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  • Demetrius Silva Matos

De grandes soldados a estorvos políticos: os Janízaros do Império Otomano

Desde que as sociedades humanas passaram a se organizar coletivamente, e em especial, quando constituíram Estados, surgiu a necessidade de grupos de indivíduos que pudessem tanto irem em busca de recursos em outras sociedades, por meio da agressão ou invasão a outros povos, de modo a lhes extrair recursos uteis aos quais não havia acesso, quanto a proteger sua sociedade original de igual agressão. Esses indivíduos eram os militares, que nos primórdios eram apenas um grupo qualquer de camponeses que pegavam em armas para o ataque ou para a defesa, os quais sempre gozavam de grande prestigio em suas sociedades, sendo seus líderes normalmente oriundos da elite.


Com o passar do tempo (mais exatamente na Idade Moderna), surgiu a necessidade dos militares se profissionalizarem, pois os camponeses recrutados por livre vontade estavam ficando defasados e indisciplinados, não correspondendo às expectativas. Um dos primeiros exércitos “profissionais” desde período foram os Janízaros do Império Otomano, cuja existência tinha um fundo tanto militar quanto sócio-político.


Criado no Séc XVIII pelo Sultão Murad I, o corpo de Janízaros (Yeni Çeri, em turco) tinha como “recrutamento” o imposto cobrado das famílias cristãs que habitavam o Império Otomano (desde os Balcãs até os áridos desertos do Egito e do Iraque), imposto esse chamado de devsirme.

Os cristãos com filhos tinham a obrigação de informar os dirigentes locais a quantidade de filhos homens de sua família. Em média, 1 em cada 5 meninos (em geral entre 6 e 7 anos) era levado pelas autoridades para ser “islamizado”. As localidades correspondentes às modernas Bósnia, Albânia e Bulgária eram onde o “imposto” era mais cobrado.


Esses meninos eram treinados e educados a serem totalmente leais ao Sultão e ao Corpo de Janízaros, que de agora em diante seriam sua nova família. Embora a maioria dos Janízaros tenham sido soldados a vida toda, alguns se destacavam por possuírem alguns “atributos” (como, por exemplo, uma inteligência acima da média). Os selecionados eram levados para serem treinados em Constantinopla, podendo atingir altos cargos, sendo que alguns até alcançaram o posto de Grão-vizir, uma espécie de Secretário-Geral cujo poder só estava abaixo do próprio Sultão.


Foram os Janízaros que iniciaram o ataque que culminou com a tomada de Constantinopla em 1453, bem como formação a elite do exército de Suleiman, o Magnífico (o mais famoso dos sultões otomanos, que conquistou a Hungria e chegou perto de tomar Viena).


Em sua idade de ouro, os Janízaros seguiam um rígido código de conduta, que embarcava: absoluta obediência a seus oficiais; abstinência de álcool; nada de barba; proibição de casamento; não ter qualquer outra profissão ou atividade que não fosse militar e aceitar a antiguidade como critério para promoção, dentre outras coisas.

Em troca de todas essas exigências, os Janízaros possuíam uma ótima remuneração e alimentação, bem como que a partir de 1451 foi criado o benefício do bônus de acessão, concedido sempre que um novo Sultão recebia a espada cerimonial (versão islâmica da coroação). Se os Sultões pudessem imaginar que esse bônus marcaria uma mudança radical nos soldados...


Os até então "Supersoldados otomanos" começaram a ter seu “amolecimento” em 1566, com a progressiva flexibilização de seu código de conduta. Neste ano, foi permitido, pela primeira vez, o casamento de um Janízaro, e, como consequência direta, também foi permitido que os filhos dos Janízaros pudessem pertencer ao corpo militar, rompendo com a tradição de que apenas as crianças cristãs seriam aceitas para mostrar a submissão delas ao Islã, bem como levando a não observância da disciplina rigorosa, já que, como muçulmanos, só deviam obediência absoluta a Alá.


A última cobrança do devsirme foi feita em 1676, sendo que nessa época já haviam relatos de pais muçulmanos que entregavam seus filhos a famílias cristãs para que eles pudessem ter a chance de pertencer a tão privilegiado grupo.

Estes fatos somados a novas liberdades (os Janízaros passaram a adquirir casas nas cidades em que estavam guarnecendo, ao invés de ficarem nos quarteis; praticavam o comercio em tempos de paz), levaram o corpo militar a se tornar extremamente ganancioso. Nessa situação, o bônus de acessão deixou de ser visto como uma recompensa e passou a ser uma forma de extorsão.


Em 1623, quando o Sultão Murad IV assumiu o trono, seu Grão-Vizir informou aos generais Janízaros que os cofres do Império estavam vazios, não podendo pagar o bônus prometido. Embora os generais tenham aceitado renunciar ao bônus naquela ocasião, seus subalternos não tiveram tal nobreza, se amotinando junto aos soldados mais baixos de modo a exigir seus Direitos. A solução foi derreter Ouro e Prata do Topkapi Sarayi (o palácio do Sultão) de modo a cunhar as moedas necessárias para pagar todo o corpo de Janízaros.


Neste momento, os Janízaros passaram a serem vistos como estorvos gananciosos e inconfiáveis, e o bom senso exigia sua dissolução. O problema era que os Janízaros estavam muito bem espalhados pelo Império (cidades como Constantinopla; Cairo e Damasco tinham grandes quarteis e guarnições de Janízaros), sendo impossível eliminar todos eles ao mesmo tempo (um total de 90 mil homens, segundo as estimativas).


Para além desses problemas de “logística”, as ameaças sempre presentes da Áustria e da Rússia no Ocidente, bem como da Pérsia no Oriente precisavam de soldados para a defesa. Se qualquer um desses três atacasse o Império Otomano, os Sultões necessitariam dos Janízaros (o maior e mais organizado corpo militar do Império) para protegê-lo. Por essas dificuldades externas e internas, os diversos Sultões foram obrigados a tolerar os abusos dos Janízaros, que ainda iriam durar muitos séculos.


Um novo desafio aos privilégios dos Janízaros apenas viria no fim do Séc XVIII, com o Sultão Selim III.

Em 1791, o Sultão Selim III, bastante ciente do total atraso do Império Otomano na área econômica; tecnológica e nos efetivos militares em comparação as potencias europeias (que até rendeu o carinhoso apelido de “Homem doente da Europa” dado pelo Czar Nicolau I da Rússia), decidiu criar um grande programa de reformas, de modo a superar esse total atraso de seu império. Esse programa, conhecido como “nova ordem” (Nizam-i Cedid em turco) foi auxiliado em grande medida pela recém-nascida República da França que, cercada por monarquias hostis a sua existência no continente europeu, foram buscar aliados nos distantes domínios otomanos, acreditando que uma eventual renovação Otomana nos Balcãs e no Mar Negro pudesse distrair a Áustria e a Rússia (inimigas da França revolucionária), enviando técnicos e militares as terras do Sultão para auxiliarem na implementação das reformas.


Entre as várias reformas previstas, estava a reforma militar, onde seria criado um novo efetivo militar que levava o mesmo nome da reforma (Nizam-i Cedid) que passariam a ser treinados segundo os manuais europeus, e também usariam uniformes comuns nos países da Europa. Essa reforma em particular assustou os Janízaros, que viam uma grande ameaça em relação aos seus status e privilégios. Lentamente, eles começaram a sabotar a reforma que estava criando seus “substitutos”.


Em 1805, Selim buscou realizar um recrutamento geral para seu exército de Nizam-i Cedid nas províncias do Império, medida que também buscava privar os inconfiáveis Janízaros de novos recrutas, assim como planejou transferir Janízaros para o novo corpo militar. A “velha ordem” não era estúpida, e logo trataram tanto de cortar os suprimentos dos Nizam-i Cedid quanto construir barreiras nas províncias para impedir o recrutamento. Com medo de uma eventual rebelião geral de Janízaros, Selim recuou, dando uma clara mostra de fraqueza que não foi desaproveitada pelos Janízaros alguns anos depois.


Em 1807, Selim enviou a maior parte do exército otomano para lutar contra os russos no Danúbio, deixando Constantinopla sem nenhuma tropa verdadeiramente leal. Simultaneamente, um grupo de Janízaros se amotinaram na fortaleza de Rumeli Kavak, na entrada do Bósforo (região que engloba os estreitos do Mar Negro) ao se recusarem a usar o “uniforme infiel”, ao terem sido ordenados por oficiais Nizam-i Cedid, chegando ao ponto de matar um desses oficiais e ameaçar marchar sobre a capital, ao qual estavam a apenas 30 quilômetros de distância.


Desesperado ao não ter tropas leais na capital, Selim cometeu o erro de não enviar tropas Nizam-i Cedid de outros lugares para combatê-los, mas sim evitar uma guerra civil ao ouvir as queixas dos Janízaros. Essa atitude vacilante deu tempo para que um grupo de 600 Janízaros fossem até a região da Gálata e provocassem distúrbios que rapidamente contagiaram Constantinopla. Milhares de Janízaros de outras regiões se juntaram a eles, bem como estudantes religiosos que acreditavam que as reformas levariam o Império a “perder sua alma” já que eram organizadas por “franceses infiéis”.


Tanto os Janízaros quanto os estudantes, foram também insuflados pela Ulema (uma espécie de guardiã dos costumes e das tradições do Império Otomano) que tampouco via com bons olhos a ocidentalização.

Pressionado por esta rebelião em larga escala, Selim tomou a pior decisão possível: anunciou que as unidades militares Nizam-i Cedid seriam desfeitas, bem como destituiu e executou ministros ocidentalizados que estavam realizando as reformas. A muralha que o Sultão buscou construir para se proteger revelou-se uma cortina de fumaça. Os revoltosos não confiavam em Selim, acreditando que bastava que suas tropas leais voltassem do Danúbio as reformas seriam retomadas, chegando ao ponto dos Janízaros aprisionarem o secretário pessoal do Sultão que planejava levar uma mensagem até essas tropas e o executaram, atirando sua cabeça na sala do trono diante de Selim, cuja reação dispensa comentários.


Como pode um sultão, cujos decretos e comportamento, transgridem os sagrados ensinamentos do Santo Corão, continuar reinando? ” Se perguntavam os revoltosos.

Não poderia ser diferente: o Sultão Selim III foi deposto em 29 de maio de 1807 por meio de um Fetva (decreto religioso) e em seu lugar foi nomeado Mustafa IV como novo Sultão. Os Janízaros ficaram satisfeitos pela remoção daquele Sultão que tanto ameaçava seus privilégios, mais ainda com o pagamento do bônus de acessão pelo novo Sultão.


Lamentavelmente para os Janízaros, eles não riram por último. Após algumas conspirações palacianas, o Sultão Mustafa IV foi substituído por Muhamud II. Esse novo Sultão compartilhava a visão de seu primo Selim de que o Império estava profundamente decadente e atrasado, e seriam necessárias muitas reformas para que voltasse a ter algum poder, mas ao contrário do seu primo foi bem mais inteligente. Em primeiro lugar, cortejou a Ulema, buscando evitar qualquer acusação de que não se orientava pelos sagrados desígnios do Alcorão, com ações tais como construir novas mesquitas e resgatar organizações islâmicas decadentes. Essas ações apaziguaram a Ulema, que agora mostrava total simpatia pelo Sultão, evitando assim que estimulassem rebeliões religiosas contra ele e suas futuras reformas.


Com a Ulema pacificada, o maior obstáculo a modernização passou a ser os Janízaros, que nesta época, eram pouco mais do que criminosos com privilégios.


As brigadas de incêndio das cidades otomanas ficavam sobre controle dos Janízaros, sendo que existiam relatos de que muitos incêndios eram feitos pelos próprios Janízaros para serem pagos para apagá-los.

Um claro exemplo da inutilidade dos Janízaros como força armada foi revelado em 1811, quando um destacamento deles se organizou para o que viria a ser sua última campanha contra inimigos estrangeiros: Dos 13 mil Janízaros que deixaram Constantinopla, 11.400 desertaram com apenas 50 quilômetros de marcha. Essa demonstração de indisciplina e decadência, foi o início da queda deste outrora respeitado grupo militar.


No inverno de 1825, Mahmud criou e fortaleceu corpos de artilharia em Constantinopla e nas fortalezas ao longo do Bósforo. Quando acreditou que estava suficientemente protegido, exigiu, em maio de 1826, que os Janízaros seguissem o manual europeu de treinamento, utilizassem uniformes ocidentais e adotassem os fuzis (em pleno Séc XIX, ainda existia grupos de Janízaros que usavam nada além de espadas).


A reação não demorou. Em uma noite, jovens oficiais Janízaros se reuniram para iniciar uma revolta, sendo seguidos por vários soldados que, para mostrar sinais de revolta, viraram seus caldeirões de sopa.

Ao contrário da revolta de 1807, essa nova revolta foi um fracasso por vários motivos: o Sultão Mahmud, que aprendeu dos erros de seu antecessor Selim, não estava no palácio na noite da revolta, e sim em outra localidade; havia muitos canhões espalhados pelo Bósforo que bloqueavam aos Janízaros a entrada até o Topkapi Sarayi (vulgo palácio) e a grande massa não apoiava os Janízaros, já que o Sultão mantinha boas relação com a Ulema e, por isso, esta não instigou o povo.

Apenas pobres artesões apoiavam os Janízaros, com medo de perder seu sustento com produtos artesanais se a ocidentalização continuasse. Na tarde do dia seguinte, os Janízaros já tinham voltado para seus quarteis, acovardados.

E então começou o expurgo. Os canhões do Sultão espalhados pelo Bósforo bombardearam os quarteis Janízaros por meia hora, matando centenas deles, os que fugiram foram presos e rapidamente executados. “O simples nome Janízaro, envolvido ou não em uma ação ostensiva, funcionava como sentença de morte”, relatou o embaixador britânico Stratford.


Segundo as estimativas, um total de 6.000 Janízaros pereceram na revolta e no expurgo que o sucedeu. Vendo o massacre no Bósforo, os Janízaros espalhados pelas demais províncias otomanas escolheram se submeter ao Sultão Mahmud II, e no dia 13 de junho de 1826, o corpo de Janízaros foi formalmente abolido, marcando uma vitória total para o Sultão, uma vez que aqueles criminosos disfarçados de soldados não mais voltariam a ameaçar seja ele ou qualquer outro Sultão que o sucedesse.


FONTE:

PALMER, Alan. Declínio e queda do Império Otomano. São Paulo: Globo, 2013.





Por DEMETRIUS SILVA MATOS

Bacharel em Direito pela UNDB

Pós Graduado em Ciências Políticas pela Uninter

Autor do livro: "Direito na Ditadura - o uso das leis e do direito durante a ditadura militar"

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