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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O brasileiro é um torcedor atormentado, ainda atravessado pelo trauma

Torcedores brasileiros usam máscaras de Neymar, Richarlison e Pedro - Lionel Hahn/Getty Images
Torcedores brasileiros usam máscaras de Neymar, Richarlison e Pedro Imagem: Lionel Hahn/Getty Images

Colunista do UOL

26/11/2022 06h00

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Há uma dor que ainda não passa, uma mágoa silenciosa sob os novos gritos de gol. Nunca esqueceremos nossa maior derrota, e que nem seja preciso nomeá-la é a prova dessa condição insuperável. Sinto que agora ela se espalha por toda parte, como uma amargura sutil e subterrânea, difícil de disfarçar embora tão discreta, sinto que ela nos domina mais do que gostaríamos de confessar. Estamos aprendendo de novo a torcer, mas há nos novos gestos do torcedor alguma timidez, algum pudor, quando não um rancor e um cinismo exagerado.

Falemos de uma vez a palavra: a derrota de 2014 foi um trauma. Leio sobre o trauma em livros de psicanálise e encontro a definição que me faltava: foi um acontecimento bruto que nos desconcertou, que provocou sentimentos de impotência e desamparo e acabou suscitando em nós uma grave crise egóica. Há quem atribua os últimos convulsivos anos àquela tarde trágica de futebol, e não faltam argumentos para sustentar essa hipótese, mas nem é preciso ir tão longe. O futebol é grande o bastante para constituir seu próprio rol de afetos desmesurados, é grande o bastante para mover ânimos e humores, ódios e amores, alentos e desgraças.

O trauma, sigo por Freud, toma o sujeito de surpresa, sem qualquer defesa psíquica, sem nenhuma angústia que o prepare. Depois do trauma, é compreensível e comum que ele se veja atormentado, que ele queira antecipar seu sofrimento para nunca mais ser surpreendido. Eis então o torcedor brasileiro num de seus perfis habituais, incômodo na camisa amarela que tem servido a tão piores finalidades, observando jogadores que conhece mal, desconfiado do sentido geral da experiência, e sobretudo temeroso da emoção que o aguarda. A angústia o prepara, é o que ele crê sem palavras, e por isso se faz um torcedor angustiado.

Deixo de lado a psicanálise e passo à literatura, para tentar entender o que ainda escapa. Descubro uma crônica em que Antônio Maria conta de seu próprio trauma, o trauma que já foi de todo o país, a derrota de 1950, o agora inocente Maracanaço. Maria não teve um papel coadjuvante nessa história: locutor de rádio à época, coube a ele narrar o gol de Ghiggia, encontrar a palavra que transmitisse a imensidão da fatalidade, e só o que pôde fazer foi dizer "gol" amargamente e guardar um silêncio longo, até a entrada do anúncio. Perdeu o gosto pelo futebol naquele instante, em dois anos desistiu de ser locutor, passou a achar tediosa qualquer ida ao estádio.

Quando escreve sua crônica tão carregada de beleza e verdade, já se passaram dez anos. O Brasil já se refez e foi campeão da Copa de 1958, mas isso não parece lhe importar. O que importa é que no dia anterior ele esteve de novo no Maracanã, para um jogo muito menos importante, e voltou enfim a sentir uma alegria genuína, voltou a se encantar com o povo também encantado. "Livre e descuidado" ele percebeu o torcedor, nada mais que "um coração feliz e uma mente sem memória". Foi um dia de vitória em toda sua carga eufórica, um dia capaz de afastar o passado e mitigar o peso do trauma.

Mas não é aí que termina a crônica, e não é aí que termina o pensamento que podemos dedicar a toda essa história. Maria fala então de algo que nos concerne, fala de um sujeito solitário que resiste à alegria circundante, um sujeito que muito se assemelha ao nosso torcedor atormentado. Um sujeito tão ávido por uma nova glória que acaba por se antecipar também a um eventual fracasso futuro, "como se a alegria o apavorasse, ou como se o medo de perdê-la o apavorasse", e ele por isso se agarrasse como pode à velha tristeza. A tristeza o consola, a tristeza o conforta, lhe dando a certeza de que nada irá piorar, de que ele já conheceu a força máxima de uma dor.

E então voltamos à nossa dor, voltamos ao nosso trauma. A esta altura não é difícil dizer que conhecemos a derrota em sua força máxima, em suas consequências trágicas, e nesse ponto é evidente que se fundem dores esportivas e dores sociais, sanitárias, políticas, todas elas um mesmo trauma. E assim duas alternativas se abrem. Podemos ser sujeitos apegados à dor passada, fascinados pelo nosso próprio fracasso, temerosos de uma derrota qualquer que nos aguarde, desconfiados de todo o futuro. Ou podemos nos entregar à alegria que o presente nos permite, e nos encantar ainda uma vez com o encanto dos outros, dos livres e descuidados, dos que se permitem pelo tempo de um jogo ser corações felizes e mentes sem memória.