ou de proteção efetiva não foram notadas.
Surge, agora, outra oportunidade de se atentar para a necessidade
de introjetar níveis de proteção no campo do direito do trabalho, o
que se faz, entre outras, pela circunstância da necessidade da pré-
via ciência e obtenção de consentimento.

3 · Dados como expressão dos direitos humanos


A questão não se restringe nem à ordem constitucional nacio-
nal nem às fronteiras da legislação infraconstitucional, tam-
pouco pode ser enfrentada apenas pela teoria contratual laboral.
Fundamenta-se na teoria dos direitos humanos. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos, proclamada nos idos de dezem-
bro de 1948, já assegurava tutela à vida privada como expressão
e manifestação de um direito, prevendo, em seu artigo 12, que
“ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada
[...]. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito
a protecção da lei” (ONU, 1948).
Nesse trilhar, o tratamento da proteção de dados pessoais, tal como
ocorre na Lei n. 13.709/2018, leva então em consideração a necessi-
dade de tutela para assegurar os direitos fundamentais de liber-
dade e de privacidade, além do livre desenvolvimento da personali-
dade da pessoa natural (art. 1º); ou seja, os direitos fundamentais –
aqui tomados como expressão sinônima de direitos humanos – são
parâmetros e, portanto, limites que devem ser observados quando
da obtenção e uso dos dados pessoais.

294
Imperioso reconhecer os dados pessoais tutelados pela Lei Geral

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


de Proteção de Dados como enquadrados na tipologia direitos
fundamentais ou humanos. Não se trata mais de, como se fossem
elementos externos, invocá-los para filtragem e indicá-los como
barreiras, senão de tomá-los, em si considerados, como revela-
ção de direitos humanos exatamente pelo fato de que se trata de
informações pessoais relacionadas à construção da identidade e
da subjetividade da pessoa natural identificada ou identificável
(art. 4º da Lei n. 12.527/2011).
É possível inferir e sustentar a hipótese, pelo contido no art. 2º,
inciso VII, da Lei de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018), quando
prevê que a disciplina da proteção de dados tem como fundamento
os direitos humanos, a par do livre desenvolvimento da personali-
dade – direitos de personalidade –, dignidade – princípio da digni-
dade da pessoa humana – e exercício da cidadania.
O que seriam esses dados pessoais? Toda e qualquer informação
relacionada a uma pessoa identificada ou identificável (art. 5º,
inciso I), agregando-se na tipologia de dado sensível a informação
específica a respeito da origem racial ou étnica, convicção religiosa,
opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter
religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida
sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pes-
soa natural (art. 5º, inciso II).

4 · Poder diretivo empresarial e proteção dos dados


do trabalhador
Levando em conta a imprescindível proteção dos dados do traba-
lhador, que está vinculado por meio de um contrato de trabalho ao
seu empregador, colocando-se voluntariamente em uma situação
de subordinação, tem-se que qualquer transferência das informa-
ções pressupõe não somente a concordância, ou seja, o consenti-
mento expresso (Lei n. 13.709/2018, art. 7º, inciso I, e art. 8º), senão
ainda um “consentimento altamente qualificado” (FRAZÃO, 2018).
Trata-se de uma manifestação de vontade livre, declarada de modo
inequívoco, após a devida ciência, pelo conhecimento, via comu-
nicação, sobre todas as condições, pelo que não é suficiente que
venha a anuência manifestada em documento com forma escrita
ou que integre o contrato como uma das suas cláusulas.

295
Deve haver clara indicação de quais dados se pretende sejam for-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

necidos, a sua necessidade e, ademais, a finalidade para a qual eles


são coletados após informados para, desta forma, permitir a aná-
lise prévia da adequação e a necessidade da sua obtenção para o
escopo pretendido. Deve-se levar em conta o livre acesso a todas
as informações a respeito do tratamento dos dados fornecidos com
boa fé e o atendimento ao interesse público que justificariam a
sua disponibilização (Lei n. 13.709/2018, art. 7º, § 3º), assim como a
transparência enquanto garantia (arts. 6º e 9º). Portanto:
Nesse ponto, tem-se clara vinculação da validade do consenti-
mento com o princípio da finalidade, que, como já visto, exige que
os propósitos do tratamento de dados sejam legítimos, específicos,
explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento
posterior de forma incompatível com essas finalidades (art. 6º, I).

[…]

A LGPD ainda teve o cuidado de atribuir ao controlador o ônus da


prova do consentimento (art. 8º, § 2º), igualmente ressaltando que
o consentimento não será válido se houver qualquer vício de von-
tade (art. 8º, § 3º). (FRAZÃO, 2018).

Alguns dados são necessários para os termos do contrato de traba-


lho, de sorte a viabilizar não somente a sua execução, senão parti-
cularmente a implementação de direitos trabalhistas assegurados
na legislação (Lei n. 13.709/2018, art. 7º, II e V). Assim, por exemplo,
dados sobre a idade, por conta da capacidade para o trabalho, veri-
ficando se é maior de dezesseis anos, ou maior de quatorze no caso
de aprendiz, e sexo, para assegurar as normas de proteção à mulher;
se tem filhos menores de quatorze anos para pagamento de salário
família mediante requerimento encaminhado ao empregador, acom-
panhado de termo de responsabilidade, certidão de nascimento,
caderneta de vacinação e comprovante de frequência na escola, no
caso de trabalhador empregado ou, em se tratando de trabalhador
avulso, ao sindicato ou órgão gestor de mão de obra (OGMO); com-
provante do estado gravídico, para garantia de emprego; número de
inscrição no cadastro de pessoas físicas junto à Receita Federal para
desconto de imposto de renda, entre tantos outros.
Em síntese, sendo necessário para que se assegure, no caso con-
creto, a aplicação de regras e princípios constitucionais constan-
tes do art. 7º, tais como licença maternidade (inciso XVIII); licença

296
paternidade (inciso XIX); proteção do mercado de trabalho da

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


mulher (inciso XX); proibição de diferença de salários, de exercício
de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor
ou estado civil (inciso XXX); proibição de qualquer discriminação no
tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador com defici-
ência (inciso XXXI); proibição de distinção entre trabalho manual,
técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos (inciso
XXXII), ou ainda infraconstitucionais, previstos na Consolidação
das Leis do Trabalho ou em legislação esparsa, a finalidade está
prima facie implementada. Mas, ainda assim, deve ser comunicado
o empregado e dele obtido o consentimento.
Merece destaque a importância que fora assegurada à filiação a
sindicato pela Lei Geral de Proteção de Dados, pois é considerado
como dado pessoal sensível, nos termos do art. 5º, inciso II, o que
representa que toda informação prestada ao empregador para os
fins de desconto para contribuição sindical e, eventualmente, se
for o caso, estabilidade de dirigente sindical, ostenta uma tutela
acentuadamente protetiva (art. 11).
Para implementar as obrigações legais, todo empregador deve
indicar uma pessoa que estará encarregada da proteção dos dados
fornecidos – data protection officer (DPO). A indicação não significa
que se despojará da responsabilidade pelo tratamento dos dados, o
que significa, entre outras coisas, a observância dos princípios de
proteção previstos na legislação, a implementação dos direitos de
acesso, a retificação, o cancelamento, a oposição e, se for o caso, a
portabilidade, a par das garantias de informação, transparência e
prestação de contas. O empregador deve transcrever em documen-
tos todas as atividades de tratamento de dados, registrando em
relatório, para assegurar a segurança da informação.
Tal medida tem aplicação inclusive quando o empregador, para
atender obrigação legal, repassar informações a determinados
órgãos públicos, como na hipótese da Receita do Brasil, para os
fins da Declaração do Imposto sobre a Renda Retido na Fonte
(DIRF); FGTS, por meio do Sistema Empresa de Recolhimento, e
à Previdência Social, através do SEFIP; ou, ainda, enviar dados
no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) e
Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Em se tratando de
obrigação legal dos empregadores, não se exige o prévio consenti-
mento expresso e escrito dos empregados.

297
Toda cautela é bem-vinda no campo dos contratos de trabalho,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

máxime com o avanço da tecnologia em relação a alguns pontos,


entre eles a coleta de biometria dos empregados para controle da
jornada de trabalho ou, então, o reconhecimento facial. No caso, não
é imprescindível que se apliquem esses métodos, porquanto poderia
a empresa adotar outro meio de proceder que não o registro eletrô-
nico de ponto (REP), empregando um cartão magnético, com ou sem
chip, por exemplo. Deve, então, se optar pela biometria ou reconheci-
mento facial, obter o consentimento prévio expresso dos emprega-
dos, assumindo a responsabilidade pelos dados coletados para uso
exclusivo no escopo de aferir a assiduidade e a pontualidade, proce-
dendo assim o cálculo do labor realizado em horas ordinárias, extra-
ordinárias ou compensadas, bem como suas consequências.

5 · Considerações finais
As relações entre empregador e empregado, não obstante gravi-
tem no espaço interprivado e por força de um contrato celebrado,
não isentam as partes da observância das normas convencionais
internacionais, constitucionais relativas aos direitos fundamen-
tais e, ainda, no que tange aos dados, da Lei de Proteção de Dados
– Lei n. 13.709/2018.
Todos os empregadores, inclusive os empregadores por equipara-
ção, assim igualmente os grupos econômicos, micro, pequenas e
grandes empresas, multinacionais, MEIs, pessoas físicas que man-
tiverem contratos em execução ou quando selecionarem candida-
tos e admitirem novos empregados, para qualquer que seja a natu-
reza das atividades e o setor de atuação, desde o trabalho rural ou
doméstico até o urbano, deverão se adequar às disposições legisla-
tivas a partir de 14 de agosto de 2020.
As medidas de cautela para atendimento das disposições proteti-
vas, no âmbito da organização e para os fins da gestão de pessoas,
consistem em estruturar e estabelecer padrões de controle e moni-
toramento para conformidade, avaliando os riscos que devem ser
minimizados. Para tanto, é preciso identificar quais dados pessoais
serão solicitados e estabelecer uma conduta de obtenção de consen-
timento prévio ao fornecimento, comunicando e indicando os fins
a que se destinam, e, ainda, zelar pela guarda desses dados com o
emprego de senha ou criptografia, evitando que sejam divulgados

298
ou subtraídos. Além disso, todos os envolvidos com o tratamento

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


dos dados devem estar cientes das responsabilidades se houver
vazamento pelo empregador, seus prepostos ou por terceiros.

Referências
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trabalho constitucionalizado e seu diálogo com o direito à privacidade.
Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília, Brasília, n.
15, p. 255-264, 2018. Edição comemorativa de 30 anos da Constituição
Federal de 1988. Disponível em: periodicos.unb.br/index.php/redunb/
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CADWALLADR, Carole; GRAHAM-HARRISON, Emma. Revealed: 50


million Facebook profiles harvested for Cambridge Analytica in major
data breach. The Guardian, Cambridge, 17 mar. 2018. Disponível em:
https://www.theguardian.com/news/2018/mar/17/cambridge-analytica-
facebook-influence-us-election. Acesso em: 7 ago. 2019.

COTS, Márcio; OLIVEIRA, Ronaldo. Lei geral de proteção de dados pessoais


comentada. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

FRAZÃO, Ana. Nova LGPD: a importância do consentimento para o


tratamento dos dados pessoais. Jota, São Paulo, 12 set. 2018. Disponível
em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empre
sa-e-mercado/nova-lgpd-a-importancia-do-consentimento-para-o-trata
mento-dos-dados-pessoais-12092018. Acesso em: 7 ago. 2019.

GUTIÉRREZ, Hugo. Apple também contrata pessoas para ouvir conversas


privadas. El País – Tecnologia, Madrid, 24 jul. 2019. Disponível em: https://
brasil.elpais.com/brasil/2019/07/23/tecnologia/1563902000_568286.
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MOROZOV, Evgeny. Big tech: a ascensão dos dados e a morte da política.


Tradução de Claudio Marcondes. São Paulo: Ubu, 2018.

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wcms_107797.pdf.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração universal dos


direitos humanos. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages
/Language.aspx?LangID=por. Acesso em: 7 ago. 2019.

299
A indústria 4.0: impactos nas relações de
trabalho e na saúde dos trabalhadores

Rômulo Soares Valentini


Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Professor de Direito do Trabalho na
Fundação Pedro Leopoldo (FPL/MG).

Resumo: A indústria 4.0 se caracteriza pela incorporação de novas


tecnologias relacionadas ao uso e tratamento de dados ao ambiente de
produção, modificando de maneira substancial os processos de trabalho
e as competências exigidas por parte dos trabalhadores. Entretanto,
há que se considerar como essa transformação do processo produtivo
afeta a saúde dos trabalhadores envolvidos, de modo a possibilitar o
desenvolvimento de novas regulamentações que garantam a higidez dos
novos ambientes de trabalho. Partindo desse pressuposto, o presente
artigo objetiva compreender e identificar as implicações da indústria
4.0 para a organização do trabalho e seus aspectos na saúde dos
trabalhadores, por meio da revisão de literatura e com uso da técnica de
revisão sistemática. Os resultados verificados indicam a necessidade de
uma releitura do princípio constitucional de proteção dos trabalhadores
contra a automação para que essa proteção englobe não apenas o direito
à manutenção de postos de trabalho mas também a higidez do ambiente
de trabalho de modo a garantir a saúde dos trabalhadores.

Palavras-chave: Indústria 4.0. Saúde do trabalhador. Novas tecnologias


da informação. Direito do Trabalho.

Abstract: Industry 4.0 is characterized by the incorporation of new


technologies related to the use and treatment of data in the production
environment, substantially modifying the work processes and skills
required by the workers. However, it is necessary to consider how this
transformation of the production process affects the health of the workers
involved, in order to enable the development of new regulations that
guarantee the healthiness of the new work environments. Based on this

301
assumption, this article aims to understand and identify the implications
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

of industry 4.0 for work organization and its aspects in workers’ health,
through the process of literature review and the use of systematic review
technique. The verified results indicate the need for a re-reading of the
constitutional principle of protection of workers against automation so
that this protection encompasses not only the right to the maintenance
of jobs, but also the health of the work environment in order to guarantee
the health of the workers.

Keywords: Industry 4.0. Worker’s health. New information technologies.


Labor Law.

1 · Introdução
“Indústria 4.0” ou “quarta revolução industrial” são expressões que
foram utilizadas na feira industrial de Hannover em 2011 e que se
propõem a descrever como a utilização de “fábricas inteligentes”
pode “revolucionar a organização das cadeias globais de valor”, por
meio da criação de “um mundo onde os sistemas físicos e virtuais
de fabricação cooperam de forma global e flexível”, possibilitando
a “personalização de produtos e a criação de novos modelos opera-
cionais” (SCHWAB, 2016, p. 16).
Entretanto, as potencialidades trazidas pela quarta revolução
industrial para o processo produtivo também promovem alteração
substancial para a dinâmica das relações de trabalho, sobretudo as
que envolvem tarefas de caráter intelectual.
Como ressalta Yuval Harari (2016, p. 313), se antes no processo pro-
dutivo havia muitas atividades que “somente os humanos seriam
capazes de fazer [...] hoje os robôs e computadores logo ultrapassa-
rão os humanos no cumprimento da maioria das tarefas”.
A preocupação não é sem motivo. Em relatório elaborado pelo
Fórum Econômico Mundial (2016, p. 13), estima-se que a incorpora-
ção das novas tecnologias de informação à produção de bens e ser-
viços pode provocar a perda de 7,1 milhões de empregos, criando
apenas 2 milhões de novos postos de trabalho, o que resulta num
impacto negativo de 5,1 milhões de postos de trabalho até 2020.
Previsões mais pessimistas dizem que, até o ano de 2050, “uma
nova classe de pessoas pode surgir: a classe dos inúteis”, que

302
conterá pessoas que “não serão somente desempregadas, mas sim,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


inempregáveis” (HARARI, 2017) ante o desenvolvimento das fábri-
cas inteligentes, que eliminarão a viabilidade econômica do tra-
balho humano de menor complexidade e que responde pela maior
parte dos postos de trabalho disponíveis.
Ainda que tais previsões catastróficas não se concretizem, sobre-
tudo ante a necessidade de o sistema capitalista promover o equi-
líbrio entre a busca pela “redução do tempo de trabalho a um
mínimo” ao mesmo tempo em que coloca “o tempo de trabalho
como única medida e fonte da riqueza” (MARX, 2011, p. 943), é certo
que as mudanças dos processos produtivos afetam diretamente
a dinâmica das relações de trabalho, devendo tais fenômenos ser
analisados e compreendidos pelos operadores do Direito de modo
a analisar a adequação dos marcos regulatórios para a garantia
de direitos, sobretudo as questões referentes à saúde e bem-estar
social dos trabalhadores no ambiente da indústria 4.0.

2 · O trabalho na indústria 4.0


Os estudos que demonstram a tendência de supressão de postos de
trabalho e redução do nível salarial dos trabalhadores, com a transi-
ção do modelo de produção vigente para o modelo previsto na quarta
revolução industrial, partem do pressuposto de que as novas tecno-
logias, sobretudo as chamadas “fábricas inteligentes”, tendem a eli-
minar os chamados quadros intermediários,1 uma vez que as tarefas
desenvolvidas por esses trabalhadores possuem alto risco de passa-
rem a ser realizadas, no todo ou em parte, pelas máquinas.

1 O conceito se encontra detalhado no texto de Lojkine (2007) e foge ao


objetivo do presente trabalho. Entretanto é relevante, para promover
um maior entendimento da temática para os fins deste estudo, analisar
notas de tradução elencadas à fls. 35-36 do texto original. A expressão
quadros (cadres) se refere aos empregados que possuem um bom nível
de formação educacional e realizam tarefas de gestão pública e privada,
podendo ser equiparada ao conceito de “altos empregados” utilizado na
doutrina nacional. Por sua vez, a expressão quadros intermediários, ou
employés, se refere aos empregados que se encontram em uma faixa de
remuneração intermediária, entre os quadros de gestão que possuem maior
autonomia e em geral exercem o poder diretivo por delegação e os operários
propriamente ditos, ou seja, os que efetivamente atuam na produção.

303
São especialmente suscetíveis a essa mudança os trabalhadores
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

intelectuais que possuíam, no conhecimento técnico consolidado,


sua capacidade de armazenar e trabalhar informações qualifica-
das, uma utilidade para o processo produtivo que era bastante difí-
cil de se reproduzir por meios informatizados ou com o uso de mão
de obra menos qualificada.
Esses trabalhos intelectuais de nível intermediário de complexi-
dade podem ser definidos como aqueles que utilizam aplicação da
inteligência humana para a realização de tarefas concretas e inter-
mediárias ao processo produtivo. Tal espécie de trabalho intelec-
tual permite resolver problemas no processo de produção que são
variáveis e fogem de padrões, exigindo conhecimento técnico para
sua resolução. Contudo, por maior que seja a gama de variações dos
problemas apresentados, existe sempre um número finito e conhe-
cido de resultados esperados, consistentes na entrega do trabalho
pelo profissional especialista, materializada em um serviço ou pro-
duto que pode ser mensurado.
Em relação a tais processos, Simone Wolff ressalta que a tecnologia
possibilita a privatização da informação pelos detentores do capital
e a estratégia de “capitalização do conhecimento” (WOLFF, 2009,
p. 205-206) por meio da transformação gradual do conhecimento
do trabalhador intelectual em protocolos passíveis de serem repro-
duzidos pelas máquinas das “fábricas inteligentes” da indústria
4.0, em um verdadeiro processo de codificação desse know-how
(WOLFF, 2009, p. 105).
Portanto, é cada vez mais frequente a demanda pelo desenvol-
vimento de processos de “codificação do trabalho”, por meio dos
quais engenheiros de software tentam “algoritmizar” as tarefas
exercidas pelos trabalhadores e, com isso, conseguir obter os mes-
mos resultados (serviços e produtos) com menor necessidade de
trabalho humano qualificado.
Nesse aspecto, surgem argumentos fortes no sentido de que o pro-
blema crucial a ser enfrentado na dinâmica das relações de trabalho
da quarta revolução industrial não será apenas criar novos empre-
gos, mas sim criar novos empregos que os humanos façam melhor
que algoritmos (HARARI, 2017). Harari (2016, p. 321) adverte:
Robôs e impressoras 3-D já estão os substituindo em trabalhos
manuais, como o de fabricar camisas, e algoritmos altamente

304
inteligentes farão o mesmo com as ocupações de colarinho-branco.

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Funcionários de banco e agentes de viagem, que até pouco tempo
estavam totalmente imunes a uma possível automação, tornaram-
-se espécies em perigo. De quantos agentes de viagem vamos pre-
cisar quando pudermos usar nossos smartphones para comprar
passagens aéreas de um algoritmo?

Entretanto, embora tal processo seja gradual, e a substituição


plena do conhecimento e capacidade de trabalho do ser humano
não seja factível neste momento, deve-se ressaltar que, na lógica do
sistema de produção capitalista, uma máquina não precisa ter uma
performance perfeita ou superior à humana para ser utilizada em
larga escala e suprimir postos de trabalho. Basta que apresente um
melhor “custo-benefício” em termos de produção.
A tecnologia, porém, ainda não tem se revelado suficiente para
eliminar completamente o trabalho humano da equação, embora
tenha suprimido postos de trabalho e trazido reduções salariais
para parcela da classe trabalhadora. Isso se deve ao fato de que boa
parte das tarefas necessárias para o desenvolvimento de máqui-
nas inteligentes que materializem o processo de codificação do
saber do trabalhado é feita por meio da produção e tratamento dos
dados qualificados. Tais processos, entretanto, não são automáti-
cos, sendo ainda necessária a realização de trabalho humano para
catalogar e promover o tratamento de dados para transformar a
informação bruta em conhecimento apto a ser alimentado para o
desenvolvimento das máquinas.
Contudo, as novas tecnologias de informação permitem a reali-
zação dessas tarefas à margem das relações formais. Esse tipo
de delegação pode ocorrer por meio do trabalho direto e sub-
-remunerado na figura dos chamados “turcos mecânicos”, como
narra Scholz (2016, p. 42):
Desde 2005, a Amazon opera uma intermediação online do traba-
lho por meio da Mechanical Turk, onde trabalhadores podem se
cadastrar e escolher tarefas de uma longa lista. De forma simi-
lar ao trabalho fragmentado da indústria têxtil, a Mechanical
Turk permite que um projeto seja quebrado em milhares de
partes, que então são distribuídas aos “trabalhadores da multi-
dão”. Geralmente com boa escolarização, trabalhadores novatos
ganham em torno de dois a três dólares por hora nesse ambiente.
Assim como trabalhadores migrantes, advogados ou temporários
na indústria alimentícia, eles trabalham longas horas, são mal
305
remunerados e tratados pobremente por chefes virtuais, com
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

pouco ou nenhum benefício.

Esses processos de trabalho, entretanto, podem ser realizados até


mesmo sem o uso de trabalhadores, no sentido clássico ou mesmo
expandido do termo, por meio do chamado crowdsourcing,2 definido
por Howe como “o ato de se delimitar um trabalho ou tarefas tra-
dicionalmente realizadas por um empregado e terceirizá-las para
uma multidão indefinida” (FELSTINER, 2010, p. 145-146).
Ressalte-se, ainda, que, ao substituir tarefas originariamente rea-
lizadas por trabalhadores intelectuais em nível intermediário de
gestão, uma máquina pode, inclusive, gerenciar outros emprega-
dos humanos mediante instruções pré-programadas no algoritmo,
configurando-se assim uma hipersubordinação algorítmica.
Portanto, mesmo que esse processo de transição entre o sistema
produtivo tradicional e o sistema 4.0 ainda esteja em andamento, é
certo que as novas tecnologias de informação da quarta revolução
industrial induzem a um processo de busca de controle e eficiência
máximos, criam uma dinâmica nas relações de produção que se
assemelha a um “neotaylorismo informático” (LIMA, 2012, p. 117).
Esse fenômeno, a exemplo do taylorismo originário, deve ser ana-
lisado em vista do impacto nos processos de trabalho e da saúde
dos trabalhadores envolvidos, notadamente em virtude de como
o emprego das novas tecnologias pelas empresas gera a disrupção
dos sistemas tradicionais mediante a supressão de postos de traba-
lho ou da alteração do modo, intensidade e enquadramento jurídico
por meio dos quais o trabalhador passa a prestar seus serviços.

2 Felstiner utiliza a expressão “clickwrap” para definir um conjunto de regras que


são impostas aos usuários/consumidores de um serviço ou produto fornecido
por meio eletrônico, em geral mediante a assinatura de um “termo de uso”.
Nesse termo, os usuários devem manifestar expressamente um aceite das
regras pré-determinadas para utilizar o serviço ou consumir o infoproduto
e, por meio do aceite ao termo, colocam, muitas vezes sem conhecimento, os
dados produzidos em sua atividade de navegação na internet e até mesmo os
recursos de seu computador ou dispositivo eletrônico em favor de empresas
diversas. Assim, a mera utilização de um aplicativo ou software pode fazer
com que um usuário possa ceder sua energia e recursos para a realização de
tarefas típicas do processo de produção, como a coleta de dados, realização de
pesquisa, identificação e reparo defeitos nos sistemas etc.

306
3 · Os impactos da indústria 4.0 na saúde

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


dos trabalhadores
O desenvolvimento da máquina fez com que não mais a ferramenta
trabalhasse no ritmo do homem, mas demanda ao homem traba-
lhar no ritmo da máquina (LEITE, 1982).
Essa relação se aprofunda na quarta revolução industrial, em que
os trabalhadores passam a ser engajados em tarefas que exigem
rápidas tomadas de decisões, responsabilidade e gerenciamento, e
a interação homem-máquina passa a expor os trabalhadores a ris-
cos de saúde e segurança intrinsecamente relacionados ao uso das
ferramentas automatizadas, gerando um maior estresse psicosso-
cial (LESO; FONTANA; IAVICOLI, 2018, p. 327), sobretudo devido ao
receio do desemprego estrutural e da incapacidade de se integrar
aos novos processos produtivos. Nesse aspecto, Pacheco (2005, p.
114-122) narra que a pressão para que os trabalhadores se adaptem
aos sistemas de produção e seu ritmo cada vez mais acelerado é
comum e pode se manifestar de diferentes formas.
Considerando que o conceito de saúde da Organização Mundial de
Saúde (1946) pode ser definido como “um estado de completo bem-
-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e
enfermidades”, a análise dos fatores de risco à saúde física e mental
dos trabalhadores nos novos modelos de produção revela-se como
elemento norteador de toda regulamentação referente à saúde e
segurança do trabalho.
Dentre as condições clínicas mais afetadas pelos processos produtivos
da quarta revolução industrial destaca-se o ostracismo (PACHECO,
2005, p. 120) como estado que se acentua e se sucede de forma recor-
rente em um cenário em que há a percepção de substituição de traba-
lho humano por máquinas. O ostracismo pode desencadear processos
depressivos ante a baixa estimulação do trabalhador, o qual se coloca
em situação de impotência e inação em relação às mudanças.
Ao mesmo tempo em que o ostracismo surge como uma condição
preocupante para a saúde dos trabalhadores, desponta também,
paradoxalmente, uma tendência de aumento do estado de exte-
nuação dos trabalhadores (PACHECO, 2005, p. 120) em virtude do
maior nível de cobrança e exigência de adaptação aos novos meios

307
produtivos. A necessidade de se qualificar e buscar o constante
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

acúmulo de novas informações e conhecimentos para desempe-


nhar tarefas de modo mais eficiente e em conformidade com novos
sistemas e ferramentas tecnológicas pode desencadear quadros de
ansiedade devido à alta estimulação ou “hiperconexão” ao trabalho.
Pacheco (2005, p. 120) revela que tanto o ostracismo quanto a exte-
nuação dos trabalhadores podem culminar no isolamento social
destes, sendo reflexos da incapacidade de o trabalhador conseguir
acompanhar o ritmo das mudanças nos sistemas de produção.
O afastamento dos colegas de trabalho, família e grupos sociais
decorre, nos dois cenários, da insegurança que se estabelece a par-
tir da constatação de inabilidade de contribuir para a produção no
ritmo e qualidade desejados.
Esse cenário de elevado nível de estresse também favorece o desen-
volvimento de patologias, sendo destacadas por Pacheco (2005, p.
121) a Síndrome de Burnout, que pode ser definida como uma sín-
drome de esgotamento, que leva a pessoa ao estado de apatia ou
depressão, com sentimentos negativos e disfunções psicofisiológi-
cas; as doenças somaticoviscerais mediante a ativação do sistema
visceral simpático (SVS) causada por estresse; e os desequilíbrios
neurofisiológicos que podem surgir em virtude de descompensa-
ção do sistema límbico, o qual é responsável pelas diversas intera-
ções entre os sistemas nervoso, endócrino e imunológico.
Embora os aspectos referentes à saúde mental dos trabalhadores
tenham maior relevância e devam ser objeto de maior atenção por
parte do aspecto regulatório do meio ambiente de trabalho, não
se pode descartar que os novos meios de produção da indústria
4.0 também podem elevar a ocorrência de lesões musculoesquelé-
ticas tipicamente relacionadas ao taylorismo (PACHECO (2005, p.
121), mas que igualmente podem se proliferar nos novos meios de
produção, especialmente na área de computação, pela atividade de
digitação e manuseio de equipamentos sem o devido cuidado ergo-
nômico, notadamente telefones celulares.

4 · Conclusão
O presente trabalho buscou demonstrar o funcionamento e a dinâ-
mica das novas tecnologias no processo de produção, bem como
seus potenciais impactos nas relações de trabalho.
308
Foi ainda evidenciado como a natureza dos novos processos

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


industriais gera potenciais riscos para a saúde física e mental
dos trabalhadores, o que, por sua vez, demanda a criação de
novos marcos regulatórios.
Exsurge dessa constatação a importância de que determinados
conceitos e institutos jurídicos já existentes no ordenamento jurí-
dico sejam revisitados pelo legislador e pela doutrina.
Nesse aspecto, a título de proposição e sem pretensão de esgotar o
debate, ressalta-se, à guisa de conclusão, a necessidade de releitura
de três dispositivos já existentes no ordenamento jurídico brasi-
leiro que podem orientar a construção de novas instituições garan-
tidoras da harmonização entre os novos processos de produção e a
saúde dos trabalhadores.
O instituto da proteção contra a automação, na forma da lei, pre-
visto no art. 7º, XVII, da Constituição, deve ser compreendido não
apenas como a proteção dos postos de trabalho mas da saúde física
e mental dos trabalhadores durante os processos de produção,
inclusive naqueles trazidos pela quarta revolução industrial.
Do mesmo modo, a previsão contida no art. 6º, parágrafo único, da CLT,
no sentido de que “os meios telemáticos e informatizados de comando,
controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurí-
dica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão
do trabalho alheio”, ganha especial relevo para se repensar o enqua-
dramento dos trabalhadores envolvidos estruturalmente na dinâmica
das novas relações de produção, ainda que de modo informal.
Por fim, o art. 218, § 2º, da Constituição dispõe que a pesquisa tec-
nológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos pro-
blemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produ-
tivo nacional e regional, devendo tal dispositivo ser interpretado
de modo a abranger também a pesquisa tecnológica alinhada
com as pesquisas na área jurídica, a fim de se promover a criação
de novos marcos regulatórios.

Referências
FELSTINER, A. Working the crowd: Employment and labor law in the
crowdsourcing industry. Berkeley Journal of Employment and Labor Law, v. 32,
n. 1, p. 143-204, 2010.
309
FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL. Report the future of jobs: Employment,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

skills and workforce strategy for the fourth industrial revolution.


Genebra, 2016. Disponível em: http://reports.weforum.org/future-of-jo
bs-2016. Acesso em: 14 jan. 2019.

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Trad.
Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

HARARI, Yuval Noah. The meaning of life in a world without work. Entrevista
ao Jornal “The Guardian”. 8 de maio de 2017.

LEITE, Jorge. Notas para uma introdução ao Direito do Trabalho. Coimbra:


Coimbra, 1982.

LESO, V.; FONTANA, L.; IAVICOLI, I. The occupational health and safety
dimension of Industry 4.0. Mattioli 1885 journals: La Medicina del Lavoro,
Parma-Itália, v. 109, n. 5, p. 327-338, 29 out. 2018. Disponível em: https://
www.mattioli1885journals.com/index.php/lamedicinadellavoro/article/
view/7282. Acesso em: 19 jan. 2019.

LIMA, Vinícius Moreira de. Relação de trabalho versus relação de emprego: a


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LOJKINE, Jean. O novo salariado informacional: nas fronteiras do salariado.


Tradução de Henrique Amorim. Revista Crítica Marxista, Rio de Janeiro,
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MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da


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ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição da Organização Mundial


da Saúde (OMS/WHO) – 1946. 21 Mar. 2017. Disponível em: http://www.
direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mun
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PACHECO, Waldemar et al. A era da tecnologia da informação e comunicação


e a saúde do trabalhador. Rev. Bras. Med. Trab., Belo Horizonte, v. 3, n. 2, p.
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SCHOLZ, Trebor. Cooperativismo de plataforma: contestando a economia


do compartilhamento corporativa. Tradução: Rafael Zanatta. São Paulo:
Fundação Rosa Luxemburgo; Editora Elefante; Autonomia Literária, 2016.

SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução: Daniel Moreira


Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.

310
WOLFF, Simone. O espectro da reificação em uma empresa de telecomunicações:

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


o processo de trabalho sob os novos parâmetros gerenciais e tecnológicos.
Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

WOLFF, Simone. O “trabalho informacional” e a reificação da informação


sob os novos paradigmas organizacionais. In: ANTUNES, Ricardo; BRAGA,
Ruy (Org.). Infoproletários: degradação real do trabalho virtual. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2009.

311
Jurimetria e predição: notas sobre uso dos
algoritmos e o Poder Judiciário

Adriana Goulart de Sena Orsini


Desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª
Região. Professora Associada III da Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-
-Doutora em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo desenvolver temas referentes


à inteligência artificial e à jurimetria. O estudo aborda a problemática
da predição no big data oriundo do Poder Judiciário, os riscos, além
do resultado de pesquisa na internet de um dos serviços encontrados.
Foram abordados os normativos estrangeiros, em especial a Lei francesa
n. 2019-22, que limitou o acesso aos dados do Poder Judiciário. A pesquisa
bibliográfica foi realizada a partir da revisão de literatura que aborda os
temas da jurimetria e da predição, bem como do acesso à justiça.

Palavras-chave: Jurimetria. Predição. Algoritmos. Acesso à justiça.

Abstract: This article aims to develop themes related to artificial


intelligence and jurimetry. The study addresses the problem of prediction
in the big data from the judiciary, the risks, and the result of internet
search of one of the services found. Foreign norms, in particular French
law no. 2019-22 which limited access to data from the judiciary. The
literature search was performed from the literature review that addresses
the themes of jurimetry and prediction, as well as access to justice.

Keywords: Jurimetry. Prediction. Algorithms. Access to justice.

1 · Considerações iniciais
O artigo abordará aspectos referentes à inteligência artificial e ao
chamado data mining, com o cuidado que o tema merece ao Direito.
Em seguida, analisará os temas da jurimetria e da predição no

313
Poder Judiciário. Serão mesmo inexoráveis e ilimitados em face do
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

princípio da transparência pelo Poder Judiciário?


No desenvolvimento do trabalho será exposto um exemplo de predi-
ção jurídica encontrado na rede mundial de computadores. Quando,
então, procurar-se-ão as respostas para as seguintes perguntas: a
comercialização dos dados, resultados, probabilidades e predições
oriundas do big data referentes às decisões do Poder Judiciário brasi-
leiro é jurídica e eticamente adequada? A disponibilidade de recursos
tecnológicos capazes de atender aos interesses acima elencados não
pode ser limitada pelo Poder Judiciário? Para auxiliar nas respostas,
será objeto de estudo a Lei francesa n. 2019-222 e seu artigo 33.
A vertente metodológica adotada na investigação científica foi
a jurídico-sociológica, a técnica adotada foi a pesquisa teórica
e o tipo escolhido foi o chamado jurídico-projetivo ou jurídico-
-prospectivo, de grande importância para análise de tendências,
em que se partiu de premissas e condições vigentes para detec-
tar tendências futuras de determinado instituto jurídico ou de
determinado campo normativo específico (GUSTIN, 2010, p. 29).

2 · Inteligência artificial, potencialidade e campo jurídico


Marvin Minsky e Seymour Papert lançaram as bases para o sur-
gimento do paradigma simbólico na Inteligência Artificial (IA).
Esse paradigma aborda a simulação da inteligência não por meio
da construção de hardware específico, mas no desenvolvimento de
programas computacionais que operam sobre dados ou represen-
tações (TEIXEIRA, 1998).
A Inteligência Artificial fundamenta-se na ideia de que é possível
modelar o funcionamento da mente humana através do computa-
dor. Lévy (1998b) afirma que os fundadores da Inteligência Artificial
foram Herbert Simon, John McCarthy e Marvin Minsky, que acre-
ditavam firmemente que a inteligência é um mecanismo.
A simulação do comportamento humano é um dos objetivos de
experimentos de programações, buscando interações com noções
de inteligência, raciocínio e criatividade, de modo a possibilitar
que a máquina virtual tenha uma atuação autônoma e indepen-
dente. A finalidade é propiciar o aprendizado da máquina para o
desempenho de tarefas sem a interferência humana, por exemplo:

314
nos carros autônomos, nas interfaces virtuais de programas de

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


internet, no reconhecimento de palavras em tradutores e na fixa-
ção de diagnósticos médicos.
O avanço das pesquisas do poder artificial, especialmente diante
do desenvolvimento de recursos de reconhecimento de voz, ima-
gem e letras, é hoje uma realidade.
Na seara jurídica, a inteligência artificial também se faz presente,
não estando limitada a otimizar procedimentos e a facilitar bus-
cas, como já vinha sendo feito há vários anos. A potencialidade
vinha sendo testada com a promessa de ser possível antever futu-
ras demandas judiciais e (ou) decisões com base em acontecimen-
tos e (ou) comportamentos humanos.
Ainda que não seja um exemplo de predição, o Projeto Victor, anun-
ciado em 2018, é exemplo do uso de um software de inteligência
artificial para agilizar processos no Supremo Tribunal Federal
(STF), com a conversão de imagens de processos em textos digi-
tais, e também identificar se recursos extraordinários que chegam
à Corte estão vinculados a temas de repercussão geral.1

3 · O data mining e seus níveis


Conforme Silva, Peres e Boscarioli (2016, p. 11),
a mineração de dados é definida em termos de esforços para desco-
berta de padrões em bases de dados. A partir dos padrões descober-
tos, têm-se condições de gerar conhecimento útil para um processo
de tomada de decisão.

Fayyad et al. (1996) apresentam a mineração de dados em dois níveis,


sendo o primeiro as tarefas preditivas (predizer valores futuros ou
desconhecidos de outros atributos de interesse) e as tarefas descriti-
vas (encontrar padrões que descrevem os dados de maneira que o ser
humano possa interpretar). No segundo nível, as tarefas preditivas e
descritivas se especializam. No conjunto das tarefas preditivas, são
inseridas a classificação e a regressão. Nas descritivas, colocam-se as
especializações denominadas de agrupamento, sumarização, mode-
lagem de dependências e detecção de desvios.

1 Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/10/09/Como-a-i


ntelig%C3%AAncia-artificial-tem-sido-usada-no-Direito. Acesso em: 4 nov. 2019.

315
A mineração de dados tem sido realizada no Brasil, inclusive nos
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

dados oriundos do Poder Judiciário, conforme tópico a seguir.

4 · Jurimetria e modelos preditivos:


a estatística aplicada ao Direito
Os modelos estatísticos buscam prever, em diversas áreas, qual
a probabilidade de ocorrência de determinado evento, seja para
buscar evitá-lo, seja para mensurar qual será a sua consequência,
isto desde o século XVII, quando a teoria das probabilidades foi
concebida por Pascal e Fermat (STIGLER, 1986). Muitas áreas se
utilizam da estatística como meio de compreender melhor sua
dinâmica e complexidade, usando dados colhidos no passado para
que se possa prever o futuro.
Tratando a jurimetria, em seu conceito mais simples, da junção
do Direito com a Matemática e a Estatística, deve-se assinalar que
aquela guarda com a última objetivos coincidentes, diferindo-se
tão somente quanto à área em que é aplicada.
Nas palavras de Katz (2013), a capacidade de prever, de modo acu-
rado, resultados jurídicos seria revolução da informação no Direito;
todavia, consoante o que o próprio autor afirma, essa revolução já
estaria ocorrendo. Destacam-se, nesse tema, os esforços empreen-
didos nessa área, como o trabalho de Ruger et al. (2004), que anali-
sou a capacidade de predizer decisões na suprema corte americana,
confrontando previsões de especialistas com predições, resultando
em um percentual de 75% de correção para o modelo de predição
estatística contra 59,1% de acertos entre os especialistas.
A utilização da estatística aplicada ao Direito é recorrente no direito
americano há muito tempo. Oliver Holmes Jr., no ano de 1897, já
mencionava, na obra The Path of the Law, que o “homem das leis” do
futuro seria aquele que dominasse a estatística e a economia. Desde
a década de 1960, o direito americano tem lidado com esse aspecto
pouco conhecido no campo do direito brasileiro (LOEVINGER, 1963).
Lee Loevinger é considerado o pai da jurimetria, sendo seu tra-
balho referência para todos os estudos jurimétricos mais sérios.
Segundo o autor:
The terms “science” and “law” have both been used for so long by so
many writers with such a variety of meanings, dear and unclear, that
316
one who aspires to clarity or rigor of thought or expression might well

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


hesitate to use either one. The lawyers are no more agreed on what
constitutes “law” than are the scientists on the meaning of “science”.
Further, there have been many who claimed that law is a science, and it
is still asserted by eminent scholars that jurisprudence is “the science
of law”. Exhaustive reading is not required to establish that there is
neither an authoritative nor a generally agreed definition for any of the
terms “ jurisprudence”, “science” or “law”. Nevertheless, each of these
terms does designate an activity that is being conducted by an identi-
fiable group of men. Lawyers and judges are engaged in practicing law
and adjudicating. There are physicists, chemists, biologists, anthropol­
ogists, psychologists, and a host of others, engaged in activities that
are universally recognized as science. And numerous professors, joined
by an occasional eccentric lawyer, are engaged in writing articles and
books that are either labelled or indexed as “ jurisprudence”. Without
undertaking either an exhaustive or definitive analysis of the activities
of these groups, the general nature of their respective activities is fairly
evident. Lawyers and judges generally are engaged in seeking to apply
the principles or analogies of cases, statutes, and regulations to new
situations. Scientists generally are engaged in collecting experimental
and statistical data and in analyzing them mathematically. Writers on
jurisprudence are engaged in the philosophical analysis of legal con-
cepts and ideas. (LOEVINGER, 1963, p. 5).2

2 “Os termos ‘ciência’ e ‘lei’ foram usados por


​​ tanto tempo por tantos escritores
com uma variedade de significados, desejados e pouco claros, que quem aspira
à clareza ou ao rigor do pensamento ou expressão pode hesitar em usar.
Os advogados não concordam mais sobre o que constitui ser a ‘lei’ como os
cientistas sobre o significado de ‘ciência’. Além disso, muitos alegaram que
o direito é uma ciência, e ainda é afirmado por estudiosos eminentes que a
jurisprudência é ‘a ciência do direito’. Não é necessária uma leitura exaustiva
para estabelecer que não há uma autoridade ‘autoritária’ nem uma concordância
geral de definição para qualquer um dos termos ‘jurisprudência’, ‘ciência’ ou
‘lei’. No entanto, cada um desses termos designa uma atividade que está sendo
conduzida por um grupo identificável de homens. Advogados e juízes estão
envolvidos na prática da lei e na da adjudicação. Existem físicos, químicos,
biólogos, antropólogos, psicólogos e muitos outros envolvidos em atividades
que são universalmente reconhecidas como ciência. E vários professores,
acompanhados por um ocasional advogado excêntrico, estão envolvidos na
redação de artigos e livros rotulados ou indexados como ‘jurisprudência’. Sem
realizar uma análise exaustiva ou definitiva das atividades desses grupos, a
natureza geral de suas respectivas atividades é bastante evidente. Advogados
e juízes geralmente se empenham em tentar aplicar os princípios ou analogias
de casos, estatutos e regulamentos a novas situações. Os cientistas geralmente
estão envolvidos na coleta de dados experimentais e estatísticos e na análise
matemática deles. Os escritores de jurisprudência estão envolvidos na análise
filosófica de conceitos e ideias jurídicas.” [Tradução livre].
317
Segundo Pinto e Menezes (2014, p. 36), a jurimetria
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

[...] não busca a padronização (estandartização) das decisões judi-


ciais. Isto é, a Jurimetria não é um método que pretenda substituir
o julgador (Juiz ou Decisor) por um conceito racional extraído de um
conjunto de decisões de casos anteriores. Mesmo que as decisões
sejam organizadas por grupos de assuntos para melhor compreen-
são da realidade social, haverá sempre um Juiz decidindo o assunto
submetido ao seu poder decisório de resolução de conflito social.

Quando se faz jurimetria, busca-se dar concretude às normas e às


instituições, situando no tempo e no espaço os processos, os juí-
zes, as decisões, as sentenças, os tribunais, as partes, entre outros.
Enxerga-se o Judiciário como um grande gerador de dados que des-
crevem o funcionamento completo do sistema. Estuda-se o Direito
através das marcas que este deixa na sociedade.
Os modelos preditivos são considerados como um segundo passo
na aplicação da jurimetria. São funções matemáticas que, aplicadas
a certo volume de dados, identificam não apenas padrões como ofe-
recem previsões do que pode ocorrer.
A chamada predição jurídica é um campo da jurimetria, destacan-
do-se em razão da relevância da matéria, como também decorrente
do exponencial aumento das capacidades técnicas oriundas de tec-
nologias como big data e do aprendizado de máquina (KATZ, 2013).
Pinto e Menezes (2014) afirmam ser muito comum encontrar em
artigos, alguns deles inclusive propagandísticos, serviços de consul-
toria que buscam acesso privilegiado aos tribunais e ao Ministério
Público para mapear as tendências de decisão e vender seus ser-
viços a escritórios de advocacia ou empresas que possuem grande
demanda judicial. Uma breve pesquisa na rede mundial de computa-
dores demonstra que o comércio afirmado já é uma realidade:
O objetivo passa a ser descobrir os resultados dos processos que estão
sob responsabilidade do departamento jurídico ou do escritório. Por
meio desses modelos preditivos, é possível saber se a ação será proce-
dente ou improcedente, quanto tempo o processo judicial demorará
para ser julgado e qual será o provável valor da indenização.3

3 Disponível em: https://www.mediacaonline.com/blog/jurimetria-entenda-como


-os-dados-podem-ajudar-o-setor-juridico/. Acesso em: 4 nov. 2019.

318
Solução. O AIJUS coleta dados de todos os tribunais e diários oficiais,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


integrando qualquer base jurídica existente, e implementa o que há
de mais avançado em Inteligência Artificial, incluindo buscas, cál-
culos financeiros, predições e recomendações. Reduz o número de
processos usando Inteligência Artificial. Automatiza o cadastro de
processos, eliminando erros humanos. Compara seus processos com
ao menos 3 concorrentes. Otimiza o provisionamento para redução
da contingência. Oferece uma gestão eficaz de escritórios terceiros.
Facilmente integrado com softwares jurídicos de Mercado.4

Métodos jurimétricos são aplicados na advocacia. O uso pelo advo-


gado pode se dar na avaliação de medidas de evidência em pro-
cessos, no suporte à argumentação, que passa a ser baseada em
conceitos e modelos estatísticos, os quais são construídos a partir
dos dados disponíveis e da experiência dos envolvidos.
Uma pesquisa na internet com o argumento jurimetria5 nos demons-
tra, de forma breve, como estão sendo anunciadas as descober-
tas e as aplicações, além de ter um direcionamento como um
mercado a ser explorado:
A jurimetria, por exemplo, é uma técnica que pode ser empre-
gada nessa análise. Com base em modelos estatísticos, então, é
possível compreender processos e fatos jurídicos. E, consequente-
mente, extrair dados essenciais à tomada de decisão na advocacia.
A Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), por exemplo, busca
incentivar a aplicação da metodologia no Direito. Conforme expli-
cação da ABJ: “Por causa dessa relação direta com o funcionamento
do judiciário, os agentes do Direito sempre podem se beneficiar de
um diálogo com os jurimetristas. Se o jurista pergunta ‘Devemos
começar o cumprimento de pena em segunda instância?’, o jurime-
trista perguntará ‘Em quantos casos isso seria injusto?’. Se o tri-
bunal questiona ‘Qual tipo de processo é mais complicado?’, o juri-
metrista perguntará ‘Qual é o tipo de processo que demora mais?’.
Se o advogado pergunta ‘Em quanto indenizar-se-á o dano moral?’,
o jurimetrista perguntará ‘Quanto se pagou em casos similares?’”.
E existem softwares e aplicativos que podem ser utilizados, como o

4 Disponível em: http://semantix.com.br/semantix-aijus/. Acesso em: 4 nov. 2019.


5 Afirma-se não desconhecer que a pesquisa realizada pode (e provavelmente foi) ter
sido induzida pelo Google Search em face de pesquisas anteriores de lavra desta
autora, e que, portanto, pode ser diferente se realizada no sistema de pesquisa
private e (ou) por outro pesquisador em face de suas pesquisas anteriores.

319
Convex Legal Analytics. O software, então, fornece análises descri-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

tivas e diagnósticas, além de análises preditivas, em uma conexão


de dados extraídos do passado e do presente de uma determinada
situação. (BASTOS, 2019).

O trecho acima, além de explicar o que é a jurimetria, em linguajar


acessível inclusive a leigos, afirma existir a Associação Brasileira
de Jurimetria, ofertando um produto – Convex Legal Analytics –
que, segundo o site, é um software para fornecimento de análises
descritivas, diagnósticas e preditivas.6
Segundo Zabala e Silveira (2014, p. 79-80), a predição é afirmada
como um recurso interessante para o advogado avaliar a possibi-
lidade “de ganhar ou perder uma causa” ou estudar a viabilidade
econômica antes de iniciar uma ação judicial, baseado em dados
históricos e elementos específicos de cada caso:
É possível quantificar a chance de êxito com base na análise de
variáveis comuns e na jurisprudência consolidada para casos de
ações em massa. Utilizando alguma medida de “chance de sucesso”,
podem-se mensurar de forma mais precisa os valores a ser cobra-
dos em casos de honorários condicionais ao êxito. Antecipar resul-
tados com relativa eficiência é, portanto, uma das muitas possibi-
lidades da aplicação jurimétrica bem planejada. À luz das decisões
anteriores e de outras variáveis do processo, é possível decidir com
muito mais segurança a respeito do ajuizamento de ações, uma
vez que os modelos estatísticos permitem fornecer subsídios mais
sólidos aos clientes, sendo uma segurança para o próprio advogado
ou escritório. (ZABALA; SILVEIRA, 2014, p. 80).

Portanto, ainda que o Poder Judiciário não tenha se dado conta


do que tem sido realizado e oferecido no campo da jurimetria e da
predição, o certo é que tais recursos já são uma realidade no Brasil.

5 · Conceito expansionista de dados, os pessoais


e os sensíveis: o que os normativos estrangeiros
podem nos dizer
A Declaração Europeia dos Direitos do Homem e a Declaração
da ONU dos Direitos Humanos são as primeiras declarações
internacionais subscritas por países europeus que mencionam

6 Disponível em: http://semantix.com.br/semantix-aijus/. Acesso em: 4 nov. 2019.


320
a privacidade e o direito à sua proteção. Entretanto, tratavam de

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


maneira vaga e indireta a proteção dos dados pessoais.
Por seu turno, a Convenção n. 108, do Conselho da Europa, esta-
beleceu a proteção de indivíduos relativa ao processamento auto-
mático de tratamento de dados, almejando instituir métodos mais
criteriosos como a previsão das “garantias relativas à coleta e tra-
tamento de dados pessoais”. Assim, proíbe,
na ausência de garantias jurídicas adequadas, o tratamento de
dados “sensíveis”, tais como dados sobre a raça, a opinião polí-
tica, a saúde, as convicções religiosas, a vida sexual ou o registo
criminal de uma pessoa.

Em 1995, buscando aperfeiçoar e dar corpo à Convenção n. 108,


a União Europeia promulgou a Diretiva 95/46/CE, que objetivava
estabelecer, harmonizar e promover igualdade no tratamento de
dados pessoais pelos Estados-Membros. Como se tratava de uma
diretiva, era necessário que cada Estado adotasse o texto comu-
nitário em seu direito interno, o que acabou por gerar diferentes
níveis de proteção em cada um dos países europeus.
O Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas
singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pesso-
ais e à livre circulação desses dados, revogou a Diretiva 95/46/CE
(Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados).
Dois anos depois, o Regulamento Geral de Proteção de Dados
(GDPR) na União Europeia, com 11 capítulos e 99 artigos, entrou em
vigor (25 de maio de 2018), atualizando, harmonizando e adaptando
a antiga Diretiva Europeia de Proteção de Dados às mais novas for-
mas de uso massivo de dados pessoais, tais como os modelos de
negócio baseados em tecnologias de big data, inteligência artifi-
cial e aprendizado de máquina. Estabelece as regras relativas ao
tratamento, por uma pessoa, uma empresa ou uma organização,
de dados pessoais relativos a pessoas. Aplicável aos 28 Estados-
-Membros como norma interna. Como não é necessária qualquer
transposição para cada jurisdição nacional, o GDPR garante uma
proteção muito mais efetiva do que a Diretiva 95/46/CE.
Ao definir dados pessoais, o GDPR adotou um conceito expansionista.
Essa é uma estratégia normativa que parte da premissa de que dados
anônimos são sempre passíveis de reversão. Assim, dado pessoal pode
321
referir-se a qualquer tipo de informação que permita sua identifica-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

ção, ainda que o vínculo não seja estabelecido de imediato ou que seja
de maneira indireta ou mediata. Integram o conceito de dados pesso-
ais quaisquer informações que possam ser utilizadas para identificar
uma pessoa, como dados de localização de usuário, IDs de dispositivos
móveis e até endereço IP, em alguns casos.
Nos artigos 4o, itens 13, 14 e 15, e 9o, além dos Considerandos 51 a
56 do GDPR, há previsão sobre os chamados dados sensíveis, que
são os dados pessoais que revelem origem racial ou étnica, opini-
ões políticas e convicções religiosas ou filosóficas; filiação sindical;
dados genéticos, dados biométricos tratados simplesmente para
identificar um ser humano; dados relacionados com a saúde; dados
relativos à vida sexual ou à orientação sexual da pessoa.
No que tange ao tratamento de dados, o artigo 4o, itens 2 e 6, da GDPR
inclui o recolhimento, o registro, a organização, a estruturação, a
conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a
utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra
forma de disponibilização, comparação ou interconexão, a limitação,
o pagamento ou a destruição de dados pessoais. Tal previsão é apli-
cável ao tratamento dos dados pessoais seja por meios total ou par-
cialmente automatizados, bem como ao tratamento por meios não
automatizados de dados pessoais contidos em arquivos (ficheiros).
Em junho de 2019, a European Comission7 divulgou o texto Take
control of your virtual identity #GDPR,8 para esclarecimentos da pro-
teção e dos direitos da identidade virtual.

6 · A coleta de dados no Poder Judiciário, a inviolabilidade


constitucional e o princípio da transparência
Antes da chamada revolução tecnológica nos anos 1990, a coleta de
dados era muito difícil, uma vez que o Poder Judiciário e os operadores
do Direito produziam documentos de modo analógico e inexistiam
métodos acessíveis de análise e classificação de dados. Atualmente,

7 Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/priorities/justice-and-fund


amental-rights/data-protection/2018-reform-eu-data-protection-rules/
eu-data-protection-rules_en. Acesso em: 4 nov. 2019.
8 Disponível em: https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/virtual_idenitity_en.
pdf. Acesso em: 4 nov. 2019.

322
com a informatização de quase todo o sistema processual brasileiro,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


além da obrigatoriedade legal de publicidade da quase totalidade
dos processos, existem bytes e mais bytes de dados gerados pelo
Judiciário, consolidados nas versões online dos diários oficiais ou nos
próprios sites dos tribunais. São dados brutos que podem servir às
mais diversas análises, quantitativas ou qualitativas.
Conforme salientado acima, os avanços tecnológicos não se limi-
tam a colocar à disposição essas informações para uma pesquisa
granular, individual e manual. O big data proporciona o armazena-
mento quase ilimitado de dados textuais e a análise de tais dados,
mesmo que não estejam estruturados. É possível extrair informa-
ções relevantes de uma gigantesca massa de dados não tabulados,
identificando padrões e sugerindo conclusões a partir destes.
Hoje já é possível a máquina substituir o profissional do Direito na
tarefa de analisar os complexos documentos jurídicos via algorit-
mos. O aprendizado de máquina e a inteligência artificial multipli-
cam a eficiência do profissional ao analisar as milhares de linhas de
texto disponíveis. Basta que os parâmetros certos sejam “ensina-
dos” pelo operador do Direito ao algoritmo de inteligência artificial,
delegando ao sistema todo o trabalho pesado.
Ao analisar as posições a propósito do fornecimento da massa de
dados jurídicos via, por exemplo, disponibilização da integralidade
dos julgados pelos tribunais, vê-se que a maioria dos textos produ-
zidos afirma apenas que, com a disponibilização da integralidade
dos julgados pelos tribunais, em seu inteiro teor, seria possível rea-
lizar a leitura da atuação dos tribunais pela perspectiva do usuário.
Veçoso et al. (2014, p. 127), em pesquisa realizada sobre a jurispru-
dência dos tribunais superiores, propõem que os tribunais dispo-
nibilizem no banco de dados jurisprudenciais de suas páginas ele-
trônicas todos os julgados, pois, “ao fornecer a integralidade dos
julgados e permitir que o sistema de busca varresse o inteiro teor
das decisões”, surgiriam outras iniciativas adequadas para contri-
buir ao aprimoramento dos sistemas.
Todavia, ao disponibilizar tal imensidão de dados, inclusive os cha-
mados dados sensíveis e os dados pessoais, não estaria o Poder
Judiciário infringindo as normativas internacionais acima men-
cionadas? Não estaria, por outro lado, em um mercado já em atua-
ção fornecendo dados pessoais e sensíveis de forma gratuita e sem
323
qualquer limitação às buscas e ao armazenamento pelos sistemas
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

de big data? As respostas são afirmativas e, data venia, preocupan-


tes, quando se pensa que o Poder Judiciário como parte do Estado e
guardião de dados sensíveis e pessoais de inúmeros cidadãos juris-
dicionados não poderia disponibilizar tais dados, sem limites claros
e restritivos aos sistemas de mineração de dados em big data.
Os sistemas já estão em pleno funcionamento e, em que pese poderem
garimpar os dados de forma gratuita e transparente na maior parte de
banco de dados de tribunais, cobram de seus clientes o serviço de mine-
ração, estatísticas, probabilidades e predição de dados e bases jurídicas.
Na rede mundial de computadores é possível acessar o site da
Semantix, que apresenta a empresa como
[...] referência em Big Data e Data Science, que desenvolve soluções
no modelo Data Driven para as organizações de todos os setores da
indústria, gerando insights para a tomada de decisões mais asser-
tivas, otimizando os processos e aumentando a rentabilidade e
satisfação do cliente. Fundada em 2010 no Brasil e hoje presente
na América Latina, a Semantix fornece produtos e soluções com
plataformas completas de Big Data e Inteligência Artificial.9

Entre seus produtos está o Aijus, que


coleta dados de todos os tribunais e diários oficiais, integrando
qualquer base jurídica existente, e implementa o que há de mais
avançado em Inteligência Artificial, incluindo buscas, cálculos
financeiros, predições e recomendações.

Com o título redução de provisionamento, a empresa afirma que o Aijus,


[...] por meio da análise sobre o provisionamento, [...] é capaz de
prever processos procedentes e improcedentes, possibilidade e
valor do acordo, prazo do processo, além de identificar os melho-
res advogados e processos, realizar a propensão ao ajuizamento e
dezenas de outras análises avançadas.10

E, além do plano básico de provisionamento, há o plano Premium,


anunciado com os seguintes serviços:
Volumetria de processos por: ano de distribuição, tribunal, vara,
comarca; busca inteligente na base de processos; informações

9 Disponível em: http://semantix.com.br/sobre-nos/. Acesso em: 4 nov. 2019.


10 Disponível em: http://semantix.com.br/sobre-nos/. Acesso em: 4 nov. 2019.
324
dos processos; dados sobre a eficiência dos tribunais; visua-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


lização da carteira de processos ativos e encerrados; pedidos
por processo; detalhamento das partes do processo; instância
de encerramento dos processos; movimentações dos processos;
súmulas relacionadas aos processos; inteligência artificial para
prever: chance de procedência do processo, previsão financeira,
chance de acordo, associação de pedidos e tempo estimado de
duração do processo.11

No Brasil, os processos e seu conteúdo são públicos, com exceção


de casos de segredo de justiça, embora o acesso à informação seja
relativamente confuso para algo público. Sem credenciais de advo-
gado ou do corpo do tribunal, não é possível que o cidadão comum
consiga ler o teor dos autos eletrônicos se não for parte envolvida e
possuir a senha de acesso.
Aberto, de fato, restam a jurisprudência e as decisões disponíveis
no Diário Oficial, que, para predição e análise de dados com intuito
de entender o perfil de um magistrado ou de uma turma, já são sufi-
cientes. Apesar dos desafios tecnológicos para extração de dados,
é possível acompanhar cada tribunal, todavia, é uma mineração
mais difícil do que aquela em que os dados são importados brutos,
para análise posterior e armazenamento privado.
Considerando o big data, a mineração de dados, os serviços de pre-
dição ofertados em um mercado, pode e (ou) deve o Poder Judiciário
seguir disponibilizando a sua base de dados dos processos e dos
julgamentos de forma integral e gratuita sob o questionável funda-
mento de dever assim fazer em face do princípio da transparência?
O estudo da recente Lei francesa n. 2019-222 e de seu artigo 33
merece ser desenvolvido para uma resposta que considere o debate
travado em um país que está sob o manto do GDPR n. 2016/679, em
vigor desde maio de 2018.

7 · A Lei francesa n. 2019-222, a divulgação de


estatísticas sobre decisões judiciais e o Poder
Judiciário brasileiro
A França proibiu a divulgação de estatísticas sobre decisões judi-
ciais, consoante a regra do artigo 33 da Lei de Reforma do Judiciário

11 Disponível em: http://semantix.com.br/sobre-nos/. Acesso em: 4 nov. 2019.


325
(2019-222), que adicionou, inclusive, dispositivos a outras leis, como
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

o Código Penal. O artigo 33 estabelece que


os dados de identidade de magistrados e servidores do Judi­
ciário não podem ser reutilizados com o objetivo ou efeito de
avaliar, analisar, comparar ou prever suas práticas profissio-
nais, reais ou supostas.

O artigo 33 (V) da Lei n. 2013-111, que foi modificado pela Lei n. 2019-
222, de 23 de março de 2019, dispõe que os acórdãos dos tribunais judi-
ciais são disponibilizados gratuitamente ao público em formato ele-
trônico, mas sujeitos às disposições especiais que regem o acesso e a
publicidade das decisões judiciais; os nomes e sobrenomes das pessoas
singulares mencionadas na decisão, quando são partes ou terceiros,
ficam ocultos antes da disponibilização ao público. Prevê também que,
quando a divulgação dos dados for suscetível de prejudicar a segu-
rança ou o respeito da privacidade dessas pessoas ou sua comitiva,
também estará oculto qualquer elemento que permita identificar as
partes, os terceiros, os magistrados e os membros do registro.
A violação da proibição à predição é punida com as penalidades pre-
vistas nos artigos 226-18, 226-24 e 226-31 do Código Penal, sem pre-
juízo das medidas e sanções previstas pela Lei n. 78-17, de 6 de janeiro
de 1978, relativa ao tratamento de dados, arquivos e liberdades.
Os artigos L. 321-1 a L. 326-1 do Código de Relações entre o público
e a administração também se aplicam à reutilização da informa-
ção pública contida nessas decisões. Um decreto no Conseil d’Etat
estabeleceu as condições de aplicação do artigo para decisões de
primeira instância, de recurso ou de cassação.
A vedação dos tratamentos ligados à identidade dos magistrados é jus-
tificada pelo argumento de que a construção de perfis individualiza-
dos é contrária ao funcionamento adequado da justiça. Parlamentares
franceses impugnaram a vedação no Conselho Constitucional francês,
alegando que a proibição do tratamento desses dados violaria o prin-
cípio da igualdade, uma vez que a construção dos perfis contribuiria
para o estabelecimento de uma “paridade de armas” entre litigantes.
Entretanto, o argumento foi rejeitado pelo Conselho Constitucional
Francês conforme a Decisão 2019-778 DC,12 na qual se afirmou que

12 Disponível em: https://www.conseil-constitutionnel.fr/decision/2019/201977


8DC.htm. Acesso em: 4 nov. 2019.
326
a predição dos magistrados contribuiria para pressionar a atuação

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


do Poder Judiciário e para que as partes escolhessem estratégias de
litigância em razão das características individuais dos magistrados,
distorcendo o funcionamento da justiça francesa.
Outras restrições previstas na mesma lei envolvem a retirada dos
nomes e sobrenomes das pessoas físicas mencionadas na decisão,
independentemente do fato de serem partes ou terceiros, antes da
disponibilização ao público.
Tal restrição pode ser analisada como um efeito da GDPR, pois
esta leva em consideração o fato de que são dados sensíveis aque-
les que não podem ser disponibilizados ao público, tratando-se de
uma forma de proteção dos envolvidos. Se a divulgação de outras
informações for suscetível de prejudicar a segurança ou o respeito
pela vida privada dessas pessoas ou seus arredores, também não
deve ser publicada qualquer informação que identifique as partes
ou terceiros (v.g., embora o nome não tenha sido citado, é publicado
que a pessoa que depôs é uma mulher que trabalha como a única
bibliotecária em um pequeno vilarejo com apenas 300 pessoas).
As novas regras estabelecidas pelo artigo 33 da Lei n. 2019-222 têm
como alvo mais imediato as chamadas legaltechs, que oferecem solu-
ções de litigância estratégica, bem como as tentativas de pressionar
o Poder Judiciário francês por meio da comparação entre juízes.
Há um crescente incômodo entre os magistrados, sejam franceses
ou não, em face das empresas que usam inteligência artificial para,
com base em dados públicos, analisar como costumam decidir e se
comportar em determinados assuntos de forma a prever o resul-
tado de julgamentos e compará-los com colegas.
Muitos não concordam com a decisão, afirmando que esta não
só atinge um mercado potencialmente relevante para a adequada
promoção da justiça, mas também prejudica iniciativas que pode-
riam contribuir para a transparência e a previsibilidade do pró-
prio Poder Judiciário.
Afirmam que o mercado de tecnologia para o Direito ainda está
em estágio de desenvolvimento, e um dos ramos mais instigantes
é justamente o de análise de dados e a modelagem preditiva. Dessa
forma, entendem que limitar o uso de dados cerceia a inovação e
a criação de novos produtos e novas possibilidades. E, por último,

327
consideraram que a modelagem de dados é igualmente útil ao setor
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

acadêmico e que a inovação não está relacionada somente à econo-


mia, mas também à academia.
O tema é instigante e deve ser objeto de tratamento normativo no
Brasil, especialmente em face dos caminhos que estão sendo tri-
lhados com o armazenamento de milhares de dados nos sites dos
tribunais no Brasil, dados brutos, em servidores privados, por meio
da mineração de dados via big data, bem como a comercialização
de serviços, prognósticos, probabilidades e predições a partir de
tais dados. O Poder Judiciário tem o dever de ser o garante desses
dados pessoais e sensíveis que se encontram em suas bases, não
podendo descurar dessa obrigação, sob o pretenso argumento da
transparência. Transparência, sim, com regulação e responsabi-
lidade. É possível estabelecer parâmetros e limites para o bom e
adequado exercício dos princípios da publicidade dos atos judiciais,
da transparência, da inviolabilidade dos dados pessoais e sensíveis,
bem como da identidade virtual.

8 · Pensar o uso contra-hegemônico dos algoritmos


no Poder Judiciário
A chamada financeirização da justiça, em que o Direito e os direitos
se tornam fetiches, objeto de influência e mando do poderio econô-
mico, tornando-se também uma arma de coerção, deve ser repu-
diada, com todas as vênias, por não se tratar de interesse público a
que esteja o Poder Judiciário obrigado a seguir.
Imprescindível a tomada de consciência dos cidadãos acerca de
seus direitos, de que o Poder Judiciário é um espaço privilegiado
para reinvindicação desses direitos e de que tais espaços existem
também além do Poder Judiciário. O fortalecimento de grupos
sociais por meio de movimentos, associações, sindicatos tem papel
importante nesse espaço de acesso à justiça pela via dos direitos.
Se é possível visualizar a expansão cada vez maior do chamado big
data nos mais diversos âmbitos da vida, é necessário pensar o que
pode estar no cerne da movimentação. Imediatamente, os algorit-
mos se destacam, pois são a mecânica tecnológica codificada que
organiza e dá vida aos dados em larga escala. Todavia, para além
ou em conjunto com esse esforço, torna-se imperioso pensar quem

328
tem o controle de toda essa gama de informações, dados pessoais

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


e até sensíveis, e qual uso faz desse poder e (por que não?) dever.
A partir de um rápido diagnóstico dos diversos usos do big data,
pode-se perceber que, em sua maioria, trata-se da utilização por
meio de um ator e (ou) agente econômico preponderante, seja esta-
tal ou privado. Não é ética e sequer adequada a ideia de que as ferra-
mentas e todas as suas potencialidades se encontram detidas nas
mãos de uma minoria que pode fazer uso de forma quase irrestrita
dessa ferramenta e para seus próprios benefícios. Utilizam dados e
informações de uma ampla maioria que sequer tem conhecimento
de tal fato, ou mesmo que tenha conhecimento, o controle é extre-
mamente difícil no dia a dia.
Logo, a partir dessas reflexões e da constatação de que uma minoria
homogênea detém o acesso ao big data, bem como ao controle de
acesso de utilização desses algoritmos, o exercício necessário é refle-
tir como tal instrumento bem como o big data podem ser utilizados
de forma transparente, isonômica, ética e socialmente consciente.
Assim, pensar a utilização dos algoritmos de forma alijada ao mer-
cado, de modo que estes sejam instrumentos e (ou) facilitadores de
acesso à justiça, é medida que não pode ser olvidada e, no caso do
Poder Judiciário, iniciada, continuada e não abandonada.
Buscando exemplificar o uso contra-hegemônico dos algoritmos
pelo Poder Judiciário, imaginou-se a criação de um algoritmo
interno ao Processo Judicial eletrônico (PJe) para detectar uma
recorrência de pleitos a partir de um mesmo réu em face do des-
cumprimento da legislação. O ajuizamento individual e a não detec-
ção da falta de funcionalidade diante do descumprimento da lei, de
forma rápida, fazem com que o Poder Judiciário não aja de forma
célere, eficiente e coletiva diante da possibilidade do tratamento do
conflito por seus órgãos internos competentes (v.g., Cejuscs).
Assim, o Poder Judiciário poderia programar algoritmos para
detectar determinados comportamentos, palavras e (ou) pedidos
nas petições eletrônicas para que, após um determinado número
de repetições, fosse acionado um sistema dentro do PJe a indicar
que aqueles conflitos se repetem, geram a possibilidade de um tra-
tamento coletivo, podendo ser solucionados, inclusive, pela via con-
sensual, dialógica e preventiva. Uma atuação rápida poderia evitar

329
com eficiência a perpetuação da violação do Direito, bem como efe-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

tivar a solução dos conflitos da forma mais ágil e adequada possível.

9 · Considerações finais
O estudo trouxe aspectos referentes à inteligência artificial e ao
chamado data mining, analisando os temas referentes à jurimetria
e à predição no Poder Judiciário. Em que pesem os argumentos que
defendem o acesso ao big data oriundo dos julgamentos pelos tribu-
nais brasileiros, entendeu-se que a experiência francesa de limitação
da predição em face da existência de dados pessoais, de terceiros e
sensíveis justifica a limitação e a responsabilidade por parte daqueles
que trabalham com dados confiados por meio dos processos judiciais.
O exemplo que foi trazido à colação demonstrou que o mercado de
predição via big data judiciário já é uma realidade, tendo ou não
conhecimento o Poder Judiciário no Brasil.
O artigo examinou a Lei francesa n. 2019-222, bem como os argu-
mentos contrários a uma possível previsão similar no Brasil, para,
considerando os princípios constitucionais da inviolabilidade à
privacidade e da dignidade da pessoa humana, defender que deve
existir uma regulação do tratamento dos dados pessoais, de tercei-
ros e sensíveis, existentes nos processos e nas decisões judiciais.
Pensar, criar e realizar algoritmos de forma independente do mer-
cado e internamente aos poderes públicos brasileiros é medida que
se faz urgente, de modo que passem a ser instrumentos para o efe-
tivo acesso à justiça no Brasil.

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332
Nanotecnologia: da revolução 4.0
à proteção da vida

Patrick Maia Merísio


Procurador do Trabalho. Mestre em Direito e Sociologia
pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Resumo: O presente trabalho pretende realizar exposição sobre a


necessidade de regulamentação das nanotecnologias e seus impactos de
acordo com metodologias baseadas na precaução. Para isso, apresenta
sinteticamente os conceitos de nanotecnologia, formas de regulação,
revolução industrial 4.0, bem como os princípios fundamentais
da precaução e da participação do público. Consiste também em
prestação de contas das atividades desempenhadas pelo Grupo de
Trabalho Nanotecnologia: Impactos na Saúde e Segurança do Trabalho
(Ministério Público do Trabalho).1

Palavras-chave: Nanotecnologia. Impactos. Regulamentação. Revolução


industrial 4.0. Princípios da precaução e da participação do público.
Impactos na saúde e segurança do trabalho.

Abstract: The present work intends to expose the need for regulation of
nanotechnology and its impacts according to precautionary methodologies.
For this it presents synthetically the concepts of nanotechnology, forms of
regulation, industrial revolution 4.0, as well as the fundamental principles

1 Os membros do GT Nano são: Patrick Maia Merísio (Coordenador Titular),


Procurador do Trabalho – PRT 2ª Região (São Paulo); Guilherme Kirtschig
(Coordenador Substituto), Procurador do Trabalho – PRT 12ª Região (Santa
Catarina – Procuradoria do Trabalho no Município de Joinville); Adriane Reis
de Araújo, Procuradora Regional do Trabalho – PRT 2ª Região (São Paulo);
Elaine Noronha Nassif, Procuradora do Trabalho – PRT 3ª Região (Minas
Gerais); Jorsinei Dourado do Nascimento, Procurador do Trabalho – PRT
11ª Região (Amazonas); Sandro Figueiredo Carvalho de Araújo, Procurador
do Trabalho – PRT 1ª Região (Rio de Janeiro); Thais Fidelis Alves Bruch,
Procuradora do Trabalho – PRT 4ª Região (Rio Grande do Sul – Procuradoria
do Trabalho no Município de Santa Maria).

333
of precaution and public participation. It also consists of reporting on the
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

activities performed by the Nanotechnology Working Group: impacts on


health and safety at work (Labor Prosecution Office).

Keywords: Nanotechnology. Impacts. Regulation. Industrial revolution


4.0. Principles of precaution and public participation. Impacts on health
and safety at work.

1 · Introdução
A atividade econômica no século XXI tem se caracterizado por cons-
tantes inovações e mudanças em escala não apenas linear mas expo-
nencial. Os principais aspectos nesta economia amplamente base-
ada na tecnologia de ponta são: a economia digital, a inteligência
artificial, a internet das coisas, a impressão 3D, o armazenamento de
energia e a computação quântica, conforme nos expõe Klaus Schwab,
fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial.2
A nanotecnologia está na base de todas as principais mudanças
tecnológicas, com reflexos importantes na sociedade, cultura e
várias outras esferas. Por nanotecnologia, entendemos o conjunto
de ações de pesquisa, desenvolvimento e inovação, com a organiza-
ção da matéria a partir de estruturas de dimensões nanométricas.
Nanomateriais possuem uma dimensão inferior a 100 nanômetros, e
um nanômetro constitui um bilionésimo de um metro. Sua aplicação
é demasiado extensa em atividades como estética, beleza, farmacêu-
tica, siderurgia, cimento, microeletrônica. Chips e sensores, cada vez
mais, derivam de nanotecnologia. Entretanto, ao mesmo tempo em
que a nanotecnologia abre todo um leque de possibilidades de mate-
riais mais leves, fortes e duráveis, o que pode ser vital para o desen-
volvimento sustentável e a proteção do meio ambiente, aumentam
potencialmente os riscos invisíveis (imperceptibilidade, inclusive em
termos da ausência de mecanismos seguros para avaliar o riscos),
imprevisíveis, globais e intertemporais (com possibilidade de com-
prometer gerações futuras de forma irreversível).

2 São duas obras fundamentais: A Quarta Revolução Industrial (SCHWAB, 2016) e


Aplicando a Quarta Revolução Industrial (SCHWAB; DAVIS, 2018). Nelas, Schwab
revela diversas consequências e riscos trazidos por essas forças tecnológicas
disruptivas. Destacamos a queda de produtividade do trabalho, bem como a
diminuição do percentual da mão de obra assalariada na atividade econômica
global. Ressalta-se ainda a falta de preparo dos Estado e tomadores de decisão
em agir de forma sistêmica e não mais linear diante de todos esses impactos.
334
A necessidade de regulamentação dessa área torna-se urgente e,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


diante da complexidade e da abrangência da tecnologia, defen-
de-se um modelo pragmático, prudencial, baseado em princípios
fundamentais, principalmente a sustentabilidade, a participação
do público e a precaução.

2 · Formas de regulamentação
O estudo da nanotecnologia tem sido muito desafiador para o Grupo
de Trabalho Nanotecnologia (GT Nano), pois, além de estudar maté-
rias totalmente novas no campo científico (o que exige apreensão de
novos conceitos técnicos, metodologias etc.), a própria noção de norma
no campo epistemológico sofre toda uma reavaliação. Por mais que o
jurista e o ator do Direito do Trabalho estejam acostumados com o
pluralismo e o diálogo das fontes, ainda permanece uma concepção
formal da norma, muito mais pautada em comportamentos, ou seja, o
que se deve e o que não se deve fazer, mediante uma sanção.
No campo científico, por sua vez, fala-se de norma no sentido muito
mais de uma padronização e se lembra muito mais de um manual
de como agir. Neste sentido a análise de Hohendorff e Engelmann
(2014) merece ser mencionada, com o argumento de que normas de
padronização internacional poderão proporcionar uma transição
suave do conhecimento científico e do laboratório para o mercado,
impulsionando o progresso em toda a cadeia de valor da nanotec-
nologia (ou seja, a nanotecnologia também se amplia em escala, um
nanoproduto não se restringe apenas à atividade econômica para a
qual foi desenvolvido, as interseções são muitas vezes infindáveis),
a partir de materiais em nanoescala (paralelo com tijolos de outros
componentes e dispositivos) com a integração em sistemas fun-
cionais. Até mesmo a terminologia, a nomenclatura, as medições,
as características dos nanoprodutos em geral são essenciais para
entender sua viabilidade no mercado e os riscos do produto.
Dessa maneira, não se devem abandonar e são extremamente impor-
tantes os modos de proteção baseados nas formas tradicionais da
fonte de Direito (neste sentido, inclusive, há o PLS n. 880/2019, como
projeto de regulamentação das nanotecnologias sobre o qual o MPT –
GT Nano expediu nota técnica, louvando a iniciativa legislativa por se
preocupar em definir nanotoxicologia, nanossegurança, entre outras
medidas, mas trazendo também críticas e sugestões relacionadas à
falta de preocupação no projeto com a saúde e segurança do trabalho,
335
bem como necessidade de garantia de educação e qualificação pro-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

fissional dos trabalhadores, e incidência de princípios fundamentais,


como a sustentabilidade, participação do público e consideração dos
impactos, bem como a precaução). Entretanto, também têm que se
ponderar e se valorizar as fontes científicas e, por fim, a própria autor-
regulamentação também não pode ser desprezada, principalmente
como forma complementar e suplementar de regulamentação, tornan-
do-se necessária diante das aplicações específicas e concretas de cada
nanotecnologia de modo individual, criando ainda obrigatoriedade de
motivação de ação da empresa que a vincula para casos futuros.

2.1 · Princípio da participação do público


Um dos principais aspectos que tem norteado a atuação do MPT –
GT Nano tem sido a garantia de participação do público nas dis-
cussões relativas às estratégias de atuação do Ministério Público
do Trabalho ligada à área de nanotecnologia. Essa participação
se realiza através da colaboração de instituições públicas,3 asso-
ciações privadas interdisciplinares, 4 sindicatos,5 universidades,6

3 Destaca-se a Fundacentro (anteriormente vinculada ao Ministério do


Trabalho, atualmente vinculada ao Ministério da Economia), ou seja,
Fundação Jorge Duprat e Figueiredo, fundação especializada em pesquisas
voltadas para a proteção da saúde e segurança do trabalho. Através da
Fundacentro, o MPT obteve o compartilhamento de conhecimento técnico-
-científico necessário para atuação. Registra-se também o Inmetro (que nos
permitiu a visita aos seus laboratórios de certificação de nanoprodutos, além
do desenvolvimento de pesquisa de nanoprodutos) e o Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação Científica.
4 Com destaque para a Renanosoma (Rede Brasileira de Pesquisa em
Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente), cujos pesquisadores nacionais
e internacionais, das mais diferentes áreas de conhecimento (notadamente
em Sociologia) têm sido incansáveis na exigência de que pesquisas e
financiamentos públicos devem obrigatoriamente exigir maior consideração
dos impactos ambientais e econômicos sobre usuários, consumidores,
trabalhadores, toda a sociedade, enfim.
5 Principalmente da indústria química e metalúrgica em todo o Estado de
São Paulo.
6 Especialmente a Unisinos, que conta com projeto de pesquisa específico
no Mestrado e Doutorado, vinculado a linha de pesquisa específica de
observatório dos impactos jurídicos das nanotecnologias, tendo sido vital a
colaboração para fins de elaboração de nota técnica do GT Nano encaminhada
ao Senado Federal por força do PLS n. 880/2019.

336
advogados,7 empresas;8 enfim, são inúmeros atores sociais e eco-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


nômicos em colaboração com o MPT. A omissão de algum colabo-
rador deverá ser imputada exclusivamente a alguma deficiência da
memória do autor deste artigo.
Ficou evidente desde o início para o MPT que querer ser o ator
principal nessa área não seria apenas ineficiente, seria uma
fraude, uma mentira deslavada. A sociedade não quer apenas a
atuação do Ministério Público em defesa da ordem jurídica e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis, ela quer e exige
uma instituição comprometida com o regime democrático, tal
como exige o art. 127 da Constituição da República e faz parte de
sua missão institucional.
As razões que justificam esta participação democrática são inúme-
ras e iremos destacar apenas algumas, por total falta de condições
de apresentação de todos os fundamentos em um simples artigo.
O Brasil se constitui como Estado Democrático de Direito, na
forma do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil,
tendo este mesmo Estado Democrático de Direito como funda-
mentos: I – a soberania;9 II – a cidadania;10 III – a dignidade da

7 Principalmente a Comissão de Direito do Trabalho da OAB-SP.


8 Cita-se aqui a colaboração espontânea e voluntária de indústria
farmacêutica do Estado de São Paulo (que concedeu cópia de seu PPRA e
PCMSO com a devida adaptação em medidas de proteção e controle de riscos
de trabalhadores envolvidos em atividades vinculadas a nanotecnologia),
bem como eletrônica no Estado do Amazonas (que nos mostrou in loco o
processo produtivo de fabricação de celulares, TVs e condicionadores de
ar, dentro de novos critérios de smart factory e com incorporação de novas
tecnologias de realidade virtual no treinamento de seus empregados em
saúde e segurança do trabalho).
9 Soberania que hoje está nitidamente vinculada ao desenvolvimento científico.
Muitas corporações tecnológicas apresentam poder econômico superior a
muitos Estados nacionais, ou seja, a balança de poder não pode desconsiderar
o impacto da tecnologia.
10 A inovação tecnológica tem que corresponder a uma necessidade social
e contribuir para as finalidades fundamentais da República, na forma do
art. 3º da CRFB, em especial: construção de uma sociedade livre, justa e
solidária; garantia do desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza,
da marginalização, com a redução das desigualdades sociais e regionais;
promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor e
quaisquer outras formas de discriminação.

337
pessoa humana;11 IV – os valores sociais do trabalho e da livre
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

iniciativa;12 V – o pluralismo político.13


Os cidadãos, os trabalhadores, os consumidores, os usuários das
novas tecnologias têm que ter voz ativa, não podem ser apenas des-
tinatários da educação pelo Estado e pelas corporações quanto aos
efeitos das inovações tecnológicas. Esta participação exige neces-
sariamente informação. As tecnologias têm que se apresentar de
forma acessível, não apenas em termos de eficiência para o exercício
de uma dada atividade ou função mas também em termos de riscos.
Ainda se inicia no Brasil o processo de regulamentação da nano-
tecnologia, mas já existem inúmeros nanoprodutos no mercado.
O Ministério Público do Trabalho deve agir de forma antecipadora,
fomentadora e cooperativa com outros órgãos públicos e mesmo priva-
dos, de forma a assegurar a prevalência da prevenção e da precaução,
garantindo desenvolvimento econômico e social (as receitas com esta
tecnologia podem ser, sem exagero, de dezenas ou até mesmo cente-
nas de bilhões de dólares) e protegendo de forma indivisível a saúde
e a segurança dos trabalhadores e consumidores dos nanomateriais.

2.2 · Princípio da precaução


A proteção da saúde e da segurança daqueles que se encontram
envolvidos nos processos de utilização de nanotecnologias deve ser
procurada em parâmetros de prevenção e de precaução.

11 O que exige forte reflexão e crítica sobre a utilização da nanotecnologia em


atividades que tenham potencial de impactar direitos fundamentais, tais
como a privacidade, e, neste sentido, destacamos facetas modernas do Direito
Digital, em especial a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (13.709/2018),
em vigência a partir de 2020.
12 Várias consequências decorrem desta necessária e permanente ponderação
entre o trabalho e a livre iniciativa, pois ambos são valores e construções sociais.
O desenvolvimento necessariamente tem que considerar os impactos sociais,
por exemplo; não é razoável que se admita a inovação como fato irreversível,
sem ao menos estabelecer compensações para os setores que são prejudicados
e afastados do mercado de trabalho por estas mesmas inovações.
13 Se as inovações tecnológicas conduzem à concentração de poder, além de
negarem a sua própria essência (pois elas derivam da força da liberdade
e da criatividade do pensamento humano), devem ser regulamentadas,
pois quem detém conhecimento detém poder. Sem divisão de poder e sem
responsabilidades, não há democracia.
338
Em termos gerais, podemos dizer que a prevenção é proteção voltada

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


contra os riscos conhecidos, enquanto a precaução vincula-se aos ris-
cos desconhecidos e futuros. Em ambos os sentidos, os desafios das
normas de saúde e segurança do trabalho encontram-se em foco.
Com efeito, quanto à prevenção, tem predominado um discurso
de revisão das normas regulamentadoras de saúde e segurança
do trabalho (aquelas que lidam com os riscos conhecidos e já ava-
liados), sob o argumento simplório de que as normas de saúde e
segurança são extremamente burocráticas e que são entraves para
o exercício da atividade econômica, isto é, desconsidera-se que o
desenvolvimento econômico depende de recursos finitos, sejam
eles humanos, sejam materiais, sejam ambientais. Assim, a ques-
tão simples da prevenção tem sido precarizada completamente na
realidade brasileira administrativa contemporânea.
A precaução, por sua vez, vincula-se a riscos cuja mensura-
ção e medidas de gerenciamento se baseiam em probabilidades.
Obviamente, viver é perigoso,14 mas não se trata de qualquer tipo
de risco, deve-se tomar cautela, pois assim como as implicações das
novas tecnologias são benéficas em cadeia, de forma inimaginável
aos seus inventores e criadores, também os modos de utilização
das novas tecnologias não têm como ser mensurados no momento
de sua concepção e aplicação inicial.
Parâmetros de nanotoxicologia e nanossegurança têm sido cada
vez mais aprimorados e incrementados (e esta exigência tem que
se desenvolver também exponencialmente da mesma forma que os
nanoprodutos), haja vista que a manipulação da matéria em nano-
escala pode até mesmo alterar as propriedades químicas originais
dos nanoprodutos, gerando níveis de toxicidade desconhecidos. Os
impactos à saúde, principalmente na forma respiratória e dermato-
lógica, não são desprezíveis e ainda não se encontram devidamente
avaliados e controlados.
Dessa forma, a utilização de nanoprodutos deve adotar uma ótica
diferente e precaucionista, não sendo o caso de aguardar o dano
para depois agir e remediar (o que pode ser, inclusive, impossível),
mas sim de antever, já na fase de projeto, possíveis riscos, identifi-
cando-os e concretizando previamente medidas de proteção. O sis-
tema da União Europeia para proteção da saúde de trabalhadores,

14 Já dizia Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas.


339
consumidores e sociedade em geral adota como parâmetro comum
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

o Safe by Design, conforme o qual o produto só chega ao mercado


depois de testes rigorosos conduzidos por pesquisadores inde-
pendentes de diferentes países. Tal sistema de regulamentação
é conhecido como Nanoreg, tendo o Brasil conseguido se inserir
nesta rede de cooperação internacional.

2.3 · A centralidade do tu. A relação do homem com


a natureza
O princípio da precaução deve ser devidamente contextuali-
zado, compreendido e aplicado de acordo com uma hermenêu-
tica centrada no tu.
A compreensão da atuação do homem sobre o meio ambiente deve
se dar não mais em um parâmetro centralizado na dominação e na
conquista, mas sim relacional, por uma simples questão inclusive:
o homem é tão somente parte do meio ambiente.
O paradigma relacional, assim, se torna extremamente rico e fértil
para esta análise, entendendo-se relação como reciprocidade, com
integralidade e plenitude. Apenas na relação Eu e Tu, encontra-se a
imediatidade da presença (não como algo evanescente e transitório)
como o que nos confronta e com persistência nos aguarda, sem que
possa ser ignorado, a não ser que aceitemos trágicas consequências.
A vida pública e a vida pessoal dependem de instituições e senti-
mentos, mas acima de tudo da presença central do Tu. A explosão
de instituições, normas e regulamentos, por si só, não instaura uma
comunidade de propósitos. De nada vale para a proteção do meio
ambiente aceitar uma esfera, tal como a Economia ou o Estado,
pois estas instâncias tendem a recusar qualquer soberania que não
a do seu próprio domínio. E isto só produz agitações periféricas, em
detrimento da relação viva com o próprio centro da humanidade.
Só quem conhece a relação e a presença do Tu está apto a tomar deci-
sões em matéria ambiental. Só é livre quem não só consegue se olhar
no espelho mas principalmente quem ingressa no face a face, quem
consegue não apenas compreender o interesse do outro mas, sim,
entender que não há, em última instância, o outro como isso, mas
sim como tu, que se coloca numa relação humana, espiritual e viva.

340
A norma ambiental não terá nenhuma efetividade se colocarmos a

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


natureza como coisa, com possibilidade de seu uso autoritário e auto-
crático. Meio ambiente vincula-se a saúde, cultura, espiritualidade.

2.4 · Educação e desenvolvimento científico


Mais do que nunca, as nanotecnologias revitalizam a necessidade
de se considerar novamente a educação como direito social, e sob
o paradigma da república, tal como o faz o art. 215 da Constituição
brasileira ao definir a educação como direito de todos e dever do
Estado e da família, a ser promovida e incentivada com a colaboração
da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu pre-
paro para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
A educação cumpre papel fundamental nas nanotecnologias em
várias dimensões, e só isto demandaria um estudo específico,
mas vamos nos restringir a dois pontos essenciais: I - a nanotec-
nologia, tal como diversas tecnologias de ponta, pode significar
a exclusão de diversas pessoas do mercado de trabalho, e estas
pessoas merecem recebem educação, treinamento e requalifi-
cação para atuarem em outras atividades; II - a nanotecnologia
pode alterar significativamente a forma de realização do traba-
lho e, sem educação para isso, o trabalhador pode se submeter a
condições de trabalho que agravam sua saúde, inclusive mental
(melhor seria mais uma vez ressaltar o valor da democracia do
trabalho, ou seja, que o trabalhador participasse do processo de
implementação da nanotecnologia no processo de trabalho, em
vez de puramente se submeter à atividade econômica).
Também, por força de determinação da Constituição (com alteração
significativa pela Emenda Constitucional n. 85/2019), reforça-se o
dever do Estado na promoção e incentivo do desenvolvimento cien-
tífico, da pesquisa, da capacitação científica e tecnológica, bem como
da inovação (art. 218, caput, CF). A pesquisa tecnológica por sua vez
deve priorizar a solução dos problemas brasileiros e o desenvolvi-
mento do sistema produtivo nacional e regional (art. 218, § 2º, CF),
devendo o Estado ainda fomentar a formação e o fortalecimento da
inovação nas empresas (art. 219, parágrafo único, CF).
Mais do que aceitar o paradigma absolutista de mercantilização
da educação (tal como se a escola fosse apenas uma empresa, o que

341
nitidamente viola a essência constitucional da educação na forma
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

de nossa Constituição), entendemos que a empresa é que deve se


transformar em escola, devendo ser reforçado não só o seu dever
de garantir educação e contextualização dos seus empregados
em novas competências tecnológicas (dado que a defasagem das
mesmas é cada vez mais rápida), mas o próprio dever da sociedade
como um todo, dos sindicatos e do próprio trabalhador.
O GT Nano não foge dessa responsabilidade, seus membros têm
constantemente participado de atividades educativas nos mais dife-
rentes locais, encontrando-se dispostos a dialogar com a sociedade
sempre que convidados. Ademais, o Procurador-Geral do Trabalho
foi provocado pelo GT Nano a, entre outros pedidos, iniciar estudos
para criação de um Ecossistema Cooperativo de Novas Tecnologias
e seus Impactos nas Relações de Trabalho e de Emprego, devendo
funcionar esta coordenadoria de forma diferenciada e com ampla
participação da sociedade, inclusive através de audiências públicas,
consultas e outros mecanismos de participação cidadã.

3 · Conclusão
O Brasil não pode se furtar a buscar o desenvolvimento científico,
uma vez que de pesquisas derivadas de aplicação de nanotecnologias
podem se derivar consequências fabulosas para a saúde e prevenção
de várias doenças. Por outro lado, não se devem desprezar também
riscos extremos como a fabricação de nanorrobôs replicadores, que
eliminem toda a matéria e vida em seu processo de autorreplicação.
Talvez uma melhor perspectiva seja considerar de forma séria os ris-
cos e benefícios, impedindo que o exagero em uma das pontas impeça
a busca da sustentabilidade. Nada obsta a que a sustentabilidade
ambiental e a econômica sejam otimizadas em um processo no qual
uma fortalece a outra de forma interdependente e complementar.
A sociedade deve participar de todo esse processo, não é uma ini-
ciativa exclusiva dos cientistas ou de instituições governamentais.
Os impactos têm que ser ponderados sempre, pois é o próprio con-
ceito e a possibilidade de vida de todo o ecossistema planetário que
se encontram em risco.
Assim, o Ministério Público do Trabalho deve agir de forma a
favorecer o desenvolvimento científico (ameaçado inclusive por

342
concepções obscurantistas que atravancam o desenvolvimento

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


e a democracia, pretendendo impor concepções ideológicas sem
qualquer razoabilidade, tais como a não aceitação da globalização,
uma vez que até mesmo laboratórios de certificação de produtos no
Brasil trazem equipamentos doados pela União Europeia, ou seja,
negar a globalização é ser excluído da cooperação internacional, da
qual o Brasil é dependente) que propicie o crescimento da economia
e a geração de empregos e, ao mesmo tempo, buscar a sustentabi-
lidade da vida, admitindo inclusive que a nanotecnologia pretende
ser a engenharia da vida. E que nano seja apenas a tecnologia, não
o nosso respeito e amor à vida, à saúde e à segurança.

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Miranda. São Paulo: EDIPRO, 2016.

343
TERCEIRO CAPÍTULO
Precarização do trabalho: da crise
do sindicalismo à regulação do trabalho
em plataformas digitais
Trabalho digital, “indústria 4.0” e uberização
do trabalho

Ricardo Antunes
Professor Titular de Sociologia do Trabalho no Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas (IFCH/Unicamp)

Resumo: Quais serão as principais consequências da implantação


da indústria 4.0 em relação ao mundo do trabalho, aos empregos, às
condições e aos direitos do trabalho? A expansão do chamado “trabalho
uberizado” oferece indicações importantes para se tentar apresentar
elementos para as respostas às indagações acima.

Palavras-chave: Trabalho digital. Uberização do trabalho. Plataformas


digitais. Indústria 4.0.

Abstract: What will be the main consequences of the implementation


of Industry 4.0 in relation to the world of work, jobs, conditions and
labor rights? The expansion of the so-called “uberized work” offers
important pointers for trying to present elements for the answers to
the above questions.

Keywords: Digital labour. Uberized labour. Digital platforms. Industry 4.0.

1 · Intermitência e uberização
A uberização é um processo no qual as relações de trabalho são
crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo,
assim, a aparência de “prestação de serviços” e obliterando as rela-
ções de assalariamento e de exploração do trabalho.
Como foi desenvolvido em O privilégio da servidão: o novo proleta-
riado digital na era de serviços (ANTUNES, 2018), contra a rigidez
taylorista e fordista vigente nas fábricas da “era do automóvel”,

347
durante o longo século XX, nas últimas décadas, as empresas “lio-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

filizadas e flexíveis”, impulsionadas pela expansão digital-infor-


macional, sob o comando dos capitais (em particular o financeiro),
vêm impondo sua trípode destrutiva em relação ao trabalho.
A terceirização, a informalidade e a flexibilidade se tornaram, então,
partes inseparáveis do léxico e da pragmática da empresa corpo-
rativa global (ANTUNES, 2015; DAL ROSSO, 2017, 2008; LINHART,
2007; DRUCK, FRANCO, 2007). E, com elas, o trabalho intermitente
vem se tornando um dos elementos mais corrosivos em relação à
proteção do trabalho, que foi resultado de lutas históricas e secula-
res da classe trabalhadora em tantas partes do mundo.
Vejamos alguns exemplos do trabalho que mais se expande no capita-
lismo de nosso tempo. Um deles, o zero hour contract (contrato de zero
hora), por exemplo, nasceu no Reino Unido e se esparrama pelo mundo,
ao permitir a contratação de trabalhadores e trabalhadoras das mais
diversas atividades que ficam à disposição de uma “plataforma”.
Eles e elas ficam esperando uma chamada por smarthphone e,
quando a recebem, ganham estritamente pelo que fizeram, nada
recebendo pelo tempo que ficaram esperando. E essa modalidade
de trabalho abrange um universo imenso de trabalhadores e tra-
balhadoras de que são exemplos médicos, enfermeiros, trabalhado-
res do care (dos cuidados de idosos, crianças, doentes, portadores
de necessidades especiais etc.), motoristas, eletricistas, advogados,
pessoas que executam serviços de limpeza, consertos domésticos,
entre tantos outros. Tudo isso facilitado pela expansão do trabalho
online e dos “aplicativos” que invisibilizam, ao mesmo tempo em
que ampliam exponencialmente, uma parte expressiva da classe
trabalhadora, especialmente (mas não só) no setor de serviços.
Outro exemplo encontramos no Uber. Trabalhadores e trabalhado-
ras com seus automóveis arcam com suas despesas de seguridade,
gastos de manutenção de seus carros, alimentação, limpeza etc.,
enquanto o “aplicativo” se apropria da mais-valia gerada pelos ser-
viços dos motoristas, sem nenhuma regulação social do trabalho. A
principal diferença entre o zero hour contract e o sistema Uber é que
neste os/as motoristas não podem recusar as solicitações, para não
correrem o risco de serem demitidos. A relação de trabalho é, então,
ainda mais evidente. Dos carros para as motos, destas para as bici-
cletas, patins etc., a engenhosidade dos capitais é de fato espantosa.

348
Mais um exemplo vimos ainda recentemente na Itália, onde se desen-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


volveu, até o início de 2017, uma nova modalidade de trabalho ocasio-
nal, o trabalho pago a voucher. Esta modalidade de trabalho é assim
denominada porque os assalariados recebiam voucher pelas horas de
trabalho realizadas, e podiam trocá-los pelo equivalente monetário,
segundo o salário-mínimo legal pago por hora trabalhada.
Se não bastasse esse vilipêndio (que em Portugal se denomina tra-
balho pago por “recibos verdes”), os trabalhos excedentes muitas
vezes são oferecidos “por fora” do pagamento oficial por voucher,
isto é, pagando-se ainda menos do que o salário-mínimo oficial, o
que significa uma precarização ainda maior do trabalho ocasional
e intermitente. É como se existisse uma precarização “legal” e outra
“ilegal” (ANTUNES, 2018).
Por esse sentido de exploração intensificada em seus ritmos, tem-
pos e movimentos, estas formas precarizadas de trabalho (BASSO,
2018; WAJCMAN, 2017) devem ser intensamente combatidas pelos
trabalhadores e trabalhadoras (dada a importante divisão socios-
sexual do trabalho), tanto por seus movimentos de resistência nos
locais de trabalho quanto pelas ações do sindicalismo de perfil
mais crítico. A recente tentativa de greve mundial dos motoristas
da Uber, em maio de 2019, demostra que o que parecia ser o paraíso
do trabalho começou a se desvanecer, de modo que os caminhos da
confrontação tendem a se ampliar nos próximos anos.
É importante acentuar também que essas tendências em curso,
implementadas pelas corporações globais, nesta era agudamente
destrutiva do capital (MÉSZÁROS, 2002), não encontram precedente
em nenhuma fase recente do capitalismo pós-Segunda Guerra.
Assim, se esse modus operandi não for confrontado, ele se conso-
lidará como um elemento cada vez mais central do sistema em
escala global, particularmente no setor de serviços, mas com poten-
cial de expansão para parcelas ampliadas do mundo industrial e do
agrobusiness, bem como na interconexão que há entre eles.

2 · Rumo à “escravidão digital”?


As tecnologias de informação e comunicação configuram-se, então,
como um elemento central entre os distintos mecanismos de acu-
mulação criados pelo capitalismo financeiro de nosso tempo.

349
Ao contrário da equivocada “previsão” do fim do trabalho, da
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

classe trabalhadora e da vigência da teoria do valor, o que de


fato temos é uma ampliação do trabalho precário, que vai (ainda
que de modo diferenciado) desde os trabalhadores da indústria
de soft ­ware até os trabalhadores de call center, telemarketing – o
infoproletariado ou cibertariado (ANTUNES; BRAGA, 2009; HUWS,
2003, 2014) –, atingindo crescentemente os setores industriais, da
agroindústria, dos bancos, do comércio, do fast food, do turismo
e hotelaria etc., incorporando até os trabalhadores imigrantes
que se expandem em todas as partes do mundo. É quase impossí-
vel, hoje, encontrarmos qualquer trabalho que não tenha alguma
forma de dependência do aparelho de celular.
E este cenário crítico se acentuará com a proposta atual da cha-
mada indústria 4.0. Essa proposta nasceu na Alemanha, em 2011,
concebida para gerar um novo e profundo salto tecnológico no
mundo produtivo (em sentido amplo), estruturado a partir das
novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) que se desen-
volvem celeremente. Sua expansão significará a ampliação dos pro-
cessos produtivos, tornando-os ainda mais automatizados e robo-
tizados, em toda a cadeia de valor, de modo que a logística empre-
sarial será toda controlada digitalmente.
Sua principal consequência para o mundo do trabalho será a
ampliação do trabalho morto, para recordar Marx (2013), tendo o
maquinário digital – a “internet das coisas”, a inteligência arti-
ficial, a impressora 3D, o big data etc. – como dominante e con-
dutor de todo o processo produtivo e a consequente redução do
trabalho vivo, através da substituição das atividades tradicionais e
mais manuais por ferramentas automatizadas e robotizadas, sob o
comando informacional-digital.
Assim, cada vez mais, a força de trabalho de perfil mais manual ou
que exerce atividades em processo de desaparição tornará o tra-
balho vivo mais “residual” nas plantas tecnológica e digitalmente
mais avançadas. Sabemos que essa processualidade não levará à
extinção da atividade humana, pois, além das enormes diferen-
ciações, por exemplo, entre Norte e Sul, entre ramos e setores de
atividade cujo trabalho manual é insubstituível etc., há um outro
elemento ontológico fundamental: sem alguma forma de trabalho
humano, o capital não se reproduz, visto que as máquinas não criam

350
valor, mas o potencializam (ANTUNES, 2013; DYER-WITHEFORD,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


2015; HUWS, 2003, 2015; CARCHEDI, 1997; CAFFENTZIS, 1997).
Isso, porém, não elide o fato de que a produção, em ramos e setores
de tecnologia de ponta, tende a ser cada vez mais invadida por robôs
e máquinas digitais, encontrando no mundo digital, na inteligência
artificial, nos algoritmos etc. o suporte maquínico dessa nova fase de
subsunção real do trabalho ao capital. Isto porque, para que ocorra esse
avanço tecno-digital, um conjunto expressivo de trabalhos manuais
se expande globalmente e, em particular, no sul do mundo.
Como consequência dessa nova empresa flexível, liofilizada e digi-
tal, os intermitentes globais tendem se expandir ainda mais, uma
vez que o processo tecnológico-organizacional-informacional elimi-
nará de forma crescente uma quantidade incalculável de força de
trabalho, que se tornará supérflua e sobrante, sem empregos, sem
seguridade social, sofrendo riscos crescentes de acidentes e mortes
no trabalho (PRAUN, 2016) e sem nenhuma perspectiva de futuro.
É certo que uma parcela de “novos trabalhos” será criada entre
aqueles com mais “aptidões”, mais “inteligência”, mais “capacita-
ções”, ampliando com maior intensidade o caráter de segregação
societal existente. Mas é impossível não deixar de alertar, com
todas as letras, que as precarizações, as “subutilizações”, o subem-
prego e o desemprego tenderão a se expandir celeremente.
Sem tergiversações: teremos, com a indústria 4.0, uma nova fase
da hegemonia informacional-digital, sob o comando do capital finan-
ceiro, em que os celulares, tablets, smartphones e assemelhados esta-
rão controlando, supervisionando e comandando essa nova etapa da
ciberindústria do século XXI.
E tudo isso, também é imperioso dizer, por conta da necessidade
de autovalorização das corporações globais, sem nenhum com-
promisso humano-societal. Ou será que a guerra entre a Huawei
e a Apple tem como objetivo a melhoria das condições de vida da
humanidade? Ou, ainda, que melhorias humano-societais tere-
mos com as práticas desenvolvidas pela Amazon e pela Uber,
ambas tendo como padrão um leque de operações que vão desde
a exploração e espoliação ilimitadas da força de trabalho até a
extinção completa do trabalho humano, a exemplo dos carros sem
motoristas, presentes no projeto da “Uber do futuro”, ou ainda

351
das lojas da Amazon, já existentes nos EUA, que funcionam sem
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

trabalhadores e trabalhadoras?
O que essas plataformas digitais globais têm a oferecer, estando
crescentemente robotizadas, automatizadas e cada vez com menos
trabalho vivo? Se isso vier a ser implementado, o que acrescentam de
positivo para a humanidade?
É necessário acentuar que esse vilipêndio em relação ao trabalho
não é uma “possível remissão ao futuro”. Isto porque, no presente, a
monumental expansão do trabalho digital, online, vem demolindo a
separação entre o tempo de vida no trabalho e o tempo de vida fora dele,
uma vez que vem apresentando, como resultado perverso, o advento
do que denominamos como escravidão digital (ANTUNES, 2018).
Assim, se essa tendência destrutiva em relação ao trabalho não for
fortemente confrontada e recusada e obstada, sob todas as formas pos-
síveis, teremos, além da ampliação exponencial da informalidade no
mundo digital, a expansão dos trabalhos “autônomos”, dos “empre-
endedorismos” etc., configurando-se cada vez mais como uma
forma oculta de assalariamento do trabalho que introduz o véu ideo-
lógico para obliterar um mundo incapaz de oferecer vida digna para
a humanidade. Isto ocorre porque, ao tentar sobreviver, o “empre-
endedor” se imagina como proprietário de si mesmo, um quase-
-burguês, mas que frequentemente se converte em um proletário de
si próprio, que autoexplora seu trabalho.
Esse conjunto de mudanças vem ocorrendo desde os anos 1970,
quando os serviços passaram a ser crescentemente invadidos pela
lógica do capital imbricado com mundo informacional e comando
financeiro (CHESNAIS, 1996; LOJKINE, 1995), e se intensificaram
enormemente neste início do século XXI, com a explosão das tec-
nologias informacionais e digitais.
A esse movimento atual do capital se somou a terceirização, que
também se tornou um instrumento fundamental para o aumento
dos lucros e da extração de mais-valia nos serviços de telemarket­
ing, call center, hotelaria, fast food, hipermercados etc., ampliando o
proletariado gerador de lucro e mais-valia.
Mas há uma outra consequência a tirar dessa derrelição: como
tudo que interessa aos capitais está sendo privatizado (hospitais,
previdência, educação e tantas outras atividades públicas que, no

352
passado, prestavam um serviço público e se transformaram em

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


empresas lucrativas com a avalanche neoliberal), a consequência
mais importante, no plano das lutas sociais, é o advento de um novo
proletariado de serviços.

3 · Como fazer a confrontação?


É contra esse conjunto de pragmáticas precarizantes de trabalho no
capitalismo atual que estamos presenciando o nascimento de novas
formas de representação. Na Itália, em Milão, por exemplo, esse movi-
mento foi um dos pioneiros, gerando uma forma de representação
autônoma, de que é exemplo o San Precario, que luta pelas conquistas
dos direitos do precariado, incluindo naturalmente os imigrantes.
Também nesse mesmo país teve vigência durante alguns anos o
movimento denominado Clash City Workers, da juventude precari-
zada e desprovida de direitos. Segundo sua própria definição,
Clash City Workers é um coletivo de trabalhadores e trabalhadoras,
desocupados e desocupadas, denominados “jovens precários”. A tra-
dução de nosso nome significa algo como “trabalhadores da cidade
em luta”. Nascido na metade de 2009, somos ativos particularmente
em Nápoles, Roma, Florença, Pádua, Milão e Bérgamo e procuramos
seguir e sustentar as lutas que estão em curso na Itália.

Foi esse processo de intensa precarização do proletariado italiano


que originou, anteriormente, a criação de novas formas de repre-
sentação sindical, como é o caso da Confederazione Unitaria di
Base (CUB), criada há vários anos, como uma proposta alternativa
ao sindicalismo mais tradicional. Outro exemplo encontramos
no SI-Cobas, organismo de trabalhadores auto-organizados, pela
base, que procuram representar esse amplo segmento de assala-
riados e operários por fora da estrutura sindical oficial, incluindo
os trabalhadores imigrantes.
Vimos mais recentemente a ampliação da ação do movimento
Nuove Identitá di Lavoro (NIdiL), vinculado à Confederazione
Generale Italiana del Lavoro (CGIL) e voltado para representar os
trabalhadores que fazem parte do denominado precariado.
Precariado, juventude sem trabalho, imigrantes-trabalhadores(as),
foi esse mesmo contingente que organizou, também em Portugal, o
movimento de trabalhadores(as) precarizados denominado Precári@s
353
Inflexíveis. Elucidativo em seu modo de ser, conforme consta de seu
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

“Manifesto”, esse movimento afirmava:


Somos precári@s no emprego e na vida. Trabalhamos sem con-
trato ou com contratos a prazos muito curtos. Trabalho tempo-
rário, incerto e sem garantias. Somos operadores de call-center,
estagiários, desempregados, trabalhadores a recibos verdes, imi-
grantes, intermitentes, estudantes-trabalhadores [...].

Um dos primeiros desafios dos sindicatos e dos movimentos


sociais de classe é compreender a nova morfologia do trabalho, com
suas maiores complexificação e fragmentação. Uma classe traba-
lhadora que simultaneamente se reduz em vários segmentos e
se amplia em outros, e que é também muito mais segmentada,
heterogênea, tendo clivagens de gênero, raça, etnia, com fortes
consequências em sua ação concreta, em suas formas de repre-
sentação e organização sindical.
Como, por exemplo, mobilizar o proletariado conjuntamente com
o que na Europa se autodenomina precariado? Como organizar
sindicalmente essa parcela jovem da classe trabalhadora que não
se beneficiou com as conquistas sociais da época do Welfare State
e que ingressa no mundo digital, às vésperas da chamada indús-
tria 4.0, com relações de trabalho em franco processo de corrosão?
(ANTUNES, 2018; BRAGA, 2017).
Como os sindicatos conseguirão ressoldar esses laços de perten-
cimento de classe? Como poderão se contrapor, de modo solidá-
rio, orgânico e como classe, à uberização, à individualização, ao falso
empresariamento, às falácias do empreendedorismo e à impulsão para
a intermitência, que, este sim, se mostra como o futuro mais pró-
ximo da classe-que-vive-do-trabalho?

Referências
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centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2015.

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de


serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2013.

354
ANTUNES, Ricardo; BRAGA, Ruy (org.). Infoproletários: degradação real

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


do trabalho virtual. São Paulo: Boitempo, 2009.

BASSO, Pietro. Tempos modernos, jornadas antigas. Tradução de Patrícia


Villen. Campinas: Unicamp, 2018.

BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul


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CAFFENTZIS, George. Why machines cannot create value: Marx’s theory


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Nova York: Verso Books, 1997.

CARCHEDI, Guglielmo. High-tech hype: promises and realities of


technology in the twenty-first century. In: DAVIS, Jim; HIRSCHL, Thomas;
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CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

CLASH CITY WORKERS. Dove sono i nostri: lavoro, classe e movimenti


nell’Itália della crisi. Lucca: La Casa Usher, 2014.

DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade


contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008.

DAL ROSSO, Sadi. O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do


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DAVIS, Jim; HIRSCHL, Thomas; STACK, Michael. Cutting edge: technology,


information, capitalism and social revolution. Londres/Nova Iorque: Verso
Books, 1997.

DRUCK, Graça; FRANCO, Tânia. Terceirização e precarização: o binômio


antissocial em indústrias. In: DRUCK, Graça; FRANCO, Tânia (org.). A
perda da razão social do trabalho: precarização e terceirização. São Paulo:
Boitempo, 2007.

DYER-WITHEFORD, Nick. Cyber-proletariat: global labour in the digital


vortex. Londres: Pluto, 2015.

HUWS, Ursula. Labor in the global digital economy: the cybertariat comes
of age. Londres: Merlin, 2014.

HUWS, Ursula. The making of a cybertariat: virtual work in a real world.


Londres: Merlin, 2003.

355
LINHART, Danièle. A desmedida do capital. São Paulo: Boitempo, 2007.
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

LOJKINE, Jean. A revolução informacional. São Paulo: Cortez, 1995.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo:


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MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

PRAUN, Luci. Reestruturação produtiva, saúde e degradação do trabalho.


Campinas: Papel Social, 2016.

WAJCMAN, Judy. Esclavos del tiempo: vidas aceleradas en la era del


capitalismo digital. Barcelona: Paidós, 2017.

356
O crowdsourcing e os desafios do
sindicalismo em meio à crise civilizatória

Vanessa Patriota da Fonseca


Procuradora do Trabalho. Mestra em Gestão de Políticas
Públicas. Doutoranda em Direito do Trabalho e Teoria
Social Crítica.

Resumo: Este estudo trata de um novo modelo de produção emergido


com a Revolução Digital – o crowdsourcing. Aborda as formas de
classificação do trabalho em plataformas virtuais e as contextualiza.
Tece considerações sobre a espécie de vínculo mantido entre os
trabalhadores e as empresas detentoras de plataformas, no contexto da
subordinação cibernética. Analisa a lógica da racionalidade neoliberal
que se edifica, entre outros, nos pilares da pseudoautonomia e do
pseudoempreendedorismo, e que intensifica a precarização do trabalho.
Demonstra que os avanços tecnológicos têm aprofundado a crise do
sindicalismo e a própria crise civilizatória. O artigo demonstra que a
relação de emprego não é incompatível com o crowdsourcing e que, na
maioria das vezes, ela se faz presente, e aponta possíveis caminhos
para a superação das crises mencionadas. Parte-se, para tanto, de uma
imersão na legislação, na doutrina e em matérias jornalísticas, dentro de
uma perspectiva dialética. Os resultados do estudo, analisados à luz do
marco teórico trabalhado, apontam para a intensificação da precarização
do trabalho, a partir das novas formas de produção analisadas, e para a
necessidade de reconfiguração do sindicalismo no mundo globalizado, a
fim de que as organizações sindicais rompam as fronteiras dos Estados-
-Nações e atuem internacionalmente e de maneira mais horizontalizada.

Palavras-chave: Crowdsourcing. Subordinação cibernética. Precarização.


Pseudoempreendedorismo. Crise do sindicalismo.

Abstract: This study deals with a new model of production emerged with
the Digital Revolution – the crowdsourcing. It approaches the ways to
classify work in virtual platforms and contextualizes them. It also brings
considerations about the bonds shared by workers and companies which

357
own platforms and apps, in the context of cyber subordination. The study
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

analyzes the logic of neoliberal rationality that is built, among others,


on the pillars of pseudo-autonomy and pseudo-entrepreneurship, which
intensifies the precariousness of work. It demonstrates that technological
advances have deepened the union crisis and the civilizing crisis itself.
The objectives are to demonstrate that the employment relationship is
not incompatible with crowdsourcing, that it is most often present, and
to point out possible ways to overcome the crises. The starting point
is an immersion in the legislation, doctrine and in the News, within a
dialectical perspective. The results of this study, analyzed in the light of
the theoretical framework which was used, point to an intensification
of the precariousness of working conditions, from the new forms of
production here described, and the need to reconfigure unionism in the
globalized world, so that trade union organizations break the borders of
nation states and act internationally and in a more horizontal manner.

Keywords: Crowdsourcing. Cyber subordination. Precariousness. Pseudo-


entrepreneurship. Union crisis.

1 · A Revolução Digital e o surgimento de novas formas


de organização produtiva
Com a derrocada do Estado do Bem-Estar Social e do Pleno Emprego
e com o aumento vertiginoso do desemprego estrutural, assiste-se
à crescente desregulamentação, flexibilização e precarização das
relações de trabalho, mormente com a inserção de novas formas de
organização produtiva possibilitadas pela Revolução Digital.
De um modo geral, o avanço da humanidade sempre esteve atre-
lado às grandes transformações tecnológicas, que, sem sombra de
dúvidas, têm sido fundamentais nas mais diversas áreas: saúde,
economia, engenharia e tantas outras. Ao longo do percurso histó-
rico, verdadeiras revoluções ocorreram por meio dessas inovações
que acarretaram o surgimento de outras formas de produção. Com
a Revolução Digital e a inserção da tecnologia digital no processo
industrial, desenvolveu-se o crowdsourcing – a externalização pro-
dutiva para uma multidão de trabalhadores por meio de um cha-
mado aberto com o uso da internet. Nesse contexto, surgiram pla-
taformas virtuais criadas por inúmeras empresas, como a Amazon
Mechanical Turk, a Uber, a Microworkers e tantas outras, que faci-
litam o crowdsourcing desenvolvendo modelos de negócio baseados

358
na externalização do serviço para um grande número de trabalha-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


dores que elas denominam autônomos ou independentes e que são
contratados na medida em que há demanda por serviços.
Há diferentes formas de classificação do trabalho em plataformas
virtuais. Todolí-Signes (2017, p. 30-32) classifica como on-demandeco-
nomy todo trabalho em plataformas virtuais em que são conectados
demandantes e ofertantes de serviço no momento em que explici-
tada a demanda. Para ele, este seria um termo mais abrangente que
englobaria tipos de negócios distintos, havendo dois grandes grupos:
os trabalhos integralmente realizados de forma virtual (crowdsour-
cing ou crowdwork online), de um lado, e os que dependem de alguma
atividade física fora da plataforma (crowdsourcing ou crowdwork
offline). Ainda, o autor espanhol divide o crowdsourcing em função de
as atividades serem realizadas de forma global (concorrendo pessoas
de todo o mundo) ou de elas requererem uma execução localizada.
E, por fim, sob o ângulo das empresas que mantêm a plataforma,
faz a divisão entre crowdsourcing (ou crowdwork) genérico e crowd-
sourcing (ou crowdwork) específico, sendo o primeiro aquele em que
podem ser demandados quaisquer tipos de trabalho, diferentemente
do segundo, em que é delimitado o tipo de trabalho a ser realizado.
Para o autor, a diferença é importante porque as plataformas espe-
cíficas tendem a exercer um maior controle sobre os trabalhadores,
enquanto as plataformas genéricas se assemelham a um “quadro de
anúncios” ou a uma “agência de recolocação” de trabalhadores.
De outra banda, na classificação de De Stefano (apud OITAVEN;
CARELLI; CASAGRANDE, 2018, p. 12), tem-se que, nessa seara, há
duas principais formas de trabalho, o trabalho on-demand por meio
de aplicativo e o crowdwork, a seguir analisadas.

2 · As condições do trabalho on-demand por aplicativo


O trabalho on-demand por aplicativo é aquele em que atividades tra-
dicionais, como as de transporte, delivery e limpeza, são possibilitadas
por meio de aplicativos que conectam solicitante e fornecedor do ser-
viço no momento da demanda (OITAVEN; CARELLI; CASAGRANDE,
2018, p. 16). O serviço fica disponível para um grande número de indi-
víduos de uma área geográfica específica. Exemplos desse modelo de
trabalho são os oferecidos pela Uber, Ifood e Parafuso.

359
Segundo os autores acima reportados (2018, p. 19), no trabalho
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

on-demand por aplicativo a organização, e até mesmo o controle do


trabalho, é realizada por programação algorítmica. Assim, a parcela
aparente de autonomia concedida ao trabalhador na realização do
serviço é sobrepujada pela estipulação de comandos preordenados
pelo programador da plataforma, que faz com que o trabalhador
apenas reaja, em tempo real, à emissão de tais comandos para que
os objetivos pretendidos sejam alcançados. A ausência de ordens
pessoais emitidas pelo empregador, aliada à tomada de decisão
quanto a trabalhar ou não, causa a ilusão de que a autonomia se faz
presente, quando, na realidade, ela foi soterrada pela programação
existente e pelo dever do trabalhador de se manter mobilizado para
reagir aos comandos. O mundo do trabalho, assim, depara-se com a
subordinação cibernética.
A ausência de autonomia dos entregadores que laboram com o
uso de aplicativos de delivery, por exemplo, é evidenciada quando
se observa que o preço do serviço é estabelecido unilateralmente
pela empresa detentora do aplicativo. E o preço do serviço é tão
baixo que o trabalhador precisa se manter eternamente conec-
tado para auferir ganho suficiente para sobreviver. Tal situação
não se coaduna com a figura do autônomo, pois este deve definir
como, onde, de que forma e em quanto tempo o serviço será reali-
zado, além de fixar o seu preço.
As empresas de delivery controlam os trabalhadores por meio de
GPS, que segue seus passos em tempo real, enquanto os algorit-
mos por elas programados controlam o cumprimento de metas
que podem levar à bonificação por redução de tempo de entrega.
Algumas dessas empresas mantêm trabalhadores remunera-
dos por tempo à disposição/conexão. Os entregadores, em regra,
não têm conhecimento do local da entrega até a sua aceitação.
Se, porém, aceitam o chamado e depois o cancelam, podem ser
punidos, pois as empresas se reservam o direito de suspender ou
descadastrar o “parceiro” que fica muito tempo inativo ou que
não age conforme suas regras. Ao avaliarem os trabalhadores, os
clientes fornecem à empresa informações sobre a observância ou
não de tais condutas. A avaliação, portanto, é intensificada, na
medida em que pode ser realizada por todos os clientes. Assim,
o sistema leva o trabalhador a estar sempre atento à consecução
dos objetivos programados.

360
As condições de trabalho dos entregadores são lastimáveis. Eles

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


aguardam o chamado do aplicativo em calçadas públicas ou em
praças, muitos dormem nas ruas algumas poucas horas de sono,
arriscam-se no trânsito dirigindo às pressas e fazendo ultrapas-
sagens perigosas para cumprir os prazos de entrega estabelecidos,
não gozam de folgas semanais e férias remuneradas e estão sujei-
tos a elevada carga de estresse.
As empresas de entrega por aplicativo também descumprem o dis-
posto na Lei n. 12.009/2009, que estabelece que as motos devem
possuir mata-cachorro, antena corta-pipa e inspeção semestral
(art. 139-A, incisos II, III e IV). Sem conceder equipamentos de segu-
rança e determinando tempo máximo de entrega a cumprir, pare-
cem brincar com a vida humana, inclusive ao concederem bônus
para quem reduz o tempo de entrega e se arrisca mais.
Não é por outra razão que o número de mortes de motociclistas
no trânsito, na cidade de São Paulo, sofreu um aumento de 17% de
2017 para 2018, ocorrendo, em média, uma morte a mais por dia.
Segundo dados do Ministério da Saúde, onze mil motociclistas
morreram em um ano, o que levou ao pagamento de seguro DPVAT
de mais de 167 mil indenizações às vítimas em 2018.1
O Direito do Trabalho alberga o trabalho on-demand por aplicativo,
uma vez que nele é possível vislumbrar-se a existência da relação
de emprego pela presença dos seus elementos fático-jurídicos, a
saber, trabalho por pessoa física, pessoalidade, onerosidade, não
eventualidade e subordinação. O trabalhador é uma pessoa física
devidamente cadastrada que não pode se fazer substituir por outra.
A onerosidade está caracterizada pelo pagamento pelo serviço
prestado, não importando o nome que se lhe atribua: remuneração,
retribuição etc. A não eventualidade deve ser analisada dentro de
um contexto no qual a intermitência do trabalho e a ausência de
fixação da jornada não são os elementos centrais, mormente numa
legislação que admite o trabalho intermitente. Por fim, a subor-
dinação resta claramente demonstrada pelo controle exercido por
meio de programação algorítmica. E, no caso do Brasil, o parágrafo

1 Acidentes fatais com motociclistas aumentam quase 18% em um ano em


SP. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/02/22/
acidentes-fatais-com-motociclistas-aumentam-quase-18-em-um-ano-
em-sp.ghtml. Acesso em: 23 jun. 2019.

361
único do art. 6º da CLT alarga a concepção da subordinação para
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

abarcar a subordinação cibernética, uma vez que


os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e
supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica,
aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão
do trabalho alheio.

Resta, portanto, cobrar a responsabilidade das empresas pela criação


do engodo e pelo consequente vilipêndio dos direitos trabalhistas.

3 · As condições de trabalho no crowdwork


O crowdwork, conforme citam Oitaven, Carelli e Casagrande (2018, p. 15),
[r]efere-se a atividades que envolvem a realização de tarefas por
meio de plataformas online, que colocam em contato diversas
organizações e indivíduos com outras organizações e indivíduos
por meio da internet, permitindo a aproximação entre consumido-
res e trabalhadores de todo o mundo. Há oferta e demanda de pro-
dutos e serviços específicos para o atendimento de necessidades
de clientes que pagam pela execução das tarefas realizadas.

Os autores esclarecem (p. 15) que, no crowdwork, a empresa de pla-


taforma fornece o acesso a uma força gigante de trabalho, geografi-
camente dispersa, para a conclusão de tarefas pequenas que podem
ser feitas remotamente usando um computador e conexão com a
internet. Os clientes se utilizam da plataforma para postar tarefas
que precisam ser concluídas e podem ser realizadas por uma mul-
tidão de trabalhadores. Prevalece a realização de microtarefas sim-
ples, monótonas e extremamente fragmentadas como, por exem-
plo, responder pesquisas, avaliar elementos de texto, participar de
experimentos, identificar imagens e transcrever áudios. Em menor
escala, porém, podem ser abarcados projetos mais elaborados e até
projetos complexos, como criação e edição de conteúdo (logomar-
cas, textos, sítios eletrônicos, projetos gráficos etc.).
Uma das mais conhecidas plataformas de crowdwork é a da Amazon
Mechanical Turk (MTurk), por meio da qual milhares de tipos de
tarefas podem ser realizados. A plataforma proporciona a ligação
entre os solicitantes e os fornecedores dos serviços (turkers), ambos
previamente cadastrados. Os primeiros propõem a tarefa a ser exe-
cutada e apresentam o preço que pretendem pagar. Cabe-lhes o
estabelecimento das condições de contratação e o poder de avaliar a
362
qualidade dos serviços prestados e de recusá-los, sem necessidade de

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


fornecimento de grandes explicações. A avaliação é dada em forma
de nota e ela pode ter repercussão tanto em futuras contratações do
fornecedor por outro solicitante, na medida em que ela é visualizada
no seu cadastro, quanto em eventual decisão unilateral da Amazon
de encerrar a conta do fornecedor. A Amazon cobra 10% do valor
pago pelo serviço a título de comissão e não se responsabiliza por
qualquer desavença entre as partes (TODOLÍ-SIGNES, 2017, p. 34).
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) realizou duas pes-
quisas, em 2015 e 2017, com empresas de crowdwork e apresentou
seus resultados no relatório Digital labour platforms and the future
of work: Towards decent work in the online world. As pesquisas cobri-
ram 3.500 trabalhadores de 75 países que trabalhavam em cinco
plataformas. São elas: Amazon Mechanical Turk (MTurk), com sede
nos EUA; Clickworker, com sede na Alemanha; CrowdFlower (atual
Figure Eight), com sede nos EUA; Microworkers, também nortea-
mericana; e Prolific, que tem sede no Reino Unido (OIT, 2018, p. 13).
De acordo com o apurado na pesquisa, para começar a trabalhar com
o uso da plataforma os trabalhadores precisam aceitar os “termos de
serviço”, por ela unilateralmente estabelecidos – contrato de adesão.
Quanto à remuneração, dois terços dos trabalhadores americanos
que utilizam a plataforma da MTurk ganham menos que o salário-
-mínimo federal, e apenas 7% dos trabalhadores alemães que utili-
zam a plataforma da Clickwork ganham acima do salário-mínimo
alemão. Os trabalhadores da América do Norte, Europa e Ásia Central
recebem mais do que os trabalhadores de outros continentes, encon-
trando-se na África os mais baixos salários. Importa ressaltar que
nem todo o tempo de trabalho é pago. Constatou-se que, em média,
os trabalhadores gastam vinte minutos em atividades não pagas por
cada hora de trabalho, atividades estas consistentes em fazer tes-
tes de qualificação, pesquisar clientes, mitigar fraudes e escrever
resenhas. A maioria dos trabalhadores depende financeiramente do
trabalho realizado nas plataformas, mesmo quando ele serve como
complementação de renda (OIT, 2018, p. 49-59).
Quanto à rejeição da tarefa realizada, quase nove de cada dez tra-
balhadores tiveram o pagamento recusado e apenas 12% afirma-
ram que todas as rejeições foram justificáveis. Os trabalhadores
possuem enormes dificuldades para se comunicar com os solici-
tantes e com as plataformas, inclusive quando da ocorrência de
rejeições, sendo certo que negativas injustas podem ocorrer como
363
resultado de tarefas e instruções pouco claras, erros técnicos ou
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

até desonestidade do solicitante. As rejeições, além de afetarem o


pagamento, atingem a avaliação dos trabalhadores e a possibili-
dade de obtenção de novas tarefas ou de permanência na plata-
forma (OIT, 2018, p. 73-82).
Por fim, a cobertura de proteção social dos trabalhadores é baixa
e possui ligação direta com a predominância ou não do trabalho
em crowdwork. Os trabalhadores que dependem desse trabalho são
mais propensos a não possuir plano de saúde, pensão ou plano de
aposentadoria (p. 59-61).

4 · A racionalidade neoliberal e a falácia da autonomia


Se a falácia da autonomia é facilmente desvelada no trabalho on-de-
mand por aplicativo mediante análise da programação algorítmica
que dita preço, forma, prazo e demais condições de trabalho, no
caso do crowdwork a interferência das empresas detentoras de
plataformas digitais nas condições em que o trabalho é prestado
parece ser mais diluída, embora tais empresas cresçam exponen-
cialmente às custas do trabalho humano.2 Por sua vez, se no tra-
balho on-demand os trabalhadores competem entre si dentro de
uma área geograficamente localizada, no crowdwork a concorrên-
cia se dá em âmbito mundial, rompendo as fronteiras dos Estados-
-Nações e dificultando ainda mais os laços de sociabilidade.
No contexto do crowdsourcing, portanto, o trabalhador é duplamente
aprisionado: pelo discurso da liberdade de ser ele mesmo um capi-
talista, tirando proveito das benesses de plataformas com as quais
foi presenteado; e pela própria programação algorítmica que conduz
cada um dos seus passos sem que ele perceba. O algoritmo, uma
espécie de entidade que tudo controla, movimenta as peças huma-
nas de modo a que atendam aos objetivos do capital. Hipnotiza o
trabalhador ao fazê-lo sentir-se em um game, com várias etapas a
superar a fim de alcançar o objetivo proposto e chegar à vitória final.
E, assim, ele é forçado, sem que perceba, a se manter conectado.

2 Registre-se, por exemplo, que a Amazon é a marca mais valiosa do mun-


do, segundo a consultoria Brand Finance. Disponível em: https://exame.
abril.com.br/marketing/amazon-e-a-marca-mais-valiosa-do-mundo-revela-
brand-finance-2019/.

364
A construção do engodo do empreendedorismo e sua incorporação

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tanto no discurso de suas vítimas diretas, os trabalhadores pseu-
doautônomos, quanto no dos consumidores que se beneficiam da
exploração do trabalho humano sob o fundamento do baixo custo,
da qualidade do serviço e da inevitabilidade da força das novas
tecnologias, são realizadas meticulosamente por profissionais de
marketing e de psicologia. Toda a sociedade finda se tornando partí-
cipe do engodo engendrado por grandes corporações. Dito de outra
forma, busca-se moldar a opinião pública com apelo a emoções das
massas na sociedade da pós-verdade, mediante o emprego de ter-
mos como: colaborador, microempreendedor, economia colabora-
tiva, economia de compartilhamento, espírito empresarial, criativi-
dade, oportunidade etc. Para os porta-vozes do empreendedorismo,
importa que esse discurso cumpra o papel de intensificar o vínculo
simbólico que une uma legião de explorados às empresas que os
exploram; que essa legião se sinta devedora e, por isso mesmo, fiel a
quem lhes deu oportunidade de ser um empreendedor. A liberdade,
desse modo, não está na emancipação dos povos frente ao capital e
na superação do capitalismo, mas na possibilidade de ser o próprio
capitalista. Certamente há sérias consequências, do ponto de vista
psíquico e social, desse modelo que isola, que acirra a competição,
que rompe laços de sociabilidade, que coloca nas costas do traba-
lhador todo o peso do fracasso, que o aprisiona em um jogo viciante.
Nos sábios ensinamentos de Dardot e Laval (2016, p. 189-243), esse
discurso contribui para dar sustentação à racionalidade neoliberal
– à lógica que rege as relações de poder e fundamenta as maneiras
de governar; que confere sentido às práticas neoliberais e limita as
possibilidades de reação ao sistema; que tem na concorrência a rela-
ção fundamental do mercado. No plano individual, a subjetivação
neoliberal incorpora a forma de empresa-de-si-mesmo e as pessoas
passam a buscar a sua valorização de olho na concorrência com os
demais “Eu/SA”, mormente considerando o emprego de técnicas de
management e da noção de Corporate Governance, com a utilização
de avaliações permanentes e individualizadas para medir a eficácia
de unidades de produção e de indivíduos, de modo a extrair dados
objetivos que permitam intensificar, permanentemente, a concor-
rência entre eles e, em consequência, aumentar a produção.
Filgueiras (2019, p. 47) ressalta que a retórica do empreendedorismo é
uma grande ironia, pois quem tem recursos para ser empreendedor

365
não se interessa em sê-lo, ao passo que os pobres, que “sempre pra-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

ticaram o empreendedorismo de sobrevivência”, são jogados nesse


pseudoempreendedorismo, em que os mercados “ultracentralizados”,
nas mãos de poucas empresas, ditam as regras e sugam as energias
do trabalhador. E ainda se reproduz “uma competitividade espúria,
baseada na depredação dos trabalhadores, que tende a aumentar
taxas de lucro sem contribuir para ampliar a acumulação produ-
tiva, expansão dos investimentos e do emprego”, pois os beneficiá-
rios da concentração de renda privilegiam o rentismo, a especulação
financeira, em detrimento do investimento produtivo. Nas palavras
de Dowbor (2018, p. 32-33), “recursos existem, mas a sua produtivi-
dade é esterilizada por um sistema generalizado de especulação que
drena as capacidades de investir na economia real”.

5 · A precarização é inevitável?
É premissa pacífica que a Revolução Digital intensificou, numa
ordem de grandeza assustadora, a precarização das relações de tra-
balho, embarcando os trabalhadores em uma espécie de máquina
do tempo que os levou a um período anterior ao surgimento do
Direito do Trabalho. Veja-se o alerta de Todolí-Signes (2017, p. 37):
No século XIX, os trabalhadores se amontoavam na entrada das
fábricas ou no campo, a cada manhã, a espera de ter trabalho nesse
dia. Os contratos eram diários – sem nenhum tipo de compromisso
de estabilidade ou previsão contratual de indenizações por dispensa
imotivada – e o empresário poderia eleger, em cada momento, o
número de trabalhadores com quem contar. Do mesmo modo, o
empresário podia realizar um leilão com o emprego, oferecendo tra-
balho apenas aqueles que estivessem dispostos a receber o menor
valor como forma de retribuição. Pois bem. [...]. Nas plataformas
virtuais, os ofertantes de trabalho podem contratar, não mais por
dias, mas por tarefas, que podem durar minutos ou segundos, adap-
tando totalmente a mão de obra às necessidades de cada momento.
Isso deixa totalmente desprotegido o trabalhador que desconhece
a forma de funcionamento, ou mesmo se terá trabalho no minuto
seguinte. Somado a isso, o grande número de participantes nas pla-
taformas provoca um leilão pelo menor valor do trabalho. A imensa
concorrência criada entre os trabalhadores – que supera de forma
inimaginável a que poderia ter existido no século XIX – irremedia-
velmente implica que o preço do trabalho cai para o nível mínimo de
subsistência, ou até mesmo abaixo disto.

366
E Antunes (2018, p. 30) arremata:

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Ao contrário da eliminação completa do trabalho pelo maqui-
nário informacional-digital, estamos presenciando o advento
e a expansão monumental do novo proletariado da era digital,
cujos trabalhos, mais ou menos intermitentes, mais ou menos
constantes, ganharam novo impulso com as TICs, que conec-
tam, pelos celulares, as mais distintas modalidades de trabalho.
Portanto, em vez do fim do trabalho na era digital, estamos viven-
ciando o crescimento exponencial do novo proletariado de serviços,
uma variante global do que se pode denominar escravidão digital.
Em pleno século XXI. (Grifos do original).

Mas essa situação é inevitável? É possível a manutenção de con-


dições dignas de trabalho na seara das novas tecnologias? Para
responder a essas questões, analisemos as diferenças existentes
entre uma empresa de delivery que conta com um aplicativo e
outra que não o possui. Bem, o serviço é o mesmo: entrega. Os
trabalhadores o realizam com os mesmos instrumentos: motos,
bicicletas, patins e, até mesmo, a pé. A diferença está, primei-
ramente, no chamado. As empresas tradicionais são contatadas
pessoalmente ou por telefone e recebem um pedido de delivery.
Chamam, também pessoalmente ou por telefone, um empre-
gado que se encontra à sua disposição e lhe repassam a ordem de
entrega. O empregado conclui o serviço e devolve a ordem com o
ateste do cliente. A empresa de delivery por aplicativo, por sua vez,
é contatada por meio dele. E também por meio dele passa a ordem
para algum trabalhador que se encontra dentro de um limite ter-
ritorial por ela programado. O trabalhador realiza a entrega e
informa a conclusão do serviço pelo aplicativo.
Tudo seria igual, não fosse pela existência de um aplicativo para
fazer a conexão entre as partes envolvidas. Ora, o engenheiro de
uma indústria de construção civil deixou de ser empregado da
empresa quando passou a receber ordens por meio de e-mails?
O gerente do banco deixou de ser empregado quando passou a
receber instruções via sistema informatizado? O publicitário em
teletrabalho deixou de ser empregado quando passou a receber
instruções por telefone? Se para todas essas perguntas a resposta
é negativa, o mesmo vale dizer para a situação em análise. Se para
todas as demais atividades a relação de emprego é factível, por
que não o seria no caso em apreço? O controle do trabalho nunca

367
foi tão fácil, pois está tudo registrado na plataforma: a data de
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

cadastramento do trabalhador, a hora de conexão e desconexão,


a rota, o tempo, o valor recebido. A diferença? O egoísmo, ainda
maior, capitalista. E esse capitalismo selvagem tem levado, inclu-
sive, à falência de muitas empresas. Após o surgimento de plata-
formas digitais para prestação de serviços de delivery, no Brasil,
não foram poucas as empresas de entrega que fecharam as suas
portas, pois não podiam impor preços competitivos tendo custos
trabalhistas e fiscais maiores que os da concorrência. A ausência
de vínculo de emprego, dessa forma, não é condição para a manu-
tenção do trabalho em plataformas digitais. Trata-se apenas de
uma decisão administrativa.
De igual modo, o estudo da OIT analisado chama atenção para
o fato de que nenhum dos resultados negativos para o trabalha-
dor é inerente ao conceito de crowdwork, sendo possível fazer a
reconfiguração de seus termos para melhorar as condições de
trabalho (OIT, 2018, p. 96-97).
Ao final, o estudo aponta para a necessidade de regulamenta-
ção governamental das plataformas de crowdwork e sugere a
adoção de alguns critérios para a garantia de trabalho digno no
ambiente virtual. Esses critérios vão desde o não afastamento,
a priori, do vínculo de emprego até a liberdade de associação;
garantia de salário-mínimo; estabelecimento de regras para
governar o não pagamento pelas tarefas realizadas; possibili-
dade de contestação das avaliações negativas, suspensões e can-
celamento de conta; concessão de informações sobre os propósi-
tos do trabalho; e, até, estabelecimento de renda mínima garan-
tida (OIT, 2018, p. 105-109).
Quanto à regulamentação do crowdwork, proposta pela OIT, no
âmbito de cada Estado-Membro, esta não resolve o problema da
concorrência desleal em abrangência mundial. É necessário que a
regulamentação ocorra em âmbito internacional, a partir de nego-
ciações transnacionais. No crowdwork, como visto, a realização
de um dado serviço é colocada à disposição de trabalhadores do
mundo todo e, sendo assim, a não regulamentação e a não impo-
sição de normas protetivas sociais por um dado Estado pode pro-
vocar a concorrência desleal em relação a trabalhadores de outros
Estados cuja regulamentação se fez presente.

368
6 · A crise civilizatória e a crise do sindicalismo

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Nas sábias palavras de Dowbor (2018, p. 9),
[c]riou-se um hiato profundo entre os nossos avanços tecnológicos,
que foram e continuam sendo espetaculares, e a nossa capacidade
de convívio civilizado, que se estagna ou até regride. Trata-se de
uma disritmia sistêmica, um desajuste nos tempos. Este desafio
tem sido corretamente conceituado como crise civilizatória.

Certamente não será tarefa fácil sair dessa crise. E a reação e as


alternativas precisam ser construídas considerando os vários ato-
res sociais, sendo a atuação dos novos movimentos sociais extre-
mamente importante nesse contexto – movimentos esses que
estão agindo de forma mais horizontalizada e globalizada e que têm
muito a ensinar, inclusive ao sindicalismo. Isso porque, na seara
do crowdsourcing, impende pensar nas possibilidades de atuação
das organizações sindicais para além das fronteiras dos Estados-
-Nações, promovendo negociações coletivas de caráter transnacio-
nal. No entanto, percebe-se uma forte crise envolvendo o próprio
sindicalismo contemporâneo (e este é o ponto nevrálgico da ques-
tão), provocada pelo crowdsourcing, pela informalidade e pelo con-
trato de prestação de serviços a terceiros – que fragmentaram as
categorias profissionais e pulverizaram os locais de trabalho.
A externalização produtiva para uma multidão de trabalhadores
geograficamente dispersa vem a intensificar, em ritmo nunca
antes observado, essa fragmentação. Se à época do surgimento do
Direito do Trabalho os trabalhadores estavam concentrados nos
espaços fabris, laborando lado a lado em uma linha de produção, o
que permitiu o estreitamento dos laços de sociabilidade, a identifi-
cação de interesses comuns, o surgimento de demandas coletivas
e a organização sindical, no crowdwork esses trabalhadores estão
geograficamente dispersos e a noção de categoria está diluída. Os
laços restam afrouxados ou rompidos.
Como se dará a mobilização dos trabalhadores em âmbito global e
a interlocução entre as organizações sindicais, as empresas trans-
nacionais de crowdwork e os Estados-Nações? É certo que a ideia de
categoria profissional idealizada no modelo fordista (art. 511, CLT:
“similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho
em comum”) perde sentido no crowdwork, no qual não há identidade

369
de profissão e de interesses econômicos. Tanto o psicólogo como o
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

técnico em mecânica trabalham em uma mesma plataforma vir-


tual. Destaca-se a desprofissionalização. Trata-se de uma “multidão
indivisa, codificada, controlada pelo big data produtivo e pelas tec-
nologias do algoritmo” (CHAVES JÚNIOR, 2019, grifos do original).
Com a eclosão de diversos movimentos sociais contra-hegemô-
nicos por todo o mundo, tais como o Indignados, o Occupy Wall
Street e, em âmbito local, o Ocupe Estelita, no Recife, entre tantos
outros, urge resgatar as características do primeiro momento do
sindicalismo em que emergiam as lutas emancipatórias e a busca
de um internacionalismo sindical. Nessa linha de raciocínio, cami-
nha também a ideia de cosmopolitismo, de Boaventura de Sousa
Santos, que ressalta o caráter contra-hegemônico e alternativo do
novo internacionalismo operário:
O novo internacionalismo operário constitui uma forma, entre
outras, de globalização contra-hegemônica, cujo sucesso parece
depender cada vez mais das coligações com outros atores e das
articulações com outras lutas emancipatórias noutros campos
sociais. (SANTOS, 2005, p. 55).

Para Andrade (2008, p. 141-165), é preciso identificar também o


papel das entidades sindicais no cenário pós-industrial, tendo em
vista que podem contribuir para a construção de instâncias supra-
nacionais de articulação, resolução de conflitos, garantia de direi-
tos e de formação de regras jurídicas.
Acredita-se, portanto, que as organizações sindicais e os novos
movimentos sociais devam adotar estratégias de articulação que
envolvam temas de direito laboral em geral, com foco nos direitos
humanos, sem limitação, inclusive, à representação dos trabalha-
dores formais, pois é na informalidade que se encontra a maioria
deles em boa parte do mundo, como no Brasil e na Índia. No mesmo
toar, diante da intensificação das relações de trabalho em âmbito
mundial, é necessário fazer a dissociação entre o conceito de cida-
dania e o de soberania dos Estados-Nações, afirmando a existência
de uma cidadania laboral transnacional (SOARES FILHO, 2007, p.
161-186). Para tanto, é preciso rediscutir a atuação das organizações
sindicais no espaço e no tempo a partir do resgate das lutas eman-
cipatórias e contra-hegemônicas.

370
7 · Conclusão

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Se a garantia do sucesso do modo de produção capitalista passou
pela criação da figura do trabalho livre subordinado, a afirmação do
sucesso do neoliberalismo, na era da informação, passa pelo engodo
do trabalho livre, supostamente autônomo. No início do século XIX, a
figura do trabalho livre subordinado avalizou a exploração do homem
pelo capital, embora tenha garantido a exigência de contrapresta-
ções por essa exploração, fruto das inúmeras lutas reivindicatórias
por melhoria das condições gerais de trabalho. Hoje, o engodo do tra-
balho livre/autônomo busca minar qualquer tipo de reivindicação,
mediante a falácia de que estariam nas mãos do próprio trabalha-
dor as decisões quanto à intensidade de trabalho e sua consequente
remuneração, o sucesso ou o insucesso em ser um empreendedor.
Assim, é importante, por um lado, desvelar a falácia e demonstrar
que as novas formas de organização do trabalho surgidas com a
Revolução Digital não afastam, de pronto, o vínculo empregatício,
pois a subordinação pode se fazer presente na sua nova concepção
– cibernética. A relação de emprego é a mesma, como visto; o que
muda é sua fisionomia. Sua aparência mudou por conta das novas
formas de produção, mas o seu DNA – a subordinação e a pessoali-
dade – continua ali. Mister se faz separar o joio do trigo – o traba-
lho autônomo do trabalho pseudoautônomo.
Urge, por outro lado, discutir a situação das entidades representativas
de trabalhadores, retirando-se os entraves para a sua organização e
atuação, a fim de que se possa falar em representatividade adequada
no mundo globalizado. É preciso considerar que a regulamentação
trabalhista não pode ficar fragmentada nos quase 200 países quando
as grandes corporações atuam em diversos deles ao mesmo tempo.

Referências
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teoria social crítica: os sentidos do trabalho subordinado na cultura e no
poder das organizações. São Paulo: Ltr, 2008.

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371
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro:
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

Jorge Zahar, 1998.

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ao desemprego e redução da informalidade. In: KREIN, José Dari; OLIVEIRA,
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promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú, 2019.

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SOARES FILHO, José. Sociedade pós-industrial: e os impactos da globa­


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TODOLÍ-SIGNES, Adrián. O mercado de trabalho no século XXI:


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Reis Paes; RODRIGUES, Bruno Alves; CHAVES JÚNIOR, José Eduardo
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372
AB5 para democracia:
segurança econômica e a regulação do
trabalho do bico na Califórnia1-2

Veena B. Dubal
Professora Associada de Direito na Universidade da
Califórnia, Hastings College of the Law.

Resumo: O projeto de lei chamado AB5 na Califórnia é a primeira tentativa


legislativa bem-sucedida feita por um estado dos Estados Unidos da América
para regular o trabalho do bico (gig work) viabilizado pela tecnologia.
Aprovada e assinada pelo governador da Califórnia em setembro de 2019,
a lei cria uma presunção de condição de empregado e apresenta um teste
tripartite rígido e articulado que as empresas devem cumprir para tratar
seus trabalhadores como trabalhadores autônomos, escavados fora das leis
trabalhistas estaduais. Este artigo examina a AB5 no seu contexto. Além
de analisar as anteriores falhas do Estado em regular o trabalho do bico
na Califórnia, discuto como a AB5 foi concebida e o importante papel dos
grupos de trabalhadores do bico na sua aprovação. Argumento que, se for
devidamente aplicada, a AB5 desempenhará um papel fundamental no
restabelecimento da voz e da democracia no local de trabalho na chamada
gig economy e pode até ser um catalisador para a revitalização da legislação
trabalhista dos EUA de forma mais ampla.

Palavras-chave: Trabalho do bico. Regulação. Democracia.

Abstract: A bill called AB5 in California is the first successful legislative


attempt made by a U.S. state to regulate tech-enabled gig work. Passed and
signed by the Governor of California in September 2019, the law creates a
presumption of employee status and puts forth an exacting, conjunctive
tri-partite test that companies must meet in order to treat their workers

1 Uma versão encurtada deste artigo apareceu primeiro no Expert Forum da


American Constitution Society.
2 Tradução de Rodrigo de Lacerda Carelli.

373
as independent contractors, carved out of state labor laws. This Article
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

examines AB5 in context. In addition to analyzing previous state failures


to regulate gig work in California, I discuss how AB5 was conceived and
the important role of gig worker groups in getting it passed. I argue that if
properly enforced, AB5 will play a critical role in restoring workplace voice
and democracy in the so-called gig economy and may even be a catalyst for
the revitalization of U.S. labor law more broadly.

Keywords: Gig work. Regulation. Democracy.

1 · Introdução
A pobreza não é uma suspect classification,3 segundo a Constituição
dos EUA, mas é uma afronta à vida, à dignidade e à democracia em
geral. Com a evisceração do estado de bem-estar social dos EUA e
a deferência do Judiciário em relação a resultados políticos na área
de “economia e bem-estar social” (LOFFREDO, 1993, p. 1278-1290),
o emprego é o principal meio legal e político para atacar a desigual-
dade econômica (DUBAL, 2017a, p. 67). Por sua vez, o emprego é
– para o melhor ou para o pior – chave para os resultados democrá-
ticos nos EUA. Ele fornece acesso às ferramentas para o sustento
básico na América moderna: o salário-mínimo, o seguro de saúde,
a proteção da rede de segurança e até mesmo o direito de se orga-
nizar e negociar coletivamente. Nossa capacidade de participar da
vida e da política depende, em grande parte, de nossa condição de
empregados. Nas palavras da teórica política Judith Shklar, “somos
cidadãos apenas se ‘formos remunerados’” (SHKLAR, 1995, p. 416).
No entanto, desde pelo menos a década de 1970, a capacidade dos
trabalhadores dos EUA de obterem uma renda sustentável por
meio do trabalho tem sido restringida pela proliferação do contract
labor – mão de obra contratada civilmente, conduzida fora do qua-
dro regulamentar do emprego (COLLIER; DUBAL; CARTER, 2017,
p. 3-5). Nos últimos anos, esse tipo de trabalho por contrato civil
tem crescido graças às plataformas de trabalho sob demanda e de
crowdsourcing (COLLIER; DUBAL; CARTER, 2017, p. 3-5), ambas as
quais dependem de supostos trabalhadores autônomos.

3 A suspect classification é, em termos da jurisprudência norte-americana,


qualquer classificação de grupos em que são encontrados certos critérios
que sugiram que eles podem provavelmente estar sujeitos a algum tipo de
discriminação, como raça, origem e religião [Nota do tradutor].

374
O potencial das plataformas de trabalho que dependem do traba-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


lho não assalariado para intensificar a pobreza é motivo de grande
preocupação nos debates sobre o futuro do trabalho e dos traba-
lhadores nos EUA. Embora o número de trabalhadores baseados
em aplicativos permaneça relativamente pequeno (BERNHARDT;
THOMASON, 2017, p. 7-10), o potencial para este setor crescer e
para as empresas reproduzirem este modelo em toda a economia
de serviços é grande. Uma vez que a maioria do trabalho em toda
a economia de serviços poderia ser desregulamentada por meio do
trabalho baseado em aplicativos, as discussões sobre o trabalho
neste setor têm-se concentrado em como fornecer proteções para
o crescente número de trabalhadores que conseguem empregos a
partir de plataformas digitais. Alguns estudiosos defenderam uma
“terceira categoria” de trabalhador – um trabalhador que recebe
algumas proteções limitadas, mas que, principalmente, não recebe
um salário por hora, não tem compensação de trabalhadores e
não se beneficia da rede de segurança proporcionada pelo seguro
desemprego (HARRIS; KRUEGER, 2015). Na academia jurídica dos
EUA, no entanto, há consenso de que, devido ao controle algorít-
mico administrado pelas empresas de plataforma de trabalho, seu
controle sobre a remuneração, seu poder sobre a distribuição do
trabalho e sua capacidade de despedir trabalhadores, plataformas
de trabalho como a Uber classificam erroneamente seus traba-
lhadores, e reguladores devem tratá-los da mesma forma que os
empregados tradicionais (GREENHOUSE, 2015; SECUNDA, 2018).
A AB5 – projeto que foi transformado em lei na Califórnia em
setembro de 2019 e entrou em vigor retroativamente em 1º de
janeiro de 2020 – é a primeira nova lei estadual nos Estados Unidos
a tratar da regulação laboral de trabalhadores gig em plataformas,
redefinindo o teste legal para as proteções da lei trabalhista esta-
dual. A AB5 traz esses trabalhadores de volta sob o guarda-chuva
“empregado”, codificando a presunção da condição de empregado
sob a lei estadual e apresentando um teste rígido e articulado que
as entidades contratantes devem cumprir se desejarem contratar
trabalhadores como não empregados. Ao contrário das versões tra-
dicionais do teste da existência de controle e das formas nascentes
do teste de potencial empreendedor [conforme disposto na FedEx
v. NLRB, 563 F. 3d 492 (2009) e ampliado na Supershuttle DFW, Inc.,
367 NLRB No. 75 (2019)], o teste ABC da Califórnia presume que
todos os trabalhadores são empregados e coloca sobre a entidade

375
contratante o ônus de provar o contrário. Como as plataformas de
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

trabalho têm apresentado riscos aos regimes de emprego e à segu-


rança dos trabalhadores em todo o mundo, a lei tem sido elogiada
internacionalmente e os estados dos EUA buscam replicá-la. 4
Como a Califórnia conseguiu aprovar essa lei, e que implicações
poderia ter a AB5 para a relação entre trabalho, pobreza e demo-
cracia de forma mais ampla? Nas seções seguintes, discuto o sur-
gimento do trabalho em plataforma, as falhas iniciais na regula-
mentação desse trabalho e o papel dos grupos de trabalhadores
do bico (gig workers) na promoção da AB5 e do trabalho protegido
de forma mais ampla.

2 · Compartilhar ou tomar?
O surgimento do trabalho precário de plataforma
Para entender a importância da AB5 no contexto político e econô-
mico mais amplo, precisamos compreender como as tendências de
trabalho precário que ela enfrenta inicialmente se proliferaram. As
empresas de plataformas de trabalho Uber e Lyft apareceram pela
primeira vez nas ruas de São Francisco, nas sombras da Grande
Recessão. Elas operavam sob o pretexto de compartilhar e construir
confiança e foram lançadas para um público cativo. Em um perí-
odo de aumento do desemprego e desconfiança no governo (tanto
à esquerda quanto à direita), as empresas capitalizaram o apetite
da população por postos de trabalho de fácil acesso e realizaram
uma reelaboração econômica para introduzir modelos de negócios
“disruptivos” construídos sobre o trabalho não regulamentado e
formalmente autônomo de autoempreendedores. Uber e Lyft (que
pavimentaram o caminho ideológico para inúmeras empresas da
gig economy que seguiram seu exemplo) forneceram serviços de táxi
tradicionais fora dos marcos regulatórios convencionais (DUBAL,
2017a, p. 119-134) a preços muito baixos e subsidiados (DEAN, 2019).
Elas argumentaram que suas plataformas tecnológicas não produ-
ziam trabalho, mas comunidade. E sua mensagem de relações públi-
cas era que eles não empregavam pessoas; eles as empoderavam.

4 Nova York, por exemplo, está construindo sua própria versão da AB5
(MCDONOUGH, 2019).

376
Por trás dessa narrativa sedutora estão práticas comerciais anti-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


concorrenciais e trabalho desprotegido. As plataformas de traba-
lho estabelecem tarifas, controlam o comportamento do trabalha-
dor por meio de algoritmos (SCHEIBER, 2017) e, unilateralmente (e,
às vezes, inexplicavelmente), despedem trabalhadores. As empre-
sas, por sua vez, afirmam facilitar o microempreendedorismo. Na
realidade, os trabalhadores individuais assumem todos os riscos
tradicionais do negócio (DUBAL, 2017a, p. 119-134). No contexto de
Uber e Lyft, por exemplo, os trabalhadores de empresas da gig eco-
nomy fornecem seu próprio carro, telefone, seguro do automóvel
híbrido e combustível – mas têm muito pouco ou nenhum controle
sobre o próprio negócio. Ao contrário dos pequenos empresários,
a maioria dos trabalhadores do bico não pode negociar preços, os
termos de seu trabalho, ou mesmo desenvolver sua própria clien-
tela. Embora as empresas ofereçam flexibilidade, os horários dos
trabalhadores são altamente direcionados pelas estruturas de pre-
ços. Para ganhar dinheiro, os motoristas devem trabalhar durante
horários específicos e de alta demanda. Os motoristas em tempo
integral frequentemente trabalham mais de sessenta horas por
semana, e mesmo em áreas metropolitanas movimentadas, depois
de contabilizar as despesas, sua renda horária cai bem abaixo do
salário-mínimo das cidades em que trabalham.

3 · Das falhas de regulação à dinamite Dynamex


Apesar das crescentes queixas de trabalhadores e protestos orga-
nizados por motoristas, os reguladores dos Estados Unidos não
conseguiram aplicar as leis trabalhistas existentes em relação às
empresas de plataformas de trabalho e, em alguns estados, eles
legalizaram afirmativamente seus modelos de negócios de presta-
dores de serviços autônomos (COLLIER; DUBAL; CARTER, 2018, p.
7-8). Essa cultura de aquiescência política começou na base zero
em São Francisco. Quando Lyft chegou às ruas de São Francisco
em 2012, a California Public Utilities Commission (CPUC, uma
agência reguladora estatal) emitiu uma ordem de cessação e desis-
tência, argumentando que a empresa estava operando ilegalmente
(COLLIER; DUBAL; CARTER, 2018, p. 14). Com essa ordem estadual
em vigor, o então prefeito de São Francisco, Ed Lee, adotou uma
abordagem municipal diferente, elogiando o surgimento de Lyft e

377
Uber, lançando um Grupo de Trabalho de Economia Compartilhada
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

e pronunciando 13 de junho de 2013 o “Dia da Lyft”.


A CPUC posteriormente mudou de rumo e iniciou um processo
de regulamentação para legalizar as empresas, destacando que
a agência procurou “fomentar a inovação” (HA, 2013). Ao regu-
lamentar essa atividade econômica em todo o estado, a agência
efetivamente impediu que as cidades da Califórnia promulgas-
sem regulamentos locais (SMITH et al., 2018). Isso significava que
os trabalhadores e os reguladores estariam mais desconectados
e que o processo de elaboração de políticas seria mais opaco.
Esperando que os tribunais enfrentassem a preocupação da clas-
sificação incorreta, a CPUC escreveu regras de laissez faire que
eram omissas em relação às questões trabalhistas.5
Por volta da mesma época, uma série de ações coletivas foram
movidas alegando a classificação falsa dos trabalhadores por Uber
e Lyft. Contudo, em última instância, a efetividade das ações cole-
tivas como mecanismos de aplicação da legislação foi impedida
por cláusulas de arbitragem e pela decisão da Suprema Corte dos
EUA no caso Epic Systems v. Lewis [138 S.C.C.1612 (2018)]. A deci-
são Epic Systems deixou claro que, segundo a lei americana, os
acordos de arbitragem em contratos de trabalho que continham
proibições de ações coletivas eram legais e não uma violação à
Lei Nacional de Relações Trabalhistas (National Labor Relations
Act – NLRA), como alguns tribunais inferiores haviam decidido.
Assim, as ações coletivas contra empresas da gig economy em que
ações coletivas de trabalhadores tinham sido recebidas pelos tri-
bunais foram posteriormente extintas.
Um mês antes da decisão da Epic Systems, entretanto, a Suprema
Corte da Califórnia decidiu o caso Dynamex v. Superior Court
of Los Angeles [4 Cal.5 903 (2018)]. O julgado Dynamex mudou a
lei da Califórnia e a discussão sobre os direitos dos empregados
na gig economy nos Estados Unidos. Em Dynamex, que tratava
da classificação dos motoristas para uma empresa de entregas
offline, a corte escreveu que o propósito das leis trabalhistas da

5 Em especial, também não se pronunciaram sobre a oferta (o número de


veículos Uber e Lyft que operam num dado momento) e sobre os preços, duas
questões que se encontravam regulamentadas no setor dos táxis há mais de
um século (ver, de uma forma geral: DUBAL, 2017a).

378
Califórnia era “elevar os padrões de vida” dos trabalhadores cali-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


fornianos e de suas famílias. A decisão observou como era fácil
para as empresas manipularem seus modelos de negócios para
evitar a responsabilidade dos trabalhadores sob o teste legal exis-
tente para verificar a existência da relação de emprego. Para res-
ponder melhor a essa questão crescente, a corte revisou a análise
da condição de empregado por conta alheia.
A corte em Dynamex decidiu que todos os trabalhadores da
Califórnia são juridicamente empregados por conta alheia. A deci-
são também afirmou que, se uma entidade contratante quer usar
trabalho de um trabalhador autônomo, a entidade tem que provar
que os trabalhadores são autônomos, cumprindo os termos de um
teste conjuntivo e tripartite, o teste ABC. Conforme formulado pela
Suprema Corte da Califórnia, o teste ABC é o seguinte:
a. que o trabalhador está livre do controle e da direção da enti-
dade contratante em relação à execução do trabalho, tanto no
âmbito do contrato de prestação de serviços como de fato;
b. que o trabalhador realiza trabalho que está fora do curso nor-
mal do negócio da entidade contratante; e
c. que o trabalhador está habitualmente envolvido em uma ativi-
dade comercial, ocupação ou negócio da mesma natureza que
o trabalho realizado.
Esse teste difere do disposto em S.G. Borello & Sons, Inc. v.
Department of Industrial Relations [48 Cal. 3d 342 (1989)], que por
três décadas foi usado para determinar a condição de funcionário
para os efeitos da maioria das leis da Califórnia. Como a maioria
dos testes para determinar a condição de empregado nos EUA,
o teste da Borello foi fundamentado em uma análise de controle
multifatorial: quanto controle a entidade contratante exercia sobre
os meios e a forma de desempenho da atividade pelo trabalhador.
Quanto mais controle a entidade contratante tinha, mais provável
era que o trabalhador fosse considerado um empregado. Enquanto
o Borello era geralmente considerado “pró-trabalhador” (worker-
-friendly), ele estava cheio de problemas. Por um lado, o teste dei-
xou muito espaço para análises subjetivas, de tal forma que dife-
rentes juízes poderiam chegar a decisões diversas sobre o mesmo
conjunto de fatos (DUBAL, 2017b, p. 70). Além disso, ao longo dos

379
anos, as empresas encontraram maneiras de usar o teste como um
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

roteiro para evitar a responsabilidade (DUBAL, 2017c). Ao invés de


buscar uma análise do controle no local de trabalho como marca do
status do funcionário, o teste ABC é voltado para a aplicação da lei.
Enquanto a Epic Systems mina a possibilidade de ações coletivas
e, assim, dificulta a implementação privada da Dynamex, as impli-
cações da decisão da Dynamex foram imediatamente percebidas
pelas empresas de plataforma de trabalho e pelos trabalhadores
do bico. Sob o teste ABC, os analistas concordam, há pouco espaço
de manobra; os trabalhadores da plataforma de trabalho são muito
provavelmente empregados das leis estaduais da Califórnia. As
empresas da gig economy, portanto, lutaram para utilizar seu sig-
nificativo poder estrutural e instrumental para criar uma barreira
legal para si mesmas por meio da legislação. Como resultado, após a
decisão da Dynamex, os legisladores falaram frequentemente sobre
a importância de um “acordo” entre empresas e trabalhadores sobre
o assunto. Em resposta a esse sentimento geral, alguns sindicatos
iniciaram conversas de portas fechadas com as gig companies. Dado
o ambiente político favorável ao setor de tecnologia da Califórnia, no
entanto, poucos pensavam que o projeto pudesse ser aprovado sem
uma isenção para as empresas de plataformas de trabalho.
Em vez de esperar que as empresas se regulamentem fora das obri-
gações trabalhistas, a deputada californiana Lorena Gonzalez apre-
sentou um projeto de lei na sessão legislativa de 2019, agora conhe-
cido como AB5. O projeto estende o precedente legal na Dynamex
além das leis salariais para todas as leis trabalhistas da Califórnia
– incluindo as do Código do Trabalho (que governa as regras de
remuneração, intervalos para refeição e descanso e remuneração
dos trabalhadores) e do Código do Seguro-Desemprego. O projeto
também dá aos promotores públicos o poder de fazer cumprir a lei
por meio da emissão de uma medida judicial, o que significa que, se
as empresas não cumprirem, elas podem ser responsabilizadas por
descumprimento de ordem judicial.

4 · Os motoristas assumem o comando: organização


sem precedentes na gig economy
Durante o fracasso inicial em regulamentar pelos tribunais e
parlamentos, entrevistei uma série de motoristas de plataformas

380
de trabalho que viviam em seus carros ou que dormiam de favor

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


em amigos. Eles não ganhavam o suficiente para pagar o aluguel.
Alguns deles tinham – incitados pela Uber – comprado veículos
para trabalhar e estavam agora presos em empréstimos predató-
rios. Outros motoristas que conheci – trabalhadores migrantes –
vieram do sul da Califórnia e do Vale Central para dirigir onde as
tarifas eram mais altas. Eles estavam todos cansados de trabalhar
sob condições de incerteza. Embora nem todos quisessem o con-
trole que temiam que viesse com a condição de empregado, todos
queriam direitos básicos como piso salarial e seguros de saúde e
acidente de trabalho (DUBAL, 2020).
Cansados de depender de atores estatais e sindicatos para lutar
por eles, vários motoristas frustrados começaram a se organizar.
Motoristas em Los Angeles, por exemplo, fundaram a Ride-share
Drivers United (RDU) em 2018. Fazendo o que alguns sindicalistas
pensavam ser impossível pela condição de trabalhadores atomi-
zados e dispersos, os membros da RDU construíram relações por
meio de conversas diretas individuais com trabalhadores e reuni-
ões semanais. Eles orquestraram ações para pressionar os atores
estatais e até planejaram uma greve global sem precedentes contra
Uber e Lyft em 8 de maio de 2019. Em um período de tempo nota-
velmente curto e sem financiamento, a RDU aumentou sua partici-
pação para mais de 5 mil trabalhadores e inspirou grupos afiliados
de base em San Diego e São Francisco.
A RDU e outros grupos de motoristas – incluindo aqueles patro-
cinados por sindicatos e centros de trabalhadores – endossaram
prontamente a AB5 e lutaram apaixonadamente para que fosse
aprovada. Os trabalhadores sentiram fortemente que a proposta
de acordo oferecida por Uber e Lyft era insatisfatória. Enquanto a
legislação proposta pelas empresas incluía um piso salarial, este
piso não contabilizava o tempo de espera do motorista. Assim, ele
ainda se situava abaixo da garantia do salário-mínimo estadual.
A proposta das companhias igualmente não considerava as horas
extras, seguro de desemprego, ou não fornecia indenização ade-
quada dos trabalhadores. Os membros da RDU me disseram que
ficaram chocados e alarmados com a proposta das empresas, que
exigiam a troca dos direitos básicos dos empregados por uma
“associação de trabalhadores” fundada pela empresa e benefícios
portáteis. Nos EUA, tal associação de trabalhadores influenciada

381
pela empresa seria ilegal sob o National Labor Relations Act se os
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

motoristas fossem considerados empregados.

5 · Utilizar o emprego para se organizar na busca de


um local de trabalho democrático
Contra adversidades e atores poderosos, a legislatura da Califórnia
aprovou a AB5 sem uma exclusão das empresas de plataforma de
trabalho. O governador da Califórnia, Gavin Newsom, assinou a lei,
indicando ao mesmo tempo que queria ver um caminho para a sin-
dicalização dos trabalhadores. Devido a uma recente decisão federal
do 9º Circuito, Câmara de Comércio v. Cidade de Seattle [890 F. 3d 769
(2018)], decorrente de uma lei de negociação coletiva da cidade desa-
fiada, uma lei estadual que favoreça a negociação coletiva pode ser pos-
sível nos Estados Unidos. A fim de evitar questões de preferência da lei
federal, entretanto, tal lei seria somente possível se a National Labor
Relations Board considerasse os trabalhadores do bico como traba-
lhadores autônomos. Sob a administração Trump, o conselho geral da
NLRB tomou a posição de que os motoristas da Uber são prestadores
de serviços autônomos, mas essa posição não tem valor de precedente.
A Uber afirma que está excluída da lei e que irá lutar contra a lei
por meio de um referendo. Ao argumentar que a lei não se aplica
a ela, a Uber sustenta – como tem acontecido em litígios em todo
o mundo – que é uma empresa de plataforma e não uma empresa
de transporte. Assim, segundo o argumento, os motoristas estão
fazendo trabalho fora do “âmbito usual” dos negócios da Uber.
Reconhecendo que essa é uma reivindicação duvidosa, Uber, Lyft,
DoorDash, Postmates e Instacart juntaram 110 milhões de dólares
para apoiar um projeto na Califórnia de uma lei que contorna a
legislatura, indo diretamente ao eleitorado da Califórnia para uma
decisão direta (CANON, 2019).
A proposta das empresas da gig economy criaria uma exceção da
AB5 para os trabalhadores do bico e, em troca, ofereceria um piso
salarial. No entanto, o piso salarial proposto cobre apenas o tempo
ocupado e não conta o tempo de espera como tempo de trabalho
remunerável. Ele também deixa os custos associados à condução –
incluindo a depreciação do veículo, gás, seguro – sem reembolso.
Os economistas calcularam que, como resultado, o salário-mínimo
por hora para os trabalhadores do bico sob essa proposição seria de

382
US$ 5,64 ou cerca de um terço do salário-mínimo da cidade de São

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Francisco (JACOBS; REICH, 2019). Em contraste, sob a AB5, os gig
workers teriam direito ao salário-mínimo para cada hora, ou fração
dela, que trabalhassem, mesmo que passassem a maior parte desse
tempo aguardando um chamado. Pesquisas iniciais sugerem que
a maioria dos eleitores da Califórnia votaria contra a proposta das
empresas da gig economy (BIDEN..., 2019).
Enquanto os trabalhadores do bico da Califórnia aguardam a deci-
são do eleitorado sobre a proposta das empresas da gig economy, eles
estão pressionando para que a AB5 seja efetivamente aplicada. Sob um
regime de emprego, o potencial de organização de trabalhadores de
bico crescerá exponencialmente. Os trabalhadores que ganham um
salário que permite seu sustento e recebem direitos têm o tempo e a
energia para construir o poder junto. Entretanto, a própria AB5 não dá
aos trabalhadores a autoridade legal para se envolverem em atividades
concertadas protegidas, e certamente não força as empresas a nego-
ciar coletivamente com eles. Então, o que vem a seguir? Como seria o
caminho para uma democracia sindical e no local de trabalho para os
trabalhadores da plataforma de trabalho da Califórnia?
Um caminho promissor pode ser o de grupos de motoristas como
a RDU continuarem a construir o poder coletivo e, posteriormente,
pedirem o reconhecimento sindical sob a lei trabalhista federal.
Embora o Conselho Geral da NLRB de Trump tenha emitido um
parecer consultivo não vinculativo chamando os motoristas Uber
de trabalhadores autônomos, excluindo-os da aplicação da NLRA
(SCHEIBER, 2019), a análise federal sobre o assunto pode mudar
com as alterações no modelo de negócios trazidas pela AB5 e certa-
mente se modificaria sob uma administração diferente.
Outro caminho pode ser a luta de grupos de motoristas por uma
lei trabalhista estadual radicalmente ousada para todos os trabalha-
dores excluídos. Tal lei não erodiria – mas aumentaria – os direi-
tos conquistados duramente sob a AB5 e permitiria que qualquer
pessoa excluída da lei federal se organizasse para melhorar suas
condições. A NLRA – desde Taft-Hartley – tem sido criticada por
precisar de reforma, especialmente para a nova economia. Como o
estado mais progressista com a maior taxa de pobreza, a Califórnia
poderia aproveitar o impulso da AB5 e criar um caminho estadual
para o reconhecimento sindical que resolvesse os muitos obstácu-
los colocados pela lei federal. Uma nova lei de negociação coletiva

383
da Califórnia, por exemplo, poderia tornar mais fácil para os traba-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

lhadores garantir o reconhecimento sindical e proteger melhor seus


direitos a piquetes, greve e participação em atividades concertadas.
Em uma reviravolta irônica, a chamada gig economy pode ser um
catalisador político tanto para a organização conduzida pelos tra-
balhadores quanto para a revitalização do Direito do Trabalho. Sob
o regime de emprego autorizado pela AB5, os trabalhadores pre-
cários de plataforma da Califórnia terão o poder de efetivamente
combater a pobreza enquanto constroem uma democracia justa e
vibrante – no local de trabalho e além.

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386
Tecnologias e o futuro dos sindicatos

Francisco Gérson Marques de Lima


Procurador Regional do Trabalho. Professor da Universidade
Federal do Ceará.

Resumo: As novas tecnologias da indústria chamada 4.0 têm grande


influência nas relações coletivas de trabalho, afetando os sindicatos, os
quais ainda patinam em conhecê-las e em utilizá-las a seu favor. A crise
de representatividade e os baixos índices de filiação poderiam receber um
importante impulso positivo se os sindicatos utilizassem mais e melhor
os recursos tecnológicos, como é o caso dos mecanismos exemplificados
neste artigo doutrinário. Os desafios lançados pela tecnologia exigem um
sindicalismo mais moderno, para a fiel representação dos trabalhadores.
É tempo de se pensar em inclusão digital dos trabalhadores, consultas
eletrônicas, mecanismos democráticos virtuais como o plebiscito e
o referendo, eleições eletrônicas, reuniões de diretorias por video­
conferências ou webconferências e assembleias online. Ao mesmo tempo,
os sindicatos possuem a importante tarefa de discutir o modelo produtivo
com seus representados, incluídas as novas profissões.

Palavras-chave: Trabalho. Tecnologias. Sindicalismo. Representatividade.

Abstract: The new technologies of the so-called 4.0 industry have a


great influence on the collective labor relations, affecting the unions,
which still skate to know and use them in their favor. The crisis of
representativeness and low membership rates could receive a significant
positive boost if unions made greater use of technological resources, such
as the mechanisms exemplified in this doctrinal article. The challenges
posed by technology require a more modern unionism for the faithful
representation of workers. It is time to think about digital inclusion of
workers, electronic consultations, virtual democratic mechanisms such
as referendum and referendum, electronic elections, videoconferencing
board meetings or web conferences and online assemblies. At the same
time, unions have the important task of discussing the productive model
with their representatives, including the new professions.

Keywords: Job. Technologies unionism. Representativeness.


387
1 · Problematização e aspectos metodológicos
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

Muitas preocupações cercam as relações de trabalho, tanto pelos


desafios atuais, como a universalização da retirada de direitos e a
precarização galopante, quanto pelo impacto das tecnologias, que
modificam o comportamento do consumidor, trazem novos hábi-
tos e exigem novo perfil dos trabalhadores, com substituição de
postos de trabalho e de profissões. Existem outros fatores, claro,
como o orquestramento do grande capital para a precarização das
relações laborais e o aumento na concentração de renda.
Uma dessas consequências é a forma como os sindicatos possam
ou devam se comunicar com sua base, cada vez mais pulverizada
e composta por membros que já não se dispõem a participar das
assembleias. De fato, percebem-se um esvaziamento das assem-
bleias e uma legitimidade em decadência. E isso pode facilmente
ser constatado por meio de alguns dados estatísticos. O comporta-
mento dos trabalhadores mudou muito do século XX para o século
XXI, sem que os sindicatos tenham se preparado para isso. Mesmo
as tecnologias disponibilizadas ainda são pouco utilizadas pelos
sindicalistas, causando um natural afastamento da base e uma
crise de representatividade.
Este artigo doutrinário se origina de simpósio promovido pela
Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), ocor-
rido em agosto de 2019, em Fortaleza-CE, de que o autor fez
parte ao lado dos professores Rodrigo Carelli, Vanessa Patriota
e Ricardo Antunes, acerca do impacto das novas tecnologias nas
relações de trabalho. O objetivo destas considerações reside em
deixar registrado o tema exposto por este autor no citado simpó-
sio como contributo às reflexões sobre o sindicalismo, nos tantos
desafios atuais e futuros.
O texto se escuda em dados estatísticos e na observação da
realidade sindical, especialmente da brasileira. As lições sobre
as tecnologias são extraídas da doutrina e da verificação de
informações divulgadas pelas próprias empresas em seus sites
oficiais e na grande mídia. O presente artigo se deterá na rea-
lidade do sindicato de trabalhadores; mas, na verdade, mutatis
mutandis, estas considerações se aplicam, também, às entidades
de empregadores.

388
2 · Tecnologias do nosso quotidiano

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


A imensa transformação no mundo do trabalho revela o surgi-
mento de novas formas de relações laborais, profissões recém-sur-
gidas, atividades que aparecem do dia para a noite (às vezes, somem
com a mesma rapidez), novo perfil de trabalhadores e pouquíssima
consciência de política sindical. Deveras, os sindicatos estão per-
dendo base! E muitos não querem perceber isso.
As oficinas de automóveis fabricados na tecnologia estritamente
mecânica e as oficinas de relógios de funcionamento por engre-
nagens e roldanas minguaram sensivelmente. São tecnologias
ultrapassadas. Os jornais impressos têm seus dias contados, mas
já amargam a estupenda redução de leitores, com prejuízos à
indústria gráfica. Outros exemplos também podem ser visíveis em
campos como o da revelação de fotografia, que outrora implicava
microfilmes e tinha uma rede de serviços e da indústria envolvida.
Com as novas tecnologias, grandes empresas do setor fecharam
suas portas e encerraram suas atividades no mundo todo, dando
sumiço a inúmeros empregos.
O mercado de livros físicos encontra-se em franco declínio, em
meio a uma juventude leitora cada dia mais ligada em livros digi-
tais, que pouco conhece o agradável perfume da tinta emanada
das páginas impressas e dos cafés que as livrarias dispunham
como espaço para leitura e bate-papo. Consequentemente, gran-
des livrarias, gráficas e editoras têm fechado, o que repercute
diretamente na vida dos autores, dos professores e de todos que
lidam com este mercado, além de mudar os costumes e hábi-
tos de leitura, numa vertente completamente anárquica e com
muito lixo disponível aos jovens. Agora, os livros são vendidos
nos mesmos locais que vendem geladeiras, móveis de escritório,
perfumes, ventiladores e sapatos. O tradicional trabalhador da
indústria gráfica tende a desaparecer, escapando para as gráficas
rápidas ou migrando para outras atividades.
Hoje, já se fala abertamente na iminência de carros sem moto-
ristas humanos, serviço de transporte automatizado, aparelhos
domésticos que encantarão as donas de casa, inteligência artificial
em diversos setores etc. Além de experiências reais e de sucesso
em lojas sem caixas humanos (ex.: Amazon Go), dos serviços

389
profissionais oferecidos on-demand, do sistema cada dia mais usual
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

de autosserviço, da expansão do comércio eletrônico, entre outros.


No geral, essas mudanças estão sendo aprovadas pelas empre-
sas desses novos tempos e pelos consumidores. Há benefícios a
ambos, com estimativa de bilhões de dólares a circular nos próxi-
mos anos, inclusive com perspectiva de se expandirem as moedas
eletrônicas, como o bitcoin.
Fenômenos próprios desta nova fase nas relações de trabalho,
decorrentes da tecnologia da chamada “Revolução 4.0”, manifes-
tam-se na uberização, nos serviços de ifood, nas atividades que uti-
lizam plataformas eletrônicas, com substituição dos empregos e
precarização do trabalho de sobrevivência. A noção de organiza-
ção de trabalhadores se esvai, consome o ímpeto de coletividade e
cria um sistema de concorrência eletrônica, virtual, em que o tra-
balhador não tem tempo para as reuniões sindicais nem para as
assembleias. Na verdade, mergulhados no individualismo laboral
das plataformas e dos aplicativos, esses novos trabalhadores são
escravizados pela tecnologia do novo século e não largam os apa-
relhos que os convocam a mais uma tarefa a qualquer momento.
Se não atenderem ao chamado ou se forem mal avaliados, podem
perder o posto de trabalho. A quase totalidade nem é empregada,
trabalha por conta própria ou pensa que labora assim.
Esses são, obviamente, alguns exemplos quotidianos do avanço das
tecnologias nos últimos anos, que fizeram surgir novas empresas
como Google, Amazon e Apple, alterando o modelo produtivo ou o
paradigma econômico. E vieram as plataformas, inúmeros aplica-
tivos e outras formas similares de prestação de serviços, influindo
diretamente na forma de contrato de trabalho e na relação entre
as empresas, os consumidores, os trabalhadores e... os sindicatos.
Martin Ford (2016) analisa que, no passado, a eliminação de empre-
gos em razão do aparecimento de novas tecnologias levava o tra-
balhador a mudar de atividade econômica. Contudo, hoje, esse pro-
cesso é mais difícil porque a modernização se dá praticamente em
todos os setores, ao mesmo tempo. Ademais, o número de ofícios
criados por novas tecnologias é inferior ao dos empregos perdidos.
Felipe Miguel Carrasco Fernández (2016) observa que há a implanta-
ção de novos paradigmas do Direito do Trabalho, sendo uma de suas
características, similares na maioria dos países, o debilitamento da
390
ação sindical, baseada na problemática da desocupação e na precari-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


zação do emprego. A isto
se agrega a alta rotatividade, que traz como consequência a hete-
rogeneidade das relações de trabalho, e por isso uma dificuldade
material dos sindicatos de representação dos trabalhadores.
(CARRASCO FERNÁNDEZ, 2016, p. 35).

William Bridges (1995) previu o processo de desaparecimento dos


empregos (dejobbing), referindo-se à redução do trabalho subordi-
nado e a uma profunda alteração nas relações laborais. Quanto aos
sindicatos, o autor chamava a atenção para o perfil do trabalhador
do futuro, sendo apropriado que os sindicatos focassem mais na
atividade em si (“na prática”) do que nos empregos. Essas entida-
des passariam a cumprir um indispensável papel educacional e de
capacitação dos trabalhadores ao mercado, além de se constituírem
em instrumentos de assistência e consultas, muitas por vias ele-
trônicas. Também funcionariam como organizações de facilitação
de vantagens aos trabalhadores em grupo, que não conseguiriam
sozinhos (planos de saúde, seguros etc.). A representação de cate-
gorias específicas seria substituída por unidades que promoveriam
interesses compartilhados, na perspectiva de ensejarem oportuni-
dades econômicas. Enfim, o apoio coletivo continuaria necessário,
porém mediante a reinvenção do sindicalismo.
É necessário estudar o processo tecnológico sob um ponto de
vista dinâmico:
Os efeitos positivos das novas tecnologias têm um caráter progres-
sivo e difusor, pelo que é necessário impulsionar este processo
para que seus efeitos benéficos alcancem as zonas sociais até
agora excluídas ou as que apenas sofrem seus efeitos negativos.
(BIFO, 2003, p. 136).

3 · O trabalho em números e a crise de


representatividade sindical
O primeiro obstáculo ao crescimento sindical se encontra na tenta-
tiva de restringir sua representação somente aos empregados, isto
é, aos que possuem vínculo formal subordinado. Num país em que
quase 40% dos trabalhadores vivem na informalidade e que mais
de 24 milhões laboram por conta própria, números estes em franca
ascensão, os sindicatos não se sustentarão por muito tempo se
391
continuarem olhando para um modelo trabalhista em nítida des-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

construção e inexorável substituição. Portanto, os sindicatos preci-


sam pensar em representar, também, os trabalhadores informais,
os autônomos, os intermitentes, os terceirizados, os que laboram
por conta própria, os eventuais, os trabalhadores de aplicativos ou
plataformas, entre outros. Essa ampliação na base é fundamental e
pode muito bem constituir uma das bandeiras da reforma sindical
que o governo brasileiro pretende apresentar em breve.
Estudos da Organização Internacional do Trabalho, divulgados em
junho de 2019, indicam que a sindicalização dos trabalhadores da
economia informal pode impulsionar a renovação do movimento
sindical, o que é obtenível graças ao aumento de filiados e à reali-
zação de negociação coletiva dos trabalhadores da economia infor-
mal a fim de proteger os direitos laborais, fortalecer a voz coletiva
e influenciar nas políticas sociais e econômicas (ORGANIZAÇÃO
INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2019a).
A preocupação da OIT também é sentida noutro estudo, do qual se
destaca (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2019b):
Según estimaciones recientes de la Organización Internacional del
Trabajo (OIT), el empleo independiente, las microempresas y las
pequeñas empresas tienen un papel infinitamente más importante
como proveedores de empleo de lo que se creía.

Los datos recogidos de 99 países indican que, en conjunto, estas


“pequeñas unidades económicas”, según su denominación, repre-
sentan el 70 por ciento del empleo total, por lo que son quienes más
empleo generan.

Las conclusiones tienen repercusiones “sumamente importantes” para


las políticas y los programas sobre creación de empleo, calidad del
empleo, nuevas empresas, productividad de las empresas y formaliza-
ción del empleo, los que, según indica el informe, tienen que centrarse
más en estas pequeñas unidades económicas.

El estudio revela además que un promedio del 62 por ciento del empleo
de estos 99 países corresponde al sector informal, donde las condi-
ciones de trabajo en general tienden a ser inferiores, (o sea: falta de
seguridad social, salarios más bajos, y deficiencias, tanto en materia
de seguridad y salud en el trabajo, como de relaciones laborales). El
nivel de informalidad varía mucho, desde más del 90 por ciento en
Benín, Cote d’Ivoire y Madagascar, hasta menos del cinco por ciento
en Austria, Bélgica, Brunei Darussalam y Suiza.

392
A pulverização sindical, no Brasil, apesar da unicidade imposta no

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


art. 8º, II, CF, tem sido uma das responsáveis pela falta de repre-
sentatividade. As categorias viraram pó e, muitas, tornaram-se
nanicas, com entidades fragilizadas, sem nenhum poder na política
trabalhista. Num sistema tripartite, os sindicatos de trabalhado-
res precisam estar aptos a influenciar a classe patronal e o Poder
Público, assegurando efetivamente sua participação no diálogo
social. A perda dessa qualidade reflete a falta de representatividade.
Muitas atividades, anteriormente exploradas por empresas e seus
empregados, hoje são oferecidas por meio de plataformas e aplica-
tivos, em que profissionais oferecem seus serviços, ora por conta
própria (ex.: trabalho on-demand), ora de forma organizada por
outrem (ex.: crowdwork). Essas pessoas, com algumas raras res-
salvas, não são formalmente empregadas nem possuem qualquer
regulamentação estatal, não contribuem com a previdência social
nem mantêm qualquer proximidade com os sindicatos. Muitas são
nômades digitais, que trabalham em qualquer lugar, sem nenhuma
viabilidade de visitar o sindicato. Isso é fruto da descentralização
produtiva, que justifica um repensar sobre o âmbito de abrangên-
cia do Direito do Trabalho (ARGÜELLES, 2017, p. 351), ainda erguido
sobre a escasseante relação de emprego.
De alguma maneira, os sindicatos não podem mais esperar o com-
parecimento pessoal dos trabalhadores aos locais físicos de reuni-
ões ou assembleias. Esses trabalhadores possuem uma forma pró-
pria de se comunicar e, em breve, provavelmente quererão resolver
seus problemas por aplicativo.
No Brasil, atualmente, a força de trabalho (pessoas aptas ao tra-
balho) é de 106,1 milhões, incluindo os ocupados e os desocu-
pados. A população ocupada é de 93,3 milhões, registrando-se
38,15% que vivem na informalidade e 11,5 milhões sem carteira
de trabalho assinada. Trabalham por conta própria 24,1 milhões,
número que está em franca ascendência, sendo 19,4 milhões sem
CNPJ. A taxa de desocupados é de 12%, cerca de 12,8 milhões, com
uma população de desalentados composta de 4,4% (4,87 milhões)
Esses são dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE)/Pnad Contínua de 31.7.2019 (INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019).
Em 2014, o mesmo IBGE apontara que somente 61% dos traba-
lhadores eram regidos por relação de emprego, percentual que
393
decresce ano a ano, em desfavor dos empregados, considerando
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

o avanço do trabalho informal e do trabalho por conta própria,


sobretudo em razão das plataformas eletrônicas e do comér-
cio eletrônico. Vale dizer: ao tempo da pesquisa, 39% não eram
formalmente empregados, número bastante expressivo na sua
exclusão da representação sindical. A mesma pesquisa indicara
que possuíam carteira assinada 57,9% dos trabalhadores, percen-
tual que tende a diminuir, haja vista a ausência de fiscalização
do trabalho em razão da extinção do Ministério do Trabalho em
2019, após o seu impiedoso processo de desmonte.
Quanto aos sindicatos, os dados carecem de atualização, conside-
rando o impacto da reforma trabalhista de 2017, que abalou seria-
mente o sindicalismo brasileiro. Em 2015, o IBGE registrara que
a média de filiação era de 16% dos empregados, do que se infere
que 84% dos trabalhadores subordinados não eram filiados.
Informações do extinto Ministério do Trabalho e Emprego apon-
tavam que, em 2017, somente 4,8 milhões de trabalhadores eram
sindicalizados. Num cálculo rápido, considerando que os sindicatos
têm uma média de 16% de filiados, de um percentual de 61% dos tra-
balhadores empregados (formais), significa que, na realidade, são
filiados menos de 10% desses trabalhadores ativos (16% de 61% de
100% = 9,7%), portanto excluídos os desocupados. Para a obtenção
de um número exato atual, seria preciso que os órgãos públicos
atualizassem as informações sindicais, o que não ocorreu; daí por-
que esses cálculos são apenas aproximados. Considerando que há,
no Brasil, mais de 16 mil entidades sindicais, das quais quase 12 mil
são de trabalhadores, percebem-se a diluição e a fluidez do vínculo
dos trabalhadores com suas entidades associativas.
Facilmente se vê que os sindicatos são pouco representativos. Só
o número de trabalhadores sem CTPS assinada é próximo ao quá-
druplo dos filiados. O número de desalentados é praticamente igual
ao de associados. Enfim, o percentual de filiados é o menor con-
tido nos dados do mundo do trabalho, mencionados acima. Mesmo
assim, os sindicatos representam, por força do art. 8º, CF, todos os
trabalhadores da categoria, o que implica um acréscimo médio de
84% ao seu poder de representação, fator que, em tese, fortalece
as entidades sindicais. Logo, se os sindicatos defenderem a repre-
sentação restrita aos filiados, como desejam algumas centrais sin-
dicais na reforma sindical que se avizinha, vão perder muito do

394
seu poder de representação dos trabalhadores. Será uma redução

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


drástica na abrangência da representação sindical. E abrirá espaço
para o surgimento de outras entidades de trabalhadores, tendência
natural ao fenômeno político de espaços não ocupados.
Note-se que o quadro de trabalhadores informais e dos que tra-
balham por conta própria aumenta inexoravelmente. Os sindi-
catos estão perdendo a dimensão de sua representação, voltando
os olhos, ainda, só para os empregados e, pior, para os que contri-
buem financeiramente com as entidades, estabelecendo, assim,
uma relação de consumo com a base, fulcrada na venda dos
serviços de representação, que nem sempre são bons ou sequer
existem. Entrementes, sabe-se que o estabelecimento de relação
de consumo requer serviços de qualidade, preços justos, maio-
res responsabilidades e concorrência. Os sindicatos ainda não
estão preparados para isso.
Se não houver uma reviravolta sindical, as entidades continuarão
perdendo a representatividade, a legitimidade e, consequente-
mente, a representação dos trabalhadores, conceitos não aborda-
dos neste breve estudo.

4 · Tecnologias a favor do sindicalismo


É preciso considerar a falta de utilização, pela grande maioria do
sindicalismo, de ferramentas modernas, de instrumentos demo-
cráticos mais práticos, rápidos e abrangentes e de facilidades que a
tecnologia pode proporcionar, com redução de custos e maior agili-
dade perante a categoria, tanto nos serviços de informação quanto
nos de defesa e de diálogo coletivo.
Premissas de tecnologia sindical. O emprego das facilidades oferecidas
pelas tecnologias aos sindicatos deve ter as seguintes premissas:
• nenhuma tecnologia substitui plenamente o contato sindical
presencial com a base;
• as tecnologias devem facilitar o acesso da base às entidades,
promovendo e facilitando o diálogo;
• a tecnologia deve servir à representação sindical, não podendo
ser utilizada para finalidade diversa;

395
• a tecnologia deve abranger todos os representados, não apenas
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

uma cúpula política ou de abastados em recursos tecnológicos; e


• as homologações nas rescisões e os cálculos indenizatórios devem
ter tratamento especial, rápido e transparente aos trabalhadores.
Em síntese, os instrumentos tecnológicos devem se pautar na fina-
lidade da função sindical, nos interesses da categoria e na atividade
de representação. Não seria apropriado que as tecnologias se vol-
tassem apenas para dentro da entidade, como forma de cobrar con-
tribuições ou somente facilitar o trabalho administrativo interno.
Política de comunicação. Muitos trabalhadores se queixam da falta
de informação pelos sindicatos e da ausência de transparência em
seus atos. Algo fácil de resolver, tecnicamente, através da correta
utilização do site da entidade, a começar pela publicação do esta-
tuto sindical e de um sistema de “disparo” de informações aos filia-
dos, além, é claro, das redes sociais. Considerando que há catego-
rias com muitos trabalhadores ainda leigos, é imperiosa a adoção
de uma política de inclusão digital, iniciando-se por disponibilizar
e-mail a todos e orientá-los a utilizar as redes sociais de que o sin-
dicato participe. As fichas de filiação sindical não podem dispensar
a informação de e-mail e WhatsApp dos filiados e de quantos forem
possíveis, mesmo não sendo filiados. Afinal, com informações bem
elaboradas e uma política de comunicação eficiente, os não filiados
podem despertar o interesse na filiação.
A estrutura dos sites pode apresentar, ainda, mecanismos de tira-
-dúvidas online, de cálculos trabalhistas automáticos (pelos pró-
prios trabalhadores), de avaliação institucional da entidade e de
fornecimento de sugestões e reclamações. A prestação de contas,
a refletir a necessária transparência, pode ser apresentada no site
institucional, com detalhamento restrito aos filiados, por exemplo.
Instrumentos de exercício da democracia sindical. É possível e reco-
mendável que as entidades desenvolvam plataformas próprias de
consulta aos trabalhadores, de plebiscitos e referendos, ampliando,
assim, a participação dos representados e propiciando um modelo
mais democrático no concerto dialogal. Um software bem elabo-
rado cumpriria essa missão.
Eleições sindicais. A quase totalidade dos sindicatos ainda utiliza,
atualmente, um modelo arcaico de eleições para escolha de suas

396
diretorias. São urnas físicas, cédulas de papel e uma burocracia tão

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


imensa quanto ineficiente para combater fraudes e a judicialização
das eleições. Os custos com impressão de cédulas, listas de filiados,
envelopes, tesouras, clips, fitas gomadas, canetas e réguas; e as des-
pesas com transporte de urnas, pagamento de diárias e alimenta-
ção aos mesários e fiscais, entre outros, são elevados. Um processo
eletrônico bem idealizado poderia facilitar, baratear e otimizar
tudo isso, com baixíssimo risco de judicialização. Os cuidados que
se deve ter, nesse sentido, são: a) se o sistema foi bem desenvolvido
e se apresenta interface apropriada, com recursos corretos e intui-
tivos; b) se quem o administrará nas eleições é de confiança e se
tem experiência em processos eleitorais sindicais; e c) se o sistema
é seguro e torna o processo auditável, em nome da transparência. A
credibilidade e o sucesso em qualquer processo eleitoral dependem
de uma boa condução pela Comissão Eleitoral e do envolvimento de
toda a categoria. A judicialização de aspectos das eleições, normal-
mente, causa mais transtorno do que solução.
Assembleias. Sabe-se que a tecnologia atual já permite a realização
de reuniões à distância ou online, como a videoconferência, e a uti-
lização de mecanismos em que há manifestações em tempo real.
Muitas empresas trocaram as onerosas reuniões presenciais de
seus CEOs, gerentes e funcionários – custos de passagens aéreas,
hospedagem, alimentação, computação na jornada, assunção de
riscos trabalhistas, acidentes etc. – por modalidades não presen-
ciais, que a tecnologia possibilita.
Atualmente, audiências judiciais são realizadas por videoconfe-
rências, depoimentos de réus são tomados virtualmente, acordos
são feitos online. A legislação se curvou ao avanço tecnológico para
permitir essas fórmulas, na ambiência mais formalista, que são as
instâncias de aplicação da justiça estatal (arts. 236, § 3º; e 385, § 3º,
CPC). Um exemplo que tem sido exitoso.
Não há impedimento legal para que as assembleias e reuniões
sindicais ocorram por mecanismos virtuais, a exemplo da web
conference, das videoconferências e das videochamadas, cuja ins-
trumentalização permite, por exemplo, a gravação e a exposição
de seus resultados e debates, com registro real. Tomando-se, por
exemplo, a categoria dos comerciários de grandes centros, dá para
imaginar que qualquer assembleia presencial será problemática.
Estimando-se uma categoria de 200 mil trabalhadores na base, com

397
10% de filiados (20 mil) e generosos 10% de comparecentes (2 mil),
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

facilmente se concluiu que a assembleia não será percentualmente


representativa. Contudo, por outro lado, requererá espaço físico con-
siderável e uma boa condução na ordem das intervenções e no modo
de votação das propostas. Na verdade, se a assembleia fosse de fato
representativa (suponha-se com 60% dos filiados = 12 mil), haveria
grande possibilidade de transtorno em sua condução. Um software
apropriado poderia abranger mais pessoas e enriquecer as manifes-
tações, com menores intempéries. Lógico que as assembleias virtu-
ais não poderiam constituir regra geral, mas seriam realizadas em
algumas circunstâncias definidas pelos estatutos. O Sintrajufe/RS
noticiou a realização, em 2018, de assembleia por videoconferência,
em auditório que aglomerou vários participantes, instituindo-se a
votação eletrônica nas eleições do sindicato.
Em princípio, a videoconferência, no meio sindical, é mais apropriada
para as reuniões de diretoria (as diretorias colegiadas), comissões
técnicas e grupos de trabalho. Eventualmente, seria apropriada para
certas assembleias nas federações e confederações, uma vez que os
integrantes da base são em número menor do que nos grandes sin-
dicatos, além de dispensar as despesas de deslocamentos.
Em cada estado, poderia haver uma estrutura montada no auditó-
rio de alguma entidade, compartilhada e mantida por outras enti-
dades sindicais, a fim de promover videoconferências e, assim, evi-
tar deslocamentos de dirigentes a outras localidades, com despe-
sas de hospedagens, passagens, alimentação, diárias, entre outras.
Tudo que é excepcional ou inovador merece clareza normativa.
Assim, considerando que o ordinário são as assembleias presen-
ciais, as formas extraordinárias devem ser reguladas por normas
estatutárias ou, por sua autorização, em regimentos próprios, com-
plementares aos estatutos e aprovadas pela diretoria colegiada.
Negociação coletiva à distância. Cabe aos sindicatos mapear as res-
pectivas categorias e profissões, fazendo juízo de futurologia no
sentido de verificar quais ameaças pairam no ar e quais proteções
são adequadas aos trabalhadores. Algumas cláusulas se mostram
essenciais nestes tempos, como a implementação do direito à des-
conexão e a que assegure direito de defesa na exclusão dos traba-
lhadores de plataforma. Direitos mínimos aos que trabalham sem
vínculo de emprego ou sob condições de pressão e opressão devem

398
ser assegurados nas negociações coletivas, já que a tendência do

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


Estado é se afastar das relações laborais. É preciso pensar em cláu-
sulas que reduzam o impacto ou os efeitos da tecnologia.
Num mundo com previdência social pública acessível apenas a
alguns e, ainda assim, em condições precárias, é tempo de inves-
tir mais em planos de saúde, previdência complementar, segu-
ros (de vida, de acidente, de desemprego) e condições de trabalho.
A saúde e a proteção do meio ambiente de trabalho continuarão
tendo forte apelo negocial, porque, ao fim, poderão ensejar inde-
nizações elevadas às empresas.
A busca por empregabilidade será a tônica nestes tempos desafia-
dores. Surgindo equipamentos e tecnologia que substituirão vários
trabalhadores, é preciso estabelecer políticas de transição, sem
prejuízo do trabalho político que os sindicatos possam fazer fora
da mesa da negociação.
O art. 7º, XXVII, da Constituição Federal assegura a “proteção em
face da automação”. Enquanto não é alterado, incumbe aos sindi-
catos se agarrar no referido dispositivo constitucional para mini-
mizar o impacto nocivo das tecnologias no trabalho. Impedir o
avanço tecnológico e científico não tem sentido, até porque signifi-
caria barrar o progresso e o avanço da humanidade.
Outro fator importante é o instrumental utilizado nas negociações
que podem ocorrer por mecanismo online, ao menos em algumas eta-
pas das tratativas. Isso se torna de suma relevância nas negociações
regionais ou nacionais, que incluem deslocamentos dos envolvidos.
Nas relações de trabalho, caminha-se para que ocorram concilia-
ções judiciais não presenciais, sob a coordenação de um magis-
trado do trabalho, conforme experiências já divulgadas pela
imprensa, mesmo que, por enquanto, excepcionais. Afinal, a legis-
lação já permite a realização de audiências eletrônicas (arts. 236,
§ 3º; 385, § 3º; e 453, § 1º, CPC).
Todavia, mecanismos de resolução de conflitos diretamente entre
empregado e empregador não encontram permissão legal, conside-
rando a evidente subordinação e a dependência de uma das partes.
Contudo, a presença dos sindicatos poderia superar esse empeci-
lho, não fosse a reforma trabalhista de 2017 ter retirado, por exem-
plo, salvo negociação coletiva, a assistência sindical nas rescisões

399
contratuais, momento propício às conciliações. Trabalhadores des-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

pedidos e que retornam a seus locais de origem, distantes e sem


condições de custear deslocamentos, poderiam se valer de confe-
rências online, numa triangulação de sindicato, empresa e operário.
Sob o ponto de vista técnico-jurídico, não há empecilho a tal meca-
nismo, se nenhuma outra nulidade comprometer o ato. Se houver
norma coletiva estabelecendo essa possibilidade, com os cuidados
devidos, pode facilitar a via negocial.
Moralidade sindical. Não obstante tudo que aqui se considerou, a crise
do sindicalismo brasileiro atual recebe uma forte contribuição da
crise moral causada pelas más práticas de alguns. São os mandatos
exorbitantes (oito anos, dez anos), a falta de prestação de contas das
diretorias, as fraudes e a violência nas eleições, os atos de desvio das
finanças dos sindicatos, a perpetuação nas direções, entre outras.
Enquanto o movimento sindical não promover, internamente, um
processo de depuração, continuará à beira de um abismo ético, em
que as boas diretorias são confundidas pelos trabalhadores e, de
resto, pela população com as diretorias viciadas e vendidas.
Os recursos tecnológicos podem constituir um bom ou um mau
caminho, a depender do ímpeto ético de quem os manuseie.

5 · Considerações finais
Novas tecnologias se instalam e modificam profundamente as rela-
ções de trabalho, que já não são unicamente baseadas no modelo dos
anos 1940. As formas de labuta se modificaram ou foram substitu-
ídas entre o final do século XX e o começo do século XXI, sem que
os sindicatos tenham conseguido acompanhar este mundo em cons-
tante transformação. As entidades deixam escapar por entre os dedos
importantes recursos tecnológicos de contato com os membros de
sua base, ao passo que perdem os representados para a indústria 4.0,
que pulveriza os trabalhadores e os afasta da relação tradicional do
contrato individual de trabalho e das organizações de classe.
Cabe aos sindicatos, então, buscar mecanismos de reaproximação
dos trabalhadores e conquistar a legitimidade dos que não são (ou
não se sentem) empregados. Afinal, estando a realidade a apontar a
substituição inexorável da relação empregatícia por modelos dife-
rentes, é chegado o momento de os sindicatos partirem para um

400
esquema de representação mais ampla e moderna, extensível aos

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


não empregados. Os meios tecnológicos podem auxiliar neste pro-
cesso ampliativo da representação sindical.

Referências
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modelos organizativos y el emprendimiento. In: GOBIERNO DE ESPAÑA.
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Genebra, 20 jun. 2019a. Disponível em: https://www.ilo.org/actrav/media-
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ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. La mayor parte del


empleo mundial procede de las pequeñas empresas y los trabajadores
independientes, concluye un nuevo informe de la OIT. OIT Notícias,
Genebra, 10 out. 2019b. Disponível em: https://www.ilo.org/global/about-
the-ilo/newsroom/news/WCMS_723414/lang--es/index.htm. Acesso em:
20 out. 2019.

401
Revolução digital: a demanda social pela
regulação do trabalho1

Paula Freitas de Almeida


Doutoranda em Desenvolvimento Econômico pelo Centro
de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da
Universidade Estadual de Campinas (Cesit/IE/Unicamp).

Resumo: Este ensaio2 busca identificar aspectos da demanda social por


uma regulação menos permissiva ao capital e que alcance o conjunto de
trabalhadores e trabalhadoras. Para isso, se consideram os imperativos
da Revolução Digital, em desenvolvimento sob a governança de uma
“nova razão de mundo”. Duas premissas foram assumidas. Uma, que a
divisão internacional do trabalho é acirrada pelo advento da Revolução
Digital, com a formação de um “novo proletariado de serviços”. Outra,
que a governança do neoliberalismo subverte a lógica da proteção social e
forja uma nova razão de mundo, traduzida na transferência total do risco
social para o indivíduo, empreendedor de si mesmo. É nesse cenário que,
iniciada a reforma trabalhista, em curso desde 2017, se identifica a rápida
deterioração do mercado de trabalho, o que será ilustrado principalmente

1 O texto foi pensado a partir das palestras do Simpósio Futuro do Trabalho


– os efeitos da revolução digital na sociedade, desenvolvido pela ESMPU.
Agradeço a Vanessa Patriota e Rodrigo Carelli, cuja dedicação a esse evento,
provavelmente o primeiro desse porte sobre a temática no Brasil, cumpriu
grande função social ao debater amplamente o assunto com a comunidade
jurídica do País. Vale a observação de que o presente texto é fruto de reflexões
realizadas no âmbito do doutoramento em Desenvolvimento Econômico pelo
Cesit/IE/Unicamp, das atividades do GT Mundos do Trabalho, do mesmo
instituto, assim como das atividades da Rede de Estudos e Monitoramento
Interdisciplinar da Reforma – Remir Trabalho.
2 A opção pela escrita de um ensaio nos leva à possibilidade de escrever um
texto sem divisões internas, mas que, ao mesmo tempo, mantém a estrutura
de introdução, desenvolvimento e conclusão. Espera-se, com isso, produzir
um texto que consiga concatenar grandes temas de um modo fluido.

403
pelos dados da PNADCT e pelas análises do IPEA. Serão tratados pontos
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

da informalidade do mercado de trabalho, do emprego e desemprego e da


desigualdade expressa no rendimento médio real.

Palavras-chave: Revolução Digital. Demanda social. Regulação do trabalho.

Abstract: This essay seeks to identify aspects of social demand for a


less permissive regulation of capital that reaches the group of workers.
For this, we consider the imperatives of the Digital Revolution, under
development under the governance of a “new way of the world”. Two
basic assumptions were made. One, that the international division
of labor is intensified by the advent of the Digital Revolution, with
the formation of a “new proletariat of services”. Another is that the
governance of neoliberalism subverts the logic of social protection
and forges a new world way, translated into the total transfer of social
risk to the self-entrepreneurial individual. It is in this scenario that,
starting the labor reform, which has been ongoing since 2017, the rapid
deterioration of the labor market is identified, which will be illustrated
mainly by PNADCT data and IPEA analyzes. Points will be addressed
on labor market informality, employment and unemployment and
inequality expressed in real average income.

Keywords: Digital Revolution. Social demand. Labour regulation.

Este texto busca identificar a demanda social por regulação do tra-


balho conforme a base material formada no Brasil pelo atual cenário
neoliberal e de Revolução Digital. Para Krein e Oliveira (2019), não é
possível definir a reforma trabalhista como o fator da rápida dete-
rioração do mercado de trabalho, mas é possível afirmar que ela não
gerou o emprego e o desenvolvimento (econômico e humano) pro-
metidos; ao contrário, institucionalizou condições de trabalho que
mitigam a já precária proteção social existente até então e reflete o
rebaixamento do padrão das relações sociais e do trabalho.
É preciso olhar para além da reforma trabalhista para compreen-
der a condição atual do mercado de trabalho brasileiro. Isso por-
que as assimetrias da relação capital/trabalho também resultam
dos processos globais, especialmente aqueles que vêm desde a
década de 1970, e os novos, marcados pelos imperativos de uma
Revolução Digital que se desenvolve sobre os pilares da Revolução
Informacional e da “nova razão de mundo” – o neoliberalismo. A
reorganização da dinâmica do mercado a partir das inovações
da Revolução Digital fez surgir o novo proletariado digital, pelo

404
incremento do trabalho nas plataformas digitais e pela radicaliza-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


ção das características do indivíduo sob a governança neoliberal.
Isso ocorre em paralelo ao processo de desregulação social e do
trabalho, e, sobretudo nas economias periféricas, encontra as con-
dições ideais à sua expansão e consolidação.
No Brasil, os desocupados recorrem ao trabalho na plataforma
digital como estratégia de sobrevivência, nos termos da “viração”
proposto por Abílio (2014). Esse cenário potencializa as pressões
internas sobre o mercado de trabalho, num fluxo de deteriora-
ção contínua que se avoluma com o tempo. Isso parece reverbe-
rar no tecido social, com rebaixamento contínuo da condição de
vida da maior parte da sociedade e uma nova demanda por uma
regulação do trabalho que amplie o alcance e resgate o ímpeto
protetivo da regulação do emprego. É o que se busca ilustrar ao
tratar de pontos da informalidade do mercado de trabalho, do
emprego e desemprego e da desigualdade do rendimento médio
real, por meio dos dados da Pesquisa Nacional por Amostragem
de Domicílio Contínua Trimestral e pelas análises do Instituto
de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), levando-se em conta,
sobretudo, os anos de 2016 e 2019.
Na base daquilo que se pretende mostrar (a demanda social por
uma regulação do trabalho menos permissiva), está a questão da
divisão internacional do trabalho, que pode ser dita como sendo
marca do processo histórico do capitalismo. Para Castells (2016),
partindo dos efeitos da Revolução Informacional, a “sociedade em
rede” acentua o desenvolvimento desigual por entre segmentos e
territórios dinâmicos e aqueles irrelevantes à lógica do sistema.
Não há limite à divisão Norte/Sul; todavia, aqui, essa é considerada
a expressão mais evidente da divisão internacional do trabalho.
Santos (2013), por sua vez, enfatiza a divisão Norte/Sul ao tratar das
suas linhas abissais. Aponta a existência de distinções invisíveis que
“são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade
social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e
o universo ‘do outro lado da linha’”. O seu efeito é a preponderância
pela violência dos saberes daqueles que historicamente configura-
ram como centro dinâmico (metrópole) sobre os saberes daqueles
relegados à periferia do sistema, a partir de um uso utilitarista para
justificar a existência do centro (papel exercido pela colônia).

405
A leitura conjunta dos autores citados possibilita entender a
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

expansão e a consolidação do capitalismo, particularmente na


forma globalizada apresentada por Thatcher com a imperatividade
característica do Norte: there is no alternative! É uma referência à
agenda neoliberal do capitalismo globalizado, financeirizado e que
engendra os pilares da “nova razão de mundo”. Castells (2016), ao
tratar da revolução informacional, chama atenção para a interde-
pendência global das economias, que modificou a relação entre a
Economia, o Estado e a sociedade:
O próprio capitalismo passa por um processo de profunda reestru-
turação caracterizado por maior flexibilidade de gerenciamento;
descentralização das empresas e sua organização em redes tanto
internamente quanto em suas relações com outras empresas;
considerável fortalecimento do capital vis-à-vis o trabalho, com
o declínio concomitante da influência dos movimentos dos tra-
balhadores; individualização e diversificação cada vez maior das
relações de trabalho; incorporação maciça das mulheres na força
de trabalho remunerada, geralmente em condições discriminató-
rias; intervenção estatal para desregular os mercados de forma
seletiva e desfazer o Estado do bem-estar social com diferentes
intensidades e orientações, dependendo da natureza das forças e
instituições políticas de cada sociedade; aumento da concorrência
econômica global em um contexto de progressiva diferenciação
dos cenários geográficos e culturais para a acumulação e gestão
de capital. (CASTELLS, 2016, p. 61).

Para o autor, essas características estão presentes na “sociedade


em rede”, assim chamada em razão da interconectividade entre as
dimensões fundamentais da organização e da prática social que
expandiram sobremaneira o seu alcance e reconfiguração por meio
da gestão das complexidades inerentes a essa expansão dada para
além da fronteira do Estado-Nação. Todavia, ressalta que o impor-
tante não é a centralidade que a informação adquire, mas a sua
aplicação ao processo de inovação que se retroalimenta; ou seja,
o monopólio da informação favorece a concentração da inovação,
que, por sua vez, oferece mais ferramentas à inovação – o domínio
mundial sobre patentes oferece um claro indicativo sobre a con-
centração da inovação (por nacionalidade e setores).
Os elementos de reestruturação do capitalismo e a base material que
emerge da revolução tecnológica se somam a uma série de outros

406
elementos para dar conteúdo ao neoliberalismo. Para Dardot e Laval,

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


o neoliberalismo consiste na nova razão de mundo, que decorre da
superação do padrão de proteção social até então preponderante. Foi
substituído pelo padrão em que prevalece a concorrência generali-
zada decorrente das relações entre forças sociais e condições econô-
micas. Ao Estado compete “a função de vigia das regras de concor-
rência em favor dos grandes oligopólios, criar situações de mercado
e formar indivíduos adaptados à lógica de mercado” (2017, p. 191). É no
invólucro da concorrência global que surge a pressão externa sobre o
mercado interno de trabalho, ainda maior nas economias periféricas
e que fomenta uma governança que prepara o indivíduo à legitima-
ção da nova lógica normativa de desregulação do trabalho.
A pressão externa sobre os mercados internos de trabalho se radi-
caliza na forma das Cadeias Globais de Valor (CGV), que demarcam
uma nova divisão internacional do trabalho; elas abarcam o con-
junto de todas as tarefas e atividades relacionadas a um produto
(bem ou serviço) que lhe agrega valor. De tal modo, a Cadeia Global
de Produção (CGP), envolve o conjunto concatenado de etapas cons-
titutivas do processo de produção de um bem ou serviço. Trata-se
de se considerar como parte da CGV qualquer atividade, desde o
projeto até a distribuição do produto que lhe agregue valor.
Em publicação do IPEA, Carneiro (2017, p. 89) indica três caracte-
rísticas da CGV: “fragmentação em diversas empresas, dispersão
em diversos países e estrutura de governança coordenada por uma
firma-líder”. A fragmentação em diversas empresas consiste no
processo de terceirização, é um movimento da ordem econômica
doméstica (outsourcing). Para Krein et al. (2018), consiste em estra-
tégia do capital para gestão da força de trabalho, que transfere res-
ponsabilidades e reduz custos, mantendo o controle e a influência
sobre a determinação do produto ou serviço. É modo de organiza-
ção da produção que transfere grande contingente da força de tra-
balho para o setor de serviços – em empregos precários, vínculos
forjados como pessoa jurídica ou simplesmente de modo informal;
é indissociável da precarização (DRUCK, 2016).
A terceirização foi potencializada pelas novas tecnologias da infor-
mação e comunicação (TICs), mediante novas ferramentas de con-
trole remoto e de custo reduzido da produção. Pelo mesmo motivo,
se alcançou a viabilidade técnica de transferência de etapas inteiras

407
da CGV para outros países (offshoring), mantendo-se alto grau de
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

complexidade. Esse segundo aspecto da CGV caracteriza mais for-


temente a divisão internacional do trabalho. Isso porque abre-se um
mercado global de força de trabalho marcado historicamente pela
desigualdade entre as nações – mais ou menos industrializadas,
mais ou menos ricas, mais ou menos desenvolvidas socialmente.
Essas condições históricas determinam o papel do Estado. As eco-
nomias centrais dominaram investimento em pesquisa, desen-
volvimento e inovação, e detêm quase a totalidade das patentes
no mundo. Elas costumam respaldar-se no Estado pelo desenvol-
vimento de políticas internas e externas que lhes sejam favorá-
veis. As economias periféricas disputam o escasso Investimento
Estrangeiro Direto (IED) que lhes é revertido na transferência das
etapas produtivas intensivas em mão de obra menos qualificada. O
Estado capitaneia uma corrida para o abismo social na investida da
“competitividade” do mercado, por meio do rebaixamento dos “cus-
tos”; a competição internacional promove fluxo contínuo de uma
desumana corrida entre os Estados nacionais.
A divisão internacional do trabalho, portanto, rende distinções na
qualidade dos mercados internos de trabalho. Do lado das econo-
mias centrais, são mantidas as etapas de trabalho imaterial, no
mais das vezes vinculadas aos processos de criação e de maior
valor agregado ao bem ou serviço. Não se trata somente do valor
concreto do produto final, mas ainda do valor acionário junto ao
mercado financeiro, em razão do desenvolvimento de novas tecno-
logias. Do lado das economias periféricas, são pressionados a rebai-
xar o padrão de contração da força de trabalho, diminuir a proteção
à indústria nacional e promover ajustes fiscais, a fim adequar as
instituições internas à captação das etapas produtivas transferidas
pelo grande capital (que agregam menos valor).
Para o aceite das pressões da competitividade sobre a ordem interna
dos países, legitimou-se o discurso junto aos indivíduos. Contudo,
mais que o discurso, a reorganização social a partir do paradigma da
competição generalizada entre os indivíduos que caracteriza a “gover-
namentalidade”, de Dardot e Laval, ataca a mudança de comporta-
mento. As novas aspirações e condutas dos sujeitos (empreendedor de
si) passam a subsumir-se às formas de controle e agir que lhes con-
forma, particularmente pelo campo daquilo que é “legítimo” ao Estado
(forte) intervir. É de onde vem o principal produto neoliberal:

408
[...] a racionalidade neoliberal produz o sujeito de que necessita orde-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


nando os meios de governá-lo para que ele se conduza realmente
como uma entidade em competição e que, por isso, deve maximizar
seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo a inteira respon-
sabilidade por eventuais fracassos. “Empresa” também é o nome que
se deve dar ao governo de si na era neoliberal. (2017, p. 328).

O governo de si materializa a mercantilização do sujeito subjugado


à lógica do neoliberalismo e à subordinação estrutural pela “firma
líder” (a presença desta é a terceira característica da CGV). As relações
estabelecidas na CGV são submetidas a uma estrutura de governança
coordenada por uma firma líder. Tal governança avança para as demais
dimensões da vida: economia, política, organização social e comporta-
mental dos indivíduos. No âmbito da organização da produção, define
os parâmetros de transferência das etapas produtivas, estabelecendo
as dinâmicas dos mercados setoriais. São fixados os padrões de fun-
cionamento e os critérios de contratação das empresas parceiras, com
o ponto em comum da redução de custo. Esse conjunto de fatores é
que promove a expansão contínua dos serviços, com o rebaixamento
da proteção social e a subordinação estrutural da menor unidade pro-
dutiva (o indivíduo) ao controle monopólico das CGV.
A Revolução Digital sobrevém apropriando-se da TIC, mas se
caracteriza pelo predomínio de inovações voltadas à reprodução
da capacidade e da condição humana fora do corpo humano. As
múltiplas inovações são direcionadas para a inteligência artificial,
impressão 3D com material biológico, capacidade dialética das uni-
dades inumanas por meio da internet of things (IoT) e a síntese dos
seus superprocessamentos. Essa tecnologia é aplicada pelo con-
junto do grande capital como forma de controle e influência com-
portamental sobre a sociedade, seja do consumo,3 seja do trabalho.
Uma das ferramentas utilizadas pelo grande capital para a capta-
ção, armazenamento e processamento (análise) da informação útil
sobre as sociedades do consumo e do trabalho são as plataformas

3 A sociedade do consumo não será tratada aqui, mas importa a nota de que
o acesso às inovações da Revolução Digital encontra-se estratificado por
Estados nacionais e classes econômicas. O primeiro, pela concentração
territorial das empresas de tecnologia; o segundo, pelas diferenciações de
custo e uso das inovações. A medicina se concentra em doenças de países
centrais; plataformas fazem os 50% da base entregar pizza debaixo de chuva
e frio para o 1% do topo da pirâmide socioeconômica.

409
digitais. Define Slee (2017, p. 33): “é uma onda de novos negócios que
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

usam a internet para conectar consumidores com provedores de


serviço para trocas no mundo físico”. Isso ocorreu ao tempo em que
funcionava como uma alternativa para o indivíduo que desejasse
se tornar microempresário e se autogerenciar nesse novo modelo
flexível de trabalho da “Economia de Compartilhamento”.
A escala obtida com o uso da internet fez com que esse modelo
de intermediação de mão de obra do setor de serviço se tornasse
logo muito mais interessante para o grande capital que para o
indivíduo. Como se depreende de Srnicek (2017), as redes formadas
pelas plataformas são monopolizadas pelo grande capital, cuja lide-
rança na indústria depende da expansão de usuários e da captação,
armazenamento e processamento (análise) de dados que reificam
a liderança e exponencializam a geração de valor. Há um estimulo
à centralização dos dados e dos respectivos ganhos, assim como
à inversão dos recursos no incremento da IoT sobre a plataforma
digital. A extração exponencial de dados é fomentada ainda mais
com a profusão de plataformas digitais voltadas ao cotidiano.
A reestruturação da organização da sociedade do consumo e do tra-
balho (a mesma sociedade por óticas distintas, mas que se imbricam),
viabilizada pelas plataformas digitais, não assegura um dinamismo
sustentável ao funcionamento do capitalismo. Srnicek (2017, p. 117)
ainda aponta o outsourcing como o principal limite ao capitalismo de
plataforma, em razão dos baixos rendimentos obtidos nesse modelo
de negócio, que “não geram receita suficiente para a sobrevivência”.
Assim, os serviços são facetas da deterioração do mercado de traba-
lho, formado cada vez mais pelo empreendedor de si mesmo.
A concentração das tecnologias nas economias centrais (especial-
mente nos EUA e na Alemanha) reforça o monopólio das CGV por
empresas desses países. De igual modo, a contração do fluxo de IED
entre países dessa economia indica a desigualdade que aprofunda a
divisão internacional do trabalho com a combinação do outsourcing
ao offshoring. Se esses fenômenos impactam a produção capitalista
nas economias antes estruturadas sob o Welfare State, seus efeitos
são potencializados nas economias periféricas.
É nesse cenário que Antunes (2018) trata da formação de um “pro-
letariado de serviços digital” que, constituído sob o capitalismo de
plataforma, aglomera um contingente atingido pela “precarização

410
estrutural do trabalho” em escala global. Ressalta que, proletari-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


zado, é dotado de invisibilidade porque disperso no volume de força
de trabalho necessário para manter o sistema funcionando, ao
tempo em que participa cada vez mais do processo de valorização
do capital. Isso porque, ao nível da superexploração e da competi-
tividade acirrada no âmbito do indivíduo, suas condições de traba-
lho são rebaixadas por serem expressas como custo da produção,
numa intensa corrida para o abismo social.
No Brasil, garantir que isso estivesse em consonância com a sua
institucionalidade significou mudar profundamente a legislação
social e do trabalho. Desde 2017 que o País passa por reformas que
subsomem a ordem interna à agenda neoliberal. Do ponto de vista
da diretriz normativa, houve aquilo que Ferreira (2012) considera
como direito de exceção, porque subtrai a proteção social do tra-
balho como regra geral, transformando-a em exceção; as formas
atípicas de trabalho, que violam o sistema de proteção social, tor-
nam-se a regra geral dessa normativa.
Trazemos dados selecionados por posição na ocupação e categoria
do emprego na atividade principal, considerando o segundo trimes-
tre da PNADCT a partir de 2016,4 ano que antecede as primeiras leis
da reforma trabalhista e quando se inicia a série do empregador e do
trabalhador por conta própria, com e sem CTPS. Os números apresen-
tados são por mil pessoas. No período de 2016 a 2019, o número de par-
ticipantes do mercado de trabalho cresceu 3,17%, passando de 90.379
para 93.342. O crescimento se concentrou nas ocupações informais
(aqui consideradas aquelas sem registro formal). O emprego privado,
exclusive o doméstico, com CTPS caiu de 34.302 para 33.213 (-3,17%),
enquanto os sem CTPS subiu de 10.564 para 11.500 (8,13%).
Os números acima mostram ainda que, estruturalmente, a expres-
são dos empregados sem registro no conjunto dos trabalhadores
privados é significativa e, além disso, não se modificou a tendên-
cia após o barateamento da força de trabalho pela reforma traba-
lhista. Assim que, em 2016, os trabalhadores sem registro na CTPS
representavam 29,21% de todos os empregados do setor privado,
enquanto que, em 2019 (após a reforma) passou para 34,62%.

4 Todos os dados referentes à PNADCT poderão ser encontrados em tabelas


completas no site do IBGE: https://sidra.ibge.gov.br/home/pms/brasil.

411
Outro dado que chama a atenção é sobre o trabalhador por conta
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

própria. O número total cresceu de 22.804 para 24.141, sendo que


aqueles sem CNPJ eram 18.409 e, em 2019, somavam 19.392; ou
seja, no segundo trimestre de 2019, 80,32% dos trabalhadores por
conta própria não possuíam registro no CNPJ. Outro número
igualmente expressivo diz respeito ao trabalhador doméstico. De
2016 para 2019, houve uma redução de trabalhadores contrata-
dos com CTPS e um aumento daqueles sem CTPS, ainda que com
baixa variação no seu número total: de 6.200 passou a 6.254, com
expressiva representação daqueles sem CTPS. Em 2019, 4.476
trabalhadores domésticos estavam contratados sem registro na
CTPS, uma expressão de 71,57%.
Quando somados os empregados do setor privado, os domésticos
e os por conta própria registrados, em 2016, chega-se a um total
de 40.756, tendo havido redução para 39.742 em 2019. Por sua vez,
quando considerada a mesma posição sem registro, em 2016, o
total foi de 32.572, passando a 35.368 em 2019. Fica evidenciada a
falta de vontade do empregador privado em contratar formalmente
o trabalhador brasileiro, a despeito do sucateamento da lei traba-
lhista. O trabalhador vem passando pela redução institucional do
seu padrão de proteção social, mas nem isso é garantido para uma
grande fatia do mercado de trabalho brasileiro.
As estatísticas, apesar de já apontarem a precária condição da for-
malidade do vínculo de emprego, ainda escondem números for-
jados. Após a promulgação da Lei n. 13.467/2017 e o consequente
advento do trabalho zero hora, as estatísticas passaram a incorpo-
rar essa modalidade de contratação como empregado do setor pri-
vado, a despeito da possível inexistência da prática real de trabalho
e da sua remuneração correspondente:
No caso, por exemplo, do trabalho intermitente, passados cerca
de um ano e meio de sua implementação (novembro de 2017 a
junho de 2019), o número de admitidos formais chegou, segundo
o CAGED, a apenas 137.105, correspondendo a 0,55% de todos os
admitidos. Contudo, considerando o saldo total contabilizado no
referido período (admitidos menos desligados), a participação do
trabalho intermitente ganha muita relevância, representando
19,8% (90.054 trabalhadores intermitentes em um total relativa-
mente baixo, de 454.680, resultante da altíssima rotatividade).
(KREIN; OLIVEIRA, 2019, p. 89).

412
A deterioração do emprego é também marcada pela baixa esco-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


laridade dos novos admitidos. Ainda segundo os autores, entre
novembro de 2017 e junho de 2019, 85,0% do total de admitidos
possuíam grau de escolaridade até o médio completo, enquanto
que entre os intermitentes se alcançou 91,4% de contratados com
essa escolaridade. A intermitência se concentra nas faixas etá-
rias de maior produtividade, superando a proporção da admis-
são total. Das admissões intermitentes, 76,3% se encontram na
faixa etária dos 18 aos 39 anos, enquanto que, do total de admi-
tidos (intermitentes ou não), a faixa representa 75,8%. Ao mesmo
tempo em que se concentra a contratação precária na FT mais
produtiva, também se concentra o desemprego. Entre os jovens
de 18 a 24 anos, 25,8% estão desempregados, enquanto que 11,1%
entre aqueles de 25 a 39 anos também estão.
Olhando somente para os dados dos trimestres de 2019, o IPEA,5
em análise também dos dados da PNADCT, concluiu que
[...] os dados relativos do mercado de trabalho brasileiro vêm apre-
sentando uma melhora de desempenho nos últimos meses, seja
pela queda da desocupação [queda de 0,9% entre os trimestres de
2019], seja, sobretudo, pela expansão da população ocupada (PO)
[ainda que em ocupações informais].

Contudo, apesar do tom otimista, o IPEA também deixa evidente


que há uma piora da composição do mercado de trabalho e do ren-
dimento médio. Mas é ao tratar dos rendimentos médios reais que
expressa a essência do neoliberalismo quanto à desigualdade. Isso
porque indica que as famílias de renda muito baixa enfrentam um
recuo de 1,4% dos rendimentos médios reais, enquanto que o seg-
mento mais rico teve um aumento de 1,5%, em virtude do cresci-
mento mais forte da inflação para os de menor renda.
Esses dados mostram que a reforma trabalhista e todas as outras
alterações legislativas que seguem as indicações da agenda neolibe-
ral não recuperam o desenvolvimento econômico, não aumentam
postos de trabalho e nem a qualidade das novas ocupações. Num
país como o Brasil, em que, mesmo antes da reforma (e historica-
mente), o mercado de trabalho já se caracterizava como precário,

5 BOLETIM MERCADO DE TRABALHO: conjuntura e análise. Brasília: IPEA,


n. 67, ano 25, out. 2019, p. 12.

413
esses traços se intensificam e se cristalizam na diminuição dos
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

postos de emprego, assim como na expulsão de trabalhadores do


mercado formal de trabalho.
A convergência entre expulsão do mercado formal de trabalho,
ampliação do setor de serviços e criação das plataformas digitais
alterou em definitivo as bases materiais da sociedade do trabalho
e estabeleceu novas relações. Como as inovações da Revolução
Digital serão apreendidas pela sociedade política internacional e
nacional brasileira ainda está em aberto; uma alternativa são mar-
cos regulatórios adequados à Revolução Digital para reformular
a proteção de uma sociedade do trabalho de vínculos não empre-
gatícios, com deterioração continuada dos rendimentos dos mais
pobres, de perda da qualidade dos termos gerais da contratação
da força de trabalho. O emprego não é mais uma categoria central,
porém, isso não impede que haja proteção a uma sociedade desam-
parada pelas instituições, sem alternativas às quais recorrer para
melhoria da sua condição humana.

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415
Neotaylorismo digital e a economia
do (des)compartilhamento

Carlo Benito Cosentino Filho


Professor da Faculdade de Direito do Recife – Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). Doutor em Direito pela UFPE.

Resumo: O presente artigo tem como objeto os modelos de divisão do


trabalho da economia do compartilhamento a partir das formulações
apresentadas pela administração científica contemporânea. Descreve
o neotaylorismo digital aplicado às plataformas informacionais, em
modelos considerados “bem-sucedidos” pelo capitalismo cognitivo,
contudo onerosos socialmente. Neles, os “colaboradores” são chamados
a “empreender” sem proteção social mínima, com renda insatisfatória,
em jornadas extenuantes, sem estabilidade alguma, desprovidos de
identidade de classe e distantes de garantias básicas, como seguridade
social. O estudo parte, assim, para duas proposições: revelar a falsidade
da expressão “economia do compartilhamento”, uma vez que ela
é, na verdade, instrumento de reforço do espírito individualista e
concorrencial neoliberal; e alertar para a necessidade de restauração da
consciência de classe, agora, de caracteres ao mesmo tempo reformistas
– para ampliar os cânones da proteção e garantir dignidade a todos os
trabalhadores e trabalhadoras –, e revolucionários, para reestabelecer as
lutas emancipatórias também no campo digital.

Palavras-chave: Economia do compartilhamento. Neotaylorismo digital.


Uberismo. Trabalho 4.0. Crowd-task.

Abstract: This paper has as its object the models of division of labor
of the sharing economy from the formulations presented by the
contemporary scientific administration. It describes the digital neo-
Taylorism applied to informational platforms, in models considered
“successful” by cognitive capitalism, yet socially costly. In them the
“collaborators” are called to “undertake” without minimum social
protection, with unsatisfactory income, in strenuous journeys, without
any stability, without class identity and far from basic guarantees,

417
such as social security. The study thus goes on to two propositions:
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

to reveal the falsity of the expression “sharing economy”, since it is, in


fact, an instrument of reinforcement of the individualist and neoliberal
competitive spirit, and; warn of the need to restore class consciousness,
now of reformist characters – to broaden the canons of protection and
guarantee dignity to all workers – and revolutionaries, to re-establish
emancipatory struggles in the digital field as well.

Keywords: Sharing economics. Digital neo-Taylorism. Uberism. Work


4.0. Crowd-task.

1 · Introdução
A economia do compartilhamento compreende um modelo de
negócios baseado na difusão de informações advindas do uni-
verso virtual. Nela, plataformas informacionais1 promovem o
encontro entre duas conhecidas variáveis dos mercados, oferta e
procura, e abrem novas oportunidades para que ativos, habilida-
des, tempo e dinheiro sejam usados em níveis mais próximos de
sua capacidade total.
A oferta de capital e de mão de obra nesse cenário provém de mul-
tidões descentralizadas de indivíduos; o fornecimento de mão de
obra e serviços comercializa e escala muitas atividades de “pessoa
para pessoa”, aparentemente sem intermediários, o que passa a ser
possível através da utilização de conexões conhecidas na lingua-
gem computacional como peer-to-peer (ponto a ponto).
Assim, o desenvolvimento constante de novas tecnologias informa-
cionais e comunicacionais tem potencializado o compartilhamento
de informações em sistemas de intercâmbio de bens, propiciando
o surgimento de novas modalidades de serviços que resultam em
níveis potencialmente mais elevados de atividade econômica.

1 A empresa norte-americana Airbnb, Inc., sediada na Califórnia, é uma das


precursoras desse novo capitalismo. A partir do levantamento de um banco de
dados com informações sobre espaços disponíveis à locação em nível global,
e do desenvolvimento de um sistema capaz de cruzar as informações entre a
oferta e a procura de turismo, revolucionou este setor da economia em todo
mundo. A mesma lógica é aplicada no modelo da, também norte-americana,
Uber Technologies, Inc. A diferença é que, nesta última, as informações
compartilhadas dizem respeito à mobilidade urbana. Nesse caso, o sistema
se expandiu ao ponto de alterar a relação de uma parcela significativa da
sociedade com sua mobilidade urbana.

418
Embora esses movimentos possam ser interpretados positiva-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


mente, como o faz Chase (2015), ou quem sabe como uma tendência
social à volta de hábitos de compartilhamento de recursos e formas
de intercâmbio comunitário que existiram no passado, observa-se
que, no contexto do trabalho na economia compartilhada, operam-
-se novíssimos modelos de divisão do trabalho, engendrados pela
administração científica contemporânea, denominados taylorismo
digital, neotaylorismo ou pós-taylorismo.
Baseiam-se nas mesmas diretrizes capitalistas, porquanto dire-
cionadas à maximização de lucros. As atualizações dos modelos
de divisão do trabalho, no âmbito do terceiro espírito do capita-
lismo,2 têm-se mostrado ainda mais perversas, e as consequên­
cias das suas implantações já são visíveis: aumento da concen-
tração de riqueza; precarização das condições de trabalho; e
exclusão de direitos sociais.
Sua análise revela um novo tipo de trabalho nivelado por baixo,
marcado pela eliminação de benefícios básicos e gerador de inse-
gurança. São trabalhos fluidos, fragmentados, flexíveis, efêmeros.
Ao mesmo tempo, para gerarem uma renda satisfatória, os traba-
lhadores laboram em jornadas extenuantes, o que não representa
estabilidade alguma, já que estão desconectados de uma identidade
de classe e sequer podem controlar o próprio futuro, uma vez dis-
tantes de garantias básicas, como seguro social e aposentadoria.

2 · Compartilhando a fragmentação do trabalho: a


economia do “bico” e o offshoring3
O mercado de trabalho da tasks economy, ou economia das tare-
fas, na tradução livre deste autor, conecta trabalhadores de todas

2 A expressão “o terceiro espírito do capitalismo”, forjada por Boltanski e


Chiapello (2009), indica o momento histórico iniciado a partir do final dos
anos 1960, no qual o capital reestrutura o modelo de produção sob vários
aspectos, inclusive no que diz respeito à aplicação de novas tecnologias da
informação e comunicação.
3 Segundo Paul Mason (2017, p. 167), offshoring é um “modelo de realocação de
processos econômicos (de produção, comércio ou serviços) de um país para
outro, ou de uma região para outra, com o objetivo de se beneficiar de uma
tributação menor ou de mão de obra mais barata”. O fenômeno é gerador de
dumping comercial e social.

419
as partes do mundo, dispostos a executar tarefas pela internet. A
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

mais famosa plataforma é a Amazon Mechanical Turk. 4


Consiste em oferta de trabalho altamente fragmentado, para ser
realizado instantaneamente, em poucos minutos. Como as plata-
formas disponibilizam tarefas microscópicas, que se realizam em
um ou dois minutos, propõe-se que as pessoas possam utilizar fra-
ções de tempo “perdidos” ao longo do dia, como em jogos eletrô-
nicos, ou o tempo que passam em espera para uma consulta, ou
mesmo na fila para pagamento que se forma no caixa do restau-
rante ou de um estabelecimento comercial qualquer.
Uma das maiores plataformas é o Spare5 (o nome se refere a gas-
tar cinco minutos).5 Realizam-se as tarefas em um ou dois minu-
tos, pois são simples, como encontrar um e-mail ou informações
pessoais de alguém na internet.
Essas modalidades de trabalho geram um problema para os pesquisa-
dores sociais, uma vez que muitas delas já se infiltraram no mercado,
sem sequer serem percebidas e computadas nos dados estatísticos.
Por outro lado, uma vez instituídas, como no caso do trabalho
intermitente no Brasil a partir do ano de 2017, podem gerar dados
incertos. As informações devem ser analisadas com bastante cau-
tela, uma vez que a contratação de trabalhadores nessa modali-
dade de emprego não representa ocupação real da força de tra-
balho, mas sim a formalização da “economia do bico”, embora do
ponto de vista estatístico esses dados possam surgir como “rele-
vantes” na apuração dos economistas.
A temática discutida é desafiadora. Além do exercício de análise
comum às teorizações científicas, é preciso interpretar fatos, evi-
dências e até mesmo intenções subliminares que surgem a cada
invenção, a cada alteração do modelo de divisão do trabalho.
A ideia central já pode ser percebida com clareza. Propõem-se novos
modelos de trabalho, ideologizados (supostamente “modernos”),

4 A própria Amazon define o Amazon Mechanical Turk como sendo “mercado de


crowdsourcing que possibilita que indivíduos ou empresas usem inteligência
humana para realizar tarefas que computadores não podem fazer atualmente”.
Disponível em: https://www.amazon.jobs/pt/teams/mechanical-turk.
5 Disponível em: https://app.spare5.com/fives.

420
mas que buscam a reestruturação da relação jurídico-trabalhista

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


de modo que ela pareça autônoma.
Nesse sentido, Andrade (2014, p. 119) observa que o segundo espírito
do capitalismo, ao se apropriar da crítica estética, buscou esconder
a crítica social. Como resultado, tem-se o aumento da autonomia
(desconectada da semântica de liberdade), mas voltada para o esva-
ziamento do próprio Direito do Trabalho.
A subordinação jurídica se disfarça em estruturas hipercomplexas
gerenciadas pelo capital, enquanto se discute a natureza jurídica
delas.6 O dumping social surge na dimensão do offshoring, o que
ainda não é alvo de investigação eficiente em razão da dificuldade
de se identificar a utilização de serviços externamente em ativida-
des altamente fragmentadas, como ocorre na economia do com-
partilhamento. Na indústria tradicional, por sua vez, o offshoring
é identificado facilmente, como no caso das fábricas da Nike em
Taiwan ou mesmo das centrais de atendimento da Visa na Índia.
Dentro da economia do compartilhamento, devem-se diferenciar
os tipos de plataformas disponíveis aos trabalhadores. Algumas,
como no caso do Airbnb, são viabilizadas sem maiores dedicações
do trabalhador, no que diz respeito a seu tempo e sua atenção. Na
maioria das vezes, eles possuem outras ocupações, e a plataforma
ocupa um espaço secundário em suas vidas e rendas. Em outras
modalidades de sharing economy, como no caso da Uber, os traba-
lhadores ocupam parte significativa de suas vidas para gerarem os
recursos necessários à sobrevivência deles.

3 · Uber, uberização dos serviços e terceirização virtual


A ideia do trabalho on-demand surgiu através do empenho das
companhias de software em reduzir os custos com as contrata-
ções e as demissões de funcionários, os quais estavam atrelados

6 “We need labor policy that anticipates this ongoing transition, moves past the false
dichotomy of ‘employee’ and ‘independent contractor’ to redefine how we categorize
productive work, decouples the social safety net from full-time employment, and
better supports out emerging networked society of micro-entrepreneurs. We also
need to think hard about whether the corporate ownership structures of the 20th
century are adequate for this new world of work. I discuss each of these issues in
greater depth in the next chapter.” (SUNDARARAJAN, 2016, p. 176).

421
às oscilações de demanda dos mercados por seus produtos. Nesse
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

modelo, o ônus trabalhista é nulo. O preço cobrado para cada tarefa


é negociado individualmente com o trabalhador e o negócio apenas
se realiza no caso de surgimento de demanda.
O prestador do serviço assume o risco da atividade, já que sua
remuneração não é fixa, muito menos garantida. Não há com-
promisso com a continuidade da relação jurídica. Este modelo,
portanto, desprestigia as relações jurídicas de natureza comu-
tativa ou sinalagmática.
O formato de compartilhamento de carros avançou para outros
tipos de serviço. Num cenário de crise e aumento do desemprego,
com o incentivo geral ao empreendedorismo, a possibilidade de
estabelecer a conexão entre o prestador e o tomador de um serviço
naturalmente está sendo utilizada em larga escala. Inaugura-se a
era da contratação de serviços online.
As novas oportunidades de trabalho apresentam-se suposta-
mente vantajosas pela possibilidade de se angariar instantane-
amente renda com flexibilidade de horários. Afinal, a demanda
aparece apenas a partir do login na plataforma eletrônica. Ocorre
que, para realizar a expectativa de venda, as pessoas, inicial-
mente, trabalham mais do que no formato tradicional, emprego
formal. No caso da Uber, é comum encontrar motoristas traba-
lhando mais de 12 horas por dia.
No entanto, passado determinado período de implantação do
modelo de negócio em determinada localidade, os valores repassa-
dos aos motoristas são reduzidos, o que ocorre após a desarticula-
ção de categorias profissionais de motoristas e taxistas de setores
variados, relacionados ao transporte de passageiros e mercadorias,
num movimento claro de dumping comercial e social.
Para alcançar os mesmos patamares remuneratórios, os moto-
ristas procuram aumentar a quantidade de horas de trabalho,
sem qualquer auxílio ou proteção. As condições de trabalho, por
sua vez, também vão se tornando cada vez mais precárias, como
é o caso dos trabalhadores vinculados aos sistemas de entrega
de produtos que laboram por horas utilizando-se de bicicletas,
expondo-se ao trânsito, sem qualquer tipo de regulamentação de
medicina e segurança do trabalho.

422
Seguindo a mesma lógica de conexão entre os que procuram e os

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


que oferecem serviço implantado pela Uber, novas empresas sur-
gem, metamorfoseando os serviços por meio de uma fácil e instan-
tânea comunicação entre os consumidores (tomadores de serviços),
em geral no que diz respeito às suas necessidades.
Os sistemas de crowd-task, anteriormente demonstrados, são uti-
lizados como uma espécie de terceirização virtual. São fornecidos
por empresas que oferecem ferramentas tecnológicas, via internet,
com a finalidade de diminuir os custos empresariais e aumentar a
produtividade. Os serviços oferecidos são, por exemplo, os de secre-
taria remota, atendimento automatizado de clientes, terceirização
de tarefas repetitivas e entregas.
Companhias oferecem autônomos para reduzir custos. A internet per-
mite conectar quem quer contratar um serviço com autônomos ou
profissionais que buscam aumentar seus rendimentos no tempo livre.
Para as pequenas empresas, esse serviço pode evitar custos com a
contratação de um funcionário. Uma crowd-task, por exemplo, pode
enviar, para um grupo de mil cadastrados diferentes, tarefas que
demandam trabalho intelectual e, na maior parte dos casos, repeti-
tivo, como a classificação de produtos em uma loja virtual.
Essas são apenas algumas modalidades de divisão do trabalho da
economia compartilhada. Incontáveis possibilidades semelhantes
ou conexas chegam ao mercado todos os dias, daí a expressão start-
-up, tão massificada na mídia especializada. Por trás, há sempre a
ideia de liberdade no trabalho. Autonomia e empreendedorismo. O
chamamento à alteridade e, ao mesmo tempo, à assunção de riscos.

4 · O multiempregador e o compartilhamento
de empregado
Hoje existem muitas estruturas legais que fornecem respostas
para as necessidades das empresas, em termos de flexibilidade;
e para as necessidades dos trabalhadores, em termos de autono-
mia e envolvimento.
Vê-se o Direito do Trabalho como um empecilho à agilidade e à
necessidade das empresas contemporâneas. Por isso, o mundo

423
corporativo tem criado alternativas às relações tradicionais de
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

trabalho, sempre no sentido de flexibilizar. Pode-se citar como


exemplo: (a) salário multiempregador (sistema que viabiliza, a
grupos de empresas, o compartilhamento de suas equipes entre
si); e (b) partilha de funcionários (modelo de empréstimo tempo-
rário de trabalhadores entre empresas).
Diversas plataformas digitais têm sido criadas com o objetivo de
simplificar e reduzir os custos das organizações empresariais.
Nesse sentido: Pilgreem.com e Flexojob.com são exemplos eviden-
tes da supergeração de mais-valia na sociedade do conhecimento.
Através de um modelo organizacional politicamente correto – the
sharing economy (economia do compartilhamento) –, adequado à
ecologia e ao uso sustentável dos produtos e serviços, engendra-
-se um sistema perverso, que acentua, cada vez mais, os níveis de
exploração da força de trabalho e restringe, na mesma medida, o
comprometimento do capital com a dignidade humana.
Incentiva-se a utilização simultânea, por mais de uma empresa, de
produtos, serviços, estações individuais e (ou) coletivas de trabalho,
e até mesmo de empregados. Esse formato tem sido vendido com a
ideia de que quem ganha mais é aquele que possui a informação, já
que sistematiza a sua venda de forma eficiente.
Dessa lógica surgiram os famosos modelos de escritórios vir-
tuais. Nas empresas, o trabalhador não possui mais sua própria
estação de trabalho. Pode e deve trabalhar em qualquer lugar.
Também não precisa estar vinculado a um único empregador,
pode ser um empregado compartilhado simultaneamente por
várias empresas, o que dificulta sobremaneira sua vinculação
empregatícia com alguma delas.
Essa estratégia é adotada comumente em empresas de terceiri-
zação de serviços de atendimento ao cliente. Treina-se o opera-
dor de telemarketing para atender demandas de diversas empre-
sas diferentes. Assim, numa demanda judicial, ele encontrará
dificuldade de ter reconhecido o vínculo de emprego com uma
ou algumas delas, já que foi compartilhado, e prestou serviço a
todas simultaneamente.
Dessa maneira, ao mesmo tempo que se vende a ideia do comparti-
lhamento individualista, autônomo de si mesmo, a novíssima admi-
nistração científica reserva, em backup, a ideia de compartilhar
424
empregados, terceirizados, a fim de dividir responsabilidades e

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


fragmentar, de uma vez por todas, qualquer resquício de identi-
dade de classe ou sentimento de pertencimento a narrativa histó-
rica obreira. Lutas não mais compartilháveis, portanto.

5 · O darwinismo dos dados na era da economia


do compartilhamento
A expressão data darwinism é de Om Prakash Malik, escritor espe-
cializado em tecnologia que, em março de 2013, depois de observar
um protesto de motoristas da Uber que foram descredenciados em
razão da baixa de suas notas nas avaliações dos usuários, publicou
um artigo em seu blog (Gigaom)7 no qual questionou se estaríamos
testemunhando, naquele movimento social, a evidência de um
“novo mundo do trabalho”.
Previa o surgimento do darwinismo de dados provocado pelas ava-
liações dos usuários das aplicações da economia do compartilha-
mento. O usuário que detém uma média de avaliação baixa nos
aplicativos pode ser excluído deles. Os critérios avaliativos são
determinados exclusivamente pela empresa.
No artigo, ele prognosticou que essa seria uma questão social e
laboral importante nos próximos anos. Sob a perspectiva econô-
mica da administração científica, a avaliação dos Ubers pelos usu-
ários parece ser uma ferramenta bastante eficiente para manter
e elevar a qualidade do serviço num mercado que, marcado pelo
desemprego, gera cada vez mais trabalhadores procurando ocupa-
ção na economia do compartilhamento.
O darwinismo dos dados é aplicado em sistemas de classificação com
base em dados gerados pelo usuário, em que “os fortes ficam mais
fortes” e os mais aptos sobrevivem, como ocorre no maior banco de
dados profissional do mundo, a rede social LinkedIn. Ela propicia a
recomendação de profissionais com a indicação de suas habilidades.
As informações ficam visíveis nos perfis públicos da rede.
Essas constatações levam os cientistas sociais a outras análi-
ses. Veja-se: uma boa recomendação de um jovem trabalhador,

7 Disponível em: https://gigaom.com/2013/03/17/uber-data-darwinism-and-the


-future-of-work/.

425
no início de sua carreira, pode ser determinante para todo o seu
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

futuro profissional. Por outro lado, cria-se uma clara tendência de


que os especialistas em recursos humanos e recrutamento (head­
hunters) confiem cada vez mais nesses tipos de informações dis-
ponibilizadas nas redes sociais, e, assim, cada vez mais a contra-
tação de uma pessoa se parece com a escolha de um produto no
e-commerce, que se baseia nas avaliações anteriores dos usuários
sobre o produto e o seu vendedor.
Geram-se, com isso, ainda mais reflexões, como a possibilidade de
fazer a portabilidade das informações em diferentes plataformas,
ao conceder-se mais liberdade aos trabalhadores que, muitas vezes,
permanecem em determinadas plataformas por já possuírem uma
média de avaliação boa. A troca de sistema implica começar do
zero, o que não é atraente para eles. A portabilidade dos dados do
empregado poderá ser utilizada como uma ferramenta indispensá-
vel para garantir a sua empregabilidade.
Seus dados podem ser de grande valia para a comercialização de
suas habilidades pessoais. Por outro lado, pode-se vincular ainda
mais o mercado de trabalho às avaliações propostas por clientes, o
que é uma preocupação importante que, certamente, será inserida
na pauta hermenêutica da teoria social crítica: o aprisionamento
psicológico dos trabalhadores, que, além de não estarem mais
garantidos pelo arcabouço das normas protetivas, ainda veem, em
cada uma das pessoas a quem prestam serviços, seus chefes.
Essas evidências empíricas clarividenciam que os instrumentos
de libertação oferecidos pela ética empreendedora contemporânea,
individualista liberal, pós-moderna, efêmera, fugaz, líquida, pas-
sageira, fragmentada, desprovida de laços de fraternidade e soli-
dariedade, na verdade aprisionam os trabalhadores em organiza-
ções pós-disciplinares, em que o poder se estabelece na captura
da subjetividade, induzindo autocontroles através de estruturas
de “governamentalidade gerencial” ou biopoder, a fim de intuir no
indivíduo trabalhador a ideia de empresário de si mesmo.8

8 Neste sentido, comenta Loveluck (2018, p. 81-82) “a noção de gover­na­men­


talidade se refere à concepção do ‘liberalismo tardio’ que Michael Foucault
tinha começado a elaborar no final de sua vida e se traduz por um inter­
vencionismo difuso do Estado e, ao mesmo tempo, por uma incorporação
da racionalidade econômica por indivíduos que se tornam ‘empresários de

426
6 · Conclusão

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


A economia do compartilhamento, tal como evidenciada, é mais
um produto do terceiro espírito do capitalismo. É mais uma
estrutura a auxiliar a dinâmica individualista da sociedade con-
temporânea, a levantar muros entre nações, fronteiras, barreiras,
nacionalismos e intolerâncias.
A ideia do compartilhar solidário distancia-se da vivência real da
sociedade do conhecimento, sobretudo no que diz respeito às impo-
sições promovidas pelo neotaylorismo digital no mundo do trabalho.
Os novíssimos modelos de divisão do trabalho, pós-disciplinares,
lançam sobre as pessoas ilusórios ideais libertários que, na verdade,
nada mais são do que novas formas de perpetuar conhecidas rela-
ções de dominação. E o que é pior: tudo, agora, em formatos mais
infames de sujeição, maquiados de “autonomia/empreendedorismo”,
a fim de excluir direitos sociais.
Nesse sentido, procurou-se demonstrar um breve itinerário dos
novíssimos modelos de organização do trabalho da economia do
compartilhamento. Eles capturam a subjetividade dos trabalha-
dores, fragmentam as suas consciências e desarticulam por com-
pleto a consciência de classe através do isolacionismo das telas
dos smart­phones, dos tablets, do trânsito das cidades, das metas a
bater, dos relatórios a enviar, das câmeras a fiscalizar, dos siste-
mas a captar cada clique, cada toque. Neste percurso, facilmente
perceptível o amparo ou a omissão sincera do direito positivo às
estratégias de exploração do trabalho.
A doutrina jurídico-trabalhista tem servido a esses interesses, e,
pode-se dizer, o Direito do Trabalho tem sido utilizado como apoio
jurídico ideológico para legitimar as relações de poder e domina-
ção entre o capital e o trabalho.
Chegada a fase atual, de implementação da chamada economia
do compartilhamento, mantém-se a parceria das teorias social
e jurídico-trabalhista críticas, para trazer à luz os verdadeiros

si mesmos’ em todos os aspectos de sua existência (FOUCAULT, 2004a). De


acordo com tal autor, tal mudança da relação governantes-governados torna
difícil identificar as estruturas de poder e descarrega em cima do indivíduo a
responsabilidade inteira de seus sucessos e de seus fracassos”.

427
sentidos das transformações sociais vivenciadas contemporanea-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

mente: a uma, para ampliar os cânones protetivos trabalhistas, de


forma a resgatar a dignidade de trabalhadores e trabalhadoras; e,
a duas, para reascender a consciência de classe e as lutas emanci-
patórias e contra-hegemônicas.
Nesse rastro, traz-se Ulrich Beck (2018, p. 190) a esclarecer que
metamorfose digital tem a ver com seres humanos digitais, cuja
existência metamorfoseada questiona categorias tradicionais,
como status, identidade social, coletividade, e individualização;
para ele, o efeito emancipatório do risco global produzido é a expec-
tativa do humanismo digital. Dessa forma, é possível, sim, pensar
na retomada do curso das narrativas históricas emancipatórias,
em toda e qualquer dimensão da existência.
Para um humanismo digital, a denunciar os ataques aos direitos
sociais promovidos pela ascensão da ideia do trabalho on-demand
ou qualquer outra invenção destes tempos direcionada à explora-
ção da força de trabalho ao capital.
Elas nada mais são do que tentativas de aniquilação do Direito do
Trabalho, de desmantelamento de uma rede mínima de proteção
que o capital havia cedido à classe trabalhadora. Resta saber o que
virá adiante, quais serão as cenas dos próximos capítulos.

Referências
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teoria social crítica. Os sentidos do trabalho subordinado na cultura e no
poder das organizações. São Paulo: Ltr, 2014.

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estão inventando a economia colaborativa e reinventando o capitalismo.
São Paulo: HSM do Brasil, 2015.

COUTROT, Thomas. L’entreprise neo-liberále, nouvelle utopie capitaliste?


Paris: La Découverete, 1999.

428
HUWS, Ursula. The making of a cybertariat: virtual work in a real work.

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


New York: Monthly Review Press, 2003.

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MASON, Paul. Pós-capitalismo: um guia para o nosso futuro. São Paulo:


Companhia das Letras, 2017.

SUNDARARAJAN, Arun. The sharing economy: the end of employment


and the rise of crowd-based capitalism. Cambridge: The MIT Press, 2016.

429
Representação coletiva dos trabalhadores
em plataformas digitais

Sidnei Machado
Professor Adjunto de Direito do Trabalho da Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Pós-Doutor em Direito pela
Université Paris Nanterre.

Resumo: A representação coletiva e sindical dos trabalhadores em


plataformas digitais é um grande desafio para a institucionalidade do Direito
do Trabalho. Há impasses para correta adequação do modelo organizacional
das plataformas digitais ao modelo clássico de representação coletiva.
O artigo tem como objetivo central examinar as práticas e tendências
emergentes de representação coletiva e sindical dos trabalhadores no Brasil.
O texto apresenta alternativas pontuais para a representação sindical e
negociação coletiva adaptadas ao contexto brasileiro.

Palavras-chave: Trabalho digital. Plataformas digitais. Representação


coletiva. Sindicato. Negociação coletiva.

Abstract: The collective and union representation of workers in digital


platforms is a major challenge for the institutionality of the Labor
Law. There are impasses for the correct framing of digital platforms’
organizational model to the classic model of collective representation.
The article aims to examine the emerging practices and trends of
collective and union representation of workers in Brazil. The text
presents punctual alternatives for union representation and collective
bargaining adapted to the Brazilian scenario.

Keywords: Digital work. Digital platforms. Collective representation.


Unions. Collective bargaining.

1 · Introdução
A transformação digital das empresas e a economia de plataformas
são um processo social em desenvolvimento, cujos impactos sociais
431
e limites ainda não estão definidos. As mudanças provocadas pela
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

digitalização do trabalho devem ser mediadas por fatores tecnoló-


gicos, sociais e institucionais e, também, pelos atores sociais.
No âmbito do mundo do trabalho, a revolução tecnológica dos últi-
mos vinte anos suscita muitas questões sobre emprego, condições
de trabalho, qualificação jurídica do serviço, proteção social e rela-
ções coletivas de trabalho, para mencionar alguns temas nucle-
ares. No campo específico do trabalho mediado por plataformas
digitais, as condições flexíveis e precárias de execução do serviço,
em geral por meio do modelo “independente”, se dão sem a garan-
tia de um trabalho decente. Esse é o panorama apresentado num
amplo informe da Organização Internacional do Trabalho, resul-
tado de uma pesquisa aplicada em 75 países (OIT, 2019).
O trabalho em plataformas digitais em muitos aspectos se asse-
melha aos modelos de trabalho clássicos. A diferença principal é o
emprego de tecnologia como intermediário e, por outro lado, o uso
do modelo de trabalho independente. Do ponto de vista específico
do exercício dos direitos coletivos, a questão central é como garan-
tir a esses trabalhadores a representação coletiva e os direitos deri-
vados da liberdade sindical e da negociação coletiva.
Os objetivos deste artigo são dois: primeiro, analisar os desafios e
as possibilidades de representação coletiva ou de intervenção sin-
dical no trabalho mediado por plataformas a partir de modelo de
representação sindical brasileiro; segundo, inventariar algumas
práticas de organização e representação coletiva, institucionaliza-
das ou não, em emergência.

2 · O desafio da representação
A partir de um quadro mais amplo de generalização da precarie-
dade do trabalho, os impactos tecnológicos concorrem com o fenô-
meno da globalização, financeirização, transformações no modelo
de emprego e fragmentação das cadeias produtivas. Esses fatores,
que colocam novos desafios a respeito de como proteger esse tra-
balho, assegurando direitos individuais e coletivos, se agregam aos
problemas tradicionais de capacidade de representação e de con-
tratação coletiva dos trabalhadores.
Afora a natureza fragmentária do trabalho por plataformas digi-
tais, a ela também se associa o movimento de desregulação do
432
trabalho, a exemplo da Reforma Trabalhista brasileira de 2017, que

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


reforça o trabalho por conta própria e promove e valoriza o auto-
empregado. Esse movimento reformista também fragiliza a orga-
nização e atuação dos sindicatos, na medida em que as categorias
construídas a partir do modelo fordista do contrato de trabalho e
da negociação coletiva são desmanteladas.
São muitas questões derivadas desse panorama de riscos e ame-
aças aos movimentos sociais e sindicais, com o perigo de insti-
tuição de um mercado de trabalho paralelo e precário (DEGRYSE,
2017). No entanto, a preocupação central, a partir da perspectiva do
Direito do Trabalho, é que essas plataformas promovem o trabalho
independente e, portanto, não respeitam os direitos dos trabalha-
dores a um contrato de trabalho e, consequentemente, aos direitos
coletivos inerentes à organização sindical e à negociação coletiva.
No caso brasileiro, a expansão das plataformas digitais pode ter
impacto mais acentuado ante a combinação de fatores estruturais
de precariedade do mercado de trabalho com as formas introduzi-
das pela ampla desregulação do trabalho na Reforma Trabalhista
de 2017 (Lei n. 13.467/2017).
Uma outra perspectiva de análise de direitos coletivos indica que o
exercício do direito liberdade de associação e de negociação coletiva
não deve estar vinculado à qualificação do contrato de trabalho dos
trabalhadores por plataformas. A OIT, em seu informe de abril de
2016, destaca sua declaração de 2006 a respeito dessa garantia. Da
perspectiva da Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais
do Trabalho, editada em 1998 pela Organização Internacional do
Trabalho, à qual os Estados-Membros da OIT se vinculam, um
dos quatros eixos é precisamente o compromisso de promoção da
liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito à negociação
coletiva (OIT, 2006). A Declaração aplica-se a todos, independente-
mente de estarem ou não regidos por uma relação de trabalho.
Em conflito coletivo de trabalho na Argentina entre a empresa RAPPI
ARG S.A.S. e trabalhadores organizados (Asociación de Personal
de Plataformas), apreciado pela Justicia Nacional del Trabajo atra-
vés do Juzgado Nacional de Primera Instancia del Trabajo n. 37
de Buenos Aires, em 19 março de 2019 (EXPTE n. 46618/2018), dis-
cutiu-se precisamente a existência ou não de direito à liberdade
sindical desses trabalhadores, criando um importante precedente
judicial em matéria de direitos coletivos. A empresa RAPPI havia
433
descredenciado das plataformas um grupo de trabalhadores vincu-
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

lado à Asociación de Personal de Plataformas, por terem realizado


denúncias sobre condições de trabalho na qualidade de dirigentes
sindicais. A sentença reconheceu que o bloqueio dos membros da
comissão diretiva implicou uma “ franca transgresión a la garantía
de libertad sindical que reconoce nuestra Carta Magna en sus artículos
14 bis, el Convenio 87 de la OIT”. A decisão também incorporou uma
importante premissa de que “la ley laboral establece que si hay pres-
tación de servicios se ‘presume la existencia del contrato de trabajo’”;
ou seja, os direitos coletivos dos trabalhadores estão assegurados
independentemente de prévia qualificação da natureza trabalhista
da relação, bastando para tanto a mera presunção.
De fato, a legislação brasileira não faz nenhuma proibição do exer-
cício desse direito por trabalhadores autônomos. É verdade que a
negociação coletiva clássica é baseada na relação de emprego, e seu
reconhecimento automaticamente motivaria o exercício desses
direitos coletivos. Contudo, a Constituição brasileira não impõe res-
trição à liberdade de associação e de negociação coletiva aos traba-
lhadores independentes. A questão é que o modelo regulado na legis-
lação infraconstitucional está estruturado numa relação de trabalho
subordinado e numa organização de trabalhadores pelo critério de
categoria profissional. Entretanto, a representação coletiva mais
geral, para além da categoria profissional, tem amparo no texto da
nossa Constituição. Desse modo, restrições à liberdade sindical não
podem ser impostas aos trabalhadores de plataformas, sob pena de
se caracterizarem atos discriminatórios e antissindicais.

3 · A função da representação coletiva


A segunda questão que surge, de uma perspectiva coletiva da
representação do trabalho por plataformas, é o dilema da estra-
tégia e modo de ação do movimento social e sindical: defender
os empregos tradicionais no mercado de trabalho e seus direitos
ou organizar os novos trabalhadores precários, externalizados
e contratados basicamente por tarefas, num espaço totalmente
desregulado. Num contexto de mercado desregulado, inexiste o
contrato de trabalho, não há contribuição à seguridade social ou
outra obrigação legal, e o trabalho é vendido no preço do mer-
cado. Nesse espaço, o Direito do Trabalho e os sindicatos estão

434
totalmente excluídos (DEGRYSE, 2017). Assim, precede ao Direito

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


e à organização coletiva em sindicatos uma tomada de posição
destes perante as plataformas digitais.
Na hipótese de uma estratégia por meio de uma ação de repre-
sentação sindical, surge para os sindicatos o fato de que as pla-
taformas digitais, por seu próprio modelo de negócios, não se
consideram empregadoras e se encontram dispersas e ocultas
no negócio das plataformas. O outro obstáculo é como organizar
coletivamente esses trabalhadores para a negociação coletiva, já
que atuam em diferentes modelos de plataformas, com distin-
tos modos de remuneração e estrutura local ou global. Uma das
características da economia digital é a sua flexibilidade externa
do tipo pós-fordista, o que gera uma dificuldade de enquadra-
mento no modelo clássico de representação sindical.
Além do problema generalizado do uso do contrato por conta pró-
pria como mecanismo para que a empresa se exima das obrigações
decorrentes do contrato de trabalho, entre elas o exercício do direito
coletivo dos trabalhadores, há outras duas questões: como podem
participar os sindicatos na representação dos trabalhadores por pla-
taformas digitais? Como ingressar nessas empresas digitais?
Sobre a primeira questão, o problema é o desafio de atuação, consi-
derando que o modelo normativo da organização sindical brasileira
ainda permanece delimitado pela noção de “categoria profissional”
(CLT, art. 511). É impreciso justificar a ideia de “categoria” de traba-
lhadores por plataformas. Em relação à segunda questão, o problema
é que a “empresa digital” se apresenta como um ente deslocalizado e
difuso, de difícil identificação e localização, não raro organizado com
distintas identidades opacas e ocultas, o que também representa um
desafio para fixação de uma base de representação.
Por sua vez, o problema central da representação é a heterogenei-
dade cada vez maior desses contratos de serviços. O acesso aos
direitos sindicais é muito problemático para os trabalhadores que
atuam sob demanda, com características de uma atividade inter-
mitente e independente que, de tempos em tempos, vincula o tra-
balhador ao empregador ou ao cliente. A perda do sentido de per-
tencimento ao coletivo gera dificuldades para unificar o interesse
coletivo heterogêneo e fragmentado e, também, para mobilizar e
organizar de maneira eficiente a representação.

435
Por último, a liberdade sindical é admitida quando há um correto
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

enquadramento da relação de trabalho entre prestador e plata-


forma digital tomadora. Ocorre que o trabalho por meio de plata-
forma digital tem similaridade com um regime de trabalho sub-
contratado, que no caso brasileiro não tem um regime especial de
representação, pois o modelo nacional é ainda ancorado na repre-
sentação pelo critério do enquadramento da categoria profissional.

4 · Características da prática da ação coletiva


A despeito dos muitos impasses de representação coletiva, a ação
coletiva dos trabalhadores em plataformas digitais é movimento em
ascensão no Brasil e em diversos países. A partir de uma pesquisa
avançada em publicações, notícias, portais de internet, páginas de
Facebook e redes sociais de Twitter e grupos de WhatsApp, constata-
-se um número significativo de coletivos organizados. Essas organiza-
ções se dão em grande diversidade de formas: sindicatos, associações
ou coletivos de redes sociais não institucionalizados. A descrição das
principais características desses grupos é um elemento relevante para
detectar as tendências dessas práticas que se instituem. No Brasil, no
âmbito das plataformas digitais, em diversos estados, foram criados
sindicatos, principalmente no setor de transporte de passageiros e de
entregas em domicílio, conforme os exemplos que se seguem.
O Sindicato dos Motoristas Autônomos de Transporte Privado
Individual por Aplicativos (Sindmaap),1 criado em Brasília, organiza
motoristas privados que trabalham por meio de convênio com aplica-
tivos. Segundo seus estatutos, a entidade pretende garantir melhores
condições de trabalho e conseguir direitos para essa categoria. Seus
principais objetivos são reduzir as taxas dos aplicativos e o valor do
combustível e dos veículos para fins exclusivos de trabalho nesse setor.
Com características similares, há o Sindicato dos Trabalhadores
com Aplicativos de Transportes Terrestres (STATTESP), criado no
Estado de São Paulo.2 Entre suas pautas encontram-se também as
reivindicações da isenção de IPVA, da possibilidade de utilização de
corredor quando estiver com passageiro e do Fundo de Amparo ao
Trabalhador, facilitando a compra de veículos zero km.

1 http://sindmaap.org.br.
2 http://stattesp.com.br/.

436
No Pará, o Sindicato de Motoristas de Transportes por Aplicativo

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


(Sindtapp), criado em 2018, informa promover segurança e apoio
aos motoristas, disponibilizando “advogado, seguro de vida, planos
especiais de empresa de telefonia, plano de saúde, facilidades para
aquisição de carro próprio, serviço de rastreamento próprio” e,
ainda, um aplicativo de transporte de passageiros em que o moto-
rista fica com 100% do faturamento: o Lets Go Drivers, aplicativo
que é do próprio Sindtapp para uso gratuito por seus filiados copro-
prietários.3 No Estado da Bahia, o Simactter-BA, criado em 2017,
atua como Sindicato dos Motoristas por Aplicativo e Condutores de
Cooperativas do Estado da Bahia. 4
No âmbito das associações de motoristas de aplicativos criadas nos
últimos três anos, estas têm como finalidades atender às necessida-
des básicas de seus associados, disponibilizar benefícios variados,
além de estabelecer parcerias que viabilizam condições mais ade-
quadas para seus afiliados. Exemplos são a AMPA-RS, Associação
dos Motoristas Particulares e de Aplicativos do Rio Grande do Sul,5
e a AMASP, associação de São Paulo.6
As redes sociais se tornaram um meio de reunir os motoristas para
que possam dialogar, trocar informações e promover ações cole-
tivas. Há um grande número de grupos no Brasil, a exemplo do
Driver Elite Club (DEC) e do Spartas Drivers.
Na ação coletiva, tanto os sindicatos de aplicativos quanto as asso-
ciações têm atuações bastante similares, de natureza preponderante
assistencial, com o fornecimento de serviços, e não se identifica em
seus estatutos a ênfase na representação coletiva dos trabalhadores.
Os grupos de redes sociais de auto-organizações, em regra não
formais, sem grande hierarquia, atuam como fonte de informa-
ções, com possibilidade de mobilizações pontuais para reivindicar
melhoria nas condições básicas de trabalho, a exemplo de deman-
das por melhor atendimento da plataforma e de aumento de remu-
neração. Diferentemente de organizações de outros países que

3 https://pt-br.facebook.com/sindicatodemotoristadeaplicativo.
4 https://pt-br.facebook.com/simactterba/.
5 https://pt-br.facebook.com/ampars999/.
6 https://amasp.org/.

437
reivindicam o reconhecimento da relação de trabalho – a exemplo
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

do Sindicato Free Riders, da Espanha, e do Riders Union Bologna,


na Itália –, esses grupos não se organizam como esse objetivo cen-
tral. Os grupos organizados em redes sociais surgem basicamente
daqueles que exercem a mesma tarefa (entrega de comida, por
exemplo) e a suas reivindicações são muito específicas (problema
de comunicação com a plataforma, por exemplo).
Não há registro de experiências no Brasil de atuações visando ao
estabelecimento de processo de negociação coletiva, ou mesmo a
reivindicação do estabelecimento de um código de conduta pelas
plataformas digitais, com padrões de trabalho justo, que reforcem
as melhores práticas na relação entre plataformas digitais e seus
prestadores de serviços.

5 · Considerações finais
O impacto da expansão das plataformas digitais e das redes de
subcontratação tem efeitos desiguais nas diversas regiões, suge-
rindo ser necessário garantir um modelo básico de representação
e de ação coletiva desses trabalhadores. Para além da dicotomia
trabalho subordinado vs. autônomo, é preciso garantir o direito à
liberdade sindical e à negociação coletiva, direitos esses que têm,
no caso brasileiro, amparo no texto constitucional.
Por outro lado, constata-se que há no Brasil iniciativas de represen-
tação e de ação coletiva, mas elas não reivindicam o modelo de repre-
sentação tipicamente sindical. Embora algumas entidades tenham
sido criadas como sindicatos, suas ações têm características assis-
tenciais (caso de sindicatos e associações) ou de iniciativa de resis-
tência e denúncias (caso dos grupos de Facebook e WhatsApp).
Uma efetiva representação coletiva pode ter impacto na melhoria
das condições laborais desses trabalhadores. São diversos os pos-
síveis espaços de intervenção via representação na negociação em
temas de remuneração, tempo de trabalho, formação profissional
e em segurança e saúde. Os direitos de personalidade também
podem ser objeto de regulação, em especial quanto à conjugação
das regras convencionais existentes nesta matéria com as regras
em matéria de proteção de dados.

438
Referências

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em:
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OIT – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Oficina


Internacional del Trabajo. Freedom of association: Digest of decisions and
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recopilación de decisiones y principios del Comité de Libertad Sindical del
Consejo de Administración de la OIT, Ginebra, OIT, 2006, 5. ed. rev.].

OIT – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Oficina


Internacional del Trabajo. Las plataformas digitales y el futuro del trabajo:
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SÖDERQVIST, Carl Fredrik; BERNHARDTZ, Victor. Labor Platforms


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Disponível em: https://entreprenorskapsforum.se/wp-content/uploads
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TREBOR, Schols. Cooperativismo de plataforma. Contestando a economia


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bibliotecadocomum.org/files/original/3095b4a7fcfc0766a9321bb65f5e9d93.
pdf. Acesso em: 1º nov. 2019.

439
Zona cinzenta do emprego, poder do
empregador e espaço público1

Christian Azaïs
Professor de Sociologia do Conservatoire National des
Artes et Métiers (Cnam). Codiretor do Laboratoire Inter­
disciplinaire pour la Sociologie Économique (Lise).

Patrick Dieuaide
Professor de Economia da Universidade Sorbonne Nouvelle
– Paris 3.

Donna Kesselman
Professora de Sociologia da Universidade Paris-Est Créteil
Val de Marne.

Resumo: O artigo interroga a noção de zona cinzenta do emprego, como


fruto da multiplicação dos status e das formas particulares do emprego
no panorama da globalização dos mercados. A discussão parte das
reflexões do jurista Supiot, ao se interessar pelas situações de emprego
em que o poder do empregador é disputado entre as diferentes partes
em pauta e é o teatro dos jogos de influência e de negociações. A noção
de espaço público, emprestada de Habermas, é então avançada para
caracterizar a zona cinzenta, onde todo afastamento da norma se torna
regra e não mais a exceção.

Palavras-chave: Zona cinzenta do emprego. Globalização. Espaço público.

1 Este artigo é a versão brasileira de um texto publicado na revista canadense


Industrial Relations/Relations Industrielles (AZAÏS C.; DIEUAIDE P.; KESSELMAN,
D. Zone grise d’emploi, pouvoir de l’employeur et espace public: une illustration
à partir du cas Uber. Industrial Relations/Relations Industrielles, Québec, v. 72, n.
2, p. 433-456, 2017). Agradecemos à redação da revista por ter-nos permitido
traduzir a versão inicial para o português. Poucas coisas foram modificadas em
relação à versão francesa.

441
Abstract: The article questions the notion of the grey zone of
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

employment as a result of the multiplication of status and particular


forms of employment in the context of the globalisation of markets.
The discussion leads to a prolongation of the reflections of the lawyer
Supiot, by taking an interest in employment situations where the power
of the employer is disputed among the different interested parties and
becomes a game and the theatre of games of influence and negotiations.
The notion of public space, borrowed from Habermas, is then advanced
to characterize this grey zone where every departure from the norm
becomes the rule and no longer the exception.

Keywords: Grey zone. Globalisation. Public space.

1 · Introdução
Desde o início da década de 1990, a multiplicação de formas par-
ticulares de emprego tem vindo a difundir-se, aumentando a pre-
cariedade e, mais recentemente, desembocando na emergência
de contratos de trabalho à margem do assalariamento (“miniem-
pregos” na Alemanha, contratos de “hora zero” na Grã-Bretanha,
“contratos de microemprego” na “economia do bico” – gig economy).
Eles marcam uma clara ruptura com o período de estabilidade e
pleno emprego dos Trinta Gloriosos. A escala e a complexidade da
despadronização da relação de trabalho são tais que hoje se pode
questionar a noção de relação de emprego, cujas fronteiras se tor-
naram mais incertas e indecisas do que nunca.
Nos estudos de relações industriais, os contornos borrados da rela-
ção de emprego são consubstanciais à globalização. Inicialmente, o
debate foi levado aos limites do modelo elaborado por Dunlop (1958)
em torno da capacidade das empresas de se libertarem da relação de
emprego (KOCHAN; KATZ; MCKERSIE, 1986); depois, considerou-se
a emergência de novos atores como partes implicadas no processo,
como a empresa-cliente (LEGAULT; BELLEMARE, 2008) ou as ONGs
da sociedade civil (PIORE; SAFFORD, 2006); e, mais recentemente, as
interdependências entre os atores da globalização (instituições finan-
ceiras, firmas multinacionais, federações sindicais transnacionais,
ONGs) foram levantadas (JACKSON; KURUVILLA; FREGE, 2013).
Esses trabalhos mostraram a diversidade dos atores implicados nos
sistemas de relações profissionais e, acidentalmente, a complexidade
do processo de transformação da relação de emprego, segundo as

442
épocas e os contextos. Fecunda para acompanhar as ampliações

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


sucessivas, essa análise não é, no entanto, sem limite para avaliar a
evolução da relação dos empregados com seus empregadores diretos.
Para além de um fenômeno de ampliação e complexificação por
camadas sucessivas do modelo original, os contornos borrados da
relação de emprego residem também nas características, aberta,
dinâmica e geograficamente dispersada, da produção que afetam
as condições de emprego e de trabalho. O exemplo típico é aquele
da subcontratação internacional na qual as decisões do mandante
escapam às normas nacionais, enquadrando a relação de emprego
da empresa subcontratada.
A noção de “zona cinzenta” (ZC) aplicada ao emprego, que propomos
discutir, visa levar em conta, principalmente, esse posicionamento
ambíguo dos atores às vezes exteriores e engajados na relação de
emprego. Três dimensões a caracterizam:
• Ela liga a evolução da relação de emprego diretamente às
relações de poder, de confiança ou de influência dos empre-
gadores com os diferentes interlocutores que os cercam
(Estado, empresas, sociedade civil etc.). Ultrapassando uma
estrita visão jurídica e binária do posicionamento do empre-
gador, ela permite integrar à análise as práticas desfocadas,
nem legais nem ilegais, mas provenientes de relações extra-
jurídicas ou de convenções informais.
• Ela indica um enfraquecimento dos níveis jurídicos de prote-
ção e regulação do trabalho sem prejulgar o “estado de subor-
dinação” (SUPIOT, 2000) dos trabalhadores, quer se trate de
falsos assalariados, falsos independentes ou mesmo assalaria-
dos vítimas de insegurança nos empregos mais protegidos.
• Ela convida a considerar as características lacunares ou per-
meáveis das instituições dos mercados nacionais do trabalho
como fundamentos de um regime possível de funcionamento
da relação de emprego. Em outras palavras, a persistência e a
variedade das zonas cinzentas podem ser consideradas tanto
como o resíduo de uma norma jurídica em compasso de espera
ou em vias de (re)constituição quanto uma engrenagem per-
manente de uma regulação híbrida de interesses contraditó-
rios afetando a relação de emprego.

443
Em suma, num contexto de globalização traduzindo uma nova
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

cartografia das relações de poder, a noção de zona cinzenta per-


mite substituir a uma concepção binária uma abordagem mais
aberta da relação empregado/empregador e levar um olhar dife-
rente sobre as transformações da relação de emprego. Ao mesmo
tempo, ela se assemelha a uma variação de uma norma contratual
definindo os engajamentos dos empregadores perante os seus
empregados. Outrossim, ela aparece como um conjunto diversifi-
cado de técnicas e de relações de poder, dando lugar a uma varie-
dade de formas de subordinação.
Para argumentarmos e ilustrarmos essa perspectiva, seguiremos
uma abordagem em quatro tempos.
Uma primeira parte desenha um panorama sucinto das transfor-
mações da relação de emprego e mostra, principalmente, a partir do
caso francês, que a noção de ZC estava em germinação nas práticas
contratuais dos empregadores desde a metade dos anos 1980. Uma
segunda parte discute os acréscimos e os limites da noção de zona
cinzenta avançada pelo jurista Supiot (2000) em um artigo pioneiro
comparando o estado de subordinação respectivo dos assalariados
e dos trabalhadores independentes em vários países. Uma terceira
parte prolonga essa perspectiva partindo da distinção de empre-
gador de jure e empregador de facto. Com essa distinção, forjare-
mos um quadro de análise da “relação de emprego com terceiros”
que abre essa relação às partes interessadas no exercício do poder
de direção dos empregadores. Mostraremos que a presença das
relações terceirizadas justifica a apelação de “espaço público” para
caracterizar a noção de ZC.

2 · A noção de ZC sob o prisma das categorias e das


práticas contratuais
A partir da metade dos anos 1980, a multiplicação das “formas
particulares de emprego” e a reescritura incessante na França do
Código do Trabalho foram pari passu com uma extensão da pre-
cariedade e uma diminuição das proteções. Essas evoluções fra-
gilizaram a classificação dos empregos em contratos de duração
indeterminada (CDI) e contratos de duração determinada (CDD).
Apontaremos, em seguida, o contexto e os termos nos quais a

444
noção de ZC permite acompanhar essa fragilidade e as transfor-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


mações da relação de emprego.

2.1 · As zonas cinzentas do CDI e do CDD


Na França, o CDI é referência no Código de Trabalho e na opinião
pública. Representando quase a metade do emprego assalariado,2
ele “resiste” à crise; porém, está longe de corresponder ao ideal da
condição assalariada. Na prática e nas representações, a imagem
está turva. Em 2011, 11% dos assalariados privados declararam
procurar um emprego de melhor qualidade, e 36% dos contra-
tos assinados foram rompidos no mesmo ano, elevando-se para
51,9% no caso dos empregos pouco qualificados (DARES, 2015).
Lizé e Prokovas (2014) falam de “CDI precário” e colocam em
dúvida as virtudes integradoras e estabilizadoras do CDI para
os desempregados recém-retornados ao emprego. Pouco prote-
tor para certas faixas da população ativa, o CDI era igualmente
de difícil acesso para os jovens, com uma taxa de entrada de 31%
para os desempregados entre 15 e 24 anos e somente de 16% para
os de 25 a 34 anos (DARES, 2015). A criação em 2008 do motivo
de “ruptura convencional” (dita ruptura “de conciliação”) e, mais
recentemente, de um CDI de ínterim (2014) fragiliza mais ainda
as proteções ligadas ao CDI.
A mesma constatação de erosão existe em relação ao CDD. Criado
em 1979 para substituir um assalariado ausente ou fazer frente a
um pico de atividade, o CDD foi desviado maciçamente para se tor-
nar uma norma de recrutamento (entre 85% e 87% das intenções
de empregos entre 2000 e 2012) (BARLET; MINNI, 2014). A taxa de
emprego precário3 dos 15 aos 24 anos passou de 17% em 1982 para

2 A taxa de emprego em CDI, dos 15 aos 64 anos, progride desde 2017 para
atingir 49,7% no 2º trimestre de 2019. A participação das pessoas em situação
de subemprego (desejando trabalhar mais horas e disponíveis para fazê-lo)
está, paralelamente, recuando (5,2% em meados de 2019 contra 6,7% três anos
antes) (DARES, 2019, p. 12).
3 A taxa de emprego precário corresponde à parte dos empregos interinos,
CDD e aprendizagem, relacionada com o emprego total. A aprendizagem é um
contrato precário, porém vinculado com uma formação. É distinto do CDD
e dos interinos. Segundo o Institut National de la Statistique et des Études

445
51,6% em 2014; a dos 25 a 49 anos progrediu de 2,9% para 10,1%.
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

Outrossim, o CDD não é um degrau para ascender a um emprego.


Em um período de três anos, apenas 21% dos assalariados passa-
ram, em 2014, de um emprego temporário a um emprego perma-
nente na França (L’ORGANISATION DE COOPÉRATION ET DE
DÉVELOPPEMENT ÉCONOMIQUES, 2016), enquanto uma vez de
cada duas um CDD desemboca noutro CDD, e uma vez de cada
cinco, no desemprego (IRES, 2009). Enfim, a desmultiplicação dos
CDDs dedicados (para os intermitentes do espetáculo, os traba-
lhadores sazonais ou seniores) e a criação de um CDD de missão
em 2008 encorajaram as substituições maciças dos CDDs longos
para CDDs curtos, “de uso”, e favoreceram o recurso aos CDDs
interinos sobre os empregos menos qualificados. Notemos que a
precariedade das mulheres e dos jovens transparece na natureza
dos contratos. Se, em 2016, 10,5% dos assalariados tinham um
contrato em CDD, era o caso de 12,3% das mulheres contra 8,6%
dos homens e de 32,1% dos jovens de menos de 25 anos (BECK;
VIDALENC, 2016), três anos depois vê-se que a situação mudou
e que recorrer ao CDD se tornou uma prática menos corriqueira
por parte dos empregadores. 4
Certamente, a classificação dos empregos assalariados em CDI e
CDD não é sem interesse para caracterizar os fluxos de mão de
obra e os choques de ajustamento do emprego nas diferentes fases
do ciclo econômico. Dessa forma, a crise de 2008/2009 fez foco na
existência de ajustes assimétricos entre a preocupação das empre-
sas de preservar um núcleo duro de empregos qualificados e está-
veis (CDI) e a necessidade de recorrer a formas flexíveis de empre-
gos (CDDs, interinos), menos qualificados, menos remunerados e
servindo de amortecedor de choque conjuntural (LIÉGEY, 2009).
No entanto, essa divisão dos empregos continua frágil para apreen-
der as novas segmentações do mercado de trabalho, em particular
aquelas ligadas às discriminações. Além do mais, a “insegurança”

Économiques (INSEE), 16% das pessoas entre 15 e 24 anos são aprendizes em


2014. Disponível em: http://www.inegalites.fr/spip.php?page=article&id_art
icle=1615. Acesso em: 12 maio 2017.
4 Em meados de 2019, a taxa de emprego em CDD ou em ínterim atinge 7,6%,
em declínio em relação ao seu ponto máximo no 4° trimestre de 2017 (8,1%)
(DARES, 2019, p. 12).

446
que cerca essas categorias sugere que a dualização do mercado de

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


trabalho na França não pode se resumir à oposição entre trabalha-
dores colocados e trabalhadores à margem (insiders vs. outsiders). A
insegurança subjacente aos CDIs pode igualmente ser o resultado
de uma degradação dos mercados internos do trabalho quanto o
efeito da abertura de um número crescente de segmentos dos mer-
cados profissionais à concorrência internacional. Da mesma forma,
o número de empregos temporários (CDDs, interinos) pode não ser o
melhor indicador para medir a precariedade. Segundo Picart (2014),
a multiplicação por cinco da taxa de rotatividade dos empregos
entre 1980 e 2010, nos setores relativamente protegidos (hotel, res-
taurante, construção, serviços às pessoas), traduz menos uma exten-
são da precariedade do que uma redução da duração dos contratos e
uma mudança profunda de seu uso, a título de profissões (operários
não qualificados, empregados, profissões das artes e espetáculos e de
ações culturais e esportivas) e de populações-alvo (faixas etárias dos
15 aos 24 anos e dos 50 anos e mais) (PICART, 2014).

2.2 · O comportamento do criador de regras


dos empregados
Exagerando um pouco, poderíamos afirmar que o recorte dos
empregos em CDI e CDD não fornece senão um conhecimento par-
cial das regras e das práticas contratuais do mercado de trabalho
na França. Em troca, essa divisão aponta para zonas cinzentas que
representam variações em relação à norma entre categorias e ins-
tituições previstas para apreender e regular certas situações de
emprego e a realidade das práticas contratuais que elas presumi-
damente devem codificar.
Consequentemente, o interesse por uma análise da noção de ZC
não é tanto por compor um inventário das práticas legais ou ile-
gais dos empregadores, mas sim de compreender como, em contex-
tos particulares, o comportamento de “criador de regras” dentre
alguns deles pode coexistir, opor-se, combinar-se com as regras e
as codificações instituídas em matéria de emprego. Essa perspec-
tiva é reforçada através de numerosas pesquisas – notadamente
aquela conduzida por Artus (2011) – que mostram que as institui-
ções de cogestão na Alemanha são minoritárias nos setores dos
serviços, da construção, do comércio e da restauração, e que a taxa

447
de cobertura convencional dos assalariados no setor privado em
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

2010 é de 50% no Oeste e de 29% apenas no Leste.


Em tal contexto, as regulações do emprego estão longe de corres-
ponder ao ideal do sistema dual da codeterminação. Em numero-
sas empresas, as instituições de negociações coletivas são suplan-
tadas por “práticas institucionais divergentes” (ARTUS, 2011, p.
113): gestão de integração e aspiração à autonomia dos assalariados
nas empresas de alta tecnologia (high-tech), lealdade e reconheci-
mento mútuo nas Pequenas e Médias Empresas (PME), repressão e
estratégia de saída (exit) nos serviços precarizados. Por uma parte,
igualmente, essas regulações alternativas são o resultado de um
processo profundo de desintegração vertical, como nas telecomu-
nicações e nas empresas automotivas, onde os sindicatos nas filiais
e junto aos terceirizados estão pouco presentes e onde os assala-
riados são pouco ou menos cobertos (DOELLGAST; GREER, 2007).
Encontra-se uma dinâmica similar na França. Para Mirlicourtois
(2016), um terço somente das criações de emprego cabe às empre-
sas independentes, estando o restante sob controle de empresas
multinacionais ou de grandes grupos nacionais exportadores.
Essa realidade evidencia a importância das relações interem-
presariais no jogo da regulação de emprego. Ela esclarece toda
a singularidade da dualização entre os empregos das pequenas
empresas dos setores abrigados e aqueles das maiores empresas
expostas à concorrência internacional.
A diversidade e, às vezes, a amplitude da desconexão dessas regu-
lações “divergentes” não têm necessariamente por finalidade
servir aos interesses dos empregadores diretos. Dessa forma, o
recurso maciço ao interino, ao desemprego parcial ou às horas
complementares na indústria é sobretudo um meio de reduzir a
volatilidade do lucro dos grandes grupos, respeitando o objetivo
da minimização do risco de curto prazo imposto pelos mercados
financeiros (LIÉGEY, 2009).
Em suma, a noção de ZC refere-se a todo um inventário de configu-
rações de relações de poder conduzindo a uma situação em que os
empregos não sejam mais codificados segundo regras ou procedi-
mentos instituídos, mas negociados caso a caso sob bases locais ou
puramente contingentes. Ela permite interrogar a transformação
das normas do emprego sob dois ângulos diferentes: (1) pontuando

448
as fraquezas das categorias e das regulações institucionais que

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


definem as condições standards de organização e de gestão da rela-
ção de emprego; e (2) examinando como os empregadores se orga-
nizam para fazer frente a um ambiente incerto e heterogêneo, e
como, sobre as bases, emergem novas normas do emprego e (ou) se
constroem novas regulações.
As reflexões que seguem propõem aprofundar esses pontos a par-
tir da noção de ZC desenvolvida por Supiot (2000) em um trabalho
sobre “as novas faces da subordinação”.

3 · A noção de zona cinzenta segundo A. Supiot:


contribuições e limites
Para Supiot, a noção de zona cinzenta (ZC) repousa sobre a consta-
tação de uma convergência entre atividade profissional do assala-
riado que “não é mais necessariamente uma simples engrenagem
desprovida de iniciativa numa organização fortemente hierarqui-
zada” e o trabalhador independente que “não é necessariamente
um empreendedor livre como assim lhe parece” (SUPIOT, 2000, p.
133). “Autonomia na subordinação” para o primeiro, “lealdade na
independência” para o segundo, essa convergência encontra seu
equivalente no plano jurídico dentro de uma “relativa diluição do
critério de subordinação” (SUPIOT, 2000, p. 139).
Para o jurista francês, a noção de ZC se opõe à noção de fron-
teira do Direito do Trabalho. Enquanto a noção de fronteira leva
o debate para o fato de expandir ou restringir seu campo de apli-
cação a certas profissões (ex., os jornalistas ou franqueados), a
noção de ZC remete a outro tipo de interrogação, abrangendo as
modalidades de exercício do poder do empregador. O empregador
hoje não se satisfaz mais com “uma simples obediência às ordens”
(SUPIOT, 2000, p. 139), mas demanda, tanto aos assalariados
quanto aos trabalhadores independentes, que tenham “lealdade”
(SUPIOT, 2000, p. 139); isso quer dizer mobilizar no trabalho as
suas capacidades de iniciativa, de julgamento e de responsabili-
dade exercidas na qualidade de homens livres.
Para o autor, a passagem da obediência para a lealdade é a única
causa assinalada na origem da formação da ZC. A subordinação
do assalariado fixada contratualmente com seu empregador não

449
coincide mais com as condições reais de trabalho que o ligam a ele.
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

Essa descontinuidade opõe dois momentos: um relativo à assina-


tura do contrato de trabalho e que ocorre no mercado; e outro que
concerne às condições de engajamento dos indivíduos no trabalho
e que se desenvolve no seio das empresas. Para Supiot, essa descon-
tinuidade se caracteriza por uma variação larga e profunda entre
os direitos e as obrigações das partes fixados contratualmente e a
realidade do poder de direção dos empregadores.
Essa percepção das transformações da relação de emprego a partir da
noção de ZC é interessante para o nosso propósito por várias razões:
• A noção de ZC não é destinada a seguir a relação de emprego às
margens do assalariamento. É uma noção transversa visando
apreender a fragilidade estrutural da relação de emprego a par-
tir da relação de contrapartida “subordinação contra proteção”
subjacente ao contrato de trabalho, quer se trate da proteção
dos assalariados afetados pelas relações de subcontratação, de
falsos independentes cuja atividade está submissa aos ditames
de um só cliente, ou, ainda, de assalariados precários em CDD
ou beneficiando-se de um CDI.
• A ZC é potencialmente conflituosa e instável, sempre tensio-
nada entre os trabalhadores pouco ou mal protegidos e um
poder de direção mal identificado, zona essa que excede cada
vez mais o perímetro institucional da relação de emprego, que
deveria definir as prerrogativas do empregador.
• A ZC pode ser compreendida como um espaço de transição,
aberto ao desenvolvimento de novas formas de codificação da
relação de emprego, como os contratos de trabalho independente
criados na Itália (os parassubordinados) para suprir a indepen-
dência econômica. Supiot lembra também o dilema do reconhe-
cimento legal de toda forma atípica de emprego: “reconhecê-la
é favorecer seu desenvolvimento, ignorá-la é abandonar os tra-
balhadores atípicos à sua própria sorte” (SUPIOT, 2000, p. 143).
Em suma, a noção de ZC daria peso à ideia segundo a qual,
em Supiot, o poder do empregador não seria em nada sinô-
nimo de decisões arbitrárias, uma vez que existe um Direito do
Trabalho adequado à diversidade das práticas de subordinação
(FRIDENSON, 2006). A questão se coloca, no entanto, em saber

450
se esse esclarecimento constitui o único ponto de vista possí-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


vel. Podemos duvidar, uma vez que a relação de subordinação é
uma relação de poder mediatizada por dispositivos jurídicos, mas
também organizacionais, tecnológicos, financeiros, culturais, de
gênero, raça e etnicidade. Essas formas de poder atingem parti-
cularmente a relação empregado/empregador. A fortiori, a relação
“subordinação contra proteção”, implícita no contrato de trabalho,
não é nem única nem exclusiva quanto ao seu objeto. Alguns a
concebem como uma troca entre subordinação e tomada de risco
(MORIN, 2005), outros ainda consideram que se trata da manu-
tenção da liberdade do trabalhador (DIDRY; BROUTÉ, 2006).
Essa diversidade de pontos de vista nos leva a conceber a subor-
dinação como uma relação “trabalhada”, hibridizada por relações
de terceiros, sem vínculos, a não ser indiretos com o estado de
subordinação dos assalariados.

4 · Para além de Supiot: a noção de zona cinzenta como


espaço público de recodificação de relação de emprego
4.1 · As zonas cinzentas de emprego na globalização:
uma outra leitura é possível
Para Supiot (2000), a noção de ZC está intimamente ligada à desin-
tegração do modelo centralizado da fábrica em proveito de mode-
los de firmas transnacionais, organizadas em redes (MURRAY;
TRUDEAU, 2004), e cuja consequência é fazer com que as matri-
zes das empresas pensem o emprego desde o exterior das frontei-
ras jurídicas das firmas residentes. Essa leitura insiste na ideia de
uma ZC que surgiria como um link com o que denominaremos um
processo extraterritorial de “desencaixe” da relação de emprego,
expressão próxima da noção de “delegalização” avançada por Supiot
(1994) para significar a perda da ancoragem do enraizamento da
relação de emprego no direito nacional do trabalho.
Contudo, outra leitura é possível na medida em que a globaliza-
ção e a (re)localização estão intimamente ligadas às estratégias
das empresas para explorar as vantagens competitivas locais e
tecer relações com os diferentes atores implicados nesse nível
(coletividades territoriais, sociedade civil, fornecedores). Assim,

451
“desencaixe” e “reencaixe” da relação de emprego não caminham
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

um sem o outro num contexto de globalização. Esse ponto é


importante para caracterizar a noção de ZC. Enquanto uma lei-
tura em termos de “desencaixe” reconhece na perda de visibili-
dade e de controle do poder dos empregadores diretos critérios
decisivos de identificação da noção de ZC (CHASSAGNON, 2012,
p. 12), uma leitura em termos de “reencaixe” insiste sobretudo na
existência de zonas cinzentas nos processos situados de ajuste do
emprego às condições locais de organização e gestão da atividade
no seio das empresas. No primeiro caso, o empregador de direito
(de jure) é alienado de uma parte de seu poder de direção em pro-
veito de um terceiro (empregador de facto); no segundo caso, esta
terceira pessoa posicionada no bojo desta ZC o reabilita como ala-
vanca de ação para pesar de maneira informal sobre os termos da
troca “subordinação contra proteção” em nível local.
Em nossa abordagem, a noção de ZC remete a uma brecha entre as
características e as proteções legais dos empregos negociados com
os assalariados e as características e proteções reais atreladas aos
empregos ocupados. Essa diferença não é redutível às estratégias
ilegais por parte das direções extraterritoriais que procurariam
contornar a lei em nível local ou nacional. Ela remete aos arranjos
das diretorias com os atores locais e também com os sistemas de
regras e de controle que enquadram a atividade dos trabalhado-
res nos estabelecimentos. A noção de ZC se afirma, então, como o
espaço de expressão de uma regulação desviante onde o emprego
se torna um ponto focal de estratégias de atores, que partilham
interesses ou problemas comuns com as diretorias.

4.2 · A noção de zona cinzenta como espaço público:


o papel dos interessados
As reflexões que precedem ressaltam que a noção de ZC fornece
uma chave de leitura original das transformações da relação de
emprego. Ao integrar à análise a diversidade dos modos de exercí-
cio e de divisão do poder de direção, ela faz da “relação de emprego
com terceiros” o desafio de uma nova regulação do emprego a par-
tir de uma confrontação entre empregadores e interessados sobre
o objetivo ou as finalidades da atividade. Essa perspectiva é bas-
tante próxima do quadro de análise de Legault e Bellemare (2008),

452
para quem a identidade e o número dos atores do sistema de rela-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


ções profissionais não são fixados a priori, mas sim a consequência
direta de sua implicação na organização e na gestão das relações
de trabalho. A abordagem em termos de ZC divide com os autores
essa concepção “elástica” do sistema das relações profissionais.
Dessa concepção, reteremos que as relações dos parceiros econômi-
cos e institucionais com os empregadores não são necessariamente
de natureza cooperativa, mas podem ser o embate de questões ou
de problemas privados e públicos que os opõem. Além disso, como
na prática a relação de emprego e a ZC são um só, nada garante que
essas relações sejam portadoras de uma regulação social virtuosa
para com os empregados. É possível que as proteções e as garantias
de emprego dos empregados sejam percebidas como obstáculos ou
se tornem as variáveis de ajuste das tratativas ou das arbitragens
privadas ou quase privadas realizadas a montante.
Teatro de confrontações e de concessões recíprocas, a ZC apre-
senta numerosos traços característicos de um espaço público.5
É um espaço discursivo funcionando concretamente como uma
instância de mediação, entre direitos e obrigações intangíveis e
garantidos a priori pelo Código do Trabalho, por um lado, e inte-
resses dispersos escapando a priori a toda racionalidade proces-
sual, do outro. Não é tampouco um lugar de troca propriamente
dito, mas sim um lugar de composição de interesses onde se for-
jam equilíbrios de circunstância sobre a base de regras híbridas
e implícitas ou de convenções de negócios assimiláveis a disposi-
ções de caráter não obrigatório (soft law). Como espaço público, a
ZC é, pois, um lugar mais ou menos informal de deliberação per-
mitindo que duas ordens de legitimidade coexistam; ou ainda se
misturem na prática: um institucional e estatal, outro mercantil
e contratual. Esse espaço público pode também se afirmar como
espaço instituinte (AZAÏS, 2019), entendendo-se aí um espaço
onde poderes e contrapoderes se confrontam para a constituição

5 Se Habermas usou a noção de “espaço público” numa perspectiva crítica


em face do Estado, a acepção sobre a qual nos detemos aqui faz referência
às interações entre atores da relação de emprego (entre os quais o Estado).
Trata-se, portanto, de um espaço público bem específico, atrelado ao
número, à identidade e ao posicionamento dos atores. É um espaço
necessariamente local, cujas fronteiras espaciais e temporais não estão
delimitadas a priori (HABERMAS,1997).

453
de uma ordem de regulação híbrida onde nada garante nem a
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

estabilidade nem a coerência a priori.

Gráfico 1 · A noção de zona cinzenta do emprego


como espaço público

Fonte: Elaborado pelos autores.

Limitando-nos a uma tipologia muito geral das partes interessa-


das, o Gráfico 1 ilustra essa abordagem da ZC.
A noção de ZC como espaço público permite apreender as transfor-
mações da relação de emprego duplamente:
• Como o terreno de expressão de relações ou de práticas extra-
jurídicas oriundas das partes implicadas (Estado, empresas,
territórios, sociedade civil) da relação de emprego. Essas últi-
mas contribuiriam para seus recursos (institucionais, capitais,
infraestruturais, valores), para a manutenção ou o desenvolvi-
mento da relação de emprego, mas seus interesses poderiam
ser ameaçados pela maneira como esses recursos são agencia-
dos, geridos ou consumidos pelas empresas.
• Como o lugar de emergência de novos arranjos visando redefinir
as condições materiais e institucionais de organização e de gestão
da relação de emprego. Eles podem ser apreendidos como com-
promissos pelo intermediário dos quais a ligação “subordinação
454
contra proteção” é uma contrapartida aceitável aos engajamentos

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


contratuais que os ligam localmente aos trabalhadores.
A ZC não aponta somente para um defeito de institucionalização
na regra de direito (SUPIOT, 2000), ela testemunha igualmente a
existência de um processo de auto-organização das regras e das
modalidades de exercício do poder de direção dos empregadores ao
nível local. Pretextando arranjos organizacionais, práticas institu-
cionais inovadoras se introduzem nos interstícios da lei e impõem
um quadro normativo implícito desenhando os contornos de novas
formas de subordinação. No espaço público, certas situações de
emprego, longe de ser unívocas, testemunham, ao contrário, uma
multiplicidade de configurações possíveis.

5 · Conclusão
A diversidade das características de uma zona cinzenta destaca o
interesse da noção para se analisar as transformações da relação
de emprego na globalização. Receptáculo de transbordamentos
oriundos das transformações do trabalho, cujos lugares, tempo-
ralidades e modalidades de execução se desdobram para fora dos
muros das fábricas e embaçam as fronteiras estatutárias entre
assalariados e trabalhadores independentes, a zona cinzenta é
também o terreno de expressão de dinâmicas múltiplas insufla-
das “por cima”, pelas estratégias empresariais. Algumas delas
são ilegais ou ignorantes das obrigações impostas pelo Direito
do Trabalho; outras se inscrevem nas estratégias da empresa de
contorno das obrigações das fronteiras nacionais. Esses casos
diversos são práticas e regulações largamente autônomas em
face das normas da relação de emprego standard.
Aí está sem dúvida uma virtude heurística salutar: recorrer à noção
de ZC permite desenclausurar a análise de uma leitura estadocên-
trica da relação de emprego (dominante no caso da França) e se
liberar de uma abordagem sistêmica herdada do tríptico “empre-
gador, sindicato, governo” forjado inicialmente por Dunlop.
Nossa proposta de definir a ZC como “um espaço público” é a con-
sequência direta desta mudança de perspectiva. Levar em conta
a ZC como componente integral da relação de emprego conduz a
pensar que esta última não é somente regulada de maneira unila-
teral pelas direções das empresas segundo o “fato de direito”.
455
Para concluir, é conveniente sublinhar que a noção de ZC deve ser
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

mobilizada com precaução, sobretudo para evitar de considerarmos


toda experiência de trabalho ou toda situação de gestão desenvol-
vida às margens das instituições legais como tendo a capacidade de
gerar mecanicamente uma nova ordem de regulação social. Muito
pelo contrário. A noção de ZC como espaço público se opõe a tal
determinismo, já que nenhuma configuração de ações é portadora
de compromisso a priori. Parece ser mais prudente pensar que as
zonas cinzentas do emprego têm ainda um belo futuro diante delas.

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458
Os impactos jurídico-sociais da automação
no mundo do trabalho e a hermenêutica
da prevenção1-2

Wilson Engelmann
Professor de Direito da Unisinos. Pós-Doutor em Direito
Público – Direitos Humanos.

Resumo: O século XXI é marcado pelo desenvolvimento tecnológico


e por mudanças significativas em diversos setores, especialmente, no
mundo do trabalho, pelo surgimento da automação. Trata-se de um
cenário ainda pouco conhecido, dadas as novidades e impactos revelados
gradativamente. A surpresa das mudanças é crescente, pois se está
desenhando uma nova Revolução Industrial, a quarta, segundo Klaus
Schwab, que trará impactos de profundidade e consequências inusitadas.
Por isso a importância de se estudar os desafios jurídico-sociais que
estão sendo desenhados no horizonte. O Direito e suas fontes também

1 Resultado parcial das investigações desenvolvidas pelo autor no âmbito


dos seguintes projetos de pesquisa: a) Edital 02/2017 – Pesquisador
Gaúcho – PqG: Título do Projeto: “A autorregulação da destinação final dos
resíduos nanotecnológicos”, com apoio financeiro concedido pela Fundação
de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS); b)
Chamada CNPq n. 12/2017 – Bolsas de Produtividade em Pesquisa – PQ,
projeto intitulado: “As nanotecnologias e suas aplicações no meio ambiente:
entre os riscos e a autorregulação”; c) Chamada MCTIC/CNPq n. 28/2018
– Universal/Faixa C, projeto intitulado: “Nanotecnologias e Direitos
Humanos observados a partir dos riscos no panorama da comunicação
entre o Ambiente Regulatório e o Sistema da Ciência”.
2 Este artigo também se relaciona com as pesquisas realizadas no contexto do
Gracious Consortium, “Grouping, read-across, characterisation and classification
framework for regulatory risk assessment of manufactured nanomaterials and
safer design of nano-enabled products”, com recursos financeiros do European
Union’s Horizon 2020 research and innovation programme under grant
agreement n. 760840. Disponível em: www.h2020gracious.eu.

459
precisam ser renovados, apresentando-se a hermenêutica da prevenção
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

como uma alternativa voltada à atribuição renovada de sentido às


estruturas normativas, com a aceitação de outros atores, com capacidade
de estabelecer regulações, em substituição à quase primazia do Estado.

Palavras-chave: Automação. Mundo do trabalho. Desemprego. Herme­


nêutica da prevenção. Fontes do Direito.

Abstract: The 21st Century is marked by technological development and


significant changes in several sectors, especially in the workplace, due
to the emergence of automation. It is a scenario still little known, given
the news and impacts revealed gradually. The surprise of the changes is
increasing, because a new Industrial Revolution is being designed, the
fourth, according to Klaus Schwab, that will bring deep impacts and
unusual consequences. Therefore, the importance of studying the legal-
social challenges that are being drawn on the horizon. Law and its sources
also need to be renewed, presenting the hermeneutics of prevention as
an alternative aimed at the attribution of renewed meaning to normative
structures, with the acceptance of other actors, with the capacity to
establish regulations, replacing the almost primacy of the State.

Keywords: Automation. Workplace. Unemployment. Hermeneutics of


prevention. Sources of Law.

1 · Contextualizando o cenário da automação no mundo


do trabalho
Atualmente existe uma preocupação sobre as interações entre o
ser humano e o robô. A cooperação entre humanos e máquinas
tem sido uma preocupação constante dos especialistas conforme
a robótica e a inteligência artificial passam a conviver diariamente
com os seres humanos. Ao estudar processos industriais automa-
tizados nos quais já estão operando robôs, uma equipe de pesqui-
sadores alemães (KLUMPP et al., 2019) descobriu que a cooperação
entre operários humanos e robôs funciona muito melhor do que
apenas equipes humanas ou equipes apenas de robôs. A equipe
simulou processos da logística de produção, como o fornecimento
de materiais para uso nos setores automotivo e de engenharia.
Uma equipe de motoristas humanos, uma equipe de robôs e uma
equipe mista de humanos e robôs foram designadas para as tarefas
de transporte usando veículos.
Os resultados da pesquisa mostraram que a equipe mista de
humanos e robôs venceu as outras duas equipes graças a uma
460
coordenação mais eficiente, que também causou um menor

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


número de acidentes. Segundo os pesquisadores, isso é bastante
inesperado, uma vez que sistemas totalmente automatizados
tipicamente apresentam os mais altos níveis de eficiência, graças
sobretudo a uma interação precisa entre os robôs e à velocidade
mais alta de operação. Ocorre que as máquinas precisam operar
em conjunto com trabalhadores humanos de qualquer jeito, e elas
nem sempre tomam as melhores decisões sobre quando operar, o
que diminui sua eficiência e pode causar acidentes.
Assim, o principal fator responsável por aumentar a eficiência da
equipe mista foi justamente manter com os trabalhadores humanos
o poder de decisão, definindo como e quando as máquinas devem
operar ou parar. Os pesquisadores concluem que, dados os poten-
ciais ganhos de eficiência, as empresas devem prestar mais atenção
aos seus funcionários quando se prepararem para implementar téc-
nicas da automação e robotização dos processos produtivos.
Isso traz um raio de esperança crucial ao considerar a eficiência
em todas as discussões envolvendo automação e digitalização.
Haverá também muitos cenários e usos no futuro, onde equipes
mistas de robôs e humanos serão superiores aos sistemas robóti-
cos totalmente baseados em máquinas. No mínimo, os excessivos
temores de perdas dramáticas de empregos não se justificam do
nosso ponto de vista. (KLUMPP et al., 2019).

Tomando em consideração esse cenário apresentado, verifica-se o


desenho de várias possibilidades, a partir do ingresso do robô no
meio ambiente do trabalho. O panorama híbrido entre humanos
e robôs integra a chamada Quarta Revolução Industrial, segundo
Klaus Schwab (2016, p. 11):
[…] imagine as possibilidades ilimitadas de bilhões de pessoas
conectadas por dispositivos móveis, dando origem a um poder de
processamento, recursos de armazenamento e acesso ao conhe-
cimento sem precedentes. Ou imagine a assombrosa profusão de
novidades tecnológicas que abrangem numerosas áreas: inteli-
gência artificial, robótica, internet das coisas, veículos autôno-
mos, impressão 3D, nanotecnologia, biotecnologia, ciência dos
materiais, armazenamento de energia e computação quântica,
para citar apenas algumas.

As conexões viabilizadas pela tecnologia, estruturando uma efe-


tiva sociedade em rede (CASTELLS, 2018), também potenciali-
zam os efeitos da robotização das atividades desenvolvidas pelos
461
trabalhadores humanos. Os limites dessa convivência são tênues
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

e delicados de serem estabelecidos. Ulrich Beck (2018, p. 11-12)


chama esse contexto de metamorfose do mundo, ou seja, ao invés de
mudança, metamorfose, que desestabiliza as certezas da sociedade
moderna, os eventos e processos que provocam um choque funda-
mental; significa que o que foi impensável ontem é real e possível
hoje. A metamorfose implica uma transformação muito mais radi-
cal, em que as velhas certezas da sociedade moderna estão desapa-
recendo e algo inteiramente novo emerge (BECK, 2018, p. 15).
Segundo Schwab e Davis (2018, p. 30), a Quarta Revolução Industrial
representa uma esperança para dar continuidade à escalada do
desenvolvimento humano, por meio de três desafios centrais, que
são: a) a justa distribuição dos benefícios das disrupções tecnoló-
gicas; b) a contenção de inevitáveis externalidades; e c) a garantia
de que as tecnologias emergentes empoderem o ser humano, que
deverá governar os desenvolvimentos tecnológicos. Aqui se tem o
núcleo qualitativo de todo desenvolvimento tecnológico, especial-
mente da relação entre o humano e o robô. Quer dizer, existe efeti-
vamente uma ruptura com o quadro tecnológico vigente até então,
mas com dois desafios centrais: os avanços deverão permanecer
sob o controle dos humanos, que deverão se responsabilizar por
eventuais consequências negativas.

2 · As tecnologias da Quarta Revolução Industrial e os


seus desafios sociais
Embora possa parecer um cenário futurista e ligado a filmes de fic-
ção científica, o certo é que está começando a revolução que pode
levar a mudanças fundamentais na sociedade. A capacidade de
sistemas cada vez mais inteligentes substituírem trabalhadores
humanos, por exemplo, precisa gerar uma “zona de preocupação”
sobre o impacto da aprendizagem de máquina nas oportunidades
de emprego em diversos campos ocupacionais e profissionais. De
acordo com algumas projeções, a inteligência artificial ameaça desa-
lojar os trabalhadores em “todos os empregos rotinizados e empre-
gos baseados em habilidades que exigem a capacidade de realizar
diversos tipos de trabalho ‘cognitivo’, de médicos a repórteres e cor-
retores” (COGLIANESE; LEHR, 2017, p. 1149-1150). A atenção deve ser
direcionada às atividades repetitivas, que geram padrões e rotinas.

462
Essas tarefas estão na primeira linha de serem incorporadas pela

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


robotização, como, por exemplo: caminhões de condução autônoma,
sistemas jurídicos especializados, ferramentas de gerenciamento
financeiro e robótica cirúrgica (ANDRIOLE, 2019), além de outras
atividades. Portanto, aqui está o principal sinal de alerta a ser aten-
dido, seja pelas empresas, seja pelos empregados, seja por políticas
públicas para qualificação profissional e reposicionamento da mão
de obra. O impacto da informatização nos resultados do mercado
de trabalho está bem estabelecido na literatura, documentando
o declínio do emprego em ocupações intensivas de rotina – isto é,
ocupações de tarefas que seguem procedimentos bem definidos que
podem ser facilmente realizados por algoritmos sofisticados. Além
da informatização das tarefas rotineiras de fabricação, observa-se
uma mudança estrutural no mercado de trabalho, com trabalhado-
res realocando sua oferta de mão de obra de manufatura de renda
média para ocupações de serviços de baixa renda. Indiscutivelmente,
isso ocorre porque as tarefas manuais de ocupações de serviço são
menos suscetíveis à informatização, pois exigem maior grau de fle-
xibilidade e adaptabilidade física (FREY; OSBORNE, 2013). Também
existem sites onde se poderá simular a probabilidade de tempo para
a substituição de determinada função pelos sistemas robotizados,
como: https://willrobotstakemyjob.com.
Segundo documento elaborado pelo Fórum Econômico Mundial,
existem fatores-chave a serem considerados no atual cenário de
trabalhos humanos e robotização, como: mapeamento da escala
de mudanças ocupacionais em andamento e documentação dos
tipos de trabalho emergentes e decadentes; destaque de opor-
tunidades de usar novas tecnologias para aumentar o trabalho
humano e melhorar a qualidade do trabalho; acompanhamento da
evolução das habilidades relevantes para o trabalho; e, finalmente,
documen­tação do caso de negócios para investimento em recicla-
gem, melhoria de qualificação e transformação da força de trabalho
(WORLD ECONOMIC FORUM, 2018). Essas são atitudes preparató-
rias e preventivas, especialmente para se conhecer o contexto das
mudanças e desenhar alternativas para a preparação dos ambientes
laborais mais susceptíveis às modificações mais profundas, como
a extinção de postos de trabalho. Segundo o relatório, para apro-
veitar o potencial transformador da Quarta Revolução Industrial
(quatro avanços tecnológicos específicos – a internet móvel de
alta velocidade; a inteligência artificial; a adoção generalizada de

463
análise de big data; e a tecnologia em nuvem – devem dominar o
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

período de 2018 a 2022), os líderes empresariais de todos os setores


e regiões serão cada vez mais chamados a formular uma estratégia
abrangente de força de trabalho pronta para enfrentar os desafios
dessa nova era de aceleração de mudanças e inovações. O relatório
conclui que, à medida que as transformações da força de trabalho
se aceleram, a janela de oportunidades para o gerenciamento proa-
tivo dessa mudança está se fechando rapidamente, e os negócios, o
governo e os trabalhadores devem planejar e implementar proati-
vamente uma nova visão para o mercado de trabalho global.
O documento/relatório do Fórum Econômico Mundial destaca os
seguintes pontos de atenção, os quais apontam para as mudanças
que deverão ser aplicadas em curto e médio prazo:
a. Adoção acelerada de tecnologia: até 2022, de acordo com as
intenções declaradas de investimento das empresas pesquisa-
das para este relatório, 85% dos entrevistados provavelmente
ou muito provavelmente terão expandido sua adoção de aná-
lise de big data de usuário e entidade. Da mesma forma, é pro-
vável que grandes proporções de empresas terão expandido
sua adoção de tecnologias, como a internet das coisas e os mer-
cados habilitados para aplicativos e Web, e farão amplo uso da
computação em nuvem.
b. Tendências na robotização: as taxas de adoção de robôs diver-
gem significativamente entre os setores, com 37% a 23% das
empresas planejando esse investimento, a depender do setor.
É provável que empresas de todos os setores adotem o uso
de robôs estacionários, em contraste com robôs humanoides,
aéreos ou submarinos, mas os líderes da indústria de petróleo
e gás relatam o mesmo nível de demanda por robôs estacio-
nários, aéreos e submarinos, enquanto empregadores do setor
de serviços financeiros têm maior probabilidade de sinalizar
a adoção planejada de robôs humanoides no período até 2022.
c. Mudança na geografia da produção, distribuição e cadeias de
valor: até 2022, 59% dos empregadores pesquisados para esse
relatório esperam modificar significativamente a forma como
produzem e distribuem, alterando a composição de sua cadeia
de valor, e quase a metade deles espera ter modificado sua
base de operações. Ao determinar as decisões sobre o local de

464
trabalho, as empresas priorizam a disponibilidade de talen-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


tos locais qualificados como sua principal consideração, com
74% dos entrevistados indicando esse fator como o principal;
64% das empresas citam os custos da mão de obra no trabalho
como a principal preocupação.
d. Mudança nos tipos de emprego: quase 50% das empresas espe-
ram que a automação leve a alguma redução em sua força de
trabalho em tempo integral até 2022, com fundamento nos
perfis de emprego de sua base de funcionários hoje. No entanto,
38% das empresas pesquisadas esperam estender sua força de
trabalho para novas funções de melhoria de produtividade,
e mais de um quarto espera que a automação leve à criação
de novas funções em sua empresa. Além disso, as empresas
devem expandir seu uso de empreiteiros que realizam traba-
lho especializado em tarefas, com muitos entrevistados des-
tacando sua intenção de envolver os funcionários de maneira
mais flexível, utilizando equipes remotas e também escritórios
físicos e descentralização de operações.
e. Uma nova fronteira homem-máquina nas tarefas existentes:
as empresas esperam uma mudança significativa na fronteira
entre humanos e máquinas quando se trata de tarefas de tra-
balho existentes entre 2018 e 2022. Em 2018, uma média de
71% do total de horas de trabalho nas 12 indústrias abrangi-
das no relatório eram realizadas por seres humanos, em com-
paração com 29% por máquinas. Em 2022, espera-se que essa
média tenha se deslocado para 58% de horas-tarefa realizadas
por humanos e 42% por máquinas. Em 2018, em termos de
horas totais de trabalho, ainda não se estimava que nenhuma
tarefa de trabalho fosse executada predominantemente por
uma máquina ou um algoritmo. Em 2022, projeta-se que esta
imagem tenha mudado um pouco, com máquinas e algoritmos
aumentando em média sua contribuição para tarefas especí-
ficas em 57%. Até 2022, 62% das tarefas de pesquisa e trans-
missão de informações e processamento de dados e de infor-
mações da organização serão realizadas por máquinas, em
comparação com 46% hoje. Mesmo aquelas tarefas de trabalho
que até agora permaneceram esmagadoramente humanas –
comunicação e interação (23%); coordenação, desenvolvimento,
gestão e assessoria (20%); bem como raciocínio e tomada de

465
decisão (18%) – começarão a ser automatizadas (30%, 29% e 27%,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

respectivamente). Em relação ao seu ponto de partida hoje, a


expansão da participação das máquinas no desempenho das
tarefas de trabalho é particularmente marcante no raciocínio
e na tomada de decisões, na administração e na busca e rece-
bimento de tarefas de informações relacionadas ao trabalho.
f. Uma perspectiva positiva para empregos: essa constatação
é atenuada por estimativas otimistas em torno de tarefas
emergentes e empregos crescentes, que deverão compensar a
queda de postos de trabalho. Em todas as indústrias, até 2022,
o crescimento das profissões emergentes deverá aumentar sua
participação no emprego de 16% para 27% (11% de crescimento)
da base total de funcionários entrevistados, enquanto a par-
ticipação do emprego em papéis em declínio deverá diminuir,
atualmente de 31% para 21% (declínio de 10%). Cerca de metade
dos empregos principais de hoje – que compõem a maior parte
dos empregos entre indústrias – permanecerá estável no perí-
odo até 2022. Dentro do conjunto de empresas pesquisadas,
representando mais de 15 milhões de trabalhadores no total,
as estimativas atuais sugerem um declínio de 0,98 milhão de
empregos e um ganho de 1,74 milhão de empregos, extrapo-
lando essas tendências entre aqueles empregados por grandes
empresas na força de trabalho global (não agrícola), gerando
uma série de estimativas para a rotatividade de empregos no
período até 2022. Um conjunto de estimativas indica que 75
milhões de empregos podem ser deslocados para um turno. Na
divisão do trabalho entre humanos e máquinas, 133 milhões
de novos papéis podem emergir, pois estão mais adaptados à
nova divisão do trabalho entre humanos, máquinas e algorit-
mos. Embora essas estimativas e as suposições por trás delas
devam ser tratadas com cautela, até porque representam um
subconjunto do emprego global, elas são úteis para destacar os
tipos de estratégias de adaptação que devem ser postas em prá-
tica para facilitar a transição da força de trabalho para o novo
mundo do trabalho. Elas representam duas frentes paralelas e
interconectadas de mudança nas transformações da força de
trabalho: 1) declínio em grande escala em algumas funções,
conforme as tarefas nessas funções se tornam automatizadas
ou redundantes, e 2) crescimento em larga escala de novos
produtos e serviços – e novas tarefas associadas. Empregos

466
gerados pela adoção de novas tecnologias e outros desenvolvi-

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


mentos socioeconômicos, como a ascensão das classes médias
nas economias emergentes e as mudanças demográficas.
g. Aumento da instabilidade de habilidades: dada a onda de novas
tecnologias e tendências que atrapalham os modelos de negó-
cios e a mudança na divisão de trabalho entre trabalhadores
e máquinas, transformando os atuais perfis de empregos, a
grande maioria dos empregadores entrevistados para este
relatório espera que, até 2022, as habilidades necessárias para
executar a maioria dos empregos tenham mudado significati-
vamente. A estabilidade média global de habilidades – a pro-
porção de habilidades essenciais necessárias para realizar um
trabalho que permanecerá o mesmo – é estimada em cerca de
58%, significando uma mudança média de 42% nas habilidades
exigidas da força de trabalho durante o período 2018-2022.
h. Um imperativo de requalificação: até 2022, nada menos que 54%
de todos os funcionários necessitarão de reabilitação e melho-
ria significativa de habilidades. Destes, espera-se que cerca de
35% requeiram formação adicional de até seis meses, 9% neces-
sitarão de requalificação com duração de seis a doze meses,
enquanto 10% necessitarão de formação adicional de compe-
tências de mais de um ano. As competências que continuam
a crescer em proeminência até 2022 incluem o pensamento
analítico e a inovação bem como estratégias ativas de apren-
dizagem. A crescente importância de habilidades como design
e programação de tecnologia destaca o aumento da demanda
por várias formas de competência em tecnologia identificadas
pelos empregadores pesquisados para este relatório. A profici-
ência em novas tecnologias é apenas uma parte da equação de
habilidades de 2022. No entanto, habilidades “humanas” (como
criatividade, originalidade e iniciativa, pensamento crítico, per-
suasão e negociação) também retêm ou aumentam seu valor,
assim como atenção aos detalhes, resiliência, flexibilidade e
resolução de problemas complexos, inteligência emocional,
liderança e influência social também projetam um aumento na
demanda (WORLD ECONOMIC FORUM, 2018).
i. Estratégias atuais para abordar as lacunas de habilidades: as
empresas destacam três estratégias futuras para gerenciar
as lacunas de habilidades ampliadas pela adoção de novas

467
tecnologias: 1) contratar pessoal permanente totalmente novo,
FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

já possuindo habilidades relevantes para as novas tecnologias;


2) procurar automatizar completamente as tarefas de traba-
lho repetitivo; e 3) treinar os funcionários existentes. A pro-
babilidade de contratar novos funcionários permanentes com
habilidades relevantes é de quase o dobro da probabilidade de
haver redundâncias estratégicas de funcionários atrasados na
adoção de novas habilidades. No entanto, quase um quarto das
empresas está indecisa ou dificilmente buscará a reciclagem
dos funcionários existentes, e dois terços esperam que os tra-
balhadores se adaptem e adquiram habilidades no decorrer de
seus trabalhos em mudança. Entre metade e dois terços são
susceptíveis de recorrer a contratados externos, funcionários
temporários e freelancers para resolver suas lacunas de habili-
dades (ÁLVAREZ CUESTA, 2017).
Aqui se tem um panorama do que se projeta para os próximos
anos, especialmente até 2022. São situações preocupantes, mas
paralelamente também apontam para possibilidades e alternati-
vas de surgimento de novos trabalhos nos quais os trabalhadores
deverão exibir novas competências, caracterizadas por conheci-
mentos, habilidades e atitudes.

3 · A hermenêutica prevenção e Direito:


atribuição de sentido e ressignificação jurídica
Os desafios e as possibilidades apresentadas exigirão a ressigni-
ficação hermenêutica do ordenamento jurídico, em que se deverá
atribuir sentido ao jurídico, levando em conta o panorama social
trazido pela robotização (ENGELMANN, 2007), com valorização da
produção normativa privada em substituição à atual dependência
da atuação legislativo-estatal. Para tanto, será essencial promover
o desenvolvimento de ecossistemas de reguladores privados, com-
petindo nos mercados para entregar uma governança de qualidade
em harmonia com os objetivos sociais mais abrangentes; promo-
ver o desenvolvimento, a popularização e a exigência da adoção de
princípios de inovação para orientar os pesquisadores, empresários
e organizações comerciais que recebem financiamento público,
desde a ideia de inovação responsável até os princípios de inovação
sustentável; promover a integração do engajamento público das

468
abordagens baseadas em cenários prospectivos e o uso de estudos

FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE


acadêmicos em ciências sociais e humanas para informar as ini-
ciativas científicas e de pesquisas, conforme um modelo de gover-
nança antecipada (GUSTON, 2014); fomentar o apoio à situação de
organismo e coordenação global para fornecer supervisão, estimu-
lar o debate público e avaliar os impactos éticos, legais, sociais e
econômicos das tecnologias emergentes, na forma de Comissões
de Coordenação de Governança, ou uma possível Convenção
Internacional para a Avaliação das Novas Tecnologias; desenvolver
novas abordagens para a avaliação das tecnologias que combinem
as deliberações e as participações públicas muito maiores e com o
reconhecimento e a reflexão sobre os valores, incentivos e políticas
que influenciam a tomada de decisões na pesquisa e no comércio
(SCHWAB; DAVIS, 2018, p. 316-318).
Com esses parâmetros, observam-se indicativos claros para as modi-
ficações jurídicas, especialmente por intermédio da hermenêutica
jurídica, que deverá atribuir sentido às mudanças paradigmáticas,
como: questões há pouco tempo a cargo da lei são remetidas ao con-
trato e à negociação. As leis se esvaziam de regras substanciais em
proveito de regras de negociação. Esse movimento – dito de proces-
sualização – transfere para a esfera contratual as questões concre-
tas e qualitativas que antes eram regulamentadas pelo Estado. Essa
contratualização conduz a uma diversificação do regime jurídico do
contrato de acordo com seu objeto (SUPIOT, 2007, p. 128). O Direito
do Trabalho da Era Industrial se desenvolveu ao redor de três figuras
institucionais maiores, às quais correspondem três de suas noções
básicas: a figura do Legislador e a noção de Estado-Providência; a
figura do empregador e a noção de empresa; a figura do assalariado
e a noção de emprego (SUPIOT, 2007, p. 146). No panorama da Quarta
Revolução Industrial e do crescente fortalecimento da emergência
da robotização no meio ambiente do trabalho, no Direito como em
outras áreas, a hora é das redes, ou seja, das estruturas policêntri-
cas, das quais cada elemento é, a um só tempo, autônomo e ligado a
todos os outros (SUPIOT, 2007, p. 146-147). Portanto, assim como o
meio ambiente do trabalho sofrerá mudanças por conta das novas
tecnologias, notadamente a automação, a concepção do jurídico e as
fontes do Direito deverão ser envolvidas e transformadas pela her-
menêutica da renovação, com o deslocamento do centro de produção
do jurídico do Estado para outros atores, com destaque para as ini-
ciativas de autorregulação (ENGELMANN, 2018).

469
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FUTURO DO TRABALHO • OS EFEITOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL NA SOCIEDADE

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471
Livro produzido pela Escola Superior do Ministério Público
da União e composto nas fontes KoHo e Zilla Slab.

2020 | Brasília-DF

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