Uma afirmação assim a poesia como transformadora do mundo fará sorrir,sem dúvida,muitos. Não pensariam assim os gregos do Século de Ouro de Péricles,quando as vidas e os conhecimentos estavam conformados seguindo o ritmo dos versos da Ilíada e da Odisseia. Tampouco os guerreiros celtas e os seus sacerdotes druidas, que confiavam a elaboração dos seus “cânticos mágicos” às suas profetisas, mulheres inspiradas pela divindade. A vida da sua sociedade encontrava-se também sob o ritmo destes cantos, que na língua velada expressavam aos mortais ensinamentos que a razão não alcança a compreender.

O próprio Platão afirmaria pela boca de Sócrates que o verdadeiro poeta é porta–voz de um Deus. Que a sua alma é um instrumento musical, que Deus toca quando quer dar a sua mensagem aos homens. Que os sábios não podem refutar o canto de um poeta, pois encontra-se mais além dos seus conhecimentos. Recorda Platão que o poeta canta, mas não ensina, que o próprio não pode explicar o mágico e sublime conteúdo dos seus versos alados. Os primeiros livros da Humanidade são livros de poemas; de hinos aos Deuses, ou de Cantos da Sabedoria. Na Índia, o seu livro religioso “revelado” aos rishis (sábios poetas, semi-Deuses) os Vedas são uma colecção de hinos aos Deuses.

Na primitiva língua védica (depois no sânscrito), assim como no hebreu, e atrevemo-nos a afirmar, em todas as línguas das culturas iniciáticas, os seus textos têm sempre uma notação musical: quer dizer, as sílabas expressam um tom e um ritmo musical. Os seus livros não se lêem, cantam-se. São majestosas colecções de poemas sagrados. O Antigo Testamento é um livro de poemas, como o é o Poema Babilónico da Criação; ou os hinos que constituem o livro religioso dos escandinavos, o Kalevala. Todos os códices aztecas, assim como possivelmente os maias, “cantavam-se”. As imagens serviam de recordação para ladainhas muito longas, poesias que conservavam todo o saber da sua cultura. O Império Romano sustentou a sua “consciência nacional”nos versos da Eneida. E mais do que as declarações amorosas de infinitos amantes foi a doçura dos cantos de Ovídio ou de Catulo. O ardor guerreiro de povos como o espartano crescia e encontrava um leito religioso nos seus famosos péanes, os cantos marciais a Apolo.

Cícero explica nos seus tratados que quando o fogo do céu se apodera da palavra do orador aparece no seu discurso uma estrutura rítmica e musical; deixa de “falar”para começar a “cantar”; e é este encantamento que desperta paixões no auditório, que o faz “vibrar” ante as suas palavras. É natural pensar que num mundo tão prosaico como o que vivemos a verdadeira poesia se encontre banida.

“Não se faz um culto ao Belo, mas ao feio e vulgar. E assim dormem os versos na alma dos verdadeiros poetas, esperando um tempo novo e vivo que alente as suas criações”

Um mundo sem poetas é um mundo sem beleza, pois são os poetas quem fazem inteligível aos homens a formosura da Natureza. Confúcio, no seu esforço para fazer uma pedagogia integral, um ensinamento que faça dos homens príncipes e cavaleiros, e das mulheres, damas e princesas, faz uma recompilação dos melhores poemas da antiguidade clássica chinesa no chamado Livro dos Versos. Poemas de elevado conteúdo moral, destinados a despertarem nos seus discípulos a sensibilidade perante a natureza e o amor a tudo o que é nobre, justo e bom.

Quando o Homem sente explodir Deus no seu peito,não fala mas sim,canta.Quando as emoções são tão intensas como inexpressáveis, só a canção e a poesia (música e palavra) podem ser fiéis à exaltação. São cantos os ensinamentos do místico tibetano Milarepa, canções que transpõem as montanhas sempre nevadas dos Himalaias. Shakespeare, quando quer referir-se nas suas obras a mistérios demasiado profundos, faz com que as suas personagens cantem. Os exemplos poderiam multiplicar-se mais e mais, mas a tese é a mesma: em todas as culturas, a poesia, o canto (na Antiguidade canto e poesia são praticamente sinónimos) são as que configuram as consciências, as que despertam nos homens a sabedoria. Recordemos os belíssimos e tão eficazes ensinamentos de Confúcio: “Desperta-te com poesia, educa-te com música e funda o teu carácter no Li”. (Li é a lei de Harmonia que une o Céu e a Terra. Na moral é a Regra de Ouro de conduta,aque­la pela qual o homem actua de acordo com a natureza).

Mas, se efectivamente, a poesia tem um imenso poder educativo,como poderemos usá-lo. O primeiro, sem dúvida, é voltar às fontes da poesia. Ao partir a prosa não encontramos o verso. Ao fazer “rimar” os parágrafos não damos nascimento ao canto e magia da estrofe. Platão explica que os verdadeiros poetas – e devido à particular disposição da sua alma – entram em ressonância com os Arquétipos da Natureza. Ele compara-os a um íman que se impregna de força especial; e transmite-a “imitando” todos os que a ele se aproximam. O que recita a poesia volta a dar-lhe vida; mas antes deve participar e sentir essas ondulações mágicas que o seu criador cristalizou em versos. Todos os verdadeiros poetas são amados das Musas. Estas não são uma “imagem poética” mas, pelo contrário, são mais reais do que podemos imaginar. Conferem ao poeta um afluxo especial que vivifica as suas criações mentais através do ritmo. O ritmo ou encantamento é, pois, da essência da Musa. O ritmo é a alma da poesia. Os filósofos antigos explicavam que as Musas estavam intimamente relacionadas com os diferentes céus, ou com as diferentes órbitas planetárias; e com o reflexo destas na Alma do poeta. O mago renascentista Cornelio Agripa afirmaria que “As musas são as almas das esferas celestes” e o primeiro furor místico é o que provém das Musas, aqui desperta e tempera o espírito e diviniza-o, atraindo pelas coisas naturais, as coisas superiores. São as nove Camenas ou Cantoras, conduzidas por Apolo, o sol, a harmonia. Cada poeta seria “o filho” de uma “Musa”.

O professor Livraga no seu artigo “A verdadeira poesia” explica que “Os antigos concebiam que todo o Universo era harmónico, regido pelos números e proporções de ouro. Isto reflectiu-se na ordem dos sons, que alternados com silêncios, deram origem à música, ao canto e à poesia, todos eles expressão do Homem que tratou desde sempre de fazer surgir da sua alma as misteriosas sementes que os Deuses haviam depositado nela, para melhor e mais justa compreensão de si mesmo, da Natureza e de Deus. E como o modelo que podemos chamar “clássico” tem por característica juntar o Bom, o Belo e o Justo – ao dizer do divino Platão -, os ritmos e rimas foram utilizadas com o muito prático fim de ajudar à memória na lembrança de arcaicos ensinamentos”.

Giodano Bruno explica que “a poesia não nasce das regras, mas muito acidentalmente. São as regras que derivam da poesia; e por isso há tantos géneros e espécies de regras verdadeiras quantos géneros e espécies de poetas verdadeiros há.” Na sua obra “Os heróicos furores” perguntam­lhe: “Como serão então conhecidos os verdadeiros poetas?”, e responde: “pelo seu canto, basta que cantando deleitem ou sejam úteis, ou melhor sejam úteis e deleitem.” Continua explicando que as regras da poesia (por exemplo, as de Aristóteles) servem para aqueles que “por não ter musa própria quiseram fazer amor com a de outro”. Assim, certamente, as formas rítmicas da poesia, por exemplo, de Virgílio, são diferentes das de Vyasa, no Mahabharata; e sem dúvida ambas se ajustam à proporção de ouro que governa a natureza inteira. Cervantes explica no D. Quixote que a única ciência que supera a da Poesia é a Cavalaria Andante, e que a mais terrível maldição que pode experimentar uma inteligência mesquinha é “que as musas jamais atravessem os umbrais de suas casas”. Também recomenda cuidar da vaidade e do perigo de avaliar as próprias poesias. “Sendo poeta, podia ser famoso se se guia mais pelo parecer alheio do que pelo próprio parecer; porque não há pai nem mãe a quem os seus filhos pareçam feios, e nos que o são de entendimento corre mais este engano”*.

A palavra “poesia” vem do grego Poiesis, que significa “criação”.“Verso”é uma palavra latina que vem de vertere,e é “o que se move e gira,o que imprime ritmo e movimento”.Mas é que a verdadeira Poesia é uma criação que imita a Natureza e extrai dela o essencial. A imaginação do poeta converte-se num espelho da Natureza, alentada pela bondosa Musa. O poeta não mente quando diz à sua amada: “Poesia és tu”: senão que a sua alma percebe verdades que aos nossos olhos e entendimento estão vedadas. Por que a Poesia não faz girar a Roda do Mundo? Por que não desperta e transforma consciências? Simplesmente porque está banida. Não se faz um culto ao Belo, mas ao feio e vulgar. E assim dormem os versos na alma dos verdadeiros poetas, esperando um tempo novo e vivo que alente as suas criações. “A que chamamos verdadeira Poesia deve ser transcendental, facilmente compreensível e bela”. Deve elevar a Alma e não submergi-la nos pântanos das paixões animais. As imagens que utilizam devem ser simples; para que a alma siga facilmente o seu curso. Deve ser bela porque… “…a vida é bela e deve ser cantada com perfeição, e quem não possa dar esse contributo à sociedade em que vive, é melhor buscar outros caminhos de expressão.”. – Jorge Angel Livraga

Quando o homem deixar de “jogar” com o sagrado e voltar os olhos da sua alma para o Belo, voltarão os poetas, com os seus cantos sublimes a encher de luz a vida humana, voltará a Poesia a ser rainha da Vida e de novo esta comoverá os corações do homem.

*Evidentemente isto não é válido quando o poema é di­rectamente transcrito desde o mundo ideal, desde o reino­encantado-dos-sonhos-sempre-vivos, como tantas vezes acontecia com Florbela Espanca e, quase nos atrevemos a dizer, com qualquer verdadeiro poeta.

 

José Carlos Fernández

Director Nacional da Nova Acrópole.