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Veja um Excerto do Livro - Angelus-Novus

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adÍlia/FlOrBela<br />

e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

dentre vários projectos de construção das narrativas históricas e<br />

genealógicas <strong>do</strong> protagonismo cultural feminino que podem ser<br />

identifica<strong>do</strong>s na obra de adília lopes, <strong>um</strong> <strong>do</strong>s mais complexos (e<br />

que melhor se sintoniza com a matéria e os objectivos deste ensaio)<br />

é constituí<strong>do</strong> pelo diálogo intertextual que a sua escrita trava com a<br />

poesia e a personagem de Florbela espanca. 177 tomo como o ponto de<br />

partida para esta leitura da relação adília-Florbela a citação de <strong>um</strong>a<br />

carta dirigida, em 1916, por raul Proença ao seu irmão luís, amigo<br />

íntimo de joão maria espanca, o pai da poetisa. serviu essa trindade<br />

masculina como cadeia de transmissão <strong>do</strong> parecer favorável sobre a<br />

poesia da menina Florbela, pronuncia<strong>do</strong> pelo então eminente escri-<br />

tor Proença:<br />

quanto à filha <strong>do</strong> sr. espanca não se pode dizer que espanque a poesia.<br />

Pelo contrário: tem bastante talento e promete. as composições que me<br />

enviou não são só verso, são também poesia na sua maior parte. Creio<br />

que dará alg<strong>um</strong>a coisa se continuar e se se for purifican<strong>do</strong> <strong>do</strong>s vícios ine-<br />

rentes aos principiantes.<br />

(espanca, obras completas V, 164)<br />

Nos quinze anos de vida que ainda lhe restavam, Florbela efec-<br />

tivamente continuou, foi-se purifican<strong>do</strong> e nunca deixou que se<br />

pudesse dizer dela que espancava a poesia: pelo contrário, cultivou-a<br />

sempre com to<strong>do</strong> o respeito, dedicação e h<strong>um</strong>ildade que a acção<br />

de cultivar etimologicamente implica. mesmo na hora triunfal de<br />

Charneca em Flor, liberta <strong>do</strong> complexo de inferioridade derivativa<br />

em relação aos “poetas [seus] irmãos” que lhe perturbava (aliás<br />

177 a relação, marcadamente mais constante e extensa, entre adília lopes e a figura fi gura de<br />

mariana alcofora<strong>do</strong> (seu “subterrâneo pseudónimo”, no dizer de elfriede engelmeyer), por<br />

razões de economia de espaço não poderá receber aqui a atenção que merece. <strong>um</strong> esboço<br />

preliminar de tal abordagem encontra-se no capítulo “Feminizar mariana” e, sobretu<strong>do</strong>, no<br />

posfácio (“e pur si muove”) <strong>do</strong> meu livro Mariana alcofora<strong>do</strong>: Formação de <strong>um</strong> Mito Cultural.<br />

313


o f o r m a t o m u l h e r<br />

fertilmente) a imaginação e o discurso, Florbela não visl<strong>um</strong>brava<br />

sequer a dissipação da aura benjaminiana que para ela nunca deixou<br />

de envolver e de sacralizar a poesia; pelo contrário, reforçou ainda esta<br />

perspectiva a auto-inclusão da poetisa na cobiçada esfera n<strong>um</strong>inosa<br />

(com sonetos como, por exemplo, “mais alto” ou “Crucificada”),<br />

como a filha afinal legítima da sua musa por fim maternalmente<br />

disponível.<br />

<strong>do</strong>na de <strong>um</strong>a expressão literária exemplarmente pós-aurática,<br />

adília lopes por seu turno tem-se empenha<strong>do</strong> precisamente, de <strong>um</strong><br />

mo<strong>do</strong> consistente e explícito, em espancar a poesia, ou melhor, os<br />

leitores presos a fórmulas de contemplação estética incompatíveis<br />

com o ingénuo e sofisticadíssimo terrorismo discursivo pratica<strong>do</strong><br />

pela autora. talvez daí derive a razão principal <strong>do</strong> embaraço que esta<br />

poesia se compraz em provocar: o embaraço de ver espancar pessoas<br />

adultas, sérias e dignas, categoria a que se pres<strong>um</strong>e pertencerem<br />

maioritariamente leitores de poesia, e tanto mais os próprios poetas,<br />

no caso a poetisa que, aliás, não evade também a autoflagelação,<br />

<strong>um</strong> vício tradicionalmente muito ao gosto das autoras da espécie<br />

florbeliana, como ainda se notará.<br />

No artigo intitula<strong>do</strong> “adília lopes espanca Florbela espanca”,<br />

Osval<strong>do</strong> silvestre discorre acerca da estratégia <strong>do</strong> espancamento<br />

– <strong>um</strong> tratamento de choque, punitivo e fisicamente concreto –<br />

enquanto o mo<strong>do</strong> de comunicação com o público privilegia<strong>do</strong><br />

por adília lopes (e que inclui não apenas a escrita poética, mas<br />

também as insólitas sessões de leitura <strong>do</strong>s textos da autora). a<br />

poetisa detém, nesta perspectiva <strong>do</strong> crítico, o papel inquestionável<br />

de <strong>um</strong>a <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ra, a chicotear verbalmente a linguagem e os<br />

usos consagra<strong>do</strong>s dela, o público leitor e, por fim, “a musa, neste<br />

livro espancada por interposta Florbela espanca” (26). O papel de<br />

Florbela em Florbela espanca espanca configura-se, assim, como<br />

fundamentalmente subsidiário: não só verificamos na constatação<br />

citada <strong>um</strong>a negação <strong>do</strong> seu protagonismo como, principalmente,<br />

a sua relegação para mera figura de discurso, siné<strong>do</strong>que ou “pessoa<br />

interposta”. se assim de facto fosse, haveria precedentes para este<br />

314


e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

uso de Florbela, alguns <strong>do</strong>s quais aponta<strong>do</strong>s no respectivo capítulo<br />

deste livro: o seu papel de “relíquia” materializada “n<strong>um</strong>a grande<br />

fotografia que se pode pôr no corre<strong>do</strong>r” nas novas Cartas Portuguesas<br />

(336) ou a sua ausência <strong>do</strong> retrato de família das poetas portuguesas<br />

contemporâneas imaginadas por luciana stegagno Picchio como as<br />

“netas de mariana [alcofora<strong>do</strong>]”. eco indirecto deste posicionamento<br />

de Florbela no papel simultaneamente proeminente e oculto da mãe<br />

ausente ou matriz repudiada, a sua configuração por silvestre como<br />

<strong>um</strong>a agente interposta (e então suprimida) igualmente trai <strong>um</strong>a<br />

resistência a gerir o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu protagonismo na história<br />

da literatura nacional. Florbela figura nesta história como <strong>um</strong><br />

vínculo inegável, mas difícil de interpretar e portanto de ass<strong>um</strong>ir,<br />

entre <strong>um</strong> passa<strong>do</strong> em que no horizonte <strong>do</strong> reconhecimento crítico<br />

pura e simplesmente não existe <strong>um</strong>a poesia portuguesa escrita por<br />

mulheres (com a excepção de <strong>um</strong> punha<strong>do</strong> de freiras ou alg<strong>um</strong>a<br />

marquesa, todas elas – assim como a grande maioria <strong>do</strong>s autores<br />

masculinos seus coevos – consideradas pouco pertinentes para a<br />

modernidade literária) e <strong>um</strong> presente em que escrevem e publicam,<br />

livre e abundantemente, dezenas de poetas portuguesas sem que<br />

alguém (com raras excepções) se atreva sequer a categorizá-las como<br />

tais e muito menos a implicar-lhes inferioridade em relação a poetas<br />

homens, como <strong>do</strong>gmaticamente se an<strong>do</strong>u a fazer até recentemente.<br />

Passou-se assim de <strong>um</strong> esta<strong>do</strong> de exclusão, mais ou menos absoluta<br />

e consagrada por séculos de arg<strong>um</strong>entação demagógica, a <strong>um</strong>a<br />

situação de inclusão mais ou menos completa e inquestionável,<br />

sem que se mantenham visíveis, na maior parte <strong>do</strong>s casos, os traços<br />

desta metamorfose historicamente radical ou, por outras palavras,<br />

sem que se dedique muita atenção ao papel desempenha<strong>do</strong> nela<br />

por tais figuras intermédias como, por exemplo, a poetisa Florbela<br />

espanca. 178<br />

178 <strong>um</strong>a corroboração recente <strong>do</strong> estatuto equívoco de Florbela espanca perante o câ-<br />

none literário e crítico da modernidade portuguesa é a sua ausência da ur-antologia da<br />

poesia portuguesa <strong>do</strong> século vinte, o Século de ouro, organizada por Pedro serra e Osval<strong>do</strong><br />

manuel silvestre (Braga/Coimbra/lisboa: angelus <strong>Novus</strong> & Cotovia, 2002). recorde-se que<br />

315


o f o r m a t o m u l h e r<br />

Voltemos, pois, a Florbela espanca espanca. No posfácio ao volu-<br />

me, também de autoria de Osval<strong>do</strong> silvestre, a questão da actuação<br />

equívoca de Florbela na poesia de adília lopes é colocada em termos<br />

mais explícitos <strong>do</strong> que no ensaio anteriormente cita<strong>do</strong>, mas que<br />

confirmam fundamentalmente o diagnóstico <strong>do</strong> seu papel elíptico<br />

de “pessoa interposta”. No contexto destas reflexões interessa reter<br />

sobretu<strong>do</strong> a observação inicial <strong>do</strong> crítico:<br />

mas o que significa esta convocação de Florbela para o limiar e hori-<br />

zonte semântico de <strong>um</strong> livro? Como parece evidente a <strong>um</strong>a leitura atenta,<br />

significa muito pouco, se intentarmos lê-la como recuperação, mais ou<br />

menos aurática, de <strong>um</strong>a personagem exemplar na débil narrativa femi-<br />

nina ou feminista das letras portuguesas. (1999, 67)<br />

Com efeito, <strong>um</strong>a leitura atenta de Florbela espanca espanca não<br />

pode senão confirmar que, depois <strong>do</strong> impacto inicial atribuível ao<br />

título <strong>do</strong> vol<strong>um</strong>e e ao notório poema de abertura que parodia o<br />

soneto “amar!” de Charneca em Flor, a poesia de Florbela não retém<br />

explicitamente o estatuto <strong>do</strong> intertexto condutor <strong>do</strong> conjunto (ao<br />

contrário <strong>do</strong> que acontece, por exemplo, nos <strong>do</strong>is vol<strong>um</strong>es de poesia<br />

de adília lopes que evocam a paixão de mariana alcofora<strong>do</strong>, Marquês<br />

de Chamilly [Kabale und Liebe] e o regresso de Chamilly). Não se trata,<br />

portanto, como não diz mas podia dizer silvestre, de <strong>um</strong> gesto<br />

clássico de revisionismo literário, opera<strong>do</strong> desde <strong>um</strong>a perspectiva<br />

inicialmente surgida na “segunda vaga” feminista <strong>do</strong>s anos sessenta<br />

e setenta <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>: <strong>um</strong>a recuperação reivindicativa de<br />

modelos literários, históricos e míticos <strong>do</strong> protagonismo feminino, em<br />

aliança estratégica com <strong>um</strong>a desconstrução da tradição de produção<br />

simbólica sexuada no masculino e solidária das estruturas <strong>do</strong> poder<br />

patriarcal. e no entanto, não creio que seja inteiramente verdade<br />

a selecção <strong>do</strong>s poetas que integram a antologia foi o resulta<strong>do</strong> das preferências exprimidas<br />

pelos colabora<strong>do</strong>res convida<strong>do</strong>s, representan<strong>do</strong> portanto <strong>um</strong> reflexo razoavelmente fiável<br />

<strong>do</strong> consenso crítico quanto à relevância estética e histórico-literária <strong>do</strong>s autores incluí<strong>do</strong>s (e,<br />

correlatamente, também <strong>do</strong>s “excluí<strong>do</strong>s”).<br />

316


e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

que a cooptação de Florbela para Florbela espanca espanca signifique<br />

“muito pouco”: diria, pelo contrário, que adília lopes estabelece,<br />

por via dessa cooptação, <strong>um</strong>a (des)continuidade genealógica muito<br />

interessante que ultrapassa tanto a herança equívoca em que a figura<br />

de Florbela surge como <strong>um</strong>a presença ao mesmo tempo inegável<br />

e inabsorvível, como a já anacrónica reivindicação feminista em<br />

primeiro grau à qual alude silvestre. restituin<strong>do</strong> a este ícone da poe-<br />

sia portuguesa de autoria feminina que se materializa nos versos e<br />

na imagem biográfica de Florbela espanca a visibilidade e a estridên-<br />

cia retórica que lhe foram neutralizadas por referências mais bem<br />

educadas ou ambivalentes (como, por exemplo, as duas apontadas<br />

acima), adília mostra que não tem me<strong>do</strong> nem de Florbela nem,<br />

mais geralmente, <strong>do</strong> fantasma da ghettoização da chamada poesia<br />

feminina. ao mesmo tempo, porém, que ass<strong>um</strong>e a tradição literária<br />

e, sobretu<strong>do</strong>, cultural (no senti<strong>do</strong> amplo) das mulheres portuguesas<br />

– tradição que engloba tanto as elevadas linhagens de parentesco<br />

poético como os desastres das meninas exemplares da Condessa de<br />

ségur – adília lopes inicia também <strong>um</strong> diálogo crítico, neste caso<br />

veicula<strong>do</strong> no regresso paródico ao discurso florbeliano, com certos<br />

pressupostos e consequências <strong>do</strong> revisionismo feminista de primeira<br />

geração para os quais acaba por alargar a mira da paródia. leia-se,<br />

como <strong>um</strong>a expressão concentrada deste diálogo, o poema inaugural<br />

de Florbela espanca espanca (401-402):<br />

eu quero foder foder<br />

achadamente<br />

se esta revolução<br />

não me deixa<br />

foder até morrer<br />

é porque<br />

não é revolução<br />

nenh<strong>um</strong>a<br />

a revolução<br />

não se faz<br />

317


nas praças<br />

nem nos palácios<br />

(essa é a revolução<br />

<strong>do</strong>s fariseus)<br />

a revolução<br />

faz-se na casa de banho<br />

da casa<br />

da escola<br />

<strong>do</strong> trabalho<br />

a relação entre<br />

as pessoas<br />

deve ser <strong>um</strong>a troca<br />

hoje é <strong>um</strong>a relação<br />

de poder<br />

(mesmo no foder)<br />

a ceifeira ceifa<br />

contente<br />

ceifa nos tempos livres<br />

o f o r m a t o m u l h e r<br />

(semana de 24 x 7 horas já!)<br />

a gestora avalia<br />

a empresa<br />

pela casa de banho<br />

e canta<br />

contente<br />

porque há alegria<br />

no trabalho<br />

o choro da bebé<br />

não impede a mãe<br />

de se vir<br />

a galinha brinca<br />

com a raposa<br />

eu tenho o direito<br />

de estar triste<br />

318


e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

adília lopes recorre neste poema a <strong>um</strong> <strong>do</strong>s seus méto<strong>do</strong>s habi-<br />

tuais de composição, que é a ac<strong>um</strong>ulação hipertrófica, desfasada e<br />

irreverente de citações e alusões culturais. identifiquem-se as prin-<br />

cipais: em primeiro lugar, os versos de abertura <strong>do</strong> já aponta<strong>do</strong><br />

soneto florbeliano (“eu quero amar, amar perdidamente!”); logo,<br />

a citadíssima, posto que apócrifa, declaração da anarco-feminista<br />

emma Goldman, “if i can’t dance, i <strong>do</strong>n’t want to be part of your<br />

revolution” [se não puder dançar, esta não é a minha revolução],<br />

que se tornou <strong>um</strong> <strong>do</strong>s ícones verbais <strong>do</strong> feminismo anglo-america-<br />

no <strong>do</strong>s anos setenta 179 ; por fim, a ceifeira pessoana, essa personifica-<br />

ção da consciência em grau primário que em Pessoa (pace o fenóme-<br />

no Caeiro) tende a ser associada indistintamente a mulheres, crian-<br />

ças e animais. No poema de adília lopes, a pré-moderna ceifeira<br />

transforma-se na liberta e moderníssima “gestora” que, como a<br />

sua antepassada literária, também “canta / contente / porque há<br />

alegria / no trabalho”. esta última alusão alarga a perspectiva da<br />

ironia histórica <strong>do</strong> poema ao evocar a esta<strong>do</strong>-novista Fundação<br />

Nacional para a alegria no trabalho (FNat), reconstruída no pós-25<br />

de abril como o instituto Nacional de aproveitamento <strong>do</strong>s tempos<br />

livres <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res (iNatel). 180 N<strong>um</strong>a viragem comparável à<br />

substituição da alegria no trabalho pelo aproveitamento <strong>do</strong>s tempos<br />

livres, os objectivos da gestora não se limitam ao contentamento<br />

laboral, c<strong>um</strong>prin<strong>do</strong> o ideal promovi<strong>do</strong> pelas revistas femininas<br />

em directa, embora perversa, derivação <strong>do</strong>s lemas da revolução<br />

feminista: combinar satisfação profissional, maternidade e, por<br />

último mas não em último, realização sexual consubstanciada no<br />

orgasmo (“o choro da bebé / não impede a mãe / de se vir”). O poema<br />

alude performativamente à premissa maior da transformação social<br />

179 alix Kate shulman conta a história da sua contribuição involuntária para a invenção<br />

<strong>do</strong> slogan atribuí<strong>do</strong> a Goldman (que aconteceu por via de <strong>um</strong>a extrapolação de <strong>um</strong> fragmen-<br />

to da autobiografia desta última) em “dances with Feminists”, Women’s review of Books, Vol.<br />

ix, no. 9 (december 1991).<br />

180 agradeço a ana Paula Ferreira e helder mace<strong>do</strong> por terem atraí<strong>do</strong> a minha atenção<br />

para a referência que o poema faz à FNat.<br />

319


o f o r m a t o m u l h e r<br />

protagonizada pelos movimentos feministas (o pessoal é político e<br />

portanto “a revolução / faz-se na casa de banho”) para em seguida<br />

parodiar a sua paráfrase modelada pelas prioridades da actualidade<br />

dita pós-feminista em que “a gestora avalia / a empresa / pela casa<br />

de banho”.<br />

entre Florbela espanca contemporânea da ceifeira e adília lopes<br />

contemporânea da gestora instaura-se, no entanto, <strong>um</strong>a solidarie-<br />

dade contestatária que constitui <strong>um</strong> contraponto irónico à noção<br />

de progresso implícita no contínuo histórico que se estende desde<br />

a ceifeira até à gestora, a passar pelo sismo feminista sinaliza<strong>do</strong><br />

pela citação de Goldman. esta solidariedade poderá ser postulada a<br />

vários níveis, nem to<strong>do</strong>s explicita<strong>do</strong>s no próprio poema, como seria<br />

o caso de <strong>um</strong>a triangulação intertextual entre a figura emblemática<br />

da ceifeira pessoana, a poesia de Florbela espanca (com destaque<br />

para o soneto “alentejano”, em que o papel simbólico da ceifeira<br />

é ass<strong>um</strong>i<strong>do</strong> pelo próprio eu lírico) e o empenho paródico de <strong>um</strong><br />

revisionismo pós-feminista, que abrangeria, no caso, tanto o uso<br />

que da ceifeira instr<strong>um</strong>entalizada e estereotipada faz Pessoa, na<br />

esteira de Wordsworth, como a revisão (proto-)feminista desse uso<br />

que devemos a Florbela, com troca de papéis e tu<strong>do</strong>. No entanto,<br />

o plano porventura mais visível em que se estabelece a relação de<br />

c<strong>um</strong>plicidade entre a poetisa Florbela e a poetisa adília pode ser<br />

observa<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> desfecho <strong>do</strong> poema em questão – “eu tenho<br />

o direito de estar triste” – remate comprova<strong>do</strong>r, aliás, <strong>do</strong> “superior<br />

<strong>do</strong>mínio de anti-climax” que para Osval<strong>do</strong> silvestre caracteriza<br />

desde sempre a poesia de adília lopes (2001, 25). este regresso<br />

circular ao eu desinibidamente sentimental e confessional, cuja<br />

irrupção escandalizante lançava o início <strong>do</strong> poema (e <strong>do</strong> livro), é,<br />

entre outras coisas, pura e plenamente ass<strong>um</strong>ida herança florbeliana<br />

e outra razão <strong>do</strong> embaraço que a poesia de adília tende a provocar<br />

em muitos <strong>do</strong>s seus leitores. Os já cita<strong>do</strong>s versos que a “poetisa<br />

morta” escreve “para [se] casar” (310) são <strong>um</strong> perfeito homólogo<br />

paródico (o que não quererá dizer adversário) <strong>do</strong>s versos em que<br />

Florbela encena repetidamente a assimilação íntima da problemática<br />

320


e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

<strong>do</strong> relacionamento intertextual ao relacionamento erótico e da<br />

criação poética em geral ao espaço semântico <strong>do</strong> jogo amoroso:<br />

trata-se, como sustento no respectivo capítulo deste estu<strong>do</strong>, de <strong>um</strong>a<br />

estratégia de nivelamento qualitativo entre a poetisa e os vários<br />

poetas homens a quem Florbela obsessivamente se compara no<br />

início da sua trajectória literária, tanto nos poemas como nas cartas,<br />

estratégia que rende lucros notáveis sobretu<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> <strong>Livro</strong> de<br />

Soror Saudade. O que adília lopes faz com esta herança florbeliana<br />

não é, obviamente, usar a mesma estratégia para os mesmos fins:<br />

trata-se antes de parodiála solidariamente, sen<strong>do</strong> esta <strong>um</strong>a forma de<br />

paródia em que o texto apropria<strong>do</strong> tem para o texto apropria<strong>do</strong>r<br />

a função de arma e não apenas, ou não principalmente, de alvo<br />

(sigo aqui a teorização de j. a. yunck citada por linda hutcheon<br />

[2000, 52]). se o texto florbeliano é, para adília, sobretu<strong>do</strong> arma,<br />

qual será então o alvo desta manobra paródica? Os alvos são sem<br />

dúvida vários, e vários aparecem aponta<strong>do</strong>s nos ensaios, extensos e<br />

também algo militantes, que à poesia de adília lopes dedicaram ao<br />

longo <strong>do</strong>s anos américo antónio lindeza diogo e Osval<strong>do</strong> silvestre;<br />

para o efeito das presentes reflexões interessa indicar, sobretu<strong>do</strong>,<br />

que o confessionalismo e mesmo exibicionismo exacerba<strong>do</strong>s na<br />

escrita da “poetisa pop”, além de terem referentes óbvios na cultu-<br />

ra pop propriamente dita, são directamente contestatários em<br />

relação a certa ideologia de boa educação discursiva que aju<strong>do</strong>u as<br />

gerações pós-florbelianas da poesia portuguesa de autoria feminina<br />

a emanciparem-se <strong>do</strong> estatuto de menoridade a que as continuava<br />

a relegar o mainstream masculino. Parece-me exemplar deste fenó-<br />

meno a já citada opinião de david mourão-Ferreira, emitida no<br />

início <strong>do</strong>s anos sessenta <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, ao vincular a posição<br />

de grande destaque que nas letras portuguesas tinha vin<strong>do</strong> a ocupar<br />

a poesia de sophia de mello Breyner andresen ao facto de a sua<br />

expressão lírica se encontrar “completamente isenta de biografismo<br />

(...) e de toda aquela imediatez interjectiva, tão frequente na poesia<br />

feminina” (132).<br />

Ora, “biografismo” e “imediatez interjectiva” são claramente<br />

321


o f o r m a t o m u l h e r<br />

peças mestras <strong>do</strong> repertório poético de adília lopes, como também<br />

o foram para Florbela espanca. Podia-se ainda acrescentar aqui vá-<br />

rios outros peca<strong>do</strong>s tradicionalmente denuncia<strong>do</strong>s como próprios<br />

da lírica feminina no registo florbeliano: narcisismo, autoflagelação<br />

masoquista, falta de complexidade formal e de organização lógica<br />

<strong>do</strong> discurso – to<strong>do</strong>s eles alegremente recupera<strong>do</strong>s, geralmente por<br />

via de reacentuação paródica ou citação transcontextualizada, pela<br />

poesia de adília. entre as poucas prerrogativas de que dispunha,<br />

Florbela tinha o direito inquestionável, assegura<strong>do</strong> pelos múltiplos<br />

antecedentes <strong>do</strong> discurso feminino nas letras portuguesas, de<br />

“estar triste”; direito de que usou e abusou nos seus sonetos. adília<br />

recupera esse “direito histórico” – como a acima citada epígrafe <strong>do</strong><br />

seu vol<strong>um</strong>e de estreia claramente anuncia – ao mesmo tempo que<br />

reclama o problemático rótulo de “poetisa” e outros elementos da<br />

herança literária e simbólica luso-feminina. Para retomar mais <strong>um</strong>a<br />

vez a metáfora genealógica de luciana stegagno Picchio, se para a<br />

crítica italiana as mulheres poetas portuguesas <strong>do</strong>s anos cinquenta,<br />

sessenta e setenta surgiam como “netas” da soror mariana<br />

alcofora<strong>do</strong>, talvez nos seja legítimo pensar adília lopes como <strong>um</strong>a<br />

neta, ao mesmo tempo dedicada e irreverente, da primeira grande<br />

poetisa da literatura portuguesa que, pace teixeira de Pascoaes, não<br />

foi antónio Nobre e sim Florbela espanca.<br />

De Minha Senhora de MiM a Minha Senhora de<br />

Quê<br />

se compararmos o diálogo poético que adília lopes trava com<br />

a escrita e o exempl<strong>um</strong> de Florbela espanca com o exercício de<br />

comunicação intertextual entre Minha Senhora de Quê de ana luísa<br />

amaral e Minha Senhora de Mim de maria teresa horta, consideran<strong>do</strong><br />

ambos enquanto casos de <strong>um</strong>a negociação trans-geracional em<br />

poética e política feminista, a distinção mais óbvia a registar prender-<br />

-se-á com a distância histórica que se instaura entre as respectivas<br />

interlocutoras. Precisamente dezanove anos separam tanto as datas<br />

322


e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

de nascimento de maria teresa horta (1937) e ana luísa amaral<br />

(1956) como as datas de publicação <strong>do</strong>s referi<strong>do</strong>s vol<strong>um</strong>es de poesia<br />

(1971 e 1990): <strong>um</strong> intervalo menor <strong>do</strong> que o que se convenciona<br />

associar ao senti<strong>do</strong> estritamente genealógico de “<strong>um</strong>a geração”,<br />

posto que perfeitamente classificável como tal de acor<strong>do</strong> com a<br />

prática com<strong>um</strong> de periodização histórico-literária (vide os menos de<br />

quinze anos decorri<strong>do</strong>s entre o auge da “geração de orpheu” e o<br />

arranque da “geração da presença”). 181 estes <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s conver-<br />

gem, efectivamente, na justaposição de Minha Senhora de Quê e<br />

Minha Senhora de Mim, já que, como se tornou manifesto na altura<br />

<strong>do</strong> lançamento <strong>do</strong> vol<strong>um</strong>e inaugural de ana luísa amaral, a sua filia-<br />

ção genealógica na história da construção <strong>do</strong> protagonismo literário<br />

e cultural das mulheres portuguesas coexistia, enquanto factor<br />

de recepção, com a estreia de <strong>um</strong> idiolecto poético esteticamente<br />

distinto que o livro igualmente consubstanciava. Osval<strong>do</strong> manuel<br />

silvestre assim res<strong>um</strong>e a maneira como ana luísa amaral chegou<br />

a ser “anunciada ao pequeno mun<strong>do</strong> das letras lusas” por maria<br />

irene ramalho de sousa santos: “O que irene ramalho anunciou,<br />

nesse texto, foi em boa verdade o advento <strong>do</strong> poeta (ou da poeta:<br />

tal era parte substancial da matéria em pauta nesse artigo) por que<br />

o feminismo português tanto ansiava (...)” (1998, 37; sublinha<strong>do</strong>s<br />

originais). Valerá a pena recordar aqui os termos precisos em que<br />

a poesia de ana luísa amaral estava a ser situada, no momento<br />

da sua apresentação inicial, no contexto histórico <strong>do</strong> feminismo<br />

português:<br />

esse livro intitula-o [ana luísa amaral] Minha senhora de quê, nessa ou-<br />

sada assunção <strong>do</strong> diferente que me inspirou este texto. “minha senhora<br />

de mim”, cantava o poeta trova<strong>do</strong>resco, n<strong>um</strong> contexto em que a dife-<br />

rença e a desigualdade sexual caminharam de mãos dadas, n<strong>um</strong> longuís-<br />

simo percurso de assimétrica comunicabilidade. Minha senhora de mim,<br />

181 de acor<strong>do</strong> com o dicionário houaiss de Língua Portuguesa, “<strong>um</strong>a geração” é o “espaço<br />

de tempo correspondente ao intervalo que separa cada <strong>um</strong> <strong>do</strong>s graus de <strong>um</strong>a filiação e que é<br />

avalia<strong>do</strong> em cerca de 25 anos” (1 a . ed., rio de janeiro: Objetiva, 2001).<br />

323


o f o r m a t o m u l h e r<br />

cantou maria teresa horta nos anos setenta, explicitan<strong>do</strong> <strong>um</strong>a subversão<br />

que é também a das novas cartas portuguesas. ao cabo <strong>do</strong>s anos oitenta,<br />

ana luísa amaral pergunta-se (ou talvez não), Minha senhora de quê, n<strong>um</strong><br />

gesto de quem lucidamente recolhe as heranças difíceis de <strong>um</strong> progresso<br />

acidenta<strong>do</strong> e, reconhecida, faz suas as lutas que hoje lhe garantem a sua<br />

relativa segurança e lhe permitem exercitar a diferença e a própria fragili-<br />

dade para além das igualdades que se vão conquistan<strong>do</strong>. (santos 1989/90,<br />

124)<br />

a prospecção arqueológica e o recolhimento transforma<strong>do</strong>r das<br />

“heranças difíceis” da história cultural das mulheres portuguesas são<br />

desta forma ass<strong>um</strong>i<strong>do</strong>s como matrizes enforma<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> livro, cujo<br />

título ao mesmo tempo acentua e explica as coordenadas da sua<br />

historicidade. a continuidade e o desvio coexistem na relação que<br />

Minha Senhora de Quê estabelece para com Minha Senhora de Mim:<br />

por <strong>um</strong> la<strong>do</strong>, trata-se de <strong>um</strong> acto de homenagem e de solidariedade<br />

(“faz suas as lutas”); por outro, o livro encarna <strong>um</strong> movimento<br />

agónico de ultrapassagem geracional que exige o direito não<br />

apenas à própria diferença de gnose e expressão, mas também,<br />

mais particularmente, à indefinição, dúvida e “fragilidade” como<br />

atributos legítimos <strong>do</strong> sujeito poetizante no feminino. é de notar<br />

que, além <strong>do</strong>s outros efeitos aponta<strong>do</strong>s e por apontar, o gesto<br />

performativo consubstancia<strong>do</strong> no título Minha Senhora de Quê<br />

reafirma, à boa maneira bloomiana, a centralidade da personagem<br />

e até da intencionalidade <strong>do</strong> autor – ou melhor, e crucialmente, da<br />

autora – no processo da inscrição <strong>do</strong> livro no macrotexto cultural<br />

que lhe antecede e o rodeia. que este confronto entre as duas poetas,<br />

e não apenas entre os <strong>do</strong>is livros, seja o evento focal na construção<br />

de <strong>um</strong>a linhagem feminina na poesia portuguesa contemporânea<br />

corrobora a constatação de jay Clayton e eric rothman de que a<br />

instr<strong>um</strong>entalização <strong>do</strong> protagonismo <strong>do</strong>/da autor/a se tem afirma<strong>do</strong><br />

como <strong>um</strong>a posição vantajosa para as incursões críticas feministas<br />

nos <strong>do</strong>mínios histórico-literários da influência e/ou intertextualida-<br />

de (10). O que torna o caso particular <strong>do</strong> diálogo poético entre ana<br />

324


e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

luísa amaral e maria teresa horta tão significativo neste contexto é<br />

que a matéria <strong>do</strong> diálogo tem muito a ver com a própria condição da<br />

personagem “autora” e com os múltiplos compromissos e variáveis<br />

que contribuem para a sua construção no texto poético.<br />

sem desejar debruçar-me sobre os aspectos teóricos da relação<br />

complexa entre os regimes distintos da escrita literária e <strong>do</strong> ensaismo<br />

académico, <strong>do</strong>is géneros de pensamento e de criação verbal culti-<br />

va<strong>do</strong>s por ana luísa amaral, julgo entretanto que poderá ser útil,<br />

enquanto <strong>um</strong> ponto de partida para a contemplação da questão<br />

formulada acima, <strong>um</strong> fragmento da sua escrita crítica em que a<br />

estudiosa compara e contrasta a respectiva construção das personae<br />

<strong>do</strong> eu lírico por Walt Whitman e emily dickinson:<br />

se a poesia de Whitman contrariava o espírito puritano que conde-<br />

nava o desejo, insistin<strong>do</strong> na democracia <strong>do</strong> corpo, pelo corpo, para o<br />

corpo, <strong>um</strong> corpo múltiplo e diverso, tanto o h<strong>um</strong>ano como o social (...),<br />

a poesia de dickinson manteria com os preceitos puritanos <strong>um</strong> atitude<br />

sempre de ambiguidade.<br />

(...)<br />

se o verso livre de Whitman (...) celebra o eu transcendental, (...) <strong>um</strong><br />

eu moderno vira<strong>do</strong> para as novas invenções científicas, tecnológicas e<br />

industriais, o verso de dickinson, servin<strong>do</strong>-se da estrutura prosódica <strong>do</strong><br />

hino religioso, bem como a sua rejeição da publicação (e, portanto, da<br />

reprodução), parece celebrar o anacronismo. À integração da contradição<br />

mesma, que culminará no “i am large, i contain multitudes”, de Whit-<br />

man, dickinson contrapõe “i’m nobody! Who are you?” (...) ou “i was<br />

the slightest in the house” (...), escolhen<strong>do</strong> o espaço da casa e a vida in-<br />

terior e servin<strong>do</strong>-se de <strong>um</strong>a linguagem de contenção e desvio, que passa<br />

pela reticência e pela obliquidade na escrita. (2004, 20)<br />

Guardadas todas as devidas reservas e feitos os inevitáveis ajustes<br />

referenciais (alguns <strong>do</strong>s quais já representa<strong>do</strong>s nesta citação pelos<br />

cortes a que a sujeitei), não será muito diferente a posição em que a<br />

poeta ana luísa amaral (qua dickinson) se situa perante o modelo<br />

325


o f o r m a t o m u l h e r<br />

<strong>do</strong> protagonismo lírico legível na poesia de maria teresa horta (qua<br />

Whitman). em alguns poemas de Minha Senhora de Mim a robustez<br />

afirmativa <strong>do</strong> erotismo triunfante atinge, por via da conjugação entre<br />

o intimismo desinibidamente propaga<strong>do</strong> e a transgressora dimensão<br />

pública (o anti“puritanismo”) incontornavelmente subjacente a este<br />

discurso intimista, <strong>um</strong> fôlego retórico equiparável ao whitmaniano<br />

(por mais que se afaste, a nível estilístico e imagético, <strong>do</strong> exemplo<br />

clássico da escrita whitmaniana em português que se encontra em<br />

álvaro de Campos):<br />

Canto a tua<br />

febre<br />

fechada no meu ventre<br />

canto o teu grito<br />

e canto as tuas veias<br />

Canto o teu gemi<strong>do</strong><br />

teu hálito<br />

teus de<strong>do</strong>s<br />

Canto o teu corpo<br />

amor que me encandeia<br />

(343)<br />

Por sua vez, o sujeito lírico de Minha Senhora de Quê, “relutante em<br />

ass<strong>um</strong>ir a dádiva da propriedade-de-si, oportunamente prometida<br />

por maria teresa horta” (santos, “Prefácio” 10), dickinsonianamente<br />

evade tanto a afirmação <strong>do</strong> protagonismo <strong>do</strong> eu como a revelação<br />

<strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seu percurso referencial. ainda nas páginas de Mi<br />

nha Senhora de Mim, no magnífico poema intitula<strong>do</strong> precisamente<br />

“segre<strong>do</strong>”, assistimos outra vez à dinâmica de interlocução que se<br />

diria whitmaniana, na medida em que faz confluir o recato discursivo<br />

326


e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

de <strong>um</strong> segre<strong>do</strong> guarda<strong>do</strong> a <strong>do</strong>is (entre o corpo amoroso da mulher<br />

que fala no poema e o seu amante, ou – no caso de Whitman –<br />

entre o sujeito-poeta e os seus destinatários, que apesar de serem<br />

múltiplos não deixam de ser aborda<strong>do</strong>s individualmente na maior<br />

das intimidades) 182 com a divulgação muito pública de to<strong>do</strong>s os<br />

segre<strong>do</strong>s pelo eu supremamente indiscreto que, parecen<strong>do</strong> dizer<br />

tu<strong>do</strong>, ainda assim se compraz em fazer soltar a imaginação de quem<br />

lê para além <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> dizível:<br />

Não contes <strong>do</strong> meu<br />

vesti<strong>do</strong><br />

que tiro pela cabeça<br />

(...)<br />

Não contes <strong>do</strong> meu<br />

novelo<br />

nem da roca de fiar<br />

nem o que faço<br />

com eles<br />

a fim de te ouvir gritar<br />

(342-43)<br />

Por contraste, o eu lírico de Minha Senhora de Quê só raramente<br />

implica na sua “discreta arte” (21) <strong>um</strong> tu intimamente referenciável<br />

ao sujeito da enunciação: trata-se, quan<strong>do</strong> muito, de <strong>um</strong> “tu (sem<br />

descrições maiores)” que em “estátuas mortas” (o primeiro poema<br />

<strong>do</strong> vol<strong>um</strong>e em que aparece) apenas se manifesta sob a forma de <strong>um</strong><br />

pronome oblíquo (16):<br />

182 é a esta individualização público-privada <strong>do</strong>s destinatários <strong>do</strong>s versos de Whitman<br />

que responde, embeveci<strong>do</strong> e grato, o Campos da “saudação a Walt Whitman” ao exaltar no<br />

seu interlocutor o “grande democrata epidérmico” e “cantor da fraternidade feroz e terna<br />

com tu<strong>do</strong>” (Pessoa 1987, 270).<br />

327


o f o r m a t o m u l h e r<br />

que ler-te à luz da vela é bem<br />

diferente: o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> às escuras,<br />

tão triste, e nós alegremente em escritas<br />

e leituras de <strong>um</strong> esplen<strong>do</strong>r antigo.<br />

assim também o próprio eu da poeta, cuja autoconstituição<br />

enunciativa inicial no poema inaugural <strong>do</strong> vol<strong>um</strong>e, o já comenta<strong>do</strong><br />

“terra de ninguém” (11), como o seu demiurgo e força motor (“digo:<br />

espaço”) é precisamente aquilo que, em última análise, o poema<br />

serve para eliminar, ocupan<strong>do</strong> o seu lugar, como se descobre nos<br />

versos finais:<br />

digo espaço<br />

ou receita qualquer<br />

em vez de mim<br />

<strong>um</strong>a justaposição analítica de “terra de ninguém” com o que<br />

intertextualmente lhe corresponde, o poema inicial de Minha<br />

Senhora de Mim (“regresso”), revelaria, aliás, toda <strong>um</strong>a série de<br />

contrastes que corroboram a antítese-matriz constituída pelos<br />

títulos <strong>do</strong>s vol<strong>um</strong>es: o exílio permanente e ass<strong>um</strong>i<strong>do</strong> de “terra de<br />

ninguém” contra a nostalgia territorial de “regresso”; a identidade<br />

sincopada e permeável <strong>do</strong> sujeito de ana luísa amaral – “reduto”<br />

em que “definham / borboletas e sonhos” – contra a imersão<br />

fragmentadamente coerente <strong>do</strong> corpo no real em maria teresa horta<br />

(“o sol / os braços // a boca / o sabor // ou os meus ombros”); as<br />

respectivas prosódias, <strong>um</strong>a composta de sintagmas regularmente<br />

ritma<strong>do</strong>s, outra vária e entrecortada por encavalgamentos. e no<br />

entanto, parece-me talvez demasia<strong>do</strong> óbvio e empobrece<strong>do</strong>r res<strong>um</strong>ir<br />

a configuração dialógica <strong>do</strong> confronto amaral/horta à veia de<br />

interpretação agónica e antagónica – <strong>um</strong>a espécie de performance<br />

em poesia <strong>do</strong> fosso geracional feminista – que até aqui tenho esta<strong>do</strong><br />

a privilegiar. Pois se também o poema “minha senhora de quê” de<br />

ana luísa amaral, o primeiro da secção homónima <strong>do</strong> vol<strong>um</strong>e,<br />

328


e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

programaticamente se integra nesta veia, já alguns outros textos da<br />

mesma secção – sintomaticamente inserta no meio, e não no início,<br />

<strong>do</strong> livro – poderiam ser li<strong>do</strong>s como pastiches delica<strong>do</strong>s e harmonio-<br />

sos, exercícios de imitatio transtextual cujos impulsos subjacentes<br />

são reconhecimento e homenagem, e que operam <strong>um</strong>a espécie de<br />

fusão estilística e imagética entre as duas poéticas, aparentemente<br />

tão divergentes. assim, por exemplo, “que se abram os meus olhos”<br />

(50-51), “Navegações <strong>do</strong>entes” (47) ou “linguagens” (50):<br />

Pássaro nulo<br />

a configuração da tua ausência<br />

o corpo a preencher-se<br />

em ressalvas de me<strong>do</strong><br />

ao meu la<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>ìdamente longe<br />

dir-te-ia <strong>do</strong> sóli<strong>do</strong><br />

confronto que imagino<br />

ou <strong>do</strong> confronto de te poder ter<br />

em figura de estilo<br />

interessará reparar que é precisamente este último poema o<br />

escolhi<strong>do</strong> por maria irene ramalho de sousa santos para ilustrar<br />

<strong>um</strong> <strong>do</strong>s “grandes temas” que a poesia de ana luísa amaral aborda<br />

e que “na tradição literária ocidental se constituem fontes de sen-<br />

ti<strong>do</strong> poético”: no caso, “o amor; ou, talvez melhor, esse tema por<br />

excelência, quinta essência <strong>do</strong> lirismo português, que é a saudade <strong>do</strong><br />

amor” (“duplo posfácio” 98-99). embora a relação entre ana luísa<br />

amaral e maria teresa horta não seja, neste contexto particular,<br />

evocada pela crítica, note-se que a comunicação das duas poéticas no<br />

cenário lírico tão portuguesmente tradicional como o da “saudade <strong>do</strong><br />

amor” inscreve o seu diálogo no centro consagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> macrotexto<br />

histórico-literário nacional. O que por sua vez permite observar que<br />

também o diálogo com a tradição desenvolvi<strong>do</strong> em Minha Senhora<br />

329


o f o r m a t o m u l h e r<br />

de Mim não se esgota em propulsionar o movimento revolucionário<br />

de reivindicação feminista através de <strong>um</strong> confronto agónico com o<br />

cânone da escrita de autoria masculina, procuran<strong>do</strong> antes pôr em<br />

prática <strong>um</strong>a forma de dialogismo erotiza<strong>do</strong> e condiciona<strong>do</strong> pela he-<br />

rança da desigualdade que luce irigaray famosamente descreveria,<br />

em Ce sexe qui n’en est pas un, sob a legenda de “faire la noce avec<br />

les philosophes” (147). Poder-se-ia arriscar a afirmação de que, assim<br />

como aconteceu em grande medida com novas Cartas Portuguesas, o<br />

papel politicamente contestatário e historicamente data<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong><br />

a Minha Senhora de Mim viria a ocultar a textualidade subtil e nada<br />

linear <strong>do</strong>s seus versos, herança que parece repercutir às vezes nas<br />

apreciações críticas da relação entre o livro de maria teresa horta e<br />

o de ana luísa amaral. No já cita<strong>do</strong> “Prefácio, dez anos depois” de<br />

maria irene ramalho de sousa santos à segunda edição de Minha<br />

Senhora de Quê, a data da publicação de Minha Senhora de Mim é<br />

dada como 1974 (8): não será exagera<strong>do</strong> chamar esta gralha de<br />

sintomática, já que ela traduz tão sinteticamente a confluência<br />

<strong>do</strong> significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto com a sua função politicamente situada e<br />

inseparável da erupção revolucionária <strong>do</strong> 25 de abril. Porém, se é<br />

certo que o livro Minha Senhora de Mim mereceu plenamente ser<br />

encara<strong>do</strong> como o epítome da contestação radical da passividade e<br />

modéstia femininas enquanto alicerces da ideologia esta<strong>do</strong>-novista,<br />

já a sua relação para com a tradição literária nacional é tão afirmativa<br />

quanto contestatária, revitalizan<strong>do</strong> desconstrutivamente os textos e<br />

os gestos fundacionais através <strong>do</strong>s quais se opera o engendramento<br />

<strong>do</strong>s sujeitos, discursos e representações sexuadas no campo cultural<br />

português. a optar pelo diálogo intertextual com o lega<strong>do</strong> da<br />

<strong>do</strong>minação masculina – assim como o faria, a seguir, na companhia<br />

de maria isabel Barreno e maria Velho da Costa – maria teresa horta<br />

ousou enfrentar o risco que elizabeth l. Berg caracteriza da forma<br />

seguinte em relação a irigaray: “<strong>um</strong>a mulher escritora, a sustentar<br />

teoricamente que as mulheres funcionaram sempre, nos sistemas<br />

ocidentais de representação, enquanto suportes invisíveis das<br />

representações masculinas, é obrigada a ass<strong>um</strong>ir a função de mais<br />

330


e v á r i o s o s c a m i n h o s<br />

<strong>um</strong>a vez servir, ela própria, como suporte destas representações”<br />

(14). seguin<strong>do</strong> embora caminhos estética e politicamente distintos<br />

nas suas respectivas negociações deste risco e deste compromisso,<br />

maria teresa horta e ana luísa amaral encontram-se, enquanto<br />

mulheres/poetas, no território com<strong>um</strong> da prática artística feminista,<br />

território que partilham também com Florbela espanca, sophia de<br />

mello Breyner andresen, luiza Neto jorge, e adília lopes – e com<br />

tantas outras a quem não cheguei a dedicar atenção neste ensaio<br />

e cuja escrita tem sujeita<strong>do</strong> a <strong>um</strong>a experimentação e reformulação<br />

profunda os senti<strong>do</strong>s da autoria e da autoridade poética subjacentes<br />

ao campo literário português.<br />

331

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