Estudos da Língua(gem)
Texto/excerto: re(con)textualização em
manuais escolares de português
Text/excerpts: re(con)textualization
in the portuguese textbooks
Teresa da ConCeição Mendes de CasTro*
Universidade do Minho
RESUMO
Nesta investigação, analisaremos textos de manuais de
Português, a fim de encontrar as estratégias discursivas utilizadas
na seleção e organização dos excertos presentes nos manuais.
Entendendo o texto como uma unidade configuracional,
interessa-nos a organização textual dos excertos para perceber
se os nexos coesivos que conferem unidade e autonomia ao
texto são “quebrados” no excerto. Daremos especial relevo aos
processos de recontextualização e retextualização que tornam
possível ao leitor a apreensão do(s) sentido(s) do excerto,
uma vez que entendemos os textos/discursos como um todo
semântico-pragmático.
PALAVRAS-CHAVE: Texto. Excerto. Recontextualização.
Retextualização.
*Sobre a autora ver página 189.
Estudos da Língua(gem) Vitória da Conquista
v. 9, n. 1
p. 165-189
janeiro de 2011
166
Teresa da Conceição Mendes de Castro
ABSTRACT
In this investigation, we will analyze texts from Portuguese textbooks, in
order to find the discourse strategies used whilst selecting and organizing
the excerpts one can find in textbooks. Admitting the text/discourse
as a configurational unit, we will look into the textual organization of
the excerpts so as to understand if the cohesive links that give unit and
autonomy to the text are ‘broken’ in the excerpt. Special relevance will be
given to the recontextualization and retextualization that allow the reader
to grasp the meaning(s) of the excerpt, because we consider the texts/
discourses as semantic-pragmatic units.
KEYWORDS: Text. Excerpt. Recontextualization. Retextualization.
1 Enquadramento teórico-metodológico
Enquadramos a presente investigação na Análise (Linguística)
do Discurso, tendo como referência principal a teoria de Adam (1992)
que entende os textos como unidades heterogéneas, formados por
diferentes planos organizacionais. Interessam-nos os planos da textura
frásica e transfrásica e da organização composicional. Neste modelo de
texto, entendido como sucessão não aleatória de frases, que concorrem
para um significado global, importa ter em conta toda a organização
pragmática do discurso. Sendo nosso objectivo perceber de que forma
os excertos de textos presentes em manuais escolares de Português
utilizados em Portugal constituem uma unidade textual, possibilitando
ao leitor a apreensão do sentido criado por este novo texto, torna-se
imprescindível retomar dois conceitos fundamentais na Linguística do
Texto: coesão e coerência. O primeiro torna-se especialmente relevante
na articulação textual e foi contemplado por Adam (1992) no plano da
textura e desenvolvido por Halliday e Hasan (1990), que o apresentam
como um conceito semântico, realizado por estruturas léxico-gramaticais.
Segundo os autores, um texto é coerente se é adequado ao contexto e
cotexto.
Um conceito igualmente importante é o de contexto, que não é
algo estático, algo pressuposto, exterior e anterior ao texto. É uma parte
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
167
da construção do sentido no discurso, segundo Kerbrat-Orecchioni
(2005). Os interlocutores adquirem importância no processo de
construção discursiva, e o termo “contexto” remete para o ambiente
verbal e a situação de comunicação, uma vez que a “apropriação
contextual excede a noção (…) de contexto linguístico” (COUTINHO,
2002, p. 269). Para que um texto faça sentido ao leitor, é necessário
apelar a processos que permitam a sua interpretação – processos de
contextualização. Nestes processos intervêm os interlocutores e a sua
enciclopédia de saberes, o espaço da enunciação e o tempo da enunciação.
Adam (1992), contestando as tipologias tradicionais e a
homogeneidade que pressupõem nos textos, mostra que estes são
heterogéneos e constituídos por sequências diferentes, agrupadas em
cinco tipos prototípicos que se realizam de formas distintas em cada
texto: narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa e dialogal. O conto,
género de texto mais frequente no nosso corpus, tem como sequência
prototípica a sequência narrativa, formada por cinco proposições:
situação inicial, nó (complicação), acção/avaliação, desenlace e situação
final. O estudo destas sequências permitirá perceber as estruturas textuais,
encarando os textos como objectos complexos.
Contrariamente à perspectiva que entende o “excerto” como
EXTRACTO, FRAGMENTO, TRECHO (Dicionário da Língua
Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa),
consideramos que este é um novo texto, desde logo pelo processo de
recontextualização a que é submetido (no espaço pedagógico-didáctico).
Ganha importância o texto entendido como uma unidade de relações
sequenciais e a textualização é suportada pelos mecanismos que
permitem a progressão textual e a produção de sentido que reforça a
criação de um novo universo discursivo.
Teresa da Conceição Mendes de Castro
168
2 Delimitação e descrição do corpus
O nosso corpus é constituído por 34 textos/excertos retirados dos
seguintes manuais escolares do 4.º ano de escolaridade1:
PEREIRA, C. et al. Pasta Mágica: língua portuguesa 4º ano. Porto:
Areal, 2006. (Doravante Pasta Mágica)
ROCHA, A. et al. Amiguinhos: língua portuguesa 4º ano. Lisboa:
Texto, 2006. (Doravante Amiguinhos)
SILVA, C. V.; MONTEIRO, M. L. Júnior: língua portuguesa 4º
ano. Lisboa: Texto, 2006. (Doravante Júnior)
Escolhemos os manuais escolares de Português para a selecção do
nosso corpus, por entendermos que são um material de larga utilização
por parte dos elementos que constituem a comunidade educativa e
optamos pelos manuais do 4.º ano de escolaridade por dois motivos: em
primeiro lugar, porque é neste nível que os textos têm maior dimensão;
em segundo lugar, porque este ano de escolaridade representa o fim
do primeiro ciclo da escolaridade obrigatória em Portugal e a transição
para uma nova etapa no percurso escolar dos estudantes2.
3 Os manuais escolares
Não consideramos os manuais um material indispensável, mas sim um
entre outros. No entanto, concordamos com Sousa (1999a, p. 508) quando
refere que, “em contexto escolar, a prática pedagógica é essencialmente
regulada por um objecto de estatuto ‘privilegiado’: o manual escolar”.
1
Estes manuais foram utilizados, diariamente, por um universo de 1434 alunos do 4.º ano de
escolaridade no ano letivo 2006/2007. Uma vez que, desde então, ainda não voltaram a ser
escolhidos novos manuais de Língua Portuguesa para o 4.º ano de escolaridade, estes continuam
a ser utilizados até ao presente ano letivo 2010/2011, inclusive, nas referidas escolas.
2
É de opinião geral que o manual não deve ser o único, nem o principal material pedagógico
utilizado na sala de aula. “De facto, os manuais escolares não passam de instrumentos de apoio ao
processo de ensino-aprendizagem, que professores e alunos podem e devem usar com critério e,
se necessário, com distanciamento crítico” (RAMOS, 2009, p. 339). No entanto, como Morgado
(2004, p. 38), consideramos que “os manuais contêm, essencialmente, a informação de que os
alunos necessitam para satisfazerem os requisitos mínimos exigidos e serem aprovados numa
dada disciplina”.
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
169
Mais do que qualquer outro profissional, todo professor, ao
longo da sua carreira, muito ouviu falar e debater sobre os manuais
escolares. Uns consideram-nos imprescindíveis, outros consideram-nos
supérfluos: há, ainda, os que gostariam de os banir de vez e os restantes
não os adoram nem os desprezam, mas utilizam-nos com conta, peso e
medida, atendendo às necessidades pedagógicas dos Projectos da Escola
em que leccionam e às dos seus alunos. Seja qual for a posição que os
profissionais da educação assumam perante os manuais escolares, estes
continuam a ser os materiais pedagógicos mais utilizados diariamente
na esmagadora maioria das escolas portuguesas.
Mas, este não é um debate apenas ao nível de Portugal. Apple
(2002, p. 65), que muito se tem debruçado sobre o assunto, refere que,
“quer se queira, quer não, na maioria das escolas americanas, não se
define o currículo por disciplinas nem por programas sugeridos, mas
sim através de um determinado artefacto – o manual estandardizado.”
Na verdade, quer o professor pretenda ou não trabalhar com os
manuais, goste ou não daqueles que foram escolhidos para a sua escola,
vê-se “obrigado” a trabalhar com eles e a dar-lhes importância. Como
afirma Brito (199, p. 141), “a adopção do manual não é tarefa fácil, nem
pacífica para os professores, entre os quais nem sempre há consenso, e
operam-se cedências em torno do ‘controverso-eleito’.”
Por tudo o que atrás se disse, fica clara a importância que
atribuímos aos textos presentes nos manuais de português, uma vez
que são aqueles com os quais os alunos mais contatarão no decorrer
da sua escolaridade. Em suma, “directa ou indirectamente, os manuais
escolares determinam muito do que se passa no interior de cada sala
de aula” (MORGADO, 2004, p. 45) e o que se passa junto das famílias,
no pouco tempo que os pais e/ou encarregados de educação passam
junto das crianças, acompanhando os seus progressos educativos, quer
seja através dos trabalhos de casa ou outro tipo de actividade educativa.
Sobre a seleção de textos presentes nos manuais, consideramos
que ela não pode ser vista de forma isolada, “por meio dela apresentamse a alunos e professores não só modelos de linguagem como também
170
Teresa da Conceição Mendes de Castro
modelos de mundo” (SOUSA, 1999b, p. 498). Como a autora, pensamos
que “o uso dos textos em contexto pedagógico potencia a sua função
pedagógica original. O facto de ter sido seleccionado para o manual
confere-lhe o estatuto e o poder de um exemplo” (p. 500). Desta forma,
só poderemos entender os textos presentes nos manuais como sendo
textos transformados.
4 A (re)construção dos textos/excertos
Confirmamos e desenvolvemos as conclusões já apontadas por
Sousa (1999b), que dá conta de alguns mecanismos que considera como
meios de recontextualização. Essas transformações, motivadas pela
recontextualização e retextualização do excerto no manual, dão origem
a novos textos, que não deixam, no entanto, de reenviar ao texto-origem.
Por essa razão, os referimos como textos/excertos.
Seguidamente, daremos conta das alterações sofridas pelos textos/
excertos em relação aos textos originais. Importa referir que nenhuma
das alterações estudadas por nós se encontra assinalada nos manuais
em estudo. Embora os manuais contenham textos com a indicação de
serem adaptados ou com supressões, apenas seleccionámos os textos
que não continham essas indicações.
Passaremos a analisar os textos/excertos, atendendo à sua
localização dentro do texto-origem. Procuraremos encontrar as marcas
linguísticas que mostram que o “recorte” de um excerto, quer ele sofra
alterações posteriores quer não, em relação ao texto original, é, só por
si, promotor de recontextualização e retextualização.
4.1 Recontextualização
Ao retirarmos um excerto de um texto mais extenso, colocando-o
num outro lugar, num outro contexto, estamos a recontextualizálo. Assim, quando um excerto de um determinado texto é inserido
num manual escolar, ele passa a fazer parte de uma outra situação
enunciativa, logo, passa a pertencer ao domínio de um outro contexto,
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
171
um contexto pedagógico-didático. O suporte do texto/excerto é
alterado (pela inclusão no manual) e, por isso, passa a estar integrado
num novo género. Não deixa de pertencer ao género que lhe deu origem
(literário, por exemplo), mas passa a fazer parte, também, do género
didático. Por outro lado, selecciona um novo destinatário, criado pela
inserção do texto/excerto num manual escolar. Enquanto um conto
infantil (por exemplo) é destinado a um vasto e heterogéneo público,
o texto de um manual escolar destina-se a um público muito mais
restrito e específico, o público em idade escolar (mais precisamente, de
determinado ano de escolaridade). Desta forma, tanto o público-alvo,
como o suporte do texto são alterados, abrindo caminhos para novas
leituras, novas interpretações. São vários os elementos do contexto
que sofrem alterações nesta mudança: altera-se o espaço interlocutivo,
os interlocutores, o género. Afinal, “ler e escrever na aula/escola, em
determinadas situações, produz e induz um conceito diferente de ler e
escrever em outras situações sociais’ (PEREIRA, 2008, p. 8).
Ao ser criado um novo contexto, o texto/excerto será entendido
pelo leitor por um outro prisma, a sua leitura não será a mesma que seria
se a criança se deparasse com o texto original. Na sua função de livro
de leitura, o manual de português apresenta “os textos que em contexto
pedagógico se reconhecem como válidos e (…), através das actividades
que propõe, formas de atenção particulares” (SOUSA, 1999b, p. 495).
Desta forma, numa primeira análise, podemos dizer que o texto/excerto
é “transformado” num outro texto, ou seja, é recontextualizado. O texto
deixa de fazer parte de uma obra mais longa e passa a constituir, só por si,
uma nova unidade configuracional. Ao fazer parte de um manual, passa
a pertencer ao género didáctico que possui objectivos muito próprios
que diferem, em larga medida, dos objetivos da obra que lhe deu origem.
Do mesmo modo, a instância de locução é alterada. A par do
locutor que escreveu o texto, passa a coexistir o locutor que concebeu o
manual, que é responsável por sua organização, disposição gráfica, escolha
de determinados textos em detrimento de outros, escolha das actividades
propostas etc. O texto passa a ser um “enunciado” encaixado num outro
172
Teresa da Conceição Mendes de Castro
“enunciado” – o do manual escolar –, num processo que se aproxima
do discurso relatado, uma vez que é enunciação dentro de enunciação.
4. 2 Os elementos paratextuais
Na construção do sentido do texto/excerto, as ilustrações
assumem especial importância, uma vez que são um dos meios de o
contextualizar. Muitas vezes, são as ilustrações que primeiro prendem
a atenção dos alunos e não é raro acontecer que o tema do texto seja
entendido após a observação da ilustração, antes mesmo da leitura do
texto. As ilustrações criam expectativas a confirmar no texto e também
direccionam a leitura. Embora as ilustrações não constituam o nosso
objecto de estudo, consideramos que todos os elementos paratextuais
são importantes para a construção do sentido de um texto. Assim,
apresentaremos um exemplo de como esses elementos paratextuais
ajudam a construir o sentido do texto. Afinal, as ilustrações são
também uma forma importante de recontextualização e, portanto, de
retextualização.
No manual Júnior, p. 56, encontramos uma ilustração utilizada
para caracterizar a personagem “Pedro Raposo”, que difere muito da
ilustração que acompanha o texto original. Enquanto no texto original
o “Pedro Raposo” é apresentado na ilustração como sendo uma
raposa (indicado até pelo nome), no manual a ilustração sugere que
ele seja uma criança, estratégia de aproximação ao público destinatário.
Embora “Raposo” possa sugerir «raposa», a verdade é que também
pode ser considerado nome de pessoa, pelo que a estratégia foi bem
conseguida. Na verdade, verifica-se que a leitura do texto/excerto refere
a personagem como tratando-se de um ser humano: «Pedro Raposo vai
tirando fotografias e vai apreciando a paisagem» (linha 2).
4. 3. Estatuto e funções do título
Vigner (1980) refere que os títulos, mesmo sendo textos de
pequena dimensão, permitem numerosas manipulações sintáticas que
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
173
originam numerosos efeitos semânticos e considera o título um «microtexto», de forma e dimensão variáveis. O título possui uma relação de
dependência/independência com o texto e, como refere Silva (1999),
pode ser considerado um texto, em todos os níveis de textualidade,
caracterizado por uma certa autonomia e dependência em relação ao
texto que anuncia.
O título, ao encabeçar o texto (em lugar de destaque), atrai a
atenção do leitor, tornando-se no primeiro promotor do processo de
comunicação entre locutor e alocutário. Por isso, pode funcionar como
um estímulo ou um desincentivo à leitura do texto que o segue. O título
remete o leitor para uma leitura no domínio de determinado tipo de
texto, o que vai levar a uma “contextualização” do próprio texto. Por
exemplo, um título como O Circo da Lua não pode deixar de remeter
o leitor para o mundo do imaginário, do “Era uma vez”, no qual se
inscrevem os textos literários.
O título aparece com uma mancha gráfica de maior destaque,
quer pela sua forma gráfica, quer pelo seu tamanho, quer pelo espaço
físico que o separa do resto do texto com o objetivo de lhe conferir
maior realce.
É de salientar que apenas sete títulos dos 31 que constituem
as obras de origem se mantêm inalterados. Este aspecto é de extrema
importância, na medida em que a alteração ou omissão do título original
funciona como meio facilitador da recontextualização e retextualização,
uma vez que o título é o elemento que mais atrai a atenção do leitor.
Como argumenta Peñalver-Vicea (2001, p. 797), “le titre se présente
comme la phrase-clé d’une histoire que nous ne connaissons pas
encore”. Desta forma, o título leva o leitor a fazer um apelo aos
seus conhecimentos acumulados, às suas experiências com o mundo,
nomeadamente com outros textos/discursos (interdiscursividade) e a
estabelecer relações cognitivas que lhe permitam inferir o que o espera
na leitura que se seguirá ao título.
A ausência de título no texto/excerto deixa livre o caminho para
uma interpretação mais pessoal, e mais incerta também, por parte do
174
Teresa da Conceição Mendes de Castro
alocutário, porque o título é, como diz Van Dijk (2005), um guia na
procura do tema do texto. Por isso, a ausência de título é, de algum
modo, um motivo de “incerteza” para a expectativa do alocutário. O
título é o “cartão de identidade” dos textos e tem a função não só de
apresentar o texto (quanto ao género e/ou conteúdo), mas também de
condicionar e direccionar a leitura segundo determinada perspectiva.
Na nossa análise, encontramos títulos que se mantêm iguais ao
original, outros que se apresentam diferentes (estes últimos constituem
a maioria) e textos/excertos que se apresentam sem título. De seguida,
daremos um exemplo de um título que foi alterado em relação ao original.
O título Madeira, Arquipélago Luso (manual Júnior, p. 14) foi alterado
em relação ao subtítulo original (A Colonização da Madeira). O título
escolhido só de forma secundária se atualiza no texto. Embora o lexema
“arquipélago” justifique a presença no texto/excerto de “as ilhas”, o
título cria expectativas que não se concretizam. Este aponta para uma
descrição das ilhas da Madeira e Porto Santo e o leitor encontra um
texto sobre a colonização dessas ilhas, introduzida logo nas primeiras
linhas do texto apresentado pelo manual:
“Sendo as ilhas desertas (…) resolveu que o melhor era povoálas” (linhas 1-3).
Uma das razões que podem justificar esta tomada de posição das
autoras do manual reside no fato de ser possível a intenção de introduzir
a noção de «arquipélago» e «luso», uma vez que os textos do livro de
Português estão muito ligados aos assuntos abordados pelo livro de
Estudo do Meio.
A titulação de cada texto é um ato fundamental para a criação da
unidade textual, mas é, também, uma atividade nem sempre conseguida.
A decisão de manter o título original pode ser uma condição promotora
de incompreensão textual. Quando tal ocorre (como em O Circo da Lua,
manual Amiguinhos, p. 70), o título torna-se fator de incoerência ou
gerador de expectativas não inteiramente cumpridas.
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
175
O título O Circo da Lua não tem “continuidade” no corpo do
texto/excerto. É que as referências ao circo não aparecem no texto/
excerto, só aparecem na narrativa original (O Circo da Lua):
“e foi assim que nasceram os palhaços” (p. 20);
“e foi assim que nasceram os acrobatas” (p. 23);
“e foi assim que nasceram os trapezistas” (p. 24);
“e nasceu o equilibrista” (p. 27);
“e foi assim que nasceu o ilusionista” (p. 28);
“e foi assim que nasceram os malabaristas” (p. 35);
“e foi assim que nasceu o circo” (p. 43).
Ou seja, este título aponta para pistas de interpretação que não se
concretizam. Assim, torna-se fator de incoerência, uma vez que o leitorutilizador do manual não encontra no texto nenhuma referência ao circo.
4. 4 Os excertos como “outros” textos
Para a análise dos textos/excertos, teremos em consideração
os marcadores linguísticos que os tornam (in)dependentes dos textosorigem. Essa independência e autonomia nem sempre são conseguidas
com o mesmo grau de sucesso. Organizaremos os textos/excertos
segundo as características que os atravessam de forma transversal,
embora tenhamos consciência que essa divisão não poderá ser
considerada exclusiva, nem estanque.
Desta forma, a análise encontra-se organizada nos seguintes
subcapítulos: Textos/excertos assumidos como incompletos; Textos/
excertos com estrutura textual incompleta; Textos/excertos com
estrutura textual completa geradores de novos sentidos e Outros casos.
4. 4. 1 Textos/excertos assumidos como incompletos
Todos os textos/excertos mostram, de forma muito clara, a
construção de novos sentidos, a partir de mecanismos linguísticos e
176
Teresa da Conceição Mendes de Castro
textuais diversos. De seguida, daremos como exemplo um dos textos
que se assumem como incompletos pela utilização de reticências. O
texto, A Carta do Nicolau (manual Júnior, p. 110), possui no título a
presença do nome próprio que promove uma aproximação entre
locutor e alocutário, enquanto pressupõe a partilha de conhecimentos
relativamente à identidade do “Nicolau”. No entanto, no texto/excerto
apenas é possível identificá-lo como o amigo de Pedro. No texto-origem,
o “Nicolau” é apresentado ao leitor nas primeiras páginas do texto e
acompanha toda a narrativa como o amigo mais próximo de Pedro, a
personagem a quem a carta é dirigida.
Para reforçar a coesão e a coerência, as autoras do manual
colocaram o texto/excerto com uma mancha gráfica imitando a escrita
manual, numa evidente aproximação à criança/leitora e ao tipo de texto
– o género epistolar. Assim, o texto/excerto apresenta uma sequência de
um texto dialogado, onde encaixa uma carta, com sequências de abertura
e fechamento próprias do género epistolar: há uma saudação inicial,
dirigida a um receptor identificado, e um fechamento de despedida, com
identificação do emissor. O texto/excerto inicia-se em discurso directo:
“Pedro, tens aqui uma carta! – avisou minha irmã Rosália” (linha 1).
Este segmento identifica o destinatário da carta com o narrador.
Ao mesmo tempo, reforça a identificação do tipo de texto que se segue.
A recontextualização operada no texto/excerto ajuda a modificar o
universo discursivo e reduz o conhecimento a dois amigos: Pedro e
Nicolau. Ainda assim, o leitor fica sem saber se Pedro é um adulto ou
uma criança, uma vez que essa informação só é fornecida, de forma
mais ou menos explícita, no texto original, antes desta sequência textual:
“Só depois do jantar é que começo a fazer os deveres” (p. 16);
“(…) senti-me o mais infeliz de todos os rapazes do mundo” (p. 26);
“Lá vai o rapaz com a ciência às costas” (p. 35);
“Tenho o sexto ano de escolaridade” (p. 92).
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
177
Após o discurso directo que dá início ao texto/excerto, as autoras
omitiram uma seção do texto original. Para assinalarem a supressão de
texto, introduzem “(…)”, esquecendo-se de mencionar a supressão
na indicação bibliográfica que consta do fim da página do manual.
No entanto, o facto de assinalarem a ausência de texto significa que
assumem esta produção textual como incompleta e convocam um texto
completo, o texto-origem, de que este é apenas “uma parte”. Quanto
ao texto suprimido, nele encontramos referência ao suporte onde o
Nicolau escreveu a carta:
“E fiquei surpreendido ao ver, dentro do envelope, guardanapos
de papel escritos de ponta a ponta” (p. 109).
Esta informação volta a ser atualizada no texto/excerto,
contribuindo para a criação de uma unidade textual:
“Deves estar admirado por eu mandar estes guardanapos, mas
eu não tinha outro papel à mão” (linhas 7 e 8);
“Mando-te todos os guardanapos que escrevi” (linhas 11 e 12).
Um outro fato importante é a ocorrência da expressão:
“Mando-te todos os guardanapos que escrevi, e acho que vais
entender como tem sido a minha vida fora do Pragal” (linhas 11-13).
Esta afirmação amplia o sentido do texto e torna-o coerente. O
saber enciclopédico do leitor preenche as lacunas deixadas pela falta de
informação. Já no início da carta se faz referência a “estes guardanapos”
e, no final, não se encontra texto que justifique mais do que um
guardanapo. Por outro lado, não aparece a referência à vida do Nicolau
no ou fora do Pragal. É que esses dados só aparecem no texto original,
em que o Nicolau conta como decorrem os seus dias, utilizando, para
isso, vários guardanapos de papel que tem à mão no café para onde
fora trabalhar em “Vila Nova de Gaia” (p. 104), longe da aldeia onde
os dois moravam – o Pragal:
178
Teresa da Conceição Mendes de Castro
“Apesar de vivermos num terceiro andar, da rua vinha o barulho
constante dos carros e autocarros, que passavam, paravam,
chiavam, voltavam a arrancar, e das motorizadas sem cano de
escape, enfim, uma zoeirada tremenda!” (p. 111);
“Vi o rio Douro e gente e trânsito que nunca mais acabava” (p.
114);
“Tens aqui trabalhinho para muitos dias! – disse o meu patrão.
Eu nem queria acreditar! À minha frente estava uma pilha de
garrafas amontoadas a esmo.”
- Lava-as muito bem, as partidas ou com defeito põem-nas para
o lado, e vê lá se te despachas!” (pp. 120-121);
“Espero que as garrafas fiquem todas lavadas para a semana.
Depois não sei o que me espera. Oxalá não seja ter de lavar
mais garrafas noutro sítio qualquer…” (p. 122);
“Às vezes, fico assim meio esquisito. Acho que se visse uma
cabra ou uma ovelha, a tristeza desaparecia” (idem).
Faremos, ainda, nova referência à expressão utilizada na abertura
da carta “Alecrim aos molhos”. A ambiguidade desta referência (que
convoca uma cantiga popular: “Alecrim, Alecrim aos molhos”), não pode
ser desfeita. O texto-origem permite uma interpretação mais alargada e
mais rica. Pedro, a personagem principal, tem como apelido “Alecrim”:
“Pedro Alecrim, o meu nome» (p. 33);
“Sou eu, o Pedro Alecrim» (p. 41).
A expressão «Alecrim aos molhos» refere-se a uma brincadeira
que o Nicolau gostava de fazer com o amigo e que este detestava:
“(…) ó Alecrim aos molhos” (p. 34);
“Alecrim, alecrim aos molhos” (p. 43);
“Hás-de ser sempre o mesmo Alecrim aos molhos” (p. 103)
“Detesto que me chamem Alecrim aos molhos” (p. 34).
Do mesmo tipo de brincadeira surge a pergunta presente na carta:
“É verdade que já estás mais crescido?” (p. 110).
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
179
Esta pergunta pressupõe referências anteriores a esta questão
(a expressão “é verdade que…” aponta para a configuração de algo
já enunciado anteriormente) e reenvia para uma situação anterior,
apresentada no texto original. Também esta é uma forma constante
de Nicolau arreliar o amigo, pois sabe que ele detesta que lhe lembrem
que é pequeno:
“(…) vim ver se já tinhas crescido mais um bocadinho” (p. 104);
“Já estou farto de saber que sou pequeno, mas também não
é preciso estarem sempre a dizer essa verdade, infelizmente”
(idem).
Finalmente, atente-se na sequência de encerramento, que utiliza
uma fórmula de despedida informal:
“Adeusinho e boas festas” (linha 17).
Esta ganha, no texto-origem, outra dimensão, na medida em que,
também ela, é uma atualização da informação contida antes da chegada
a este ponto da narrativa:
“Adeusinho e boas festas, era o que sempre dizia o Luís quando
saía do autocarro” (p. 107).
Logo, a utilização desta forma de despedida tem um valor
sentimental, com sabor a saudade, que a criança/leitora não perceberá.
Se atendermos à enciclopédia de saberes de uma criança em idade escolar,
facilmente perceberemos a que época do ano ela ligaria à expressão
“boas festas”, ou seja, ao Natal, embora já tenha ficado explicado o
seu significado. Desta forma, está criado um contexto completamente
diferente, que enforma toda a enunciação, possibilitando a criação de
novos sentidos, ou seja, de um novo texto. Este encontra-se repleto de
expressões que não encontram explicação no cotexto e, por isso, são
interpretadas em função da enciclopédia de saberes do leitor.
180
Teresa da Conceição Mendes de Castro
4. 4. 2 Textos/excertos com estrutura textual incompleta
Embora nem sempre sejam utilizadas as reticências para marcar a
incompletude dos textos, a muitos deles falta (pelo menos) uma parte do
esquema proposto por Adam (1992) para os textos narrativos, o que os
transforma em narrativas incompletas, quando não em meras sequências
descritivas. Daremos, de seguida, um exemplo dessa incompletude.
O texto À Procura da Menina do Mar (manual Pasta Mágica, p.
158) foi retirado quase do final da narrativa original. No texto/excerto
não é identificada a Menina do Mar, pois a sua apresentação não é
contemplada:
“A menina que devia medir um palmo de altura” (p. 11),
“Eu sou uma menina do mar. Chamo-me menina do mar e não
tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota
trouxe-me para esta praia” (p. 18).
Quanto à “gaivota”, a sua apresentação também não é feita:
“E enquanto assim estava viu uma gaivota que vinha do mar
alto com uma coisa no bico” (p. 37),
“Venho da parte da Menina do Mar – disse a gaivota. Ela
manda-te dizer que já sabe o que é a saudade. E pediu-me para
te perguntar se queres ir ter com ela ao fundo do mar” (p. 38).
A primeira frase do texto/excerto “ali no mar – disse a gaivota –
está um golfinho à tua espera para te ensinar o caminho” só é percebida
porque o tema é antecipado pelo título. De outra forma, o leitor só no
final do texto/excerto desvendaria o “mistério”.
No texto/excerto fica patente a estranheza em relação ao facto
de o rapaz cruzar o mar agarrado ao golfinho:
“E os marinheiros gritavam de espanto quando viam um rapaz
agarrado à cauda dum golfinho” (linhas 14-16),
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
181
Contudo, não parece causar estranheza o facto de o rapaz poder
mergulhar até o fundo do mar:
“Mas eles mergulhavam e desciam ao fundo do mar para não
serem pescados” (linhas 16 e 17).
Na verdade, este fato tem explicação no texto original. É que a
gaivota trouxe um frasco contendo uma poção mágica que tornava o
rapaz capaz de viver no mar:
“o frasco que te dei tem dentro suco de anémonas e suco de
plantas mágicas. Se beberes agora este filtro passarás a ser
como a Menina do Mar. Poderás viver dentro da água como os
peixes e fora da água como os homens” (p. 38).
Quanto ao fim do texto/excerto, este termina sem que o rapaz
se despeça e agradeça ao golfinho a ajuda. Este fato desvaloriza o ato
de cortesia presente no texto-origem e, no entanto, os manuais também
devem ser meios de transmissão de civismo:
“Adeus, adeus, golfinho. Obrigado, obrigado” (p. 41).
Afinal, os discursos possuem uma orientação “causativa ou
factitiva”, como nos diz Fonseca (1992, p. 239)., e colaboram na
instauração de modelos de comportamento socialmente adequados:
é inequivocamente por força desta orientação causativa ou
factitiva que os discursos contêm que eles se constituem
em agentes indutores de valores e atitudes, em agentes
inculcadores de representações ou modelos do real, logo, em
agentes reguladores de condutas e práticas individuais e sociais.
O texto/excerto, incompleto quanto à estrutura, termina de
forma abrupta sem que o leitor tenha conhecimento do encontro entre
o rapaz e a Menina do Mar, pois o registo desse encontro só se encontra
no texto original:
182
Teresa da Conceição Mendes de Castro
«O rapaz entrou na gruta e espreitou. A Menina, o polvo, o
caranguejo e o peixe estavam a brincar com conchinhas» (p. 41);
«Todos se abraçaram, todos riram, todos gritaram. A Menina do
Mar dançava, batia palmas e ria com gargalhadas claras como a
água» (p. 42).
Com tudo o que ficou registado, percebe-se o processo de
retextualização, embora incompleto, que se operou neste texto/excerto.
Outra coisa não seria de esperar. Uma vez que se trata de uma parte
do texto do (quase) final da história original, seria de crer que muito
do que tinha sido dito anteriormente haveria de ser retomado no texto
presente no manual.
4. 4. 3 A criação de novos sentidos: o mundo discursivo dos textos/
excertos
O texto Na Barra de Aveiro (manual Amiguinhos, p. 90), sendo
um excerto retirado do meio da história, apresenta graves problemas
relativamente à textura transfrásica, uma vez que possui relações coesivas
que não são consideradas. Depois do título, a única referência que
aparece ao local onde se desenrola a ação é feita pelos deícticos «isto»
e «dali» que retomam a informação do título de que a história se passa
em Aveiro.
A necessidade de anular a relação entre o texto/excerto e o
texto-origem é evidente. Logo no segundo parágrafo, o texto-origem
faz referência a um “trompetista”:
“(…) disse um dos trompetistas da banda” (p. 73),
“O trompetista, que era dali, prontificou-se logo a explicar,
todo contente.” (p. 74)
No texto do manual, esta é substituída pela referência a «o
rapaz», provavelmente para facilitar a compreensão do texto. É claro
que a introdução do referente «o rapaz» exige menos explicações do
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
183
que «o trompetista», pois «rapaz» é um nome mais abrangente (mais
genérico). Verifica-se, assim, a necessidade de suprimir a designação
«trompetista», que não é explicada no cotexto de texto/excerto. No
entanto, esta opção causa problemas de coesão textual, cuja resolução
não é assegurada. Tanto no texto original como no excerto, o nome
é antecedido pelo artigo definido, que faz referência a um elemento
discursivo já apresentado anteriormente e, portanto, objecto do universo
textual, embora no texto/excerto tal ambiguidade não seja resolvida.
Destaca-se, ainda, a alteração gráfica da palavra “barra” (linha 5),
substituindo a primeira letra por letra minúscula (“Barra”, p. 74)), no
texto original. Deixa de ser a Barra com identidade própria e passa a
ser uma barra. Daí a necessidade de, pelo título, a localizar em Aveiro.
Na sequência do mesmo parágrafo, decidem terminá-lo com
ponto (no excerto) em vez de reticências (no original). Além disso,
verifica-se uma alteração no tempo verbal utilizado:
“- (…) E não foi sempre aqui.
- O quê?
- Sim, com as marés e as tempestades vieram areias e cascalhos
e a barra ficou fechada.” (linhas 6 e 9)
“- (…) E não foi sempre aqui…”
- O quê?
- Sim, com as marés e as tempestades vieram areias e cascalhos
e a barra foi fechando…” (p. 74). (sublinhado nosso em ambos
os casos)
A opção eliminou o suspense e a interrupção do diálogo, alterou
uma parte importante do significado e a marca da oralidade – a
interrupção do locutor – conferindo ao discurso um aspecto mais formal,
retirando-lhe a vivacidade característica da oralidade.
Reparemos, ainda, que a expressão «foi fechando» foi substituída
por “ficou fechada”. Trata-se de uma alteração de sentido ao nível
do aspecto verbal, sem justificação ao nível das relações entre as
unidades textuais. Esta estratégia permite dar o assunto por concluído,
Teresa da Conceição Mendes de Castro
184
retirando-lhe a ideia de continuidade temporal dada pela utilização do
gerúndio. Esta continuidade temporal é retomada no texto original
pelas expressões:
“A população de Aveiro diminuiu imenso durante o período em
que a Barra esteve fechada (…). Foi em 1756. Há mais de duzentos
anos…” “Durante muitos anos houve discussões” (p. 75).
A partir da frase «A ria ficou transformada numa espécie de
pântano» (linhas 11 e 12), todo o texto foi alterado, apresentando
um resumo extremamente simplificado do texto-origem. Quase duas
páginas de texto original, que não transcrevemos por ser demasiado
extenso, foram resumidas nos últimos três parágrafos do texto/excerto.
Através desta opção pelo resumo, se é verdade que se poupa espaço no
manual, também é verdade que se transformam, completamente, os
textos/excertos.
4. 4. 4 Alterações gráficas e lexicais
No decorrer das análises anteriores verificámos a existência de
alterações ao nível gráfico, lexical, da pontuação, dos parágrafos, etc.,
comparando os excertos dos manuais com os textos originais. Estas
alterações são visíveis em grande parte dos textos/excertos analisados
e verificam-se através da alteração, supressão ou adição de elementos
reguladores do texto. Verifica-se que algumas dessas transformações
serviram, essencialmente, para encurtar e simplificar o texto e para
corrigir expressões consideradas incorrectas. Outras parecem-nos
gralhas ou apenas uma interpretação abusiva do que é a norma. Todas
estas modificações, produzidas através do texto/excerto, tiveram o
efeito de criar um texto mais curto, sem dúvida, mas também, e como
não podia deixar de ser, diferente. Muitos pormenores discursivos
desapareceram, muito conteúdo de nível informativo ficou escondido.
Sublinhamos que muitas destas substituições são “gratuitas”, na medida
em que não “melhoram” o texto/excerto e, muitas vezes, dão origem à
criação de um texto com vocabulário muito limitado, promovendo, assim,
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
185
uma restrição vocabular, e não a um alargamento de horizontes, como
seria esperado. De seguida, daremos conta de algumas dessas alterações
através de um exemplo.
O texto Superstição… (manual Pasta Mágica, p. 102) sofreu várias
alterações em comparação com o original. Na frase seguinte, a vírgula
encontra-se ausente:
“Antes de o saber, nem pensava nisso” (p. 112)
“Antes de o saber nem pensava nisso” (linhas 12 e 13) (sublinhados
nossos).
O mesmo aconteceu com a seguinte sequência, para além de lhe
serem alteradas algumas das palavras:
“(…) lá tornava a pisar outra linha de separação das pedras, e lá
tinha de voltar três pedras atrás” (p. 114).
“(…) lá voltava a pisar a linha de separação das pedras e lá tinha
de voltar três pedras atrás” (linhas 21 e 22) (sublinhados nossos).
Verifica-se, ainda, a alteração da expressão que se segue:
“(…) mas eu não achava graça nenhuma a andar sempre a
direito” (p. 112-113)
“(…) mas eu não achava graça nenhuma andar sempre a direito”
(linha 15) (sublinhados nossos).
5 Conclusão
Tendo presente que a Análise do Discurso põe em relevo a
relação texto/contexto, analisámos os processos de recontextualização
e retextualização verificados nos excertos que constituem os manuais
escolares de Português e procurámos perceber de que forma os excertos
constroem uma nova unidade textual e se tornam (in)dependentes em
relação ao texto-origem.
186
Teresa da Conceição Mendes de Castro
Tendo sempre presente que os textos são unidades complexas,
configuracionais, analisámos 34 textos/excertos em prosa do tipo
narrativo e/ou descritivo, inseridos em 3 manuais escolares do 4.º ano
de escolaridade. No presente trabalho, apenas demos conta de alguns
dos resultados obtidos através dessa análise.
A maior parte dos excertos dos manuais escolares de Português
são retirados de obras literárias infanto-juvenis. Estas apresentam,
normalmente (e por definição), uma dimensão tríplice: estética, lúdica e
pedagógica. Visto que as condições de uso interferem na configuração
do objeto, destas dimensões, enquanto “livro”, sobressai sobretudo a
estética (e lúdica), na maioria dos casos. Contudo, na transposição para
o uso escolar, verifica-se um desvio configuracional e tende a sobressair
a dimensão pedagógica, pelo novo uso/novas leituras operadas. O objeto
altera-se porque o olhar sobre ele é diferente e o alocutário deixa de
ser o público infantil em geral, passando a ser um público infantil em
determinada idade e em determinado espaço: o da sala de aula.
Embora o texto/excerto não deixe de estar ligado ao texto-origem
(até porque o nome do autor aparece, quase sempre, na página do manual,
em rodapé), é para o leitor um novo texto, dotado de características
próprias, mesmo ao nível da estrutura textual. São vários os mecanismos
linguísticos e discursivos a serviço dessa retextualização, sendo uma das
primeiras estratégias a alteração do título original. A decisão de alterar
o título original prende-se com a necessidade de apontar um sentido
básico para o texto/excerto.
Quanto ao corpo do texto/excerto, dos 34 excertos em estudo,
apenas 4 não sofreram qualquer tipo de alteração em relação ao textoorigem (11,7%) e muitos dos textos/excertos apresentam vários tipos de
alterações (22 textos). As alterações realizadas verificam-se ao nível da
organização formal dos textos, ao nível do léxico e da estrutura sequencial
e servem, essencialmente, para encurtar e simplificar o discurso. Esta,
que parece ser uma política editorial, mostra-se como uma preocupação
constante dos manuais: por um lado, fazer caber a maior quantidade de
texto possível num menor espaço possível e, por outro lado, simplificar o
vocabulário. Na construção dos manuais, a selecção dos textos obedece
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
187
a uma simplificação estrutural e lexical que “desvirtua” o texto e os seus
sentidos.
Alguns dos textos presentes nos manuais de Português são,
manifestamente, textos incompletos, verificando-se esta incompletude a
vários níveis: uns apresentam-se com uma estrutura textual incompleta e
defraudam as expectativas dos leitores; outros assumem-se como textos
incompletos, através da utilização de reticências que substituem o texto
em falta. A incompletude é, ainda, criada ao nível da sequencialização
linguístico-textual, uma vez que alguns textos/excertos contêm referências
que reenviam ao texto-origem: anáforas, conectores, dêiticos, expressões
definidas, etc. Estes são mecanismos linguísticos que, assegurando a
continuidade discursiva, trazem, pela não realização do nexo coesivo
que mostram, alguma inconsistência ao texto/excerto. Ora, colocando
em causa a continuidade textual, coloca-se em causa a unidade textual.
Desta forma, criam-se novos mundos discursivos através de
vários mecanismos linguísticos: alteração e/ou redução das personagens,
alteração dos espaços em que decorre a diegese, resumo de partes do
texto-origem, diminuição da carga emotiva presente no texto-origem,
etc. Se é verdade que estas alterações têm o poder de encurtar o texto/
excerto, não é menos verdade que, não raras vezes, empobrecem o texto
e chegam a provocar alteração quanto ao género e tipo de texto a que
pertence o texto/excerto.
REFERÊNCIAS
ADAM, J.-M. Les textes: types et prototypes. Liège: Mardaga, 1992.
APPLE, M. Manuais escolares e trabalho docente: uma economia
política de relações de classe e de género na educação. Lisboa: Plátano, 2002.
BRITO A. P. A Problemática da adopção dos manuais escolares: critérios
e reflexões. In: CASTRO, R. V. et al. (Org.). Manuais escolares: estatuto,
funções, história. Braga: Centro de Estudos em Educação e Psicologia –
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho, 1999. p.
139-148.
188
Teresa da Conceição Mendes de Castro
COUTINHO, M. A. De que falamos quando falamos de textos. In:
MATEUS, M. H. M.; CORREIA, C. N. (Org.). Saberes no tempo:
homenagem a Maria Henriqueta Costa Campos. Lisboa: Colibri, 2002.
p. 265- 270.
FONSECA, J. Algumas propostas de trabalho para a aula de língua
materna. In: FONSECA, J. Linguística e texto/discurso: teoria,
descrição, aplicação. Lisboa: Ministério da Educação – ICALP/Nice:
Universidade de Nice, 1992. p. 227-234. Edição original: 1987.
HALLIDAY, M.; HASAN, R. Cohesion in english. London: Longman,
1990. Edição orignal: 1976.
KERBRAT-ORECCHIONI, C. Os atos de linguagem no discurso:
teoria e funcionamento. Rio de Janeiro: Uff, 2005.
MORGADO, J. C. Manuais escolares: contributo para uma análise.
Porto: Porto, 2004.
PEÑALVER-VICEA, M. I. P. Les titres de films: une approche
pragmatique. In: SIMPÓSIO Internacional de Análise del Discurso, I,
2001. Madri. Lengua, Discurso, Texto. Madrid: Universidad Complutense
de Madrid/Paris: Université Paris XIII, 2001.
PEREIRA, L. A. Escrever com as crianças: como fazer bons leitores
e escritores. Porto: Porto, 2008.
PEREIRA, C. et al. Pasta mágica: língua portuguesa 4º ano. Porto:
Areal, 2006.
ROCHA, A. et al. Amiguinhos: língua portuguesa 4º ano. Lisboa: Texto,
2006.
RAMOS, R. O discurso do ambiente na imprensa e na escola: uma
abordagem linguística. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkiam, 2009.
SILVA, C. V.; MONTEIRO, M. L. Júnior: língua portuguesa 4º ano.
Lisboa: Texto, 2006.
SILVA, R. L. T. C. C. Estudos linguísticos dos títulos de imprensa
em Portugal: a linguagem metafórica. Aveiro. 1999. Tese (Doutorado
em Linguística) – Universidade de Aveiro, Aveiro, 1999.
SOUSA, M. E. S. A Formação de leitores: o contributo do manual escolar:
um olhar através de um manual de língua portuguesa do 1º C.E.B. In:
CASTRO, R. V. et al. (Org.). Manuais escolares: estatuto, funções,
Texto/excerto: re(con)textualização em manuais escolares de português
189
história. Braga: Centro de Estudos em Educação e Psicologia – Instituto
de Educação e Psicologia da Universidade do Minho, 1999a. p. 507-513.
SOUSA, M. L. D. Níveis de estruturação e dimensões de transmissão dos
livros de Português. In: CASTRO, R. V. et al. (Org.). Manuais escolares:
estatuto, funções, história. Braga: Centro de Estudos em Educação e
Psicologia – Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho,
1999b. p. 495-505.
VAN DIJK, T. A. Análise crítica do discurso multidisciplinar: um apelo à
diversidade. In: VAN DIJK, T. A. Discurso, notícia e ideologia: estudos
na análise crítica do discurso. Porto: Campo das Letras/Universidade do
Minho, 2005. p. 35-59. Edição original: 2001.
VIGNER, G. Une unité discursive restreinte: le titre. Le français dans
le Monde. Paris, n. 156, p. 30-60, oct. 1980.
Recebido em fevereiro de 2011.
Aceito em abril de 2011.
SOBRE A AUTORA
Teresa da ConCeição Mendes de CasTro é mestre em
Linguística pela Universidade do Minho. É doutoranda em
Estudos da Criança, Especialidade Estudos da Língua Portuguesa.
É membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança.
É professora do 1.º Ciclo do Ensino Básico. Foi formadora
do PNEP (Programa Nacional de Ensino do Português). Foi
colaboradora em aulas de licenciatura na Universidade do Minho.
Foi membro da Comissão de Avaliação e Certificação de Manuais
de Português do 1.º Ciclo. É autora de artigos publicados em
revistas especializadas. Nos últimos anos tem desenvolvido
investigação na área da Análise do Discurso, mais precisamente
na análise de textos presentes em manuais escolares de Português.
E-mail: tecastro@iol.pt