ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM NOSSO CONTEXTO TECNOLÓGICO

ATUALIZAÇÃO DO CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM NOSSO CONTEXTO TECNOLÓGICO

INTRODUÇÃO

  Inicialmente precisamos entender o conceito, para que possamos enxergá-lo em sua essência. A visão original de reificação está vinculada ao intenso movimento de troca de mercadorias e a medida de valorização de cada uma dessas mercadorias, a partir de um conjunto de elementos relacionados à sua produção e distribuição, que em certa medida promoveu valorização extrema de umas em detrimento de outras.

Essa ideia foi incorporada às reflexões sobre as relações de trabalho, principalmente no conceito marxista de fetiche de mercadoria, no qual o trabalhador passa a ser visto e tratado como uma mercadoria. Por conta disso ele é reificado, ou seja, transformado em coisa, adquire um determinado valor e entra definitivamente no espaço das trocas sociais como objeto.

O sujeito-objeto deve ser entendido e visto a partir de agora, então, como alguém que ganha um novo status: ele é reificado, virou coisa.

 

VISÃO GERAL DO TEMA

  Três coisas quero refletir sobre o processo de reificação do ser humano em nosso contexto.

Inicialmente a ideia de resgate do conceito, abandonado por conta de determinadas intervenções políticas que iludiram os expectadores sociais, enganados por uma lógica de valorização do trabalhador, aquisição de direitos, etc. Em tese ele teria deixado de ser coisa, e reconquistado o status de sujeito. Essa balela política é muito comum e serve, também aqui, para lançar uma cortina de fumaça sobre a realidade.

A segunda coisa que quero refletir é a fonte atual de coisificação. Nesse sentido a desloco do mundo do trabalho e a coloco no mundo da tecnologia. Isso impõe repensar o conceito, deslocando-o de sua origem.

Finalmente quero pensar em paralelo a auto-reificação, quando a ação de transformar o sujeito em coisa é de autoria do próprio sujeito. Aqui também conseguimos identificar um viés tecnológico.

 

ATUALIZANDO O CONCEITO

  Como ressaltado, em sua gênese o conceito de reificação focou no caráter desumano das relações de trabalho, especialmente no tocante à desvalorização do trabalhador, que mergulhado em um mundo de enfrentamentos e lutas desiguais, se vê desafiado a trabalhar para sobreviver, se auto desgastar entre medos, angústias e dúvidas em relação à sua sobrevivência, e por fim se vender por preço irrisório para vencer a concorrência com seus pares.

Nesse sentido, o sujeito se transforma em mercadoria, ganha um valor, e passa a mensurar seu próprio valor como ser humano a partir do quanto vale no pregão do trabalho. Afinal, sua vida irá, por completo, se sujeitar às possibilidades permitidas por seus ganhos, cada vez menores quanto maior a concorrência que enfrenta e a consequente desvalorização de sua mão de obra.

Não obstante as relações de trabalho, que no interior do conceito de fetiche de mercadoria, ao qual a reificação está vinculado, consigam ludibriar a percepção das injustiças, contudo uma leitura histórica, e até mesmo atual, não deixa margem para pensar a questão sob outra perspectiva.

 Afinal, ainda hoje as condições de vida da massa trabalhadora são cada vez mais difíceis, e seu estado de coisificação continua oculto por condições ilusórias recorrentes que o mantém preso em seu status: plano de saúde (em grande parte co-participativo), vale-alimentação, vale-transporte, sistema de reajustes injustos e insuficientes, etc.

Necessário pensar também em questões mais práticas, como a constante mutação de preços de alimentos e serviços, contra reajustes totalmente irrisórios e insuficientes de seus ganhos que, ao contrário do aumento sistemático das mercadorias, geralmente têm data para ocorrer e são muito inferiores às perdas do período, desgastando mais ainda seu valor como trabalhador, que não consegue evoluir de forma equivalente em relação às despesas-ganhos.

O segundo aspecto da coisificação é a tecnologia, que absorve parte significativa da mão de obra, criando sistemas de trabalhos não plenamente claros em relação ao papel de cada um – empregador e empregado – no processo.

Muitas empresas aproveitam a atual demanda tecnológica permissiva em relação a novas condições possíveis na relação de trabalho e, desta forma, coisificam o empregado, transformando-o num prestador de serviços. Isso é muito comum em empresas que demandam entregas e alugam os serviços de prestadores para entregarem suas mercadorias, também empresas de mobilidade, entre outras, que transferem para o indivíduo grande parte da carga financeira de seus serviços, sem que eles tenham plena consciência disso.

Nesse sentido, uma série de custos agregados aos serviços são transferidos para esses novos trabalhadores que, desta forma, são coisificados, a partir de um novo tipo de relação sem a contrapartida de uma remuneração justa e/ou condições de trabalho adequadas, do ponto de vista das transferências invisíveis de custos.

Finalmente quero pensar em paralelo a auto-reificação, quando a ação de transformar o sujeito em coisa é de autoria do próprio sujeito. Aqui nos deslocamos do mundo do trabalho e vamos para o mundo das relações sociais.

Novamente aqui temos como pano de fundo a tecnologia, que permite uma nova leitura no processo de reificação, já que ela é a protagonista do processo de transformação do sujeito em coisa na medida em que lhe impõe hábitos destrutivos.

Muitos processos reificantes podem ser identificados, sendo a prisão aos aplicativos o maior deles, retirando do sujeito o direito de exercer papéis mais significativos e desafiadores em seu ambiente de trocas sociais. [Evidente que aqui temos que considerar a forma como o sujeito usa a tecnologia, pois a depender de como isso ocorre, ela pode estar potencializando sua cidadania].

 Mas não apenas isso, um conjunto de outros processos raptores de sua funcionalidade social podem ser identificados em maior ou menor escala, e isso irá depender de uma série de fatores como nível de escolaridade, classe social, idade, região, etc.

A medição entre fenômenos construtivos e destrutivos permite mensurar até que ponto o sujeito se auto-reifica ou não, e aqui temos que pensar o papel da tecnologia numa perspectiva mais prática e funcional, considerando sua administração invisível dos fenômenos interativos dos sujeitos em rede.

           Em minha tese de Doutorado, ainda que sob outra perspectiva, afirmo isto em relação à IA, ao analisar o intercâmbio dos internautas pela internet, e a ilusão da escolha em relação aos conteúdos que acessam:

 

“De fato, as ações dos internautas partem de escolhas condicionadas com base em uma seleção previamente definida pelas plataformas ou softwares que são utilizados em computadores e equivalentes, que se baseiam em inteligência artificial e técnicas fundamentadas em algoritmos que compreendem melhor nossos desejos e sentimentos que nós mesmos” (ROMA, ano, p. 57).

 

 Chamei a esse fenômeno de Racionalidade Tecnológica Motivada (RTM), por entender a dimensão em que a IA se antecipa aos sujeitos na promoção de escolhas que eles têm a ilusão que fazem.

Esse é um aspecto que precisa ser mais discutido e aprofundado, porém é fato que nossa vida social tem se tornado cada vez mais tecnológica, e nós temos sido cada vez menos o administrador dela, sendo esta função exercida cada vez mais pela Inteligência Artificial (IA), que parte do entendimento que faz, cada vez mais inteligente, de nossos hábitos diários, nossas escolhas, nossas preferências, que lhes são transferidos virtualmente, em segundo plano, sem que haja pleno conhecimento disso.

A partir daí são feitas escolhas, e a maioria vive a ilusão de que as escolhas são suas.

Assim, de posse total de um conhecimento sobre nós que chega a ser maior do que o que nós mesmos temos, a IA administra nossos hábitos, nos coisificando.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

  Não importa se o processo de reificação ocorria tendo como fonte as relações de trabalho, ou se ocorre em nosso atual contexto tendo como fonte a tecnologia, o fato é que em nossa sociedade continuam ativos e operantes processos bastante intensos de reificação, e precisamos nos atentar para o fato de que se trata de um fenômeno atual, recorrente, tecnológico, e hoje tem um acessório que, ironicamente, deveria ser quem o enfrenta: o próprio sujeito.

Prof. Dr. Paulo de Tarso Roma

Disponibilidade para aulas virtuais (produzo, edito e publico) / Disponibilidade para a produção de textos acadêmicos, artigos científicos, dissertações, teses ou qualquer outra produção literária.

To view or add a comment, sign in

Explore topics