refluxos

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Que tipo de escritos são esses, afinal? Que tipo de escritor é esse? Os únicos tipos que identifico de imediato nessa obra são a letra Times New Roman, o papel branco, o negrito, o itálico, relato, relato de viagem, autobiografia, fantástico maravilhoso, tropical, equatorial, senegalense, indígena, português, INTERATIVIDADE

I – Parte 1 Era tardezinha no dia 16 de janeiro de 2009 quando recebi o inacreditável e-mail da Isadora, principal responsável pela radical e completa mudança no rumo de minha viagem. O destino seria o mesmo: Belém do Pará, Fórum Social Mundial de 2009, 26 a 31 de janeiro, mas certamente não seria a mesma a maneira de chegar lá, e muito menos seria igual o que ocorreria no caminho. Dia 16 de Janeiro, tardezinha. A luz da cidade começa a se misturar com os últimos tons de vermelho do céu. Fumaça. Barulho. Olhos sujos na janela. O relógio da torre obstruído pelo concreto. O mar de tráfego range dentes e convida para chorar. Deve haver flores ainda lá embaixo. Sei que há, em algum lugar. São Paulo é mil. Em breve estarei bem longe daqui. Foi-se o Crepúsculo. Chegou E-mail. A remetente é Isadora, grande amiga, caso tórrido de tempos imemoriais. Muita orgia, muita bebida, muito exagero, pouca memória. Tempos imemoriais. O email é dela. Palavras que mudarão meus próximos dias de maneira inimaginável. Ela sempre foi boa nisso: escandalosamente, provocar o inimaginável. Mas não sei, não ando muito afim de perder a memória ultimamente. A viagem é a minha única certeza, até esse instante. A viagem e o caos diante dos olhos. E o destino: Belém do Pará, Fórum Social Mundial de 2009. Típico programa de índio. Além disso já conheço a dinâmica do FSM, desde 2005 em Florianópolis. Conheci minha última namorada, e um grande amigo. Sim, eu quis dizer programa de índio, e num bom sentido. Acho que estou meio saudoso, deve ser porque finjo estar escrevendo no tempo presente, quando na verdade é tudo lembrança refabulada, como se um sonho tivesse juntado as peças todas de uma vez. Isso porque eu já fui e já voltei, e faz quase um ano. Viagem deixa saudades. O que se lê aqui: algumas partes são transcrições diretas do meu diário, outras são rememórias. Não é jornalismo, não é documentário. É isso o que você lê. Ok, viagem, Belém do Pará, sozinho, desta vez. Não será a primeira, nem a última que viajo sem companhia. Na verdade prefiro viajar sozinho, meu plano era mesmo viajar sozinho. Simpatizo muito com aquele trecho sobre o companheiro de viagem do Cabral: “Sou Viajante calado,/para ouvir histórias bom,/a quem podeis falar/ sem que eu tente me interpor;/ junto a quem podeis/ pensar alto, falar só./ Sempre em qualquer viagem/ o rio é o companheiro melhor.” . Ok, esse negócio de “Sempre” acho exagero, e também não sou nenhum solitário. Na verdade, é viajar sozinho pra conhecer o povo das paradas e estradas melhor, tecer laços no caminho. Trecho do Cabral. Sei lá porque. Vai ver que é porque fala de viagem, e é poesia. E viagem é também, em grande parte, poesia.


(...) Enfim, estou perdendo o foco. Com o email de Isadora é que uma nova via se abre para a minha viagem. Ainda bem, porque não estava gostando muito da idéia de atravessar o Brasil de sul a norte às pressas num ônibus convencional, até Belém do Pará. A Isa se lembrou de mim quando ficou sabendo de um amigo seu prestes viajar, com um bando de artistas, para o Fórum; iam todos num ônibus alugado, e precisavam de mais gente para deixar a tarifa num preço melhor. Convide indecente, só poderia ser coisa da Isadora; fiquei pensando na infinidade de loucuras envolvidas no simples ato de aceitar entrar nessa parada. Com eles seriam nove dias para chegar no Pará, com paradas bem especiais no caminho. *** Fotógrafo, dançarinas, músicos, atores, atrizes, artistas plásticos, jornalistas... Quando se apresentavam não gostavam muito do termo “shows”. Preferiam espetáculos, performances, happenings, sei lá. Tem que considerar a história do Espaço Fluxus, aquilo da performance, Aguillar, Guto Lacaz, Ivald Granatto. O pessoal às vezes se chamava de Fluxus, carregava uma bandeira das etnias bolivianas e dizia que era sua, misturava várias artes, várias cabeças, várias loucuras. Alguém ainda capaz de inventar um nome pra isso. Mas eu não vou por aí, nem sou dono de feirinha para ficar colocando etiqueta em arte. E já estou adiantando demais a história, que ainda nem chegou nesse ponto. *** O preço compensa muito. Exatamente o mesmo do ônibus convencional, 370 paus, com a diferença de que pararemos no caminho, com lugar para dormir incluso, e eu poderei conhecer diversas cidades interessantes. Só resta checar o quão irresponsável pode ser o pessoal: como eu disse, o destino é Belém do Pará, e não está nos planos ficar preso no meio da estrada, num hospital, blitz policial, comunidade hippie, dimensão paralela ou qualquer outra encrenca que naturalmente um bando de jovens artistas - com um ônibus inteiro e centenas de instrumentos a disposição - estaria propenso a causar. Tem mais uma coisa. No e-mail diz também que eles farão uma festa amanhã, para confratenizar com os tripulantes da viagem. Está resolvido: vou nessa festa para me certificar de que eles não vão me impedir de chegar em Belém. E pra não cair no risco de julgar com a esperada parcialidade para o lado da arte e da loucura, vou levar a Aline comigo. Não sei qual é a dela, gatinha bancária, loirinha cheirosa de São alguma coisa aqui no interior de sampa, e acho que é bem caretinha. Vai ser o detector de confusão perfeito. (...) 16 de janeiro. Cacete, olhando direito o e-mail. Na verdade a festa é hoje. Preciso ligar já para a Aline. Ela morá lá perto, acho que vai rolar. Na verdade tínhamos mesmo combinado de sair para algum lugar. Ainda bem que li denovo.


O meu plano inicial era simples: pegar um ônibus da Transbrasiliana ou da Itapemirim lá pelo dia 24, pagar 370 paus e chegar em pouco mais de 51 horas no destino Paraense. Já estava conformado com a perspectiva de atravessar o Brasil de sul a norte , numa tacada, enlatado dentro de um ônibus, e tudo para alcançar aquele grande evento mundial cheio de pessoas de cada canto do mundo, cheio de novidades e vida daquela região equatorial para mim ainda desconhecida. Sim, valeria a pena percorrer àquela via interminável, metido numa poltrona - que nem “semileito” era, se ao final encontrasse um destino tão promissor. E assim eu faria, na esperança de depois voltar com mais calma, parando nos lugares que quisesse, dando o tempo para a viagem acontecer. Mas as coisas correram de uma maneira maravilhosa e inesperada, e a tal via norte-sul nesse imenso Brasil mudou-se de um imenso deserto de asfalto a ser percorrido com sofrimento e dores musculares em uma série de destinos tão incríveis e histórias que eu não poderia sequer tê-las imaginado antes de efetivamente acontecerem. A grande mudança, portanto, se deu justamente por causa do e-mail de Isadora, no dia 16 de janeiro. O conteúdo, em suma, era o seguinte: um convite a quem recebesse aquele para juntar-se ao ônibus de um grupo de artistas sediado na mais respeitada universidade do país, que seguiria rumo ao fórum social mundial, mas no caminho aproveitaria para fazer algumas paradas e executar performances. Junto com o convite da viagem vinha também um convite para uma festa com o pessoal que viajaria. Parecia até uma brincadeira, mas mesmo assim resolvi comparecer na festa que ocorreria na noite seguinte para conhecer o pessoal que viajaria e descobrir do que se tratava. Convidei a Aline, que morava lá por perto para ir comigo e dar sua opinião sobre a galera. Uma garota bem ajuizada (até demais, às vezes!), pensei, seria a conselheira ideal para me impedir de embarcar numa aventura muito


furada. Depois fui percebendo que ela não era exatamente a caretona que eu imaginava, mas segui seu conselho: seguir com aquele pessoal. Mesmo sem ser careta, ela continuava uma respeitável opinião para mim. Sem falar que eu já estava decidido a ir de qualquer maneira, desde quando recebera o tal email, no dia anterior. 17 de janeiro. Primeira noite sem dormir. A festa, em suma, foi uma retumbante orgia, com mais de uma dezena de instrumentistas produzindo uma massa sonora de peso, bem conjuntada, frenética, rock-progressivo-afro-caipira-reggae-sambatuques e sei lá mais o quê, já disse que não sou dono de feirinha, mas esse tipo de caldo, fazendo sentido, acho que só no Brasil. Carrom, agogô, bateria, teclado, guitarra, baixo, djambê, chocalhos mil, flauta transversal, berimbaus, tambores variados e até um cone de trânsito gigantesco, daqueles laranjas cilíndricos, usado na percussão. Era uma batucada dos infernos sim, de colocar as velhinhas para babar, mas de imensa qualidade. Não que fosse de se esperar menos: as faculdades de música que grande parte deles cursava eram foda. Desses cursos que têm um exame de ingresso tão rígido que o cara já entra tocando pra caralho. Com o tempo vou perceber que além de fazer uma batucada poderosa eles ainda são capazes de fazer sons mais amenos, para velhinhas dançarem, crianças dançarem e sairem correndo feito loucos kamikazes, e adolescentes pirarem. Isso vai acontecer nas cidades em que passaremos. Perceberei também que junto com os músicos embarcava naquela jornada ainda uma série de outros artistas e criadores, entre dançarinas, artistas plásticos, atores, jornalistas e um malabarista. Comigo, enfim, contam ainda com um estudante de filosofia quase formado e um advogado nem um pouco conformado. Da parte da filosofia, talvez a mais importante função: palpiteiro profissional e viajante de plantão. Como advogado, queria-me mais um pesquisador, direitos humanos e também penal. Espero ficar só na pesquisa. Os problemas com direitos humanos, já sei, serão inevitáveis.Temos no itinerário um território indígena ameaçado e um assentamento de sem-terras sobreviventes do massacre de Eldorado dos Carajás . Ah, a Aline não encrencou com a galera, ficou numa boa. Na verdade eu que fiquei enchendo o saco dela pra vir comigo. Eu sabia que ela não podia, mas acho que queria ver ela sofrer pra confirmar o quão boa ela achava que seria a viagem, babaquice minha que só agora consigo perceber, agora que ela já se mandou faz tempo. Esperta. Mas ela não sofreu muito, ainda bem. Acho que no fim ela não sofreu foi nada. No fundo ela era muito mais esperta do que eu imaginava, agora eu acho. Mas claro, não me amava.

II. A partida 18 de janeiro. Fiquei sabendo desse ônibus no dia 16, fim da tarde. Dia 16 pela noite estava já na festa e dia 18 de manhã estou partindo, ou preparado para partir. Observo com os olhos vidrados um sujeito magrelo meio parecido com algum aborígene de terras distantes, ou uma lagartixa mutante, ensinar malabarismo para uma turma. Estou com sono, estou cansado, não consigo nem comprimentar todas as pessoas, mas acho que todos que estão aqui vão viajar. Nesse meio tempo, antes de chegar aqui, fiz o que pude arrumando as malas e corri para comprar um celular que viesse também com máquina fotográfica, para poder registrar as imagens da


viagem e ainda substituir meu aparelho, que já estava tão velho que nem carga segurava mais. Os vendedores olhavam pra ele com desdém e diziam que não valia a pena trocar a bateria. Porcaria de obsolescência programada, celulares feitos para serem usados por 1 ano e decompostos em 1 milhão. Nesse ritmo todos sabem que acabaremos soterrados por celulares, mas estão todos cagando. Mais um monte de lixo na conta da molecada, que vai ter que inventar um jeito de sumir com o lixo ou de viver com ele. Todos nós somos a molecada, claro, mas pensar nos filhos dá um apelo emocional mais forte. Essa noite também não dormi, fiquei enchendo as malas na maior correria. Uma cacetada de malas. Quase nem percebi que estava fazendo tudo o que queria não fazer em minha próxima viagem: sair sem um bom planejamento e, além disso, sair acompanhado de mais pessoas, carregando um peso muito maior que o necessário, cheio de livros e roupas para um mês inteiro. Eu iria ficar até mais de um mês na estrada, mas mesmo assim era bagagem demais para não pesar. Quanto a sair sem planejamento, estou querendo dizer não só sair sem saber bem o trajeto da viagem, sem fazer uma pesquisa sobre cada lugar onde se vai estar, ou mesmo sem adquirir os equipamentos e roupas necessários para a viagem. É o planejamento num sentido mesmo profundo, como um método elaborado de interagir com cada destino, com cada via. Um método que me preparasse para absorver o máximo de experiências que pudesse encontrar e, mais do que isso, um método para verdadeiramente encontrar os lugares e, especialmente, as pessoas de cada lugar. Não, mais do que um simples método, queria a fundamentação desse método também, e os critérios de tal fundamentação, e as reflexões sobre se essa fundamentação mesma era necessária. E investigar o próprio conceito de viagem... pensar a sério sobre o que seria o ato de viajar. Para isso vinha lendo, há meses, diversos clássicos da literatura de viagem, vendo filmes sobre viagens, refletindo com filosofia sobre o ato de viajar. Estava vibrando pela segunda vez com o “On the road” e já havia lido diversos guias de viagem dos mais variados destinos. Obras como a Odisséia, a primeira viagem documentada do Amyr Klink, as expedições aos pólos, Hans Staden, Darwin, Supertrump, Easy Rider, as cidades invisíveis do Ítalo Calvino, Il Milione, enfim, sou louco pela coisa. Tudo essa pesquisa se enriqueceria no percurso, mas não da maneira cartesiana como se poderia imaginar. Além de não ter o planejamento finalizado (acho que nunca terei), partiria ainda com companhia para essa viagem, e muita companhia: só no dia da partida éramos mais de 30. O motivo de eu não querer viajar acompanhado é conhecido dos experimentados viajantes: quando se está sozinho, vive-se mais inteiramente o que os lugares têm para oferecer. Viajando sozinho, além disso, o sujeito se dispensa aquela chatisse que é esperar, discutir, ir em bando, voltar junto etc.Viajando sozinho, tem-se a oportunidade de escolher e desescolher os parceiros de viagem conforme ela ocorre. Viajar sozinho é o jeito melhor de viajar acompanhado. Sim, eu tinha bons motivos para querer viajar sozinho. Mas também tinha bons motivos para, desta vez, abrir mão desse precioso estilo de viagem. Não ia sozinho, mas também não conhecia absolutamente ninguém das dezenas de pessoas que iam comigo no ônibus e, embora elas não fossem exatamente a expressão cultural dos locais nos quais estaria, pareciam ser simplesmente maravilhosas. Há pessoas que mesmo morando na casa ao lado da nossa podem ser tão ricas em novidades e particularidades quanto o habitante de uma terra muito distante.


No fundo, é também um pouco de falta de sensibilidade aquela necessidade urgente de querer viajar, sem antes procurar conhecer com o coração o lugar onde se está. De qualquer forma, um pensamento consola: a matilha de artistas não é um bando de viajantes comum. Ele tem uma tendência natural de atrair as pessoas para eles, ao invés de afastá-las, como os grupinhos normais de turistas. Isso eu iria descobrir no decorrer da viagem. Parto deixando de lado muitas das regras e planejamentos que tinha para viajar, mas nem por isso vou contra meus princípios. Pelo contrário: se tem algo de sólido que se pode saber sobre sobre viagens e viajantes, é que é preciso estar sempre pronto para o imprevisível. Na estrada simplesmente não existem caminhos retos; não apenas porque a terra em si é esférica, mas também porque não se pode buscar o desconhecido, as novas experiências, e saber onde está indo ao mesmo tempo. Subo nesse ônibus cansado e atordoado, dias sem dormir, mas com um sincero sorriso na alma, e a forte sensação de que algo incrível virá. (...) O embarque em si foi tranquilo. Cheguei carregado com minhas tralhas, cumprimentei quem encontrei por perto e, depois de eu insistir um bocado, o pessoal deixou que eu ajudasse com algumas tarefas, como embalar os jornais que tinham feito para divulgar “o coletivo”, e levar para o ônibus um pouco da parafernalha das apresentação. Luzes, fios, mesa de som, panos, caixas de som, tinta e, especialmente, instrumentos: UM MONTE instrumentos. Eu mesmo levava meu violão, dois berimbaus e uma flauta boliviana chamada Quena. Tambén não viajo sem alguns instrumentos. Ah, sim, antes de partirmos definitivamente rolou uma grande roda de conversa e apresentações dentro do espaço chamado CANIL, bem próximo do ponto de embarque. Nos olhamos um pouco, sentimos mais ou menos a dinâmica do pessoal. Alguém lamentou uns problemas que não quis revelar, uma tensãosinha coletiva, mas no fim a galera estava animada demais para deixar qualquer baixaria atingir. Terminou a coisa toda com uma animada sinfonia de uivos, latidos e ganidos, como é o costume desse pessoal, muito mais do que bater palmas.

III – Estrada A primeira nota do meu caderno de viagem, ou do meu diário de bordo, a primeira nota da estrada diz literalmente o seguinte, com erros de pontuação, gramática, concordância, ortografia etc.: “Dia 1. Aprox. 18:30: em VIAGEM Embora a origem faça parte da viagem, essa só começa quando se atinge a via, e muita vez também termina antes de atingir o último destino planejado: é a lei da imprevisibilidade da via, da esburacada e dinâmica via. 1. Olhos no No horizonte, sob o sol, as imensidões: imensidão de casas que desconheço; imensidão de campos que desconheço; imensidão de lagos e nuvens, infinitas torres e cabos elétricos, e cercas, e aves que alcançam tão fundo e a vertigem dessas profundidades ameaça romper superficial pano de fundo e chamar a imaginação para preencher esse espaço todo: Curiosidade que insiste em habitar: a curiosidade que é capaz mesmo de esquecer da via.


2. Olhos no asfalto AMO também o que a via tem de monótona, a sucessão de faixas e placas e curvas e morros todos tão parecidos que me trazem paz: escuto nessa vibração os destinos todos que um dia encontrei, os destinos que ainda não encontrei e ainda aqueles que jamais poderia, em uma só mortal existência, a todos conhecer. 3. Olhos no destino “ Uns fragmentos que nem sei. A primeira parte é sobre a relação da origem, o ponto de partida, com as outras partes que julgo existirem no conceito da viagem: a via, ou o caminho, e o(s) destino(s). A origem fica num lugar pré-temporal da viagem, antes de ela começar, pois quando se está propriamente viajando quer dizer que a origem já começa a ficar no retrovisor. Ao mesmo tempo a origem acompanha o viajante a cada instante; os olhos com que se vê o mundo são os mesmos olhos que aprenderam a ver olhando para nossa infância, nossa vizinhança, nossos parentes, nossa sociedade. Sem ter uma origem, a rigor, não se pode dizer sequer que está em movimento. Que tipo de viajante seria o nômade, afinal ? E um paulistano quando fica mais de 30 horas por semana movendo-se centenas se quilômetros para atingir distantes pontos. Gosto ainda de pensar que há muitos vínculos que não se desfazem, nem se devem sesfazer, quando viajamos. Deixar a casa mas não abanonar, perdendo-a. A ausência do viajante na sua origem tem algumas consequências. Quem quer assegurar que haja uma viagem ganha muito assegurando de que o lugar de partida seja bem conhecido, e que ele esteja lá quando se decidir voltar. No fundo, não há viagem, mesmo que o sujeito cruze fronteiras, se deixar de ter a referência de seu próprio lar. Odisseu afortunado. Clitemnestra deu cabo de Agamenom. O mesmo viajante que se desprende de sua identidade e suas raízes é aquele que voltará para sua origem para agir exatamente como antes, pois age como camaleão bêbado, assumindo a cada instante as cores que convém assumir. A memória no favorece em terra estrangeira aquele que a desrespeita em sua própria. A consciência de sua origem é também a consciência dos preconceitos que se carrega. O viajante que abdica de sua identidade ao encontrar outra cultura está, no fim, executando sempre uma mesma rotina: servir aos desejos do meio em que se encontra. Pergunta-se se ele alguma vez teria viajado, se sempre foi incapaz de mudar de lugar. Horizonte. Quanto ao horizonte, isso é brisa antiga. No começo era apenas o ínfimo que me sentia, quilômetros de horizontes a todo instante na janela. Com o tempo fui percebendo que há nessa terra tanto blues, nascente e nascido, que se poderia pegar estrada até na carona de um monge peregrino e ainda assim haveria trilha para percorrer o mundo todo, a vida toda, sem nunca ter repetir uma estrada, uma mesma ladainha. A arte é longa, a vida é na medida, a estrada é breve. Perigo para o viajante, talvez o maior de todos, é obsecar-se por alguma visão na estrada, e não atingir seu destino, finalizar a viagem antes do tempo. Sente o poeta esclamando em viagem


“Quanta coisa não vou deixando para trás, à direita e à esquerda, apenas para concretizar uma única idéia, que já se fez quase velha demais em minha alma!”. Sentimento inconsistente que me parece manter o rumo: a calma e a esperança guardada em cada horizonte de via, inexplicável certeza de que se há lugar que está em contato com todos os destinos do mundo, é a via. É ela que leva a todos os lugares, a todas as paixões. Quanto ao amor, embarque; contingência histórica isso de o sedentarismo acompanhar a união feliz. Viagens de viagem. 1a Parada na estrada)) 19:30 de 17/02, mais ou menos 130 km rodados, Limeira, “Churrascaria Serra Gaúcha” Conturbada. Discussões sobre a parar ou não. Uma galera entrou pra comer a outra ficou moscando. Eraldo foi lá dentro trouxe uma marmita cheia de carne, para todos. Eraldo, a primeiríssima figura que me apareceu na viagem, era mesmo assim generoso e andava quase sempre com alguma frase nova na ponta da língua, que repetia constantemente, das maneiras mais engraçadas. “Eu gosto do meu pai, da minha mãe, e de carne”, ficava exclamanto. “Gentileza gera gentileza”. Acho que ele é justamente daquele tipo de pessoa tão rara e comum nas viagens e relatos de viagem; comum porque uma história de viagem que vale a pena ser contada tem de ter pessoas fantásticas; raras porque é difícil ter olhos para vê-las no ordinário de nas nossas vidas. Neals Cassady's, Queequeg's, Sanchos Pança, Katsimbalis, Mefistofeles? Magnéticos seres destinados a atrair aventura e confusão, tirar-nos do marasmo, empurrar-nos em direção a vida. Mas a confusão toda da paragem foi mesmo uma bobsagem. No fim das contas ficou claro que quem mais queria parar eram os motoristas, dizendo que a comida era boa e barata e dali para frente só postos caros. Cito meu diário na íntegra: “A verdade é que os motoristas quiseram parar. Agora arrumam, sob protestos (por causa da demora), o espelho esquerdo do ônibus.” (que ao que parece estava prestes a cair) “Escurece nos campos que se vêem pela janela: uma palmeira solitária no horizonte, horti-culturas. mais demora! Todos no ônibus, exceto pelos condutores.” Partimos 20:52, luzes desligadas, talvez os motoristas esperando que pudéssemos dormir. Mas em poucos minutos a luz ia ligada novamente (dessa vez piscando, sabe-se lá porquê). Música tocada e cantada em coro sem parar. Depois Luzes desligadas denovo, mas a música continua. Tento dormir. Aproveito o clima para seguir em meus pensamentos sobre viagens e também sobre os planos da minha vida; eram momentos decisivos, com relação à profissão e todos esses estresses que o homem gosta de se impor. Naquela estranha e caótica situação sentia uma calma inesperada para tais pensamentos. Viagem tem isso: mudada a perspectiva, certos problemas gigantescos perdem importância em face da inesgotável possibilidade. 11h da noite. Finalmente, depois de anunciarem por uma meia hora, conseguiram fazer rodar na televisão do ônibus o filme que muitos dias depois, mas ainda nessa viagem, fará eu e Alex darmos boas risadas. O Alex é autraliano, ficará com vontade de ler o Mário, encantado pelo nosso Macunaíma. Terreiros e tambores rondando a viagem desde o princípio. Em São Luís a coisa vai ficar séria. 2a Parada na estrada))


3:33 do dia 18/02, Araguari, Auto Posto “Brasileirão” Essa parada foi mais breve, e num lugar bem mais luminoso, parecia um shopping, com uma grande e exagerada fonte interna ao lado dos banheiros, troço meio estrambólico. As simpáticas moças da recepção sorriam, apesar da hora. Uma delas ficou doida por saber de onde vínhamos, para onde íamos, o que fazíamos etc.. Consegui me desvencilhar das perguntas um instante e aproveitei para usar a internet do lugar. Contratempos com a inscrição virtual do Fórum, pagar taxa, sei lá, vai dar tudo certo. A maioria do pessoal no busão nem sabe o que tem de fazer pra se inscrever. Nos jornais da uol leio o trágico desabamento do teto da igreja em São Paulo. Vários mortos. Na saída deu tempo ainda de ouvir uma piada que não ouvia desde os tempos de cursinho, e agora teve graça, com o sotaque verdadeiro: “Aqui, meu rapaz, aqui é Araguari, um dos três grandes “B”s do triângulo mineiro! Temos Beraba, Berlândia e Beleza de Araguari!”.

IV – Dia 2 - Chegada em Brasília Notas do diário: (amanheci poético – o começo parece bricolagem de palavra difícil pra pré-adolescente, mas que se foda) “Amanhece na estrada e a luz do sol vem redimir o obstinado esforço daquele que durante a noite toda só fez suportar o escuro e perseguir o breu. A antiga mesmisse de uma vista curta-de-luz dá lugar aos policromáticos firmamento e coisas da terra. -Esparramo minha alma sobre esse amplo planalto central. Faltam apenas algumas horas para que alcancemos a capital do país. Galpões de Agropecuária, borracharias, lojas de insumos agrícolas, maquinário, propagandas de “fabricantes” de sementes contra sementes piratas (?!) num outdoor solitário na beira-de-estrada. Não sei se já cruzamos a fronteira do DF, mas acho que não faz diferença, pois até atingirmos as cidades satélites será tudo como agora vejo: o que não está aqui para o campo e para o povo do campo, então está aqui para os que passam na estrada: borracharias e insumos agrícolas: uma simplicidade nítida para quem acaba de ver o primeiro pôr-do-sol fora do frenesi paulistano. Aqui não encontro mais sinais daquela abundância estupidificante de atividades, lojas, taras, passeios: nestes campos que vejo ou és do campo ou és viajante; ou trabalhas na terra, ou estás de passagem.”


Enfim, a capital. A almejada chegada em Brasília veio e está agora um tanto incerta, todos meio perdidos, ligando, perguntando aleatoriamente, meio sem propósito, aos berros, nas ruas, pela janela, onde fica a comida boa e barata, o mercado municipal, a rodoviária, a praça dos três poderes. No meio disso tudo alguém anuncia que vamos encontrar não sei quem ao lado da Catedral. E os motoristas cada vez maus desesperados, pedindo direções. Chegando na frente da Catedral, paramos perto de umas barraquinhas de artesanato, “flores do cerrado”: pedaços secos de diversos vegetais combinados formando secas flores, cores opacas mas vivas. Acredito que duram um ano todo, e outros mais, sem mudar de aspecto. O vendedor distribui algumas para as mulheres. Tempo escasseando, não é hora para vacilar. Um bando todo (eu, o zé leo, a maria, o andré, o Jeff ...) corre ao templo de Nyemeier, logo ali. Somos recebidos por um sorriso. Na verdade, dois: casal de sexagenários plantado na entrada. A mulher fazia as boas-vindas e o homem “montava guarda” atrás da caixa de doações. Pouquissimo tempo para sentir o lugar, para ver ali os quadros de Portinari e uma réplica da Piedade do Da Vinci. Respiro e registro o que posso, torcendo para que um dia sonhe novamente com o que sei que vi lá. De volta ao ônibus, supermercado e depois “bananal”, território sagrado dos pajés.

V – Dia 2 – Rumo aos índios Supermercado. Supreendentemente ágeis: 1)aconselhados pelo estudante de lá que fez a ponte para encontrarmos os índios, decidimos que era legal levar um rango, 2) chegamos em menos de 1h no supermercado, o que era ótimo, para o grau de zambetice das indicações; 3) viramos equipes e zarpamos na mesma hora para comprar o necessário, dinheiro já arrecadado e dividido, cardápio conforme decidido junto com o Rafa, o tal do estudante anfitrião: sanduiches e guacamole. Eu tinha ficado encarregado de cinquenta pães e fui cumprir a missão junto com o Tadeu e o Davi, que tinham ficado encarregado dos frios e frutas, ou algo assim. No caminho, curiosa discussão sobre o autoritarismo. Porque o Presto tomou a iniciativa de dividir os grupos e despachar o pessoal para comprar as coisas e o Davi encanou em dizer o quão bom tinha sido isso; e mais, que o autoritarismo era o que funcionava. Insisto com ele que autoritarismo é outra coisa, que ninguém viu qualquer razão para objeções, só isso, e aí a palavra do Presto bastou. Como uma proposta que passa em assembléia por consenso. O Davi não parece muito interessado em discussão de semântica, e insistia despreocupadamente em seu ponto. Insisto em preservar o sentido preciso de certas palavras para que possamos identificar coisas importantes. Tem situações em que confundir um nome pode ser fatal. Acho que não é só chatice de escritor. Sei lá, o Davi não se convenceu muito, mas um certo diálogo rolou numa boa, que é já é de bom tamanho. Voltamos todos para o ônibus. Zé Leo, o João Gabriel, galera de Brasília e o pessoal todo, que voltou primeiro se agita, no meio da calçada de grama, com um sincopado batuque e dança. Embarcamos todos no ritmo, para encontrar os Índios. Mas acho que o batuque foi tanto que os motoristas se perderam denovo, bobear o povo entrou em transe e esqueceu deles. Chegamos enfim na entrada da trilha para a aldeia. O lugar não é muito convidativo, lixo e cercas espalhadas. Conforme entramos, porém, vai melhorando, e numa


encruzilhada o pessoal para e faz uma grande roda, dá as mãos, lembra da morada de exu, faz umas rezas, sei o que lá. Puta saco. Ainda nem nos apresentamos todos, mas o povo se sente a vontade para dar as mãos e falar de religião, do Exu e sei lá mais de quem. Papo brabo; espero que os índios não venham com catequização. Sei lá. Mas de boa, sem preconceito, estamos todos juntos, no fim. Até terreiro ainda vou visitar nessa história. No lugar do lixo agora placas sobre a reserva , “area reservada”, “peligro de guerra”, “derechos humanos”, “territorio indigena”.

Somos recebidos por um jovem de tanga e pintura, cocar, e um senhor mais velho nas mesmas condições, mas com pintura diferente. O papo começa já bem belicoso, eles estão acuados, furiosos. Mas o povo desse lugar já guerreia com as palavras e as leis, direitos: discursos são suas armas. Sinto um estranhamento admirado ao ver um jovem índio defender com ênfase o cumprimento da Constituição Federal. Justo ele, que antes de qualquer um, poderia alegar que aquela lei não era a sua, e que os demais os deviam respeitar como eram antes de qualquer constituição ocidental. Mas parece que respeitam a constituição de 88 ainda mais que os próprios “caciques” que a fizeram. Não é sem motivo: a Cidadã vai muito melhor com os argumentos justos. Trechos do diário, colagem das frases captadas no discurso do jovem, misturadas com minhas impressões. Tentei grifar o que ele disse com certeza. Resistência contra os Sem-Vergonhas ( sem vergonhas!! Toré-Festa ________ estratégia Contra Sem-Vergonhas! Brancos não dizem quem é índio! Sem vergonhas toda terra indígena é patrimônio da União ! Índio tem CIÊNCIA, sabedoria. Direitos sobre a terra. MÃE TERRA. O Pagé foi GRANDE ESPÏRITO que escolheu. Não podemos deixar território aberto. Ameaça constante da chegada de PAULO OTÄVIO e seus políticos. FUNAI & IBAMA: contra a LEI, contra nós. Lei não funciona. Queremos guerreiros: 300 índios sobre o aquífero PARANOÁ em defesa da terra /(PACHA MAMA( Condomínios de luxo! (Com projeto sob o nome de Lúcio Costa, que teria repudiado tal feito! Violentam direitos e pessoas: Violentam a todos na figura dos Índios: A Constituição não vale nada: audiência pública é pouco: licitação dia 29/o1/o9. Façamos PAGELANÇA na frente da casa do presidente: Minc: vendido/ Justiça: ficção. Vamos jogar a constituição na cada do LULA!! ÍNDIOS defendem a Constituição contra o Poder da GRANA. Movimentos sociais Vendidos. Queimar LULA MESMO o mundo tem que saber. Só dispomos de computadores monitorados. É PRECISO deixar o mundo saber. Guerra de informação Quando outros


Índios vem aqui a polícia fica em polvorosa. E HAVERÁ ENCONTRO DE MÚSICA EM ABRIL. É Preciso UNIR os ÏNDIOS “o índio da Amazônia não sabe do Índio no sul. VAMOS À GRANJA DO TORTO. Somos poucos queremos fazer jornal. Índio que quiser ficar, fica pra guerra. Ver o índio falando todos aqueles lugares comuns do discurso europeu foi inacreditável. Tive impulsos de lhe dizer que ele não tinha ciência coisa nenhuma, e que nem precisava ter: que a palavra “ciência” era uma coisa outro sistema de pensamento, enredada em séculos de discussões com as quais a sua tribo nada tinha a ver. Que eles não precisavam, ou não deviam precisar dizer que tinham ciência para serem ouvidos. Que bastava sua cultura e a lei para protegê-los. Sequer teriam obrigação de falar em direitos ou prestar contas à FUNAI, ou quem quer que fosse; o direito romano também é uma imposição que não lhes atinge se não quiserem. Fiquei com tudo isso na cabeça martelando, mas julguei melhor ouvir e aprender, perguntando se no fundo não presenciava um novo tipo de discurso, nem completamente europeizado, americanizado, nem todo indígena. Porque se o índio não aprende a falar nossa língua, e nós, embora valorizando em lei, não protegemos a língua deles, o que fazer? Morrer incomunicável para preservar algo que só se defenderia com a comunicação? É complicado. É preciso inovar: eles falam a língua do opressor para lembrar de que devem falar a sua própria. Sei lá, tem um quê de magnânimo nisso. Outra alternativa para eles seria devolver a mesma violência que recebem há séculos. Já imaginaram? To falando do mesmo terrorismo que cê vê na Palestina. Pois é, esse pessoal é muito mais admirável do que se pode imaginar. Exemplo de tolerância que os índios dão ao falar na língua legislativa dos seus adversários, invocar a deusa grega Justiça ! Eles não precisam falar “língua dos dominadores”? Viver com os efeitos práticos dessa opção é que são elas. O Direito... Depois que o jovem fez seu discurso, passamos a preparar o que vamos comer. Depois é esperar o Chefe e ver o resto da aldeia. Comemos, dançam, tocam, descansamos e começamos a discutir sobre o que fazer para ajudar os índios. Sugiro confeccionar uma faixa sobre o encontro musical dos índios para colocar no fórum. O Eraldo me apoiou, mas o restante desconheceu e partiu pra outra. Fiquei um pouco desapontado, pois parecia uma sugestão viável, fácil de fazer e com possível resultados enormes, mas continuei escutando. Escutei até que hegou um momento que passaram a discutir se a prioridade do grupo era estar ali com os índios esperando o chefe ou ir encontrar um pessoal não sei aonde. Já tava meio contrariado, e achei puta falta de respeito discutir daquele jeito a prioridade que os índios tinham, com uns argumentos meio frouxos, na frente deles. Assim eu e o Eraldo fomos procurar mais o que fazer, eventualmente. Deixamos o pessoal sem que eles sequer percebam. É muito mais duro ver propostas ignoradas do que rejeitadas, e com pesar vejo nesse momento nascer no Eraldo uma indignação que em pouco tempo causará o seu desligamento do grupo. Políticas. Mas o fato é que o jovem índio presente ali tampouco demonstrou qualquer grande sentimento quanto ao assunto. Parecia que ninguém tava mesmo ligando, ou que estavam em outro nível de consciência. O melhor que fiz foi caminhar um pouco pela Aldeia e conhecer o que mais havia com os próprios olhos. Treinei uns movimentos na capoeira do campinho de futebol da molecada da aldeia, alonguei, e o pessoal já tinha feito uma batucada com direito a dança indígena e tudo, pão com presunto, queijo e Guaca-Mole, maçãs, mais guacamole (direto das mãos lambuzadas das cozinheiras). E a costelinha de porco defumada comprada por própria conta no supermercado que o Eraldo colocou


novamente, por gentileza, à disposição para todos degustarem. Depois do almoço acontecer no tempo e sem pressa foi que chegou o chefe, e logo que o vi já tive vontade de sorrir. Era de um carismático e de uma oratória impressionante. Nem isso, porém, me convenceu a juntar-me a ele e ao pessoal no próximo ponto da visita, o lugar de culto. A verdade é que aquela farra toda tinha me dado um sono enorme e quando eu vi a possibilidade de me estender na rede daquele território sagrado dos pajés, cercado de galinhas e patos e cães e daquele denso cerrado todo que me abraçava. Deitei para compensar por ao menos um instante os três dias que passara praticamente em claro, mas simplesmente não consegui pegar no solo. Tampouco fui me juntar a todos no templo. Simplesmente fiquei ali, curtindo sozinho, em paz, sem ouvir sequer uma voz humana, num momento do meu próprio território sagrado. Claro que fiquei curioso pra saber o que tava rolando no templo, mas não dá pra estar em todos os lugares. Quando voltaram eu já estava mais alerta e como não parecia legal estar simplesmente esparramado ali na área de estar do pessoal, aderi à terceira parte da visita:o herbário. Lá escutei a função terapêutica de uma centena de plantas e flores e galhos e sementes e todas as partes da planta. Tentava ao máximo prender a atenção naquelas minunciosas explicações sobre o preparo, as advertências quanto ao consumo... e o hilariante Eraldo fazia das suas, perguntando ao chefe a toda hora, da maneira mais engraçada que se pode imaginar, quando chegaria a vez da planta que faz a mulher ficar excitada, ou quando chegaria o viagra natural ou algo parecido. Rachei o bico, mas mesmo assim anotei alguma coisa: “ Receitas terápicas do chefe (indígena, não francês) 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.

Usar folha de amora na Salada 2. Broto... Favos de Mucuna Boldo para útero inflamado Fava do Jatobá: xarope. Ingá-Açu (comida dos Caiapó) Óleo de Linhaça: artrite e artrose Abacateiro (semente seca, tritura no ralador e deixa num vidrinho) : 1 colher com mel para pedra no rim

Terminada a lição fitoterápica, mais umas palavras do grupo e dos índios e voltamos para o ônibus, e de lá para o bar-restaurante onde o povo ia tocar de noite. O sol ainda se punha, foi o lugar ideal para uma cervejinha, e depois o jantar, com um preço negociado de algo como 7 paus para cada, num buffet bem razoável. O pedaço da cidade onde o bar ficava tinha um pouco mais de calor humano do que o restante de brasília: havia calçadas. De lá fomos finalmente ao alojamento daquela noite: o conjunto residencial estudantil da universidade de brasília. A chegada foi um tanto atribulada e diante da demora em descobrirmos onde iríamos enfim dormir, o nego Eraldo já tinha conseguido arranjar-se em um dos apartamentos, simplesmente gritando em direção das janelas daqueles simpáticos predinhos instalados em volta de um jardim com uma série de árvores frutíferas. A maioria, porém, como eu, dormiu num salão do andar térreo, usando a inrretocável hospitalidade dos estudantes que estavam por ali apenas para tomar banho e usar os computadores. Mas nesse dia o pessoal não tomou banho: a parte que não ficou direto no bar esperando o


pessoal foi para o alojamento só para descarregar algumas coisas e ajeitar o lugar e rapidamento voltou para o show da noite. Eu fiquei. Tinha sono, estava cansado, precisava usar a internet com calma para escrever para o pessoal, dar os parabéns para uma pessoa querida: era dia 19 de janeiro. VI -DIA 3 : Protesto, Pequi e Picuinhas Nesse dia saí com tamanha pressa do alojamento que nem pude pegar minha carteira. Estava com o Eraldo conversando num dos apartamentos dos amigos calangos, comendo uma das mangas apanhadas do pé quando vimos o ônibus quase partir pela janela. Nem preciso dizer quem emprestou o dinheiro sem vacilar para aquele dia todo na rua. A manhã foi toda dedicada ao combinado com os índios no dia anterior: um ato protesto contra a ilegal remoção dos índios do território sagrado dos pajés. O lugar onde o protesto começou era algo como nunca tinha visto antes, do tipo que só em brasília mesmo se vê: uma espécie de Copan gigantesco, uma cidade de concreto vertical, sem ruas mas com tudo o mais: restaurante, becos, óticas, farmácias, empresas, escritórios, boates e aquela infinidades de cacarecos que um sujeito gosta de precisar quando vive em grandes cidades. Foi o atendente de uma loja de discos de rock'n'n roll pesado que usava uma cartola, a barba sinistra de um mago, anéis de caveira, casaco “sobretudo” e botas pretas, mas falava com a brandura de um monge (e sorria um sorriso banguela e infantil, simpático) quem me explicou: realmente haviam pessoas que não deixavam o enorme complexo de concreto para nada, e que até zona de prostituição tinha por ali. A imagem que me vinha era daquele filme “Blade Runner”, uma espécie de futurismo decadente, de muitos andares e muitas histórias e tanto concreto. Era o condomínio centro comercial boulevard, e conforme fiquei sabendo, como ele havia ainda pelo menos outro. O protesto começou numa praça ao lado desse centro, ao pé de um busto do Zumbi com os discursos do índio mais jovem e gritos de guerra puxados pelo pajé, sempre em algum dialeto indígena incompreensível mas muito sonoro e pleno de expressão. O pessoal acompanhava respondendo o coro e tocando maracas e chocalhos. Depois fui perguntar o que queria dizer uma das partes que mais gostara do coro e a resposta do pajé, taduzida pelo jovem índio foi a seguinte: é a língua do Grande Espírito. Choveu, fomos para baixo da marquise, parou de chover e tocamos de volta para o lado do busto, sempre ou com alguém discursando no megafone ou respondendo aos gritos do pajé. O discurso do jovem índio novamente cheio de ímpetos e razão, críticas ao prefeito, governador e especialmente ao vice-governador do distrito federal, o famigerado Paulo Otávio. O ponto alto mesmo, pra mim, foi vê-lo defendendo a constituição, citando mesmo seus artigos de cabeça contra as notórias e banais corrupções governamentais. Imaginem só: o índio, justamente aquele que tem todos os motivos para recusar submissão à nossa constituição tão europeizada em sua forma e conteúdo, tão cheia de piadas sem graça, tão intrusa em sua cultura quanto o primeiro português que pisou aqui, justamente o índio fazendo a defesa da nossa Constituição, acusando sua ficção. Índios semi-nus com penas e pés descalços de megafone em punho ensinando direito constitucional para os passantes engravatados, acusando as ilegalidades do governador: para mim, ao menos, era uma imagem curiosa. E foi justamente com esses índios que descemos pelo termina de ônibus, faixas em punho, cruzamndo a ponte de onde se vê o esplêndido palácio do planalto ladeado por fileira caríssima de


ministérios - Sempre seguidos de perto por um bando mau-encarado de policiais da tropa de choque -, que finalmente cheguamos de verdade ao planalto das negociatas, ao violentado projeto de lucio costa e niemeyer, à sede do sistema nervoso de nosso país. Findo o percurso, acalmados os gritos, demos as mãos em um círculo e nos despedimos de quem ficava. O pajé entrou no ônibus, fazendo de conta que seguiria conosco. Deixamos ele em um estacionamente perto da aldeia. Enquanto partíamos não tirei a cabeça da janela para ver até o fim aquele verdadeiro pajé, aquela figura anciã e misteriosa segurando sua maraca e acenando para o ônibus, calmamente acenando, até sumir no horizonte de concreto com a mão ainda erguida, amistosa, marcada, como a mão de Niemeyer, como a mão de um brasileiro. Alguns meses depois leio no jornal do CMI: o Korubo hoje desapareceu. O pessoal da empreiteira, claro, é suspeito e ninguém tem provas, ou se tem não se usa. E se usasse o juiz talvez mandasse enfiar. Digo, arquivar. Ou não, sei lá, tem gente boa pra cacete mesmo nesses meios mais improváveis. Acho que estou um pouco mais ácido que o normal... é que acabei de ver um boçal saindo impune depois de ter sido pego com a grana na cueca, ou na meia, sei lá. *** Havia fome. Meu café da manhã havia sido um pastel e um pingado ali mesmo no terminal de ônibus, pouco antes da passeata, e o do pessoal não havia sido muito melhor. Ah, sim! Comi também umas duas goiabas lá na universidade, logo pela manhã. Cortesia novamente do nego Eraldo, que logo pela manhã, fazendo coisas de sarapantar, já tinha descoberto uma goiabeira carregadinha das goiabas mais gostosas e madurinhas que se pode imaginar. Deu-me uma e a outra me ajudou a tirar direto do pé, segurando antes que caísse no chão para não precisar nem mesmo lavar. Nesse mesmo bosque ainda comeria, antes de partir, mangas docinhas e aprenderia com o nego que as menores mangas são mesmo, sem dúvida, as melhores, mais doces e com menos fiapos. Mas a atividade da tarde tinha sido completa, com chuva, gritos e marcha. A fome apertava, e o informe que rolava no ônibus era de que o pessoal do espaço pra onde rumávamos, em Taguatinga, tinha aprontado um rango especial para todos. Eu só não imaginava era que podia ser tão bom. O lugar era em Taguatinga, espaço autogestionado artístico e antenado mutirou, que ficava numa ruazinha incrível. Já na chegada o Eraldo detectou uma lutieria à moda antiga, com um mestre e vários outros trabalhadores, todos obedecendo ao mestre e confeccionando violões. Era mesmo uma coisa especial: o mestre tinha mais de 60, mas seus assistentes não ficavam para trás. Experiência o pessoal ali tinha, e muita hospitalidade para aguentar nosso enxame de curiosos no meio daquele dia tranquilo. E conversaríamos muito ainda com o pessoal do mutirou e com o pessoal da rua, mas antes de tudo, como na antiga grécia, foi encher o bucho. Eis o rango: strogonoff, arroz, berinjela, pequi e mandioca. O cozinheiro era um calango firmeza que ficou o tempo inteiro mexendo a berinjela numa panela de ferro bem ampla, sobre o fogo. Servi-me com satisfação, fui um dos últimos da fila mas ainda tinha comida de sobra para mim e para o repeteco de vários outros A comida estava mesmo boa. Mas curioso foi o que aconteceu com o tal do Pequi. Pequi é uma frutinha do tamanho de um caqui, amarelo também e com gosto de giló, do qual se come apenas uma fina camada que fica em volta do imenso caroço. Como não conhecia aquilo, porém, perguntei para o cozinheiro o que era e como comia. Ele me disse que era pequi e comia normal, mas que não podia morder a semente de jeito


nenhum porque dentro tinha espinhos. Eu disse que parecia pegadinha e perguntei se ele tinha avisado todo mundo. A resposta quem deu não foi ele. No mesmo instante ouvi um grito vindo da calçada, onde alguns comiam sentados conversando. Era a Maria anunciando sua língua dolorosamente cheia de espinhos de Pequi. Que doía aquilo tudo não precisava nem sentir para saber. Bastava ver as lágrimas nos olhos da pobrezinha e o tempo que demorou para tirarem aqueles espinhos todos da língua, bochecha, céu da boca, um por um, com uma pinça que também não foi fácil de encontrar. Só depois que fui descobrir um jeito mais simples de realizar aquela dolorosa tarefa, e quem me contou foi um bonequeiro (isso mesmo, fazia os mais incríveis bonecos para teatro e para quem precisar de bonecos de madeira com cabelo natural, movimentos ariculados, pequenos, grandes, enormes etc. Diz que atende encomendas no Brasil todo.). A dica era simples: farinha de mandioca, daquela grossa. Sujeito coloca a farinha na língua e vai rolando ela no céu da boca. Comi como um rei, sentado numa cadeirinha na frente da grande tela de projeções usada pelo pessoal do espaço para passar os filmes da videoteca, que eram dos melhores. The Corporation, um dos meus prediletos, estava lá entre eles. Num computador, enquanto terminava de comer e bebia um licorzinho de genipapo, o Renato se divertia com o pessoal passando umas tirinhas da mafalda que tinha encontrado na internet. Subi no andar de cima e lavei meu prato e talheres, e fiquei enxendo o pessoal pra que fizesse o mesmo. Claro que nem precisava, pois o cozinheiro já estava lá com a mão na massa, mas sabe como é... certos hábitos que se aprendem cedo são difíceis de largar. E como já dizia o Eraldo (e usava uma camiseta com o dito estampado): Gentileza gera gentileza. O nego, aliás, já estava sentado na calçada socializando novamente com o pessoal da terra, foi da janela da cozinha que o vi ao lado de uma morena tão maravilhosa que só podia estar casada e grávida, e de fato estava, bebendo umas cervejas e falando da vida, ou do trabalho do nego com os doidos, ou as três coisas juntas. Só sei que o papo tava bom e tive de ir lá, sob a gentil insistência do nosso Queequeg para que eu aceitasse uma das cervejas.

(Na estrada) Hoje, na via, grande parte do pessoal da nave adoeceu de indignação quando um guarda rodoviário mandou os motoristas pararem e exigiu uma certa soma para que pudéssemos seguir viagem. Os motoristas confirmaram que isso era prática comum por aquelas paragens, e eles já conheciam o mesmo oficial de outras cobranças; que era melhor “pagar e pronto”, senão era capaz de ele subir e querer autoridarizar o ônibus todo. Apesar do conselho dos experimentados motoristas, grande parte do povo alvoroçou, e recusavam tirar do bolso a pequena quantia (que se dividida daria uns dois cafezinhos pra cada), argumentando que embora a coisa não fosse cara, era altamente antiética, imoral, corrupta e coisas do gênero. Mas não havia tempo para argumento. Lançou-se logo a tese seguinte, que prevaleceu enfim: se nós levávamos conosco um certo cachimbo que não agradava ao patrulheiro, e não daríamoslhe o direito de contestar nosso caximbo, também não contestaríamos a prática do patrulheiro, não


pedindo que ele tolerasse em nós o que condenava, sem nele tolerar o que nos incomodava. Uma merda, eu sei. Mas uma merda mesmo: o que dá o direito de se quebrar algumas leis e outras não? Porquê um jovem quebra que proíbe de fumar maconha e se irrita quando um policial pede dinheiro, quebrando outra lei, para tolerar que ele fume maconha em paz? Usar maconha é uma contravenção menos antiética? Mas e os órfãos e fodidos pelo tráfico? É foda. E o patrulheiro era um outro fodido também. Sei que a juventude é que é época de idealismos, mas se é pra ser idealista de verdade, acho que o lance é partir pra cima da grande corrupção, não ficar arriscando pesado numa briga com uma pequena autoridade que, no fundo, é muito mais próxima de nós do que imaginamos. Um terceiro observador poderia dizer que ambos estavam errados, e que patrulheiro e caximbadores deveriam se dar mal, mas o fato é que éramos só nós, e algo precisava ser decidido. Aliás, éramos nós e os motoristas, que só faziam confirmar que aquilo de combrança era mesmo um costume daqueles lados. Costume condenável por costume condenável, absolvemo-nos os dois, que também não convém arrumar confusão em terra desconhecida por divergências sobre qual lei deve ou não ser cumprida. É uma merda. Mas se fosse para eu mentir sobre essas coisas escrevia um tratado sobre a moral logo de uma vez. Talvez devêssemos mesmo é ter oferecido o baseado logo pro seu guarda. Riscos altos, pensamentos pegajosos. Real politic. Maus ares chegando. A certa altura mudei de lugar no ônibus, sei lá por quê. Sei que fui parar do lado da Ana, dormi pensando em seu belo traseiro, que lembrava o de uma namorada antiga que eu tinha. Sabia que ela era lésbica, mas pensar não arranca pedaço. Acho. Sei que tive um pesadelo cabuloso quando adormeci, que até gravei com o celular high-tech, qualquer dia transcrevo. Enfim, mais um passo em direção à ruptura da Ponte Alta. PONTE ALTA Ponte Alta do Tocantins foi uma parada estranha. Acho que muita coisa da viagem desandou ali. Deve ser porque foi lá que o Eraldo decidiu se separar do ônibus. Não posso dizer que não foi uma separação bastante previsível; ele já estava puto com certos caras desde a primeira roda no Canil. Mas foi duro mesmo assim. Muito tempo depois ainda continuo falando pro Paulo que foi o grupo que, inconscientemente ou não, tinha feito ele explodir daquele jeito, e decidir se mandar sozinho pro Fórum. Se é que ele explodiu. Não vi. Paulo diz que enquanto ele falava com alguma funcionária pública sobre seus mirabolantes projetos com a energia e o carisma habituais o Eraldo se esforçava por interromper periodicamente pra dizer que era tudo balela. Pra ela não acreditar etc. Claro, pô, acabávamos de sair de brasília sem decidir porra nenhuma com os índios, nossos simplórios projetos rejeitados por inércia, e o Paulo botando pilha numas brisas que mais pareciam a salvação do mundo segundo seus instintos (o cara sabe assumir um lance de messias às vezes que é centralizador demais pra quem curte interagir, como é o caso do Eraldo e o meu). Isso aliado ao fato de o nego provavelmente ter se identificado com a funcionária pública, como ele também é. Gosto do Paulo, jovem de atitude, mas não dá pra dizer que o Eraldo foi uma explosão espontânea ou caprichosa. Se for falar ainda da mala sem alça do Renato enchendo o saco, como com certeza estava, aí era capaz de se eu estivesse junto cair na discussão também. Nada contra a perspectiva umbigo do mundo, que no fundo é um pouco a de todos nós, mas quando ela acarreta injustiças dá no saco. E quando acarreta a perda de um amigo... é melhor mudar de assunto. Nem estava lá, pô. Nem vi. Às vezes acho que é carma de artista ser um bocado insensível com a arte alheia, defensivo, bobão. Também fui um pouco,


nessa situação, à minha maneira. Pois digo: Sei lá o que aconteceu, que enquanto rolava a coisa toda eu estava apertando – vejam só que coisa bucólica – a atirada da filha do treinador de futebol do time da cidade atrás da igrejinha da praça – vejam só que clichê. Sei lá se eu queria afirmar minha independência do grupo, se estava só de saco cheio... apaixonado pela filha do treinador posso dizer que não estava. Às vezes sou um babaca, já disse. Ela se aproximou daquele jeito que só lembro de ter visto no colégio, dizendo que a amiga dela tinha ficado afim de mim, e num sei o quê. Em meia hora estávamos lá; eu imaginando algum jeito de tirar a calcinha dela por baixo do vestido de margarida e ela dando voltas em mim com algum papo besta para o tempo passar. Eu também ia falando algumas quaisquer bobagens. Ela esquivava e esquivava enquanto aos poucos ia passando por ali, meio desinteressado, o povo todo da cidade, para poder dar uma espiada no que a menina e eu aprontávamos. Depois que percebi que ela estava mesmo é numa brisa meio glamour-voyer, de mostrar que era poderosa com o extrangeiro extravagante, e que se o pai dela passasse por ali ia dar xabu, levei a menina até a escolinha onde estávamos hospedados. Não tinha muita esperança dela entrar, e não entrou mesmo. Acho que foi correndo pra casa telefonar para as amigas e contar de sua nova conquista. Até acompanhei ela ao portão – ou melhor, até a esquina do portão, para o pai dela não desconfiar -, e ela se mandou rapidinho. Uma pena; se não estivesse tão preocupada em impressionar os outros, ou em parecer sei lá o quê talvez tivesse sido capaz de SE impressionar um pouco, viver alguma aventura nova. Nem precisávamos ter transado nem nada, claro. Bastava que ela estivesse ali comigo de verdade que na certa alguma coisa mais bacana teria acontecido. Tínhamos tanto para aprender um com o outro... enfim, ficamos naquele jogo tonto até altas horas da manhã e saí com a impressão de que nem tinha conhecido ninguém. Mas e eu? Estava também ali? Não devia estar com meus companheiros de viagem, talvez intervindo pelo Eraldo, impedindo sua partida? Não dá pra dizer que foi um feliz encontro. Se eu for considerar o drama de Nausícaa então, aí vou ter que lembrar do papo com a rapazeada do chalé... mas estamos ainda na frente daquele portãozinho simpático ao pé do qual meu coleguinha me fará, a mim e ao André, no dia seguinte um tour pelas espécies nativas de plantas. O portãozinho de ferro da escola estava trancado, e como parecia que todo mundo estava já dormindo resolvi pular o muro, que não era alto. Pouco tempo depois escutaria o resto do pessoal fazer o mesmo. A maioria ainda estava na rua, conversando, bebendo, brigando como Eraldo. Revés. Mas como foi mesmo estranha a experiência na cidade... Muita coisa aconteceu antes dessa noite, e comecei a contar praticamente do meio. Voltaremos à esses momentos decisivos, mas antes vale a pena contar o que aconteceu nesse dia. *** Quando chegamos na cidade, a primeira coisa foi encontrar nossa hospedagem: uma escola de crianças que ainda estavam terminando as aulas do dia quando chegamos. Nem preciso dizer que foi


muito fácil encontrar nossos quartos que em brasília, mas as acomodações não eram muito luxuosas. Quem não tinha colchão inflável, ou não curtia dormir no chão teria problemas... eu encontrei um espaço para o meu saco de dormir e ergui os olhos. Era uma sala de aulas com algumas lições da inicial alfabetização ainda no quadro negro. Pelas paredes diversas figuras, uma para cada letra do alfabeto. Para B, se não me engano, era o Buriti. ACABOU O FSM: Dia 0 da parte II Amanheci para ver o que havia restado naquele terreno irregular, naquelas valas tão cheias de lama, mato, aranhas e, até ontem, barracas. Mas não hoje. Hoje, manhã é de silêncio e vazio, exclamações incompreesíveis vindas de longe, os pássaros enfim se fazendo ouvir. Saio da barraca e vejo por perto apenas a tenda do Zé Leo e da Maria. Os postes que até ontem sustentava nosso teto ainda estavam lá também, e mais nada. Só muito ao longe despontam outras tendas solitárias, esporádicos acampantes, caminhando com toalhas do banho matinal ou a escova de dentes em mãos, ou um café para despertar os ânimos. Não há tristeza, apenas a evidência do fim, e um certo sentimento de vitória dos que ficaram; um desbravar, o gosto de ter resistido até agora. Gostaria, é claro, de ter aquela trupe tão querida para conversar. Gostaria de olhar para a cara tragicômica matinal do nosso fotógrafo André, que a essas horas já estaria provavelmente ralhando a seu modo e amaldiçoando a chuva que molhava sua barraca, ou alguma aranha gigantesca a visitar-lhe durante a noite. Gostaria de ver o Eraldo, agitando o café da manhã, cheio de ditados malucos, animação e fome. Mas o Eraldo já nos deixou há tempos, e os cães também, e as francesas, e... enfim, e o FSM acabou. E desde há muito que o Eraldo não nos acompanha. E desde ontem que o André, junto com todos, estão já na estrada novamente, fazendo música, contando casos, gritando, voando por entre os imensos campos e descampos desse nosso imenso país. Quase todos, na verdade. Na barraca da frente ainda aqui estão Maria e o Zé. Mas não por muito tempo. Hoje partimos também, eu para o norte, eles para oeste. Estarei sozinho depois de tanto tempo, na estrada, enfim, como eu gosto. Sem discussões de grupo, jogos de interesse, vaidades, medos, esses efeitos colaterais todos que acompanham a maioria das associações humanas. Não todos que embarcaram naquele mesmo ônibus de volta para São Paulo, aquele ônibus onde por 9 dias vimos Adão e Luciano se revezando no volante, dormindo no bagageiro, consertando o espelho, sendo multados pelo guarda em brasília, extorquidos por um outro em Tocantins. Aquele ônibus que estivera conosco em lugares que há 10 dias eu seria incapaz de sequer imaginar. E por dez dias estivemos juntos na viagem, mas agora não mais. Os que não estão na estrada rumo a São Paulo, estão na estrada rumo a um outro lugar. Também de volta na estrada, ou melhor, de volta na via, estaremos nós que por hoje restamos aqui. Eles para o coração da amazônia, eu para a ilha de Marajó, ambos de barco. Essa parte do norte não precisa de asfalto, e nem mesmo Belém precisaria de tantas ruas. Lembro do meu antigo professor de geografia, o Mauro, destacando o absurdo que o lobby das montadoras conseguiram fazer na nossa estratégia nacional de transportes. JK não se safava dessa, sendo ele um dos grandes parceiros da construção das tais estradas de petróleo e para petróleo e máquinas a explosão.


Desfiz minha barraca sem grandes dificuldades, depois de escovar os dentes e lamentar que não havia ninguém mais naquele acampamento para vender um desjejum decente. Nem indecente. Dobrei a lona azul que servia-me de teto (a barraca não aguentava chuva, então precisava de alguma cobertura adicional) com o pensamento fixo no misto quente da simpática família que morava bem de frente ao campus onde era o acampamento. Zé e Maria arrumavam suas coisas também, ágeis mas sem pressa. Nossos violões calados encostados no poste davam o tom daquele momento, daquela falta que nos cercava. Eles não eram muito de jogar conversa fora, e nem eu. Dividimos o que havia ficado para trás; eu fiquei com uma grande tesoura e as cordas que sobraram das lonas. A tesoura foi mesmo muito útil nas aventuras que seguiram. Eles terminaram antes as arrumações e decidiram me esperar, planejando como chegariam ao terminal fluvial de onde sairia o barco que os levaria rumo à Santarém. Amarrei a lona, agarrei minhas malas e partimos rumo ao portão principal. Pela primeira vez em toda viagem senti pra valer que levava peso demais, e em malas demais. Pela primeira vez não tinha um ônibus fretado me esperando, ia seguir a pé por Belém, e de lá para Marajó, e de Marajó adiante. Com aquele peso, o caminho até o portão já parecia longe. Chegamos finalmente no ponto de ônibus, e tomei a primeira decisão errada do dia. Nada como pensar de barriga vazia.

Listas de preços São Luis do Maranhão Hora na internet (em média, no centro histórico) : R$ 2,00 Diária no Hostel Solar das Pedras: R$ 17,00 (com carteirinha) Mocotó no mercado central: R$ 7,00 Prato Feito no “Crioula”(rua do reviver): R$ 5,00 Kilo no Dom Francisco (rua da Pça do Tambor de Crioula): 19,99 Cachaça seleta na pizzaria (em frente à Pça do Tambor de Crioula): R$ 3,00 Entrada na casa de Reggae “Chama-maré”: R$ 8,00 Cerveja 600ml na rua: R$ 3,50 Bohemia longneck no “Antigamente”: R$ 3,80 Passagem para Teresina: 38 Passagem para Recife: 185 Passagem de ônibus: 1,70 Camiseta de São Luis: 12,00 15 ovos de codorna no quiosque da praia de São Marcos: R$ 3,00


Belém do Pará Frutas no Ver-o-Peso: Rambutam: R$ 3,00/Kg Mangustão: R$ 0,60/unidade Pitaia: R$ 5,00/unidade Peixe com açaí no Ver-o-Peso


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