Sangrias, de María Antonella Barone e Beatriz de Barros (orgs.)

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Sangrias


MarĂ­a Antonella Barone e Beatriz de Barros (orgs.)

Sangrias

Editora Pedregulho


Copyright © 2019, María Antonella Barone e Beatriz de Barros Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissão expressa e por escrito das organizadoras ou da editora.

Produção editorial, projeto gráfico, preparação, editoração eletrônica MARÍLIA CARREIRO Ilustração de capa VALERIA CARBAJAL Revisão MARÍA ANTONELLA BARONE e BEATRIZ DE BARROS

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (Bibliotecária responsável: Bruna Heller – CRB 10/2348) S226

Sangrias / María Antonella Barone, Beatriz de Barros (org.). – Vitória: Pedregulho, 2019. 230 p. ; 15x21cm.

ISBN 978-85-67678-40-5

1. Literatura brasileira. 2. Literatura argentina. I. Barone, María Antonella. II. Barros, Beatriz de.

CDU 82(81)(82)

Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura 82 | 2. Brasil (81) | 3. Argentina (82)

Os textos escritos em Língua Portuguesa deste livro seguem as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 1º de janeiro de 2009.


"(...) reconocemos que el aborto no es una experiencia que solo atañe a las mujeres. La capacidad de gestar y por ende de abortar también involucra a otras corporalidades y formas de vivir el género." Ruth Zurbriggen, Nayla Vacarezza, Graciela Alonso, Belén Grosso, María Trpin. El aborto con medicamentos en el segundo trimestre de embarazo. Una investigación socorrista feminista. 2018.


Agradecimientos A versão digital desta obra foi produto de um financiamento coletivo na plataforma Benfeitoria, realizado entre janeiro e fevereiro de 2019. Mais de setenta pessoas colaboraram com essa iniciativa lançada junto com a Pedregulho Editora que, embora não tenha atingido o valor mínimo para a edição impressa, foi essencial para cobrir o e-book, disponível para download gratuito na página: www.editorapedregulho.com.br. Nossos primeiros agradecimentos, portanto, são dedicados à editora Marília Carreiro pelo trabalho junto às mais de quarenta pessoas autoras aqui reunidas para falar sobre aborto. Por onde quer que vá ser impresso, Sangrias estará sempre contigo. Agradecemos, ainda, ao Grupo de Estudos sobre Aborto (GEA), linha de pesquisa pertencente ao GEPSs (Grupo de estudos e Pesquisas em Sexualidades) do Centro de Educação (CE) da Universidade Federal do Espirito Santo (UFES), com o qual compomos formas outras de pensar e sentir o debate sobre o aborto, não só a partir de produções ditas acadêmicas, senão nas trocas e na polifonia que, nas singularidades, produzem um comum. Gostaríamos de agradecer a todas as pessoas implicadas no processo de produção desta obra que, nas mais diversas práticas de cuidado com as organizadoras, possibilitaram que hoje Sangrias esteja em circulação. A vocês, GRATIDÃO. Um imenso GRACIAS, também, a todas aquelas pessoas que se mobilizaram para viabilizar os recursos que precisamos para a elaboração com o financiamento coletivo, sem suas colaborações, não seria possível tamanho projeto. Esta é uma obra feita a muitas mãos, que não só escreveram nestas páginas, senão que formam parte dos mais diversos processos que insistiram em nos colocar numa tarefa de criação e aqui estamos, |5|


juntes. Não andamos sós! Vocês estão de PARABÉNS por ter feito Sangrias possível. MUCHAS GRACIAS!

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Apresentación? Escribimos varios cuerpos, en varias lenguas, diferentes idiomas, misturas, mezclas que se hacen sentir en la producción de Sangrías. Por eso decimos “apresentación”, y aún no sabemos decir (tal vez ni haga falta) si conseguimos “apresentar” este proyecto, porque sentimos que nos transborda. Nos transborda como organizadoras y como autoras, no cabe em nós, nem precisa caber. Não sem dores, así se apresenta um projeto que nomeamos Sangrías: escritas sobre aborto que foram gestadas e paridas junto com muites outres. Sangrías no es un libro. Sangrías es un vehículo, un medio, una forma de poner a circular otras sensibilidades en relación a la práctica abortiva. Es así que te invitamos a dejarte permear por histórias y estórias que vibran en este texto que tenés ahora em mãos y que nos permiten uma abertura a formas otras de experimentar, sentir y pensar el aborto. Talvez, e felizmente, questionarão: “é muito fácil que duas mulheres brancas, de classe média possam pensar num projeto como esse, tendo a possibilidade de fazer uma pós numa universidade federal”. Cientes de ser privilegiadas neste processo, estudando numa instituição de supremacia branca-eurocêntrica, num espaço cercado com grades e cadeados, onde dá para sentir um “dentro” e um “fora” nesta academia que se diz pública, mas é cheia de práticas “privadas”, fazemos o exercício de re-pensar o tempo inteiro: o que a gente faz com esse privilégio? A nosso ver, co-criamos. Sangrias é uma proposta de aliança. Nos sumamos a los esfuerzos de las luchas que nos anteceden. Nos colocamos “na pista”, ejercitamos una escucha activa y sensible que nos torna permeables para las críticas y creemos poder así, questionar juntes las estructuras de funcionamiento blancas y coloniales. Nos |7|


colocamos en ejercicio de cuestionamientos de nuestras propias prácticas como una responsabilidad que se torna colectiva, confiando, de esa forma, que nuestras fuerzas pueden sumarse, de alguna manera, a las que, históricamente, sangraron en luchas y resistencias para que estudar e abortar, por exemplo, deixem de ser privilégios. Desde a concepção, passando pelo financiamento e pela publicação, não estivemos nunca sozinhas. Gestamos coletivamente, parimos irmanades y abortamos en manada. Nestas escritas, comparecen diferentes vozes que, en devires aborteiros, crean juntas un texto polifônico, donde se misturan poesias, contos, pinturas e desenhos que nos abren la posibilidad de crear formas otras de escucha de las narrativas sobre aborto. Sangrias coloca-nos na tarefa de descubrir as práticas coloniais, a possibilidade de reconhecer os privilegios e trabalhar para des-andaros. Não desconhecemos que nesta estrutura, temos a labor de partir desde uma crítica de cómo colocamos em pauta o aborto e como se dá o processo de interpretação do que tem sido produzido desde o pensamento dominante. É por isso que estamos atentas para não cair em atualizadas armadilhas que tentam, de alguma maneira, abordar a prática desde um único olhar. Sangrias é uma proposta que pretende criar espaços de encontros que possibilitem a polifonía própria das pluralidades de experiências em relação ao aborto. Sangrías se gesta en un hartazgo, demasiado e atual. Sangramos hartas, fartas de hipocrisia, de tudo o que têm nos ensinado. De tudo o que, numa história única, fizeram nos acreditar. Fartas de viver numa jerarquia de vidas que valem mais e vidas que são mortas e ou deixadas à morte. Fartas de cada comentário, cada brecha criada pelas marcas coloniais. Fartas da produção de morte com a produção de criminalidade. Fartas destas estruturas donde la sangre que se derrama nos recuerda de las vidas que valen menos en este mundo desigual. |8|


Sangrías faz uma proposta de um grito plural, donde es posible rescatar algunas narrativas ensangrentadas que encuentran en las pinturas, en las poesías, en las fotografías, en los cuentos, un otro modo de expresarse. Nos importamos. Unimos nuestra voz a las que, incansavel e inconformadamente, reivindican, de forma colectiva, um mundo mais vivível. Essa estética encuentra alianzas con la política, sea en los modos de colectivizar los afectos de las experiencias por medio de la creación, sea en los encuentros potentes que posibilitam un ejercício de escucha de las narrativas, cada uma com sua história de resistências e/ou de sobrevivências. Sangrías se propone como multiplicador de debates sobre aborto no solo en Espirito Santo, sino en diálogos no contexto latino-americano. Como organizadoras, nos propusimos en este proceso, coser redes para sumarnos en la disputa de narrativas en relación al aborto, donde aún prima la hipocresía a la hora de abordar la temática. El texto que tenés en manos versa en español y portugués porque reúne autores y autoras de Argentina, Brasil, Venezuela, Honduras. Cuenta historias que se conectan con otras historias que versan multiplicidades y llaman nuestra atención para escuchar las singularidades en relación a las prácticas abortivas, acolher las diferencias, implicarnos y conectarnos con ellas. En Sangrías, mujeres trans y hombres cis dialogan con mujeres cis en un grito polifónico que se dispone a la disputa de los sentidos del aborto en nuestra sociedad. Es así que abrimos la posibilidad de afirmar juntes que, no necesariamente los abortos realizados de forma clandestina son inseguros. Es la producción de criminalidad, sobretodo en relación a los cuerpos racializados y empobrecidos, lo que torna el aborto una práctica insegura. Es la producción de criminalidad lo que dificulta el acceso a la práctica en condiciones de cuidado y seguridad. Insistimos: es la producción de criminalidad lo que produce ecenários de muerte. Y nuestras vidas importan! Por eso sangramos multitud en medio de silencios que ensurdecen y gritos plurales de inconformidad. |9|


Sangrías es solamente un humilde vehículo para que mais vida seja produzida en relación al aborto. Es así que este proyecto no termina con la escrita y la publicación, sino que continúa generando oportunidades de trocas y encuentros potentes, cosiendo redes para perpetuar las conversas e para que mais vidas sejam vistas, vividas e ouvidas. María Antonella Barone e Beatriz de Barros Souza Vitória, 2019

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Sumário Sangrias: pacto de sangue, de Emanuelle Aduni Goes | 14 Poesía y aborto: brevísimas notas, de Cristina Gutiérrez Leal | 15 sangue que singra, de Maria Amélia Dalvi | 20 Ficções, fabulações e rememorações de corpos que, sangrando juntos, dizem: “ninguém solta a mão de ninguém”, de Alexsandro Rodrigues & Ileana Wenetz | 21 El palpitar de los abortos, de Ruth Zurbriggen | 35 Legalização do aborto com enfrentamento ao racismo: as mulheres negras querem justiça reprodutiva, de Emanuelle Aduni Goes | 39 O Sangrar das Mulheres, de Paula Rita Bacellar Gonzaga | 50 La desobediencia como recuperación de nuestro cuerpo, de Carmen Hernández | 54 E eu, que não posso parir, entendo seu direito de não fazê-lo, de Alessandra Pin Ferraz | 58 meu avô pegando banana do cacho, de Cibele Bitencourt Silva & Débora Laís Silva de Oliveira | 62 La marea, de Lilian Alicia Ortiz | 64 Imperativo da vontade, de Ana Sophia Brioschi Santos | 67 Da passividade à crítica, de Nathália Cravo Soares Martins | 69 Reza, de Tamyres Batista Costa | 70 Gritaram-nos bruxas, santas, mães, loucas, aborteiras… Nós gritamos livres!, de Aline Gomes Tavares Matias | 73 Ladainha das Finadas do aborto, de Finadas do aborto | 81 Sem título, de As Finadas do Aborto | 83 Sem título, de Ivana Bazán | 84 Sem título, de Ivana Bazán | 84 Pañuelos verdes, de Ivana Bazán | 85 Agitando pañuelos, de Ivana Bazán | 85


Abortamos la autoridad, de Fiorella Barone | 86 Her-manadas en lucha, de Fiorella Barone | 86 Libres nos queremos, de Fiorella Barone | 87 Tinto 2, de Valeria Carbajal | 88 Somos todas clandestinas: a realidade do aborto no Brasil e a vida das mulheres, de Janine Oliveira | 89 O útero tomado de assalto, de Emmanuel Theumer | 94 Essa trama que é o aborto. Desenredando sentidos e tecendo lutas, de Leticia Alves Maione | 98 Palavras na justiça, de Lisandra Moreira | 102 Deseo ventana, de Florencia Sueldo | 105 “Cadê? Me dá os comprimidos que eu vou tomar”: a história de Nega, de Nathália Diórgenes | 106 Mais amor, de Vander Costa | 111 Processo e Estado democrático de Direito: a importância da judicialização na efetivação da dignidade sexual e reprodutiva feminina, de Thays Conceição Cabidelli da Silva | 113 Papaya sem açúcar, de Bia de Barros | 117 Eso que cuelga de las mochilas, de Gianella Barone & Bianca Gargiulo | 118 Ideias e desavenças em famílias cristãs sobre o aborto, de Brunela Vieira de Vincenzi | 124 Um espelho de duas faces: entre ser ou não ser mãe, de Janaína Silva | 126 Prática do aborto e ARTivismo: algumas narrativas ensanguentadas, infames e criativas, de María Antonella Barone Guzmán | 154 A verdadeira anomalia: o aborto enquanto crime no Brasil, de Mirela Marin Morgante | 172 Semente da Discórdia, de Ângela Vieira | 176 Historias reales: Aborto legal es justicia social, de Maria Andrea Quiroga | 177 Corte de Navalha Cega no Homenzinho: a posse estatal-médica do corpo da mulher e a possibilidade de multiplicar outros modos de vida, de Fernando Yonezawa | 179


Ser mulher no Brasil nunca foi tarefa amena, de Jessica Bragio | 190 Traço em mim aquele primeiro toque, de Sarah Vervloet | 193 o que há dentro de mim não é um você, de Cibely Zenari | 195 No está mal ser mi dueña otra vez, de Nair Allende | 199 Uma vida em risco: a violência do Estado e o impedimento legal do aborto em caso de má formação fetal, de Marcelle Souza | 203 a natureza mãe rainha de todos os ventres, vermes e contradições, de Marília Carreiro | 206 Sem título, de Wayne Ribeiro | 207 A Semente, de Débora Laís DL | 211 Nossos corpos não são, de Sandra Muñoz | 213 Parimos y abortamos, de Florencia Sueldo | 215

Autorías | 216


Sangrias: pacto de sangue Emanuelle Aduni Goes

Uma sangra e vem outra No terreiro, no convento, na escola Entre nós A ciência diz São os hormônios Sincronia do ciclo menstrual Ancestralidade feminina, digo eu Pacto de sangue Coisa de bruxas Digo mais Sangrias sem cortes Dispensa, o que transborda Como a lua cheia que míngua As marés em seus ritmos Indolor, nem sempre Entre gotas e cachoeiras Continuamos vivas

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Poesía y aborto: brevísimas notas Cristina Gutiérrez Leal

embarazo De embarazar. 1. m. Impedimento, dificultad, obstáculo. 2. m. Estado en que se halla la mujer gestante. Diccionario de la Real Academia Española

Siguiendo el epígrafe que decidí utilizar para este texto, es evidente que incluso para las instituciones de supervisión/vigilancia del uso de la lengua, la palabra embarazo tiene varias connotaciones, una, digamos, a nivel biológico, y otra, simbólica-comportamental. Sin embargo, cuando biológicamente estamos embarazadas, gestando, ¿no interpela también esa otra definición, para definirnos también, impedidas, dificultadas, obstaculizadas? El lenguaje en todas sus manifestaciones es un acto político, sabemos con Bakhtin. Y si las discusiones sobre el aborto han logrado, en algunos países latinoamericanos, descolocar congresos y parlamentos ha sido precisamente porque ya hay una narrativa construida en la sociedad que permite alcanzar los estados del poder público con objetivos claros y articulados. Pero esas construcciones discursivas que calan en la sociedad organizada regularmente tienen el arte y sus soportes la representación — problematizadora, siempre — para estudiar sus orígenes y modos de articulación. La poesía es una de las formas que el arte tiene para hacerse cargo de algunos temas que están aún vedados por un manto de moralidad y | 15 |


censura producto de nuestra formación judeocristiana, castigadora de mujeres. En este corto texto traigo a los ojos lectores cuatro poemas de cuatro escritoras venezolanas –Venezuela, donde la discusión sobre el aborto legal está lejos de ser una prioridad en el panorama políticoque a través del lenguaje poético dan cuenta de las subjetividades complejas implicadas en el proceso de gestación, y el aborto. Quisiera empezar con una de nuestras voces más representativas. La de Yolanda Pantin, que en su libro Correo del corazón incorpora un poema llamado “Vitral de mujer sola”, aquí un fragmento: Si tienen hijos hacen de madres Son tiernas y delicadas Aunque muchas veces se alteren Un pensamiento recurrente es Ya no puedo ni un minuto más (1995:181) Porque para hablar de aborto es necesario hablar de maternidad, esa noción tan edulcorada por la cultura patriarcal y ya exhaustivamente estudiada por el pensamiento feminista, en el cual, en mayor o menor radicalismo, se ha dicho que es sobre todo una construcción cultural que tiene, por lo menos en Occidente, varios arquetipos — la virgen María, uno de los más fuertes — que refuerzan un modelo específico de maternidad negando sus zonas opacas. En este poema de Pantin, esas zonas son iluminadas sin negar el lado amable de ser madres “tiernas y delicadas”, la poeta hace énfasis en el hecho del cansancio irremediable, y la tendencia al declinio de quienes llevan sobre ellas el peso de una vida además de la suya. Es un grito desde a la poesía a una sociedad que le grita a las mujeres “tienes que ser buena –abnegada, sacrificada, anulada, dulce, perfecta, asexual- madre”, mientras en el poema, espacio emancipatorio, está claro que “ya no puedo ni un minuto más”. | 16 |


María Auxiliadora Álvarez es otra voz venezolana que convoca una rica reflexión sobre el asunto en Caza/Cuerpo. usted nunca ha parido no conoce el filo de los machetes no ha sentido las culebras de río (…) doctor no meta la mano tan adentro que ahí tengo los machetes que tengo una niña dormida y usted nunca ha pasado una noche en la culebra usted no conoce el río (1993:19) La relación biopolítica del cuerpo con una de las facciones más poderosas de la sociedad, esto es la atención de salud, también llega a nuestros ojos a través de una poesía que no ahorra escrúpulos para señalar la galla médica, o la herida abierta que es la atención médica despersonalizadora. Los convocados en este poema son precisamente médicos hombres que son legitimados como autoridad-deidad para referirse a los temas como maternidad y el modo que las mujeres hemos de afrontarlo. “Usted nunca ha pasado/ una noche en la culebra” revela explícitamente la distancia el doctor, que en este caso puede leerse como representando un sistema de atención médica, y la paciente mujer, expuesta a manos que entran demasiado adentro donde “tengo los machetes/ que tengo una niña dormida”; una zona que, en el poema, se desea denegada a su contacto. El modo simbólico que Álvarez utiliza para referirse a su posible hija dice mucho: filo de machetes, culebras de río. En un análisis rápido, inmediato y superficial, hijo, podríamos decir, es a la vez fluido y filo, corriente y herida. | 17 |


Entonces, en esta secuencia de reflexiones sobre el cuerpo de mujer y la maternidad traigo ahora un poema de Maritza Jimenez donde explícitamente trabaja con el tema de aborto, como sangre salió y en mi cuerpo dormía al despertar yo bailaba bailaba mi nueva libertad lloro y confieso y sobre el cuál propongo pensar con tres claves de lectura: la no incorporación de la palabra hijo/a, sino, en sustitución, la metáfora de sangre saliendo (¿quizás como resistiéndose a todo lo que políticamente implica “hijo”?); el uso del verbo despertar, quizás haciendo referencia a dos posibles escenarios en el poema: o el sueño o la anestesia clínica, en cualquier caso sugiere la gravidez como un estado de reposo incómodo, del cual al despertar solo se experimenta la libertad; y esta sería la tercera llave: la libertad de dejar la sangre fluir, y el poema lo configura a través del baile, el llanto y la confesión. Este última, vocablo circunscrito al ambiente judicial o católico, permite leer el poema casi como una suerte de manifiesto sin mea culpa: lo hice, y bailo de felicidad. Gina Saraceni con el poema que presento a continuación trabaja con la relación lenguaje poético y política: El hijo no nacido reclama un lugar en la palabra, Una letra que ocupe el espacio de la falta. (…) Que el poema diga el peso de su ausencia | 18 |


La sangre más secreta La que corre fuera de las venas (50). Y cierro esta breve presentación de poesía venezolana con este poema pues lo considero idóneo en un momento donde parece que la llegada al poder de facciones conservadoras silencian los espacios de disenso, espacios que son necesario iluminar, como el arte, en este caso, como la poesía, tal vez no siempre como resistencia sino como puesta en escena, constancia de hecho, único soporte de los “temas difíciles”; la genealogía rota por un hijo ausente encuentra cuerpo en la poesía, desde donde, esperamos, de el salto hacia la sociedad. Referencias bibliográficas Álvarez, María A. Ca(z)a/Cuerpo. Caracas: Fundarte, 1993. Miranda, J. Poesía en el espejo. Estudio y antología de la nueva lírica femenina venezolana (1970-1994). Caracas: Fundarte, 1995.

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sangue que singra Maria Amélia Dalvi

o broto sem a planta não é planta a faísca entre pedras não é fogo um baralho na gaveta não é jogo não module a melodia por sua pauta o meu corpo se desenha na minha tinta se acolho o acaso ou a planilha eu defino o que quero nesta senda onde eu pise, essa regra me persiga: é meu corpo, minha escolha minha vida

[Vitória, primavera de 2018]

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Ficções, fabulações e rememorações de corpos que, sangrando juntos, dizem: “ninguém solta a mão de ninguém” Alexsandro Rodrigues & Ileana Wenetz

Introdução Aviso: Este ensaio não busca nada ensinar! Ele não tem moral da história, não segue os protocolos metodológicos dos considerados textos sérios da academia e não se faz com as costumeiras conclusões carregadas de juízo de valor. A escrita que aqui comparece foi produzida por agenciamentos afetivos. Intenciona apenas fazer conversar imagens de experiências que não se prestam a ser capturadas nem nas biopolíticas nem nas estatísticas que fazem funcionar desejos de políticas públicas no governo da população, que definem quais vidas podem ser dignas de serem enlutadas. Ainda que nada pretenda ensinar, o ensaio se coloca como modos de crítica à necropolítica cotidiana que ronda corpos impregnados de histórias que não se contam a qualquer um.

O exercício desta escrita acontece em afecções com o presente, em alianças com corpos que sangram — que dizem não aos discursos de verdade e ao sabor de aparecimentos de cenas nada reais de imagens que pululam os processos subjetivos que as constituem em coisas narradas, porque vividas. Os riscos que comportam as marcas desta escrita, em sua urgência e emergência, porque implicada com corpos e vidas que profanam o sagrado, não passam de invenções e fabulações de cenas irreais, e que por ser o que são, tornam-se demasiadamente reais. Cenas catadas em rodas de conversas entre pessoas que se | 21 |


querem bem e do ouvir dizer entre aquelas e aqueles que importam. Mas não só. Estas cenas e imagens podem ser encontradas onde quer que as desejemos encontrá-las. Podem ser encontradas em páginas de livros, em cenas de filmes, em obras de artes, em performances dos que não se cansam de reivindicar o direito de decidir e em coletivos que se formam onde as condições e as redes de solidariedades as permitem. Estas cenas se espraiam no aconchego de nossos lares, no mundo do trabalho, nas igrejas, nos coletivos urbanos, em praças das cidades e nas ruas. Se tem olhos de ver e ouvidos bons de escuta, preste atenção! Informamos que este texto está cerzido com restos de aprendizagens ancestrais, produzidas com práticas e saberes de corpos que se reinventam em sua capacidade biófila ao resistir as práticas necrófilas, a gestação, a maternagem e paternagem. Paternagem por que? Homens também engravidam. Não podemos esquecer. Gepeto, criador de Pinóquio, já nos ensinara sobre a condição de corpos e desejos homens em engravidar. É um texto escrito ao sabor de acontecimentos possíveis em lampejos de memórias, com presenças fugazes que manipulam o aparecimento como estratégia de composições bonitas a partir da dororidade/sororidade que nos unem com aquilo que se mantém como segredo entre os corpos que sangram. Como não intencionamos nada ensinar com este ensaio, manteremos a escrita como conversa entre amigos que se querem bem e que em exercícios de coragem, diante corpos que sangrando juntos - não soltam, pelo tempo que for preciso as mãos uns dos outros. As conversas, histórias e narrativas, muito nos interessam, uma vez que compreendemos que somos feitos e des-feitos em conversas ácidas com cheiro de sangue, que gostamos, porque precisamos, contar e (re) contar. Temos aprendido com Jorge Larrosa, que: .... nunca se sabe aonde uma conversa pode levar... uma conversa não é algo que se faça, mas algo no que se entra... e, ao entrar nela, pode-se ir aonde | 22 |


não havia sido previsto... e essa é a maravilha da conversa.... que, nela, pode se chegar a dizer o que não queria dizer, o que não sabia dizer... E, mais ainda, o valor de uma conversa não está no fato de que no final se chegue ou não a um acordo... pelo contrário, uma conversa está cheia de diferenças e a arte da conversa consiste em sustentar a tensão entre as diferenças... mantendo-as e não as dissolvendo... e mantendo também as dúvidas, as perplexidades, as interrogações ... e isso é o que a faz interessante... por isso, em uma conversa não existe nunca a última palavra ... por isso uma conversa pode manter as dúvidas até o final, porém cada vez mais afinadas, mais sensíveis, mais conscientes de si mesmas... por isso uma conversa não termina, simplesmente se interrompe... e muda para outra coisa... (Jorge Larrosa: 2003)

Nesta conversa, onde um ponto é acrescido de mais um ponto, cenas de encontros com corpos que sangrando juntos, dizem em dororidade não à gestação como obrigação de gestar e de portar a maternagem/paternagem como obrigação. Avisado e avisada, nos colocamos em riscos com o que se implica aos sangrarmos juntos, lhe fazemos um convite! Entre nesta roda conversante e aliançando esperanças, nos ajude a mantermos as condições possíveis para que a vida possa florescer na reivindicação legítima do nosso direito de decidir e de nos narrar.

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Feitiçaria na encruzilhada de nossos quintais: narrativas de mais de um As rodas de conversas de pessoas em alianças que se reconhecem nas linhas das histórias de dor que produzem um comum são condição existencial de um mundo feito em alianças afetivas de pessoas que se querem bem e que por se importarem com o que se conhece de perto e, com corpo que não pode sangrar sozinho, faz coro às reivindicações de práticas que tomam para si, porque donas de si, a condição que não está dada como destino do corpo que sangra, em gestar. Como muitos de nós, os autores deste texto, humanizavam-se com outros e outras, num mundo pequeno, feito de mulheres e com mulheres. O quintal de nossas casas e o que nele existia, fazia aquele pequeno mundo, ser do tamanho da força e da coragem daquelas mulheres que por ali circulavam. Mas como falava Manoel de Barros “acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande” (2010). Naquele quintal, planta que faz viver e morrer coexistiam em harmonia com crianças e mulheres e era motivo de um entra e sai de quem possuía a chave de entrada e ou de quem era convidado nele entrar. Ao entrar naquele mundo, aos modos de “Alice no país das maravilhas”, dele não saía do mesmo jeito. Feiticeiramente, sobreviventes a práticas de extermínio de quem ousou dizer não, as mulheres que portavam as chaves de entrada, circulavam naquele território sempre com outras e nos educavam na arte de manipular e conviver com as plantas. A lua, o horário, o clima, a estação do ano, tudo isso, influenciava na manipulação, cultivo e colheitas das plantas que não precisam de nome para cumprir seu papel em experiências de mulheres que não se querem atreladas às políticas públicas que nos governam com sua moral por dentro de seus discursos e úteros religiosos. Aquelas mulheres portando em suas faces | 24 |


seus desesperos, rindo para não chorar, apenas diziam para as crianças que com elas se misturavam: observem os passarinhos: “o que eles comem, nós podemos comer”. Simples assim! Naquele mundo, não cabia a presenças da racionalidade patriarcal e machista que assombram a autonomia mulher ao tentar interditar o direito de decidir. Homens na roda do dia, até podiam, se convidados pela política da amizade a comparecer naqueles encontros que aconteciam naquele quintal do tamanho do mundo. Aqui não estamos falando de toda forma homem e da racionalidade que se fez homem. Naquele quintal e nas rodas de mulheres que se cuidavam e que apareciam naquele território, porque podiam se mostrar umas às outras em sua humanidade, somente os que poderiam sustentar políticas de amizades, na condição de mais um e chegante eram bemvindos. De vez em quando se fazia ouvir: “quem é este daí?”. Ali uma amorosidade sem forma se fazia sentir mediante os sorrisos amarelados que brotavam entre aquelas que por se reconhecerem umas nas outras e com as outras se confiam. Naquele tempo, nosso mundo se dividia entre pessoas adultas e crianças. Em algumas rodas de conversas das pessoas adultas, em sua maioria, feitas de desenhos mulheres, as crianças não estavam permitidas a entrar. Entre gritos e caras feias, diziam um sonoro não às presenças crianceiras. Ao questionarmos o porquê, diziam: "Criança não é bicho de confiança. Estamos falando coisas de adultos. Vocês não tem trava na língua. Um dia vocês saberão e também estarão participando destas rodas de adultos". Não podíamos participar e ouvir! Mas isso não nos impedia de ver quando estas mulheres começavam a fazer suas colheitas com os segredos que guardam o corpo e no corpo. Colhiam folhas de todas as formas, flores de todas as cores, caules e raízes. No fogão à lenha, com fogo miúdo, tudo se misturava e virava unguento grosso e com cor de terra! Esta poção mágica logo ganhava seu lugar de descanso num vasilhame de lousa. Diziam para nós: “Este | 25 |


remédio se tomado por criança mata. A gente conhece um monte de histórias de crianças que não obedeceram suas mães e tias e morreram ao tomar este unguento feito para a dor de barriga de mulher. Os remédios de dor de barriga de criança são feitos de funcho, hortelã, erva cidreira, capim cheiroso, flor de laranjeira e mel. É tudo docinho e passarinho come. Para a dor de barriga de mulher, é tudo amargo e passarinho não come. Agora se mexerem aqui e ou colocar na boca, vamos logo "levar para o cemitério". Acreditávamos naquelas histórias e aprendíamos na mais íntima relação com o vivido que “peixe se morre pela boca”. Não éramos levados o suficiente para tomarmos remédios amargos para a dor de barriga de mulher. Os homens como Gepeto ainda não apareciam em nossas infâncias com dor de barriga. Mas, os homens com dor de barriga, ficam para outra história! Depois do jantar, as mulheres de nossas vidas, mães e tias, porque todas viravam tias, nos colocavam para dormir e, na sequência da tarefa, ofereciam uma dose do unguento amargo para quem estivesse com dor de barriga. Diziam umas às outras: “precisa tomar tudo isso até o momento em que a lua estiver no seu ponto alto. Aproveita que as crianças estarão dormindo e fique no banheiro o tempo que precisar. Terá muita cólica e uma diarreia avermelhada, parecendo cor de terra. Estaremos no quarto com as crianças. Se sentir muita cólica e não conseguir se aguentar com a dor na barriga e no corpo todo, pode nos chamar. Estaremos aqui e não soltaremos a sua mão enquanto de nós precisar. Tinha noite que realmente ficávamos sozinhos em nossos quartos. Nossas mães e tias no banheiro permaneciam. No outro dia, ainda bem cedo, com as plantas ainda orvalhadas e banhadas pela energia da lua e das estrelas, com os primeiros raios de sol, lá estavam aquelas mulheres de nossas vidas, colhendo ervas que passarinhos comem e que produzem sossego no coração. Depois do chá que acalma a barriga de mulher que teve diarreia avermelhada, estas mulheres sorriam, se abraçavam e se despediam. Antes de se | 26 |


despedirem, era comum a mulher que partia levar consigo sete pequenas poções de ervas que fazem bem para as mulheres que decidem juntas! De vez em quando estas mulheres, rostos conhecidos, de mãos dadas com outras mulheres voltavam naquele quintal. Ficavam para o jantar e passavam a noite conosco. Estas mulheres adoravam a noite! Que estranho... Entre idas e vindas, esticando para todos os lados, entramos na roda.

Não precisamos de nome... mas... O ano era 1985. Um monte de aventuras e de desejos por mais democracia e mais direitos compareciam na juventude da pequena cidade onde vivíamos. Cidade, bairro, rua! Não importa mais. Sonhávamos naquele tempo com mais liberdade com o corpo e seus afetos e, nisso comparecia as práticas sexuais, o direito de escolha e a capacidade de decidir. Vivíamos um tempo crescente de esperanças que nos interpelavam a nos tornarmos presenças singulares nas ruas, praças e na esfera pública da cidade. Desejávamos como força da multidão, ocupar a cidade e fazer problema a certas tradições que interditavam nossas singularidades e nisso incluíam as práticas reprodutivas e o direito ao aborto. Dizíamos como nossos corpos generificados e sexualizados que não desejávamos viver a vida e moral de nossos pais e da pequena cidade com suas tradições. De vez em quando em rodas de conversas de pessoas que nos apontavam dedos, como os filhos dos conhecidos que não souberam educar suas crias, diziam-nos: “Esta juventude, onde já se viu, só querem aparecer! Perderam a vergonha na cara”. Rindo, algumas vezes, respondíamos: “Sim, perdemos a vergonha na cara”. Gostamos das safadezas que tantos os incomodam e | 27 |


queremos aparecer na cidade como somos”. Não era só isso! Desejávamos também andar tranquilamente na cidade, na escola e onde a vida se fizesse acontecer. Reivindicávamos o direito de aparecer, de andar pelas ruas e ocupar as praças com nossos corpos, nossas performances, afetos e desejos. Parecia que as condições democráticas do aparecimento já estavam colocadas para todos. Pensávamos que os novos ares de democracia era o que garantia nosso direito de aparecimento. Ledo engano. As condições não estavam dadas e ainda não estão. Persistíamos. Pela praça da cidade se formavam blocos de pessoas que por afinidades se juntavam em rodas de conversas. Naquelas rodas podia-se ver gente de todo tipo. Crianças brincando livremente, meninas e meninos bem comportados na manutenção das tradições que importavam. Jovens gays e lésbicas experimentando ousadias de aparecimentos, casais de namorados, senhoras e senhores. Enfim, gente de todo tipo e com motivações as mais diversas, ali se encontravam para fiar e des-fiar conversas. Nas cidades pequenas, nos subúrbios e nas escolas, não se pode esquecer que as pessoas por se conhecerem, se sabem. E de vez em quando as ameaças aconteciam. A delação, potência presente nos que se arrogam em interditar a vida e a singularidade de uma vida em seu direito à diferença, nos inibia de vivermos algumas aventuras. E pelas bocas e olhares dos que se sabem, o poder disciplinar se fazia cumprir. “Vou contar para sua mãe, moleque escroto o que você está fazendo na rua”. Nunca soubemos se as fofocas realmente chegavam até nossas mães! Éramos como já dissemos, apenas filhos e filhas das mães. A sensação de perigo rondava aquela galera que sabia se valer de táticas e redes de proteção para produzir alguns furos nessa malha de poder. Numa dessas ameaças, de uma gente que se mete nos processos de (des)aprendizagens, uma Senhora, dessas com ares de quem se assombra com a novidade e, temendo o nascimento da novidade, se | 28 |


coloca em disparada até a casa de uma das garotas que experimentava o seu primeiro cigarro na roda de amigos. Em minutos, um homem trajando farda da polícia militar se fez presente entre nós. Maldito seja, aquele homem. Aquele homem era o pai da garota que experimentava um cigarro na praça. Fomos xingados, agredidos e ameaçados. Dizia aquele homem que prenderia a todos nós e que, a partir daquele momento, não nos deixaria ter paz. Éramos má companhia para sua filha. Nos chamava de maconheiros, sapatão, bichas e putas. Nossa fragilidade ante aquele homem fardado nos ensinou o que significa a precariedade. Estávamos em riscos, incluindo a Senhora que fez a fofoca. Aprendemos com nossa experiência com a ditadura militar a termos medo da polícia. Ver um homem fardado, porque naquele tempo homem e polícia, sinônimos, era motivo suficiente para abaixarmos nossas cabeça e saírmos de fininho. Não éramos tão corajosos como supúnhamos. Éramos apenas um bando de garotos e garotas que, no junto, tecíamos esperanças com um país mais justo e igualitário. Entre gritos, choros e medo, assistíamos o poder patriarcal e de nação, acontecer diante de nossos olhos. A menina foi surrada, enfraquecida e ali perdia sua dignidade e humanidade. Não satisfeito com o feito, uma tesoura aparece nas mãos daquele homem. E ele, a partir de seu lugar de poder soberano, desses que se sentem donos do corpo do outro, se pôs a cortar, como se poda capim, os cabelos daquela menina. Cortar os cabelos das mulheres é uma prática utilizada por aqueles que se sentindo donos de outros corpos, portam facas, tesouras e armas de fogo. Desconfigurada, humilhada e agredida aquela menina envergonhada foi levada para casa pelas mãos daquele homem em sua monstruosidade. E nós... e a Senhora assombrada.... fomos reduzidos a quase nada. Nossa condição precarizada foi maximizada a partir daquele acontecimento. Nossas presenças não garantiram as condições | 29 |


de segurança para aquela garota, para a senhora e para aquele que se dizia o pai. E pelo simples fato de ser pai e polícia, estava ele amparado pelo poder que o antecede e reitera sua hierarquia de gênero com sua lógica falocêntrica. As condições para andar livremente pela cidade, ocupar a praça e experimentar um cigarro não estavam dadas para aquela garota, nem para nenhum de nós. Propagandas nos incentivando a fumar se distribuíam livremente em páginas de revistas e em propagandas na televisão. Para nossa surpresa, minutos depois, aquela garota reapareceu munida de coragem entre nós. Refeita do susto, com marcas no corpo e portanto uma gilete na mão, pediu sem pestanejar, que raspássemos sua cabeça. Aquele momento foi uma marco na vida daqueles jovens, que aliançando esperanças, desejavam andar livremente pela praça e a cidade e, quem sabe, fumar um cigarro. Ali, naquele momento, diante de nossas olhos, morria uma menina e nascia em coragem uma mulher. Mas não só isso, diante de nossos olhos, na emergência daquele acontecimento, nós nos experimentávamos como outros. Com o corpo em brasa com as histórias que aprendemos com as vidas que nos antecedem e com as narrativas que entre nós se faz circular, aquela menina, debochadamente, batendo suas chinelas uma na outra, performa uma passagem conhecida por muitos de nós de Scarlett O’Hara, personagem do tradicional Filme “O vento levou” (1940). Hoje já não sabemos se realmente era uma menina! A bem da verdade, aquela menina nunca existiu. Careca, despida de algumas tecnologias da beleza empregada ao feminino, com a força que nasce da insistência dos que andam na corda bamba em um mundo patriarcal, em praça pública, aquela garota se livra de seu sutiã e diz para todos nós: “Enquanto vida tiver, nunca mais apanharei – esta foi a última vez que homem fez de meu corpo sua propriedade”. Num efeito cascata, três outras meninas também retiram seus sutiãs e de mãos dadas fazem a primeira manifestação feminista em | 30 |


público. Naquele momento, na praça pública da cidade, em redes de solidariedades, sopravam entre nós, ventos das bruxas e hereges que nos antecederam. Não éramos mais os mesmos, a praça já não era a mesma, muito menos a cidade. Aquela senhora e o pai da garota, viraram lendas. Depois desse fato, histórias as mais diversas não pararam de ser inventadas. Dizem por aí que os dois juntaram seus pertences e se colocaram em práticas de oração num monte sagrado que existe lá nas terras do Caparaó. Estamos em dúvida se é no Caparaó ou Mestre Álvaro. Isso também não importa. De vez em quando ficamos sabendo de outras histórias dos dois. Alguns dizem por aí que o pai da garota mudou de nome e virou político e a senhora fofoqueira virou empresária e administradora da carreira do ex-policial. Se é verdade ou mentira, não sabemos. Como já dissemos, nas cidades pequenas, nos subúrbios, nas favelas, nas vilas, no campo e etc, as pessoas se sabem e ao se saberem, se abrem às possibilidades de encontros e solidariedades que afirmam a vida e sua singularidade. A história dos meninos e meninas insolentes que fumavam um cigarro na praça, da senhora assombrada com o que via, da menina que apanhou de seu pai e teve a cabeça raspada por amigos e amigas, correu o mundo. Nós nos tornamos personagens que atraíam belas companhias e boas razões para fofocas e atenção. Até aí tudo bem! Gostávamos disso...

Efeitos de histórias malditas das pessoas que se sabem Certo dia, descendo a Ladeira do colégio, fomos surpreendidos por uma garota, que não tinha conosco amizade. Em prantos, logo foi dizendo: Preciso da ajuda de vocês. Sei que em vocês posso confiar. As pessoas assim, como vocês, contestadoras, são pessoas que podemos | 31 |


confiar. Como assim, pessoas como nós? Ela não perdeu tempo em resposta. Não era preciso. Não estava na pauta contra argumentar. Foi logo nos dizendo: "estou grávida. Não quero gestar. Não quero e não posso ser mãe. Meu pai me mata se souber que não sou virgem e que engravidei. Fiquei sabendo através de amigas que o ‘fulano de tal’ da ‘Farmácia bem-te-vi’1, vende um remédio que vai me fazer sangrar! É tiro e queda. Ele não pode saber que este comprimido é para mim. Ele conhece minha família. Tenho medo dele fazer fofoca e chegar até meu pai. Por favor, tome o dinheiro, vai até ele, pegue o remédio e traz para mim". Ordem dada, ordem cumprida! Lá estávamos nós, entrando na roda do capital e dos bioquímicos. Chegando na farmácia, fizemos sinal para o “fulano de tal” que a garota havia indicado. Tremendo, com voz embargada, dissemos para aquele moço “cor de rosa”, que precisávamos ter um particular. Parece que este era o código. Ele nos convidou para entrar na sala de injeção e nos fez a seguinte pergunta: “Vocês querem o remedinho que faz sangrar?” Balançamos a cabeça. Ele não nos perguntou mais nada. Entregamos o dinheiro, sem saber o valor do remédio e, em minutos, lá estava ele com uma caixinha embrulhada em papel rosa. Ao entregarmos o remédio, a garota nos agradeceu com aquele sorriso das mulheres de nosso quintal, reforçou o pedido de segredo. Éramos agora sujeitos daquela história. Ao deixarmos a garota, sentamos em um dos bancos da praça e nos colocamos em conversa sobre o acontecido e as práticas de abortos que bem sabíamos. Entre nós, aquela história era somente mais uma história que se faz saber das garotas, das mulheres e de homens que se sabem com outros em práticas de abortos. Meses se passaram, até que pudemos reencontrar com aquela garota sem nome no clube da cidade. Ela estava com sua família. Seu corpo tinha as mesmas formas que sempre conhecemos. Percebemos, pela 1 Nome fictício. | 32 |


nossa má fama, que a garota não podia chegar perto de nós. Sabíamos que não éramos boas companhias! Nenhum problema com esta questão. Nossos olhares se cruzaram e ela esboçou um tímido sorriso em nossa direção. Sem nada nos dizer, compreendemos no silêncio daquele momento que com ela estava tudo bem e, para nós, aquele sorriso tímido era o suficiente para a aliança ali produzida. Até hoje não sabemos o nome daquela garota, o nome daquele remedinho que faz sangrar, assim, como não sabemos o nome das plantas do quintal que cura dor de barriga de mulher. E para quê? Não precisamos saber! Em alianças, não precisamos saber de nada, apenas sentir e ir! E sentindo, não soltaremos as mãos de ninguém. Cabe sempre mais um, vem?

Das aprendizagens, precariedades e resiliências ... Como falamos, não buscamos ensinar nada e nem tem moral no final dessas histórias narradas. As narrativas de quintais, unguentos, oralidades, feitiçarias, corpos que sangram, prosa, do dito e não dito, dos saberes das mulheres, sutiãs, chás e alianças menos prováveis, rebeldias e parcerias. Falam de nós, de nossos amigos e amigas, de nossas famílias, de nossas escolas, praças, bairros e cidades. Geralmente pensamos que as coisas e as decisões, tanto nossas quantos dos outros, são sempre simples e leves mas, com o tempo, “a gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as coisas” (Manoel de Barros, 2010). A intimidade parece tão necessária, mas tão insignificante perante o desejo de empatia. Atravessamos hoje desafios de antigamente, somente mudam-se as roupagens. Continuamos enfrentando o desafio de circular pelas cidades e praças e quem sabe poder fumar um cigarro, por que não? Com certa seguridade e cercados de amigos colocando | 33 |


a prosa em dia. Enfrentamos ainda hoje, a precariedade de nossos corpos, gêneros e sexualidades em cada esquina, vivenciando uma resistência somente por colocar ou não o sutiã para ir à escola ou em enfaixar-se os seios para circular por outros. Também identificamos mulheres (e homens) fofoqueiros que interpelam na vida dos outros mesmo que nossos corpos continuem a sangrar... A todos eles falamos como falaria Mario Quintana (2004): “Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho,/ Eles passarão…/ Eu passarinho!” pois a liberdade faz parte do exercício da resistência e da resiliência. Pois antes e hoje percebemos nas conversas silenciosas entre as mulheres que “se as coisas são inatingíveis… ora! Não é motivo para não querêlas… Que tristes os caminhos, se não fora a presença distante das estrelas!” Mario Quintana (2005). Aqui estamos na madrugada da noite em nosso quintal, nos refazendo juntos na nossa precariedade cotidiana dizendo: “ninguém solta a mão de ninguém”.

REFERÊNCIAS BARROS, M. de. Memórias inventadas: As Infâncias de Manoel de Barros, São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. LARROSA, J. A arte da conversa. In: SKLIAR, Carlos. (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? 1ª ed., Rio de Janeiro, DP&A Editora. 2003. p. 211-216. QUINTANA, M. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. QUINTANA, M. Das Utopias. Quintana de Bolso. Coleção L&PM Pocket. 2004.

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El palpitar de los abortos2 Ruth Zurbriggen

“Yo en realidad hace unos días, todavía no sabía bien bien si estaba embarazada, pero ya estaba con dudas. Estaba esperando el colectivo en la parada esa del centro, que hay un monumento y en la pared del monumento leo: info aborto seguro y un número. No puede ser, me digo. Entonces, le pregunto a una mujer que estaba en la parada: -¿Vio eso que dice ahí de aborto seguro? ¿Será cierto?” -Estela, 22 añosSocorristas en Red (feministas que abortamos)3 se hace de pliegues, de bordes, de rugosidades, de riesgos y también de abismos. Hace sentido allí donde emergen la rabia, el dolor, el espanto junto a la creatividad y la imaginación desobediente que nos antecede y nos acuerpa. “Las otras chicas cómo están? ¿Lo hicieron ya? Gracias por todo” -Melisa, 20 años2 No escribo sola. Nada de esto podría ser dicho sin las amigas, compañeras y hermanas con las que a cada rato y cada día activamos feminismos. Mucho menos, sin las mujeres a las que acompaño en su decisión de abortar, quienes me convidan una partecita de su existencia. 3 Red de activistas feministas que armamos Socorros Rosas, creada en Argentina en el año 2012. Tomamos este nombre en clave genealógica, inspiradas en los acompañamientos de las feministas de las décadas del ´60 y del ‘70. En particular los de las italianas, pero también de las francesas y de las estadounidenses, quienes generaron dispositivos para mujeres que necesitaban practicarse un aborto desafiando así imposiciones del heteropatriarcado racista. En la actualidad está integrada por cuarenta colectivas que activamos en diferentes geografías del país. Nos articulamos para pasar información y acompañar a mujeres y a otras personas con capacidad de gestar que deciden abortar. | 35 |


“No puedo tener otro hijo y mi marido no me va a dejar decidir, pero de todos modos voy a usar el miso, a escondidas si es necesario” -Romina, 39 añosArma mareas de articulaciones. Arma y construye complicidades. Arma y recupera espacios comunitarios. Arma pensamiento y acción. Arma viajes circulares. Arma y ama la vida en rondas. Ama la vida. Ama la vida activista, esa que salva del desasosiego. Esa que se toma [revancha. “No sabía quiénes eran, pero cuando le dijiste a mi novio que querías hablar conmigo y no con él, perdí el miedo y me di cuenta que realmente iban a ayudarme” -Lidia, 29 años“Estoy sola en esto, vos sos la única compañía que tengo a través de este teléfono, gracias” -Magdalena, 31 añosTrae el aborto. Lo nombra. Lo amasa. Lo moldea, ojalá amoroso y cuidado. Trae el aborto al mundo de lo audible y lo decible. Lo hace existir. Lo enuncia y lo anuncia. Lo mueve y lo conmueve. Lo dice y lo desdice. Lo susurra y lo vocifera. Trae el aborto para devenirlo en unas sensibilidades otras. Trae el aborto pegado en la piel. En los rostros. En las cuerpas. En las manos. En tus ojos y en los nuestros. En la vida toda. Trae el aborto, lo agenda y lo agencia. Lo hace legible. Lo escucha. | 36 |


“Ya lo largué y el sangrado disminuye, mi mamá estuvo conmigo en todo momento” -Fernanda, 16 años“Gracias por acompañarme en este momento complicado, estoy muy bien, fuimos tres en esto vos, mi hijo y yo” -Julieta, 24 añosCrea nuevas impresiones. Desarma heridas absurdas. Crea modos para disipar miedos, angustias y soledades. Crea significados no fijos. Sabe que muchas veces le faltan palabras que digan. Crea intimidad sin renunciar a lo colectivo del hacer. El activismo socorrista feminista como un gesto diario, capilar, cuidadoso. Se inviste de innumerables pasiones y deseos. Se apasiona de y con cierta estética. Como un gesto diario que nos hace estremecer. Nos asombra como esa pasión que motiva el deseo de seguir buscando, que mantiene viva la posibilidad de la frescura y la vitalidad de una vida que puede vivirse como si fuera la primera vez, al decir de Sara Ahmed. Acá no se rinde nadie, promete una calcomanía con un corazón verde que palpita. Me la obsequió hace pocos días una joven ilustradora. Dani me dijo que se llama. Lleva anudado su pañuelo verde en la cabeza mientras se contornea orgullosa por los pasillos de un instituto de formación docente. Pulsa otro tiempo. Lo sabe. Pulsa el tiempo del aborto como un sinfín de voces y sentimientos. Acá no se rinde nadie. Las feministas socorristas necesitamos mantener también cierta incomodidad y sospecha de y sobre los | 37 |


modos propios de pensar y actuar, casi como condiciรณn indispensable para seguir erigiendo promesas de otros por-venires. Acรก no se rinde nadie. El aborto se avecina. Los abortos se avecinan. Surgen y resurgen. Como la vida misma.

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Legalização do aborto com enfrentamento ao racismo: as mulheres negras querem justiça reprodutiva Emanuelle Aduni Goes

O aborto é um fenômeno que faz parte das experiências reprodutivas de diversas mulheres no mundo, que em contextos distintos e adversos estão expostas a complicações ao realizá-lo. Mesmo em situação de legalidade, as mulheres enfrentam dificuldades desde a decisão da interrupção da gravidez, no acesso ao serviço de aborto seguro e nos cuidados pós-aborto (DORAN; NANCARROW, 2015; GANATRA; FAUNDES, 2016). No Brasil, o fato de o aborto ser ilegal não impede a sua realização e faz parte do cotidiano. Neste sentido, a prática do aborto é frequente entre as mulheres de diferentes classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais, religiões e regiões, tal como tem sido evidenciado por pesquisas populacionais de âmbito nacional (DINIZ; MEDEIROS, 2010; DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017). Diversas são as formas para a realização do aborto clandestino com o uso de chás, do misoprostol, clínicas clandestinas e procedimentos rudimentares (uso do talo da mamona, beberagens, clínicas insalubres e de “curiosos”). Estes últimos levam ao aborto inseguro e são as mulheres negras as mais expostas a esta situação. O abortamento clandestino e inseguro eleva as taxas de complicações pós-aborto mal-sucedido, expressas em internações hospitalares e em mortes maternas. Os dados do Sistema de Morbidade Hospitalar do Ministério da Saúde revelam que no ano de 2016 houve 195.860 | 39 |


internações por consequências do aborto e 62,4% dos casos eram mulheres negras. No mundo, são realizados cerca de 22 milhões de abortos por ano, e estima-se que 47 mil pessoas morram anualmente de complicações decorrentes do recurso a práticas inseguras para a interrupção da gravidez, segundo a Organização Mundial de Saúde. O aborto inseguro é definido como procedimento para interromper a gravidez não planejada/pretendida realizada por pessoas sem as habilidades necessárias, em um ambiente que não esteja em conformidade com mínimos padrões médicos, ou ambos, sendo ainda uma das principais causas de morte materna. São as mulheres negras as principais vítimas da ilegalidade pois, além de estarem mais expostas ao aborto inseguro, são as que mais sofrem violência obstétrica no serviço de saúde para a finalização e complicações do aborto, tanto provocado quanto espontâneo. Assim como são elas as que mais sofrem com as denúncias realizadas pelos profissionais de saúde. A suspeita do aborto provocado amplia os riscos de complicação pós-abortamento, agravando inclusive sofrimentos mentais, que poderiam ser minimizados se mulheres nessas condições fossem atendidas adequadamente (KALCKMANN; PINTO, 2010). Segundo Madeiro e Rufino (2017) na pesquisa realizada em São Luiz, uma em cada três mulheres em situação de abortamento relatam ter sofrido alguma forma de violência institucional durante a hospitalização, entre as quais estão ameaças de denúncia à polícia. O estudo realizado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro4 demonstrou que 65% dos casos de denúncias das mulheres que tiveram aborto são realizadas por profissionais de saúde (enfermeiras e médicos) durante atendimentos emergenciais. Neste sentido, 4 DPRJ traça perfil de mulheres criminalizadas pela prática do aborto. Disponível em: http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/5372-DPRJ-aponta-perfil-damulher-criminalizada-pela-pratica-do-aborto | 40 |


a criminalização de pacientes pela prática do aborto é uma das principais formas de entrada das brasileiras no sistema penal. São as mulheres pobres, majoritariamente negras, as mais criminalizadas e que recorreram ao aborto medicamentoso de forma autônoma ou a procedimentos totalmente inseguros em clínicas ou em casa com a introdução de objetos perfurantes e substâncias corrosivas, precisando finalizar o aborto malsucedido e suas complicações no hospital. O medo de ser maltratada e criminalizada retarda a procura pelos serviços de saúde. A pesquisa sobre Racismo e Aborto (GOES, 2018) demonstrou que as mulheres pretas relatam mais que o dobro que as brancas medo de procurarem o serviço. As mulheres negras esperam a “situação limite” para procurar o serviço, mesmo diante de uma situação de agravamento do quadro clínico. O histórico negativo das experiências de violências institucionais, revertidas em racismo institucional nos serviços de saúde, pode ser um fator determinante no retardo pela procura por atendimento para as mulheres negras. As pesquisas evidenciam isso ( BATISTA et al., 2016; DINIZ et al., 2016; GOES; NASCIMENTO, 2013; LEAL et al., 2017; LEAL; GAMA; CUNHA, 2005; LOPES; BUCHALLA; AYRES, 2007; MARTINS, 2006) e as histórias publicizadas das mulheres que realizaram aborto inseguro também, como o caso de Ingriane Barbosa Carvalho de Oliveira5, negra, 31 anos, que morreu de infecção generalizada por introduzir um talo de mamona no útero para interromper uma gravidez de aproximadamente quatro meses. Apesar de apresentar sinais e sintomas de infecção, só procurou o serviço de saúde quatro dias depois de realizar o procedimento mal sucedido, ou seja, o medo de ser mal tratada retardou a ida de Ingriane ao serviço de saúde, aumentando as complicações e levando à morte. 5 A morte evitável de Ingriane. Disponível em: http://catarinas.info/a-morte-evitavelde-ingriane-e-lembrada-em-audiencia-publica-sobre-aborto/. | 41 |


Ao realizarem aborto inseguro as mulheres sofrem discriminação e violência institucional nos serviços de saúde como retardo do atendimento, na falta de interesse das equipes em escutar e orientar as mulheres ou mesmo na discriminação explícita com palavras e atitudes condenatórias e preconceituosas (KALCKMANN; PINTO, 2010). A Pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado mostra que mulheres em situação de abortamento estão mais expostas à violência institucional. Mais da metade (53%) respondeu ter sofrido algum tipo de violência, como ameaças ou serem tratadas com descaso e muitas vezes a falta do atendimento imediato pode agravar o quadro de saúde (FARIA, 2013). Segundo Carneiro; Iriart; Menezes (2013), numa pesquisa realizada em Salvador sobre experiência de mulheres internadas por abortamento provocado, esta foi marcada por sentimentos negativos, tanto pela dor física quanto emocional, mas ao mesmo tempo um alívio com o fim da gravidez e do risco de morte. No entanto, sofrimento adicional foi apontado pelas mulheres tendo sido condicionado pela ausência de cuidado e atitudes de discriminatórias por conta do aborto realizado. As mulheres sofrem violências institucionais por conta do estigma do aborto, as mulheres negras experimentam situações distintas, sobretudo as de pele mais escura, que apresentam mais dificuldades institucionais na internação hospitalar (“esperar muito para ser atendida”, “aguardar vaga/leito”, “parturientes eram atendidas primeiro”). O racismo institucional com estigma do aborto redobra o risco das mulheres negras sofrerem violência obstétrica, o que se denomina discriminação interseccional (GOES, 2018). Neste sentido, torna-se necessário considerar a dimensão da justiça reprodutiva, pois, as mulheres negras vivenciam um conjunto complexo de opressões e hierarquias reprodutivas. Segundo Loreta Ross (2006) vista como uma teórica interseccional, | 42 |


a Justiça Reprodutiva emerge das experiências de mulheres negras que vivenciam um conjunto complexo de opressões e hierarquias reprodutivas. Baseia-se no entendimento de que os impactos das opressões de raça, classe, gênero e de orientação sexual não são aditivos, mas integrativos, produzindo esse paradigma de interseccionalidade, gerando a discriminação interseccional. A feminista afro-americana Kimberlé Crenshaw (2002) conceitua a interseccionalidade como uma associação de sistemas múltiplos de subordinação, sendo descrita de várias formas como discriminação composta, cargas múltiplas, como dupla ou tripla discriminação, que concentra problemas e busca capturar as consequências estruturais de dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. A interação das opressões do racismo e do sexismo irá produzir para as mulheres negras outros efeitos no percurso da vida e nas condições de saúde; neste sentido, teóricas e pesquisadoras negras apresentam o conceito interseccionalidade de raça e gênero, conceito este forjado dentro do feminismo negro, na preocupação de dar conta dessas duas dimensões e de outras categorias de opressão. Para as mulheres negras o racismo e seus mecanismos se expressam nas relações interpessoais e afetivas, mas também interferem nas práticas de saúde. As mulheres afro-estadunidense referem de forma semelhante, as mulheres negras brasileiras, como o racismo prejudica a saúde reprodutiva, atuando com um mediador dos comportamentos individuais, das relações interpessoais e do acesso aos serviços (PRATHER et al., 2016). E as barreiras geradas pelo racismo dificultam o acesso das mulheres negras aos serviços de saúde e uma atenção integral voltada às suas necessidades. Ao agregarem-se outros fatores de opressão, potencializam a situação de vulnerabilidades destas mulheres. O racismo é um sistema estruturante gerador de comportamentos, práticas, crenças e preconceitos que fundamentam desigualdades | 43 |


evitáveis e injustas entre grupos da sociedade, baseadas na raça ou etnia. Quando institucionalizado, isto é, praticado em instituições, o racismo obstrui o acesso a bens, serviços e oportunidades, estando subjacente às normas que orientam as ações destas instituições, mesmo sem ser legalizado (FERDINAND; PARADIES; KELAHER, 2012; JONES, 2000; WERNECK, 2016). Nos EUA são as negras, latinas e de menor renda que exibem as taxas mais elevadas de aborto quando comparadas às brancas e àquelas de maior status socioeconômico. Pesquisas referem que as altas taxas de aborto entre as mulheres negras e latinas estão associadas às disparidades raciais e às questões socioeconômicas, levando à falta de acesso ao planejamento reprodutivo e baixa oferta de métodos contraceptivos, fatores que convergem para a maior ocorrência de gravidez não prevista (DEHLENDORF; HARRIS; WEITZ, 2013; DEHLENDORF; WEITZ, 2011; PRICE, 2011). As iniquidades em saúde ainda são um impeditivo para o acesso de qualidade aos serviços, já que, como visto, mesmo quando o aborto é legal, existe restrição à sua realização, desde a ausência de serviços locais, sobretudo em áreas distantes dos centros urbanos, insuficiência de recursos e insumos, até a permanência de atitudes negativas dos profissionais no atendimento, aspectos que fazem parte da realidade de muitas mulheres que terminam por se submeterem a aborto inseguro, mesmo este lhe sendo permitido pela lei (DORAN; NANCARROW, 2015). Neste sentido, o que as evidências científicas e as denúncias apresentadas pelos movimentos de mulheres negras revelam é que o racismo afeta a forma como as mulheres negras vivenciam os seus eventos reprodutivos, configurando cenários desfavoráveis na gravidez e, diante da sua decisão pela sua interrupção, dificultando a busca pelo cuidado e o acesso à internação hospitalar para a finalização do aborto. | 44 |


Os processos singulares vivenciados pelas mulheres negras vão delinear caminhos distintos e o campo da saúde reprodutiva evidencia nitidamente essas diferenças experienciadas por elas, por conta do pertencimento racial, como direitos, autonomia, tomadas de decisões e escolhas reprodutivas, que são estruturados pelo racismo e suas diversas formas, daí a necessidade de assegurarmos as singularidades que conformam as mulheres negras dentro do processo coletivo no reconhecimento como sujeitas de direitos e com histórias de vida (GOES, 2016). Neste sentido, as reivindicações pela legalização do aborto não podem estar descoladas do enfrentamento ao racismo que estrutura a nossa sociedade nas suas diversas formas, pois para as mulheres negras a presença do racismo impede o exercício de direitos reprodutivos, quer na escolha de ter filhos e vê-los crescer de forma segura, quer para realizar aborto sem riscos. A questão racial, a superação das desigualdades raciais precisam compor a bandeira de reivindicações do movimento de mulheres e feministas na agenda dos direitos reprodutivos para que se haja justiça.

REFERENCIAS BAIRROS, F. S. DE; MENEGHEL, S. N.; OLINTO, M. T. A. Citopatológico e exame de mama: desigualdade de acesso para mulheres negras no sul do Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde, v. 17, n. 2, p. 138–141, jun. 2008. BATISTA, L. E. et al. Humanização na atenção à saúde e as desigualdades raciais: Uma proposta de intervenção. Saude e Sociedade, v. 25, n. 3, p. 689–702, 2016.

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CARNEIRO, M. F.; IRIART, J. A. B.; MENEZES, G. M. DE S. Largada sozinha, mas tudo bem: paradoxos da experiência de mulheres na hospitalização por abortamento provocado em Salvador, Bahia, Brasil. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 17, n. 45, p. 405–418, jun. 2013. CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 171–188, jan. 2002. DEHLENDORF, C.; HARRIS, L. H.; WEITZ, T. A. Disparities in abortion rates: A public health approach. American Journal of Public Health, v. 103, n. 10, p. 1772–1779, 2013. DEHLENDORF, C.; WEITZ, T. Access to Abortion Services: A Neglected Health Disparity. Journal of Health Care for the Poor and Underserved, v. 22, n. 2, p. 415–421, 2011. DINIZ, C. S. G. et al. Desigualdades sociodemográficas e na assistência à maternidade entre puérperas no Sudeste do Brasil segundo cor da pele: dados do inquérito nacional Nascer no Brasil (2011-2012). Saúde e Sociedade, v. 25, n. 3, p. 561–572, set. 2016. DINIZ, D.; MEDEIROS, M. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. suppl 1, p. 959–966, 2010. DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; MADEIRO, A. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, p. 653–660, fev. 2017.

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DORAN, F.; NANCARROW, S. Barriers and facilitators of access to first-trimester abortion services for women in the developed world: a systematic review. Journal of Family Planning and Reproductive Health Care, v. 41, n. 3, p. 170–180, 2015. FARIA, N. Entre a autonomia e a criminalização: a realidade do aborto no Brasil. In: Mulheres Brasileiras e Gênero Nos Espaços Público e Privado - Uma Década de Mudanças na Op. Pública. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013. FERDINAND, A.; PARADIES, Y.; KELAHER, M. Mental health impacts of racial discrimination in Victorian Aboriginal communities. [s.l: s.n.]. GANATRA, B.; FAUNDES, A. Role of birth spacing, family planning services, safe abortion services and post-abortion care in reducing maternal mortality. Best Practice & Research Clinical Obstetrics & Gynaecology, v. 36, p. 145–155, out. 2016. GOES, E. F. Enquanto houver racismo para as mulheres negras o aborto sempre será inseguro, desumano e criminalizado. Cadernos Sisterhood, v. 1, p. 6, maio 2016. ______. Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional. 105f. Tese (Doutorado Saúde Pública) – Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018. GOES, E. F.; NASCIMENTO, E. R. do. Mulheres negras e brancas e os níveis de acesso aos serviços preventivos de saúde: uma análise sobre as desigualdades. Saúde em Debate, v. 37, n. 99, p. 571–579, dez. 2013.

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JONES, C. P. Levels of racism: a theoretic framework and a gardener’s tale. American Journal of Public Health, v. 90, n. 8, p. 1212–5, ago. 2000. KALCKMANN, S.; PINTO, E. A. Aborto: livre escolha? Boletim do Instituto de Saúde (Impresso), v. 12, n. 2, p. 185–191, 2010. LEAL, M. DO C. et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção prénatal e ao parto no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, n. suppl 1, p. e00078816, 2017. LEAL, M. DO C.; GAMA, S. G. N. DA; CUNHA, C. B. DA. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, v. 39, n. 1, p. 100–107, jan. 2005. LOPES, F.; BUCHALLA, C. M.; AYRES, J. R. DE C. M. Mulheres negras e não-negras e vulnerabilidade ao HIV/Aids no estado de São Paulo, Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 41, p. 39–46, dez. 2007. MADEIRO, A. P.; RUFINO, A. C. Maus-tratos e discriminação na assistência ao aborto provocado: a percepção das mulheres em Teresina, Piauí, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 8, p. 2771– 2780, ago. 2017. MARTINS, A. L. Mortalidade materna de mulheres negras no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 22, n. 11, p. 2473–2479, nov. 2006. PRATHER, C. et al. The Impact of Racism on the Sexual and Reproductive Health of African American Women. Journal of Women’s Health, v. 25, n. 7, p. 664–671, jul. 2016.

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PRICE, K. It’s Not Just About Abortion: Incorporating Intersectionality in Research About Women of Color and Reproduction. Women’s Health Issues, v. 21, n. 3, p. S55–S57, maio 2011. WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, v. 25, n. 3, p. 535–549, set. 2016. ROSS, L. 2006. Understanding Reproductive Justice. Atlanta, Georgia: SisterSong. Disponível em: <http://www.trustblackwomen.org/ourwork/what-is-reproductive-justice/9-what-is-reproductive-justice>.

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O Sangrar das Mulheres Paula Rita Bacellar Gonzaga

A primeira vez que ela sangrou, nem era mulher ainda Dia 5, mês de natal, desespero escorrendo pelas pernas da menina Uma década de vida resumida em uma constatação: “Virou mocinha, virou mulher, mulheres sangram” E ela sangrou tantas vezes mais A fenda aberta era um rio que corria seu próprio curso A menina virou correnteza, Sangrou por si, por seus medos, pelas suas crises Sangrou diante dos homens que insistem em violar as margens e os [seus limites Sangrou pela oferta de vida que supostamente devia ao mundo Sangrou pelos desvios que criou ao que seria um destino irrefutável E assim como ela outras mulheres sangraram Mulheres sangram todos os dias. Sangram porque ousam, Sangram porque florescem, Sangraram porque as chamas crepitaram sobre seus corpos E ainda hoje sangram na luta pelo título de posse de si mesmas. Duas décadas de vida, uma represa, uma enchente, uma lua que [não mingua A menina era mulher, mas se esforçava para ser ventania Em seus pensamentos se sentia infinita, intangível Mas o corpo, em sua materialidade cruel, lhe impunha a correnteza [que a derrubava Ela era, diante do rio que vazava, o reflexo que esse mesmo rio | 50 |


[produzia Ela era, diante do rio que continha, senhora soberana de mistérios [que não decifrara Um quarto de lua crescente, um quarto de século, um quarto de [tempo Ela se move sem pressa, ela voa sem asas, ela pensa sem medo Mas no meio das luzes de uma noite de verão ela sangra Um ventre aceso e flamejante faz questão de lembrar-lhe que ela é [mulher Que ela não pode ser só vento, que ela não pode ser só mar, que não [pode ser só noite As mulheres sangram todos os dias Pelas fendas abertas pela fecundidade Por serem agentes ativas da sua própria reprodução Pelas marcas das violações perpetradas pela masculinidade Por dizerem sim e outras vezes por dizerem não Por terem uma forma dita feminina ou por terem uma forma dita [masculina Por serem cortadas pelo ventre, por parirem gente Mulheres sangram todos os dias, Mulheres sangram quando ainda são meninas. Mulheres sangram todos os dias Sangram de morte, sangram de vida. E mesmo assim ainda é tão difícil falar disso Ainda é tão mais fácil ignorar a onda vermelha que arrebata Mulheres sangram sozinhas, como um rio que escorre sem que [ninguém ouça sua queda Mulheres sangram todos os dias E por serem mulheres é tão comum relativizar sua queixa, [naturalizar sua dor E ela, certa de que ainda sangraria muitas luas mais | 51 |


Adulterava sua rotina, desejosa de não sentir mais nada De conseguir por uma noite ser só brisa, só onda, só maresia. Mas mulheres sangram todo dia e esse rio também corria por ela, [sem indulgência Dançava assim a dança das feiticeiras que celebravam a vida e a [morte que cabia em si Num corpo de mulher, que insistia em ser ventania Num ventre flamejante, que insistia em explodir Ela sangrava como as mulheres sangram todos os dias Já não era mais menina, era senhora do rio que corria dentro e fora [de si. Já não era escrava de seu ventre, mas senhora desse ciclo de ventos, [ondas, rios, gotas rubras que lhe descem pelas pernas em tormentas ou em brisas marinhas Ela era a própria lua em seu encher e vazar Em seu movimento de expulsar de si o que não era seu desejo De trazer para si o que saciaria sua sede, Sede de vida, de mundo, de si. Já não era uma menina e também não se resumia a ser mulher Era rio caudaloso, chuva fina, maré em ondas, tempestade repentina Era senhora dos tempos, sangrava por entre as pernas, sobrevivera [as fogueiras Era dona de si, sem medo do fogo, da água ou do tempo Ela era parte de um todo que antecedia seu primeiro suspiro, Era senhora de si porque em sua cabeça muitas senhoras reinavam E por isso já não temia o sangrar Já não temia os homens e seu complexo de violação Ela era inviolável Ela era inteira Ela era todas as mulheres que vieram antes dela e que virão depois [dela. | 52 |


E enquanto sangrava ela se dava conta Que tomou a vida pelas mãos Quando permitiu que o sangue lhe escorresse pelas pernas. Estava finalmente livre de todas as ficções poderosas que lhe [contaram sobre si Não precisa ser mãe, Não precisa ser santa, Não precisa ser virgem, Não precisa ser branca, Não precisa amar os homens, Não precisa ter medo de deus A liberdade, assim como as mulheres, é líquida E se você quiser acreditar Acredite nas deusas que te aguardam sem pressa e sem culpa Aguardam o fluxo do seu rio chegar no mar Aguardam o seu sangue levantar as ondas do mundo. Aguardam a menina, a mulher e a anciã que cada mulher carrega [dentro de si Num ciclo infinito de encher e vazar Sem medo de ser onda, sem medo de fogueiras, sem medo de [sangrar.

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La desobediencia como recuperación de nuestro cuerpo Carmen Hernández

Antiguamente el aborto representaba un mecanismo de control de la natalidad practicado de manera común, pero hoy en día es un delito, sobre todo en nuestros países donde su legislación está determinada por muchos prejuicios morales, religiosos y productivistas representados por las: “presiones de la economía de los bienes simbólicos que imponen la subordinación de la reproducción biológica a las necesidades de la reproducción del capital simbólico”6. El tema del aborto es un problema de cultura y poder: por un lado la lucha por los derechos de las mujeres a decidir sobre sus cuerpos que aboga por el aborto voluntario y por otro, la defensa de la soberanía nacional que controla y penaliza las acciones individuales sobre el cuerpo. En este enfrentamiento se activan representaciones sociales encontradas. En Venezuela las acciones feministas esgrimen sentencias asociadas a la salud: “anticonceptivos para no abortar, aborto legal para no morir, educación sexual para decidir”, lo cual parece reforzar la disputa entre la vida y la muerte que ha penalizado al aborto. Suhey Ochoa reflexiona con escepticismo sobre este tema cuando lamenta que: "el aborto en Venezuela sigue siendo tabú"7. Pero frente a la indiferencia del Estado ante las demandas de las agrupaciones de mujeres, el grupo Feministas en Acción Libre y 6 Pierre Bourdieu. La dominación masculina, Barcelona: Editorial Anagrama, 2000, p. 63. 7 Suhey Ochoa. 2018. ¿Cómo luchar por el derecho al aborto en Venezuela?, Aporrea (Página Web), Caracas, 3/7/2018. Disponible en: https://www.aporrea.org/ddhh/ a265825.html. | 54 |


Directa por la Autonomía Sexual y Reproductiva -Faldas-R, ofrece asistencia sobre el aborto seguro, con lo cual se pone en práctica el derecho a decidir, aunque sus acciones no representen legitimidad en lo social. Es posible entonces que desde las iniciativas de estas jóvenes activistas y artistas, surjan nuevas perspectivas.

Representaciones sociales en juego Vivimos tiempos de determinismos étnicos y de género. No es extraño que una de las series de televisivas más premiada sea El cuento de la criada que recrea los tradicionales argumentos metafísicos que se apropiaron de nuestros cuerpos. En este relato ficcional se reactivan los valores epistémicos que definieron nuestros cuerpos desde la exterioridad y que determinó el surgimiento del trabajo como medida de riqueza, cuestionado por Michel Foucault8. Es evidente que desde hace mucho nuestro cuerpo no nos pertenece, especialmente nuestro útero, como aclara Beatriz Preciado: “Cavidad potencialmente gestacional, el útero no es un órgano privado, sino un espacio biopolítico de excepción, al que no se aplican las normas que regulan el resto de nuestras cavidades anatómicas”9. El tema del aborto representa una disputa sobre nuestra sexualidad y por ello los argumentos que lo rechazan se tiñen de prejuicios metafísicos que impiden reconocer la necesidad de proteger la vida de las mujeres, sobre todo en América Latina donde los niveles de pauperización social representan un detonante importante. Mientras las mujeres pudientes pueden abortar sin ningún problema en clínicas 8 FOUCAULT, Michel. Las palabras y las cosas. Una arqueología de las ciencias humanas, Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 1968, p. 221. 9 PRECIADO, Beatriz. “Huelga de úteros”, Revista Números Rojos (Web), 29/1/2014, disponible en: https://blogs.publico.es/numeros-rojos/2014/01/29/huelga-de-uteros/. 2014. Esta autora especialista en teoría queer, actualmente se identifica como Paul B. Preciado. | 55 |


especializadas muy costosas que resguardan la confidencialidad, las más humildes quedan expuestas a enfrentar el estigma del aborto, con una vergüenza similar a la práctica colonizadora de la violación. Pero ¿por qué no podemos decidir sobre nuestros cuerpos? El derecho al aborto representa una desobediencia frente al control sobre la reproducción y por ello se condenan y criminalizan a las víctimas. ¿Cómo revertir este estigma y transformar la sangre desde su condición de “mácula”, “pérdida” y “pecado” en un signo de resistencia y rebeldía? Con la recuperación de nuestros cuerpos de manera individual desde una solidaridad colectiva, creando redes y complicidades estratégicas que nos conviertan en un poder oblicuo y flexible, como los fluidos corporales que representan nuestra fuerza y resistencia. La lucha contra las representaciones sociales del patriarcado debe ser intersticial, desde posicionamientos móviles que impliquen descolonizar el género como políticas del cuerpo desde una autocrítica constante. Tal como plantea Susana Rostagnol, la: “decolonialidad implica sobre todo, prácticas colectivas de autorreflexión en el proceso de transformación del yo, por lo que incluye alteraciones en la vida cotidiana, donde emociones, memoria y lazos afectivos cumplen un papel central”10.

La clandestinidad “fronteriza” como estrategia política y discursiva La labor de Women on Waves a cargo de la doctora y artista holandesa Rebecca Gomperts, representa una estrategia interdisciplinaria que apoya el aborto voluntario por medio de la administración asistida de Misopostrol, desde un barco que incorpora una clínica identificada con un contenedor diseñado por el artista Joep van 10 Susana Rostagnol. Aborto voluntario y relaciones de género: políticas del cuerpo y de la reproducción, Montevideo: Universidad de la República, 2014, p. 37. | 56 |


Lieshout, que navega en aguas internacionales, donde se escamotean las jurisdicciones nacionales. Así, la clandestinidad “fronteriza” se convierte en una estrategia que recupera la propiedad del cuerpo a las mujeres, asumiendo nuestra sexualidad como un asunto privado desde el activismo y el arte como práctica colaborativa.

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E eu, que não posso parir, entendo seu direito de não fazê-lo Alessandra Pin Ferraz

Não se trata somente de parir, mas gestar, assumir, tomar uma decisão de proporções grandiosas para sua vida, para a sociedade e para o universo. Passei por todas as fases da compreensão do ato de abortar. Começo na condenação total. Depois passo a ouvir melhor as feministas e entender que a vida da gestante, coisa mais óbvia, também é uma vida. Supero as questões religiosas e amplio a minha compreensão sobre as causas sociais envolvidas. Neste contexto, passei a enxergar a causa da mulher negra, da mulher periférica, da mulher pobre, da adolescente, da falta de orientação devida, da falta de apoio à família, da falta de apoio da família, do machismo que permite ao homem sumir a hora que bem entende. Eu, mulher transexual, quero ter filhos. Penso hoje em adotá-los. Não posso gestar, não posso parir. Já sonhei com transplante de útero, veja só, apenas para ter a possibilidade de passar pela experiência. Depois desisti de continuar investigando a possibilidade, vendo os índices de abandono e a quantidade de crianças em abrigos, ou mesmo nas ruas, esperando um lar. Percebi o tamanho dos preconceitos sobre o tema, tão grandes quanto os quais sofri e sofro até hoje - dadas as devidas proporções. Neste lugar, já me questionei: como posso opinar sobre o aborto se jamais será me dada a chance de, na vida, passar por algo como a gravidez? Imagina então sobre refletir o continuar grávida. Ainda neste lugar, também me questionei, como posso exigir que alguém continue | 58 |


uma gravidez indesejada e doe o bebê para adoção?! – O que até me contemplaria, mas é baixo e egoísta. Soa como uma grande insanidade. Isso me abriu novas reflexões sobre abortos subjetivos. Sobre o que é conceber uma criança, ser mãe, abortar ou adotar, deixá-la para adoção ou abandoná-la à sorte. A primeira vez que ouvi falar de aborto, eu tinha uns dez anos no máximo, e uma amiga, próxima da família, havia recorrido a uma clínica clandestina. Minha irmã contava a história de maneira sensacionalista e também sofrendo, pois acompanhara o pósoperatório e estava em choque com a forma degradante que estava sendo tratada a amiga – que pelos meus cálculos devia ter uns 17 anos. Éramos todas estudantes de colégio católico, sendo que a garota em questão já não estudava mais nesta escola, mas naquela dos “desajustados”. Seus pais militares tinham sido transferidos do Estado e estava sob a responsabilidade de uma tia para que finalizasse o ano escolar. Minha irmã falava sobre o arrependimento da amiga. Eu nem sabia o que era sexo. Cada vez que alguém fala sobre o tema em questão, eu me pergunto onde esta menina foi parar. Hoje deve estar com uns 47 anos. Se disser que o ato não gerou impacto na vida dela e de nós todas, é mentira. O cara que a engravidou?! Nunca soubemos. A responsabilidade ficou toda para ela, inclusive não sabemos como conseguiu o dinheiro para cirurgia, apenas sabemos que depois de um tempo, sumiu. Sumiu do convívio de todas nós. Esta conta ela pagou sozinha. Ela e milhões de mulheres no Brasil. Lembrei-me de outro relato de uma querida que estava num relacionamento frágil e engravidou. Estava pensando se faria um aborto, pois sabia que estar grávida seria o ponto final no seu relacionamento. Sem maiores alternativas, assumiu a gravidez e teve um filho, que depois se revelou autista. Como previsto, a relação fracassou logo após o nascer da criança e o pai passou apenas a pagar a pensão. A mãe ficou | 59 |


com a responsabilidade, dividindo com a avó materna. Questionada se estava arrependida, apenas chorava dizendo que estaria se fizesse o aborto. Mas que sofria mais pelo fato de ter pensado em abortar pela ilusão de manter a relação, que enfrentar ser uma mãe solo. Por fim, lembrei-me da prima que teve quatro abortos espontâneos, e na quinta vez conseguiu ter uma filha. Professa a fé evangélica, tem toda uma estrutura padrão de família, o marido ali do lado. Sofremos todos com a vontade dela de ter um filho, até fiz relação com a minha própria e, depois de tanta frustração, ela conseguiu completar a gravidez e o bebê nasceu. Vibramos todos da família. Ela foi ser mãe naquele manual padrão para mulheres que se tornam mães em azul e rosa, e que pela situação ela já sabia de cor e salteado e não faz a menor questão de não cumprir à risca, em nome do Senhor. Citei três experiências que aconteceram ao meu redor, apenas para afirmar que a gravidez e o aborto são assuntos da mulher. Seguir com a gravidez, tentar engravidar ou interrompê-la é uma delicada decisão, que racionalmente nos leva a entender que a mulher é dona do seu corpo e que nada, nem ninguém, pode intervir. Há um lugar muito próximo entre o que acontece com a mulher que considera fazer um aborto e com a mulher trans em transição: o Estado regular nossos corpos. Antes de chegar à cirurgia de redesignação sexual, fui obrigada a passar por normas e protocolos que regulamentam a minha decisão de não querer ter aquele corpo e de adequá-lo à minha realidade psíquica. Quatro anos de psicoterapia, equipe multidisciplinar, tratamento hormonal, cirurgia estética e construção da neovagina e neovulva. Além de uma equipe judiciária decidindo se eu podia ou não mudar meu nome e meu sexo nos documentos. Em resumo, outras pessoas estavam decidindo o meu destino e o que era melhor pra minha vida. Se alguma delas decidisse, seja por qual motivo for, não autorizar a minha transição, eu simplesmente teria dois caminhos: arcar com as | 60 |


consequências psicológicas e psiquiátricas desta imposição - na época o suicídio era uma possibilidade pra mim; ou seguir ilegalmente os trâmites para atingir os meus objetivos – como fiz com o tratamento hormonal, inicialmente. É aí que a armadilha nos pega pelo pé e nos faz vitimas das circunstâncias. Pessoas que não tem nada a ver conosco e com as nossas demandas tomando decisões por nós e decidindo tutelar nossas escolhas. A troco de quê?! Com certeza de muitas mortes. Por isso os índices alarmantes de assassinatos de mulheres e pessoas trans no Brasil batem recordes no mundo inteiro. Por isso a dificuldade de fazer um aborto ainda que enquadrado pela Lei. Por isso a dificuldade de fazer uma cirurgia de adequação genital/corporal, ainda que prevista como procedimento pelo SUS. Por isso a dificuldade de ser mulher, cis ou trans, num país tão machista e que usa um discurso político moralista de querer mandar no que não lhe cabe. Portanto, independente das circunstâncias, somos donas de nós, dos nossos corpos e do que os impacta. Não digo isso de maneira frívola, superestimada, mas de maneira bem consciente. Também afasto as superficialidades, associações estéticas que o senso comum nos quer propor como se abortar fosse um esporte, ou fazer uma cirurgia de redesignação fosse um capricho. Mal sabem o peso do machismo. Que não permitamos que a mão do Estado regule nossos órgãos, nossas decisões e vontades. O Estado deve nos servir em saúde, respeito e cidadania que é direito nosso. Que sejamos cada vez mais conscientes da nossa posição no mundo e que nos unamos em prol de todas nós. Engravidar ou abortar não é realmente uma experiência para mim, mas eu jamais impediria alguém de decidir por si, ao contrário, me colocaria à disposição para que tudo ocorresse da melhor maneira possível. Logo eu, que não posso parir, jamais lhe impediria de não fazê-lo. | 61 |


Cibele Bitencourt Silva & Débora Laís Silva de Oliveira

meu avô pegando banana do cacho, sensação de normalidade impressão de segurança - nesses dias não há, nem uma, nem outra. o tempo parece parar, in-ter-mi-tentemente sonhos atribulados pensamentos truncados e estranhamente, um luto não sei explicar, e ainda assim, aqui está a presença da ausência deviam ensinar coisas complicadas na escola os mil caminhos entre o sim e o não entre gostar e não saber bem entre o legal e o justo mas não ensinam. a gente aprende com a existência no corpo, na carne vivendo, apanhando, amando

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às vezes queria que tivesse cartilha pras emoções - como fazer para se livrar de algumas umas que a gente cria, muitas que goela abaixo da gente enfiam e meu corpo marcado não só pelas coisas que escolhi mas por muitas que nem quis só que agora vai ser assim: eu sendo pessoa que pertence a mim pessoa minha, e antes de recusar ou consentir, considerar meu tempo. entender meus jeitos. não aceito os estreitos que não sejam das minhas próprias veredas recuso imposições outras troco minhas bandagens crio minhas artes vou assim tratando minhas dores sigo cantando, rindo, dançando também xingando, correndo, chorando muita gente não vai entender, mas isso é com cada um eu sigo aqui, junto de mim, comendo bananas quando - e se - me der vontade

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La marea Lilian Alicia Ortiz

Se ató un pañuelo verde en la muñeca y comenzó a andar con pasos seguros sobre los surcos que el sol araba sobre la fecundidad de la tierra. - Allá, va de nuevo- murmuró una a las otras, mientras le limpiaba los mocos al crío. - ¿Por qué insiste?- comentó la otra. - No es buena influencia para las más pequeñas… no vaya a ser cosa que a alguna se le ocurra imitarla- dijo apretando a la niña contra sus piernas. - ¡Dios nos libre!_ y se dibujó la señal de la cruz en el cuerpo. El camino se ofrecía virginal. Se sintió única, y quizás lo fuera. Desafiando al sol que la encandilaba apresuró el paso. Nunca antes estuvo tan decidida, o quizás sí, en varias oportunidades, pero los desafortunados consejos una vez, un mal presagio otra, el temor, la más de las veces la obligaban a desandar los pasos y a meterse nuevamente en la cueva retrasando el encuentro con la marea. Hoy, sí, se dijo. Hoy, es el día. Y se ató un pañuelo verde en la muñeca y comenzó a andar, descalza, con pasos seguros sobre los surcos que el sol araba sobre la fecundidad de la tierra. Apareció una suave voz… “no vayas” y la desestimó, el mal presagio y se rió de él, y el famoso miedo, a quien ya no temía. El rumor corrió rápido por el pequeño pueblo y de todos lugares salieron a verla. De boca en boca se hilvanaban testimonios y afirmaciones que ella jamás había pronunciado, pero que allí estaban ahora en su boca y fueron tan ciertos que ni la misma verdad puedo desterrarlos, la estaban pariendo como parte de la leyenda. | 64 |


Un largo cordón de chismosos y chismosas le surcó el camino hasta la laguna, todos en silencio, todas en secreta complicidad, todas en secreta admiración, muchas la había precedido en el intento, ninguna lo había logrado en ese pueblo. Los rumores llegaban engarzados en el viento con noticias de otros pueblos, de otras mujeres que con pasos decididos, como hoy lo hacia ella, se sumergían en la laguna y su marea, se decía que eran miles, cientos de ellas. No los miraba, su mirada estaba fija en la laguna. Tantos años escuchando la leyenda, tantas historias tejidas alrededor del relato, tantas preguntas sin respuesta, tantas certezas sin preguntas. Su abuela le había narrado la historia oída de boca de alguna antecesora y esta de otra y de otra y de otra. La historia de la laguna, la leyenda de su marea verde, afirmaba que allí justo en el fondo de la laguna estaba la puerta para pasar al otro lado y que una vez que se pasaba ya no era posible volver. Que no era fácil llegar, no hacía falta que la abuela lo dijera. Nadie sabía a ciencia cierta cuántos metros de agua separaban la superficie del fondo, pero sí se decía que quién llegara, quién resistiera, abriría la puerta y pasaría al otro lado, lo que encontraría allí era parte del misterio, ella intuía que la marea verde transmitía una especie de poder absoluto y que ya nada ni nadie iban a poder con ella. Hoy, sí, se dijo. Hoy es el día. Y se ató un pañuelo verde en la muñeca y comenzó a andar, descalza, con pasos seguros sobre los surcos que el sol araba sobre la fecundidad de la tierra. A orilla de la laguna cerró los ojos y respiró profundo, se dio un beso imaginario a sí misma y se despidió, no te voy a extrañar se dijo porque seré mejor. Sumergió los pies, y sintió la caricia del agua. Le llegó a la rodilla, a la cintura, a los hombros, y tras el grito sordo de la muchedumbre desapareció bajo la superficie. Cerró los ojos y se dejó ir. Nadaba sin dificultad, el espacio era ancho, basto, recóndito. | 65 |


No temía. Buen presagio. Una luz poderosa y verde le dio la bienvenida, y la acompaño por lugares que habían sido peregrinadas por otras, pudo ver el valor, la desesperación, las lágrimas, el sometimiento, la fuerza, el coraje de cientas, de miles y miles a lo largo de muchos siglos, le hablaban en lenguas que nunca había escuchado pero entendía que eran palabras amorosas, palabras de aliento, palabras de hermanas. Era maravilloso. Se dejó envolver por la caricia suave del agua, que se tornaba cada vez más tibia. Abrió los ojos y ahí estaba ella de niña, y vio a su madre, se encontraron en una sonrisa y la comprendió. Más atrás estaba su abuela, se fundieron en un abrazo largo, cuando se soltaron ya no era su abuela, tenía otro rostro. Levantó la vista y la marea verde era un mar de rostros de mujeres que la amaban. El lugar se angostaba, oprimía, aun así todo parecía ajustarse a su cuerpo, nadaba con facilidad. Tuvo la certeza de que lo más importante, lo imprescindible, lo ineludible, lo vital era ser libre. Ella lo era. El espacio se ciñó tanto que costaba nadar, los movimientos se redujeron a lentos espasmos que la impulsaban. Una luz. La puerta. Era cierto. Allí estaba. Extendió la mano, empujó. La puerta se abrió. Una luz brillante la cobijaba. Mezclado con un llanto que le pareció propio, alguien la nombraba, muchas la nombraban con un nuevo nombre, con el mismo nombre, pero en otra palabra. La tomaron de las manos, la abrazaron, le dijeron “bienvenida”. Una de ellas, la mayor, le sonrió y dijo, de este lado la inquisición terminó, nadie es quemada en ninguna hoguera, somos libres… ya nadie más va a parir obligada. La leyenda era cierta, descubrió el misterio, la abrazó fuerte y lloró con gratitud. | 66 |


Imperativo da vontade Ana Sophia Brioschi Santos

Se pudesses, Com a barriga cheia. Qual pássaro dissonante, renegado, Seguir alada: abortarias. Tuas primeiras vezes imaturas, Teus desencontros. As forças nojentas contra a sua O sentir-se flâmula Espalhar-se-ia no imperativo da vontade Sem pregas, nem amarras. Sem marchas prontas Desejos murchos Universal. Manca das pernas perante a liberdade, Ansiedade como um fato. Dado, revirado Em seis faces por seis Seriam vinte e seis estados De meios inconclusivos, fins autorizados Quem agora é feita infantil, Subserviente, | 67 |


Alinharia seu ego à arte Mesmo que não soubéssemos ainda amar Mesmo que não soubéssemos ainda nos organizar Luzes natimortas Insinuariam caminhos menos vermelhos, Ninhos mais preenchidos. E dirias que seguiria outras fotografias prontas D’um caminho de Swann (Um adequado ao teu sexo) Se hoje perguntam destes caminhos Digo que não os conheço. Re-conheço a mordaça Temendo-a pela frente, dela rio pelas costas Em batalha, as ideologias prenhes Ladram feito cães malditos. Tão materiais quanto a guerra, Quanto as varas de marmelo bem posicionadas Contra elas não me recolho Os cães malditos ladram quando a guerra falha, Romantizam os úteros, Agarram-se aos ventres alheios Se a vida segue a verdade real, não a da forma... O parnasianismo não convém, Interditos não me calam Fúnebres, que não posso, celebrar estes nascimentos | 68 |


Da passividade à crítica Nathália Cravo Soares Martins

Fui mulher, designada Sou socialmente forjada Para ser aceita e desejada. Fui, quando pequena, preparada Para ser mãe e dona de casa Numa concepção naturalizada. Me foi ensinado que abortar É crime! É da natureza, o abominar, É errado, é pecado, é matar! Mas não disseram da vida vítima desse julgar! Corpos que gestam sofrem na ilegalidade Enquanto moralistas se põem a gritar. Não me disseram que com homens é diferente, O aborto é legal, seguro e frequente. Pergunte aos 5,5 milhões em que o pai é ausente Ou, ainda de forma mais cruel, inexistente. Mas não há julgamento, o tratamento é indulgente, Com os donos de poder é permitido ser incoerente.

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Reza Tamyres Batista Costa

Para elas, a vida, com toda sua potência.

Pelo olhar de um pássaro, geralmente não se nasce muitas histórias, conheço poucas na verdade. Pelo líquido, transparente que molha a íris, por pupilas dilatadas pelo medo ou pelo alumbramento, ou ainda por tudo aquilo que se grava como memória na retina, pouco se conta, ainda mais quando se trata daquilo que é tocado pelos olhos alados dos representantes de minha espécie. Em meu último vôo pensava nisso, meio agoniado, meio livre - sensações que só um vento forte no peito pode causar - então a memória me devolveu uma saudade chamada Uná. Era ela incontornável, a pele de açúcar mascavo, a voz melodiosa varrendo a casa junto com o movimento da vassoura, o riso solto, de graça para a vida. A agilidade que se escondia sob o corpo avolumado de uma mulher também traçava o modo como cozinhava e cuidava de quem estivesse perto. Se a vissem, descascando inhame ou marinando lascas de banana para corá-las de um amarelo ainda mais vivo com ajuda do açafrão, ou fazendo água de alfazema para reordenar o cheiro dos quartos, todas as descrições que fiz agora teriam se tornado desnecessárias. Seu lar, no final de uma rua estreita e calçada por paralelepípedos onde se amontavam pequenos quadrados disformes ainda sem reboco que todos chamavam de casa, era um ponto de encontro, ou de abrigo, dependia muito da estação. Uná, mulher diversa, era meio curandeira, | 70 |


meio anciã e com as rezas dela, resolvia pendengas com deus e o diabo, tornando-se interlocutora privilegiada de ambos. As gentes iam chegando, chegando. Rotineiramente, recebia pedidos para encontrar o amor, ou isto já tendo acontecido, pediam para que ele ficasse bem emaranhado nos peitos dos amantes. Rogavam por novos empregos, gestações, desadoecimentos, prosperidade e tantas outras súplicas que eu mesmo já não me lembro onde começava ou terminava o fio desses desejos. Uná ouvia problema, ouvia milagre. Era criança, mulher, homem, gente velha, que vinham de partes diferentes para conversar com ela e descobrir o melhor a ser feito a depender da situação. Foi assim que a conheci, menos interessado em mistérios do alémmundo, do qual ela era exímia conhecedora e mais afeito aos mamões viçosos que ela distribuía pelo chão do seu quintal (ou terreiro, como aquele lugar existia em sua boca). Tomei um susto, pois ela me tratou com se fôssemos velhos conhecidos, acarinhou minha penugem preta com intimidade, como se estivesse contando estrelas nos céus de inverno. Aninhou-me numa jardineira jeans suja de barro que usava para colher as plantas e trabalhar a terra e me chamou pelo nome, “Saim, eu estava te esperando”. Neste momento, eu bem poderia ter fugido de sua figura, atormentado pelo tom intenso em que ela me dirigia a palavra, porém imediatamente após ouvir sua voz, lembrei que talvez eu também a estivesse esperando por muitos anos. Existia algo, como uma força, do qual ignoramos a origem e o sentido, que nos fazia desde sempre velhos conhecidos um do outro, companheiros de antigas viagens, e deste modo nos tornamos amigos. Uná me ensinou novas palavras num exercício incansável de me fazer comunicar com o mundo e me fazia também de feliz ouvinte de anotações que ela mantinha num caderno grená que cheirava a óleo de cravo. “Poesia Saím, pra aguentar o peso da vida”. | 71 |


Passei em sua casa, se não há em minha mente mais ranhuras, do que fatos concretos, a primavera e o verão inteiro. Eu a via trabalhando inesgotavelmente em oferendas espirituais, nas orações que ela mesmo inventava, e assim tecia um diálogo próprio com o sagrado, e quem olhasse de longe, bem poderia dizer que aquilo beirava à loucura. As mandingas de Uná só não eram mais secretas de sua vida. Saía silenciosa em algumas madrugadas e só voltava quando o dia insinuava suas primeiras cores, às vezes sorridente, às vezes com os olhos inchados e úmidos testemunhando que a vida é corte, além do que podemos ou conseguimos prever. Antes que eu tivesse partido de vez, percebi seu amedrontamento ao reconhecer um atraso incomum em suas regras e ela sabia, com uma certeza de pedra, que algo começava a crescer em seu ventre. Uná costurava as tardes passando e repassando aquele acontecimento. Não podia continuar com aquilo vivo dentro dela. Não por agora, ela não saberia andar a dois, nem mesmo dividir seu corpo e tempo com outra pessoa. Se a vissem, vocês não duvidariam de sua sinceridade. Adiantou-se em preparar as beberagens, grandes garrafas de café amargo e canela. Saiu ao quintal para recolher as mudas de sálvia e arruda, e fazendo isso cantarolava canções que pelo tom amarronzado deveriam ter saído de baús cheios de poeira, mas que despretensiosamente acabavam por colocar no caminho certo decisões que em algumas épocas de nossa existência, se mostram necessárias. Depois de macerar as ervas, e banhá-las em água quente, sorveu as infusões que tinha preparado. Deitou-se na esteira de palha entre a cozinha do quintal e esperou. Abençoou a si própria e também aquilo que, dentro de si, já não existia mais. Estava portanto, livre. Tinha-se. | 72 |


Gritaram-nos bruxas, santas, mães, loucas, aborteiras… Nós gritamos livres! Aline Gomes Tavares Matias

Em nossa sociedade a maternidade se apresenta aos corpos com útero como destino, como finalidade que determina formas de ser, de pensar, de sonhar, de agir, de desejar. Essa maternidade idealizada configura-se como dispositivo produtor e modulador de subjetividades. A partir de minha colisão com esse dispositivo, passei a buscar compreender e analisar os discursos que teceram naturalidade a maternidade que remete à santidade, supostamente natural, própria e compulsória aos corpos com útero, bem como em outros duros contornos atribuídos aos corpos com útero. Segundo Badinter (1985), no século XVIII, era comum que as genitoras enviassem seus filhos para serem amamentados e cuidados por amas de leite, retornando por volta dos quatro anos, quando não vinham a óbito. Algumas crianças eram cuidadas e amamentadas pelas amas em suas próprias casas, porém com pouco contato com a genitora, ou ainda, eram abandonadas nas rodas dos expostos [1]. Tais práticas eram comuns e não causavam nenhum drama ou desconforto social. É documental que já na Idade Média, os corpos com útero utilizavam diversos métodos contraceptivos que consistiam em “ervas transformadas em poções e ‘pressários’ (supositórios vaginais) usados para estimular a menstruação, para provocar abortos ou para criar uma condição de esterilidade” (FREDERICI, 2017). | 73 |


Diante disso, questiona-se o que transformou o procriar em modulador feroz de comportamento e demarcação de destino aos corpos com útero? A que (ou a quem) serve a produção de uma maternidade ‘sagrada’ e repreensão/criminalização dos métodos contraceptivos e abortivos? Com a eclosão do capitalismo, a necessidade de mãos de obra e a ocorrência de crise demográfica devido a doenças e pestes dizimaram grande parte da população pobre. Torna-se urgente a necessidade forjar estratégias para controle dos corpos com útero em performance de gênero feminino, a fim de produzir a finalidade de procriação. Com esse objetivo, emerge a caça às bruxas, sendo essas consideradas qualquer corpo que desviasse da norma mulher esposa, mãe, recatada e submissa que buscando a expropriação do controle dos corpos com útero sobre si mesmos, forjar subjetividades e modos de vida, expropriar e criminalizar os saberes intergeracionais acerca dos métodos contraceptivos, abortivos e das parteiras, amedrontando a sociedade, produzindo um inimigo público. Os duzentos anos dessas práticas políticas acabaram por dizimar milhares de bruxas desviantes e acarretaram transformação dos corpos com útero em máquinas para procriação (FREDERICI, 2017). O trabalho forçado dos corpos com útero foi fantasiado e envolto em um ideal materno, constituído por práticas discursivas, principalmente, da religião e da medicina. A partir da cultura religiosa ocidental, o ideal materno teve como modelo de mãe, a Maria, mãe de Jesus. Esta representação religiosa foi discursivamente criando modelo de feminilidade, mãeperfeição, santamãe. Segundo Vazquez (2014), na teologia católica, a dores do parto são rebatimentos do pecado original às mulheres, uma forma de se purificar e se aproximar de Maria. Como forma de reparar e diminuir a culpa do pecado original e a luxúria do ato sexual, caberia à mulher se tornar santamãe, colocar a criança em primeiro lugar e ser recatada. Assim, a religião produziu | 74 |


discursivamente a maternidade inatingível e santa como elemento purificador da mulher pecadora (VAZQUEZ, 2014). Segundo Badinter (1985) ao longo do século XX, no consolidado século da criança, a maternidade foi alvo de investimentos do discurso médico. Para fortalecer o papel da mulher como cuidadora e protetora da futura mão de obra, a maternidade, para além da questão biológica, tomou status de continuação da espécie atrelado à afetividade, amor incondicional, maternal. A fim de garantir a saúde e bem-estar das crianças, práticas da época que distanciavam a mulher do seu destino natural de santamãe, como o abandono nas rodas dos expostos e a amamentação por amas de leite, foram desqualificadas. A mulhermãe passa a se ocupar e assumir os cuidados com os filhos e garantir sua saúde e bem-estar. Tal ocupação torna-se motivo de orgulho e desejo[2]. Para isso, a mulher necessitou receber instrução e auxílio do saber médico, para aprender a ser boamãe (BADINTER, 1985). Os discursos dos especialistas e religiosos produziram o ideal de maternidade e o atrelaram ao fato de se ter útero, à feminilidade, ao ser mulher. Qualquer prática sexual sem finalidade de procriação e toda forma de método contraceptivo e/ou abortivo deveria ser abandonada e demonizada. Todo corpo com útero deveria se tornar mulher-santamãe, obrigadx a receber e gerar com gratidão xs filhxs enviadxs por deus. Assim, tudo que transbordava a norma estabelecida, todo desvio, passou a ser taxado como aproximação ao mal, como bruxaria, desnaturalização, como pecado. O capitalismo, através dos discursos, transformou a possibilidade de gestar, atrelada à suposta obrigação com o cuidado, em trabalho compulsório e não remunerado. Assim, a santa maternidade se constituiu enquanto engrenagem da máquina de moer corpos que com útero em prol de robustecer a ordem compulsória do sexo/gênero/desejo e de base para a demonização de qualquer prática divergente que não garantisse produção de capital. | 75 |


Nessa perspectiva, as pautas pró-reprodução/monogamia/ casamento e anti-aborto, são forjadas e ficcionadas, hierarquicamente e assimetricamente pelos discursos religiosos, valores morais e culturais sobrepondo no lugar da biologia. Mesmo diante do fatos de que os abortos continuam a acontecer, como sempre aconteceram, a sociedade recusa-se (como ainda hoje) a pautar o debate que visa a esvaziar de sentido a obrigatoriedade e sacralidade da reprodução/ maternidade e garantir aos corpos com útero certo poder e direitos sobre seus corpos. Conforme Barone (2018), os dados estatísticos acerca das mortes em decorrência de abortos inseguros são enganosos em face à sua criminalização e ainda as mortes são produtos da hipocrisia e negligência da sociedade que não se compromete em colocar em pauta o aborto como questão de vida. É sabido que os abortos continuam a acontecer expondo os corpos que não possuem possibilidade de pagar pelos procedimentos nas caríssimas clínicas clandestinas a procedimentos improvisados e desprotegidos. Butler (2018), considera que toda vida é precária, devido à sua possibilidade eminente de finitude, contudo, algumas vidas são expostas de forma desigual à precariedade, tendo sua possibilidade de morte maximizada devido às situações politicamentes induzidas. Assim, considero que a criminalização do aborto distribui de forma desigual a precariedade aos corpos com útero e gendrados, os expondo a risco mais elevados às violências e à morte, pautando-os como vidas que não importam, que não são passíveis de luto. Ainda em companhia de Butler (2014), compartilho da perspectiva do gênero enquanto performance dramatizada a partir de normas instituídas e reiteradamente repetidas sobre o corpo até serem tomadas como naturais, tornando aquele corpo viável e útil a uma sociedade. Assim, considero que os dispositivos de poder atuam na produção de discursos a fim de manter estabilidade a ordem binária e heterossexual | 76 |


que exige coerência entre um sexo, um gênero e os desejos a fim de tornar os corpos úteis ao capital. O que confere mais a noção de estabilidade à performance de gênero feminino do que a maternidade? A maternidade é tecnologia para a manutenção de uma suposta natureza entre os corpos com útero e a performance do feminino e ainda o feminino enquanto procriador, cuidador e dócil, bem como vetor para garantir as relações monogâmicas, heterossexuais baseada na sacralidade de papéis. O que proponho é pensarmos que o ideal de gênero e suas diversas tecnologias (maternidade, monogamia, casamento, criminalização do aborto, entre outras normas) como mantenedoras de uma coerência e estabilidade são estratégias da necropolítica. Achille Mbembe (2018), propõe que na gestão da vida forjam-se classificações, hierarquias e discriminações que visam determinar quais vidas importam e quais podem morrer. Aponta que a política da morte sustenta-se em uma dimensão racial que transborda a condição de precariedade e subalternização, anteriormente reservada aos corpos pretos, e se amplia no que o filósofo aponta como devir-negro do mundo. Assim, o neoliberalismo, enquanto face devastadora do capitalismo, produz indivíduos descartáveis; que fogem à ordem colonial, favelados, desempregados,, refugiados, desviantes e dissidentes, que são expostos de forma diferencial à morte. Essa produção de sujeitos degenerados, desnaturados, inimigos da norma e da população de bem, autoriza o Estado a agir por meio de práticas genocidas, que expõe essas vidas e corpos a morte por deliberação ou negligências. (MBEMBE, 2018) Diante as estratégias de controle, governo, maximização da precariedade e política inimizade, como criar táticas para expansão das vidas e compor alianças para resistências? Paul Preciado (2018) afirma a necessidade de ruptura epistemológica com a lógica identitária sexual que produz as categorias mulher e homem, compreendendo que o sexo e sexualidade não são essenciais | 77 |


aos corpos e sim produtos das tecnologias sociais e discursivas que fazem a gestão da verdade e da vida. Afirma que “não há sexos e sexualidades, mas uso dos corpos reconhecidos como naturais ou taxado de desviantes” (PRECIADO, 2018b, p.20). Em seu “Manifesto Contrassexual”, Preciado (2014), a partir das composições com pensamento de Michel Foucault, nos provoca a pensar em tecnologias de resistências às produções disciplinares das sexualidades, que não se dão nas lutas contra as proibições e sim na contraprodudividade, nas produções alternativas de formas de prazersaber à sexualidade moderna. Assim, propõe uma nova sociedade, a sociedade contrassexual. Essa sociedade objetiva incessantemente a desnaturalização das práticas sexual e das tecnologias que sustentam a lógica binária do sistema sexo/gênero. Em aliança com Butler (2018), compreendo que a precariedade está associada impreterivelmente à dimensão política. Precisamos esvaziar as ações políticas das lógicas identitárias que segmentam as lutas e compor alianças. ‘Ninguém escapa da dimensão precária da vida social’. Assim é necessário entendermos a inviabilidade de coabitação sem a compreensão que a condição precária generalizada nos obriga a opor ao genocídio e a defender a vida em termos de equidade. ‘Lutamos na precariedade, a partir dela e contra ela’. (BUTLER, 2018, p. 131). Essas perspectivas nos convocam a não nos ocupar em lutas contras proibições, bem como a lógicas identitárias, mas a transvasálas. Desnaturalizar o gestar, a maternidade, heterossexualidade, o casamento, a monogamia e tantas outras tecnologias instituídas enquanto natureza sagrada dos corpos e reconhecê-las e utilizá-las (ou não) como uma dentre as diversas possibilidades de uso dos corpos. Nos aliançar aos corpos monstruosos e desviantes a fim de compor moventes tecnologias de resistências que nos permitam experienciar as múltiplas possibilidades dos cotidianos. Seguir e viver nossos | 78 |


desejos intensamente, esvaziando de sentido os limites ficcionalmente estabelecidos. Ser bruxx, santx, cis, trans, aborteirx, hetero-homo-bipan-sexual, esposx, loucx, putx, procriar e tantas outras possibilidades como tecnologia de resistências para, enfim, nos reconhecermos e nos gritarmos livres.

REFERÊNCIAS BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BARONE, Maria Antonella. Senhoras de si: Problematizando as incidências das biopolíticas nos corpos que sangram e co-produzindo narrativas que (re)inventam a vida a partir da prática do aborto. VITÓRIA. 2017. Dissertação (Mestrado em Psicologia Institucional) Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2017. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. ______. Corpos em aliança e a políticas das ruas: Notas sobre uma teoria performativa de assembléia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, 2004. Tradução do coletivo Sycorax. Editora Elefante: São Paulo, 2017. MBMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018. | 79 |


PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014. ______. Transfeminismo. São Paulo: n-1 edições, 2018b. VAZQUEZ, Georgiane G. H. Sobre modos de produzir as mães: Notas sobre a normatização da maternidade. Ponta Grossa, Paraná: Revista Mosaico, v.7, 2014.

[1] Mecanismo giratório embutido nas paredes de instituições de caridade em que era possível abandonar/expor recém-nascidos sem identificação de quem abandonava. [2] Insta ressaltar que não considero passividade nesse processo. Naquele momento, a gestação e a maternidade envolta do sagrado foi uma possibilidade tática dos corpos com útero para galgar ascensão social, prestígio e reconhecimento que não era possível aos corpos com pênis.

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Ladainha das Finadas do aborto Finadas do aborto

Nós honramos a Jandyra Ingriane e Caroline Nós ouvimos Elizangela, meu deus As Finadas do Aborto, oiá Poderia ser sua filha, Sua mãe ou sua tia, Sua irmã ou sua amiga, oiá, meu deus Vai deixar ela sozinha? oiá O Gabriel foi à Maria O Gabriel foi à Maria Se esse filho ela queria, oiá, meu deus Ela disse que podia, oiá Livre arbítrio é livre escolha Livre arbítrio é livre escolha Legaliza o aborto, oiá, meu deus Pra salvar essa mulher, oiá Teve pai enterrando a filha Teve mãe enterrando a filha De gravidez interrompida, oiá, meu deus | 81 |


Porque a lei não permitia, oiá Ela morre com a sonda Com o talo da mamona Com agulha de tricô, oiá, meu deus Com remédio sem doutô, oiá

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Sem tĂ­tulo As Finadas do Aborto | 83 |


Sem título Ivana Bazán

Sem título Ivana Bazán | 84 |


Pañuelos verdes Ivana Bazán

Agitando pañuelos Ivana Bazán | 85 |


i Abortamos la autoridad Fiorella Barone

Her-manadas en lucha Fiorella Barone | 86 |


TĂ­tulo da foto Ivana Bazan

Libres nos queremos Fiorella Barone

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Tinto 2 Valeria Carbajal

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Somos todas clandestinas: a realidade do aborto no Brasil e a vida das mulheres Janine Oliveira

“Ninguém pode descrever, de fato, a angústia e o desespero sofridos por uma mulher ao ver seu corpo se voltando contra si mesma, como acontece no caso de uma gestação indesejada”. Silvia Federici (2017, p. 165)

Estudar sobre o aborto no Brasil apresenta uma complexidade singular: embora seja uma realidade vultuosa na vida das mulheres, existe um silenciamento repressor por meio de aparatos políticosjurídicos, valores e condutas sociais que estão permeados por uma lógica de exploração-dominação e controle dos corpos femininos. São histórias que vivenciam a clandestinidade por meio do sigilo, medo, culpa, sequelas emocionais e corporais e morte, tendo como pano de fundo a criminalização e ilegalidade do aborto. No Brasil estima-se que mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto. Isto significa dizer que a realidade do aborto encontra-se mais próxima de nós do que imaginamos: são as mulheres que cruzam pelas nossas vidas que compõem esses dados ou nós mesmas. Portanto, debater sobre aborto implica em considerar as diversas dimensões – fincadas em uma realidade concreta – que incidem sobre as mulheres que não são abstratas, mas reais. | 89 |


O aborto é um fato social, histórico e presente no decorrer da vida reprodutiva das mulheres. Elas (nós) abortam (abortamos) de diversas maneiras: com cytotec, talo de mamona, garrafadas, agulha de crochê, chás como de quebra pedra e espinheira santo. Realizam (realizamos) o processo de aborto sozinhas; na casa de amigas ou do companheiro; em uma clínica ginecológica em um bairro nobre ou em uma clínica que mais lembra um açougue; com uma rezadeira ou vizinha que sabe manipular ervas ou ajuda a utilizar o cytotec, com profissionais que tem um compromisso ético duvidoso, com pessoas que não têm conhecimento técnico sobre a realização correta do procedimento ou com mulheres que formam uma rede feminista que propõe ajudar outras mulheres a interromper uma gestação indesejável de modo seguro. Em resumo, como a própria história e os dados apontam, as mulheres abortam. Dessa forma, existe uma incongruência na legislação brasileira: ao passo que a prática do aborto é uma realidade em algum período da vida de muitas mulheres, por que criminalizá-lo e proibi-lo? A ilegalidade e criminalização do aborto no Brasil, previstas nos os artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro, não impedem que as mulheres recorram a métodos de interrupção de uma gestação indesejável, seja consentindo a terceiros ou provocando em si mesmas. Cerca de um milhão de abortos inseguros e clandestinos são realizados no país. Desses, são registradas mais de 200 mil internações hospitalares por complicações em decorrência a um aborto não finalizado ou por demais complicações, como hemorragia – resultado das condições precárias que o procedimento em sua grande maioria é feito. Por consequência, a cada dois dias uma mulher vai a óbito no Brasil em virtude do aborto clandestino e inseguro. A negação ao direito ao aborto, a autonomia sobre a vida reprodutiva e a liberdade de escolha, além de levarem as mulheres a se submeterem a formas inseguras para interromper uma gestação indesejável, são responsáveis também pela morte de mais de 200 mulheres por ano | 90 |


em decorrência de complicações no processo de aborto clandestino e inseguro, colocando, portanto, o aborto como a quarta causa de mortalidade materna no país. Deve-se atentar para um fato que perpassa esses dados. As mulheres que sofrem com as consequências mais atenuantes da prática do aborto inseguro e clandestino, ou seja, com a internação hospitalar e/ou o óbito, apresentam, para além de um aborto ilegal, características que as unem: são mulheres, em sua grande maioria, negras, pobres e com baixo índice de escolaridade que devido à falta de recursos financeiros se submetem a procedimentos de aborto que colocam suas vidas em xeque. São essas mulheres (negras, com pouca escolaridade e em situação de pobreza) que compõe os dados de morbimortalidade por aborto provocado e, portanto, são as que mais sofrem com as consequências do caráter proibicionista e ilegal do aborto e com incidência do controle dos seus corpos. Nesta seara, a questão do aborto no Brasil envolve três dimensões fulcrais que são consubstanciais e coexistentes em que incidem na vida das mulheres: sexo, raça e classe. Essas conformam relações sociais que extrapolam a particularidade do aborto no país mas, por meio destas, podemos compreender o enlace que constrói a essência da criminalização e ilegalidade do aborto no Brasil: controle do corpo feminino pelo sistema patriarcal-racista-classista. Na particularidade da sociedade capitalista, Federici (2017) aponta: o capitalismo sobrevive ancorado principalmente na promoção da violência contra as mulheres, que explora e domina os seus corpos e os produtos deles. A dominação e a exploração dos corpos das mulheres ganham mais expressividades e particularidades distintas quando atentamos para a questão da raça: são as mulheres negras que desenvolveram e desenvolvem trabalhos precarizados e em condições insalubres; que estão na prostituição; que resguardam na sua história o estupro; cujos filhos e filhas são transformados(as) em mercadoria, | 91 |


em mão de obra barata. Assim sendo, este sistema agudiza a lógica do patriarcado e do racismo, constituindo três formas sócio-históricas consubstanciais e coexistentes de exploração-dominação das mulheres, transformando o controle do corpo feminino em uma zona de dominação masculina e do sistema social, econômico e político. O controle sobre os corpos das mulheres implica principalmente na retirada da sua autonomia e liberdade sobre sua vida reprodutiva e sexual, tendo as representações masculinas (pai e marido), o Estado e instituições religiosas no decorrer do tempo histórico como regulamentadores e vigias desses corpos. Deve ser ressaltado que na análise histórica pode ser observado que quanto mais tem-se desenvolvimento das forças produtivas mais o corpo feminino passar ser pauta de domínio público do que privado. Assim, lançar o olhar para esta realidade possibilita compreender como até a atualidade nós, mulheres, ainda não conseguimos atingir o exercício pleno de nossa cidadania, liberdade e autonomia. Entrelaçada a este debate, a questão do aborto sempre esteve na pauta das instituições que regularizam a nossa vida em sociedade. A sua história é repleta de controvérsias e perseguições às mulheres que ao terem seu poder de decisão usurpados por terceiros, encontram na ilegalidade, nos saberes populares e na solidariedade feminina métodos que interrompam uma gestação indesejável ou, como popularmente conhecida, métodos que “façam descer a menstruação”. Neste contexto, a organização política e social das mulheres em torno da pauta é imprescindível: além de conseguirem ao longo da história denunciar as diversas violências sofrida pelas mulheres, de construir uma rede feminina de apoio às mulheres e de resistência ao sistema patriarcal-racista-capitalista, o movimento atenta para a necessidade de o aborto ser debatido não só como questão de saúde pública mas como principalmente um direito das mulheres de poderem exercer livremente sua autonomia e cidadania e decidirem | 92 |


fulcralmente sobre a reprodução. São as mulheres organizadas que possibilitam a construção de um caminho histórico que viabiliza tirar das sombras uma realidade expressiva: as mulheres abortam.

REFERÊNCIA FEDERICI, Silva. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

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O útero tomado de assalto Emmanuel Theumer

O direito ao aborto admite um terreno hegemônico dominado por certas formas legais que já não são mais as mesmas pelas quais as feministas combateram e rearticularam durante os anos 1960 e 70. Agora, um conjunto de discursos tecnocientíficos ganhou terreno quando se trata de interceptar a liberdade reprodutiva. A tentativa de passagem de um regime de criminalização parcial do aborto para um misto que envolve prazos e causas ocorre em um diagrama cognitivo que torna o corpo uma individualidade e, ao mesmo tempo, produz ficções face às quais uma pessoa grávida pode perder esse estatuto para desdobrar-se em duas entidades incomensuráveis, a “grávida” e o "zigoto", ou na qual um embrião crioconservado não adquire o estatuto de pessoa até tocar a parede uterina. Versões substantivas de vida, morte, humanidade dançam em espiral em nossa atual conjuntura. Enquanto isso, uma fracassada promoção moral e penal da maternidade forçada sujeita todas as pessoas com capacidade gestante, cis e transgênera, a um estado de insegurança jurídica. Lendo Bruno Latour a partir de Silvia Federici, Bárbara Duden a partir de Emma Chirix e Paola Bergallo a partir de Donna Haraway, poderíamos afirmar que nosso debate atual tem lugar em uma transformação sedimentada na experiência da gravidez, o sucessivo avanço do controle tecnológico sobre o corpo. Há cerca de cinquenta anos, a cultura visual tecnocientífica produziu uma nova imagem para a “História do Homem”: a visualização endoscópica do feto. Tal écfrasis foi acompanhada pelo desenvolvimento de tecnologias de ultrassom e de detecção precoce da | 94 |


gravidez apresentadas em termos de avanços ou progressos científicos. Antes do século XX, a experiência da gravidez era uma possibilidade entre outras; portar um “fruto” ou encontrar-se “grávida” era produto de um conhecimento do corpo distante de desdobramento jurídicobiomédico do corpo. Um desdobramento no qual intervêm testes hormonais de urina, imagens tridimensionais, detecção do “sexo” ou “anomalias congênitas” do feto e o bem jurídico da vida desde a concepção. Essa transformação foi possível graças a um processo não acabado de purificação de saberes reprodutivos – transmitidos in extenso pela tradição oral das mulheres – em benefício da construção da ciência como autoridade enunciativa e de uma “saúde nacional” em mãos do Estado moderno. Nesses termos, a persistência de parteiras em comunidades rurais e indígenas deveria ser considerada um importante signo de resistência histórico-cultural. As lutas pela legalização do aborto – lutas que, a partir de uma história sexopolítica do corpo, poderíamos qualificar como a tomada do útero de assalto11 – se ramificam amplamente pela transmissão de saberes reprodutivos entre camponeses e indígenas, mas também pela reapropriação farmacopolítica do misoprostol para abortar, pelos grupos de partos autogestionários, pelo desenvolvimento de tecnologias comunicativas contraconvencionais que garantem a manifestação da vontade de decidir, pelo acesso a um cuidado de saúde trans-específico… Disputas que devem lidar com a elaboração de uma ética referida aos usos das tecnologias para a detecção da gravidez, a atribuição do sexo e as anomalias congênitas. 11 Enquanto de raízes, mitológicas, titânicas, parafraseando aqui a conhecida frase de Marx “o céu tomado de assalto”, com a qual Karl Marx descreveu os levantamentos da comuna de Paris. Marx alude a interrupção da ordem celestial- capitalista por um movimento insurrecional e de auto-gestão. Embrulhado nas politicas de assistência reprodutivas apresentadas como naturais as tomas do útero pela assalto é um modo de compreender a disputa pela autodeterminação corporal frente a soberania do Estado. Considerando o lugar da reprodução da mano de obra dentro da reprodução social do capitalismo. Federici chamou “revolução ponto zero” ao processo da disputa pelo controle da reprodução. | 95 |


Os restauradores da ordem heteropatriarcal insistem em um “estado natural” ameaçado frente ao direito ao aborto. Não é a primeira vez que o discurso da diferença sexual, enquanto verdade construída como “fato biológico”, foi utilizado contra as mulheres ou para desativar a agência feminista e transgênera. O historiador Thomas Laqueur demonstrou isso no contexto das primeiras revoltas das cidadãs francesas e inglesas dos séculos XVIII e XIX. A construção de um estado natural de dois sexos opostos e incomensuráveis (cujos pais geradores vão de Caspar Bartholin a Jean-Martin Charcot, passando por Carl Linneu) serviu de fundamento epistemológico para as afirmações ilustradas dos papéis de gênero, as quais outorgavam inferioridade jurídica, biológica e moral às mulheres. Essa construção de uma verdade anatômica do sexo enfatizou os órgãos denominados “reprodutivos”12. Aqui, o útero tornou-se a sinédoque da mulher moderna, uma estabilização sexual atualmente abalada pela resistência feminista e trans. A subvalorização capitalista do trabalho de cuidado foi acompanhada do controle e resguardo da “matriz geradora” de mão de obra, de uma “população” para o Estado, do enaltecimento da figura da mãe (atualmente, em museus, praças e cédulas se podem encontrar representações da República ou da Pátria que realçam o seio materno, o leite nutritivo da reprodução nacional). Essa questão exigiu o encerramento doméstico e a perseguição disciplinar das práticas sexuais não-procriativas – prostituição, masturbação, homossexualidade –, mas também a normalização corporal para pessoas intersexuais e deficientes. As marcas heterossexistas que meu corpo sexual não-reprodutivo carrega são perpendiculares ao controle biopolítico desse órgão produtor da nação. A experiência contemporânea da gravidez posiciona as grávidas a 12 La antropóloga Emily Martin demostró cómo incluso la co-participación de las células reproductivas durante la concepción es filtrada a través de un relato de conquista seminal sobre el óvulo, superficie pasiva a la espera de una penetración. Dio cuenta de los dejos hetero-sexistas del discurso biológico. | 96 |


tomar uma decisão: estabelecer um projeto de gestação ou não, carregar um zigoto ou evacuá-lo. Interromper ou vincular a experiência da gravidez a uma compulsão heteroconvencional mediante a qual nos tornamos acessíveis ao mundo. Hetero no sentido de uma grade de intelegibilidade corporal que atribui teleologicamente a cada corpo um sexo-gênero-desejo. Convencional porque o reconhecimento do ser vivo também se estabelece sob padrões normativos do que se supõe um corpo produtivo para o capitalismo, sob técnicas biomédicas, arquitetônicas e jurídicas de produção da deficiência Não há possibilidade de afetar a imagem do feto sem essas lentes de apreensão corporal. Essa história, que penetrou nossos corpos sem maiores preâmbulos, é um dos sedimentos científico-políticos que enfrentamos cada vez que invocamos a autodeterminação corporal.

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Essa trama que é o aborto. Desenredando sentidos e tecendo lutas13 Leticia Alves Maione

Um exercício que temos realizado em oficinas entre mulheres de movimentos e coletivas é perguntar o que nos vem à cabeça quando pensamos em aborto. Nesse momento, o cartaz onde registramos todas as palavras sugeridas fica cheio de possíveis significados, nos colocando em contato com as experiências das mulheres e os nossos contextos, em relação ao aborto. Sangria poderia aparecer durante o exercício, revestida de diferentes conotações. Como um sintoma a se esperar durante um procedimento de interrupção da gravidez que ocorre quando a mulher vive condições que permitam a realização de um aborto em tranquilidade e segurança, através de uma estrutura social que a respeite, um sangramento normal que sinalize para a própria mulher que ela não está tendo hemorragias. Ou como um sintoma alarmante, em oposição ao descrito acima. No Brasil, o léxico que reveste, na maioria das vezes, os sentidos do aborto tem como base as violências que Estado, cristianismo e sociedade inscrevem nas experiências das mulheres em relação à sua auto-determinação reprodutiva: criminalização social e penal da prática, a falta de cuidados e serviços públicos, o descumprimento do aborto legal, a prática abortiva colocada como instrumento de controle 13 As oficinas às quais fazemos referência aqui se tratam de atividades da Zine Útero Livre, que busca registrar e compartilhar discussões sobre aborto, que ocorrem durante oficinas e debates sobre esse tema. Em 2017, nossas oficinas sobre direito à comunicação em aborto nos deram algumas pistas para trabalhar o tema a partir de perguntas e perspectivas que nos ajudaram a questionar as visões sobre aborto, em nosso contexto. Acesse a página: https://uterolivre.milharal.org/. | 98 |


de natalidade, a negação aos desejos das mulheres, entre outras.14 Os sentidos pejorativos (a infantilização, desumanização e estigmatização) ainda são investidos pelos setores fundamentalistas através da grande mídia, da educação nas escolas, das novas tecnologias e da defesa da família nuclear branca, heteronormativa, em detrimento das várias constituições e práticas familiares que não existem dentro desses padrões normativos. Mas, existe outra dimensão muito importante que também tem surgido nas oficinas, e ela tem a ver com uma história de resgate, contranarrativa e memória. Por um lado, antes de 1940, não havia legislação no Brasil que criminalizasse formalmente o aborto, por exemplo. O direito, como mais uma forma de qualificação social, hierarquização e diferenciação de indivíduxs, não perseguirá ou cobrará a legalidade da mesma forma a todas as mulheres em nossa sociedade colonial, racista e capitalista. A missão cristianizadora, os códigos ocidentais de gênero e a disposição territorial e política difundida com a legislação do aborto pelo mundo, segundo a geopolítica do poder colonial, é trazida por Nathália Diórgenes (2017), em uma análise de extrema relevância para entender a questão do aborto, nos países categorizados como do Sul. Por outro lado, nos lembram os movimentos de mulheres negras, de comunidades indígenas e habitantes das florestas, os conhecimentos e as práticas dos corpos integram a história dos povos neste e em outros territórios, antes da imposição das instituições modernas. É também uma marca feminista, no Brasil, a contestação ao poder e ao controle médico sobre os corpos das mulheres, como nos lembram as contramemórias do movimento de feministas autônomas que se reuniam ao redor da “construção e recuperação de saberes baseados nos corpos e nas experiências das mulheres” (REIS, 2010). 14 Estado com “e” minúsculo para marcar a nossa irreverência ao estado brasileiro, que governo após governo, não reconhece e não garante as diferentes experiências das mulheres em relação a parir, abortar e cuidar do que ocorrerá com seu próprio corpo e sistema reprodutivo. | 99 |


É nesse sentido que acredito que tanto o aborto, como a sexualidade, e as questões reprodutivas nos levam à profunda contextualização de nossas práticas e movimentos, e da produção de conhecimento. Enquanto feministas situadas em territórios concretos, somos parte de uma história com tecimentos próprios e somos atrizes em uma sociedade marcada por relações sociais de poder, que também atravessam as disputas nos movimentos sociais. É Reis (2010) que discute os sentidos que, como movimento feminista, fomos dando às sexualidades e à procriação: mais ou menos próximo do campo do direito e da saúde, mais ou menos próximo de uma análise das determinantes sócio-econômicas, e das várias pautas que foram recebendo sempre menos atenção (2010), ou talvez - como acredito pessoalmente - sendo pensadas cada vez mais de forma fragmentada. Segundo essa autora, por exemplo, as denúncias por racismo e violência durante os atendimentos de partos e abortos não ganham a mesma visibilidade que os tantos anos de resoluções acumuladas em conferências internacionais (Reis, 2010, 85). Da mesma forma, o fato, de nesse momento, estarmos apostando, regionalmente, na estratégia de acompanhamento de mulheres em situação de aborto, realizados com medicamentos, não nos deveria tirar o questionamento sobre a escassez e miséria de tecnologias anticonceptivas, impostas às mulheres. Quais são os saberes e poderes que estamos abdicando ou aceitando, em nossas políticas e ações? Voltando à contribuição de Diórgenes (2017, 13), que se inspira no feminismo negro e decolonial, ela propõe que partamos da experiência das mulheres para pensarmos sobre a maternidade e o aborto, o que passa por desconstruir o sujeito universal mulher, e enxergar que as experiências, incluindo de resistência, e os contextos de opressão específicos são produzidos não em um sistema homogêneo de gênero, mas em um sistema hierárquico e racialmente diferenciado. Falar, discutir e trazer para o debate público a questão do aborto, | 100 |


as distintas condições que, hoje, as mulheres vivem em relação a isso, bem como as várias reivindicações é o que temos buscado com a construção coletiva de oficinas e zines. Esses momentos têm me trazido, constantemente, duas perguntas com as quais gostaria de seguir essa reflexão de forma coletiva, em nossos encontros: Quem temos considerado como portadorxs de saber e conhecimento sobre aborto na sociedade? Como construir pontes e potencializar a comunicação entre territórios e sujeitxs de luta, em torno da auto-determinação sexual e reprodutiva das mulheres, buscando fortalecer ou reconstruir a solidariedade comprometida, aniquilada pelas relações do sistema moderno colonial de gênero?

REFERÊNCIAS DIORGENES, Nathalia. A questão do aborto e os países do sul: apontamentos descoloniais. In: XXI Congreso ALAS, 2017, Montevidéu. XXI Congreso ALAS, 2017. LUGONES, María. Hacia metodologías de la decolonialidad. En X. Leyva, J. Alonso, A. Hernández, A. Escobar, A. Köhler, A. Cumes. W. Mignolo (Eds.), Prácticas otras de conocimiento (s). Entre crisis y guerras, v. 3, p. 75-92, 2015. REIS, Ana Regina dos. As Filhas de Margaret Sanger. Elementos para uma análise das relações entre feministas e o poder médico. Aproximaciones críticas a las prácticas teórico-políticas del feminismo latinoamericano, v. 1, p. 79-88, 2010.

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Palavras na justiça Lisandra Moreira

Estava sentada naquela sala sem saber exatamente o que aconteceria. Não porque a advogada não tenha exaustivamente explicado. Mesmo a boa vontade e o tempo de dedicação da sua representante não seriam capazes de traduzir completamente o idioma da justiça para ela, uma pessoa que lia no máximo partes pequenas da Bíblia e com dificuldade. Uma vez ouviu de sua patroa que “saudade” era uma palavra que não tinha tradução em outras línguas, mas tinha certeza que as pessoas sentiam saudade fora do português. Maria achou engraçado o pensamento da mulher. Engraçado que as pessoas tivessem tempo de pensar em coisas assim. Enquanto ela gastava o tempo fazendo a comida e arrumando a casa, sobrava tempo para a patroa pensar em saudade como uma palavra. Pra ela, saudade era o que ela sentia do irmão, enquanto tocava a vida sem ter tempo de pensar. A vida dá voltas. Maria agora com tempo pensa que talvez nessa língua da justiça existam muitas palavras intraduzíveis. Ela sente tanta coisa desde que foi presa, mas não encontra palavra para explicar para a advogada. Na contramão, ela escuta palavras sem saber o que significam, mas com a clara sensação de que deveria saber e que sentirá os efeitos delas. Estar novamente numa sala de audiência fazia Maria lembrar da vez que acompanhou o julgamento do policial acusado da morte de seu irmão. Ela conhecia o desejo de punir e de produzir sofrimento. Sabia que hoje, esse desejo se voltava contra ela, assim como já estava sentindo desde quando foi denunciada. Reconhecia na sala de audiência os mesmos olhares de quando estava no hospital. Olhares de | 102 |


curiosidade, medo, raiva. O que mais incomodava eram as algemas, no hospital e ali na sala. A sala se agita, pessoas entrando e saindo e Maria prefere ficar de cabeça baixa. Não tem vergonha do que fez, mas de estar ali exposta dessa maneira. Percebe que chega alguém importante. Há silêncio e começam os trabalhos. Tentando entender o que diziam, Maria escuta apenas um zumbido. Percebe que para entender precisaria levantar o olhar, acompanhar quem está falando e perceber o contexto. Olha para a mesa principal onde está o juiz. Um rapaz de pouco mais de 30 anos. Ele fica desconfortável com o olhar dela. Num gesto de coragem, Maria olha ainda mais fixamente até que ele abaixa a cabeça e examina os documentos. Maria percebe que estão revisando o que aconteceu. As palavras não condizem com os fatos. Alguém fala que a própria irmã fez a denúncia. Ninguém falou sobre o médico que obrigou a sua irmã a ir na delegacia contar que Maria tinha provocado o aborto e que só aceitou atendê-la quando a irmã mostrou o boletim de ocorrência. Ninguém cogitou que as complicações tinham relação com a demora no atendimento. Ninguém comentou que no tempo de hospitalização ela ficou acompanhada de um agente e algemada. Alguém disse que ela permaneceu na prisão até o julgamento, mas que foi estipulado um valor de fiança. Ninguém falou que a fiança era, nas condições de Maria, impagável. Se no mesmo idioma já seria possível contar versões de uma mesma história, imagine quando se falam idiomas diferentes. A audiência acontecendo e Maria, com todas as suas forças, concentrava o olhar naquele homem que definiria seu futuro. Quando só se tem um olhar, o olhar se torna arma. Sustentar o olhar não é para os fracos. O assassino de seu irmão não conseguiu olhar em nenhum momento para a família de Maria, nem mesmo quando foi absolvido usando uma história falsa de legítima defesa. O pastor com quem teve um caso nunca mais lhe | 103 |


dirigiu o olhar depois que ela disse que tinha engravidado. O médico que condicionou o atendimento ao boletim de ocorrência repassou o caso depois que estabilizou o quadro de Maria. Agora, também esse juiz não consegue olhar fixamente para ela. Quantos homens definiriam seu futuro? Quantos homens não suportariam olhá-la? Inundada em seus pensamentos, Maria não consegue acompanhar o ritual. Sabe que a audiência está finalizada porque o juiz se levanta. Maria continuava focada na sua figura e mesmo com a agitação em que a sala novamente se encontra, consegue perceber o comentário dele para uma pessoa que estava ao seu lado: “Ela me lembra uma babá que eu tive”. Nesse momento, sua advogada estava feliz e tentando explicar que tinham conseguido algo difícil com esse juiz, suspenderam o processo, com algumas condições, mas que era melhor do que ser condenada e ir presa. “É como um perdão, Maria. Você está livre”. Confusa, Maria tentava entender as palavras da justiça. São difíceis de traduzir. Juiz, perdão, suspensão condicionada do processo, aborto, fiança, algemas, boletim de ocorrência, irmã, negativa de atendimento, sigilo médico, plantonista, clínica clandestina, gravidez, envolvimento, pastor, religião, depressão, saudade, absolvição, julgamento, violência policial, sem antecedentes, assassinato, irmão. Tudo começou com seu irmão. A sequência está invertida, no tempo, na língua e na justiça. Quem conta como vida no idioma da justiça?

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Deseo ventana Florencia Sueldo

Gracias a una palpitante fuerza color mujer que sembró la semilla de la consciencia, sabemos que el deseo es el regulador de nuestros actos más elementales. El deseo materno es una pulsión sexual dice la gran Casilda, y prosigue, es gusto, placer, deshacerse y derretirse por dentro, pulsión, latido, ritmo, unísono simbiótico ¿Alguien podría elucidar la condena que significa maternar sin ese derretimento? ¿Sin pulso, sin latido? ¿Alguien advierte el derrotero de seres no deseados, y el de cuerpas que se entregan a un cotidiano que no está cimentado en el deseo? ¿Alguien pudiera ayudarme a recolocar al deseo en la ventana a partir de la cual miramos y hacemos el mundo? Ese alguien somos tantos tantos, que por fortuna ni entramos en la misma ventana.

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“Cadê? Me dá os comprimidos que eu vou tomar”: a história de Nega Nathália Diórgenes

Conheci Nega15 quando estava no período de trabalho de campo da minha dissertação16 de mestrado em agosto de 2013. As dificuldades de encontrar jovens negras e de classes populares para entrevistar eram inúmeras. Contar uma história tão íntima para uma estranha não é algo fácil. Ainda mais para jovens cuja classe social e raça não as deixam ser protegidas pelo Estado e pela justiça. Uma amiga conhecia a irmã de Nega e fez a ponte. Ela aceitou se encontrar comigo em um bar no centro histórico do Recife para contar a sua história17. Nega tem 26 anos, mora em Santo Amaro, na Cidade do Recife, com a sua filha de dois anos. Trabalha no comércio e recebe 620 reais por mês. O pai da sua filha não paga pensão alimentícia, apenas dá a feira da criança todo o mês. É uma mulher negra de pele escura, mas se declarou morena. Estudou até a oitava série, porque se envolveu com o tráfico de drogas, como ela disse “entrou na vida errada”. Nega teve quatro gestações. A primeira vez que ficou grávida tinha 16 anos, depois que se separou do primeiro marido. Era muito jovem e decidiu 15 Esse foi o nome fantasia escolhido pela própria jovem. 16 Os resultados de toda a pesquisa, incluindo a análise da entrevista de Nega, estão disponíveis em: DIORGENES, Nathália. “Era meu corpo, era meu momento, era minha vida”: uma análise dos itinerários abortivos de mulheres jovens da Região Metropolitana do Recife-PE. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Pós-Graduação em Psicologia, 2014. 17 As linhas que se seguem são um pouco da história de Nega narrada por mim. Por respeitá-la como autora também desse texto, trago as suas palavras emaranhadas com as minhas em itálico. | 106 |


pelo aborto. Fez com misoprostol18 e chá, comprado pela ex-cunhada. Recorreu a uma maternidade pública para fazer curetagem, mas não teve complicações. Relata que a “deixaram de castigo” na maternidade, pois, sabiam que ela tinha feito um aborto. Nessa época, Nega morava com a mãe, o pai e as cinco irmãs. O pai é lanterneiro e a mãe lava roupa “para fora”. Depois de três meses, contou para a sua mãe sobre o aborto. “Mas, minha mãe mal ligava, assim, porque eu só vivia na vida errada, ela não queria nem saber”. A segunda vez que ficou grávida, com 18 anos, foi do primeiro marido depois que já estavam separados. “O homem que eu amava”, me confidenciou. Ele estava preso por tráfico de drogas, mas ela ainda o visitava na prisão. Em uma dessas visitas engravidou. Decidiu levar a gravidez adiante e o parceiro alugaria uma casa pra ela morar. Mas Nega teve problemas sobre os quais não entrou em detalhe e fugiu de casa para não ser encontrada. Nessa época, morava com a mãe “Quando eu cheguei na casa de mainha, tinha uns homi lá pra me matar”. Passou a gravidez toda na casa de uma tia, quando sofreu um acidente: caiu da barreira com nove meses de gestação e o feto não sobreviveu. “Quando chegou na maternidade, minha filha tava morta”. Nega engravidou novamente aos 21 anos, também desse parceiro, quando ele saiu da prisão. Nega foi morar com ele no bairro da Macaxeira na Cidade do Recife. Quando descobriu que estava grávida contou ao parceiro e logo em seguida disse que iria fazer um aborto. “Só que eu queria o filho dele. Ai eu disse a ele que tava grávida. Aí ele disse “tu tem certeza que é meu?”, eu disse “lógico, que eu só tô com você”. Aí ele disse...ai eu disse “e eu vou tirar, que eu não quero não, um filho seu não”. Porque eu queria ver qual era a dele. Eu queria que ele dissesse “não, eu vou assumir, você não tá dizendo que é meu, você não vai nada de tirar”. Porque da primeira ele ficou muito triste porque eu 18 Princípio ativo do medicamento conhecido popularmente como Cytotec, utilizado para realizar abortamento. Neste texto, me refiro ao misoprostol utilizando seu próprio nome, bem como Cytotec ou medicamento. | 107 |


perdi, né?”. Mas, quando ela disse que tinha decidido pelo aborto, ele apenas respondeu que conseguiria o medicamento. “Eu fiz o teste, ai as meninas do caixa...porque eu era caixa, ligaram, aí disseram que tinha dado positivo. Eu fui buscar o resultado, todo mundo feliz. Eu tava feliz, mas eu queria que ele ficasse feliz, eu dizendo que ia tirar, pra ele dizer “não, não vai tirar não”. Mas ele não teve essa reação. Quando foi depois dois dias, ele passou dois dias sem ir em casa. Eu ligando, ele não me atendia”. O parceiro apareceu em casa dois dias depois com o remédio, entregou para Nega e colocou a pistola em cima da mesa, ameaçando-a para ela não tomar o remédio. Ela desprezou a ameaça do parceiro, “Cadê? Me dá os comprimidos que eu vou tomar, porque se você quisesse que eu não tirasse esse menino, você não tinha trazido, você não quer criar o menino”. Nega utilizou dois comprimidos via vagina e dois oral. Entretanto, esse segundo aborto teve um percurso mais longo, pois Nega precisou utilizar o misoprostol três vezes e tomar chá para poder expelir o feto completamente. A primeira vez depois que usou o medicamento, começou a sangrar e recorreu a uma maternidade pública. “Ai fui pra maternidade, e ele disse (o médico) “olhe, mãe, o seu bebê tá vivo agora seu bebê vai ter um probleminha, ele vai nascer sem o bracinhos”. (pausa) Ai eu fiquei...passada, né? Poxa por causa de mim. Ai eu liguei pra ele (o parceiro) e disse “olha, o bebê tá sem o braço”. Ai ele pegou e comprou outro, de novo Cytotec pra eu tomar. “Já que tá sem o braço, bora tirar logo tudo”. Ai eu tomei de novo Cytotec”. Mais uma vez, Nega utilizou o medicamento e foi à maternidade. “Cê já fez alguma ultrassom? (perguntou o médico), eu disse “não”. “seu bebê, viu mãe, ele não vai andar não, viu? Que ele não tem as perninha não”. Ai eu saí desesperada da maternidade. Ai chorando, chorando, chorando. Ai ele (o parceiro) pegou e comprou de novo o Cytotec pra mim. Ai foi quando saiu de vez”. Com sangramento e muita dor, Nega recorreu novamente a uma maternidade pública, diferente da primeira. “Quando chegou lá me mandaram fazer um examizinho do xixi que faz, da urina, | 108 |


né? Ai eu fiz. Ai já me foi mandando trocar de roupa que eu ia fazer curetagem. “Olha, mãe, você vai fazer curetagem, porque ficou...você teve um aborto, saiu metade e tá metade em você, só tá, tipo, do peito pra cima, viu? Porque a outra metade todinha você não tem mais não, do seu bebê não”. Ai eu comecei a chorar, porque eu sabia que foi por causa de mim, porque eu tava tomando o remédio19”. Nega narra que nesta última maternidade foi mais bem atendida do que na primeira. Depois que fez a curetagem, ainda passou uma semana com febre, em casa, doente, sem conseguir se levantar. Foi um processo bastante doloroso. A família soube do aborto mais tarde. Todas as vezes que recorreu ao serviço de saúde estava sozinha. Após cinco meses, o parceiro reapareceu culpando Nega pelo aborto. Ele sumiu por causa da vida instável do tráfico que participava. Foi preso de novo e ainda permanece na prisão. Depois, conheceu outra pessoa com quem ficou casada por um tempo e teve uma filha. Porém, o relacionamento era violento. “Ele dava em mim grávida, deu em mim grávida. Deu uma vez em mim com a menina com dois meses. Eu tava com a menina no braço ele deu-lhe um murro na minha testa eu caí em cima da pia. Sofri muito com ele”. Em uma das agressões, Nega ameaçou de chamar a polícia. “Ai ele deu dois murro em mim aqui, eu joguei uma panela de água quente nele, ai ele deu dois murro, ficou esses meus dois braços roxos, deu uma rasteira, me derrubou, eu ia pular a janela, ele deu um puxavanco, quando eu cai em pé, ele deu uma rasteira e apertou meu pescoço. Passei três dias sem consegui nem comer, nem andar, até a saliva doía. Minha filha, gritando, chorando e ele dando em mim”. A família dela socorreu e a irmã ligou para a polícia. Mas, antes de chegarem ele foi embora. Ela não deu queixa depois. Nega terminou o casamento e hoje mora sozinha com a filha de dois anos. Em cerca de uma hora de entrevista, Nega confidenciou a sua vida, suas experiências de abortamento, violências domésticas e eu 19 Refere-se aqui ao misoprostol. | 109 |


aprendi tanto naquela conversa. É uma vida marcada pela falta de apoio, pelas ausências e por diversas formas de agressão. Mas também por vontade de continuar. A maternidade para ela representou uma ruptura com uma vida que ela chama de errada e a decisão pelos abortos aconteceu pela relação precária com o parceiro. Quando se é uma jovem negra e pobre, moradora da periferia, a escolha pelo aborto não se articula com a vontade de seguir uma carreira profissional, mas antes, com uma situação de violência afetiva. A legalização do aborto é necessária porque as vidas das mulheres são múltiplas e complexas. E sobre suas vidas apenas elas sabem. E isso precisa ser respeitado. Toda escolha é digna.

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Mais amor Vander Costa

Menos preconceito mais informação aborto seguro a melhor solução. Vamos de amor menos punição libertemos da hipocrisia apostemos na educação. Precisamos discutir o assunto e, no mínimo, diferenciar o que é feto e o que é embrião para melhor opinar. Sejamos compreensivos e não vamos banalizar os riscos das mais pobres na hora de abortar. Quem pode não vive o dilema o grande risco de agonizar numa morte silenciada de quem não pode pagar.

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O aborto sempre acontece independente da classe social o pai ausente também aborta contra ele nenhum mal. Não o impede de ser feito nem mesmo a criminalização sobre a interrupção segura está a nossa posição. Juntemos num só coro homens, mulheres, irmãos em prol do aborto seguro vamos dar as mãos. Não queremos “libera geral” e nem esta de condenação investir nos nossos afetos é sempre a melhor opção.

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Processo e Estado democrático de Direito: a importância da judicialização na efetivação da dignidade sexual e reprodutiva feminina Thays Conceição Cabidelli da Silva

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, um novo paradigma foi estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que a Carta Maior é considerada, por muitos, como a mais democrática e plural das Constituições vigentes no país. No presente texto, o caráter democrático e plural da Constituição de 1988 será demonstrado na efetivação do acesso à justiça, do contraditório como ‘’valor-fonte’’ da dialética processual20 e da dignidade da pessoa humana como fundamento da República. Uma sociedade democrática é aquela orientada pelo princípio majoritário; por sua vez, e uma sociedade plural é aquela que é estruturada mediante diversas instâncias de manifestação de poder. Ante o exposto, se pode afirmar que enquanto a democracia se opõe ao governo autocrático, o pluralismo se opõe ao poder monocrático21. No que tange à democracia, a CF de 1988, no § único do artigo 1°, dispõe que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente’’. A democracia no Brasil, portanto, pode ser exercida através de representantes eleitos ou diretamente pelo povo, o que traduz 20 ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: o modelo constitucional da justiça brasileira e as relações entre processo e constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 182-183. 21 Op. cit., p. 124-128 | 113 |


uma democracia integral22, na qual o povo atua com influência nas decisões conforme as variadas exigências e variadas necessidades sociais, de modo a findar com a hegemonia e a exclusão de parcelas da sociedade. Nesse cenário, diversas garantias foram dispostas pelo ordenamento jurídico brasileiro aos cidadãos, dentre elas, a audiência pública, mediante as Leis n° 9.868/99 e 9.882/99, as quais cuidam da ação declaratória de constitucionalidade (ADC), da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) e da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), perante o Supremo Tribunal Federal. A audiência pública na seara judicial é instrumento no qual se abre o procedimento decisório ao debate com a sociedade, por meio de especialistas, associações de classe, entes públicos, cidadãos em geral ou qualquer outra forma de representação de um grupo, de modo a esclarecer determinadas matérias e melhor qualificar as decisões do Estado-juiz, cuja importância é demonstrada na aparição de questões cada vez mais interdisciplinares no Poder Judiciário, bem como na necessidade de legitimação social das decisões estatais23. Percebe-se, pois, a importância da judicialização na efetivação dos direitos fundamentais, especialmente ante a letargia dos Poderes Legislativo e Executivo e da escassa participação dos cidadãos nessas ordens. Assim, é notória a importância da judicialização das exigências sociais. Neste texto, destacar-se-á a ADPF 442, na qual se discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A descriminalização do aborto trata-se de um considerável passo na efetivação da dignidade sexual e reprodutiva feminina, a qual deve 22 BOBBIO, Norberto. O futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. P. 52 23 OLIVEIRA, Humberto Santarosa de. A Audiência Pública No Estado de Direito: a maior legitimidade da decisão judicial por intermédio do debate popular. Disponível em: https://www.academia.edu/24331566/A_AUDI%C3%8ANCIA_P%C3%9ABLICA_ NO_ESTADO_DE_DIREITO_A_maior_legitimidade_da_decis%C3%A3o_judicial_ por_interm%C3%A9dio_do_debate_popular. 2016. p. 12-14. | 114 |


ser analisada à luz de quatro princípios, quais sejam: o da integridade corporal, o da igualdade (entre homens e mulheres e entre mulheres e mulheres), o da autonomia e o da diversidade. Ademais, tais princípios devem ser concretizados sob duas dimensões: a do poder e a do recurso, de acordo com as quais as mulheres devem tomar suas decisões estando informadas de modo seguro e devem possuir meios adequados para a efetivação de suas escolhas24. A Ministra Rosa Weber ressaltou que foram muitos os pedidos de inscrição para participação das audiências públicas que ocorreram entre os dias 3 a 6 de agosto de 2018. Porém, o volume de pedidos inviabilizou a admissão de todos. Os critérios adotados para a seleção foram a atuação ou expertise especificamente na matéria, a representatividade técnica na área e a garantia de pluralidade e paridade da composição da audiência. É notório, portanto, o quão relevante é, no atual cenário instituído pela Carta Magna de 1988, a participação direta dos cidadãos na tomada de decisões do Estado-juiz. A sociedade possui à sua disposição instrumentos que devem ser de conhecimento geral e, assim, utilizados na promoção de uma democracia plural. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. O futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. CORREA, Sonia; PETCHESKY, Rosalind. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis, Rio de Janeiro , v. 6, n. 1-2, p. 147-177, 1996. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. 24 CORREA, Sonia; PETCHESKY, Rosalind. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis, Rio de Janeiro , v. 6, n. 1-2, p. 147-177, 1996. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010373311996000100008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 19 de dez. de 2018. http:// dx.doi.org/10.1590/S0103-73311996000100008. | 115 |


php?script=sci_arttext&pid=S0103-73311996000100008&lng=en&nr m=iso>. Acesso em: 19 de dez. de 2018. http://dx.doi.org/10.1590/ S0103-73311996000100008. OLIVEIRA, Humberto Santarosa de. A Audiência Pública no Estado de Direito: a maior legitimidade da decisão judicial por intermédio do debate popular. Disponível em: https://www.academia.edu/24331566/A_ AUDI%C3%8ANCIA_P%C3%9ABLICA_NO_ESTADO_DE_ DIREITO_A_maior_legitimidade_da_decis%C3%A3o_judicial_por_ interm%C3%A9dio_do_debate_popular. 2016. Acesso em: 19 de dez. de 2018. ZANETI JR., Hermes. A constitucionalização do processo: o modelo constitucional da justiça brasileira e as relações entre processo e constituição. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

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Papaya sem açúcar Bia de Barros

Um mamão Ainda verde Sem a casca y Sem Semente Cortei em cubos e levei ao fogo Para ferver Com Sal y Água Até derreter Dolor y Mágoa Pinguei limão Pimenta à gosto Bebi na janta E no almoço Confesso, achei Ma-li-ci-o-so

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Eso que cuelga de las mochilas Gianella Barone & Bianca Gargiulo

- Yo le dije que no lo hiciera. - ¿ Y eso fue lo último que le dijiste? - Un silencio agotador se alojó en la sala. Ella salió de mi casa con esos ojos marrones angustiados, llenos de temor. La mente abarrotada de pensamientos, y no precisamente de los buenos. Recuerdo perfectamente que se volteó a mirarme directo a los ojos, con la intención de provocar algo de empatía. No reconocía a mi amiga, ni ella a mi. La situación se apoderó de su sonrisa, de sus ganas de comer y de su aura tan característica. Con los sentimientos encontrados, ambiguos, contrariados, y la “moral” tan presente, lo único que logré decirle antes de que se fuera, fue: - Sabés que el asesinato es un delito, ¿no? - Ella sólo desapareció de mi vista. Precisaba conversar con alguien que no la juzgara. Ella necesitaba hablar con alguien que la entendiera. “Asesina”. Esa palabra retumbaba en mi cabeza dejándome un sabor amargo en la boca, por primera vez reconocía en voz alta el error que cometí. ¿Podrías describir cómo te sentís con todo esto? - La psicóloga comenzó a tomar nota, odiaba que hiciera eso, por la intriga que me provocaba. - ¿Quisieras compartir conmigo esa experiencia? Acrecentó. | 118 |


Las memorias me invaden junto con el calor de aquella tarde veraniega, con aroma de diciembre, mes dedicado a amigues25 y familias, mes que le pisa los talones a un nuevo año. Sentadas de indiecito26, en la vereda de casa, juntas como siempre y nuestra fiel compañía, unos buenos tererés27. Las charlas banales se adueñaban del tiempo. Llega Federico, mi hermano, todo alegre, con un bronceado caribeño, producto de su estadía en Brasil. En un momento, pasan dos pibas28 y él pregunta: - Qué es eso verde que cuelga de las mochilas? Ya vi varias mujeres con eso colgando. No sé, algo del feminismo, supongo - le respondí. Era la noche de un sábado. Llegadas las diez de la noche, María vino a mi casa. Mientras nos maquillábamos, preparándonos para salir a bailar, la provoqué diciéndole que ya había percibido el coqueteo con mi hermano. -¿Seremos familia? ¿O será solo un romance de verano? - Le dije, jugando. Las dos reímos en hermosa complicidad, como siempre. O casi siempre… La fiesta fue en casa de un amigo. Una casa grande. Casa de gente rica. –vamos a aprovechar que no siempre tenemos esta oportunidad, mirá la cantidad de comida y bebida que hay acá, será una noche de excesos! - decretamos las dos, riendo alucinadas con tanta abundancia. La fiesta acababa y pensé en ella. Donde está mi amiga? Acordamos siempre volver juntas. Después de todas las fiestas. Siempre alertas 25 Amigues: Utilizaremos, a lo largo del cuento, la expresión neutra de las palabras para referirnos a las personas para no encasillarnos en el lenguaje masculino hegemónico que muches llaman de "neutro". 26 "Sentarse de indiecito": expresión utilizada para referirse a un modo de sentar en el suelo, con piernas cruzadas donde los pies quedan debajo del muslo contrario. Véase también, posición de loto. 27 Infusión de yerba mate que se bebe fría; es típica de Paraguay y el nordeste argentino. 28 Pibas: modo en plural, femenino y coloquial utilizado en Argentina (principalmente en Buenos Aires) para referirse a personas que están en etapa de la adolescencia o juventud. | 119 |


por si pasa algo. No la encontré por ningún lado de la casa. La llamé, no contestaba, le escribí y ni siquiera le llegaban mis mensajes. Me preocupé porque nunca fallamos en nuestro acuerdo, por si pasa algo. Las chicas sabemos bien de esos cuidados, no? Llamé a mi hermano, al fin y al cabo él estaba muy pendiente de ella últimamente, y como era de esperarse estaban juntos, el celular de María había quedado en 0% de batería. Encontrarles me trajo un gran alivio, volvimos a casa les tres, repasando las vivencias en nuestra noche de aventuras en casa grande. María, mi gran amiga, me preguntó que había acontecido con aquel pibe que yo estaba conversando cuando ella “desapareció” de la fiesta con mi hermano. –No es más que otra experiencia para la colección de machiruleadas29 que no somos obligadas a escuchar, pero acabé escuchando- le dije. Y caímos en el sueño, después de una noche de fiesta. María estaba rara. Hacía tiempo que la sentía como que me evitaba y hablábamos poco. En la escuela la percibí en varias oportunidades con malestar y no quería que la acompañara al baño. Ella estaba evasiva. Algo acontecía y no quería compartirlo conmigo. Se notaba una decaída en su ánimo y nunca hubiese imaginado que era por esto, y cuando Federico rondaba cerca de nosotras se notaba aún más su incomodidad. Fue después de unos cuatro meses. Un día no dio más y tuvo que soltar toda esa amargura, tristeza y rencor. Necesitó confiar en alguien. Todes necesitamos confiar en personas, ¿no? Recuerdo muy bien su llamada a la madrugada con su voz destruida de tanto llorar, pidiéndome por favor que le abra la puerta, estaba en la vereda de mi casa, sintiéndose sola. Cuando abrí esa puerta, se lanzó en mis brazos, entregándose por completo en un abrazo desesperado, como 29 Machiruleadas: expresión coloquial, utilizada últimamente para referirse a algunos comportamientos que reproducen lógicas "de machos" producto de la construcción de masculinidades patriarcales. | 120 |


si el mundo estuviera acabando. La apreté fuerte, intentando contenerla físicamente. Sólo conseguí contenerla así, físicamente. Entramos sin hacer mucho ruido porque podríamos despertar a mi madre. Horas después de muchas lágrimas y mi desesperación de no saber como disminuir su dolor, sin saber el por qué de tanto dolor, mocos por doquier y mucho coraje, ella me contó. Primera vez que tenía sexo con un pibe y ese pibe la embarazó. Mi hermano y mi amiga. Me enojé tanto que, a veces se me olvidaba que ella estaba sintiéndose mal, llorando desconsoladamente sin poder detenerse. - En la escuela nos enseñaron desde muy chicas, los métodos para no quedar embarazadas30-. La increpé. - No pensé en eso cuando estuve con él, ahora sólo pienso en una sola cosa-. Me dice cabizbaja. - lo único que sé es que no quiero tenerlo, no necesito más cosas en mi vida, más responsabilidades, somos tan chicas-. Prosigue, llorando. - ¿QUÉ?, ¿es joda31 no?, ¿qué estás insinuando? ¿En qué estás pensando? me llegas a decir que se te cruzó por la cabeza abortarlo y te juro que no puedo mirarte más la cara-. Le dije, casi que gritando. - Por favor, pensá un poco en mí, sabés mejor que nadie de las dificultades que mi familia está pasando. No puedo contarles. Por más que me apoyasen, no tenemos los recursos. Mi papá sin trabajo, mi mamá depresiva. Mi hermana hace lo que puede para que yo pueda terminar el secundario. Trabaja horas y horas, igual así ni alcanza para lo básico. Además no entiendo qué te preocupa, es un feto, vimos eso en las clases de biología, necesito que me apoyes y te acuerdes de eso. Ya estudiamos que no va a sufrir ningún tipo de dolor, es más yo seguramente sí, ya que la ley no me protege de nada. Al contrario, puedo ir presa. Necesito que alguien me ayude. Supe de un método en internet... 30 Argentina cuenta desde el año 2006.informacion disponible en : http://servicios. infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/120000-124999/121222/norma.htm 31 Broma o chiste que se hace a una persona como diversión. | 121 |


- ¿Y él bebé? - la interrumpí. Es vida María, como vos y yo, como cualquier cosa que respire, que culpa tiene él en que vos no te hayas podido cuidar? Le dije, tomada por una rabia que aún no consigo describir. - Es mi culpa, y de tu hermano. No me cuidé y no se cuidó. En ese momento no me di cuenta de los problemas que me podría traer ese descuido. Pero eso no significa que tenga que arruinar mi vida continuando con esto. Tengo 16 años. No es que no quiera tener hijes, sólo siento que no es el momento. Además tendría que hacer todo sola, tu hermano se fue a vivir a Brasil y no me acompañaría en absolutamente nada, vos lo conocés-. - ¿Arruinar tu vida? ¿Así llamas a tu hijo?, no estás sola. Yo te voy a ayudar a criarlo, sería una alegría para tu mamá, ella sería feliz si es abuela. Mi mamá te acompañaría también-. - Yo no siento acá tener hijo, ni bebé ni nada. Para mí es un gran problema, que crece día a día, estoy desesperada. Y sí, estoy sola, me siento completamente sola-. María estaba tan determinada. - No me parece correcto, dios nos trae al mundo y nos lleva cuando él desea y no cuando lo decidimos nosotras-. Le dije, ahora no reconozco mis palabras. - ¿No puedo hacer lo que desee por seguir las leyes de que dios? No creo que él quiera condenarme a vivir una vida infeliz-. Daba para sentir el enojo de ella. - ¿Le contaste a Federico algo de todo esto? Si se entera te mataría32…- Le dije, sin conseguir escuchar nada de la angustia de ella en ese momento. - No sabe. Ni va a saber hasta que se lo pueda decir en persona. De 32 Expresión coloquial para denotar enojo o rabia de una persona hacia otra por algún motivo. Nosotras decidimos utilizarla aquí informalmente, pero aprovechamos para recordar que cada día en Argentina una mujer es asesinada, según fuente disponible en: <https://www.perfil.com/noticias/sociedad/cifras-que-duelen-hubo-139-femicidiosdurante-el-primersemestre-de-2018.phtml.> Accedida en mayo de 2018. | 122 |


cualquier forma, no es el cuerpo de él, no le corresponde a él nada de lo que yo decida hacer-. Me respondió, determinada. - No puedo creer que sea amiga de una persona que piense de esta manera-. La condené. Enojada, me lanzó una mirada furiosa y desilusionada que me duele hasta ahora. Tomó su mochila y salió de mi casa. Fue la última vez que vi a María. Yo amaba a María. ¿Por qué no la escuché? Deseo tanto volver a ese día y tratar de comprenderla, acompañarla, no soltarle la mano. Siento que la condené. Mi mamá me dio la triste noticia. La maté, la mataron, la matamos33. Fue ella que me hizo llegar un pañuelo verde, lo hizo volar hasta esas millones de mujeres que lo sostienen con sororidad, constancia, rebeldía y amor. Por María, por tantas Marías, Marías que no nos dejarían si tuviésemos “aborto legal, seguro y gratuito”. Mi hermosa María estaría aún entre nosotras. Ella estaría acá conmigo, estaríamos juntas, luchando, siendo imparables, molestas, brujas, malas, rabiosas, con nuestros reclamos y en contra de toda condena social. -No era tu obligación salvar a María- decía la psicóloga secándose las lágrimas y alcanzándome unos pañuelitos para secar las mías-. -Nadie suelta la mano de nadie -, afirma y me abraza. Con mi pañuelo colgando de mi mochila y las lágrimas recorriendo mis mejillas vuelvo a mi casa esperando que nada me pase. Voy pensando en vos, en tu sonrisa, en tu alegría y en la falta que me haces. Pero tu voz sigue en el viento al igual que tu presencia, al igual que muchas otras voces que ya no están, que ya no pueden gritar. Con cada brisa siento que me susurraras al oído “estoy con vos, la lucha continúa”. 33 Según el ministerio de Salud, desde la recuperación de la democracia murieron 3030 mujeres por abortos inseguros, y en 2013 unas 49.000 se internaron en los hospitales públicos por problemas relacionados. Fuente disponible en: <https://www.perfil. com/noticias/50y50/el-verdadero-debate-sobre-las-cifras-de-aborto-en-nuestro-pais. phtml>. Accedida en mayo de 2018. | 123 |


Ideias e desavenças em famílias cristãs sobre o aborto Brunela Vieira de Vincenzi

Certa vez foi-me relatada uma situação bastante delicada revelando um conflito de ideias sobre religião, liberdade religiosa e igualdade de direitos entre homens e mulheres surgidas em um Centro Espírita que frequento há muitos anos. Depois descobri se tratar de fato que tipicamente ocorre no Brasil, país predominantemente cristão com várias denominações religiosas dentro de uma mesma linha de pensamento religioso. Essa diversidade e multiplicidade de religiões fica mais evidente dentro de uma mesma família, locus de conflitos diversos, dentre eles, religiosos. Parece-nos que todas as religiões cristãs entendem que Deus – através de seu filho Jesus, ou por Si mesmo – teria concedido o dom da vida aos seres humanos e que só Ele pode retirá-la; daí a vedação do aborto, da eutanásia, da pena de morte. Três temas extremamente complexos e, na atualidade, polêmicos. A questão do aborto, porém, não envolve somente o direito a ter sua própria crença ou a liberdade religiosa ou à própria visão de mundo, mais do que isso, ela envolve o direito essencial de definir o que fazer com o seu próprio corpo. Assim, para além da polêmica sobre o direito à vida do nascituro, garantida pelas leis civis e constitucionais do país, o direito ao corpo deve ser debatido também. Ponto crucial para o entendimento da conclusão que se pretende alcançar neste texto é a premissa de que não há conflito entre direitos humanos. Desde que vivenciei o conflito relatado no início do texto, a grande | 124 |


discussão em minha família também passou a ser entre aqueles que defendiam o direito à vida do feto, e os demais, que defendiam o direito ao corpo (ou seja, decidir livremente sobre continuar ou não um processo de gestação iniciado sem ou com o seu consentimento). A mulher cristã, nesse aparente conflito entre direitos fundamentais, passa por uma dupla violação de direitos: primeiro por um gravidez indesejada, depois, por ser alvo da censura de seus familiares sobre o seu desejo de descontinuar a gravidez. Indaga-se, portanto, se a Teoria do Direito daria razão à ideia de criminalizar o aborto totalmente, sob o amparo de fundamento estritamente religioso, sem considerar o sentimento e as dores mais íntimas da mulher? Não há um resposta exata, pois não se pode dizer com absoluta precisão que o direito à vida é superior ao direito de decidir sobre seu corpo, a sua liberdade de ser um ser humano integral em toda sua completude. Todavia, acusar aquela que decide pelo aborto de ceifar uma vida parece-nos um exagero. Mas e Deus? Ele aceitaria a decisão da mulher, baseada em sua liberdade garantida pela Constituição Federal, pelos tratados internacionais de direitos humanos, pelo próprio espírito humanitário do novo milênio em que vivemos? Parece-nos que sim, a liberdade é o início de todo entendimento sobre si mesmo, até – em último grau – sobre a decisão de acreditar ou não em Deus. O que se impõe não é a autorização prévia para matar, e sim, o cumprimento e o respeito ao ser humano que vive e habita entre nós com todos os seus direitos, garantias e idiossincrasias que a leva a ser quem ela é, para assim em sua completude como pessoa titular de direitos escolher e decidir sobre seu próprio bem-estar. Não existe conflito entre direitos humanos, o que existe são momentos diversos de aplicação, adequando-se o momento e a necessidade de respeitá-los todos para o bem de toda humanidade. | 125 |


Um espelho de duas faces: entre ser ou não ser mãe Janaína Silva

Pudemos perceber, enquanto trilhamos os caminhos da maternidade que, ao longo da história, a maternidade tal qual se tem hoje foi fruto de uma construção regida pelos olhares e poder masculino através dos mais diversos dispositivos. Assim, a mulher passou a ser sinônimo de pureza e dedicação para com a família que deve ser considerada sagrada. Para Donath (2012, p. 129) “Dessa forma, a estrutura do “amor maternal” não apenas se viu moldada por forças sociais, políticas e econômicas, mas também foi usada por essas forças a fim de sustentar-se e endireitar as mulheres”. Percebemos que as mulheres foram reivindicando seu terreno por meio de movimentos feministas e do maior acesso às faculdades e vagas de emprego, buscando igualar-se aos homens e requerendo seus direitos, fato que, para Beauvoir (1980), causou profunda modificação na instituição do casamento, pois fez com que a mulher não se sentisse mais aprisionada à sua função materna e servil. Scavone (2001) aponta que a maternidade passou a ser alvo dos movimentos feministas uma vez que questionavam sobre as implicações sociais e políticas de assumirem a opção de serem mães. Para o movimento, a maternidade se caracterizava como o eixo central da opressão sobre as mulheres, já que sua realização acabava por determinar o lugar da mulher no âmbito familiar. Butler (1998) argumenta que qualquer esforço realizado no sentido de entender as mulheres segundo um padrão universal será sempre | 126 |


produtor de normatização, gerando grupos e antigrupos, a exemplo da maternidade tomada como compulsória, desconsiderando o fato de que nem todas as mulheres são mães, algumas não querem ser por diversos motivos e outras são, mas não consideram esse o ponto central de sua vivência. Nesse sentido, o movimento feminista passou a travar também uma luta em defesa do direito da mulher pela interrupção voluntária da gravidez, pleiteando que a discussão fosse colocada na agenda política nacional. Para Barsted (2009), a década de 1980 foi marcada por uma organização do movimento feminista que foi às ruas e garantiu que as questões sobre o aborto repercutissem na grande mídia do país. Embora a vivência materna apresente distinções relativas à cultura de cada mãe e em cada lugar onde a maternidade é exercida, parece não diferir nos quesitos culpabilização e criminalização. Segundo Forna (1999), na década de 1980, havia nos Estados Unidos uma onda de criminalização das mães nos tribunais. A autora apontava que: As mulheres são acusadas por seu comportamento durante a gravidez e pelas decisões que tomam em relação ao próprio corpo e aos próprios filhos, nascidos e por nascer. As liberdades reprodutivas são desafiadas por novas leis e pela reinterpretação das leis existentes de modo a culpar as mães (p. 190).

Ao nos debruçar sobre as vozes dos actantes presentes no Desafio da Maternidade Real, encontramos diversos posicionamentos que vão em direção à obrigatoriedade de um sentimento positivo e sacralizado da maternidade, além da culpabilização feminina pela gravidez. Tais fatores nos remeteram ao recente panorama político do ano de 2018. Percebemos que estamos longe de ver uma imparcialidade, quando o assunto se refere à maternidade. Em agosto de 2018, o Supremo Tribunal | 127 |


Federal (STF) determinou a abertura de mais uma caixa-preta ao convocar audiências públicas para um debate sobre a descriminalização do aborto34. Para o debate, foram convocados religiosos, médicos, juristas e ativistas brasileiros e estrangeiros. Tal movimentação ocorreu após o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), partido político brasileiro, e a Bioética Anis, organização não-governamental, sem fins lucrativos, voltada para a pesquisa, assessoramento e capacitação em Bioética na América Latina, terem apresentado uma ação solicitando que o aborto não fosse considerado crime quando realizado até a décima segunda semana de gestação. Segundo a ação apresentada, os artigos do Código Penal que proíbem o aborto confrontam alguns preceitos da Constituição Federal, como o direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, a não discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros. A primeira lei apresentada no Brasil relativa às questões do aborto, datada de 1946, regularizava o aborto em apenas dois casos: quando a gravidez fosse em decorrência de estupro ou caso oferecesse risco para a vida da gestante. Nota-se, porém, que tais brechas judiciais não foram amplamente aceitas uma vez que, já em 1949, novos projetos de lei eram apresentados no intuito de extinguir tais permissivos (Rocha, 2009). Ao que parece, o debate em torno do assunto não caminhou muito nos últimos 70 anos. Atualmente, essas duas permissivas ainda prevalecem, somadas a uma nova permissiva de 2012 que libera o aborto também em casos de bebês anencéfalos (Torres, Figueiró, Mendes, Melo, & Inaba, 2013). O autor salienta ainda que, embora o aborto tenha sido regularizado nos casos acima citados, apenas em 1996 os serviços públicos de saúde normatizaram o atendimento especializado para abortos protegidos pela lei (Torres at al 2013), denotando que 34 Todas as informações acerca da movimentação do Superior Tribunal Regional (STF) podem ser acompanhadas na página on line da BBC News no link: https://www. bbc.com/portuguese/search/?q=aborto. Ou digitando na página principal no campo destinado a buscas a palavra aborto. | 128 |


possivelmente, não havia ainda, no âmbito da saúde, uma preocupação com a saúde da mulher. Já para Oliveira, Francischinelli, & Gonçalves (2009), essa omissão por parte do Estado se deu também por conta da grande rejeição social e moral baseada em preceitos religiosos relativos ao aborto, além de atribuições culturais relativas a sexualidade que transformam, em suas palavras, as “vítimas em rés” (p. 159). Assim, perante a lei, toda mulher que provoca o próprio aborto ou que permita que outrem o faça deve responder por crime contra a vida, devendo ser julgada por um Tribunal de Júri. Caso condenada, a mulher deve cumprir uma pena 1 a 3 anos. Ventura (2009) chama a atenção para o fato de que o aborto parece ser penalizado mais ao nível moral do que criminal. Afinal, se o mesmo é considerado um atentado contra a vida, ou um homicídio, deveria sofrer as mesmas sanções previstas em lei de um homicídio simples que pode ser de seis a 20 anos de pena. Há duas grandes controvérsias contidas nesta esfera penal e criminal: a primeira refere-se a que tipo de vida está sendo subtraída quando se realiza um aborto até as 12 semanas, período considerado máximo para a realização de abortos previstos na lei no Brasil. Se, para alguns, a vida começa a partir da fecundação, outros acreditam que não há vida sem a formação cerebral que se completa por volta deste período e, deste modo, a própria definição de vida torna-se obscura e confusa. Salienta-se que, em vários países onde o aborto é legalizado, o tempo de gestação para a intercorrência do evento é variável, o que aponta mais uma vez para a dificuldade da própria ciência em delimitar o período exato em que o embrião passa a ser considerado ser vivo. A segunda controvérsia refere-se a uma limitação da liberdade, pois, afinal, quando se criminaliza o aborto opta-se por aprisionar a mulher a uma condição compulsória de maternagem e, se esta mulher optar por um aborto clandestino, corre o risco de ser aprisionada pelo Estado. | 129 |


A questão moral é algo que aparece invariavelmente ligada à questão religiosa. Ainda que o estado laico tenha sido decretado no Brasil no final do século XIX, não há como esquecer os mais de 400 anos de hegemonia da Igreja Católica no país (Nunes, 2009), fato que nos tornou impregnados pela cultura do cristianismo, fazendo com que imagens santificadas do corpo da mulher como o único capaz de gerar o milagre da vida continuassem sendo disseminadas ou cultivadas explícita ou subliminarmente. Segundo Ventura (2009, p. 191): Os estudos que defendem uma legislação restritiva sustentam, igualmente a partir de uma perspectiva constitucional, que o aborto fere o princípio da inviolabilidade do direito à vida e defendem que qualquer lei que o permita é um atentado à dignidade da pessoa humana, pois dispõe da vida humana como um mero meio para o alcance de interesses e conveniências individuais. Defendem, ainda, a concepção de que a vida é um direito natural, concedido por Deus ou pela natureza e por essa razão, um direito absoluto, que protege um bem que não pode ser disponibilizado por qualquer lei ou autoridade constituída.

Apesar de toda a discussão a respeito do aborto ter sido iniciada ainda nos anos 1940, a partir da primeira lei que regularizava o ato, há, no âmbito acadêmico, produções significativas apenas nas duas últimas décadas (Nunes, 2009). Sabendo que o acesso feminino às instituições de ensino se deu de maneira lenta e gradual, podemos inferir que a prevalência masculina no meio acadêmico acabou por negligenciar temas importantes à vivência feminina. Para Nunes (2009), a questão vai além, ao afirmar que “O aborto pode ser tomado, nesse sentido, | 130 |


como um indicador das relações de poder que atravessam os processos de elaboração do saber” (p. 207).

Da justiça à saúde: o aborto como uma das principais causas dos óbitos maternos A prática do aborto sempre existiu, em todos os tempos, em todas as sociedades, com métodos e técnicas que variaram, desde os mais rudimentares e folclóricos (uso de ervas consideradas “abortivas”, auto-aplicação de meios para destruir o feto, etc) até os científicos (Werebe, 1998, p. 52).

Ao que parece, o aborto, antes visto apenas por uma esfera judicial, foi se transformando em um assunto de saúde pública na medida em que mais óbitos maternos foram chegando ao conhecimento da sociedade, fato que começou a ganhar destaque na década de 90 com o aumento da produção de pesquisas com enfoque em saúde reprodutiva. Para Menezes e Aquino (2009), a taxa de fecundidade brasileira dos anos 90 já demostrava alterações no cenário reprodutivo, uma vez que se encontrava 13% abaixo do esperado, em função do aumento contínuo de abortos que vinham acontecendo, desde os anos 70, contabilizados através das subnotificações de mortes por aborto. Esse cenário fez com que, em 2004, fosse elaborada uma nova Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM)35 com novas diretrizes que buscavam orientar as políticas de Saúde da Mulher. Como destaque, foram implementadas políticas de saúde 35 Mais informações a respeito da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher em http://www.spm.gov.br/assuntos/saude-integral-da-mulher/programasacoes. | 131 |


sexual e reprodutiva da mulher, buscando trabalhar em diversas vertentes, como métodos contraceptivos, violência doméstica, ações específicas para casos de aborto previsto por lei, buscando garantir que fosse respeitado o princípio do direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, de imposição e de violência. Ainda que as novas diretrizes da PNAISM tenham atingido algum sucesso, parece não ter sido suficiente para diminuir o número de abortos no país. Segundo Segatto (2007), “em 2006, o Sistema Único de Saúde fez 2 mil abortos com base na lei e 220 mil curetagens pós aborto” (p. 90). Embora não haja uma discriminação nos números de curetagens realizadas entre abortos espontâneos ou provocados, pode-se perceber uma enorme discrepância no que se refere aos procedimentos realizados dentro do preceito da lei, sendo possível inferir que grande parte das curetagens foi oriunda de abortos provocados. Diante destes dados, em 2007, o então Ministro da Saúde José Temporão apontou o aborto como uma questão de Saúde Pública, sugerindo sua legalização, sugestão esta que foi rejeitada na 13ª conferência Nacional de Saúde, ainda no mesmo ano (Torres et al, 2013). Já a Pesquisa Nacional de Aborto36 (PNA) de 2010 demonstrou que, aos 40 anos, aproximadamente uma em cada cinco mulheres alfabetizadas nas áreas urbanas do Brasil já passou por pelo menos um aborto (Diniz, Medeiros, & Madeiro, 2017). Essa tendência se confirmou na PNA realizada em 2016, segundo a qual, em 2015, meio milhão de mulheres realizaram um procedimento de aborto, metade destes realizadas, em sua maioria, através de medicamentos gerando a necessidade de passar por internação para finalizar o procedimento (Diniz, Medeiros, & Madeiro, 2017). 36 Os dados da Política Nacional de aborto também foram discutidos na Audiência pública convocada pelo Tribunal Superior Federal em agosto de 2018, pela pesquisadora Débora Diniz. A exposição oral pode ser acompanhada no link: https://www.youtube. com/watch?v=3dB5SSRCO1M | 132 |


Os números demonstram que a criminalização do aborto parece não evitar que as mulheres optem pelo procedimento e no máximo está permitindo que mais mulheres morram através de procedimentos inseguros. Mas quem são estas? Segundo a PNA de 2016, os abortos são realizados por mulheres comuns, de todas as idades, casadas ou não, que são mães hoje, de todas as religiões e sem religião, de todos os níveis educacionais, que trabalham ou não, de todas as classes sociais, de todas as raças e em todas as regiões do país (Diniz, Medeiros, & Madeiro, 2017). Deve-se, porém, ressaltar que, embora tal evento atinja todas as mulheres, são as mais carentes que passam por mais intercorrências hospitalares e fatais em comparação com as classes sociais de médio e alto poder aquisitivo. Os estudos revelam que as mulheres negras, residentes nas regiões norte e nordeste, com menor escolaridade e informação são aquelas que não têm acesso a métodos de aborto clandestino menos inseguros, passando por clínicas clandestinas mais baratas, comprando medicamentos abortivos sem conhecer sua procedência. Em muitos casos, onde não há condição financeira para custear a clandestinidade, as gestantes optam por métodos populares, velhos conhecidos da população feminina. Para Torres et al. (2013), as principais formas de se realizar um aborto são: O método de aspiração a vácuo e a dilatação e curetagem. Além desses que são métodos seguros quando feitos por médicos e em condições adequadas, há as alternativas “caseiras”, como a introdução de objetos pontiagudos na vagina, alcançando o útero, a ingestão de chás e drogas consideradas abortivas e acidentes provocados, como queda de alturas, com a intenção de eliminar o feto. Mais recentemente, o uso de Cytotec (misoprostol), para provocar aborto, | 133 |


tem feito com que menos mulheres recorram a essas outras alternativas agressivas, embora, o uso clandestino do medicamento sem orientação médica também implique em riscos para a saúde da mulher e até mesmo em risco de vida (p. 2).

Durante a audiência pública convocada pelo STF em agosto de 2018, a Dra. Sandra Helena37 (Professora Universitária, Conselheira do Conselho Federal de Psicologia [CFP]), ao expor os preceitos da Psicologia relativos à descriminalização do aborto, argumentou que, de acordo com as diretrizes estabelecidas pelos três últimos congressos nacionais da categoria, a Psicologia deve trabalhar para promover ações que visem à descriminalização e a legalização do aborto no Brasil, uma vez que, para a categoria, a criminalização do aborto acaba por impedir o direito de autonomia feminina, enquanto a criminalização do ato seria uma tentativa do Estado de gerir os corpos e a subjetividade daquelas que escolhem abortar, punindo-as por não cumprirem o principal papel designado historicamente ao gênero feminino de serem mães. Já para a Teóloga, mestre em direito e pastora Lusmarina Campos38, responsável por levar, ao STF, pesquisas no âmbito da religião que tratem sobre o assunto, o aborto é uma questão de saúde pública e não deve ser tratado pelo direito penal ou pela Bíblia, principalmente por ser de amplo conhecimento de todos que há uma interpretação enviesada por interesses masculinos e por aqueles que dizem professar a fé. Forna (1999) aponta que a mulher, atualmente, exerce uma crescente autonomia sobre si quando comparada às décadas anteriores. Tal autonomia acaba por assustar as autoridades que reconhecem, nesse 37 A exposição completa dos argumentos da Dra. Sandra Helena podem ser vistos no link https://www.youtube.com/watch?v=zsm6Jw8dROo 38 A exposição completa pode ser acompanhada através do link https://www.youtube. com/watch?v=RblN7f6Kg8o | 134 |


processo, um movimento de abandono da maternidade. Esse receio de que as mulheres possam abandonar sua função primordial acomete também os tribunais e a sociedade e tais sentimentos acabam por se tornar um combustível para impedir o ato da transgressão feminina (Forna, 1999, p. 192). Para Ventura (2009), o principal desafio de advogados e teóricas feministas é articular a questão do aborto, não só como uma questão de saúde, mas também como uma questão de direito civil das mulheres, da liberdade e autonomia corporal dos sujeitos, nos cuidados com sua saúde e do exercício de sua sexualidade e reprodução, estabelecendo assim o aborto como um direito de liberdade da mulher.

A conectividade clandestina, uma conversa com as redes sociais Assim como na época da inquisição, o povo gosta de uma caça as bruxas. E ela já foi julgada e condenada pelas pessoas perfeitas que integram nossa sociedade (Fragmento de um comentário do desafio da maternidade Real).

A conectividade e suas diversas faces, conforme demonstrado ao longo deste trabalho, têm se apresentado como uma das principais formas de comunicação da atualidade. Temos acompanhado um crescente aumento de profissionais da TV migrando para canais exclusivos do mundo online. Acompanhamos a vitória do candidato Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, após uma campanha quase toda realizada através de aplicativos e redes sociais. O candidato se absteve inclusive de participar de debates realizados pelas principais emissoras de televisão aberta do país. As redes sociais se tornaram palco de incontáveis discussões nos mais diversos âmbitos, mas parece ter se transformado também em uma espécie de consultório médico. | 135 |


A matéria39 apresentada pela BBC News em junho de 2018. Segundo a repórter da matéria apresentada pela BBC News em junho de 2018, seu intuito era acompanhar como a tecnologia estava sendo utilizada pelas mulheres que tentam abortar no Brasil. A matéria relata a existência de um grupo de WhatsApp40 que vende e instrui gestantes do início ao fim de um procedimento de aborto. Essas mulheres não são necessariamente médicas ou enfermeiras, as medicações são vendidas por valores entre R$1,500 e R$900 reais. Estes dados demonstram que, além de arriscarem a vida, as mulheres que procuram pelo grupo necessitam ainda de algum poder aquisitivo para a realização do procedimento. A matéria denuncia ainda a existência de clínicas clandestinas de péssima qualidade que cobram entre R$ 4.500 e R$ 7.500 reais para realizarem tal procedimento, além de relatar casos de mortes, medo e tristeza. Essas informações vão ao encontro de histórias mostradas por um documentário publicado em setembro de 2014 disponível no Youtube intitulado Clandestinas.41 O documentário expõe diversas histórias de mulheres que, em algum momento da vida, optaram por um aborto e se transformaram em clandestinas, uma vez que passaram a figurar em um cenário de obscuridade, onde o medo da punição impera. Uma das Clandestinas conta ter sido recebida por um médico vestido como açougueiro que portava instrumentos rudimentares em uma clínica abortiva. Em seu depoimento, diz: ... Eu fui para uma clínica, eu paguei R$700 pra ir numa clínica de aborto. Quando eu cheguei lá, eu fui recebida por um 39 A matéria completa pode ser assistida pelos links https://www.youtube.com/ watch?v=d1uPEypogks e https://www.youtube.com/watch?v=6xZPCqqem4U. 40 WhatsApp é um aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones. Além de mensagens de texto, os usuários podem enviar imagens, vídeos e documentos em PDF, além de fazer ligações grátis por meio de uma conexão com a internet. 41 O documentário completo pode ser assistido no link https://www.youtube.com/ watch?v=AXuKe0W3ZOU. | 136 |


médico vestido de açougueiro, com um avental branco todo ensanguentado e com instrumentos claramente artesanais, rudimentares. Ele aplicou uma injeção local que eu não me lembro se funcionou ou não, mas eu senti dores absurdas e aí eu comecei a ter uma crise de vômito enquanto o médico me torturava dizendo que se eu não tivesse procurado ele eu não estaria vivendo aquilo.

A mesma Clandestina nos conta que, após seis dias sangrando, foi levada a um hospital onde foi orientada por uma enfermeira a jurar para o médico que havia sofrido um aborto espontâneo, caso contrário o médico a deixaria morrer. O comportamento da equipe médica também é pauta no documentário da BBC News, nos fazendo refletir sobre o assunto, ao apontar que 70% das denúncias de aborto são realizadas por profissionais da saúde, trazendo relatos de mulheres que foram coagidas a confessar o crime enquanto sangravam e sentiam dor. O depoimento de uma das integrantes do grupo de WhatsApp verbaliza: Eu tinha tomado as pílulas em casa e, assim que eu comecei a sentir dor eu fui pro hospital, eu tive o feto e aí logo depois eu tive uma convulsão. Eles entraram na sala falando que era para eu confessar senão eu ia ficar algemada, ia para um presídio e que ia ser melhor pra mim, que eu tinha que colaborar. Aí eu comecei a falar e foi autuado crime em flagrante

Em contraste a este comportamento, as 90 mulheres que fazem parte do referido grupo de WhatsApp acompanham, ajudam e orientam as outras. Os abortos aconteciam em tempo real, uma vez que, após fazerem os procedimentos, as mulheres mandavam áudios e mensagens para manter as colegas informadas ou para pedir ajuda. | 137 |


Ao contrário do que se pode imaginar, o motivo da existência do grupo não é o lucro. Ao relatar sobre a criação do grupo, a responsável conta de um estupro sofrido alguns anos antes, lamentando que, apesar de ter procurado ajuda, não foi bem recebida pelas autoridades, uma vez que o estuprador mantinha grande influência no âmbito policial. Assim, ela se viu obrigada a ter a criança e nos conta: Eu fui ignorada, passei por todo tipo de humilhação...meu filho vai fazer 4 anos agora, eu amo meu filho, mas a gravidez não era o que eu queria para mim. Eu sentia que eu tinha uma vida inteira pela frente e parece que roubaram isso de mim. Por causa disso que eu comecei, não acho justo que a gente seja obrigada a isso.

A ocorrência de aborto em decorrência de estupro também se fez presente nos relatos das Clandestinas, já que uma delas verbaliza ter sido estuprada por um colega de trabalho com quem flertava. Em suas palavras: As pessoas viam eu flertando, as pessoas viram que eu aceitei a carona, como é que eu podia falar que eu tinha sofrido uma violência? Nota-se que, em ambos os casos, o Estado falhou na proteção e acolhimento destas mulheres: no primeiro caso, falhou por desconsiderar um crime contra uma mulher, em decorrência da posição social do agressor, por negligenciar a existência e o sofrimento feminino. No segundo caso, há uma falha, não só no âmbito do Estado, mas também no âmbito das ideias que circulam entre as pessoas, fundamentadas em uma perspectiva ainda machista. A fala da Clandestina demonstra que o fato de ela ter se interessado pelo rapaz e aceitado estar em sua companhia seria encarado pela sociedade e pelo Estado como uma permissão para a relação sexual. Sua escolha por uma não denúncia apenas reflete as várias histórias presentes nos meios de comunicação onde o estuprador justifica seu ato a partir do comportamento, do vestuário ou do lugar | 138 |


onde está a mulher. São argumentos que a culpabilizam pelo crime sofrido e transferem ao abusador a condição de vítima, uma vez seduzido pelos “encantos e falta de pudor feminino.” Nos casos de aborto amparados pela lei, a mulher deve procurar uma Unidade de Saúde para buscar informações ou ir direto a um hospital de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) mais próximo. Não é necessário que se apresente um boletim de ocorrência ou laudo de corpo de delito em casos de violência sexual. A orientação do SUS é que todas as mulheres sejam tratadas com respeito e dignidade, não sendo função da equipe médica julgá-las. Embora pareça não haver muita burocracia, uma das Clandestinas que passou pela situação nos conta que foi submetida a vários interrogatórios médicos e teve seu processo negado. Neste sentido, Forna (1999) acrescenta que, ao mesmo tempo em que o Estado usa as leis para controlar as ações e comportamentos das grávidas e mães, colocando o poder de decisão também nas mãos dos médicos, ocorre um cerceamento dos direitos humanos que deixam de ser em parte conferidos às mulheres em questão. Segundo a Clandestina: As pessoas que iam lá para enfim, estar em contato com essa portaria, eram meninas de 10 anos, meninas de 12 anos, eram mulheres muito fragilizadas. Você passa por uma sabatina muito complicada, muito escrota e inclusive você passa por mulheres que deveriam te apoiar te colocando contra a parede e te perguntando: Porque você quer fazer um aborto... Cada vez que eu tinha que repetir a história... não existe grau de comparação, mas a violência simbólica de eu ter que repetir e ser destratada e sentir como uma mulher vítima de violência sexual é destratada e as pessoas não acreditam na sua história.

Existem, porém, diversas formas de subjugo sofridas pelas mulheres que vão além do físico e caracterizam também um possível motivo de | 139 |


aborto. Uma das Clandestinas nos conta que, quando foi comprar o medicamento para praticar o aborto, foi questionada pela vendedora se queria o verdadeiro ou o falso. Quando questionou a existência de um falso, recebeu a seguinte resposta: Não, porque tem gente que é obrigada a fazer aborto porque o marido ou o namorado ou o pai querem.

Aqui diante do depoimento acima, uma questão se impõe: quem está abortando? Parece que, embora o corpo seja da mulher, em alguns casos, a decisão prevalece como sendo a do homem. Forna (1999), ao trilhar os diversos caminhos das mulheres pela maternidade, aponta ter havido, nos Estados Unidos, até 1994, uma lei que fazia do parto cesariana uma cirurgia obrigatória para se dar à luz: nos casos em que a mulher se manifestasse contrária, a justiça era acionada e a decisão do juiz costumava primar apenas pelas opiniões de médicos e maridos. Não há, até o momento, muitos estudos que tratem da figura masculina ligada ao ato do aborto e vários fatores podem contribuir para esta ausência de pesquisas. A gestação como um evento biológico exclusivamente feminino, ou, ainda, a responsabilização exclusiva da mulher pelos filhos pode figurar neste cenário. É importante refletir que, mesmo nos casos em que o aborto, clandestino ou não, é realizado em comum acordo entre o casal, o peso verbal sobre a decisão tende a recair sobre a mulher do mesmo modo que a criminalização por um aborto clandestino recai apenas sobre a figura da mulher, não sendo avaliado qual grau de influência o homem pode ter tido em tal decisão. Para Forna (1999), “As grávidas continuam na mira da justiça, mas não se vê quaisquer acusações correspondentes aos homens” (p. 204). Em sua exposição acerca da descriminalização do aborto apresentada ao STF, a teóloga, mestre em direito e pastora, Lusmarina Campos chama a atenção para o fato de serem de cunho religioso os principais argumentos levantados por aqueles que se manifestam | 140 |


contrários à descriminalização do aborto. Para ela, o cristianismo, historicamente patriarcalizado, foi responsável também pela morte das mulheres em diversos momentos históricos, devendo ficar claro, portanto, o teor misógino das construções históricas e religiosas que continuam buscando controlar os corpos das mulheres, penalizandoas psiquicamente e criminalmente por causa do suposto pecado, pela culpa e pela transgressão. Para ela, o que há são releituras de um período inquisitório que persistem através do poder religioso contra a dignidade das mulheres via poder político. Ela ressalta, portanto, a importância de se ter no Brasil um Estado verdadeiramente laico onde não haja fusão dos conceitos de crime e de pecado. A esse respeito, o médico Antônio Dráuzio Varella42, em entrevista43 ao canal de comunicação BBC News, em maio de 2018, discute os argumentos religiosos utilizados por algumas pessoas contrárias à descriminalização do aborto. Para ele, algumas pessoas interpretadoras da vontade divina tentam impor suas verdades ao resto da sociedade, sem se preocupar com as verdades vividas por outras pessoas. Como exemplo, o catolicismo que considera o aborto como um pecado gravíssimo com o argumento de que a vida começa na fecundação. Em contrapartida, para os judeus, a vida começa apenas após o nascimento, o que descaracteriza o aborto como um pecado. No senso comum, costuma-se ouvir que o pai que aborta é aquele que não presta assistência à criança, seja financeira ou afetiva. Porém, ainda que esta noção exista, a indiferença do pai não é percebida como algo absurdo. Donath (2017) aponta que os pais que abandonam os filhos são malvistos pela sociedade, mas, em hipótese alguma, recebem a condenação desumana das mulheres quando sinalizam não querer 42 Médico oncologista, cientista e escritor brasileiro, é conhecido por popularizar a informação médica no Brasil, através de aparições em programas de rádio, TV e pela Internet, com um site e canal no Youtube. 43 A entrevista completa pode ser vista a partir do link: https://www.youtube.com/ watch?v=Q0egxsoS5Ho | 141 |


a responsabilidade da maternidade. No Desafio da Maternidade Real, lançado no Facebook, pudemos perceber um movimento de culpabilização da autora do desafio que, segundo alguns posts, não teria escolhido bem o pai da criança, o que faria dela obrigatoriamente a única responsável pela gestação e criação do filho, além da naturalização de um comportamento irresponsável presente nos pais omissos. Se ela não soube escolher o pai tem + que fazer o papel de pai e de mãe...Se a criança veio é pq ela permitiu...Filhos são presentes de Deus e não um fardo... Verdade! vc tem razão. É fácil fazer um homem colocar a camisinha ou parar de sentir prazer porque está sem camisinha ou confiar 100% em remédio e camisinha ou confiar que o parceiro vai estar sempre ali pro que der e vier ou acreditar que o aborto pode ser uma opção ou então confiar na eficácia de uma pílula do dia seguinte... Que bom que vc engravidou porque quis e não passou por nenhum desses problemas Homem não quer saber de nada, quer transar e ponto final, quem tem q se previnir sim é a mulher! Realmente não são tudo flores, mais ela mesmo escreveu que não gosta desse momento! E essa é a minha opinião, não quisesse se prevenisse, hj em dia fica grávida quem quer! Fui mãe sozinha, passei minha gravidez toda sozinha. Ela não curte ser mãe pq a deve privar de varias coisas, que ela não estava disposta a abrir mão. Então se preveni-se e não engravida-se !!! O pai biológico da minha filha não a procura, ela não a conhece, acha que o de criação é Pai dela. E É!!! curti muita minha gestação mesmo com a rejeição do pai da criança, a sustentei sozinha, fui pai e mãe e não me arrependo... | 142 |


No que tange ao abandono paterno, o Estado brasileiro criou em 2010, através da Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ), o programa Pai Presente44. O programa estabeleceu uma série de medidas a serem adotadas pelos juízes visando identificar os pais e garantir o registro dos mesmos nas certidões de nascimento de seus respectivos filhos. Dados da cartilha do programa, disponibilizada pela CNJ, em 2015, apontam que, desde que o programa teve início, mais de 18,6 mil audiências foram realizadas em todo o Brasil na tentativa de garantir o registro paterno. Além dos casos em que o pai reconheceu de forma voluntária a responsabilidade, outras 23 mil ações judiciais de investigação de paternidade foram abertas e quase 12 mil exames de DNA foram realizados. Ao todo, a cartilha aponta que mais de 150 mil mães buscaram as ações estabelecidas pelo programa para efetivar o reconhecimento paterno para seus filhos. Para alguns, o aborto é um assunto que diz respeito exclusivamente à mulher, em decorrência de sua função biológica. Se a vida que a mãe carrega só pode se desenvolver através dela, somente ela pode ser responsabilizada pela mesma. Não é necessária muita reflexão para inferir que a fecundação, salvo em casos de fertilização artificial, ocorreu por meio de relação sexual entre duas pessoas, atestando assim que o homem tem uma participação ativa neste processo de criação de uma nova vida. O que parece então é que o feto tem mais direitos em seu processo de formação do que após seu nascimento, uma vez que o homem, um ator principal da criação da nova vida, pode escolher não aceitar os deveres e cuidados que devem ser dispensados a ela. Se abortar é escolher pela não vivência da maternidade, aqueles que optam pela não vivência de uma paternidade ativa também abortam. Mas destes pouco se fala e para estes, poucas sanções penais são aplicadas e, quando o são, ocorrem por falta de auxílio financeiro para 44 Mais informações sobre a Cartilha Nacional Pai presente e Certidões, podem ser encontradas no link: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/04/ b550153d316d6948b61dfbf7c07f13ea.pdf . | 143 |


com a criança, caso em que se configura uma forma de aborto afetivo do pai para com a nova vida.

O prazer negado Como esse lixo pode ser chamada de #Mãe??? Vc deveria ter nascido com o útero seco sua vagabunda na hora de rebolar gotosim numa rola vc deve ter adorado agora ficar dizendo que detestou ser mãe é o cúmulo do absurdo...Pq vc seu estrume não se preveniu???Pq não tomou um anticoncepcional???Alguém te falou que ser mãe era fácil???Toma vergonha na sua cara e agradeça á Deus por seu filho ser perfeito...Agradeça á Deus por ter pego uma gravidez e não um HIV...Se toca sua vaca e repense seus conceitos...Tenho pena de vc... (Fragmento do desafio Real da maternidade)

Dois outros fatores chamam a atenção no Desafio da Maternidade Real, o primeiro apontando para a não utilização de métodos contraceptivos por parte da autora e o segundo dizendo respeito à obrigatoriedade de assumir todas as possíveis consequências de uma relação sexual que deu à mulher a oportunidade de sentir prazer. Na hora de dar gostosinho, VC adorou neeh, pq camisinha existe, e pilulas tbm, me pergunto como deus pode não dar filhos a quem ama crianças e da pra uma pessoa seca como VC!! AFF q nojo Foda se, então não abre a porra das pernas, ou use camisinha, ser mãe é um dom de Deus, se não quer feche essas pernas!!!

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As pílulas anticoncepcionais chegaram ao Brasil por volta dos anos 70, época em que ainda não eram financeiramente acessíveis a todas as mulheres, mas já indicavam uma reformulação nas práticas da sexualidade vivida por homens e mulheres, que passaram a se sentir mais livres para manter relações sexuais dentro e fora do âmbito matrimonial sem as consequências de uma gravidez indesejada. Essa liberdade, porém, não foi vista com bons olhos pelas diversas religiões: a Igreja Católica, por exemplo, tem recusado historicamente a utilização dos métodos anticoncepcionais por acreditar que o casamento deve estar sempre aberto à transmissão da vida e, deste modo, condena também o aborto em qualquer circunstância (Costa & Carvalho 2014). Entretanto, segundo (Torres et al, 2013), essa posição está evoluindo para uma postura de maior acolhimento e tolerância, segundo as falas proferidas pelo Papa Francisco. As Igrejas Evangélicas de denominação Pentecostal são mais intolerantes e apresentam valores parecidos com os da Igreja Católica em sua vertente mais tradicional, condenando a possibilidade do aborto (Costa & Carvalho 2014). Embora a sociedade, de maneira geral, tenda a apresentar comportamentos sexuais mais liberais, há ainda muitos paradoxos morais presentes na maneira como as mulheres conduzem suas práticas de vida. Parece haver um enraizamento de valores sexistas que ainda hoje permitem ao homem saciar seus instintos sexuais, sem pensar demasiadamente nas consequências de suas ações, enquanto às mulheres, fica atribuída toda a responsabilidade preventiva. Além das acusações morais e culpabilização, a mulher não pode simplesmente gozar de momentos de prazer, mas arcar sozinha com qualquer imprevisto decorrente da relação. É mais que normal a criança mamar TODA HORA e por uma hora inteira sim! Na hora de abrir as perninhas e virar os olhos é oooootimoooooo. Não to julgando ninguém (nem posso), | 145 |


mas pq não usou camisinha, pq não tomou remedinho? Se tá passando por isso a culpa é única e exclusivamente sua!

Diante de tais comentários uma pergunta se faz importante: se a autora do Desafio da Maternidade Real relatasse ser essa criança fruto de uma violência sexual, os posts iriam em outras direções? A sacralidade da maternidade seria mantida, assim como sua compulsoriedade? Se a questão trazida pelos militantes do grupo que discorda da descriminalização do aborto é a existência de uma vida que não deve carregar culpa pelos atos de seus genitores, se esta vida não pode ser penalizada, então o aborto em casos de violência sexual também não deveria ocorrer, uma vez que o embrião fruto desta violência é dotado das mesmas características biológicas de fetos de relações sexuais consentidas. No que diz respeito à contraceptividade, através do Programa de assistência integral à saúde da mulher (PAISM), a população feminina passou a ter maior acesso às técnicas contraceptivas de maneira gratuita, através dos postos de saúde e unidades de saúde da família que passaram a oferecer pílulas anticoncepcionais, camisinhas e, a partir de 2004, a “pílula do dia seguinte”. Para esta última, porém, Olsen, Lago, Kalckmann, Porto e Escuder (2018) apontam a dificuldade de acesso encontrada pelas mulheres devido às várias burocracias e à falta de tempo hábil para conduzir tais burocracias, o que torna esta possibilidade menos efetiva uma vez que a medicação perde seu efeito significativamente após cinco dias do ato sexual. A Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde45 de 2006 (última realizada) apontou que as pessoas têm utilizado, em maior escala, uma combinação de mais de um método contraceptivo nas relações sexuais, além de um aumento da participação masculina nesta proteção, com 45 Todos os dados da pesquisa podem ser encontrados na página do ministério da saúde, acessando o link http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/morbidade_feminina.php | 146 |


a opção pelo uso responsável da camisinha e pela vasectomia. Mesmo com tantos métodos contraceptivos e com uma maior conscientização da população sobre os mesmos, a pesquisa apontou que, do total de nascimentos ocorridos nos últimos cinco anos, 54% foram planejados para aquele momento. Entre os 46% restantes, 28% eram desejados para mais tarde e 18% não foram desejados. Diante desses dados e do número de abortos clandestinos já levantados, pode-se presumir que os métodos contraceptivos de acesso mais comum como a camisinha e a pílula anticoncepcional falham em algum momento, seja pelo mau uso ou pelo esquecimento. Em casos assim, a esterilização feminina, método contraceptivo também oferecido pelo SUS, poderia ser útil na diminuição da taxa de gestações indesejadas e consequentemente na quantidade de abortos clandestinos. Scavone (2001) aponta que, no Brasil, as mulheres têm, cada vez mais, optado pela recusa definitiva da maternidade, através da esterilização. Segundo Caetano46 (2014, pp. 309-331), fazendo-se uma comparação com dados de 1996, houve uma substancial diminuição no número de laqueaduras realizadas em território brasileiro, passando de 40,1% para 29,1%, em 2006. Essa diminuição não teria necessariamente ligação com o desejo das mulheres e sim com a promulgação da lei n. 9.263, referente ao planejamento familiar, sancionada em 1997. Tal lei se caracteriza, entre tantas outras coisas, por dificultar a laqueadura tubária no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), através de critérios mais severos para a realização do procedimento, tais como idade e número de filhos, necessidade de autorização escrita do cônjuge, demora entre a solicitação e a realização do procedimento, proibição da laqueadura no parto e pós-parto, e uma cobertura territorial limitada de serviços médicos do SUS credenciados para 46 Os dados completos da pesquisa encontram-se no artigo Esterilização cirúrgica feminina no Brasil, 2000 a 2006: aderência à lei do planejamento familiar e demanda frustrada. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v31n2/a05v31n2.pdf | 147 |


ofertar a esterilização cirúrgica feminina. Assim, com base em suas pesquisas, Caetano (2014) considera ainda alto o número de pedidos femininos para intervenção da laqueadura, mas, em decorrência dos obstáculos apresentados, muitos destes são negados pelo sistema de saúde. Ainda, segundo Caetano (2014), estima-se que, caso todos os pedidos do procedimento tivessem sido aceitos no período de 2000 a 2006, a porcentagem de intervenções realizadas seria 36,7%, número muito próximo ao que se tinha anteriormente à lei de planejamento familiar, evidenciando uma falsa impressão de que essa opção não seria mais desejada pelas mulheres. Quando não há uma política de Estado que acolha de maneira integral a escolha da mulher, o risco pela necessidade de um aborto ilegal é aumentado. É o que nos apontam as Clandestinas: o aborto não é utilizado como contraceptivo ou de modo banal, mas que as mulheres devem poder ter autonomia sobre o próprio corpo. Com certeza eu não queria ter filho, mas ao mesmo tempo eu não queria ter um aborto. É uma ideia tão estapafúrdia achar que uma mulher vai engravidar, ah vou fazer um abortinho depois, ninguém pensa em fazer um abortinho.

Ao que parece o Estado procura atuar em várias frentes que diminuam a autonomia da mulher no que diz respeito ao seu corpo e sua possibilidade de maternidade, não lhe sendo permitido abortar afinal trata-se de uma vida - mas também não lhe é facilmente permitida a escolha de jamais gerar uma vida. Segundo uma das Clandestinas: Você levar a discussão nessa direção é basicamente você tomar as pessoas e principalmente as mulheres como seres desprovidos de | 148 |


qualquer responsabilidade, de autoconhecimento, basicamente é um argumento furado para você não dar soberania, não dar poder que as mulheres merecem ter sobre elas próprias.

O médico Antônio Dráuzio Varella, ao participar de uma entrevista ao canal de comunicação BBC News em maio de 2018, aponta que o congresso brasileiro é formado basicamente por homens, o que acaba por apoiar políticas que subjugam a vivência feminina. No que diz respeito exclusivamente ao aborto, em entrevista concedida à BBC News em junho de 2018, Luís Roberto Barroso (Ministro do Superior Tribunal Regional) aponta que: Segundo a organização mundial da saúde, a criminalização não produz nenhum impacto sobre o número de abortos que se realizam na sociedade, ela apenas impede que ele seja feito de maneira segura e eu acho que se os homens engravidassem, esse problema já estaria resolvido há muito tempo, portanto há uma coisa de sexismo também na criminalização.

Podemos ressaltar dois acontecimentos políticos brasileiros que poderão tornar o caminho das mulheres em busca da libertação do ônus da maternidade ainda mais longo: em 2017 foi aprovada uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que proíbe todo tipo de aborto, inclusive os já previstos na lei. O discurso parece ser o mesmo, apelando em defesa à vida do embrião, criação divina que deve ser protegida a todo custo. A proposta ainda precisa ser aprovada pelos plenários da Câmara e do Senado em dois turnos. Não há, até o momento, nenhuma alteração nos cenários político e jurídico que visem facilitar o processo de laqueadura feminino. Em 2018, o presidente eleito calcou sua campanha em um discurso religioso que desmerece conquistas femininas como a lei Maria da Penha e afirmou em vídeo47 47 O vídeo completo no link https://www.youtube.com/watch?v=fZHvFHvQtcQ. | 149 |


gravado por ele mesmo que, caso a câmara ou o senado aprovem a descriminalização do aborto ele vetará. Segundo matéria do Jornal O Globo48, publicada em dezembro de 2018, o então presidente eleito já considerava ocupar a cadeira de Ministra dos Direitos Humanos, da Igualdade Racial e das Mulheres com a Pastora Evangélica e advogada Damares Alves. Ainda segundo a matéria a pastora teria dito em entrevista a outro meio de comunicação que as mulheres nasceram para serem mães e que o modelo ideal de sociedade as deixaria apenas em casa, sustentadas pelos homens.

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Prática do aborto e ARTivismo: algumas narrativas ensanguentadas, infames e criativas María Antonella Barone Guzmán

Eu pinto memórias, utopias, nossos sonhos que nos permitam sair desses traumas, dores e mortes que vamos tendo durante a vida, sonhar com cores, alegrias, amores, lugares e relações possíveis (GANZALA, 2016).

Essa escrita tem a ver com algumas inquietações que surgiram no processo de formação de mestrado e pretende ser mais um aporte na grande polifonia de vozes que, incansavelmente, se colocam pelo acesso a um aborto cuidado, seguro e legítimo, no Brasil e no mundo. Nesse sentido, não se pode pensar a prática do aborto sem a necessária contextualização que, junto com outras práticas e discursos, situa um debate complexo de disputas de sentidos, onde o que está em jogo é a vida dos corpos que gestam e abortam. É por isso que ressaltamos a necessidade de recuperar o conceito “vida” para nos colocar no debate sobre a prática abortiva. Nós estamos a favor da defesa da vida daqueles corpos feitos de histórias plurais que, nas suas singularidades, sangram as mais diversas narrativas abortivas. Utilizamos a primeira pessoa do plural. Acreditamos na potência de nos colocar no debate sobre a prática do aborto pela implicação e não pela punição. Esse “nós” agencia acontecimentos vitais, na composição | 154 |


de redes de cuidado e afeto, para pensar o aborto desde o pessoal como político. Somos multidão. Os corpos aborteiros não limitam-se a ser identificados como aqueles que, de fato, experimentaram a prática em si, senão como todas aquelas pessoas que, pela implicação com a vida, estão na luta por um mundo mais vivível e menos hipócrita. Então falaremos, aqui, como corpos aborteiros que fazemos um convite à conspiração para nos perguntar: como fazer da prática do aborto, uma experiência mais vivível? Como co-construir outras narrativas sobre a prática abortiva? Dessa forma, pensamos no compromisso com uma tarefa ética, estética e política que se propõe resgatar outras narrativas em torno das experiências abortivas. Narrativas que se afastem dos discursos instalados na sociedade, e facilmente disponíveis, que produzem mais indiferença e morte. Para tal fim, a presente escrita, pretende explorar as possíveis aproximações entre arte e estratégias ativistas diante da problemática do aborto. Não se pretende examinar detidamente os aspectos fundamentais do que configuraria ou não o conceito de arte ou matéria artística. Perguntas como: -quais são as condições necessárias para determinar ativista a uma prática artística? Ou: quais tensionamentos e limites existem entre arte e ativismo ou arte e política? -, não serão alvo de respostas nestas próximas linhas. Nos interessa a ideia de que ambos conceitos se interpenetram. Dessa forma, alguns processos e meios de produções ditas artísticas, agenciam fortes críticas, intervindo social e politicamente no contexto, a partir das histórias que se entrelaçam nessas produções. Percebese que, se bem um silêncio ressoa em torno da prática do aborto, coletivizar os afetos da experiência, é um exercício que faz parte de um processo de descobertas e mudanças. Assim, enquanto o Estado não cumpra com essa dívida com os corpos que abortam, e siga criminalizando-os, produzindo mais mortes, as artistas, ativistas, feministas, não deixamos de nos manifestar e trabalhar sobre projetos | 155 |


para nos acompanhar neste cenário que pretende esmagar nossas vidas. Consideramos que é possível uma afirmação de uma potência das ações que se agenciam por meio da produção artística, colaborativa e de forte conteúdo político para disparar debates e, de alguma forma, se espalhar, rizomáticamente, por meio de uma linguagem comum: a arte. Arte urbana, arte de rua, performances, pichações, pinturas, músicas, cinema, teatro, contos, poesias que constituem-se como poderosas ferramentas para (re)pensar o aborto e criar outros sentidos em torno dele. Narrativas infames que, quando contadas, se transformam, nos transformando com elas: Esse lugar cheirava a ferro. Ferro enferrujado. Mas não a incomodava. Ao contrário, sentia como inundava seu corpo uma energia potente. Muitos lenços brancos, algumas pessoas sentadas com pinceis nas mãos, deixandose inspirar. Uma música leve acompanhava a criatividade. -O que é a criatividade? - Se pergunta. Ela é inventiva, mas nômade. Muda de forma constante e imprevisivelmente. –Qual é a prova da sua existência? O manejo do seu pigmento? Os traços no lenço? -. Criar. Isso produzia nela especial entusiasmo. Acreditava que a criação alimentaria quem se aproximasse dela. –A criação não é um momento solitário. Conspira. Se inspira com outras. Se conecta com quem sente, com quem percebe, com quem contempla-. Pinturas com sangue menstrual. Aquilo não precisava palavras. Palavras que nem saem. Palavras que não desejam ser faladas. Precisam ser gritadas. Mas sem voz. Gritar sem usar a | 156 |


boca. Pintar. Desenhar. Um frasco para guardar o sangue que derrama e escorre pelas pernas. Não pede aprovação nem consentimento. Só conta-pinta. Um coletor e um pincel. Perene. Inesquecível. Inesgotável. Como a experiência. Mexe. Provoca. Espaço para respirar. Só o sangue escorrendo, escrevendo... (BARONE, 2018, p. 108).

Sentimos o convite a conspirar com manifestações artísticas que criam modos outros de pensar a prática do aborto. Propomos conhecer algumas narrativas criativas e infames que se (re)inventam aos modos de poesias venenosas, rizomáticas, sangrentas, vitais. Elas, aparecem das mais variadas formas na internet. Mas não só. Dessa forma, problematizamos os usos das tecnologias e as redes no ciberespaço que oferecem possibilidades para expressar visões do mundo e de produzir crítica, opiniões, comentários, de intervir poética e performaticamente para a comunicação e conexões de inúmeras criações. Mas ao mesmo tempo, pode se configurar como espaço de banalizações e espetacularizações e, por isso, devemos permanecer alertas, atentas e no cuidado das redes que agem nos acompanhamentos para abortar e na sistematização das práticas de acompanhamento, como acontece na Argentina. São redes de acompanhamento, chamadas “Socorristas en Red, feministas que abortamos”, que cuidam das pessoas que precisam de uma prática abortiva: Socorristas en Red -feministas que abortamos(en adelante SenR) es una articulación de colectivas de Argentina, damos información y acompañamos a mujeres y a otras personas gestantes en sus decisiones de abortar. Surge como iniciativa política de la Colectiva | 157 |


Feminista La Revuelta, de Neuquén, en el ario 2012, con el propósito de entramar experiencias de acompañamiento que se venían dando en el país. Es en el año 2014 cuando SenR adquiere un claro sentido de Red de acompanhantes (SenR, 2018, p. 3).

Essa, como outras redes, só é possível em diálogos e trabalho coletivo em articulação permanente com as instituições e a sociedade: “heterogéneas activistas, colectivas y grupos feministas que, junto con el amplio movimiento de mujeres, los movimientos sexo-genéricos, investigadorxs, personal de salud y otros sectores sociales, traemos y generamos nuevas agendas a la política” (SenR, 2018, p. 3). Para analisar essas alianças entre estéticas e políticas, pensamos em um neologismo conceitual que “estimula os destinos potenciais da arte enquanto ato de resistência e subversão. Pode ser encontrado em intervenções sociais e políticas, produzidas por pessoas ou coletivos, através de estratégias poéticas e performativas” (RAPOSO, 2015, p. 5). Segundo o autor, a natureza estética da arte tem um potencial amplificador que consegue sensibilizar, ao tempo que interrogar temas e situações num contexto socio-histórico determinado com fins de mudança, de transformação social. Nesse sentido, as redes agem, mesmo na clandestinidade imposta por leis que só produzem criminalidade: En los encuentros cara a cara circulan saberes, deseos, miedos, angustias, incertidumbres, poderíos. Allí tiene lugar una parte singular de ese intrincado mundo que es cada aborto que acontece. Es plausible suponer que, por esa misma razón, los encuentros resultan verdaderos eventos de resistencia; se convierten | 158 |


en sostenedores emocionales de la decisión adaptada quizás porque -entre muchas otras cosas- aparece en voz alta la palabra silenciada o apenas susurrada hasta ese momento: aborto. Autorizarla, decirla, anunciarla es parte de lo que hacemos entrar en el orden de lo posible las socorristas (SenR, 2018, p. 4).

Pensamos, assim nas narrativas ensanguentadas que se produzem no meio a encontros. Encontros que possibilitam criar nas manifestações artísticas, outros modos de se expressar nas pinturas, nas poesias, nas performances. Os coletivos, por meio de produções literárias, audiovisuais, urbanas, na mídia, nas redes sociais e nos âmbitos acadêmicos, disputam os sentidos que são produzidos em torno à prática abortiva. Jacques Rancière (2010 s/p.) procura explicitar a relação entre arte e política dizendo que “A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos (...) é um dado permanente” 49. Algo duradouro, perene, que não acaba e que se transforma permanentemente em cada novo olhar, em cada novo encontro. Pensamos, assim, nas possibilidades da criação a partir daquele sangramento, nomeado aborto. Poesias, filmes, teatro, performances, pichações, músicas por meio das quais se “explicitam intenções políticas, ou melhor, que criam e entendem as suas manifestações artísticas como formas distintas de fazer política” (RANCIÈRE, 2010, s/p.). Vocação um corpo que carrega um útero 49 Entrevista à revista Cult, nº 139, Março de 2010 (https://revistacult.uol.com.br/ home/entrevista-jacques-ranciere/ Acesso em maio 2017. | 159 |


é submetido ao decreto da incondicionalidade é submetido ao destino de um útero os grandes sacerdotes e os pequenos as figuras de autoridade como as telas como os corredores brancos todos ensinam o percurso do útero que haja vida porque um útero crescido - às vezes nem tanto deve fazer brotar vida pernas braços olhos espírito um corpo que carrega um útero precisa de um espírito que o preencha o espírito forçado entre as pernas enfiado enfiado enfiado obrigatório um útero é um sarcófago de uma mulher é a máquina | 160 |


inquebrantável de uma mulher uma mulher é um útero que carrega algo há dias em que gente há dias em que chumbo (Jarid Arraes, 2018).

Por meio das práticas artivistas, é possível questionar o corpo, o sexo, propondo “formas mais criativas de estar no mundo e de sentir a multiplicidade e o valor da liberdade para a vida” (LESSA, 2015, p. 222, tradução nossa). Concordamos com a autora quando nos diz que, a arte, “alimenta e é alimentada pelos movimentos de transformação social na medida que cria novos códigos via sensibilidade e um olhar para seu tempo questionando corpos, lugares, gêneros e saberes” (LESSA, 2015, p. 214). Segundo Alejandra Boschetti e Daniela Dietrich (2011), é uma prática de uma arte incisiva que dialoga com o contexto social. Desde posições individuais e coletivas, transformam as fronteiras do espaço público e privado, individual e social. “Suas práticas artísticas (políticas) pretendem transcender a ação simbólica por meio de uma ação efetiva para dissolver as barreiras entre arte e vida através de novas linguagens (...). É uma arte orientada ao uso e implementação de uma linguagem própria e experimental” (BOSCHETTI; DIETRICH, 2011, s/p., tradução nossa). O que nos interessa é a produção “contra - imagens” na arte, na literatura, na transformação da linguagem. Tentamos compreender, assim, outros contextos que apresentam outras concepções de corpo, gestações, sangramento, aborto, de maneira diferente das concepções impostas por algumas instituições. Consideramos que aquelas práticas | 161 |


de criação subvertem rizomáticamente um estado de coisas e se interseccionam com práticas precisas como o aborto. Isso é o que tem tornado o artivismo como “espaço de resistência de contra-poder” (RAPOSO, 2015 p. 24). Essas criações, produzidas pelos coletivos que reivindicam o direito de autodeterminação sobre os nossos corpos, possibilitam inquietações que intervêm na sociedade como um modo de (re)inventar mecanismos para provocar debates e disputar sentidos. Os artivismos irrompem nesse cenário no qual estamos inseridas e o provocam, criando outros modos de colocar a discussão, estabelecendo o debate na sociedade. São poéticas que transgredem a norma. Elas privilegiam as discussões sobre corpos e sexualidades. Percebemos o artivismo como um ato político que, quebra com algumas imagens, e produz outras, reverberando no campo das políticas públicas e na produção de subjetividades. Entendemos a arte como produção de outras imagens do pensamento. Cria possibilidades de violentar o sistema de pensamento. Choca. Irrompe. Desloca. Mobiliza. Incomoda. Afeta. Comunica. Nesse sentido, consideramos importante destacar as conspirações nas redes. Determinados usos das tecnologias da informação, funcionam nas lógicas de uma produção de um comum em torno à prática do aborto. As narrativas aparecem das mais variadas formas na internet. Patrícia Lessa (2015), quando analisou os trabalhos de algumas artivistas, referiu-se ao uso intenso das novas tecnologias das redes sociais, onde se jogam criações de forma anônima e/ou utilizando pseudônimos para expor experiências e coletivizar afetos atrelados a elas. Diana Taylor (2003) perguntava-se de que modo o artivismo encontra no mundo digital um território amigável para se tornar viral e ao mesmo tempo se constituir como um arquivo de documentação performativa política. Os usos das tecnologias e as redes no ciberespaço oferecem muitas possibilidades para expressar visões do mundo, produzir crítica, opiniões, comentários, intervir | 162 |


poética e performaticamente naquele espaço para a conversação de inúmeras criações. As novas formas de comunicação, como as redes sociais na internet, e as tecnologias de comunicação digital, permitem tornar públicas as narrativas, as reações, as opiniões. Com elas, é possível expressar certa resistência aos regimes de verdades que marcam a questão do aborto, e alterá-los. Observamos que, essas ferramentas que se oferecem na internet, possibilitam outros modos de escrita nos percursos dos corpos que sangram e abortam. Assim, dá-se um uso por parte das coletivas que assumem a palavra e intervêm na produção de discursos e práticas outras, manifestam-se, desbravando, assim, as ferramentas online. Dessa forma, vão se autorizando, se encorajando, se acolhendo e expandido as redes. Por conseguinte, nos propomos resgatar do cyberespaço, algumas imagens (des)pretenciosas de alguns coletivos que, através de manifestações artísticas, põem em funcionamento a produção de um comum: grito plural das aborteiras! Para dizer o que não é dito, o que é interdito, temos outras forças. Outras linhas que fogem e se conectam com outras. A composição de redes e as propostas artísticas que agenciam esses coletivos, urdem um comum que nos convoca. Discursivamente materializados, nossos corpos encarnam experiências que só são possíveis pela (re)existência das coletividades. As narrativas dos corpos aborteiros, disputam os sentidos da prática e, com ela, todo um conjunto de saberes. A experiência, transforma-se, assim, em produção de conhecimento, de autoconhecimento, de autogestão e co-gestão do corpo. São as narrativas corpo-aborteiras que, performaticamente, produzem os deslocamentos que politizam a carne. Produzem-se, assim, imagens subversivas que propõem, por meio das estratégias artísticas, criar dobras subjetivas em quem participa desse acontecimento. Annie Gonzaga (2016, s/p.), ao começo desse texto nos diz, “eu pinto memórias, utopias, nossos sonhos”. Ela é uma artivista brasileira que pinta na técnica da aquarela suas afetações e suas experiências. | 163 |


Pinta o amor lésbico e vivências no candomblé, por exemplo. Com coloridas produções vai se misturando com outras histórias, com outras sensibilidades, com outros corpos. Essa é a aposta do artivismo, misturar os corpos nas narrativas feitas artes, porque se bem as histórias são singulares, a arte as volta coletivas. Essas produções artísticas transbordam, desfazem as fronteiras territoriais e as fronteiras entre o individual e o coletivo, produzindo, assim, um comum através do sensível. Por sua vez, possibilita a instalação de outras imagens sobre o aborto, sobre outras formas de amar e de habitar o mundo, sobre produção de vida.

"Uma Aquarela lesbofeminista, antirracista e decolonial”, de Annie Gonzaga. Brasil, 2016. Fonte: Portal Sotero Preta50.

A artista brasileira nos fala sobre práticas que dizem de outras formas de amar e habitar o mundo e, assim, nos lembra discursos e práticas de alguns feminismos que nos permitimos questionar e, com isso, afirmar outros possíveis. Paul B. Preciado (2008) questiona o

50 Disponível em: <http://portalsoteropreta.com.br/annie-ganzala-emsalvador-e-no-mundo-aquarelando-mulheres-negras/>. Acesso em novembro de 2017. | 164 |


feminismo, e provoca que seja o movimento que promova as práticas masturbatórias como método contraceptivo, a greve sexual das “biomulheres” heterossexuais e férteis, as práticas lésbicas, a esterilização e o aborto livre e gratuito. As músicas, que convidam à dança, no movimento, na produção de uma vida viva, constituem peças artísticas que chegam a muitas pessoas, de todas as idades e vão além do meio acadêmico. Dessa forma, as artivistas, utilizam as ferramentas da arte e a transformam em recursos para exercer lutas políticas pela mudança da sociedade. A música que segue é inspirada no poema de Ingrid Maria (2016) e interpretada na música Mulher de Luta pela artivista Dandara Manoela, 2016. (...) vi Maria trabalhava empurrando um carro de mão com garrafas de plástico seu rosto rasgado pelo tempo dizia tudo. que destino é esse que PALAVRA é essa que destino tem Maria que trabalha trabalha trabalha mas não tem destino certo se tem pão na mesa, ou não | 165 |


se morre amanhã, com bala perdida se morre com cova certa ou indigente se morre na fila de hospital Público sem convênio privado se o traste que mora em casa lhe dá um tapa um soco um murro na cara pra onde vai pra onde vai pra onde vamos uma casa de passagem? uma tia, uma vizinha? ou não! fica aguentando aguentando até vir outro murro que destino que tem a minha gente? cadê claudia cadê jacira C-A-D-Ê e essas Marias que cá estão pobres aborteiras e putas destino de Maria é ser | 166 |


Maria de luta! ah quando essas Marias todas se ajuntar sapatão, trans, viadas pretas brancas vermelhas amarelas e todas outras coloridas da mesma classe! punhos erguidos pedras e sonhos nas mãos seremos todas MARIAS DA REVOLUÇÃO!

Ao ritmo das músicas que convocam ao sensível e produzem imagens alternas, coloridas, vitais, plurais, ao tempo que permanecem, nos permeiam e nos transformam enquanto nos convidam para dançar. Dança. Movimento. Vida. Nessa polifonia, recuperamos algumas vozes através de um dispositivo simples e acessível: o conto. Breves, mas intensos, servem como meio para suavizar algumas cicatrizes e olhar para a experiência de um outro modo, criando assim, outras imagens sobre as histórias de aborto. O conto pode ser uma medicina que tem um poder extraordinário, que não exige que façamos, sejamos ou botemos em prática coisa alguma, é suficiente com escutar. Nele, se gestam emoções, perguntas e compreensões que nos permitem recuperar algumas imagens coletivas sobre a prática. Possibilitam intercâmbios de relatos com as que contam, seguindo as marcas das ancestrais, partilhando as vivências. Se dispõem à mágica tarefa de uma abordagem guardiã dos relatos que possibilitam compor outras narrativas coletivas, que dizem das histórias das que vivenciaram sangue, dor e alívios, mas não só. A experiência é inesgotável. Os contos entram em um mundo em meio | 167 |


de outros mundos. Depois de contado, o conto pode seguir qualquer caminho, isso na ordem da desordem, da contingência, inclusive, pode ser des-feita, se transformando em qualquer outra coisa. A origem da vida não é mais de uma costela, converte-se em outra quando deixamos que ela nos transporte na sua viagem. Até podemos sentir que somos acolhidas em seu colo. Colo que não é terno, nem cálido, nem maternal, senão um ninho de encantamentos e subversões. Ela não alimenta deuses. Às vezes deixa algum prato, sem entrar nas jaulas deles para que estes não a mordam, e afasta-se quando eles se tornam muito perigosos. Deuses lhe exigem demais, chega a ser inconveniente. Paradoxalmente, ela se parece com Vênus, sobretudo no seu vago olhar e sua fome por molhados prazeres. Às vezes, encontra-se dançando junto com deusas. Algumas delas lhe parecem mais generosas quando lhe estendem as poderosas mãos e lhe fazem sentir deusa enquanto vibra, enchendo rios. - E o que se podia fazer se ali, nessa vida, não tinha afeto? Não tinha esse, que se fazia preciso. Era certeza da incerteza, da falha, do furo. Certeza do não querer. Como lhe pedir que olhe por algo por toda a vida? -. Ao se pôr o sol, as deusas espantam o medo e cantam com profundas vozes. Mas não é música, nem algo que dê sabor divino ao som. As vezes parecem gritos. Dor. Alegria. Medo. Solidão. Êxtase. Alívio. Gritos de gozo. Um grito-liberdade? Gritos que já não são o bastante | 168 |


e, por isso, cantam. Cantos-história, cantosestórias, cantos-gemidos, cantos-sussurros, cantos-delírios. - É meu! Não um pequeno que a mim parece, mas esse corpo quente, que a mim pertence. Sinto-me deusa de mim! Eu sentia, o sentia sair de mim e não quis que ninguém conhecesse minha alegria. Com minhas palmas afoguei meu sorriso e segurei minha vontade de gritar meu alívio. Como em um delírio -. O delírio ignora uma ordem. Volta escuro o dia e bota luz à noite. Desdiz as ciências, não obedece à biologia, nem entende de matemáticas. O delírio submete a uma voz. Voz guardiã da loucura que desobedece à cordura. Ali desnuda de defesas e com seu canto, me encantou. Deliramos. Não alimentamos deuses desta vez. Os delírios serviram-nos para lhes afastar. - As deusas mães acreditam que estão ali para se fazer cargo de mim. Conversam, gargalham. Sou o principal motivo das conversas delas. Logo chegará para elas a des-ilusão. Nada que digam pode me afetar mais. O corpo é meu, por mais que muitas vezes disso duvide muito -. Deusa das suas vontades no canto-gritoalívio-delírio. Ela não aceitava o abraço, o carinho, a compaixão. Necessitava menos do que isso: cantar. Gozar. E gozamos. (BARONE, 2018, p. 30).

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REFERÊNCIAS ARRAES, Jarid. Um buraco com meu nome. Editora Polen Livros, São Paulo, 2018. BARONE, María Antonella. SENHORAS DE SI: Problematizando as incidências das biopolíticas nos corpos que sangram e co-produzindo narrativas que (re)inventam a vida a partir da prática do aborto. Dissertação de mestrado, 2018, Universidade Federal do Espirito Santo (UFES), Vitória, Espirito Santo, Brasil. BOSCHETTI, Alejandra; DIETRICH, Daniela. La creatividad femenina y el mundo del arte. Centro Interdisciplinario de Estudios de Género Universidad Nacional del Comahue, Argentina, 2011. DANDARA, Manoela. Mulher de Luta. Music and guitar by Dandara Manoela. Percussion by Carol Miranda. Bass by Jacqueline Marissol Mwaba. Gravado data 30/10/2016 17:09hs. Camera by Guilherme Meneghelli, Hugo Schmitt Takemoto, Ricardo Vilela. Bambu Hostel Floripa. Florianópolis, Santa Catarina, 2016. GANZALA, Annie. Em Salvador e no mundo aquarelando mulheres negras. Entrevista por Jamile, 12 de outubro de 2016 para SoterPreta: O Portal AfroCultural de Salvador. Disponível em: < http:// portalsoteropreta.com.br/annie-ganzala-em-salvador-e-no-mundoaquarelando-mulheres-negras/>. Acesso em novembro de 2017. LESSA, Patrícia. Visibilidades y ocupaciones artísticas en territorios físicos y digitales. PADRÓS, Núria; COLLELLDEMONT, Eulàlia; SOLER, Joan. Actas del XVIII Coloquio de Historia de la educación: arte, literatura y educación. v.1, Vic: Espanha: Editora da UniVic, 2015. | 170 |


PRECIADO, Paul B. Texto Yonqui. Editora Espasa Calpe: Madrid, España, 2008. RAGO, Margareth. A aventura de contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013. RANCIÈRE, Jacques. A associação entre arte e política segundo o filósofo Jacques Rancière. Entrevista à Revista Cult por Gabriela Longman e Diego Viana. Edições Bregantini: São Paulo, 2010. Disponível em: < https://revistacult.uol.com.br/home/entrevista-jacques-ranciere/>. Acesso em agosto de 2017. RAPOSO, Paulo. Artivismo: articulando dissidências, criando insurgências. Cadernos de Arte e Antropologia [En línea], Vol. 4, No 2 | 2015, Publicado el 01 octubre 2015. Disponível em: < http:// journals.openedition.org/cadernosaa/909?lang=fr>. Acesso em maio de 2017. SOCORRISTAS EN RED ARGENTINA. Sistematización de Acompañamientos a Abortar realizados en el año 2017. Socorristas en red, feministas que abortamos. Aporte al debate en el Congreso Nacional sobre despenalización y legalización del aborto en argentina. Abril de 2018. TAYLOR, Diana. The Archive and the Repertoire: Performing Cultural Memory in the Americas. Durham: Duke University Press, 2003.

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A verdadeira anomalia: o aborto enquanto crime no Brasil Mirela Marin Morgante

Na segunda metade do século XX, o direito ao aborto se tornou uma bandeira comum dos movimentos feministas em diversos países do Ocidente. Em grande parte deles, o direito foi conquistado com até 12 semanas de gestação, nos casos de estupro e de risco à saúde da mãe e do feto, de maneira geral (McBRIDE, 2008). No Brasil, apesar da influência dos movimentos feministas europeus e estadunidenses nas lutas feministas nacionais, o aborto permanece considerado ilegal, em conformidade com o Código Penal de 1940, com exceção para os casos de estupro, feto anencéfalo e de risco à vida da gestante (DINIZ, 2013). A força das correntes cristãs na política e os preconceitos de gênero, raça e classe no Brasil são algumas das razões que impedem o avanço das pautas feministas e o sofrimento de inúmeras mulheres que realizam o procedimento na clandestinidade sem contar com nenhuma segurança material e emocional (BARSTED, 1992). Obviamente que, dadas as desigualdades raciais e sociais extremas, são as mulheres mais pobres, na maioria, negras, que mais sofrem com a negligência e o abandono do Estado e, amiúde, de seus companheiros e familiares (ARDAILLON, 1998). Contudo, para além da discussão em si do aborto, é importante historicizar o processo de criminalização da prática. Afinal, o aborto não foi sempre condenado e proibido, nem pela Igreja Católica, e tampouco pelas legislações criminais ao redor do mundo Ocidental. Na França, como em diversos países europeus, foi por meio do Código | 172 |


de Napoleão, de 1810, que o aborto passou a ser considerado crime. Na Inglaterra e nas regiões de domínio britânico, como Nova Zelândia, Canadá e Austrália, foi criminalizado em 1861 (McBRIDE, 2008). No Brasil, o primeiro código criminal que tratou especificamente do aborto foi feito em 1830 (REBOUÇAS; DUTRA, 2011). A Igreja Católica, por seu turno, passou a censurar e a penalizar as práticas de aborto e o uso dos métodos contraceptivos em 1869, declarando que o feto possui alma (REBOUÇAS; DUTRA, 2011). Ou seja, foi no decorrer do século XIX que o aborto passou a ser criminalizado, em consonância com o processo de desenvolvimento industrial e urbano dos respectivos locais, e com a multiplicação de discursos científicos e jurídicos sobre o sexo em todas as esferas da vida social, na política, na economia, na educação, na moral e na família (FOUCAULT, 1977). No Brasil colonial, ao funcionamento regular do útero, chamado na época de madre, correspondia o cumprimento do papel social feminino, seguindo o destino de vida "natural" de todas as mulheres, conforme os propósitos divinos. Em contrapartida, o mal funcionamento da madre, evidente em caso de aborto ou desregulação menstrual, era sinal da injunção demoníaca no corpo feminino ou dos pecados cometidos (DEL PRIORE, 1997). Apesar disso, a prática era tolerada. São Tomás de Aquino, segundo o qual o feto não teria alma, influenciou sobremaneira a teologia cristã (REBOUÇAS; DUTRA, 2011). De forma geral, a Igreja Católica considerava que o bebê somente tinha uma vida após 40 dias de nascido (DEL PRIORE, 1997). Ademais, segundo o pensamento de Santo Agostinho, a infância, desde a mais tenra idade, era símbolo do mal, da imperfeição do ser e do pecado original (BADINTER, 1980). Assim, não obstante a ênfase dada pelos discursos de poder ao papel de mãe e esposa fiel das mulheres, como decorrente de suas características biológicas, o que se esperava da maternidade era bem diferente das expectativas criadas a partir do século XIX. | 173 |


Foi em meio ao crescimento das cidades e da industrialização no país, iniciado no século XIX e intensificado no século seguinte, que os médicos brasileiros passaram a se debruçar mais sobre as questões relacionadas a sexualidade e aos comportamentos dos sujeitos sociais, seguindo os passos da medicina europeia (ENGEL, 2004). A família nuclear burguesa passou a se tornar o parâmetro do ideal de gênero da sociedade, com a mulher responsável pelos cuidados domésticos, dos filhos e do marido, e o homem incumbido do provimento econômico da casa, assegurando às crianças todo o amparo emocional e material necessário ao seu desenvolvimento físico e psicológico (NADER, 2001). A ordem do momento era normatização e disciplinarização. Em prol do "progresso" e do "desenvolvimento" da nação brasileira, todos os sujeitos deviam se adaptar aos padrões de normalidade forjados pelas correntes médicas e cristãs hegemônicas. Nesse contexto, o aborto se tornou crime no Brasil. Visto como um assassinato à vida do feto, como símbolo da "anomalia" feminina, é um procedimento que pretensamente vai "contra a natureza" das mulheres. Mas, em realidade, o que a história nos mostra é que a "normalidade" e a "natureza" são construções discursivas de poder, e que a verdadeira anomalia é aquela que se impõe como verdade absoluta, em detrimento de uma vida sem culpa, sem traumas, sem mutilações e sem sofrimentos para inúmeras brasileiras.

REFERÊNCIAS ARDAILLON, Danielle. Cidadania de corpo inteiro: discursos sobre aborto em número e gênero. Tópicos Educacionais. Recife, v. 16, n. 1-3, p. 63-80, 1998. BADINTER, Elisabeth. L'amour en plus: histoire de l'amour maternel (XVII-XX siècle). Paris: Flammarion, 1980. | 174 |


BARSTED, Leila. Legalização e descriminalização do aborto no Brasil: 10 anos de luta feminista. Revista Estudos Feministas. Rio de Janeiro, v. 0, n. 2, p. 104-130, 1992. DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na Colônia: o corpo feminino. In. DEL PRIORE, Mary (Org) e BASSANEZI, Carla (coordenadora de textos). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p. 78-114. DINIZ, Débora. Aborto e contracepção: três gerações de mulheres. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013. p. 313-332. ENGEL, Magali. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004. McBRIDE, Dorothy E. Abortion in the United States: a reference handbook. Contemporary World Issues. Santa Barbara, California: ABC-CLIO, 2008. NADER, Maria Beatriz. Mulher: do destino biológico ao destino social. 2ª ed. Vitória: EDUFES, 2001. REBOUÇAS, Melina Séfora Souza; DUTRA, Elza Maria do Socorro. Não nascer: algumas reflexões fenomenológico-existenciais sobre a história do aborto. Psicologia em Estudo. Maringá, v. 16, n. 3, p. 419428, jul./set. 2011.

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Semente da Discórdia Ângela Vieira

Está feito o pacto da miserabilidade: aborto não! Dizem as boas línguas - “não criemos intrigas”. O fato é: os laços andam frouxos, tensionou um tico, a dispersão é certa. Mas... que raio de laços são esses que se anda respeitando tanto essa [tal intimidade toda arredia? Ouvi dizer que se tornar íntimo seria trazer próximo ao coração. Se a intimidade andasse ainda por essas cercanias não estariam [tantas mulheres ao relento, assassinadas pelo desamparo. Íntimo ganhou o status de privado e a privacidade tem crescido às [pencas por aí. Talvez seja esse o terror que o aborto traga, preza-se pelo [entorpecimento dos sentidos. A escassez é coisa melhor ajustada para aqueles cuja capacidade é [dada ao controle. Quando o aborto vira semente da discórdia até entre aquelas que [podem ser assaltadas pela desventura de terem seus ventres sob a cruz e a espada jaz coroada a servidão voluntária. Aborto como prática segura e amorosa, aborto como experiência [compartilhável são centelhas na mansidão que nos torna presa fácil nas malhas do [poder.

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Historias reales: Aborto legal es justicia social Maria Andrea Quiroga

Jana, 16 años obligada a abortar clandestinamente… -no volvióAna, 36 años, obligada a abortar clandestinamente. Coma inducido, lesiones en el útero… -volvióKarol, 16 años, aborto clandestino. Infección generalizada… -volvióEl derecho humano a la vida, la salud y la autonomía de las personas gestantes no puede ser objeto de más demora. El aborto existe, es clandestino, y demanda políticas públicas de salud. Lo personal es político. Nuestrxs muertxs por aborto clandestino, son políticas. Tenemos derecho a que se nos garantice el libre acceso a toda información, educación y métodos existentes, pudiendo tomar la decisión de manera informada, decidiendo efectivamente sobre nuestro cuerpo. Despenalizar el aborto es una decisión que la política puede y debe usar como herramienta para eliminar la desigualdad socioeconómica y así brindarnos mayor justicia social. Somos diversidad, somos voces plurales, mujeres, varones, trans, travestis, lesbianas, gays, queer, cuerpos gestantes y gritamos por Ana, | 177 |


Karol, Jana y todas aquellas que ya no están. Aborto legal, seguro y gratuito es una cuestión de justicia social, de salud pública, un derecho humano y una demanda de la democracia. POR LAS QUE NO VAN A VOLVER QUE SEA LEY

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Corte de Navalha Cega no Homenzinho: a posse estatal-médica do corpo da mulher e a possibilidade de multiplicar outros modos de vida Fernando Yonezawa

Eu também aborto! Sou homem e também aborto. Não sou homem trans, mas também aborto. Não sou branco, tampouco sou negro, ou índio. Sou parente distante destes últimos: asiático. Mas, antes de tudo, sou uma vida aí no mundo, a despeito daquilo que possa me classificar positiva ou negativamente. Não sou gay e sou bem hetero, mas nem por isso sou um homenzinho desses que hoje está na berlinda. Sei bem que o cruzamento de algumas características visíveis minhas me coloca socialmente num lugar de dominância, sou posicionado num modo antes que assim eu o pretenda e, apesar disso tudo, não sou um Homenzinho. Há inúmeras minorias que porto e sustento, as quais me trazem muitas dores e exclusões; há inúmeros minoritarismos que não estão nos principais gritos atuais e nem são algum tipo de identidade, mas me fazem não ser Homenzinho e me fazem viver dores solitárias e silenciosas. Então, não comecemos querendo desqualificar a partir de olhares externos, baseados nas mesmas referências usadas pelos Homenzinhos para excluírem e minorizarem. Nós homens não somos todos iguais. Há sim, os iguais, esses Roberto Justus, esses vencedores, vendedores, esses alfa, chefes de rebanho, piadistas indelicados, esses que vêem as mulheres como caça, como carne e vulva. Claro que algumas partes minhas são assim e claro que muitos gays e homens trans e a maioria das mulheres também são | 179 |


assim, Roberto Justus, revista Veja, novela da Globo, são Homenzinho. A maior parte aspira ser assim. E não há nada mais vergonhoso do que aspirar algo dessa natureza, tão desnaturada e baixa. Esses tipos são os que dão flores, mas não gostam de flores e não conseguem sentir a pele de pétala que é preciso ter para amar. Mas uma imensa parte de mim não é Homenzinho assim, não é dessa estirpe de gente. E justamente por isso eu digo que também aborto, aborto junto. Então, aqui quero trazer apenas de um prisma, um viés pelo qual se pode positivar a prática do aborto. Aqui, desejo falar sobre como o aborto machuca um modo de vida dominante, a vida desse Homenzinho. Ora, o aborto é um rasgo, é uma fenda feita a navalha cega no coração dessa estirpe Homenzinho. Mas, por que o aborto é um ato tão violento e cruel contra esses Homenzinhos, por que eles se apavoram histericamente quando se fala de aborto, especialmente o Homenzinho brasileiro, que inclui as mulheres-Homenzinho? 1) É porque, quando se aborta, se aborta uma malha, se aborta todo o modo de vida de Homenzinho, se aborta uma ética e uma estética de vida. 2) Porque a prole é que passou a interessar a partir do século XVIII, depois que não interessou mais a ascendência para manter os bens e porque, desde o século XVI pelo menos, se quer controlar os corpos das mulheres e sua sexualidade. 3) Porque abortar é romper com a mediocridade, com a preguiça de viver, com o desejo manso e adaptado à vida de Homenzinho. 1) Em primeiro lugar, quando se fala em aborto, isso parece tão aterrorizante para os Homenzinhos porque abortar é o ato que rasga um projeto social, um projeto de Homenzinho, dilacera uma malha de instituições tenazmente apertadas, as quais garantem o modo de vida desse Homenzinho: casamento, família, trabalho, maternidade, propriedade sobre a terra e sobre os corpos dos outros, comércio, educação disciplinar, parentalidade etc. Quando alguém aborta – não importando o motivo enunciado para isso -, esse ato rompe | 180 |


diretamente a malha de instituições, agenciamentos e enunciados que posicionam aquele corpo dentro desse modo socialmente dominante de vida, desse modo Homenzinho. O ato de romper com um mandato social direcionado a esse corpo – mandato entendido como biológico ou mesmo divino – acaba sendo revolucionário, ou, no mínimo dissonante. Tanto é verdade que os que tentam disfarçar moralismo e conservadorismo sob mantos jurídicos dizem se tratar de um crime o aborto, já que se estaria matando um ser humano. É que abortar é fazer um buraco bem no meio da filiação e maternidade, as quais cosem as diversas instituições sustentáculos do capitalismo: comércio, mais-valia simbólica e de dinheiro, parentalidade, família, indústria, moda, mídia, machismo. Não dar à luz um filho concebido é como não desejar dar continuidade a este tecido institucional, é como rejeitar vestir esse manto ou fazer um buraco maculante com brasa de cigarro nesse tecido sacralizado. Alguém que não quer levar adiante uma gravidez, a partir da posição em que é colocada nesta malha - como potencial reprodutora ou tecelã dos fios desse tecido -, é alguém que rejeita e quebra as linhas e coordenadas que a posicionam harmonicamente na continuidade desse lençol social. Por mais que este corpo não pretenda causar tal ferida, o fato é que, quando alguém aborta, este tecido autonomamente sente o ponto de esgarçamento causado. Por isso é que sempre há algo de inocente e involuntariamente revolucionário no ato de abortar. Alguém que afirma uma singularidade de maneira a ameaçar o projeto de colocar Homenzinhos no mundo, é alguém a qual, ainda que temporariamente, rompe com o mandato social destinado ao corpo feminino, o de encarnar-se como máquina reprodutora; e reprodutora não só de mais um ser humano, mas de um sujeito assujeitado ao modo de vida Homenzinho. E isso vale para todos os corpos capazes de gestar, que não são apenas as mulheres, incluem-se aqui os homens trans. | 181 |


Segundo motivo: ao se abortar, se corta uma das principais tecnologias de governo dos corpos de sustentação do modo Homenzinho de viver: a família. Foucault51 destaca que “de modelo, a família vai se tornar instrumento, instrumento privilegiado para o governo das populações”. Segundo o filósofo, a família se tornou, a partir do século XVIII, o instrumento chave para possibilitar que o Estado viesse a ser Estado de governo da população e não mais apenas Estado de soberania, baseado no puro e simples autoritarismo do rei. Pode-se dizer que há muitos modelos de família, que hoje também é preciso se considerar família quando uma avó é a chefe da casa e vive com o filho, os netos e o filho de uma vizinha que faleceu; podemos dizer que também é família quando dois homens vivem juntos, se amam e têm uma menina como filha. Mas, o problema está em justamente ainda se desejar insistir em contornar como família a essas uniões quiméricas de pessoas; o desejo de se manter o sentido de família a formas múltiplas de união é a nota de uma grande devoção aos clichês, aos modos de vida hegemônicos que nos submetem. A flexibilização do conceito de família, apesar de parecer compreensiva e inclusiva, é ainda bastante conservadora, devota. Ora, é sempre em função de rodear uma criança que a família é formada, é sempre em função de uma prole protegida que se traz o sentido de família. Só que também é em nome dessa família que a todo custo se defendem os direitos de uma presumida humanidade intrauterina; não é à toa que hoje temos um ministério de constituição religiosa se dizendo existir para proteger o feto. Há, pois, um interesse político em se pressupor existir uma criança futura num embrião: a criança é a vida de entrada na malha sagrada das instituições do Homenzinho. Foucault52 nos mostra como as crianças, a partir do século XIX, passam a ser alvo central 51 Foucault, M. Segurança Território População. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 52 Foucault, M. O Poder Psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. | 182 |


de um poder psiquiátrico que pretendia controlar a loucura desde cedo e, para tanto, usa a família como mediadora disciplinar dos corpos infantis. Neste agenciamento é que se fortalece o sentimento de maternidade e paternidade afetiva - que Foucault chama de incestuosa -, pela qual a medicina disciplinará e psiquiatrizará a família, incentivando o contato próximo entre os corpos de pais e filhos. Era uma forma de controlar a criança, a sua sexualidade, mas também uma forma de modelar a atitude dos pais, especialmente da mulher. Donzelot53 nos mostra que antes, ainda no século XVIII, a medicina já se imiscuía nas famílias, especialmente com uma tarefa classista, a de ortopedizar as práticas familiares: mães burguesas não eram afeitas a dedicarem-se a suas crianças e precisavam de amas de classe pobre para cuidar dos filhos; a medicina passou a ver com maus olhos os hábitos culturais e cotidianos que as mulheres pobres transmitiam às crianças burguesas, assim como queria obrigar as suas respectivas mães a encarnarem um modelo de maternidade, cuja tarefa fosse disciplinar a criança em todos os seus atos e gestos, principalmente no que se referia à sexualidade. Diz Donzelot, contudo, que não se tratava só de modelizar as mães, mas também de impedir a dispersão libertina das formas de união entre pessoas, controlar as uniões livres. Quer dizer, nesse momento é que começa a se forjar historicamente um modelo de parentalidade e, junto com isso, também um modelo de mulher-mãe ideal para criar filhos saudáveis e civilizados. O amor maternal foi duramente forjado à força de coerção por um agenciamento de governo dos corpos femininos e de crianças, o qual vinha de uma coligação entre polícia estatal e normatização de origem médica. Portanto, se é em volta da criança que se forma uma família, por outro lado, é para conservar a família como sentido máximo da união entre as pessoas, como instituição sexual, erótica, política e fisiológica, 53 Donzelot, J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: Graal, 1986. | 183 |


que se defende a proliferação de crianças e se criminaliza o aborto, não importando a preço de quê. É em nome desse modo de vida que se quer obrigar os corpos femininos a terem filhos. A família como agrupamento em torno de uma prole é o meio pelo qual se disciplina a sexualidade, o desejo, os corpos, especialmente os corpos de mulheres e crianças. Também é na família centrada nas crianças, lembra Foucault, que se encontra um meio de, ao invés de garantir os bens e heranças como era na época da soberania absolutista, forjar futuros bons trabalhadores, servis e submissos. Assim, garantir que a prole fosse de qualidade passou a ser o objetivo do Estado governamental ou, se não de qualidade, pelo menos devidamente controlada e submetida. Ora, o abortar ameaça o elemento ao redor do qual se constitui o agenciamento de controle dos corpos, especialmente femininos; é por isso que é tão condenado que se aborte. Ressalto ainda, novamente com Foucault54, que este controle sobre os corpos femininos foi forjado historicamente pelo menos desde o século XVI: controlar os corpos das mulheres e sua sexualidade era uma grande questão da Igreja da época, mas, quando os fenômenos convulsivos foram desvinculados da feitiçaria e entendidos como possessões demoníacas, esta mesma Igreja faz, no século XVIII, um apelo à medicina para que tome propriedade sobre estes corpos. Ora, a convulsão era a expressão de uma luta interna ao corpo da mulher, luta entre o espírito e o demônio, e era, muitas vezes, a expressão da fragilidade do controle da consciência que a Igreja exercia através da minuciosa e bisbilhoteira tecnologia da confissão. A convulsão, fenômeno tão violento, corporal, físico e muscular – com vômitos, grandes espasmos, paralisias, cuspidas, ofensas, gritos - assinalava o limite da tecnologia eclesiástica de controle do corpo feminino através da exaustiva confissão verbal, tão espiritualista. Nesse limite é que a medicina é convocada a apoderar-se 54 Foucault, M. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. | 184 |


dos corpos femininos e sua sexualidade, patologizando-os. Foucault55 chama de “histericização do corpo da mulher” a este processo de captura dos corpos das mulheres, que começa com a Igreja e desemboca na medicina. Este processo, ao mesmo tempo em que satura os corpos das mulheres de uma sexualidade ameaçadora, imporá a figura da mãe, da boa mãe para os filhos, como signo de saúde do corpo feminino. A chamada “mulher nervosa”, tomada de uma sexualidade mais dispersiva e não destinada à maternidade, será esta que patologicamente se oporá à mulher-mãe, doméstica, educadora, civilizadora, amorosa. Lembremos, além disso, que neste mesmo período histórico, muitas mulheres eram perseguidas como sendo feiticeiras e houve, segundo Szasz56, da Igreja para a medicina, o mesmo conflito-transferência de poder sobre o corpo da mulher: se as mulheres, por serem feiticeiras, eram condenadas à fogueira pela Igreja, a medicina, por sua vez, sob o pretexto de salvar aquelas vidas, tratou de tomar posse sobre seus corpos, chamandoas de doentes e loucas. Ora, a história da maternidade é, na verdade, uma história de captura dos corpos das mulheres, seja pela Igreja, seja pela medicina coligada ao Estado governamental. Portanto, é todo esse mandato histórico familista, todo esse agenciamento de controle médico e estatal do corpo e da sexualidade da mulher que o aborto também machuca. É a toda uma domesticação do corpo feminino através da maternidade que o aborto impõe um ferimento, um rasgo, uma falha abrupta. É à centralidade da criança a ser educada para ser Homenzinho que o aborto acaba por atacar, por romper com a maternidade. Terceiro motivo; quando se obriga as pessoas a terem filhos, a bancarem sua gravidez, também se as obriga a se harmonizar com a malha social que é berço de produção do Homenzinho. Além disso, impingir a maternidade, tornar hediondo o ato de abortar é, sobretudo, impor um desejo preguiçoso, adaptado, manso, que se impede de 55 Foucault, M. História da Sexualidade Vol. 1 – A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 56 Szasz, T. A Fabricação da Loucura. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. | 185 |


investir qualquer outra vida que não seja esta do trabalhador entregue a 40 horas de labor semanais, perdido no trânsito, nos ônibus, nas dívidas consumistas, nos sonhos de casa própria, de TV a cabo e internet... uma vida de miséria estética e política, uma vida ordinária; é isso que exige assumir filhos, porque, embora também se possa ter filhos e bancar outro modo de vida, há que se ter em conta que o modo de vida Homenzinho é uma rede de pressuposições impositivas, das quais é muito difícil escapar: sempre há alguém para corrigir a alimentação das crianças, sempre há uma cobrança por um pai e uma escola disciplinadores, sempre se espera que a mulher seja mãe-modelo etc. Existe uma força de gravidade extremamente intensa que o modo de vida Homenzinho consegue impor através da maternidade e do familismo; esta força de gravidade suga para uma vida empobrecida em termos afetivos e estéticos. Especialmente no Brasil, em que tantas são as mulheres pobres a criarem seus filhos solitárias, criminalizar o aborto é, ou condená-las à morte pela exposição a tentativas inseguras de livrar-se da gravidez, ou a uma vida enclausurada pela miséria econômica, social e afetiva em que é preciso se colocar para criar um filho. Os argumentos românticos e despolitizados dirão que sempre há um amor sublime que nasce da mãe para o filho, o qual faria compensar qualquer esforço. Mas sabemos bem, conhecendo a realidade da maior parte das mães brasileiras, que os filhos são muitas vezes fardos, o amor não é algo necessário e as consequências de uma relação assim são sempre violentas, especialmente para as crianças. O amor materno não é necessário, ele é uma compulsoriedade de uma sociedade baseada em familismo, ele é também um produto e um fetiche de uma sociedade baseada em consumo. Especialmente em nossa contemporaneidade, a maternidade é um produto extremamente lucrativo e, tanto mais lucrativo, quanto mais se o naturaliza e deshistoriciza. E é pela maisvalia simbólica que a maternidade é imposta aos corpos das mulheres, é tornada desejável: sabemos o quanto tantas meninas adolescentes e | 186 |


pobres da periferia sentem subir de nível na hierarquia social de suas comunidades quando se tornam mães. Sua feminilidade minorizada, invisibilizada, de repente ganha status, seus bebês permitem que atenções e valorações inesperadas cheguem até suas vidas. Portanto, ao se criminalizar o aborto, mais do que se impedir uma prática, se quer é promover um modo de vida, um tipo de desejo, um desejo ordinário de Homenzinho, que não pode desejar nada além da compulsoriedade da maternidade e da família. Por isso tudo, o que me parece, entre tantas outras problematizações possíveis, é que a proibição do aborto se dá, no Brasil, como mais uma estratégia de redução das vidas a uma miséria estética, a uma miséria econômica, a uma miséria de potências e possibilidades de singularização dos corpos femininos. Criminalizar o aborto é criminalizar qualquer outra vida que não seja a da maternidade, é impedir a multiplicação de modos de ser mulher. Por outro lado, bancar um aborto e sua descriminalização é um ato revolucionário, porque implica em se ter a liberdade de poder constituir outro modo de vida, em que às mulheres importe muito mais desenvolverem tantas outras insuspeitas e inauditas potências singulares. É desejável termos menos mulheres submetidas ao acaso de uma gravidez como sendo um fardo ou uma irrecusável dádiva de Deus, ou até desejando engravidar como ícone máximo de sua suposta feminilidade. E que tenhamos mais mulheres ativas, empreendendo sonhos que as desloquem de predeterminações restritivas, tornando-se pintoras, musicistas, poetas, presidentes, ministras, ativistas, filósofas, matemáticas, astrofísicas, arquitetas. A partir destes modos ativos de vida, multiplicam-se feminilidades capazes de inundar o mundo e redimensionar os traços políticos e afetivos que constituem o que sejam as dimensões pública e privada do campo social. Pode se argumentar: “mas ser tudo isso não exclui ser mãe”; isso é verdade, mas também é verdade que, sendo obrigadas a bancar uma | 187 |


maternidade, muitas mulheres são capturadas por esta instituição insidiosa e amortecem seus desejos, restringem suas vidas, tornamnas pauperizadas. Quantos não são os problemas de saúde causados pelo peso de ser mãe, especialmente num país como o nosso, em que o trabalho é sempre oneroso e se torna violador da vida, em virtude do caldo sócio-econômico em que está mergulhado! Então, os três motivos que elegi aqui como razões para que o aborto seja tão ameaçador para os Homenzinhos se alinhavam na ameaça que imprimem sobre moralismo religioso e familialista fundante do modo de vida Homenzinho. E quando dizia no início desse texto que, como homem, também aborto, quis deixar claro que aborto, sobretudo, este modo de vida Homenzinho. Aborto porque é desejável não ter filhos, para se ter a liberdade e audácia de se desejar muitas outras coisas, se desejar outra vida, não tão prisioneira do mundo do trabalho e das rentabilidades simbólicas e econômicas que são necessárias para se criar filhos. Aborto porque não desejo família e tudo que vem junto, pressuposto no pacote. Preciso dizer ainda que discutir o aborto a partir da problematização do tipo de desejo e de modo de vida que se pretende empreender socialmente nada tem a ver com postura liberal-burguesa. De fato, poder decidir, num país como o nosso, é um privilégio, mas devia ser tomado - inclusive pela militância que acusa este debate de ser liberal - como direito constituinte e como algo justamente desejável às mulheres. Apesar disso tudo, como disse, eu falo apenas de alguns pequenos aspectos pelo qual podemos afirmar o aborto como prática revolucionária. Há, todavia, muitas perguntas e lacunas que requerem pesquisas minuciosas. Sabemos que o aborto só é criminalizado nos países colonizados pelo Homenzinho, assim como temos por certo que a principal condenação ao aborto, antes de ser jurídica, é moral-religiosa. Nossa situação no Brasil é exatamente esta, somos

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colonizados pelo Homenzinho, que persegue moral e legalmente quem aborta, mesmo que, entre os Homenzinhos ricos de nossa sociedade, o aborto já seja prática instituída e seguramente acessível. Entre as perguntas sobre aborto que muito intrigado me faço estão estas: sabendo que a proibição do aborto no Brasil mata muito e prioritariamente mulheres pobres e tantas vezes negras, qual é o interesse que existe em que estas mulheres morram? Racismo e classismo somente? Parece pouco, porque não compreendo qual o interesse econômico que pode também aí existir para o Estado. Ademais, uma vez que essas mulheres sejam obrigadas a gestar e parir seus filhos pobres e negros, qual o interesse em se obrigá-los a nascer e viver? Mão de obra barata? Parece estranho, já que possuímos um excedente grande de reserva de mão de obra ociosa e, ao mesmo tempo, o Estado mata em larga escala garotos negros e pobres, baseado em cínico e monstruoso racismo. Há, enfim, linhas da malha sagrada que se cruzam e não revelam o sentido que realizam em nossa sociedade. Entretanto, é preciso cortar essas linhas com uma navalha cega, para que venha à visibilidade, sangrando e machucado, o que de mais perverso se deseja e se quer promover quando se criminaliza o aborto e aos corpos que abortam. Eu também aborto, e aborto especialmente o modo de vida que faz da maternidade uma compulsoriedade para as mulheres e para todos os tipos de corpos que podem gestar. É preciso cortar, ferir esse modo de vida com navalha cega, para podermos multiplicar outros modos de vida, especialmente para as mulheres.

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Jessica Bragio

- Ser mulher no Brasil nunca foi tarefa amena, a subjetividade latente das correntes é assustadora e, por vezes ignorada. Nascer com uma perereca dentre as pernas em uma sociedade que planta valores patriarcais requer coragem. Sabotadas antes mesmo de nascer, nos enfiam goela abaixo a submissão de nossa essência e de nossos corpos, e a prova viva disso é quando o assunto é aborto. Aqui, no brasil, o aborto só é legalizado nos casos de estupro, risco de vida da mãe ou feto anencéfalo, mas na contramão do direito, a verdade experenciada é distinta e dura. O fato é que o aborto é uma realidade brasileira indiscutível, cerca de 800 mil mulheres abortam cladestinamente ano após ano, e ainda tem gente que acredita não ser uma questão de saúde pública. O discurso de proteger vidas para legitimar a norma que criminaliza a prática apresenta-se frouxo quando comparado ao dados. Ora, de que vidas estamos falando? Indagou a moça, porém um silêncio escandaloso parecia pairar. Ela, sem mais delongas, com o peito apertado, prosseguiu: - Estamos incluindo as inúmeras mulheres que morrem diariamente vítimas de abortos inseguros? É possível abarcar as crianças abandonadas? E, ainda, de qual conceito de vida referem-se os defensores desta? Do meu? do seu? do deles? Vivemos ou não em um país laico? Percebam: legalizar o aborto é uma questão de justiça. Ninguém será obrigado a abortar. Aborta quem quer. Na verdade, a legalização da prática é uma maneira de permitir que os corpos sejam manifestos próprios e livres para sangrar, gestar e abortar como devem ser. | 190 |


Deu um suspiro profundo, terminou sua apresentação. Maria sentiase cansada de falar para quem parecia não querer ouvir. Seu desejo de moça era que um dia não houvesse mais necessidade de explicar o que é inexplicável. Nunca teve a pretensão de ser dona da verdade, mas Maria reconhece o perigo que habita expressões que andam em contramão de seus valores centrais. Naquela noite, escreveu um poema e fincou em seu mural e decidiu que faria da sua arte um protesto. Maria não tinha medo da luta. A moça já tinha acostumado-se com a alegria e a dor de ser só Maria. “Poesia do tempo visa fortalecer a impermanência da vida e a desconstrução diária Por vezes, tive vergonha do meu sangue, do meu templo, do meu útero Não notei violência latente, patriarcado escancarado, que fincava em meu viver e calava meu existir Hoje, confesso saber que sou dona de mim Vida é subjetiva é preciso encará-la assim

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Aborto é realidade, sua criminalização retrata um cotidiano de opressão Sinto informar, mas vocês não vão me parar hei de lutar até o fim Minha sina é resistência até que nossa existência seja um fato, e não um fardo.”

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Traço em mim aquele primeiro toque Sarah Vervloet

Traço em mim aquele primeiro toque, o abismo do abuso e do começo dos começos que encontrei aqui em algum lugar. Eu sou o que ninguém quer saber, porque ser deixa de estar e interfere naquilo que desconversam sobre mim, porque não me querem de verdade, perguntam e andam sem olhar, escutar, ligar e esse eclipse, olha essa lua avermelhada agora, e então tchau. Eclipse? É o empurrão e o tapa na cara, o corpo imprensado no muro, o carro que passa e não para. É o silêncio espalhado na calçada enquanto me desnudam, e depois querem saber como estou, quem sou. Essa escola que me farta, a minha roupa que não cabe, tudo larga: perdi o peso, o pai, o hímen e canto de vez em quando. Daí eu digo, tô apaixonada por você. E você me olha, olha mais um pouco, dá uma risada solta, repentina, e responde: isso passa. E passa? Quero só ver mesmo, que isso... estar apaixonada é sobrevivência, mas é por mim mesma. Pois imagina se eu você e você ficássemos apaixonadas por nós e nossos úteros definhassem ou que nossos clitóris crescessem feito falos físicos fatos ferros fibras. E só engravidássemos, se assim fosse, diante desse monumento irrigado de sangue, de gozo gesto grito gasto. Quiçá isso tudo nem seria assim. Os emissores mudariam os destinatários, bem como os opressores. Haveria prazeres e prazeres, a relativização da maternidade, a minha ausência na delegacia, outros dias de experimento da camisinha, o que mais o quê. Homens-objetos talvez não tão além, talvez menos, ou mais. Nem me importo, nessa chuva que passa, nesse feto que vem e vai, no jornal de amanhã teremos mais um olho roxo estampado, morte depravada do cotidiano. Pode ser que o efeito dormente esteja | 193 |


passando e eu preciso vestir a roupa, e o sol quer aparecer de novo, ah, e tenho que justificar minha falta no trabalho. Serรก que esta semana vai dar praia?

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Cibely Zenari

I. o que há dentro de mim não é um você não se multiplicam células pela ligação cósmica pelo o que se sente chamado amor, meu amor o que te fecunda é um bicho homem é um bicho que te pegou no armário é o teu próprio bicho de dentro o que te multiplica em átomo é um gozo em jorro gozo torpe do corpo é uma vida em silêncio é uma violência é uma vida em segredo ninguém contou pra ninguém no sertão, na cidade, na descida do vale no sexo intocado entoca-se: a menina transa, garota a mãinha transa os meninos fodem garotas por isso não te quero pessoa (pessoa?) não te posso não lhe é justo nascer | 195 |


não me é justo cresceres não é de gosto da patroa há ladrões de ventre bandidos banem buceta quando as usam não entendem suas asas suas salas, seus vôos, seus vórtices quem confere o berço é quem lhe fere a lâmina endométrios não são pátrias nem párias pecam como a medusa e pagam, como pagam a conta do universo se deposita num corpo de mulher numa negra mulher, numa verde mulher tudo que é falso e casto e falso porque casto: se projeta na languidez desavisada de uma barriga molhada tira de dentro de mim essa cátedra, um aborto não é uma tese sobre pau dê-me a faca da liberdade de mil argentinas interditadas

II. não arranca de mim a mão dessa mãe não te arrancas de mim | 196 |


nasci de ancas nasci me deixa bebê, como você dois bebês, um bebê e uma mamãe-nenê fecha logo a boca deste leite escasso fecha esse aço fecha flecha! escapa sai um ninho, um felino, uma raça dói a dor dos milênios, dos sonhos a dor da mãe do mundo a dor da minha mãe, da minha avó, da minha da minha... a dor da minha não-dor do não-parto uma manhã de sangue roubado molha-se ventre de rio, de foice, de banho de lágrimas bicho estranho, eu te sonhei quente no colo de pele, sente, sente? sinto sair o que se apregoara lá no fundo invisíveis veredas não levam ao fim depois de perdido levam a dor e a saudade do futuro de dedinhos redondos nunca vistos me deixem plantar a dor onde me puder nascer me deixem doer pois a dor dói

III. aborto não é uma tese aborto; calem-se homens | 197 |


aborto não é um poema aborto não é um violão nem violação não é planilha aborto tem geografia aborto é!

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No está mal ser mi dueña otra vez Nair Allende

En junio del 2015 yo volvía de varios meses viajando por ahí y no sabía qué hacer de mi vida. En absoluto. Estaba muy deprimida. Me pasaba el día en lo de mi pareja porque no me gustaba donde vivía yo. Cuando él se iba a trabajar yo tejía y destejía. Tuvimos sexo en el día 4 de mi ciclo menstrual, y estoy muy segura porque no teníamos sexo seguido, me sentía tan mal que no quería ni ver mi cuerpo desnudo. Había dejado de tomar anticonceptivas un año atrás pero aún no nos acostumbrábamos a que teníamos que usar preservativo. Solíamos discutir un poco cuando llegaba el momento. Ese día no discutimos, se lo iba a poner después, pero acabó. Día 4, no nos pareció que ameritaba una pastilla del día después. Yo no sabía que mi ovulación ocurría alrededor del día 10 y no el 14 de los libros, tampoco sabía que éramos tan fértiles, todo eso lo aprendí después. El siguiente recuerdo es estar en mi casa, me sentía bien, sonreía, tenía la mente en cualquier lado fantaseando. Me senté en la cama y fue como un baldazo de agua fría, estaba embarazada. Mi amiga que tiene una claridad especial me insistió en hacerme un test en su casa porque sabía el resultado. Yo me reía nerviosa, no sabía cómo procesarlo, no podía ni aceptarlo, sólo hacía fuerza para que no fuera real. Ella me dijo, -Nani, las mujeres abortaron siempre, vamos a hacer lo que vos quieras. Mi compañero también dijo vamos a hacer lo que vos quieras. Primero me pareció bien, después sentí que me había dejado sola con la decisión. Con el tiempo me pude sincerar y sé que yo en su lugar no hubiese podido hacer más que lo que él hizo. Sólo me decidí porque | 199 |


crecía adentro de mi cuerpo, sino me hubiese quedado por siempre sólo haciendo fuerza para desaparecer. Despertaba todos los días y en cuanto recordaba que estaba embarazada me quería morir. Nunca antes había luchado tanto contra algo que no se puede cambiar. Era irremediable, o iba a ser mamá, o iba a ser una mujer que abortó, pero nunca más volvería a la comodidad de estar ajena al tema, así lo sentía. Era lo que más me pesaba. No se lo conté a nadie. Soñaba que mis amigas me decían, -Jodete, ahora lo tenés que tener. Soñaba que tenía el bebé en brazos y pensaba -Nunca voy a poder quererlo - (claro que si lo tenía en brazos lo iba a querer, pero no era mi deseo en absoluto). Hablé con las Socorristas en red, fuimos al Hospital Roque Sáenz peña, llegué a la primer consulta aún antes de la fecha de mi menstruación, no tenía un atraso pero ya sabía. Me atendieron según el protocolo de ILE, pasé un mes vomitando todos los días. Mi compa estuvo siempre al lado mío, otra amiga se dio cuenta y la sumamos a las filas del grupo de contención. Fue la experiencia de mayor dolor físico que viví jamás, fue difícil, pero nunca dudé. Siempre supe lo que estaba haciendo. Eso es lo que no entiende el Estado, que las mujeres sabemos. Casi automáticamente entendí que la vida se mueve y se expande, que nuestra fertilidad, nuestra energía sexual está siempre buscando crear, que si no la ponemos al servicio de nuestros proyectos y sueños, ella se hace su propio camino. Si no tomamos decisiones, la vida decide por nosotres. Encontrar el sendero del medio entre lo que deseamos y fluir con lo que nos depara el destino ha de ser tal vez el desafío más grande, y el camino y la meta de vivir. Empecé a formarme en tantra, ginecología natural, sexualidad, fui develando mi camino y no paré más. Decidí vivir un tiempo más en Rosario, me mudé, empecé a trabajar en lo que me gustaba. Con el tiempo pude contarles a mis amigas, a mi mamá. Fue muy sanador su apoyo. Pude meditar y ver una niña, darle un nombre, incluirle al | 200 |


árbol familiar, a veces la sueño y veo su carita. Pude acompañar a otras mujeres en la sanación de abortos espontáneos e inducidos. Cuando explotó el debate del aborto sentí el deber político de contar mi experiencia. Empecé por los más cercanos y me fui a animando a contar la verdad siempre. Era difícil justificarme porque yo no era pobre, no estaba en riesgo, no había sido abusada. Tenía un compañero que se hacía cargo, dos familias con capacidad de sostener, estábamos bien educados . Pero no era nuestro deseo. Mi miedo más grande siempre fue quedar atrapada en una vida que no elegí. Jugando con la imaginación, creo que hubiéramos terminado trabajando de lo primero que encontráramos, sin realizarnos profesionalmente, nos hubiésemos mudado juntos, no por deseo, sino por economía. Hubiésemos dependido de nuestras familias a un punto que ninguno tolera. Eventualmente nos hubiéramos separado de todas maneras. Criar une niñe contra la propia voluntad es una crueldad para todos los sujetos involucrados; con eso sólo debiera bastar. Últimamente me encuentro con gente que me dice que une hije le da sentido a la vida. Yo misma provengo de una familia en la cual las mujeres le han dado sentido a sus vidas a través de su descendencia. Para les hijes, sostener con sus cuerpecitos el peso de ser la razón de vivir de papá o mamá es demasiado. Veo dos opciones; sostener emocional/espiritualmente a mis progenitores mientras crezco y luego tener hijes que sostengan la vida propia (tal como me sugirió la abuela, la psicóloga, alguna amiga de más edad), o por el contrario, crecemos, dejamos de sostenerle la vida a nuestros padres, madres y ancentres -ellos de paso tienen la chance de hacer lo mismo si es que aún viven-, recuperamos nuestra energía vital, nos ponemos en nuestro camino guiades por nuestro deseo, y si también es nuestro deseo, entonces ahora sí tenemos hijes pero desde la abundancia. Desde el amor, no desde el miedo. Hijes del deseo, no de la resignación. La Tierra ya está poblada, la Madre | 201 |


Naturaleza no da abasto, no necesitamos hijes de la compulsiรณn. Necesitamos mรกs consciencia.

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Uma vida em risco: a violência do Estado e o impedimento legal do aborto em caso de má formação fetal Marcelle Souza

Como tantos dias, Paola57 olha o histórico de publicações dos amigos, escreve um texto em sua página no Facebook e desconecta-se do seu perfil para levar o filho para a escola. Ao fim do dia, retorna para a casa, faz o jantar e só então resolve voltar os olhos para o celular, que estava no modo silencioso. Surpresa, percebe que há mais de 20 chamadas não atendidas. Todos queriam saber detalhes da experiência que ela havia relatado horas antes na rede social. “Eu abortei”: assim começava o texto que teve mais de 85 mil compartilhamentos e 2.800 comentários no Facebook. Com surpresa, Paola lê cada uma das mensagens, dos e-mails e dos comentários sobre o relato que tinha publicado. Sua caixa de entrada estava cheia de pedidos de entrevistas, alguns relatos de outras pessoas que também abortaram e de amigos querendo saber como estava. Até uma colega de profissão, uma jornalista católica, casada no Vaticano, conservadora e apresentadora de um telejornal nacional estava surpresa porque alguém tão próxima dizia publicamente que tinha feito um aborto. “Quando aconteceu isso? Não posso acreditar”, escreveu por e-mail. Paola respira fundo, parece que o relato havia funcionado. À época, a norma em vigor no Chile previa a criminalização de pessoas que realizassem um aborto em qualquer situação -- mais 57 DRAGNIC, Paola. [23 de maio de 2016]. Santiago, Chile. Entrevista a Marcelle Cristine de Souza. | 203 |


uma amarga herança do ditador Augusto Pinochet. Já no período democrático, várias tentativas de mudar a lei haviam se mostrado frustradas e em 2015, pela primeira vez em anos, havia chances reais de se aprovar um projeto de descriminalização do aborto58 – ainda que apenas em três situações: risco de morte para a mãe, inviabilidade fetal e estupro. Só que o debate andava muito polarizado, e Paola decidiu contar a sua experiência na rede. O objetivo do desabafo público era mostrar aos amigos e familiares que o aborto pode fazer parte da história de pessoas próximas e que o debate não deve se pautar apenas pelas convicções parlamentares, pelo suposto fervor religioso, por uma falsa moral cristã.

‘Yo aborté’ Jovem e casada, Paola sonhava em ser mãe. Tinha condições financeiras, sentia-se preparada emocionalmente e trabalhava como jornalista freelancer. Planejada, a gestação foi só felicidade nos primeiros dias, mas ao completar 14 semanas o sonho começava a virar um pesadelo: tinha engordado mais de 30 kg, sofria com as crises de vômito, mal conseguia sair da cama, sentia-se intoxicada. Todos aqueles sinais só poderiam mostrar que algo estava errado. Os exames mostraram que uma alteração cromossômica fazia com que uma série de tumores se desenvolvessem em seu útero no lugar do feto esperado. Sua vida estava em risco. “É a urgente interromper essa gestação”, disse o médico. Só que no Chile isso não poderia ser feito, a não ser que o risco fosse iminente, que ela estivesse internada entre a 58 Em setembro de 2017, entrou em vigor uma nova lei, que permite a interrupção legal da gestação em três situações no Chile: inviabilidade fetal, estupro e risco de morte para a mãe. O projeto foi apresentado pelo Executivo em janeiro de 2015, enfrentou dois anos e meio de debates no Congresso e um julgamento pelo Tribunal Constitucional até ser promulgado pela presidenta Michelle Bachelet. O caso tratado neste artigo, portanto, refere-se a um período anterior à alteração da lei. | 204 |


vida e a morte. Enquanto isso, era preciso esperar. Sem alternativas no Chile, começou a pensar nas formas de juntar o dinheiro necessário e de cumprir os trâmites necessários para viajar aos Estados Unidos para fazer o aborto. Mas a situação piorava dia a dia. Aos quatro meses, Paola já não conseguia mais caminhar sozinha, estava muito debilitada e aparentava estar com oito meses de gestação. Foi quando seu corpo entrou em colapso e tiveram que levá-la às pressas para o pronto-socorro. Paola chegou delirando, não se lembra bem das coisas que lhe perguntavam e logo foi submetida a um exame para que os médicos soubessem a real dimensão do problema. Os órgãos vitais estavam intactos, mas ela poderia perder o útero. Só neste momento, os médicos decidiram pela vida de Paola. Ainda inconsciente, introduziram Misoprostol pela vagina da paciente, para que iniciasse a expulsão do feto. “Ao final, abri os olhos desorientada. Não podia emitir uma só palavra”, diz. “Em qualquer país do mundo não teria que passar por isso, não levariam minha vida ao limite”. Não havia feto, não havia vida, só câncer. Ainda assim, Paola teve que esperar até o alerta iminente de morte para que algo fosse feito por ela. No Chile, a lei causou dor e sofrimento a Paola e muitas outras pessoas foi alterada só em 2017, mas em países como Malta e El Salvador a interrupção da gestação continua sendo crime, inclusive quando há risco de morte para a gestante.

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Marília Carreiro

da natureza mãe rainha de todos os ventres, vermes e contradições da vida cheia de vazio torto tripa fluido fluindo tentativas expressivas de mimetizações esgueirando face em face em voz fraca graça da vida que diz graça sem parar de pressionar histeria contra regra na terra adubo ruim órgão oco poço fundo vivências violências horrores cotidianos absurdos cuspidos de bocas sacos ternos de desumanidades deslegitimando o que nem sabem bobajando no púlpito do santo golpe céu infernal ruindo em lentidão à falência do ser poder com o pé no abismo clamo à deusa que aceita e entende quereres no fio da falta buraco vazio que escancara vida eu regente de meu corpo esquerdo meu corpo esquerdo sem direito luto pela libertação das minhas só minhas entranhas pelo sexo pelo gozo livre arbítrio

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Wayne Ribeiro

À princípio, consinto num breve e pessoal relato que retrata a educação que recebi da minha família biológica e familiares. A fim de trazer ao entendimento a influência direta de convicções religiosas recebidas pela família e pelo meu oikos - contexto social ao qual estava inserido - no meu modo de pensar, agir e se comportar. Fatores determinantes na construção de preconceitos, que para eles “respaldam-se” na autossuficiência dos ensinamentos bíblicos. Isto é, anseio em tentar compartilhar um pouco da vivência que tive e ainda tenho experimentado estando inserido num ambiente totalmente divergente do que sou como indivíduo, como homossexual que cresceu não se aceitando, e tendo que desconstruir cada falsa verdade que fizeram-me alienadamente acreditar. Passei boa parte dos anos vividos sendo doutrinado pela minha família a buscar respostas para os meus questionamentos nas escrituras “sagradas” e em convicções religiosas. Nunca as encontrei, tampouco desisti de buscá-las. Quando acreditava ter encontrado as minhas próprias respostas, e até mesmo descobertas relacionadas as minhas contestações, sofria constante interferências advindas do fundamentalismo e conservadorismo familiar que se justificavam através do doutrinamento religioso - que recebi de modo forçoso durante infância e adolescência. Meus questionamentos predominantemente relacionados com o corpo e sexualidade não eram bem-vindos, e alguns eu nem compartilhava, em razão de compreender as convicções, reações e o veredito da família e parentes diante de tal situação. Principalmente | 207 |


das mulheres da família, inclusive a Matriarca. Esses assuntos eram censurados, proibidos, abomináveis e na ocasião intitulados como rebeldia e pecado. Eram silenciados! Mas, e as respostas? As respostas que recebia levavam-me a uma “única verdade”. A mesma de sempre! Respaldada em leis “sagradas”, mandamentos e doutrinas religiosas. Que no final terminava em culpa, punição e acúmulo de questionamentos, incertezas e frustração. Cresci em uma estrutura familiar extremamente moralista, machista, racista, homofóbica e repleta de preconceitos. Marcada por um regime ditador e patriarcal na figura do meu avô materno, em que o autoritarismo silenciava e suprimia qualquer motivação de participação e visibilidade feminina em qualquer assunto que estivesse fora do âmbito lar, família e religião. Cresci assistindo asubmissão das mulheres ao senhorio de “seus homens”, e também presenciei as consequências da tentativa de fazer ou ser diferente, onde o pensamento crítico não era difundido e a discussão de questões que abordassem política, sexualidade, homossexualidade, aborto entre outros, não se discutiam. Ou seja, não havia nenhuma possibilidade de contestar as decisões impostas pelo senhorio do vovô. Foi nesse cenário ausente de diálogos sólidos, carente de respeito às subjetividades e sem qualquer manifestação de valorização da mulher, que aprendi a discernir “o ser diferente”. Era exatamente como me percebia, um estranho, e consequentemente sentia-me diferente. Passei a resistir de maneira velada, inconsciente, repleta de medos e de muita vergonha e negação, pois a todo tempo tinha que policiar os meus modos e comportamento afeminado. Porquanto, eu não me conhecia e o máximo que sabia sobre mim não conseguia entender. Sabia apenas que precisava de correção por ser um menino fora do padrão, isto é, afeminado, delicado e que amava está entre as mulheres. E de fato sentia-me bem entre elas. E por que iniciar tal abordagem com um relato pessoal? Qual | 208 |


sua aplicabilidade no contexto da problemática aborto? Essas são as indagações que eu fiz durante a construção deste texto e que na minha concepção facilitaram a condução da minha escrita, acrescentando ao conteúdo as peculiaridades por mim vivenciadas. Ao longo da caminhada trouxe comigo muitas alegrias, tristeza, traumas e incertezas. Fui marcado de modo inesquecível pelo simples fato de ser gay, pela ausência de compreensão e tolerância, por não ter o direito de expressar minhas emoções de modo verdadeiro e não poder decidir sobre mim e sobre meu corpo. As marcas trazidas pelo fundamentalismo e conservadorismo familiar impediram-me de conhecer e perceber o mundo que existia além que eu conhecia. Talvez esse seja o maior motivo para expressar de modo escrito o que passei até chegar aqui. Quanto à aplicabilidade no contexto cerne deste livro, permito-me dizer que é imprescindível falar, discutir, e escutar sobre algo ou alguém para que possamos desenvolver a humanidade, empatia, senso crítico, autocrítica, entender melhor nossas estranhezas desconstruindo possíveis equívocos em nós enxertados. Dado que não há uma só verdade e os padrões impostos pela sociedade vão de encontro ao “ser indivíduo”, isto é, há uma pluralidade de coisas que determinam cada um de nós, porém são negadas, desprezadas e silenciadas. A construção do presente texto e a participação no livro “Sangrias” dá-se pela oportunidade de coletivizar emblematicamente minhas inquietudes, questionamentos, preconceitos, vivências e busca pelo saber relacionado à problemática que norteia o aborto e sua descriminalização. Salientando aqui a influência nociva do ambiente familiar e social nas subjetividades do indivíduo através do convencimento fundamentado em convicções religiosas. Digo isso porque fui convencido a acreditar que ser homossexual era pecado abominável, que precisava de cura e libertação e que eu não herdaria o reino do céus. Decidiram por mim na escolha de desconstruir minha | 209 |


sexualidade anormal e pervertida. E o que me deixaram foram vergonha e traumas. Sendo assim as motivações que permeiam o meu interesse pela abordagem que problematizam a legalização do aborto no Brasil estão atreladas, principalmente: a desconstrução da mistificação do aborto como prática pecaminosa; a empatia pelas reivindicações dos movimentos sociais principalmente feminista na luta das mulheres pelo direito de poderem decidir sobre os seus corpos; a importância da valorização do pensar crítico através da discussão de problemáticas como o aborto legal, seguro e gratuito e também por políticas públicas que viabilizem de modo efetivo uma assistência humanizada, imparcial e livre de quaisquer preconceitos e julgamentos. Essa vontade e curiosidade de saber mais sobre fenômeno do aborto no Brasil tornaram-se mais intensas ao me deparar com a grandeza do movimento feminista na Argentina, que luta de modo incessante para assegurar a resistência feminina pelo direito de decidir pelo seu corpo. As últimas manifestações me trouxeram o despertar para autocrítica relacionada ao assunto, fizeram-me perceber o quanto estava equivocado sobre minhas opiniões e modo de pensar a prática do aborto. Não obstante, a vida me aproximou de mulheres feministas, militantes e que representam e lutam de maneira honrosa. Que lutam e nos possibilitam o melhor entendimento dessa militância através de estudo e pesquisa que comprovam o quanto é preciso falar de aborto e sua legalização em todos os aspectos. Gratidão! E o sentimento que exprime a alegria de poder participar desse magnífico projeto. Agradeço imensamente aos envolvidos, com certeza eu já não sou mais o mesmo, yo soy uma abortera.

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A Semente Débora Laís DL

Olhar, sorrir, desejar, flertar Sentir, beijar, amassar, transar, amar Fecundar, chorar, gritar, lutar Às vezes #olhar pode ser fecundo Dizem que olhar pode fecundar Nem sempre o olhar é feito seguro Às vezes só não se quis segurar Às vezes #sorrir pode ser fecundo Dizem que sorrir pode fecundar Nem sempre o sorrir é feito seguro Às vezes só não se quis segurar Às vezes #desejar pode ser fecundo Dizem que desejar pode fecundar Nem sempre o desejar é feito seguro Às vezes só não se quis segurar ... Às vezes #___ pode ser fecundo Dizem que #___ pode fecundar Nem sempre o #___ é feito seguro Às vezes só não se quis segurar | 211 |


Mas e se eu não quiser germinar E se eu não puder tutelar Ter que deixar de ser quem eu sou Ser só o ser que gerou?! E se eu tiver que criar a sementinha só... somente para lembrar que nada fiz só? Pode ser que não tenha com quem contar Mesmo contando palavras fecundas Todas temos direito à vida... Solos fecundos Sementes fomos, somos e seremos Não torne o ciclo da vida um fardo só meu A culpa que devo carregar e criar…

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Sandra Muñoz

Nossos corpos não são Começamos aqui entendendo como a internet, com suas várias instituições, Com muitas mentiras repetidas que viram verdades. E isso traz muitas inseguranças e medos para nós que estamos lendo aqueles montes De relatos sobre o casos de aborto nesse país. As mulheres precisam compreender que somos vários corpos... não dá para pensar O que tá na internet dá para mim ou para você, entende? Cada um tem seu organismo e ele deve ser respeitado. Tem mulheres que sentem muitas cólicas, tem mulheres que tem nada, tem mulheres Que pergunta, tem mulheres que sofrem muitas dores... Vamos entender que nossos corpos parecem iguais mas são diferentes. Então não vamos ir para internet achar que vamos ter a receita do bolo pronto porque não é assim. E vamos lembrar também que as clínicas falam que fazer com elas é mais seguro e muitas mulheres com medo acreditam mesmo... claro eles têm todo aparato lá, mas também é muita grana de uma coisa que resolvemos aqui do mesmo jeito. E com menos grana. Elas ganham muita grana com isso há anos... e não vem falar que não porque faz anos que as clínicas ganham grana em cima do nossos medos e inseguranças. E vamos entender que o remédio não é feito aqui no Brasil, vem de | 213 |


fora. A mesma quantidade que é no Uruguai ou na Argentina não é o mesmo daqui no Brasil. As mulheres lendo bilhões de informações se confundem mesmo e é natural isso. Outra coisa é a questão aí vou precisar de fazer a curetagem? Não, meu amor, seguimos passo a passo direitinho, tá? Precisa não viu? O mais interessante é como muitas mulheres, com todas essas coisas, ainda compram o remédio na mão de uma pessoa que só dá o remédio e nenhuma informação de como usar. Aí o barato sai caro porque comprando barato, ela, com medo e inseguranças, toma do jeito que leu na internet. Como estamos em um momento difícil bem difícil ficamos à mercê da sorte e com isso muita gente ganha com isso. Precisamos de verdade e sem medo falar disso. Ajudamos umas às outras, porque nossos corpos não são os mesmos.

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Parimos y abortamos Florencia Sueldo

Yo quiero parir siendo respetada, Yo quiero abortar siendo respetada. Yo elijo desde mis entrañas uterinas el modo en que voy a derramar mi sangre. Yo soy mi útero. Él y su latido determinante Contiene mi decisión De cuándo reproducir la vida y cuando no. De cuándo encender y cuando apagar. Antes que devenga cansada De tanta lucha encarnada Cedo mi poder a él, Qué tal vez siendo masculino En una lengua autoritaria Tendrá los atributos dominantes Para que yo sea respetada. Pero es innegable que él es femenino Y así vemos cómo a veces la lengua no nos alcanza. Quiero que paras respetade, Quiero que abortes respetade.

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Autorías Alessandra Pin Ferraz Eu já fui Alessandra Saraiva, Alessandra Pin, hoje Alessandra Pin Ferraz. Para uma mulher trans, o nome é uma situação. Já tive um nome que não condizia com a minha vida, mas superamos. Se quiser me chamar de Flor, eu também atendo. Mas o nome é o de menos nesta altura da vida. Eu sou uma mulher em constante construção. Nasci sereia, virei fênix, hoje sou mais uma dessas que pensa em fazer dieta, mas prefere comer chocolate. Me formei em Administração e Marketing “sem querer”. Fiz uns anos de Arquitetura, mas eu não sabia na época que eu era Artista. Na busca de ganhar uma grana me tornei Designer Publicitária. Mas também fiz Teatro, virei Atriz, Dramaturga, fui Professora e hoje sou tudo e muito mais. Passei a vida toda tentando explicar às pessoas que sou uma mulher. A não legitimação da minha mulheridade causou diversos traumas que só passaram quando eu consegui assumir que ser mulher, ser trans e ser eu mesma era basicamente a mesma coisa e nada mais. Pensei tantas vezes se eu deveria assumir isso de novo, se eu deveria lutar por todas ou só por mim mesma, se eu deveria tentar mudar o mundo ou apenas servir o jantar. Já fui um poço de dores, algumas curadas, entendidas, superadas e desenvolvidas. Outras convivem aqui no meu limbo que chamo de peito. Mas não sou apenas dor, distante disso. Conquistei muitas coisas que minhas irmãs trans não puderam. Tive a graça dos privilégios. Tenho conquistas demais a serem celebradas e as celebro todos os dias, mas não fecho a luta em mim. É neste lugar que escrevo. No lugar de quem tem muito o que contar e precisa contar consigo mesma, neste mundo hostil, hipócrita e condenatório, para ser compreendida, se expressar e ter sua voz representada, representando, ativa e atuante. Pra quem nasceu pecadora, errada, aberração, com olhos encarando e assédios de todos os tipos, estou ótima em ser eu mesma. | 216 |


Alexsandro Rodrigues Pós-Doutor em Psicologia. Doutor em Educação. Professor Associado I do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo na disciplina: Currículo e Formação docente. Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional (PPGPSI/ UFES). Coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisas em Sexualidades (GEPSs/UFES) e do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade (NEPS/ UFES). Interesses de pesquisa: Produção de subjetividade, infâncias (des)viadas, gênero, sexualidade e processos formativos de professores e trabalhadores culturais. Aline Gomes Tavares Matias Psicóloga graduada pela FAESA (2009), pós-graduada em Saúde Coletiva pela Emescam (2011), atuante em políticas públicas, principalmente na política de assistência social. Associada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Sexualidade (Nesp) da Universidade Federal do Espirito Santo (Ufes). Ana Sophia Brioschi Santos Escritora de poesias e prosa, 21 anos, estudante de direito que carrega muita utopia dentro dos versos, sendo iniciante na arte de compartilhar histórias. Depois de tanto ver e ouvir contar a realidade do mundo, não consegui deixar de escrever. E-mail: anasophiabrioschi@gmail.com. Ângela Vieira Psicóloga, Bailarina, Professora de Danças Orientais Árabes e Pesquisadora do GEA – Grupo de Estudos sobre Aborto do NEPS – Núcleo de Estudo e Pesquisa em Sexualidade (UFES). Mestra em Psicologia Institucional pela UFES (2017), com Especialização em Clínica de Grupos, Organizações e Redes Sociais: Análise Institucional, Esquizoanálise e Esquizodrama pela Fundação Gregório Baremblitt – | 217 |


Belo Horizonte – MG (2009) e Aprimoramento Profissional em Saúde Mental e Saúde Pública da DRS IX – Marília (2008). Psicóloga formada pela UNESP/Assis (2006). Proprietária e atuante no Espaço Marbarú Arte e Filosofia com clínica e com danças orientais árabes. As Finadas do Aborto criam performances e intervenções que estimulam debates públicos sobre a criminalização do aborto e suas consequências danosas para as vidas de mulheres, famílias e a sociedade como um todo. Por meio de linguagens visuais e emocionais, elas procuram retirar o aborto do campo do estigma, do silêncio e da vergonha para inseri-lo no campo dos direitos humanos e da vida das mulheres. Bia de Barros É co-organizadora de Sangrias. Formada em Relações Internacionais pela PUC-SP e Mestra em Direitos Humanos pela USP, atualmente faz doutorado em Psicologia na UFES, onde integra o GEA (Grupo de Estudos sobre Aborto) desde sua criação. Bianca Gargiulo Adolescente argentina, nacida en 2004 en la ciudad de Laboulaye, Córdoba. Amante de los libros, la guitarra, el teatro y la escritura. Parte del gran cambio social actual y creyente en un mundo distinto. Brunela Vieira de Vincenzi Graduada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997), mestra em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (2002) e Doutora em Filosofia e Filosofia do Direito pela Johann Wolfgang Goethe Universität - Frankfurt am Main (2007) com Bolsa de Doutorado Integral durante o mesmo período concedida pela CAPES em cooperação com o DAAD (Deutscher Akademischer | 218 |


Austauschdienst). Estágio de Pós-Doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e no Institut für Sozialforschung em Frankfurt am Main, na Alemanha (2009-2010) e pós-Doutoramento no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, com bolsa integral PNPD/CAPES (2013-2014), sobre o tema Crise de Confiança nas Instituições Democráticas da Estrutura do Sistema Judiciário no Brasil. Atuou entre 1998 e 2009 como advogada no Brasil, em São Paulo; e de 2010 a dezembro de 2012 como Advogada Europeia na Alemanha. Titular da Cátedra Sérgio Vieira de Mello do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados na UFES. Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, onde leciona na graduação e no mestrado, sendo também a atual Presidente da Comissão Permanente de Direitos Humanos da UFES criada pela Portaria n. 2627 de 3 de dezembro de 2015. Atualmente é, ainda, Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação (ANDHEP). Janaína Silva Psicóloga pela FAESA- ES. Mestre em psicologia pela Universidade Federal de São João del Rei – UFSJ. Carmen Hernández Curadora y docente, Caracas Cibele Bitencourt Silva Paulistana nascida e crescida no extremo sul da cidade. Acredita e vive por um mundo mais justo. Psicóloga, aspirante a escritora e pesquisadora do Inanna (Núcleo de Pesquisa sobre Sexualidades, Gêneros e Diferenças).

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Cibely Zenari É poeta, cantora e psicóloga. A poesia transborda os suportes esperados. Autopublicou os zines Tril'orgia. autora da série multilinguagem Eufeminismo, composta por cartazes com sangue menstrual, performance e produção de objeto poético. O universo feminino é produtor e produto de sua pesquisa. Ser mulher é ciclar o tempo desesperado. Vocal e composição na banda Macabea. Em 2018 publicou o livro 12 Contrações: Guadalupy, pelo selo doburro, e Cartas de amor demais, pela Erra publicações. Cristina Gutiérrez Leal Doctoranda en Literatura comparada (URFJ). Contacto: cdgl19@gmail.com. Débora Laís Silva de Oliveira Nasceu em Rondônia, é formada em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia, pesquisa identidade e as diversas formas de expressão desta. Emanuelle Aduni Goes Enfermeira, Epidemiologista, Doutora em Saúde Pública, Blogueira do População Negra e Saúde, Ativista do Movimento de Mulheres Negras, Integrante do Grupo de Pesquisa Musa/ISC/UFBA. email: emanuellegoes@gmail.com. Emmanuel Theumer Universidad Nacional del Litoral-CONICET. A primeira versão deste ensaio foi publicada por Resista! Observatorio de resistencias plurais. Obrigado Luiz Morando pela tradução.

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Fernando Yonezawa Graduado em Psicologia pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista (UNESP) Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS-PPGEdu); Doutor em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP); PósDoutor em Psicologia Institucional pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGPSI-UFES). Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES-PPGPSI). Atua nas áreas de Psicologia Corporal, Filosofia do Corpo, Psicologia Institucional, Psicologia Escolar/Educacional, Psicologia Social, Filosofia da Educação e Ética baseando-se nos pensamentos de Gilles Deleuze-Félix Guattari, Nietzsche, Spinoza e Michel Foucault. Nos últimos anos, vem se dedicando a pesquisar a relação entre Corpo e Arte na produção de subjetividade no contexto da atuação em Psicologia Social e Escolar. Também vem se dedicando a algumas investigações acerca dos movimentos sociais e a relação com a produção de novas estéticas de militância e ativismo político. Fiorella Barone Mujer, argentina, 28 años. Re-descubriendo-se en el mundo de la fotografía. Captura momentos irrepetibles en el tiempo. Crea memorias. Congela en sus registros, a quienes hacen historia. E-mail: m.fiorellabarone@gmail.com. Fotografías inéditas que congelan tres momentos del día 8 de marzo del año 2019, día Internacional de la Mujer, en ocasión de La Marcha 8M 2019 en el centro de la ciudad de Córdoba, Argentina.

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Florencia Sueldo Mujer, nativa del interior de Córdoba - Argentina, mamá de Inti, instructora en yoga y exploradora de prácticas corporales conscientes, lic.en Historia, mestranda en Antropologia, pesquisadora de la humanización de los partos/nacimientos en hospitales públicos brasileros. E-mail: sueldoflorencia0@gmail.com. Gianella Barone “Gini”, nacida en el año 2004 en el interior de la provincia de Córdoba, Argentina. A veces tirana, a veces proscrita, nieta de las brujas que no pudieron quemar e hija de la marea verde. Ileana Wenetz Licenciada em Educação Física pela Facultad de Educación y Salud (FES/IPEF) Argentina. Especialista em Pedagogia do Corpo e da Saúde pela EsEF/UFRGS. Mestre e Doutora em Ciências do Movimento Humano pela EsEF/UFRGS. Pós-doutora no Programa Interdisciplinar de Ciências Humanas da UFSC. Professora Adjunta do Departamento Ginástica do Centro de Educação Física e Deportes da Universidade Federal de Espirito Santo (UFES). Professora da Pós-graduação em Psicologia Institucional (UFES). Participante do Laboratório de Estudos em Educação Física (LESEF) da UFES e participante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidade (GEPSS). Tem experiência na área de Educação Física escolar, Estudos antropológicos na Educação Física, Estudos Culturais e Gênero. Metodologia do Ensino. Atuando nos seguintes temas: corpo, gênero, lazer, crianças e brincadeiras. E-mail:ilewenetz@gmail.com. Ivana Bazán Nativa Salteña y residente en la ciudad de Córdoba, Argentina. Formada en Psicología en el año 2017 en la Universidad Nacional de Córdoba, | 222 |


Argentina . Feminista y fotógrafa, amante de la música y la danza. Actualmente trabaja en el área de Prevención Territorial, perteneciente a la Secretaría de Prevención y Asistencia de las Adicciones. Fotografía inédita tomada en la vigilia por la aprobación del Proyecto de Ley de Interrupción Voluntaria del Embarazo (IVE) el día 08 de Agosto del año 2018 en la ciudad de Córdoba, Argentina. Fotografía inédita tomada en el día 08 de marzo de 2019, día Internacional de la Mujer en el evento 8M: Marcha del 8 de Marzo a las 22:56hs. en el centro de la ciudad de Córdoba, Argentina. Janine Oliveira Mestranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) com financiamento FAPESQ PB/Capes/CNPq/UFPB e integrante do Grupo de Pesquisa sobre Economia Política e Trabalho (GEPET/UFPB). Jessica Bragio Acredito em corpos marcados pela existência, subjetivados por um recorte da verdade que lhe és apresentado. Confesso que experienciar algumas sensações peculiares me afetam, emocionam e modificam. Escrever, para mim é gritar (ainda que em versos tortos) todas as questões latentes que habitam minha existência. Só eu sei o experienciar escandaloso do silêncio do meu coração depois de do ponto final. Leticia Alves Maione Militante feminista anti-racista na luta, junto a muitxs, para a construção de mundos que sejam mais de todxs. Educadora, quer seguir colaborando desde os desafios e contradições do feminismo no Rio de Janeiro e na América-Latina.

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Lilian Alicia Ortiz Nacida en la provincia de Buenos Aires. Vive desde hace algunos años en Laboulaye, provincia de Córdoba, Argentina. Mujer con muchos roles: docente de profesión laboral; estudiante, pois está en constante formación. Integrante de Comisión directiva de la biblioteca pública de Laboulaye, en donde desarrolla algunos proyectos sociales. Delegada gremial de la Unión de Educadores de la provincia de Córdoba. Militante activa de un movimiento feminista: Mariposas Narajas; mamá de dos hijes, Gimena y Theo. Lisandra Moreira Professora de Psicologia Jurídica na Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Psicologia pela UFSC, Mestre e Psicóloga pela UFRGS. Entre pesquisas e escritas acadêmicas, tem experimentado outras escritas para temas tão intensos que as teorias não dão conta. Maria Amélia Dalvi É mulher-mãe e trabalha como escritora, professora e pesquisadora na interface entre Literatura e Educação. Atua desde 2010 na Universidade Federal do Espírito Santo. Maria Andrea Quiroga Nacida en la ciudad de Laboulaye, provincia de Córdoba. Mujer urbana, mujer campesina, mujer trabajadora, mujer bailadora, mujer compañera, mujer risueña, mujer creando, mujer aprendiendo, mujer en lucha… Posee una licenciatura en Ciencia Política por la Universidad Nacional de Río Cuarto. Córdoba, Argentina. María Antonella Barone Guzmán No es poetisa, pero coquetea con las palabras cuando los afectos la transbordan. Transita la hibridez de un portunhol dançante entre | 224 |


Brasil y Argentina. Incomodada, sigue las marcas de las que la anteceden para abortar la autoridad que viene a decir cómo sentir y pensar. Une su voz a las que, incansablemente, reivindican, de forma colectiva, una Latinoamérica viva “que respira lucha”. Inconformada, junto con otres, desaprende “ciencias” que producen pensamientos amputados, heridos, occidentalizados: compone el Grupo de Estudos sobre Aborto de la Universidade Federal do Espirito Santo (GEAUFES). Actualmente doctoranda en el Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espirito Santo (PPGP-UFES). [Léase institución dicha pública, pero con candados, mayoritariamente blanca, eurocéntrica y para unes pocxs]. Marília Carreiro É formada em Letras pela Univeridade Federal do Espírito Santo (Ufes), editora, revisora e idealizadora da Editora Pedregulho. Autora de AmorS e outros contos (2014), Opala Negra (2014) e Lama (2019). Marcelle Souza Mestra e doutoranda pelo PROLAM-USP (Programa de Pósgraduação Interunidades Integração da América Latina da Universidade de São Paulo). Mirela Marin Morgante Doutoranda em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Espírito Santo. Cineasta e produtora da empresa Chaleira Filmes. E-mail: mmmorgante@gmail.com. Nair Allende Aprendiz de Bruja. Rosario, Santa Fe, Argentina. nairallende@gmail.com | @aprendizdebruja.ros

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Nathália Cravo Soares Martins Capixaba mora em Vila Velha, de 22 anos. Estuda Psicologia na Ufes, é militante pelo movimento Kizomba, feminista pela Marcha Mundial das Mulheres e atua no CALPSI (Centro Acadêmico Livre de Psicologia), é bolsista no PET Psicologia (Programa de Ensino Tutorial). Petista, pisciana, adora conversar na mesa do bar, discutir sobre política nas horas vagas e reclamar no twitter. Entende a poesia como expressão das singularidades cuja potência pode transformar realidades. Email: nathicsmartins@gmail.com | Instagram: @opa_nathi Nathália Diórgenes É recifense, feminista negra e militante da Marcha Mundial de Mulheres e do Coletivo Fuah. É assistente social pela UFPE, mestra e doutoranda em psicologia pela mesma universidade. Atualmente desenvolve pesquisa sobre aborto e racismo no sertão pernambucano, além de colaborar com movimentos de mulheres do campo e sindicalistas rurais. Paula Rita Bacellar Gonzaga Professora Assistente da Universidade Federal do Sul da Bahia, Psicóloga formada pela Universidade Federal da Bahia, Mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo também pela UFBA, Doutoranda Em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ruth Zurbriggen Activista feminista, docente e investigadora. Desde hace ocho años acompaña a mujeres en procesos de aborto con medicamentos. Integra la Colectiva Feminista La Revuelta de Neuquén, Socorristas en Red (feministas que abortamos) y la Campaña Nacional por el Derecho al Aborto Legal, Seguro y Gratuito. Es coordinadora de la Cátedra Libre: El aborto desde el abordaje de la salud y los derechos, de la Facultad | 226 |


de Ciencias Médicas, de la Universidad Nacional del Comahue y formadora de formadoras y formadores en temas de pedagogías y educación sexual integral. Sandra Muñoz Mineira foi para Bahia passar umas férias e não voltou mais. Ficou lá fazendo ativismo até cansar. Morou na Bahia há 17 anos, deu muito trabalho para o povo lá , porque não come reggae e não segue padrões. Polêmica porque gosta de resolver as tretas e os babados e, como sempre, está em muitas frentes. Agora está estudando Direito para botar para ROMBAR é no Judiciário! Sarah Vervloet Licenciada em Letras (Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa) e mestra em Letras (Estudos Literários), pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora de Língua Portuguesa de Ensino Básico Técnico e Tecnológico no Instituto Federal Fluminense, no campus Bom Jesus do Itabapoana-RJ. Cursa doutorado em Educação, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), com projeto intitulado A escrita literária em aulas de Língua Portuguesa no Ensino Médio. Participa, como estudante, dos grupos de pesquisa Linguagens na Educação (USP) e Literatura e Educação (UFES). Tamyres Batista Costa Poeta negra nascida na diáspora, filha de Ivone e Sérgio e irmã da Taynara. Estuda Ciências Sociais na instituição de supremacia brancaeurocêntrica Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), onde integra o coletivo Negros e Negras das Ciências Sociais. Encantada por cinema, compõe o Cineclube nome provisório, Cineclube Teresa de Benguela e o Cineclube Aldeia. Gosta muito de cozinhar e é possível encontrá-la cantarolando pela cidade de madrugada. | 227 |


Tem lutado para garantir o direito de fabular e habitar dentro do próprio sonho. Thays Conceição Cabidelli da Silva Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Pesquisadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (UFES). Membro-estudante do Núcleo de Estudos em Processo e Tratamento de Conflitos (NEAPI). E-mail: thaystab@ gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2399031237357426. Valeria Carbajal Rivera Diseñadora, arquitecta y urbanista, de nacionalidad hondureña, formada como Mestre en Arquitectura y urbanismo de la Universidad Federal do Espirito Santo (UFES). Ha colaborado con el colectivo artístico – feminista “Mujeres en las Artes” en Honduras. Actualmente realiza investigaciones sobre la perspectiva de género en la creación de las ciudades y la arquitectura. Vander Costa Nascido em Barra de São Francisco-ES, 13 de junho de 1974. Viveu boa parte de sua infância e juventude em Ecoporanga. Formado em filosofia pela UFES. Tem publicado três livros de poemas. Wayne Ribeiro Nascido e morador de Vitória (ES), bacharel em Enfermagem pela Universidade Católica Salesiana de Vitória.

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Este livro foi composto no outono de 2019, na tipografia Minion Pro, corpo 11/20.

Comissão Editorial Alexsandro Rodrigues (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil) Brunela Vieira de Vincenzi (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil) Fernando Yonezawa (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil) Getulio Sérgio Souza Pinto (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil) Luizane Guedes (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil) Maria Amélia Dalvi (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil)


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