UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
GLAUBER ATAIDE
O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM
HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE, DE GEORG
LUKÁCS
Belo Horizonte
2020
GLAUBER ATAIDE
O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM
HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE, DE GEORG
LUKÁCS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS
GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM FILOSOFIA
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Federal de Minas Gerais.
Orientador: Prof. Dr. Verlaine Freitas.
Belo Horizonte
2020
2
3
4
Dedico essa dissertação à Geisa.
5
AGRADECIMENTOS
À minha esposa e filhos, por compreenderem a presença-ausente que a
confecção de uma dissertação requer. Tive que passar muitas e longas horas isolado em
meu escritório, tal qual um Gregor Samsa alienado de todo convívio social.
À minha professora de história do ensino médio que me emprestou, sem eu
pedir, o Manifesto do partido comunista, de Marx e Engels. Talvez ela nunca leia isso e
não saiba como influenciou parte de quem sou hoje.
Aos diversos camaradas de lutas sociais, com quem muito aprendi tanto na
teoria, quanto na prática. Combatemos juntos aos humilhados e ofendidos desta terra,
juntos ao que não possuem casa, aos que não possuem emprego e também àqueles que,
mesmo trabalhando, mal conseguem sobreviver com seu salário.
Ao povo humilde, por me ensinarem a virtude da coragem ao realizar ocupações
por moradias, a virtude da rebeldia ao cruzar os braços e realizar greves, e a virtude da
solidariedade e do espírito comunitário ao se apoiarem mutuamente. Estes são os que
mais sentem os efeitos da reificação e protestam contra ela.
Aos companheiros de diretoria do sindicato, pelas lições e companhia em
(quase) três
gestões consecutivas, e em especial à Rosane Cordeiro. Sem sua
intervenção eu não poderia, como proletário que sou, ter assistido às aulas da pósgraduação na UFMG, que acontecem apenas no período da tarde.
Ao meu orientador, Verlaine Freitas, por ter me acompanhado desde o TCC,
passando pela iniciação cientifica, chegando até ao mestrado. Aos colegas Veronica
Campos e Rodrigo Pithon. Também ao Guilherme Malta, pelo companheirismo e pelas
longas conversas sobre o idealismo alemão; ao Felipe Torres, pela ansiedade que
compartilhamos para passar neste concurso de mestrado, e à Regina Sanches, que me
deu muitas dicas sobre como chegar até aqui.
6
RESUMO
Neste trabalho investigaremos inicialmente as categorias de totalidade e
mediação, através das quais Lukács pensa todo o problema da reificação. Em segundo
lugar, analisaremos a unidade mínima, nuclear, da qual se desdobra a estrutura da
consciência reificada: a mercadoria. Na sequência, veremos de que maneira a troca de
mercadorias, como forma dominante de intercâmbio entre os homens, afeta toda a
estrutura de consciência, de modo a tornar o proletariado um híbrido bizarro de humano
e inumano, a chamada “mercadoria consciente de si”. Por último, investigaremos como
o proletariado, sendo o sujeito-objeto idêntico do processo histórico, pode superar o
fenômeno da reificação através de uma práxis transformadora da realidade social.
Palavras-chave: reificação, marxismo, idealismo alemão
7
ABSTRACT
In this work we will initially investigate the category of totality, through which
Lukács articulates the problem of reification. After that we will analyze the smallest and
nuclear unit from which the structure of reification unfolds itself: the commodity. Next
we will show how the commodity exchange, as the main form of interchange between
human beings, affects the whole structure of their consciousness in such a way that it
turns the proletarian into a bizarre hybrid of human and non-human, the so called
“commodity conscious of itself”. Lastly, we will investigate how the proletariat, being
the identical subject-object of the historical process, might overcome reification through
a transforming praxis on the social reality.
Keywords: reification, marxism, german idealism
8
ÍNDICE
Introdução...................................................................................................... 10
Capítulo 1. As categoria de totalidade e mediação ....................................... 13
1.1 A perda da totalidade ............................................................................. 13
1.2 A totalidade em Kant ............................................................................. 15
1.3 A totalidade de Hegel a Marx ................................................................. 18
1.4 Totalidade e práxis ................................................................................. 27
1.5 A mediação ............................................................................................ 28
Capítulo 2. O núcleo originário da reificação ............................................... 34
2.1 O fetichismo da mercadoria ................................................................... 36
2.2 O fetichismo em Marx ........................................................................... 37
2.3 O fetichismo em Lukács......................................................................... 42
2.4 Manifestações do fetichismo .................................................................. 46
Capítulo 3. A mercadoria consciente de si .................................................... 50
3.1 As classes sociais no marxismo .............................................................. 52
3.2 O desenvolvimento da consciência proletária ......................................... 61
Capítulo 4. O proletariado como sujeito-objeto idêntico ............................. 65
4.1 A constituição do sujeito histórico em Hegel .......................................... 65
4.2 O sujeito-objeto idêntico se efetiva na história ....................................... 74
4.3 As antinomias do pensamento burguês ................................................... 78
4.4 O primado da filosofia prática ................................................................ 82
4.5 Superação da reificação? ........................................................................ 87
Considerações finais ...................................................................................... 93
Referências ................................................................................................... 100
9
INTRODUÇÃO
A reificação (Verdinglichung) é “a realidade imediata e necessária para todo
homem que vive no capitalismo”1. Segundo Feenberg2, ela é uma forma de
objetividade, e se refere à máscara conceitual que o mundo social assume na era
burguesa ao se tentar compreendê-lo através de categorias racionais formais. Honneth3
resume o conceito, em sua forma mais básica, como um processo cognitivo através do
qual algo que em si não possui propriedades de coisa — como, por exemplo, relações
humanas — passa a ser visto como tal.
O termo se origina, etimologicamente, do substantivo alemão Ding, que significa
“coisa”. O prefixo ver- indica aqui um movimento de transformação, de modo que o
verbo verdinglichen significa “coisificar”, e em sua forma substantivada —
Verdinglichung —, “coisificação”. Em vários idiomas, como português, inglês, francês e
espanhol, predomina a forma latina do termo, a partir do radical res, que tem o mesmo
significado que
Ding.
Daí
a
tradução de Verdinglichung,
nestas línguas,
respectivamente como “reificação”, “reification”, “réification” e “reificación”.
A forma acabada do conceito surgiu no contexto de uma crítica à ciência e à
filosofia alemã no fim do século XIX e início do século XX. Este foi um período de
rápido crescimento industrial, acompanhado pelo surgimento de uma ideologia
cientificista que atingiu até mesmo a interpretação da obra de Marx dentro do
movimento comunista internacional.4 História e consciência de classe, a obra de Lukács
na qual ele publicou, pela primeira vez, o tema desta dissertação, polemiza contra tal
tendência.
A principal categoria filosófica utilizada anteriormente para tratar dos
fenômenos que a reificação visa explicar era a alienação. Tratar deste tema sem
relacioná-lo às suas determinações ou fundamentos sociais era parte do Zeitgeist5. Karl
Marx, todavia, representa um ponto de ruptura. Mesmo abordando o tema de maneira
breve ou marginal, apontou a relação dialética existente entre a base econômica e os
1
HCC, p. 391.
FEENBERG, 2011, p. 179.
3
HONNETH, 2005, p. 19.
4
FEENBERG, 2015, p. 492.
5
BLUMENTRITT, 1988.
2
10
fundamentos do conhecimento, entre a forma da mercadoria e a forma do pensamento.
A alienação não era apenas uma categoria psicológica, mas uma categoria do real.6
Já no século XX, ao desenvolver este conceito em maior profundidade, Lukács
também manterá este fundamento real — a estrutura da mercadoria — como ponto de
partida de sua análise, investigando, daí em diante, os principais desdobramentos que a
troca de mercadorias como forma generalizada de intercâmbio entre os homens imprime
sobre a estrutura da consciência.
O desenvolvimento da filosofia clássica alemã e da ciência moderna é analisado
por Lukács também neste sentido, como desdobramento de uma estrutura de
consciência já reificada. No caso da filosofia, essa estrutura se constitui como o limite
intransponível das chamadas “antinomias do pensamento burguês”, cuja solução será
buscada em uma prática pelo idealismo alemão.
A trajetória intelectual de Lukács reproduziu, em um microcosmo, o percurso da
própria filosofia alemã. Ele passou, inicialmente, por um ciclo de transição de Kant a
Hegel — o chamado período de Heidelberg —, que foi seguido pela fase na qual ele
caminha de Hegel a Marx. História e consciência de classe é uma obra deste segundo
período, e por isso ele a chamou de “meu caminho para Marx”.7 Embora tendências
aparentemente conflitantes possam coexistir lado a lado em um período de mudanças,
Lukács enxerga uma linha de continuidade neste processo: a ética “impele à prática, ao
ato e, assim, à política. Esta, por sua vez, impele à economia, o que leva a um
aprofundamento teórico e, por fim, à filosofia do marxismo.”8
Por isso Lukács também caminha no sentido de buscar a superação das
chamadas antinomias da razão — ou, mais exatamente, de sua causa originária, a
reificação — em uma prática e, mais especificamente, na práxis do proletariado, o qual
se constitui como o sujeito-objeto idêntico do processo histórico. Tanto esta práxis
quanto este sujeito seriam, para o filósofo húngaro, a realização do programa inconcluso
da filosofia clássica alemã, o qual se articularia em três pontos: 1) o princípio da prática,
2) o método dialético e 3) a história como realidade.9
Em nossa pesquisa buscamos compreender como Lukács articulou o conceito de
reificação, demonstrando quais foram suas fontes, quais os conceitos auxiliares
6
LOTZ, 2013, p. 185.
HCC, p. 1.
8
HCC, p. 5.
9
FEENBERG, 2011, p. 186.
7
11
utilizados e quais os passos de sua reflexão. O olhar de nosso estudo se direciona,
portanto, de Lukács para trás, não para frente.10 Em que pese a enorme influência do
conceito de reificação para o surgimento do chamado marxismo ocidental e também da
Escola de Frankfurt, nosso recorte não comporta estes desdobramentos. Refazer o
percurso intelectual de Lukács revela-se uma tarefa complexa, instigante e
enriquecedora, que possibilita compreender melhor não apenas os destinos de seu
conceito, mas também sua atualidade.
Ao discutirmos o conceito de totalidade no primeiro capítulo, nossa análise
também se concentrará apenas em História e consciência de classe, deixando de lado
tanto obras anteriores, como A teoria do romance (1916), quanto posteriores, como A
particularidade do estético (1964) e Ontologia do ser social (1964-1971), nas quais o
conceito também é discutido.
A obra principal que estudamos neste trabalho, História e consciência de classe,
aparece abreviada como HCC. Utilizamos principalmente a tradução brasileira de
Rodnei Nascimento, mas sempre cotejando com o texto original, Geschichte und
Klassenbewußtsein. As contribuições de comentadores em alemão, inglês e francês
foram traduzidas por nós e incorporadas diretamente no corpo do texto.
10
Utilizamos também obras do próprio Lukács posteriores a HCC, redigidas pouco após a
publicação desta obra e antes de sua ruptura conceitual com a mesma.
12
CAPÍTULO 1. AS CATEGORIA DE TOTALIDADE E MEDIAÇÃO
A análise do conceito de reificação na obra de Lukács pressupõe um exame da
categoria de totalidade.11 O surgimento deste fenômeno pode ser considerado, de certa
forma, como uma perda da visão da totalidade12, e o seu desaparecimento, ou a
desreificação, só pode se dar através de uma práxis específica também articulada a ela.
Segundo Lukács, a totalidade é “um problema categorial e, mais precisamente, um
problema da ação transformadora”13, sendo um elo entre a dialética e a reificação, seu
horizonte metodológico e objeto de resolução.14
Em um prefácio de 1967 a História e consciência de classe, Lukács afirma que
nesta obra a totalidade ocupou o centro do sistema, tendo mais importância que o
próprio fator econômico. Isso aparece de maneira explícita em Rosa Luxemburgo como
marxista, o segundo artigo de História e consciência de classe: “Não é o predomínio de
motivos econômicos na explicação da história que distingue de maneira decisiva o
marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.”15
1.1 A perda da totalidade
Considerada por Lukács um fator chave para o surgimento da reificação na
sociedade capitalista, a perda da totalidade teve como base concreta a especialização do
trabalho.16 A necessidade humana de apreender a totalidade nos leva a pensar que a
própria ciência teria “despedaçado a totalidade da realidade”, isso é, perdido o sentido
da totalidade justamente por força da especialização, pois, desde a era moderna,
investiga fatias cada vez menores do real, de maneira cada vez mais vertical e profunda,
de modo que quanto mais uma ciência progride, mais ela volta as costas aos problemas
ontológicos.
11
CHARBONNIER, 1998, p. 31
CHARBONNIER, 1998, p. 20
13
HCC 392.
14
CHARBONNIER, 1998, p. 31
15
HCC 105
16
HCC 228
12
13
Segundo Lukács, esta perda progressiva da totalidade se manifestou também na
história da filosofia moderna. A sociedade burguesa, ao mesmo tempo em que, com o
desenvolvimento da ciência, dominava cada vez mais os detalhes de sua existência
social, perdia a “possibilidade de dominar intelectualmente a sociedade enquanto
totalidade.”17 A filosofia clássica alemã, em seu esforço para dominar a totalidade do
mundo como autoprodução do sujeito do conhecimento, baseada na concepção de o
pensamento ser capaz de compreender apenas o que ele mesmo produziu, “esbarrou
contra a barreira intransponível do dado, da coisa em si. Se não quisesse renunciar à
apreensão da totalidade, deveria tomar o caminho da interioridade.”18
A consequência inevitável deste princípio foi considerar possível a apreensão da
totalidade através da arte. A partir da Crítica da faculdade do juízo, de Kant, surge na
filosofia crítica alemã uma nova concepção de natureza, determinante do ser humano
autêntico, em sua real essência, liberado das formas sociais falsas e mecanizantes,
enquanto totalidade acabada, em que liberdade e necessidade coincidem. 19 A
importância sem precedentes da estética e da filosofia da arte para uma concepção total
de mundo, a partir do século XVIII, não se deveria ao florescimento artístico, mas sim à
função “teórica, sistemática e ideológica que o princípio da arte assume neste
momento.”20 A realização da totalidade na arte foi uma tentativa de resolver de forma
concreta as antinomias insolúveis no plano teórico.
Uma ciência que tente unificar todos os campos do saber através da filosofia não
pode alcançar a coesão do todo, à qual as ciências particulares “renunciaram
conscientemente ao se distanciarem do substrato material do seu aparato conceitual.”21
Isso não seria possível por meio da filosofia que ainda não rompeu com a barreira do
formalismo mergulhado na fragmentação e que tente, de maneira acidental, costurar os
campos do saber considerados totalmente independentes uns dos outros, fechados em si
mesmos e regidos por leis internas próprias. Para alcançar tal coesão seria necessária
uma orientação radicalmente diferente, revelando “os fundamentos, a gênese e a
necessidade desse formalismo”22, de modo a não ligar mecanicamente as ciências
particulares, mas sim remodelá-las interiormente por um método filosófico capaz dessa
17
HCC 259
HCC 260
19
HCC 286
20
HCC 287
21
HCC 238
22
HCC 238
18
14
unificação. Isso somente é realizável fora do campo da filosofia burguesa, não pelo fato
de inexistir um desejo de tal síntese, mas por isso ser impossível no terreno da
sociedade capitalista. 23 A história tem demonstrado que a filosofia continua
apresentando como tendência fundamental “reconhecer os resultados e os métodos das
ciências particulares como necessários [...], e atribuir à filosofia a tarefa de desvendar e
justificar a base da validade dos conceitos assim formados.”24 Correntes filosóficas
episódicas, como as que tentam abarcar todo o saber de maneira enciclopédica, ou que
suspeitam do valor do conhecimento formal em relação à “vida viva” (como é o caso
das filosofias irracionalistas), são exceções que apenas confirmam a regra. A atitude da
filosofia em relação às ciências particulares é a mesma dessas em relação à realidade
empírica. A conceituação formalista das ciências particulares torna-se, para a filosofia,
um “substrato imutavelmente dado.”25
1.2 A totalidade em Kant
A crítica de Lukács a Kant se dá no contexto de sua análise do formalismo na
filosofia. Segundo Martin Jay26, foi a categoria de totalidade que permitiu a Lukács
investigar e criticar as chamadas “antinomias do pensamento burguês” e uma de suas
principais contradições: entre forma e conteúdo, característica do filósofo de
Königsberg. A fonte dessas antinomias, de maneira geral, repousa na natureza
contraditória da própria existência burguesa, e por isso o exame de Lukács, de
perspectiva contextualista (considerando o marxismo uma forma de contextualismo),
tem como ponto de partida o período de consolidação da burguesia enquanto classe
social dominante, justamente quando Kant redigiu suas três críticas.
Desenvolvendo a discussão de Marx sobre o fetichismo da mercadoria em O
capital e valendo-se de contribuições de Bergson, Simmel e Weber, Lukács introduziu o
conceito de reificação para “caracterizar a experiência fundamental da sociedade
burguesa.” Este termo, Verdinglichung, não encontrado nas obras de Marx, significa “a
23
HCC 238
HCC 238
25
HCC 239
26
JAY, 1984, p. 109.
24
15
petrificação de processos vivos em coisas mortas, as quais aparecem como uma
‘segunda natureza’.”27
Segundo Charbonnier28, a totalidade é uma exigência prática da razão. Uma
exigência “método-lógica” (méthodo-logique), pois a razão, como faculdade, visa
compreender a realidade através de sua apropriação tanto sincrônica quanto diacrônica.
Diante da crescente pulverização dos campos investigativos da realidade em setores
cada vez mais autônomos, aumenta o tensionamento entre a apropriação da realidade
(produzindo a cada dia mais questões e problemas) e a disponibilidade real de
resultados (geralmente muito parciais). Faltaria uma articulação global dos diferentes
campos de investigação do real, pois se as segmentações são, por um lado, cômodas,
elas não têm, por outro, vocação à substancialidade.
A totalidade, contudo, não pode ser compreendida em ato, como um objeto,
capaz de produzir um conceito. Ela deve ser compreendida dialeticamente, ligando o
pensamento à ação.29
Maurice Merleau-Ponty30 também argumenta neste sentido, afirmando que a
totalidade em Lukács não é uma totalidade metafísica, do absoluto, de todos os seres
possíveis e atuais, mas uma “totalidade da empiria”, a “reunião coerente de todos os
fatos que conhecemos”:
Quando o sujeito se reconhece na história e reconhece a história nele mesmo,
não domina o todo como o filósofo hegeliano, mas está ao menos empenhado
numa tarefa de totalização, sabe que para nós nenhum fato histórico adquirirá
todo o seu sentido a menos que tenha sido ligado a todos aqueles que
podemos conhecer, tenha sido inserido, a título de momento, numa única
empresa que os reúne, inscrito numa história vertical, registro das tentativas
que tinham um sentido, de suas implicações, de suas sequências concebíveis.
Esta “totalidade da empiria” de que fala Merleau-Ponty, vale ressaltar, não
significa abarcar todos os fatos materiais ou sociais, não é uma mera inversão de sinal
da totalidade buscada pelo pensamento metafísico: “não podemos considerar um
método como totalizante se ele trata do conteúdo de ‘todos os problemas’ (o que,
evidentemente, é impossível)”.31 Centrais não apenas para o conceito de reificação, mas
27
JAY, loc. cit.
CHARBONNIER, 1998, p. 5.
29
Ibid., p. 6.
30
MERLEAU-PONTY, 2006, p. 33.
31
HCC 392
28
16
para a própria obra de Marx32, “a categoria de totalidade, o domínio universal e
determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx
recebeu de Hegel”, de modo que não seria, portanto, “o predomínio de motivos
econômicos na explicação da história” o que distinguiria “de maneira decisiva o
marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.”33 Essa categoria
constitui o princípio revolucionário não apenas na sociedade, mas também na ciência.34
No que diz respeito à transformação social, a totalidade é portadora de seu
princípio revolucionário, pois determina o ponto de partida e de chegada do método
dialético, seu pressuposto e suas exigências. Sem a categoria de totalidade, a revolução
social passa a ser vista como um ato isolado, sem conexão com a evolução social, de
modo que o aspecto revolucionário do marxismo se perde, passando a ser visto como
uma recaída nas revoltas operárias primitivas ou no blanquismo.35
Outro aspecto que configura a totalidade como portadora do princípio
revolucionário na ciência é que esta surge, na leitura de Marx, de uma necessidade
ontológica objetiva do real. Daí a necessidade de forjar ferramentas categoriais capazes
de apreender a pluralidade do real em múltiplos níveis ontológicos ou de objetividade.
A categoria de totalidade tem como função e objeto precisamente a articulação dialética
desta pluralidade.36
A abordagem marxiana difere qualitativamente daquela da tradição kantiana. Na
Crítica da razão pura a categoria de totalidade é desenvolvida como um conceito puro
do entendimento e aparece subsumida à classe de “quantidade” na “Tabela das
categorias”. Lukács afirma que a dialética transcendental “gira sempre em torno da
questão da totalidade”. “Deus” e “alma”, por exemplo, seriam apenas “expressões
mitológicas para o sujeito unitário, ou, para o objeto unitário, da totalidade dos objetos
do conhecimento, pensado como acabado (e completamente conhecido).”37 A
32
HCC 20
No prefácio de 1967 a História e consciência de classe, em meio a diversas autocríticas sobre
o seu trabalho lançado quatro décadas antes, Lukács ainda reconhecia, embora com algumas ressalvas,
que um dos méritos desta sua obra foi “ter restituído à categoria de totalidade [...] a posição metodológica
central que sempre ocupou nas obras de Marx” (HCC 21).
34
HCC 106
35
HCC 109. O blanquismo foi uma corrente de esquerda formada a partir das doutrinas do
revolucionário francês Louis Auguste Blanqui. Os blanquistas acreditavam que a revolução seria obra
apenas de um pequeno e seleto grupo de revolucionários, e que somente após a tomada do poder através
de um Putsch, ou golpe, o povo seria envolvido.
36
CHARBONNIER, 1998, p. 28.
37
HCC 248
33
17
totalidade, em Kant, é uma categoria extensiva (quantitativa), e se aproxima da figura
matemática da exaustão, sendo impossível conhecê-la. Uma das funções da coisa em si
é limitadora justamente neste sentido, e expressa a “impossibilidade de apreender a
totalidade a partir dos conceitos formados nos sistemas racionais parciais.”38 Já em
Hegel, Marx e Engels, o acento recai sobre a dimensão intrinsecamente qualitativa da
totalidade. Segundo Charbonnier39, ela é também uma categoria intensiva, propriamente
ontológica, pois é dentro de uma totalidade que o conhecimento dos atos se torna
possível enquanto conhecimento da realidade.
Kant tentou, com a Crítica da razão prática, saltar rumo a uma práxis que não
havia sido encontrada unicamente pela razão pura teórica. Sua solução permaneceu, no
entanto, ainda formal e abstrata. A categoria de totalidade não desempenhou nenhum
papel neste esforço de articulação entre teoria e práxis, o que viria a ser alcançado em
Marx com a mediação de Hegel.
1.3 A totalidade de Hegel a Marx
Hegel já havia afirmado que “a verdade é o todo”, ressaltando, com isso, o
aspecto contraditório e histórico da realidade40. Por ser contraditória, ela não pode ser
reduzida a nenhuma de suas partes e, por ser histórica, não se confunde com os seus
diversos momentos. Desde Heráclito, o pensamento dialético confere prioridade
ontológica do todo sobre as partes, “como uma característica própria da realidade, como
realidade ‘mais real’ do que as partes que a integram”41.
A totalidade em Hegel é dividida, fragmentada devido a sucessivas alienações
do Espírito. O Espírito Absoluto, ao final do processo de alienação (Entfremdung), se
reconcilia em uma totalidade harmoniosa em que as partes então se reconhecem em sua
racionalidade como pertencentes ao todo. A falta de clareza dos escritos de Hegel,
porém, permitiu uma leitura ora idealista, ora materialista, com as categorias derivando
por vezes do pensamento e, em outras, da realidade42.
38
HCC 250
CHARBONNIER, 1998, p. 29.
40
FREDERICO, 1997, p. 39.
41
Ibid., p. 39.
42
Ibid., loc. cit.
39
18
Marx toma Hegel como ponto de partida43 mas, em lugar das peripécias do
Espírito, tem-se agora a saga da vida social dos homens. O homem torna-se um ser
ativo, desprendendo-se da natureza através do trabalho e fazendo dela o seu objeto. O
mundo social também se torna um produto da atividade humana, reafirmando-se, com
isso, uma visão monista e o primado da totalidade44.
A história mundial, para Marx, era decifrável apenas quando suas interligações
totalizantes surgiam objetivamente das condições do desenvolvimento e da concorrência
capitalistas espalhadas por todo o globo. O capitalismo gerou um mundo à sua imagem
e semelhança, destruindo a exclusividade natural anterior das nações individualizadas45.
Foi somente com Marx que a categoria de totalidade, que se constitui na
essência do método dialético para Lukács, se tornou de fato uma “álgebra da
revolução”. Isso não ocorreu através de uma simples inversão materialista de Hegel,
mas justamente porque a categoria de totalidade, isso é, “a consideração de todos os
fenômenos parciais como elemento do todo, do processo dialético, que é apreendido na
unidade do pensamento e da história”, foi mantido nessa inversão46.
Isso se manifesta na forma como Marx articula a relação totalizante entre sujeito
e objeto na tomada dos meios de produção pelo proletariado. Sendo o objeto, isso é, as
forças produtivas, uma totalidade que existe apenas dentro de um intercâmbio universal,
e sendo sua apropriação o desenvolvimento das capacidades individuais que
correspondem aos instrumentos materiais de produção, apenas o proletariado poderia
delas se apropriar. A apropriação de um objeto total pode se dar apenas por um sujeito
também total47.
Enquanto a ciência burguesa atribui ou “realidade”, com um realismo ingênuo,
ou uma autonomia “crítica” àquelas abstrações que, por um lado, resultam de uma
separação dos objetos de investigação, e por outro, de uma divisão do trabalho e
43
De acordo com Lukács, Marx nunca abandonou o método filosófico de Hegel, isso é, a
posição dominante do conceito de totalidade. Mesmo a polêmica de Marx contra a visão “idealista” da
história se dirigia muito mais aos discípulos de Hegel do que ao próprio mestre. A identidade hegeliana
dialética de pensamento e ser, a concepção de sua unidade como unidade e totalidade de um processo
também constitui a essência da filosofia da história do materialismo histórico (HCC 116).
44
FREDERICO, 1997, p. 39.
45
BOTTOMORE et al, 1983, p. 381.
46
HCC 106
47
BOTTOMORE et al, 1983, p. 381.
19
especialização, o marxismo supera (aufhebt) essas separações, tornando-as momentos
dialéticos48.
Um exemplo pode ser encontrado quando Marx critica a economia política
inglesa como expressão da divisão do trabalho, do pensamento alienado. Marx exigia,
pelo contrário, a reprodução conceitual do todo ao invés de conhecimentos parcelares
que apenas reproduzem o esfacelamento do mundo burguês. A sociedade capitalista é
totalidade viva e articulada, e não pode ser compreendida “pelas visões parciais do
economista, do sociólogo, do historiador, etc.”.49
De acordo com Lukács50, neste isolamento das ciências em campos de pesquisa
específicos, neste fatiamento artificial da realidade, o que importa é saber se este
movimento é apenas um meio para o conhecimento do todo, sendo integrado “no
contexto correto de conjunto que ele pressupõe e ao qual apela”, ou se conhecimento
parcial e abstrato permanece isolado e um fim em si mesmo. É por essa razão que para o
marxismo, não há áreas ou campos do saber isolados, como uma ciência jurídica, uma
economia política ou uma história autônomas, por exemplo, mas apenas uma única
“ciência histórico-dialética, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como
totalidade”.
Não apenas o objeto do conhecimento é determinado pelo ponto de vista da
totalidade, mas também o próprio sujeito. Os fenômenos sociais são considerados pelas
ciências burguesas sempre a partir do ponto de vista do indivíduo isolado, mas este
ponto de vista é incapaz de abranger os fenômenos em um todo integrado. Ele pode,
quando muito, levar a aspectos de um domínio parcial, mas quase sempre a algo apenas
fragmentário, a fatos desconexos ou a leis parciais abstratas. A totalidade, para
Lukács51, “só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma
totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar o objeto
como totalidade.” Por essa razão, apenas as classes sociais, e não os indivíduos isolados,
podem representar este ponto de vista na sociedade moderna.
Esta perspectiva se apresenta também na obra de Marx através de sua concepção
de que a superestrutura não tem história, isso é, que ela não possui uma história
autônoma, independente, movida por leis próprias. Desta maneira, as artes, o direito e a
48
HCC 106
FREDERICO, 1997, p. 40.
50
HCC 107
51
HCC 107
49
20
religião, por exemplo, não se desenvolvem sozinhos, movidos por leis internas, mas
expressam o movimento geral da sociedade52.
A totalidade concreta é a reprodução conceitual da realidade, não sendo
simplesmente um dado imediato para o pensamento53. Segundo Marx, “o concreto é
concreto porque é uma síntese de muitos determinantes particulares, isso é, uma unidade
de elementos diversos”54. Essa reprodução intelectual da totalidade, todavia, ainda não é
a própria estrutura do real: “No pensamento, o concreto aparece como processo de
síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora ele seja o real ponto de
partida e, por isso, também o ponto de partida da intuição e da representação”55. Esta
reprodução da realidade não deve se confundir com sua própria construção. O conceito
de totalidade, embora pareça colocar uma grande distância entre si e a realidade e
reproduzi-la de maneira “não científica”, é a única categoria capaz de compreendê-la56.
O concreto, no entanto, não pode ser encontrado, como pensa a ciência
burguesa, no indivíduo empírico e histórico, quer se trate de uma pessoa, de uma classe
ou mesmo de um povo. Quando pensa ter encontrado aí o mais concreto, é quando ela
está mais longe dele: a sociedade como totalidade efetiva, isso é, “a organização da
produção num determinado nível do desenvolvimento social e a divisão de classes que
opera na sociedade”57. Ao não apreender o real dessa maneira, a ciência burguesa
apreende como concreto algo de completamente abstrato. Este só pode aparecer na
relação com a sociedade enquanto totalidade.
Todo conhecimento da realidade é, antes de tudo, conhecimento de uma
realidade determinada historicamente, espacialmente, etc., podendo ser decomposto em
dois movimentos sucessivos: analítico e sintético. A partir da percepção de um concreto
obtemos, analiticamente e partindo das entidades abstratas, as determinações mais
simples; neste estado, então, é necessário fazer o caminho de volta, retornando
sinteticamente ao concreto de onde se partiu. Este concreto, agora, não é mais o mesmo,
mas está qualitativamente superior, sendo não mais apenas um concreto percebido, uma
52
FREDERICO, 1997, p. 40.
HCC 76
54
MARX, 1961, p. 632.
55
Ibid., loc. cit.
56
HCC 78
57
HCC 140
53
21
representação caótica de um todo, mas um concreto pensado, uma totalidade rica de
múltiplas determinações e relações58.
O conhecimento é um processo genético de reconstrução da totalidade real em
uma totalidade pensada. A concepção marxiana da totalidade enquanto realidade
pensada, enquanto concreto de pensamento, é um produto do ato de pensar, do
conceber. O todo pensado, tal como aparece no espírito, é um produto do cérebro
pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, mas de um modo
que difere da apropriação espiritual do mundo artístico, religioso ou prático59.
É importante notar que tal concepção de apropriação do real, como encontrada
em Marx, é muito mais elaborada que a chamada “teoria do reflexo”, a qual seria uma
simples duplicação do real no espírito, haja vista que esta totalidade concreta não é
simplesmente
dada
ao
pensamento.
Dessa
maneira,
qualquer
totalidade
é
necessariamente dialética, unidade da diversidade e diversidade da unidade60.
Para Lukács, a totalidade é o verdadeiro ponto de partida para compreender, seja
na vida social ou econômica, todas as partes. O momento particular não é uma parcela
de uma totalidade mecânica que pode ser composta a partir de tais parcelas. Cada
momento tem em si a possibilidade de desenvolver, a partir de si, toda a riqueza do
conteúdo da totalidade, de modo que dentro de uma totalidade dialética, os momentos
particulares carregam em si a estrutura da totalidade61.
O benefício teórico da totalidade é imenso, seja de um ponto de vista global, da
teoria do conhecimento, seja de um ponto de vista mais específico, para uma
compreensão da evolução do modo de produção capitalista. “A fecundidade da
totalidade se atesta precisamente em sua capacidade metodológica de pensar a realidade
na abundante multiplicidade de suas facetas”62. Ela permite pensar a diversidade na
unidade, sem isolar (hipostasiar) cada um de seus momentos. Ela também torna possível
ligar, conectar dialeticamente o que pode parecer num primeiro momento desprovido de
relação imediata, mas não se tornando um mero ajuntamento sem princípios. A dialética
não é nem eclética, nem uma soma.
58
MARX, 1961, p. 632.
Ibid., loc. cit.
60
Ibid., p. 30.
61
Ibid., loc. cit.
62
Ibid., loc. cit.
59
22
A inovação de Lukács63 consiste em que, graças à totalidade, ele analisa a íntima
conexão entre o fenômeno da reificação, que caracteriza o capitalismo de sua época, e
uma metodologia científica que, participante desta reificação, a redobra. Isso lhe
permite não apenas compreender a unidade dialética das contradições da sociedade
burguesa e de seu modo de produção capitalista, mas também esclarecer sua
significação e sua gênese.
A utilização deficiente da categoria de totalidade impede o conhecimento real
até mesmo de fenômenos isolados64. A integração na totalidade, cuja condição é admitir
que a verdadeira realidade histórica é precisamente o todo do processo histórico, “muda
não somente nosso julgamento sobre o fenômeno isolado de maneira decisiva, mas
também provoca uma mudança fundamental no conteúdo desse fenômeno, enquanto
fenômeno isolado.”65 A oposição entre a atitude que isola os fenômenos históricos e o
ponto de vista da totalidade torna-se ainda mais nítida quando comparadas as
concepções burguesa e marxiana da função da máquina:
As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da
maquinaria não existem pelo fato de não nascerem da própria maquinaria,
mas sim de sua utilização capitalista! Sendo assim, uma vez que a
maquinaria, considerada isoladamente, encurta o tempo de trabalho, enquanto
seu uso capitalista prolonga a jornada de trabalho; uma vez que, por si só,
ameniza o trabalho, enquanto seu uso capitalista aumenta sua intensidade;
uma vez que, por si só, representa uma vitória do homem sobre as forças da
natureza, enquanto seu uso capitalista o coloca sob o jugo dessas forças; uma
vez que, por si só, aumenta a riqueza dos produtores, enquanto seu uso
capitalista os empobrece etc., o economista burguês explica que a
consideração da maquinaria em si prova rigorosamente que todas essas
contradições patentes não passam de uma aparência da realidade comum,
mas que, em si, isto é, também na teoria, não existem.66
Do ponto de vista metodológico, a concepção burguesa considera a máquina de
maneira isolada, em sua pura facticidade, como uma mônada. Sua função no processo
63
Ibid., p. 31.
HCC 313
65
HCC 314
66
MARX apud LUKÁCS, 2012, p. 314. Traducão alterada. Como o texto se mostra um pouco
confuso na primeira frase, reproduzimos toda a citação no original: “Die von der kapitalistischen
Anwendung der Maschinerie untrennbaren Widersprüche und Antagonismen existieren nicht, weil sie
nicht aus der Maschinerie selbst erwachsen, sondern aus ihrer kapitalistischen Anwendung! Da also die
Maschinerie an sich betrachtet die Arbeitszeit verkürzt, während sie kapitalistisch angewandt den
Arbeitstag verlängert, an sich die Arbeit erleichtert, kapitalistisch angewandt ihre Intensität steigert, an
sich ein Sieg des Menschen über die Naturkraft ist, kapitalistisch angewandt den Menschen durch die
Naturkraft unterjocht, an sich den Reichtum des Produzenten vermehrt, kapitalistisch angewandt ihn
verpaupert usw., erklärt der bürgerliche Ökonom einfach, das Ansichbetrachten der Maschinerie beweise
haarscharf, daß alle jene handgreiflichen Widersprüche bloßer Schein der gemeinen Wirklichkeit, aber an
sich, also auch in der Theorie gar nicht vorhanden sind.” (MARX, 1962, p. 465).
64
23
de produção capitalista é vista como eterna e, assim como toda mônada, não interage
com as outras. Nenhuma forma estrutural — seja uma máquina, uma grande
personalidade ou uma época — pode ser apreendida de maneira imediata pelo
historiador ou pelo indivíduo que a vive. Ela deve ser apreendida, antes, na dissolução
dos objetos em processos, isso é, considerando o desenvolvimento histórico como
totalidade67.
Em cada parte da realidade apreendida dialeticamente está contida a totalidade, e
aqui também a analogia com uma mônada se torna evidente. Isso só pode se dar, no
entanto, se cada aspecto isolado for considerado como “ponto de passagem para a
totalidade”, sem recair no imediatismo68. O método dialético pode se desenvolver a
partir de cada aspecto do real, como demonstrado metodologicamente pela própria
estrutura da Lógica, de Hegel, na qual o capítulo que trata do ser, do não-ser e do vir-aser contém em si toda a filosofia hegeliana. De forma semelhante, o capítulo sobre o
fetichismo da mercadoria, em O capital, também oculta em si toda a obra de Marx,
considerando que o proletariado é uma mercadoria e que isso implicaria, por
consequência, o autoconhecimento do proletariado como conhecimento da sociedade
capitalista69. Para Lukács70, “cada elemento comporta a estrutura do todo”, de modo que
“o conhecimento de toda a sociedade pode ser desenvolvido a partir da estrutura da
mercadoria.”
A categoria de totalidade “não reduz [aufheben] seus vários elementos a uma
uniformidade indiferenciada, a uma identidade”71. A aparente independência que os
vários elementos do real possuem no modo capitalista de produção — como a máquina
— é uma ilusão que pode ser desvelada como tal apenas à medida em que são colocados
em uma relação dinâmico-dialética uns com os outros, à medida em que são percebidos
como momentos de um todo igualmente dialético-dinâmico72. Um exemplo deste
procedimento pode ser encontrado, segundo Marx, no fato de que na sociedade
capitalista, produção, distribuição, troca e consumo não são idênticos, mas membros de
uma totalidade, aspectos diferentes de uma unidade. Uma determinada forma de
produção determina formas definidas de consumo, distribuição e troca, assim como
67
HCC 316
HCC 344
69
HCC 343
70
HCC 393
71
HCC 83
72
HCC 84
68
24
relações definidas entre estes diferentes elementos. Uma interação ocorre entre estes
vários elementos, como é o caso com todo corpo orgânico73.
As formas objetivas de todos os fenômenos sociais mudam constantemente no
curso de suas incessantes interações dialéticas, de modo que a inteligibilidade dos
objetos se desenvolve em proporção ao que conseguimos apreender de sua função na
totalidade à qual pertencem. Esta é a razão pela qual apenas a categoria de totalidade
possibilita a compreensão da realidade enquanto processo social. Ela pode dissolver as
formas fetichistas produzidas necessariamente pelo modo capitalista de produção e
possibilitar que sejam vistas como meras ilusões. A objetividade de um fenômeno pode
ser percebida em seu caráter histórico, transitório, apenas em sua relação com a
totalidade .74
A ilusão do fetichismo abarca todos os fenômenos da sociedade capitalista,
mascarando seu caráter histórico, transitório. Esta ocultação só é possível pelo fato de
que “todas as formas de objetividade, nas quais o mundo aparece necessária e
imediatamente ao homem na sociedade capitalista, ocultam [...] as categorias
econômicas”, de modo que elas apareçam como se fossem relações entre coisas quando,
na verdade, dizem respeito a relações entre os homens. É apenas a partir do ponto de
vista da totalidade do método dialético que se torna possível o “conhecimento real do
que ocorre na sociedade”. A totalidade rompe o caráter reificado das categorias
econômicas da sociedade capitalista 75.
O ponto de vista metódico do todo, que se constitui como o problema central e a
condição primordial do conhecimento da realidade, é um produto da história em dois
sentidos. No primeiro, somente com o surgimento histórico do proletariado — através
das condições econômicas que o produziram —, a possibilidade objetiva e formal do
materialismo histórico pôde surgir como conhecimento. No segundo, somente no curso
da evolução do proletariado é que essa possibilidade formal se tornou real 76.
Esta evolução social, contudo, aumenta cada vez mais a tensão entre os
momentos parciais e a totalidade. Enquanto, por um lado, o sentido imanente da
realidade irradia com um brilho cada vez mais forte o sentido do devir, ela tem, por
outro, uma ligação cada vez mais profunda com a vida cotidiana, de modo que a
73
MARX, 1961, p. 630.
HCC 85
75
HCC 87
76
HCC 100
74
25
totalidade “afunda-se nos aspectos momentâneos, espaciais e temporais dos
fenômenos”77.
Seja qual for o tema específico em discussão, a totalidade do processo histórico
é sempre o problema principal de que trata o método dialético. A expressão literária ou
científica de um problema aparece sempre como a expressão de uma totalidade social,
de suas possibilidades e limites, de modo que “a história de um determinado problema
torna-se efetivamente uma história dos problemas.”78
Lukács vê nas obras A acumulação do capital¸ de Rosa Luxemburgo, e O
Estado e a revolução, de Lênin, dois exemplos de aplicação da categoria de totalidade
na realidade social. Tanto Luxemburgo quanto Lênin teriam tecido uma exposição
histórico-literária da gênese do problema a ser analisado, ressaltando o processo
histórico cujo resultado “constitui sua abordagem e sua solução” (HCC 118). Tal
procedimento, que pode ser identificado no jovem Marx, é o próprio conceito hegeliano.
O conceito, para Hegel, não é uma representação mental, como o uso comum do termo
pode sugerir, mas um objeto visto em sua lógica imanente de desenvolvimento. O
conceito, na dialética, dissolve a rigidez dos objetos e os transforma em processos. É
assim que Lênin e Luxemburgo analisam os objetos de suas obras.
O abandono da categoria de totalidade de Hegel e Marx leva, inevitavelmente,
de volta à “ética imperativa abstrata da escola kantiana”79. O individualismo
metodológico, isso é, aquele método que parte do indivíduo isolado, é o lado subjetivo
da ausência da categoria de totalidade, a qual deságua, por sua vez, no fatalismo. Para o
indivíduo isolado, seja ele capitalista ou proletário, o mundo só pode ser visto como que
subordinado a leis imutáveis e a um destino brutal e absurdo, completamente estranhos
a ele. A própria realidade social também é vista como submetida a leis eternas, diante
das quais o indivíduo que visa transformar o mundo tem apenas duas saídas, sendo
ambas falsas e aparentes: 1) tentar manipular tais “leis eternas” através da técnica ou 2)
transformar o interior do homem, a única esfera que permaneceu livre (ética). Como a
mecanização do mundo, no entanto, mecaniza também o próprio homem, tal ética
permanece abstrata e “apenas normativa, e não realmente ativa e criadora de objetos,
mesmo em relação à totalidade do homem isolado do mundo”80.
77
HCC 103
HCC 117
79
HCC 124
80
Ibidem, loc. cit.
78
26
1.4 Totalidade e práxis
O conceito de totalidade em Lukács tem forte influência hegeliana, sendo de
importância central na obra de ambos. Em Hegel, a “totalidade concreta” constitui o
início do progresso e do desenvolvimento, cujo resultado “é o ‘todo idêntico a si
mesmo’ que recobre a imediatez original na forma de ‘determinação transcendente’
através do ‘sistema de totalidade’.81“
A fragmentação capitalista do processo de trabalho separou o produtor do
processo global de produção, deixando de lado o caráter humano do trabalhador e
desencadeando
a
atomização
da
sociedade
em
“indivíduos
que
produzem
irrefletidamente, sem planejamento nem coerência82.” Isso trouxe reflexos não apenas
sobre o pensamento, a ciência e a filosofia do capitalismo, mas também sobre a própria
consciência do trabalhador individual. A reificação seria, neste sentido, uma perda da
totalidade.
O domínio da categoria de totalidade, isso é, a capacidade de apreender a
totalidade da sociedade enquanto totalidade concreta histórica, é a única superioridade
do proletariado sobre a burguesia e também seu instrumento de desreificação. A
burguesia, enquanto for a classe dominante, sempre disporá de mais recursos, poder,
formação, organização e conhecimento do que o proletariado. Através da categoria de
totalidade, contudo, este pode “compreender as formas reificadas como processos entre
os homens”, elevar à consciência o sentido imanente do desenvolvimento e transpô-lo
para a prática83.
Neste sentido, a totalidade leva a uma prática pois transforma não apenas o
objeto do conhecimento, mas o próprio sujeito. Este não pode ser, contudo, apenas um
indivíduo isolado. Este, quando muito, pode conhecer apenas aspectos de um domínio
parcial, algo fragmentário como “fatos” desconexos ou leis parciais abstratas. O sujeito
que tenta apreender a totalidade deve ser ele próprio uma totalidade, e isso somente as
classes sociais podem ser 84.
81
BOTTOMORE et al, 1983, p. 381.
HCC 105
83
HCC 390
84
HCC 107
82
27
A superação da reificação passa pela aplicação da categoria de totalidade à
prática do proletariado, através de uma “referência concreta às contradições que se
manifestam concretamente no desenvolvimento global, e com a conscientização do
sentido imanente dessas contradições para a totalidade do desenvolvimento85.” Esta
relação com a totalidade, no entanto, “não exige que a plenitude extensiva dos
conteúdos esteja conscientemente integrada nos motivos e nos objetos da ação.” Antes,
importa apenas que “haja uma intenção voltada para a totalidade, que a ação cumpra a
função [...] na totalidade do processo”.86
De maneira geral, a totalidade dialética em Lukács não se limita à investigação
da realidade. Ela é também um guia para a ação política, inseparável da reflexão teórica.
A totalidade fornece um enorme ganho de inteligibilidade no que se refere à sociedade
capitalista e sua história, relacionando todo momento particular à totalidade do processo
histórico. Enquanto categoria, ela forma um entroncamento entre a dialética e a
reificação, de modo que a análise da reificação pressupõe, logicamente, a categoria de
totalidade, às vezes como horizonte metodológico e objetivo de resolução e, por outras,
como uma terapia social, incluindo a superação do capitalismo87.
1.5 A mediação
As categorias de totalidade e mediação estão de tal forma imbricadas que uma
totalidade social sem mediação seria, segundo Mészáros 88, como “liberdade sem
igualdade”, um “postulado vazio e abstrato”. Segundo o discípulo de Lukács, “a
‘totalidade social’ existe por e nessas mediações multiformes, por meio das quais os
complexos específicos – isto é, as ‘totalidades parciais’ – se ligam uns aos outros em
um complexo dinâmico geral que se altera e modifica o tempo todo”.89
O culto direto da totalidade, sua mistificação como imediaticidade, sem as
mediações, só poderia produzir um mito, e um mito perigoso, como provou o nazismo.90
Neste sentido, Konder91 chama a atenção para o fato de que “intuir o todo” sem a
85
HCC 391
HCC 392
87
Ibid., loc. cit.
88
MÉSZÁROS, 2013, p. 58.
89
Ibid., loc. cit.
90
Ibid., loc. cit.
91
KONDER, 1984, p. 46.
86
28
consideração pelas partes, sem as necessárias mediações, é irracionalismo, sendo este
um dos pontos que Hegel criticava na perspectiva de totalidade (do absoluto) de
Schelling, chamado-a de “uma noite na qual todas as vacas são pardas”. 92
Não havia espaço para a imediaticidade no sistema de Hegel. Em sua Ciência da
Lógica, ao discutir sobre o início da ciência, ele rejeita a ideia de que o ponto de partida
deve ser algo externo ao próprio sistema, pois isso seria a afirmação de um princípio
não-mediado, e todo e qualquer conceito é mediado. Ele sugere então tentar encontrar o
princípio da filosofia em um conceito que parece imediato, ou que pelo menos temos a
impressão de experimentar de forma imediata, e o que melhor se apresenta para este
propósito é o conceito de Ser. Após examinar este princípio, todavia, Hegel percebe que
este também se mostra afetado por uma série de determinações, de modo que sua
imediaticidade era apenas aparente.93
Em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas ele apresenta, nos parágrafos 61 a
78, uma detalhada discussão sobre o conceito de mediação. Ela é aquilo que mantém a
unidade do sistema e uma característica daquilo que pode ser apreendido através de
categorias. Um objeto mediado é não-ilimitado, não-absoluto e não-independente.
Categorias são sinônimos de conceitos, e compreender – pensar através de conceitos –
significa apreender um objeto na forma de um condicionado e mediado. Se a mediação
aponta para a natureza da relação entre conceitos dentro de uma totalidade, então a
dialética é o elemento-chave para expor o todo. A dialética é a metodologia auxiliar
com a qual a natureza mediada de nosso conhecimento é desvelada.94
Adorno afirma que a mediação, para Hegel, significa a transformação que se
espera que um conceito sofra no momento em que se tenta apreendê-lo. Ela é o
momento do tornar-se (Werden) colocado necessariamente em cada ser. Sendo a
dialética a filosofia da mediação universal, isso significa que não existe nenhum ser que
não seja ao mesmo tempo um vir-a-ser.95
Uma das definições de Lukács sobre a mediação é que esta seria a expressão
pensada da própria estrutura dialética do ser, a qual se constitui de antagonismos e
oposições dissolventes e produtoras de novos antagonismos. Ela é a forma lógica na
qual podemos reproduzir no pensamento a processualidade dialética da existência (Sein)
92
Ibid., loc. cit.
SANDKÜHLER, 2005, p. 73.
94
Ibid., loc. cit.
95
ADORNO, 2017, p. 32.
93
29
e, com isso, cada resultado do processo realmente como resultado, e não como um
produto metafisicamente enrijecido, solidificado.96
Marx percebeu a importância da categoria de mediação em Hegel e, na disputa
entre Feuerbach e o filósofo de Jena nesta questão, ficou com este último. Em seu
ensaio filosófico sobre Moses Hess e os problemas da dialética idealista, publicado
pouco após HCC e ainda antes da ruptura conceitual que Lukács faria posteriormente
com importantes aspectos desta obra, Lukács discute a questão da mediação e aponta os
erros da crítica de Feuerbach a esta categoria.
O solo metodológico equivocado do qual Moses Hess parte é sua rejeição
feuerbachiana do conceito hegeliano de mediação. Feuerbach teve o cuidado de tentar
diferenciar sua posição de tentativas anteriores de alcançar o conhecimento imediato,
como a de Jacobi, por exemplo. Mesmo que ele tivesse tido razão, contudo, teria-se
perdido aqui uma das principais conquistas da filosofia hegeliana, um dos pontos que
continha em si a possibilidade de se desenvolver em uma dialética materialista: a
possibilidade metodológica de apreender e reconhecer a realidade social do presente em
sua efetividade e, mesmo assim, ter com ela uma relação crítica, no sentido de uma
atividade prático-crítica. Certamente havia em Hegel apenas a possibilidade desta
passagem, mas justamente aqui Marx se ligou diretamente a Hegel e rejeitou a crítica de
Feuerbach.97
Os chamados “socialistas verdadeiros”, corrente que Marx e Engels criticam no
Manifesto do partido comunista e da qual Moses Hess fazia parte, cometeram o erro de
considerar Hegel, desde seu ponto de partida, um mero “idealista”, e converteram sua
dialética objetiva do processo histórico em uma simples dialética do pensamento. Esta
falsa concepção da obra hegeliana fez com que percebessem a crítica de Feuerbach
como uma possível saída de seus impasses teóricos.
O que Feuerbach e os jovens hegelianos – dos quais os “socialistas verdadeiros”
também eram parte – tinham em comum era o fato de que todos tratavam a mediação
como algo puramente da esfera do pensamento. Em seu Fundamentos da filosofia do
futuro, Feuerbach afirma que “verdadeiro e divino é apenas aquilo que não precisa de
provas, o que [...] fala por si de maneira imediata [...] Tudo é mediado, afirma a filosofia
hegeliana. Mas algo é verdadeiro apenas quando não é mais mediado, mas imediato [...]
96
97
LUKÁCS, 2013, 668.
Ibid., p. 665.
30
Quem pode estabelecer a mediação como necessidade, como lei da verdade?”.98 A
mediação, para Feuerbach, não passava de um meio formal para a comunicação do
imediato e evidente conteúdo do pensamento.99 Em sua Crítica à filosofia hegeliana ele
afirma claramente:
O pensamento é uma atividade imediata, na medida em que é independente ...
A demonstração não é nada mais do que mostrar que aquilo que eu falo é
verdadeiro; nada mais do que o retorno da exteriorização do pensamento à
fonte original do pensamento ... A demonstração tem agora apenas na
atividade de mediação do pensamento para outros o seu fundamento.
Quando quero provar alguma coisa, então eu o provo para outros ... Toda
demonstração é, consequentemente, não uma mediação do pensamento em e
para o pensamento mesmo, mas uma mediação através da linguagem, à
medida que é minha, e ao pensamento dos outros, à medida que é deles ... À
filosofia hegeliana falta unidade imediata, certeza imediata, verdade
imediata.100
O idealismo de Hegel, ao contrário do que Feuerbach esperava com esta crítica,
não foi superado. Lukács afirma que isso fez apenas com que o utopismo eticizante
fosse elevado ao seu mais alto grau filosófico e que se estabelecesse o fundamento
epistemológico deste, pois uma certeza imediata, uma verdade imediata evidente pode
ser alcançada em apenas dois pontos.
O primeiro é que as formas sociais de nosso presente nos são dadas de maneira
imediata, e quanto mais sofisticadas e complexas (ou mediadas, para usar uma
expressão hegeliana), mais imediatamente evidentes. No que diz respeito aos
fundamentos econômicos sociais, esta imediaticidade é percebida como mera ilusão do
ponto de vista do proletariado. Este ato de percepção, esta compreensão clara
(Durchschauen), no entanto, não muda nada na certeza imediata, já que esta é a forma
de existência de nosso presente. Ela pode, entretanto, dar uma direção ao nosso
comportamento prático em relação a ela, o qual reage modificando o comportamento
imediato. Lukács fornece dois exemplos para ilustrar este ponto: o primeiro é sobre
nossa existência enquanto indivíduos isolados no capitalismo. Isso nos é simplesmente
dado e conseguimos perceber de maneira imediata, mas também podemos apreendê-lo
como resultado do desenvolvimento do capitalismo. Quando este é o caso, tal saber
permanece como um mero fato teórico, e a estrutura individualista não é alterada, mas
permanece em sua imóvel imediaticidade. Outro exemplo, mas que serve apenas como
98
FEUERBACH, 2016, p. 47.
LUKÁCS, 2013, p. 668.
100
FEUERBACH apud LUKÁCS, 2013, p. 668.
99
31
ilustração psicológica, ocorre também em relação ao nosso conhecimento da teoria
copernicana e nossa experiencia diária imediata de que é o sol que nasce e se põe, e não
que é a terra que gira. Apenas a tendência prática para a transformação dos fundamentos
sociais desta própria imediaticidade – e também aquelas não tão obviamente visíveis –
é capaz de causar uma comportamento transformador.101
Este problema estrutural influenciou tanto o pensamento de Hegel quanto o de
Feuerbach. O primeiro tratou a questão como meramente lógica e teórica, e com isso as
categorias de mediação se tornaram independentes e se tornaram “essências”
(Wesenheiten), se separaram do processo histórico real, do solo de sua verdadeira
inteligibilidade (Begreifbarkeit) e se enrijeceram em uma nova imediaticidade.
Feuerbach, por sua vez, conduziu sua polêmica exclusivamente pelo aspecto
problemático da solução hegeliana e deixou de perceber não só a correta colocação do
problema por Hegel e o progresso que ele já tinha alcançado, mas também o próprio
problema em si. Ele tratou toda a questão da mediação como um puro problema de
lógica, que poderia ser solucionado em parte unicamente pela lógica, e em parte fazendo
recurso à percepção imediata, à sensibilidade.
O segundo ponto que Lukács menciona é a evidência imediata da utopia ética.
Ela diz respeito ao fato de que as formas de objetividade do meio são dadas aos
indivíduos imediatamente, e que o grau de sua evidência imediata não fornece, nem de
longe, nenhuma medida de sua essência supra-histórica. Elas são, de um lado, a
consequência das forças objetivas daqueles poderes econômicos que lhe causam e, por
outro, o desdobramento dos interesses de classe decorrentes da situação social. A utopia
só pode levar, por isso, à aparência de uma práxis, a uma pseudo-práxis que, ou deixa
intocada a estrutura da realidade objetiva, ou que não é capaz de apresentar como
problema concreto a transição da realidade presente para a realidade “transformada”. A
nova realidade – a utopia - é apresentada como uma situação, como um estado, uma
condição já pronta (Zustand) e contrastada com a presente realidade objetiva, sem
apresentar o caminho que leva de uma à outra.
102
Entre presente e futuro falta a
mediação real, pois nos elementos do presente, nas tendências que ela trouxe e tornou
problemáticas, as forças reais para ir além de si não foram reconhecidas. 103 Ao falarmos
sobre a possibilidade de superação de reificação, mostraremos a relevância da categoria
101
Ibid., loc. cit.
Ibid., p. 670.
103
Ibid., p. 661.
102
32
de mediação para articular a relação entre teoria e práxis, entre consciência de classe e
partido.
33
CAPÍTULO 2. O NÚCLEO ORIGINÁRIO DA REIFICAÇÃO
A investigação lukácsiana do fenômeno da reificação tem seu ponto de partida
na unidade nuclear, mínima, de todo e qualquer problema da objetividade e de suas
respectivas formas correspondentes de subjetividade na sociedade capitalista: na
estrutura da mercadoria. A “solução deste enigma”, isso é, da estrutura da mercadoria,
seria uma exigência de todo problema nesse estágio de desenvolvimento da
humanidade.
Este procedimento, que parte de um elemento nuclear do qual se desdobram
todas as características do objeto investigado, foi inspirado por Hegel e Marx. Lukács
observa que assim como o capítulo da Lógica de Hegel sobre o ser, o não-ser e o vir-aser contém em si toda a filosofia hegeliana, poder-se-ia dizer talvez que o capítulo sobre
o caráter fetichista da mercadoria, de forma semelhante, “oculta em si todo o
materialismo histórico, todo o autoconhecimento do proletariado como conhecimento
da sociedade capitalista”.104
A máxima de que “todo início é difícil” se aplica, segundo Marx, a todas as
ciências, o que justificaria o fato de a análise da mercadoria apresentar as maiores
dificuldades de compreensão em sua obra.105 A mercadoria é a célula econômica da
sociedade capitalista. Assim como é mais fácil estudar um corpo já inteiramente
formado do que suas células, é mais fácil tentar compreender o capitalismo por inteiro
do que investigar a forma mercadoria do produto do trabalho ou a forma do valor da
mercadoria.
Nem todo produto é uma mercadoria. Em sociedades primitivas, a produção é
essencialmente para satisfazer necessidades de suas comunidades, sejam elas pequenas
(famílias) ou grandes (tribos ou clãs). Os primeiros grandes impérios que tinham por
base a agricultura não apresentavam grandes diferenças econômicas em relação aos
posteriores. O rei da Babilônia, por exemplo, era chamado de “Camponês da Babilônia”
e “Pastor de homens”. No Egito, o faraó e sua administração eram chamados de Pr’o,
que significava algo como “a grande casa”. A totalidade do estado econômico dessas
104
105
HCC 343
MARX, 1962, p. 11.
34
sociedades era como um grande Estado produzindo valores de uso para satisfazer suas
necessidades. 106
Com o surgimento das profissões independentes, as quais não requeriam um
esforço coletivo para sua realização (como a agricultura, por exemplo), aparece um
novo tipo de produção. Antes, camponeses-artesãos que moravam em comunidades
traziam ao mercado apenas o excedente de sua produção, aquilo que restava depois de
satisfeitas as necessidades de suas famílias e comunidades. Agora, o artesão
especialista, não mais ligado a nenhuma comunidade, tais como o ferreiro ou oleiro
itinerantes, por exemplo, não mais produz valor de uso para satisfazer suas
necessidades, mas a totalidade de sua produção é voltada para a troca. Ele só pode
adquirir seus meios de subsistência (como roupas, alimentação, etc.) através da troca de
seus produtos. O artesão separado da comunidade não produz mais produtos, mas
apenas valores de uso, mercadorias destinadas ao mercado.107
Este artesão, contudo, ainda é o proprietário de seus próprios meios de produção.
Nestes sistemas simples de produção podia-se encontrar de tudo à venda no mercado:
leite, pão, matérias-primas, botas, etc., mas não uma mercadoria especial que só
apareceu no capitalismo: a força de trabalho. Esta não era vendida, pois seu possuidor, o
artesão, era dono de suas próprias ferramentas. Ele trabalhava sozinho, era dono de sua
própria indústria. Será apenas no capitalismo que o possuidor da força de trabalho não
mais possuirá os meios de produção, sendo incapaz de aplicar sua força de trabalho ao
seu próprio negócio. Para não morrer de fome, ele deve vender esta mercadoria especial,
a força de trabalho, ao capitalista. Agora, no mercado, ao lado de lã, queijo e máquinas,
aparece uma nova mercadoria: a força de trabalho.108
Todas as mercadorias são trocadas por seu valor real, o qual é calculado através
do tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-las. Num primeiro momento
tem-se a impressão de que o capitalista se enriquece ao vender a mercadoria por um
preço maior que seu valor real, mas isso é apenas aparente. O preço da mercadoria para
o consumidor final corresponde ao preço real da mercadoria, e o lucro do empresário
consiste no fato de os custos de produção da mercadoria serem menores que seu valor
real. Isso só é possível devido a uma propriedade específica da força de trabalho: uma
vez consumida, ela gera um valor maior que o seu próprio. Todas as mercadorias, ao
106
MANDEL, 1976, p. 58.
Ibid., loc. cit.
108
BUCHARIN, 1921, p. 17.
107
35
serem consumidas, se deterioram, mas a mercadoria força de trabalho produz um valor a
mais, um Mehrwert, comumente chamado de mais-valia.
A mercadoria é composta por duas porções de riqueza: uma diz respeito ao seu
custo de produção, e a outra corresponde ao valor a mais que lhe foi transferida pelo
trabalhador no momento de sua produção. Estas duas partes são indissociáveis, de modo
que só é possível separá-las 1) destruindo a própria mercadoria ou 2) trocando-lhe por
dinheiro. Neste segundo caso, a riqueza contida na mercadoria é decomposta e pode ser
dividida em partes: uma quantidade é devolvida ao trabalhador sob a forma de salário,
outra é destinada a cobrir os custos de produção com maquinário, energia, matéria
prima, etc., e uma outra parte, aquela do valor a mais da mercadoria (mais-valia) é
embolsada pelo capitalista.109
Marx não parte, vale ressaltar, de um conceito básico, como o valor, por
exemplo, mas sim de um fenômeno material elementar, que é a mercadoria, a base do
sistema capitalista. Segundo Mandel110, seria incorreto afirmar que o método de Marx
consiste em partir do abstrato para o concreto. Ele parte, na verdade, de elementos do
concreto material em direção ao abstrato teórico, para então reproduzir a totalidade
concreta em sua análise teórica. O concreto, em toda sua riqueza, é sempre a
combinação de inúmeras abstrações teóricas, mas o concreto material, isso é, a
sociedade burguesa, já existe antes desta empreitada científica, determinando-a em
última instância e permanecendo como um ponto de referência para testar a validade da
teoria.
2.1 O fetichismo da mercadoria
A análise do fetichismo da mercadoria é essencial para se compreender o
fenômeno da reificação. Segundo O’Kane111, a reificação em Lukács é uma tentativa de
ampliar, de continuar, de estender a teoria marxista, de modo que ela também seja
aplicável em importantes facetas da realidade sociocultural contemporânea que não
estavam originalmente incluídas na crítica da economia política de Marx. Tais aspectos
incluem instituições tais como o Estado e a burocracia, além de alguns específicos
modos de consciência. O fetichismo da mercadoria, ademais, também será importante
109
TONET; LESSA, 2012, p. 30.
MANDEL, 1976, p. 20.
111
O'KANE, 2013, p. 83.
110
36
para compreender a unidade sujeito-objeto do proletariado de que vamos tratar no
quarto capítulo desta dissertação, pois na seção de O capital que trata sobre no
fetichismo da mercadoria está contido todo o materialismo histórico, todo o
autoconhecimento do proletariado enquanto conhecimento da sociedade capitalista. 112
2.2 O fetichismo em Marx
O termo “fetiche” deriva do francês “fétiche”, o qual remete ao latim “facticius”,
isso é “artificial”, “fictício”. Uma das definições de fetiche lhe designa como um objeto
de culto das civilizações primitivas, um objeto ao qual se atribui poderes mágicos ou
benéficos.113 A analogia religiosa parece ser mesmo o que Marx tinha em mente ao
abordá-lo em O capital, haja vista que nela encontraremos uma relação entre a
mercadoria e a religião e também um comentário sobre o cristianismo como a religião
mais apropriada ao capitalismo. É um trecho repleto de referências a magia, mistério e
necromancia.114
Paul Ricoeur115 afirmou que Marx era um dos “mestres da suspeita”, ou mestre
da escola da suspeição. Segundo o filósofo francês, o método de Marx é de
desmistificação. Ele parte de uma suspeita em relação às ilusões da consciência e
emprega um estratagema para decifrá-la, para mostrar o que jaz oculto, fora do alcance
da aparência imediata.
Este é o procedimento que ele emprega na seção em que analisa o fetiche da
mercadoria, no primeiro capítulo de O capital. Marx começa dizendo que a mercadoria
parece, num primeiro momento, algo extremamente simples, mas que seu exame
revelará toda uma complexidade insuspeita. Considerada do ponto de vista de seu valor
de uso, isso é, que através de suas propriedades ela satisfaz necessidades humanas ou
que essas propriedades são produtos do trabalho humano, ela não possui nada de
misterioso. É muito claro que o homem, através de sua atividade, transforma a matéria
natural de uma maneira que lhe seja útil, como a madeira que é transformada em uma
mesa, por exemplo.
O argumento de Marx se concentra, num primeiro momento, em identificar
como surge o fetichismo e como ele é um aspecto fundamental e inevitável no
112
HCC 343
FLECK, p. 143.
114
HARVEY, 2010, p. 38.
115
RICOEUR, 1970, p. 32.
113
37
capitalismo. O caráter místico da mercadoria não emerge nem do seu valor de uso e nem
do conteúdo da determinação do valor, e isso por duas razões. Primeiro pelo fato de que,
sejam quais forem as variadas formas de trabalho ou de atividades produtivas, é uma
verdade fisiológica que estas são funções do organismo humano e que cada uma dessas
funções são sempre o gasto ou o consumo do cérebro, dos nervos, dos órgãos, dos
sentidos, etc. Em segundo lugar, o que jaz na raiz da determinação do valor, que é o
tempo de duração deste gasto ou a quantidade de trabalho, é claramente distinguível da
qualidade do trabalho. Em todos os casos, este tempo de trabalho, que custa a produção
dos meios de vida, deve interessar aos homens, embora não de maneira uniforme. E,
finalmente, à medida que os homens trabalham uns para os outros, o seu trabalho toma
uma forma também social.116
A forma misteriosa da mercadoria surge da própria forma da mercadoria, e isso
de três maneiras: 1) a igualdade entre os diversos tipos de trabalho humano assume a
forma física da igual objetividade do valor dos produtos do trabalho; 2) a medida do
gasto da força de trabalho humano através de sua duração assume a forma da grandeza
do valor dos produtos do trabalho; e 3) as relações dos produtores assume a forma de
uma relação entre os produtos do trabalho. O misterioso caráter da forma-mercadoria
consiste “simplesmente no fato de que a mercadoria reflete as características sociais do
próprio trabalho dos homens como características objetivas dos próprios produtos do
trabalho.”117 Ela também reflete a relação social entre os produtores e a soma total de
trabalho (Gesamtarbeit) como uma relação entre coisas, fora das relações sociais
existentes.
A fim de esclarecer as sutilezas metafísicas no processo de transformação dos
produtos do trabalho em mercadorias, Marx traça uma analogia entre a mercadoria e a
religião. Na religião, os produtos do cérebro humano aparecem como figuras
autônomas, hipostasiadas e possuindo uma vida própria, e nessa forma entram em
relação com os homens e também entre si. No mundo das mercadorias acontece o
mesmo. Inicialmente oriundas dos próprios homens, as mercadorias se separam destes e
se relacionam tanto entre si quanto com estes. No mundo da religião, assim como no
mundo das mercadorias, opera o processo de alienação, no sentido de que há uma
116
117
MARX, 1962, p. 85.
MARX, 1962, p. 86.
38
exteriorização do homem em objetos nos quais ele posteriormente não mais se
reconhece.
Neste trecho é clara a influência de Feuerbach sobre Marx. Em sua principal
obra, A essência do cristianismo, Feuerbach pretende demonstrar que o cristianismo é a
forma mística e alienada do próprio homem: “o segredo da teologia é a antropologia”.
Feuerbach faz a religião retroceder ao firme solo da experiência, mostrando que Deus é
uma projeção das maiores qualidades do gênero humano (entendido como
Gattungswesen). O conhecimento de Deus é o autoconhecimento do homem. O
movimento de Marx aqui também vai neste sentido: o segredo da mercadoria são as
relações sociais entre os homens.
Os homens não percebem, entretanto, as relações entre si. O contato dos homens
uns com os outros se dá através das mercadorias. As relações dos diferentes tipos de
trabalho só aparecem mediante a troca dos produtos de seu trabalho, inicialmente
objetos de uso, tornados mercadorias. Os produtores não percebem as relações sociais
de seu trabalho social como o que realmente são, isso é, como relações sociais imediatas
entre os indivíduos. Tudo aparece invertido: as relações entre as pessoas são relações
coisificadas, e as relações entre as coisas, relações sociais. 118
Este relacionamento entre os produtores, tornado oculto pelas mercadorias, fica
mais claro ao compreendermos, por exemplo, a origem do que consumimos
cotidianamente. Num primeiro momento, ao tentarmos explicar a origem de um simples
pão francês, poderíamos dizer que ele veio de uma padaria, adquirido através de uma
troca em dinheiro: o comerciante nos forneceu o pão em troca de algumas moedas. Mas
devemos levar a questão mais a fundo: como o pão foi produzido? De onde vieram seus
ingredientes? Seguindo nesta trilha de investigação vamos descobrir toda uma complexa
cadeia produtiva que nos remeterá do padeiro ao agricultor na produção do trigo, o qual,
por seu turno, fez uso de máquinas e ferramentas que, por sua vez, também foram
produzidas por outros trabalhadores em uma fábrica metalúrgica. Nesta fábrica o
processo se repete: o aço, o minério, o cobre e outras matérias primas também foram
extraídas da natureza por outros trabalhadores, de modo que a cadeia parece não ter fim.
Cada um dos trabalhadores que encontramos neste processo também consome, por sua
118
MARX, 1962, p. 87.
39
vez, aquele mesmo pão francês do qual partiu nossa investigação. Marx e Engels119
afirmam que o capital é um produto social e que, em última análise, só pode ser
colocado em movimento pela atividade de todos os membros da sociedade.
A mercadoria manifesta suas duas faces no ato de troca: a de coisa útil e de coisa
de troca. Esta separação, contudo, se torna prática apenas quando este processo já se
expandiu de tal forma e com tal importância que coisas úteis passam a ser produzidas
especificamente para a troca, de modo que o valor é levado em consideração já no
momento da produção. A partir de então o trabalho privado dos produtores toma
também um duplo caráter social: por um lado ele deve, como trabalho útil determinado,
satisfazer determinadas necessidades sociais que não são suas e se tornar parte da soma
total de trabalho (Gesamtarbeit), da divisão social do trabalho. Por outro, este trabalho
deve satisfazer as múltiplas necessidades dos próprios produtores, de modo que cada
trabalho privado útil seja intercambiável. Esta igualdade entre os diferentes tipos de
trabalho, contudo, só pode se dar através de uma abstração de sua desigualdade
efetiva.120 Esta abstração é a redução ao caráter comum de todo tipo de trabalho, que é o
gasto ou consumo de força de trabalho.
Este duplo caráter social do trabalho privado é refletido ou espelhado no cérebro
do indivíduo, tendo em sua consciência a mesma forma que apresenta no processo
social de troca dos produtos. O caráter socialmente útil de seu trabalho privado aparece
na forma de que o produto do trabalho deve ser útil para outros, e o caráter social da
igualdade dos diversos tipos de trabalho se reflete em sua consciência na forma do
caráter comum, enquanto valores, dessas diversas coisas materiais, que são os produtos
do trabalho.121
Ao trocarem seus produtos uns com os outros, os homens não os relacionam
enquanto valores, pois essas coisas são, para eles, apenas um tegumento, uma casca, um
invólucro material que envolve trabalho humano igual, homogêneo, equivalente. O que
acontece no processo de troca é justamente o contrário.122 No momento em que os
produtores igualam seus produtos na troca enquanto valores, o que eles estão fazendo é
igualar seus diversos tipos de trabalho enquanto trabalho humano. É nesta passagem que
119
MARX, ENGELS, 1977b, p. 475.
MARX, 1962, p. 87.
121
MARX, 1962, p. 88.
122
MARX, 1962, p. 88.
120
40
Marx, como um psicanalista das relações sociais no capitalismo, faz a emblemática
afirmação: “eles não sabem, mas o fazem” (“Sie wissen das nicht, aber sie tun es”). O
valor, continua Marx, não traz escrito em sua testa o que ele é. Ele transforma cada
produto em um hieróglifo social, de modo a esconder, camuflar, escamotear sua
essência. Os homens tentam, posteriormente, fazer o caminho reverso para decifrar este
enigma, para chegar ao que está por trás do segredo de seus próprios produtos sociais,
pois “a determinação dos objetos de uso enquanto valores são, para eles, um produto
social assim como a linguagem”123. A descoberta científica de que os produtos do
trabalho, enquanto valores, são apenas expressões materiais (sachliche) do trabalho
humano gasto (verausgabten) em sua produção, embora faça época no desenvolvimento
humano da humanidade, não é capaz, contudo, de afastar a forma objetiva
(gegenständlichen) do caráter social do trabalho.
O produtor se interessa agora pela quantidade de produtos que pode trocar pelo
seu. A proporção pela qual é possível trocar um produto por outros parece emanar da
própria natureza do produto, da mesma forma que uma tonelada de ferro equivale, em
valor, a três gramas de ouro, por exemplo, ou uma tonelada de ferro equivale a uma
tonelada de ouro quanto ao peso, embora sejam diferentes em todas as suas outras
propriedades físicas e químicas. Marx124 afirma que na troca de produtos o movimento
social dos produtores toma para estes a forma de um movimento das próprias coisas,
acontecendo uma inversão: o processo toma a aparência, para os produtores, de que eles
estão submetidos às coisas, e não as coisas a eles.
É importante ressaltar que a análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria,
localizada na última seção do primeiro capítulo de O capital, é uma parte integrada a
um todo. A análise do fetichismo não pode ser separada de sua teoria do valor, da qual a
mercadoria é uma materialização125. É por isso que ele afirma que a determinação da
grandeza de valor contida em uma mercadoria através do tempo de trabalho é um
segredo que se esconde por baixo daqueles movimentos aparentes, manifestos
(erscheinenden) dos valores relativos das mercadorias. Esta descoberta só pôde ser
alcançada num momento em que a produção de mercadorias já estava completamente
desenvolvida. Com ela foi possível perceber que os trabalhados privados são
123
Ibid., loc.cit.
MARX, 1962, p. 89.
125
O'KANE, 2013, 58.
124
41
incessantemente reduzidos à sua medida socialmente proporcional, de modo que nas
relações contingentes de troca o tempo de trabalho socialmente necessário à produção
de determinada mercadoria se impõe praticamente como uma lei natural. Tal descoberta
científica, embora suprima a aparência da mera determinação acidental, casuística,
contingente da grandeza do valor dos produtos do trabalho, não toca em sua forma
concreta (sachliche).126
2.3 O fetichismo em Lukács
Lukács estende a análise marxiana da estrutura fetichista da mercadoria à
realidade social dos homens através de uma articulação das categorias de dialética e
totalidade. O filósofo húngaro compreende o fetichismo em termos de uma coisificação
na qual partes de um processo social característico da sociedade capitalista aparecem
como coisas separadas, divorciadas, independentes da totalidade. Essas coisas, enquanto
fetiches, possuem uma falsa objetividade que dissimula os processos sociais que os
constituem. O fetichismo em Lukács é utilizado, portanto, para “articular a constituição
social da aparência coisificada da sociedade capitalista, na qual a atividade prática é
objetificada, e na qual ela aparece como uma coisa que possui uma falsa
objetividade”.127
O que está contido, por exemplo, na expressão “um par de sapatos custa 5 mil
francos”, é uma relação social e implicitamente humana entre diversas pessoas: “O
criador de gado, o curtidor de couro, [o produtor de calçados,] seus operários, seus
empregos, o revendedor, o comerciante de calçados e, por fim, o consumidor” estão,
todos, em relação mútua, embora até ignorem a existência um do outro.128 Lukács
considera fundamental chamar a atenção para os problemas resultantes do caráter
fetichista da mercadoria como forma de objetividade, por um lado, e do comportamento
dos indivíduos submetidos sobre ela, por outro.
Segundo Netto129, a forma mercadoria não é apenas a célula econômica da
sociedade burguesa; ela é também a matriz que contém e escamoteia a raiz dos
processos alienantes que têm curso nesta sociedade. Esses processos são alienantes pois
126
MARX, 1962, p. 89.
O'KANE, 2013, p. 92.
128
GOLDMANN, 2008, p. 122.
129
NETTO, 1981, p. 78.
127
42
a reificação, posta pelo fetichismo, deve ser vista como a estrutura específica da
alienação que se engendra na sociedade burguesa constituída.130
O fetichismo da mercadoria é específico do capitalismo moderno. Embora em
sociedades anteriores já existisse a troca de mercadorias, assim como suas relações
objetivas e subjetivas correspondentes, a diferença entre esses períodos não pode ser
considerada como meramente quantitativa. A questão é saber “em que medida a troca de
mercadorias e suas consequências estruturais são capazes de influenciar toda a vida
exterior e interior da sociedade”.131 Neste trecho da Contribuição à crítica da economia
política, citado por Lukács132, Marx enfatiza com precisão este aspecto:
De fato, o processo de troca de mercadorias não aparece originalmente no
seio das comunidades naturais, mas sim onde elas cessam de existir, em suas
fronteiras, nos poucos pontos em que entram em contato com outras
comunidades. Aqui começa a troca que, em seguida, repercute no interior da
comunidade, na qual ela atua de maneira desagregadora.133
À medida que a troca prossegue na marcha histórica, tanto esta quanto a
produção regular específica para troca perdem cada vez mais seu caráter contingente. É
apenas no capitalismo moderno que este processo se torna a forma de dominação efetiva
sobre o conjunto da sociedade. Este é o fenômeno social fundamental da sociedade
capitalista: “a transformação das relações humanas qualitativas em atributo quantitativo
das coisas inertes, a manifestação do trabalho social necessário utilizado para produzir
certos bens como valor, como qualidade objetiva desses bens”.134 Somente aqui,
portanto, a mercadoria pode ser compreendida em sua essência autêntica, isso é, quando
se torna categoria universal de todo o ser social. A reificação surgida da relação
mercantil aparece neste ponto com uma importância decisiva, “tanto para o
desenvolvimento objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu
respeito”.135
De fundamental importância é a consequência que essa essência, que essa
estrutura impõe ao homem: este vê sua própria atividade como algo objetivo,
130
Ibid., p. 80.
HCC 195
132
MARX, apud LUKÁCS, 2012, p. 195.
133
MARX, 1961, p. 36. No original: „In der Tat erscheint der Austauschprozeß von Waren
ursprünglich nicht im Schoß der naturwüchsigen Gemeinwesen, sondern da, wo sie aufhören, an ihren
Grenzen, den wenigen Punkten, wo sie in Kontakt mit andern Gemeinwesen treten. Hier beginnt der
Tauschhandel und schlägt von da ins Innere des Gemeinwesens zurück, auf das er zersetzend wirkt.“
134
GOLDMANN, 2008, p. 122.
135
HCC 198
131
43
“independente dele e que o domina por leis próprias, que lhe são estranhas”.136 Como
afirma Marx em O Capital137, o que caracteriza a época capitalista é o fato de a força de
trabalho assumir para o próprio trabalhador a forma de uma mercadoria que lhe pertence
e, por outro lado, generalizar-se a forma mercantil da força de trabalho. Marx já havia
observado também em A miséria da filosofia138 que, no modo de produção capitalista,
não mais uma hora do trabalho de um homem corresponde a uma hora de trabalho de
um outro homem, mas que um homem durante uma hora tem tanto valor quanto um
outro homem durante uma hora. “O tempo é tudo, o homem não é mais nada; ele é, no
máximo, a corporificação do tempo”.139 Segundo Charbonnier140, esta fórmula enuncia
uma primeira dimensão da reificação capitalista, como uma redução substancial da
humanidade à sua força de trabalho, à sua utilidade.
Sendo, portanto, a força de trabalho uma mercadoria, isso significa que ela pode
e deve ser tomada em seu aspecto formal para possibilitar seu intercâmbio, isso é, a
permutabilidade de objetos qualitativamente diferentes, pois isso é o que possibilita que
uma mercadoria seja trocada por outra. No caso da mercadoria força de trabalho, esse
denominador comum a que ela deve ser reduzida é o trabalho humano abstrato. Este
trabalho abstrato, mensurável em relação ao tempo de trabalho socialmente necessário,
surge somente no curso de desenvolvimento da sociedade capitalista e, portanto,
somente aqui é que “ele se torna uma categoria social que influencia de maneira
decisiva a forma de objetivação tanto dos objetos como dos sujeitos”.141 À medida que o
processo de trabalho se desenvolve, desde o artesanato até a indústria mecânica, as
propriedades humanas e qualitativas do trabalhador desaparecem cada vez mais, de
modo que quanto mais este se intensifica, mais
o período de trabalho socialmente necessário, que forma a base do cálculo
racional, deixa de ser considerado como tempo médio e empírico para figurar
como uma quantidade de trabalho objetivamente calculável, que se opõe ao
trabalhador sob a forma de uma objetividade pronta e estabelecida.142
136
HCC 199
MARX, 1962, p. 184.
138
MARX, 1977, p. 181.
139
Ibid., loc. cit.
140
CHARBONNIER, 2014, p. 1.
141
HCC 201
142
Ibid., loc.cit.
137
44
O taylorismo realiza de maneira inequívoca tal tendência, a ponto de destacar as
qualidades psicológicas do trabalhador de seu conjunto, objetivando-as em relação à sua
própria personalidade para que possam “ser integradas em sistemas espaciais e racionais
e reconduzidas ao conceito calculador”.143 O princípio da racionalização baseada no
cálculo — isso é, a possibilidade do cálculo — se impõe como o aspecto mais
importante, tendo desdobramentos tanto sobre o sujeito quanto sobre o objeto do
processo econômico. Quanto ao objeto, sua unidade orgânica irracional é rompida para
que seja possível calcular seu processo de trabalho. A racionalização, a previsibilidade
da produção, só pode ser alcançada caso se desmembre todo o processo de produção em
sistemas parciais e isolados, cada um regido por leis próprias. Assim, o produto final
não passa de uma reunião objetiva e arbitrária de sistemas parciais.
Essa fragmentação do objeto, por sua vez, se reflete necessariamente no sujeito.
Suas qualidades especificamente humanas são vistas apenas como fontes de erro, pois
se tornam interferências nos sistemas de leis parciais calculados previamente. O homem
não aparece como o portador do processo de trabalho, mas como mero apêndice, parte
mecanizada de um “sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo
totalmente independente dele, e a cujas leis ele deve se submeter”.144
A progressiva mecanização do processo de trabalho leva então a um paradoxo: a
atividade do trabalhador torna-se, cada vez mais, contemplativa. Isso é, o sistema
fechado e acabado da produção aparece como regulado por leis próprias, livre de uma
influência possível da atividade humana. Esta atitude contemplativa, segundo Lukács,
“transforma também as categorias fundamentais da atividade imediata dos homens em
relação ao mundo: reduz o espaço e o tempo a um mesmo denominador e o tempo ao
nível do espaço”.145
O processo de especialização do trabalho leva a uma perda da imagem da
totalidade, mas como no campo cognitivo a necessidade de apreender a totalidade não
pode desaparecer, tem-se a impressão de que é a própria ciência que teria despedaçado
assim a realidade por força de seu próprio método de investigação, isso é, devido à
fragmentação da totalidade em áreas específicas do saber. Lukács recupera aqui a
observação de Marx de que essa separação dos aspectos da realidade não vai dos
manuais para a realidade, mas vem da realidade para os manuais. E isso de tal modo que
143
HCC 202
HCC 204
145
Ibid., loc.cit.
144
45
quanto mais desenvolvida for uma ciência, mais clara será sua visão sobre si mesma e
mais ela “voltará as costas aos problemas ontológicos de sua esfera e os eliminará
resolutamente do domínio de conceitualização que forjou”, isso é, quanto mais uma
ciência se desenvolver, mais incompreensível e inapreensível será para ela seu substrato
concreto de realidade, e mais provavelmente ela se configurará apenas como um sistema
formalmente fechado de leis parciais e especiais, tal como Marx identificou no caso da
economia em relação ao valor de uso, o qual estava “além da esfera de investigação da
economia política”.146
Este substrato concreto de realidade, sendo inapreensível, transforma-se em um
problema de transcendência, pois é algo que não pode ser alcançado pelas ciências, de
modo que seria vão alimentar a esperança de que a coesão da totalidade pudesse ser
adquirida por uma ciência que a todas unisse através da filosofia. Tal tentativa só
poderia ser bem-sucedida se fosse rompido o formalismo das próprias ciências
fragmentadas, mas não através de uma ligação mecânica entre elas, as quais trazem a
marca dessa fragmentação desde sua gênese. As ciências teriam que ser remodeladas
internamente por este novo método unificador, colocando-se a questão “segundo uma
orientação radicalmente diferente e orientando-se para a totalidade material e concreta
do que pode ser conhecido, do que é dado a conhecer”.147
No terreno da sociedade burguesa é impossível essa modificação radical do
ponto de vista, não obstante o desejo de síntese da filosofia burguesa e de sua tentativa
para abarcar de maneira enciclopédica todo o saber. Em relação às ciências particulares
a filosofia tem aqui, no entanto, a mesma posição destas em relação à realidade
empírica: considera-as um substrato dado, imutável. E isso lhe retira qualquer
possibilidade “de revelar a reificação que está na base desse formalismo”.148
2.4 Manifestações do fetichismo
O fetichismo em Lukács não se restringe apenas à forma da mercadoria, mas
torna-se um fenômeno teórico geral. Ele engloba desde métodos científicos que tentam
compreender a sociedade capitalista até a consciência cotidiana dos seres humanos sob
este sistema. A própria filosofia crítica de Kant, por exemplo, é entendida por Lukács
146
HCC 229
HCC 238
148
HCC 239
147
46
como tendo por ponto de partida a estrutura reificada da consciência, ou seja, a estrutura
fetichizada da consciência no capitalismo.
Um dos tipos de fetichismo que encontramos na obra de Lukács como objeto de
crítica é chamado por O’Kane149 de “fetichismo metodológico”, e temos um exemplo
dele na crítica lukácsiana da ciência. O método científico se constitui pela aparência
exterior fetichista e fragmentada do capitalismo, pela objetificação e pela fragmentação
da totalidade. Esta aparência se harmoniza com a especialização e se torna a base da
ciência, fazendo com que aspectos objetificados da realidade sejam concebidos como
“coisas” não relacionadas à totalidade de onde foram extraídas.
Lukács critica estas formas de fetichismo metodológico por meio da relação
sujeito-objeto típica de seu marxismo hegeliano. Ao contrário do método científico, a
dialética insiste na unidade concreta do todo, de modo que expõe as aparências
fetichistas como elas realmente são, isso é, como ilusões necessariamente engendradas
pelo capitalismo. Esta crítica de Lukács se dá, primeiramente, através do
reconhecimento dialético dessas “coisas” como meras formas da aparência nas quais seu
núcleo necessariamente é trazido para fora, exposto, revelado.150
O fetichismo metodológico consiste, assim, em pressupostos metodológicos de
especialização e racionalidade formal. Tendo por base a aparência coisificada gerada
pela reificação de todas as relações humanas e a divisão social do trabalho que
transformam esses processos sociais em aparência de coisas, o fetichismo metodológico
fornece uma orientação fragmentada em direção à totalidade. Os processos sociais da
totalidade não podem ser compreendidos, e os objetos são concebidos como coisas
separadas dos processos que os coisificam.151
Outro tipo de fetichismo que encontramos na obra de Lukács é o fetichismo
cotidiano. As concepções cotidianas dos homens que vivem no capitalismo têm por base
as aparências
152
imediatas deste último, sendo incapazes, no entanto, de apreender o
substrato material das relações de classes que constituem esta aparência coisificada. O
método marxista, em virtude de sua apreensão dialética da totalidade, é capaz de
apreender este substrato. O conhecimento da totalidade dissolve as concepções
149
O'KANE, 2013, p. 93.
Ibid., loc.cit.
151
Ibid., loc.cit.
152
Ibid., loc.cit.
150
47
fetichistas do homem comum da sociedade capitalista de duas maneiras: 1) dissolvendo
a concepção de que o capitalismo é algo natural, uma entidade não-histórica e 2)
dissolvendo a aparência fetichista do capitalismo.
A naturalização do capitalismo é um exemplo de como funciona o fetichismo
cotidiano. O homem comum não consegue compreender, em seu dia-a-dia, como o
capitalismo funciona enquanto totalidade social dialética, e a aparência coisificada deste
sistema gera a ilusão de que ele é natural. A reificação petrifica todos os processos
sociais, de modo que a máxima “houve história, não há mais”, que Marx atribuía aos
economistas, se estende a todos os aspectos da vida. Em todos os campos da
investigação social pode-se perceber tanto o surgimento quanto a superação de ideias,
teorias, modelos, modos de produção, reinos, governos, culturas e civilizações. Quando
se trata do presente, contudo, o processo histórico reificado parece ter encontrado seu
termo, de forma que o capitalismo é considerado o fim da odisseia humana, a última
estação do trem da história.
Alguns termos, expressões e atitudes aparentemente inocentes e comuns no
cotidiano das sociedades capitalistas são índices de como os homens e suas relações são
coisificados. Durante décadas, por exemplo, o setor responsável por auxiliar na gestão
de pessoal das empresas teve o nome de “recursos humanos”. O que ele deixa implícito
é que ao lado dos diversos tipos de recursos que uma empresa possui — ferramentas,
computadores, mobília, insumos, etc. —, há também, no processo de produção, um tipo
de recurso especial, o qual recebe o rótulo de “humano”. Este tipo de recurso exige um
tratamento especial por parte do capital pois fala, tem emoções, necessidades e
motivações que as máquinas não possuem.
Quanto mais voltamos no tempo e nos aproximamos da revolução industrial,
mais claro isso se mostra. Antes da instituição de regimes de previdência e seguridade
social — conquistas dos próprios trabalhadores —, o “recurso humano” adoecido,
acidentado ou aposentado era descartado como qualquer outra mercadoria que chegasse
ao fim de sua vida útil. Quando não mais pudesse produzir, quando não mais tinha
utilidade para o capital, era abandonado à sua própria sorte, largado em uma situação
ainda pior que a dos servos ou escravos, que pelo menos dispunham de alguma
segurança nestas situações. Romances de época como o francês Germinal, de Emile
Zolá, e o inglês Hard times, de Charles Dickens, oferecem um retrato contundente e em
48
escala ampliada do que era e continua sendo a objetificação do trabalhador no modo de
produção capitalista.
O ponto de vista da totalidade dissolve a petrificação, a rigidez de conceitos que
entendemos bem no cotidiano da vida no capitalismo mas que, sob escrutínio filosófico,
são absurdos. Expressões que encontramos nos noticiários dando conta de que “o
mercado reagiu bem” ao fato de que determinado político foi preso, por exemplo, não
causam a estranheza que deveriam causar. Ao deus mercado são atribuídos sentimentos,
emoções, ações, reações e até mesmo características físicas, como sua famosa “mão”.
Ele não é percebido como uma relação entre homens, entre produtores de mercadorias
isolados uns dos outros em um sistema anárquico de produção, mas sim como uma
coisa, um ente, uma figura mitológica que, com sua “mão invisível”, controla a vida dos
homens ao invés de ser controlado por eles.
49
CAPÍTULO 3. A MERCADORIA CONSCIENTE DE SI
Este capítulo articula o anterior, que tratou sobre a mercadoria, com o seguinte,
que irá analisar o sujeito-objeto idêntico. Vamos demonstrar aqui como o proletário, por
ser obrigado a vender sua força de trabalho e tornar-se, por isso, uma mercadoria como
qualquer outra, se tornará a “mercadoria consciente de si” e, posteriormente, o sujeitoobjeto idêntico do processo histórico.
A reflexão de Lukács sobre a autoconsciência da mercadoria se articula, passo a
passo, com questões históricas concretas. Ele apresenta, inicialmente, o problema e a
dinâmica do autoconhecimento do proletariado com a descoberta de si mesmo como
sujeito. Esta descoberta, para Lukács, é um exemplo clássico da relação entre gênese
conceitual e histórica. O proletariado deve apreender a si próprio e a sua existência
como produto de sua própria atividade, tendo claro, para isso, que todas as categorias
relevantes utilizadas para tal compreensão são determinações da existência humana,
momentos dos próprios processos históricos. Isso pressupõe que os instrumentos desta
gênese, as categorias, devem ser apreendidas como em sua própria sequência e
configuração como característica estrutural do presente. Esta “sequência” é determinada
através da relação que possuem na moderna sociedade burguesa.153
Os métodos de conhecimento da realidade social são necessariamente
determinados pela existência e pelos interesses de cada classe social. Proletariado e
burguesia, portanto, apresentam distintas formas de consciência e autoconsciência
justamente pelo lugares que ocupam no processo de produção. A realidade social na
qual a burguesia é a classe dominante se apresenta, para ela própria, como o “melhor
dos mundos possíveis”, para usar uma expressão de Leibniz. A burguesia não consegue
imaginar o mundo com uma configuração diferente do atual, o que se reflete no campo
da indústria cultural na enorme quantidade de livros, filmes e jogos que tratam de temas
escatológicos ou apocalípticos: ou a terra acaba, e a humanidade precisa fugir do
planeta, ou o capitalismo dura para sempre. Outra realidade, neste planeta, seria
impossível. Seus interesses de classe constituem uma barreira intransponível para seu
pensamento.
153
HAHN, 2017, p. 84.
50
Já para o proletariado, o objetivo é uma transformação radical, estrutural da
sociedade, de modo que os limites da imediatidade devem ser superados a cada passo de
sua práxis transformadora. E isso começa com a definição de qual será o ponto de
partida de seu ponto de vista. Como o método dialético sempre produz e reproduz seus
próprios momentos essenciais, e sua essência é a negação de uma linha reta, contínua de
pensamento, o problema do ponto de partida do proletariado se coloca a cada passo
prático-histórico, assim como a apreensão da realidade no pensamento. Este ponto de
partida não pode ser, de tal maneira, uma “tabula rasa”, ou quaisquer aparências
isoladas da realidade, como ideias ou postulados morais arbitrários. O proletariado não
pode tentar apreender a realidade partindo de um novo início, sem pressupostos, como
tentou a burguesia em relação às formas feudais medievais. O pensamento proletário
deve partir da compreensão da atual sociedade burguesa.154
O proletariado é obrigado pela miséria a vender uma propriedade humana — sua
força de trabalho — como uma mercadoria, como uma “coisa” que lhe pertence, que
pode ser mensurada, calculada em horas ou em termos de “produtividade” pela
burguesia. Assim, aquelas características que aparecem à burguesia como quantitativas
tornam-se, do ponto de vista do proletariado, qualitativas, pois envolvem toda sua
existência física, mental e moral. Ao vender sua força de trabalho, sua única
“mercadoria”, e integrá-la a um sistema mecanizado e racionalizado que funciona
independente dele, no qual ele não passa de uma engrenagem, de um número, de uma
estatística, o proletariado se integra em sua totalidade a este sistema, pois a sua
“mercadoria”, sua força de trabalho, é inseparável de sua própria existência. Marx
afirma que quando o capitalista vai ao mercado para comprar trabalho, ele não se depara
diretamente com o trabalho em si, mas sim com o trabalhador. O que ele compra é a
força de trabalho, não a mercadoria trabalho. À medida que o trabalho começa, este já
não pertence ao trabalhador, e não pode mais ser vendida por ele.155 Esta situação leva
ao que Lukács chama de “autoconsciência da mercadoria”, um híbrido bizarro de
humano e não-humano.156
154
HAHN, 2017, p. 86.
MARX, 1962, p. 559.
156
FEENBERG, 2011, p.180.
155
51
3.1 As classes sociais no marxismo
O pensamento marxista parte do firme terreno da experiência. O método
dialético e sua apreensão da totalidade significam que não há aspecto isolado da
realidade que seja regido por leis próprias, internas — este ponto de vista, na verdade, é
uma consequência da própria reificação. Uma filosofia alienada de conteúdos sociais
concretos é uma filosofia reificada, como discute Lukács em HCC ao falar sobre as
“antinomias do pensamento burguês”. A fim de prosseguir, portanto, em nossa
investigação de como o proletariado toma consciência de si enquanto mercadoria,
precisamos compreender sua realidade social concreta e em seu devir histórico, pois
este é o ponto de partida de seu pensamento. Não se trata, aqui, de uma mera operação
entre conceitos abstratos, como faz parecer Hegel em sua Fenomenologia do Espírito ao
não expor de maneira clara a quais realidades sociais ele se refere. Quando falamos de
filosofia marxista, os conceitos são vivos e inseparáveis da economia e da história.
Os humanos se distinguem de todos os outros animais pelo trabalho. Mais
especificamente, pela capacidade de, ao transformar a natureza, também se
transformarem. As abelhas, por exemplo, produzem mel, mas permanecem sempre as
mesmas, assim como as formigas, que sempre vivem da mesma maneira. Apenas os
humanos, ao transformarem a natureza, ao mesmo tempo transformam-se a si
mesmos.157 Segundo Marx e Engels158, pode-se distinguir os homens pela consciência,
pela religião ou o que for, mas eles próprios só começam a se distinguir dos animais a
partir do momento em que começam a produzir seus meios de vida, um passo que está
condicionado através de sua organização corpórea. À medida que começam a produzir
seus meios de vida, os humanos produzem indiretamente sua própria vida material.
Ao transformar a natureza em meios de produção (ferramentas, fontes de
energia, matérias-primas, etc.) ou em meios de subsistência (comida, casa, roupas, etc.),
os homens produzem também novas possibilidades e necessidades, as quais
impulsionam o desenvolvimento tanto das sociedades, quanto de seus indivíduos. Neste
intercâmbio material entre humanos e natureza, ambos são alterados, transformados,
mudados, de forma que por essa razão o trabalho é considerado a categoria fundante do
157
158
TONET, LESSA, 2012, p. 9.
MARX, ENGELS, 1978, p. 21.
52
mundo dos homens e das classes sociais. 159 Nossa definição de proletário, portanto,
passa pela questão do trabalho, da relação homem-natureza.
A maneira pela qual os humanos transformam a natureza determina em grande
parte a forma como a sociedade se reproduz. Cada modo particular de trabalho fundou
um diferente modo de produção. O trabalho de coleta, por exemplo, fundou o modo de
produção primitivo. O trabalho escravo, por sua vez, fundou o escravismo. O trabalho
do servo fundou o modo de produção feudal, e o trabalho proletário é fundante do modo
de produção capitalista.160
Quando nos referimos a trabalho, queremos ressaltar que se trata sempre de
trabalho manual. A única maneira de transformar a natureza é através de processos
químicos, físicos ou biológicos, isso é, por meio de processos também naturais. Para
desencadear os processos naturais necessários à produção, é preciso que a consciência
empregue a matéria natural imediatamente sob seu controle, que é o próprio corpo
humano. Segundo Marx161, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, no
qual o homem medeia, regula e relaciona seu próprio metabolismo com a natureza
através de sua atividade, de sua ação. Ele se defronta com a matéria natural como uma
força natural e coloca em movimento a força natural de sua própria corporeidade, a
saber, braços e pernas, cabeça e mãos, para que a matéria natural possa tomar uma
forma utilizável para sua própria vida.
A primeira forma de trabalho da humanidade foi a coleta. Utilizada por
pequenos bandos e tribos, este período começou há cerca de 100 mil anos e terminou
entre 12 e 10 mil anos atrás, com a Revolução Neolítica. A coleta definia algumas
características e limites das sociedades primitivas. O deslocamento constante significava
que as pessoas não podiam carregar senão o indispensável, como alimento, água e
crianças. As ferramentas eram feitas com o menor emprego de tempo possível, sendo
abandonadas logo depois de utilizadas (período da pedra lascada, bem antes ainda das
ferramentas de pedra polida e dos primeiros metais). Os grupos também eram muito
pequenos, e ao final do período primitivo, não eram mais que tribos e associações de
tribos. Este modo de produção não permitia uma sociedade mais numerosa, além de
exigir a participação de todos os indivíduos da comunidade no processo produtivo. Cada
159
TONET, LESSA, 2012, p. 9-10.
TONET, LESSA, 2012, p. 10.
161
MARX, 1962, p. 192.
160
53
membro dava sua colaboração e também acessava o produto do trabalho coletivo, não
havendo aqui apropriação privada da riqueza.162
Por volta de 10 mil anos atrás houve um salto no desenvolvimento das forças
produtivas. Durante o longo período de coleta os humanos foram descobrindo novas
maneiras, cada vez mais eficientes, de retirar da natureza o que precisavam. Com a
descoberta da semente surgiu a agricultura e também a pecuária. As comunidades,
anteriormente nômades, se tornaram sedentárias. Foi a partir daí que surgiram os
grandes impérios da antiguidade, como Suméria, Egito, Pérsia, Grécia e Roma,
substituindo os primitivos bandos e tribos. A este período de grandes transformações se
dá o nome de Revolução Neolítica.163
Neste novo período, as ferramentas se desenvolveram, e da pedra lascada se
passou à pedra polida e, em seguida, aos metais. O artesanato se separou aos poucos da
agricultura e da pecuária, e em alguns milhares de anos a cidade foi se separando do
campo. Pela primeira vez na história, os humanos deram conta de dominar as forças da
natureza para produzirem o que necessitavam, o que deu origem, por sua vez, a uma
capacidade de trabalho que ultrapassava meramente suas necessidades pessoais. A partir
deste momento foi possível gerar um excedente de trabalho.164
Todas estas condições históricas tornaram possível a exploração do trabalho
alheio, aparecendo então indivíduos que podiam ter muito mais do que conseguiriam
pelo próprio trabalho. A exploração dos trabalhadores produtivos, retirando deles o
trabalho excedente, se mostrou lucrativa, e os modos de produção de todas as
sociedades daí em diante têm em comum a existência das classes sociais exploradas e
exploradoras.165
O trabalho alienado trouxe também novas necessidades. Tendo em vista que só é
possível “obrigar uma pessoa a produzir a riqueza que a oprime pela aplicação cotidiana
da violência”166, a classe dominante criou então mecanismos e instituições para
controlar aqueles que produzem a riqueza. Um dos mais importantes é o Estado. Outra
característica surgida com o trabalho alienado foi a oposição entre trabalho manual e
intelectual. As classes dominantes precisam organizar seus negócios, a compra e venda
de mercadorias, os processos de produção em suas propriedades, etc. O trabalho
162
TONET; LESSA, 2012, p. 11.
Idem, p. 12.
164
Idem, p. 13.
165
Ibidem., loc.cit.
166
Ibidem., loc.cit.
163
54
intelectual é composto por todas as atividades necessárias para manter sob controle a
classe trabalhadora, e o trabalho manual corresponde à transformação da natureza nos
bens necessários à reprodução da vida material.167
Todas as sociedades divididas em classes têm em comum o fato de que as
classes dominantes são numericamente pequenas. Esta é uma condição necessária para
que a riqueza possa se concentrar nas mãos de poucos. Consequentemente, não sendo
capazes de controlar sozinhos a imensa classe trabalhadora, eles precisam de auxiliares,
de lacaios. Estes são os soldados, policiais, juízes, advogados, juristas e a burocracia em
geral. No processo produtivo eles são os capatazes, feitores, capitães-do-mato, gerentes,
supervisores, diretores, chefes de departamento pessoal, etc. Encontramos, assim, entre
a classe trabalhadora e as classes dominantes sempre uma camada intermediária de
assalariados, às vezes menor, às vezes maior, mas sempre presente e com a função
social de auxiliar a classe dominante a explorar os trabalhadores. Estas classes são
também assalariadas, mas como não trabalham diretamente na produção, os salários que
recebem são oriundos da exploração dos proletários. Duas das principais características
que esta camada auxiliar tem em comum com a classe dominante é que 1) ambas vivem
da exploração do trabalho proletário e 2) são parasitárias. 168
Por outro lado, há uma contradição fundamental entre essas camadas auxiliares e
as classes dominantes. Pelo fato de também serem assalariadas, estas compartilham da
mesma sorte da classe produtiva, e quanto menor seu salário, maior o lucro dos patrões.
Ao mesmo tempo, portanto, em que concordam com a classe dominante quanto à
exploração dos trabalhadores produtivos, discordam quanto ao valor dos salários, pois
estão na mesma situação destes últimos.169
Cada época histórica tem suas próprias particularidades, mas estas características
são comuns a todas as sociedades de classes. O escravismo, que foi o modo de produção
fundado pelo trabalho escravo, tinha como classes sociais os senhores de escravos, seus
auxiliares e os escravos. O feudalismo, fundado pelo trabalho feudal, era composto
pelos senhores feudais, pela camada de assalariados auxiliares e os servos. Já no modo
de produção capitalista, fundado pelo trabalho proletário, temos uma estrutura
167
Idem., p. 14.
Idem., p. 17-18.
169
Idem., p. 18.
168
55
semelhante: uma classe de parasitas exploradores, que é a burguesia, seus auxiliares
lacaios e o proletariado.170
O modo de produção capitalista possui características exclusivas e de grande
importância para nossa compreensão do fenômeno da reificação. Uma delas é que as
relações de exploração no feudalismo e no escravismo eram bastante evidentes. Isso se
devia ao fato de que a propriedade privada ainda estava, em grande medida, ligada à
natureza. Havia outras formas de propriedade, como a imobiliária, que não estavam
vinculadas diretamente à natureza, mas elas não determinavam a reprodução da
totalidade social.171
O fato de a propriedade ainda estar ligada à natureza, pouco ainda afastada das
barreiras naturais, traz duas consequências importantes: a primeira é que isso colocava
um limite ao processo de acumulação de riqueza. A partir de determinado ponto não era
mais possível conquistar novos territórios e nem obter mais escravos ou servos, e então
o sistema entrava em crise. A segunda é que a acumulação de riquezas vinha quase que
exclusivamente da exploração direta e imediata do trabalhador manual, daquele que
transformava a natureza em meios de subsistência e produção.172
O modo de produção capitalista se caracteriza por um afastamento destas
“barreiras naturais” que impunham limites de expansão às sociedades anteriores. A
propriedade privada, chamada agora de capital, não se vincula mais necessariamente à
natureza, e sua acumulação é ilimitada. Sem a intervenção de outros fatores sociais, a
regra é a expansão da riqueza num processo sem fim. Esta é uma das condições para a
manutenção do sistema, uma condição sem a qual o capital não pode continuar se
reproduzindo.173
Outra inovação trazida pelo capitalismo foi a possibilidade de enriquecimento
através da exploração não somente de trabalhadores que transformam a natureza, mas
também de outros que não atuam diretamente nesta atividade. Parte da burguesia pode
se enriquecer sem ser proprietária de fábricas na cidade ou fazendas no campo. 174 Este
ponto é muito importante para nossa reflexão na medida em que explica como o sistema
capitalista, devido à sua complexidade, esconde, encobre, escamoteia a verdadeira
origem da exploração, gerando ilusões na consciência. No capitalismo é possível ficar
170
Idem., p. 23-24.
Idem., p. 25.
172
Ibidem., loc.cit.
173
Ibidem., loc.cit.
174
Idem., p. 26.
171
56
rico em atividades como no comércio ou nos bancos, por exemplo, atividades que não
transformam a natureza.
Se é possível explorar tanto os trabalhadores que transformam a natureza quanto
aqueles envolvidos em outras atividades, o que distinguiria uns dos outros? Precisamos
prosseguir em nossa análise para compreender a diferença entre eles e chegar a uma
definição mais precisa do que define as classes sociais, entre o que distingue os
proletários dos outros assalariados.
Em qualquer modo de produção, seja ele o escravista, o feudal ou o capitalista,
os trabalhadores manuais são os únicos responsáveis por criar o que Marx chama de
conteúdo material da riqueza social, qualquer que seja sua forma. A forma social desta
riqueza nos modos de produção escravista e feudal era a propriedade do senhor de
escravos e do senhor feudal. Na sociedade capitalista, ela aparece sob a forma de
capital.175
A riqueza total da sociedade é composta por tudo o que as gerações vão
produzindo ao longo do tempo. À medida que uma sociedade constrói fábricas, estradas,
portos, aeroportos, navios, cidades, etc., sua riqueza total vai se acumulando no tempo e
crescendo. Para que ela possa se acumular é necessário, no entanto, que o produto
resultante da atividade econômica que a produziu continue existindo depois de
terminada a atividade que lhe deu origem. É necessário, por exemplo, que após
encerrada a atividade de construção de uma estrada, a estrada continue existindo. Que
após encerrada a atividade de construção de um navio, este ainda exista. Como a
matéria natural já existia antes do processo de trabalho e continuará existindo depois de
transformada, o produto também continua existindo, e às vezes por milhares de anos.
Basta uma visita a um museu para constatar a permanência de ferramentas primitivas
construídas há milhares de anos, utensílios utilizados na sociedade egípcia, nas
pirâmides dos faraós, no império romano, etc. São estes objetos que constituem o
conteúdo material da riqueza social.176
Isso parece óbvio, mas é importante ressaltar que a única forma de se acumular
riqueza é através da permanência do produto, e isso só é possível nas atividades que
transformam a natureza. Esta é a razão de as classes dominantes e seus auxiliares não
produzirem nenhum tipo de riqueza, sendo sempre e em qualquer lugar parasitas da
175
176
Idem., p. 28.
Idem., p. 29.
57
riqueza produzida pelos trabalhadores que transformam a natureza. Nas sociedades
escravista, feudal e capitalista, são os escravos, os servos e os proletários,
respectivamente, os responsáveis pelo intercâmbio material com a natureza e os únicos
produtores da riqueza social.177
No capitalismo, os responsáveis por transformar a natureza em produtos que
constituem a totalidade da riqueza social são os proletários. Marx nos oferece uma
definição precisa de proletário, diferenciando-o do restante da classe trabalhadora. Ele
seria somente aquele trabalhador que produz e valoriza capital:
Por ‘proletariado’ não se deve entender, economicamente, nada além do
trabalhador assalariado que produz e valoriza ‘capital’, e é lançado na sarjeta
tão logo se torne supérfluo às necessidades de valorização do ‘Monsieur
Capital’, como lhe chama Pecqueur.178
Como Atlas, o titã da mitologia grega que sustenta os céus em seus ombros, o
proletariado é a classe social que sustenta a sociedade capitalista. Toda forma de
riqueza, inclusive o dinheiro, é oriunda do trabalho proletário. Marx, ao tomar para si o
ponto de vista do proletariado e enxergar esta classe como a única capaz de subverter o
modo de produção capitalista rumo ao comunismo, não o fazia por condescendência ou
proteção a uma “minoria explorada”. Ele percebeu que o proletariado é o criador de
todo um mundo: o mundo social dos homens.
O proletariado é apenas parte da classe trabalhadora, e não se confunde com sua
totalidade. Nas atividades laborais que não produzem mercadoria, como a dos
burocratas do Estado e dos administradores de empresas, por exemplo, não há produção
de mais-valia. Isso não significa que não haja exploração destes trabalhadores, mas
apenas que esta não é da mesma ordem da exploração daqueles que transformam a
natureza.
O caso do comércio é ilustrativo neste ponto. É evidente a exploração a que
estão submetidos os trabalhadores deste setor, tais como caixas de supermercado,
estoquistas, vendedores, balconistas, etc. A atividade laboral destes trabalhadores, no
entanto, não produz nenhum valor maior que o seu próprio trabalho. Ao fim do dia,
absolutamente nada resta da atividade que o vendedor ou o caixa desenvolveu. A força
177
178
Idem., p. 28.
MARX, 1962, p. 642. Tradução nossa.
58
de trabalho que o dono do comércio emprega não é capaz de, ao ser consumida,
produzir um valor maior que o utilizado. Isso só acontece, como vimos, na produção de
mercadorias. Como o comércio não produz mercadorias, mas apenas as faz circular, o
que este setor faz é passar de mãos em mãos a mercadoria produzida na fábrica. O lucro
do comerciante, que o faz enriquecer, não tem origem no trabalho de seus empregados,
mas sim na atividade dos trabalhadores das fábricas. O comerciante compra as
mercadorias do capitalista por um preço inferior ao que ele espera conseguir no
mercado, e o que acontecesse aqui é que o industrial cede ao comerciante parte do lucro
que teria se vendesse diretamente sua mercadoria.
Tendo em vista a mistificação que envolve a natureza da exploração do trabalho
no capitalismo, vale a pena compreendermos melhor a articulação entre a atividade do
comércio e a produção de mercadorias, a fim de deixar ainda mais clara a especificidade
do trabalho proletário.
Nos modos de produção pré-capitalistas, o capital mercantil era a forma
predominante de capital. Ele incorporava uma economia monetária preste a nascer em
meio a uma economia essencialmente baseada na produção de valores de uso, isso é, de
produtos destinados diretamente à satisfação de necessidades, e não ao mercado. Em
todos estes períodos, o capital mercantil aparecia na dupla forma de comércio
internacional em larga escala e também em comércio local. Quanto mais a produção de
mercadorias crescia, mais os produtores precisavam vender sua própria produção no
mercado, e não havia espaço para o comércio profissional exceto fora desta circulação
normal de bens.
Esta união entre produção e comércio, contudo, apresentava problemas técnicos
com soluções limitadas. O artesão que precisava vender sua própria mercadoria tinha
que parar sua produção enquanto viajava. Esta é a razão pela qual em sociedades de
pequena produção de mercadorias, as feiras acontecem geralmente nos feriados. O
comércio profissional surgiu, assim, como resultado da divisão do trabalho que poupava
os produtores de perdas que sofreriam se tivessem que interromper a produção para
vender diretamente suas mercadorias.179
O mesmo problema surge quando o capital industrial toma o lugar da pequena
produção de mercadorias e substitui o velho capital mercantil. Segundo Mandel180,
179
180
MANDEL, 1971, p. 184.
Ibidem., 1971, p. 185.
59
quando a produção de mercadorias se completa, o capitalista industrial já possui a maisvalia produzida por seus trabalhadores. Ela só existe, contudo, na forma cristalizada de
mercadoria, assim como o capital adiantado pelos industriais. Enquanto o capitalista
está de posse apenas da mercadoria, ele não pode nem recuperar o capital que adiantou,
nem se apropriar da mais-valia. Para realizar este valor a mais produzido pelo trabalho
proletário e cristalizado nas mercadorias, é necessário vendê-las, transformá-las em
dinheiro. O capitalista não trabalha, contudo, para nenhum consumidor específico, mas
sim para uma entidade anônima chamada “mercado”. Esta é a chamada anarquia da
produção, uma das principais características do capitalismo. Cada um produz o que
quer, na quantidade que quer, mas para ninguém em específico, apenas na esperança de
que conseguirá escoar sua produção.
Se o capitalista tivesse que vender suas próprias mercadorias, ele teria que parar
o trabalho na fábrica ao final de cada ciclo de produção, vender seus produtos para
recuperar seu investimento e, só então, religar as máquinas. Aqui então entra o
comerciante em seu auxílio. Ao comprar o que o industrial produz, o comerciante poupa
ao capitalista o problema de ter que ir ao mercado para procurar consumidores para seus
bens. O comerciante poupa ao capitalista as perdas que seriam decorrentes de parar a
produção até que as mercadorias alcançassem o consumidor final. Ele, de certa forma,
adianta ao industrial o dinheiro-capital que lhe permite continuar a produzir sem
parar.181
Os comerciantes, por sua vez, precisam vender rapidamente as mercadorias que
compraram a fim de realizar a mais-valia nelas cristalizadas e repor seu capital, estando
livres para recomeçar a operação o quanto antes. Historicamente, à medida que o
capitalismo se expandiu e a produção de mercadorias se tornou generalizada, cidades e
vilarejos se viram inundados de uma extensa rede de lojas de atacado e varejo. Assim
como na Idade Média os comerciantes viajantes se tornaram aos poucos sedentários, nos
primórdios do capitalismo os ambulantes também se estabeleceram nas pequenas
vilas.182
O capitalista industrial não precisa apenas realizar a mais-valia contida na
mercadoria. Ele precisa também capitalizá-la, transformá-la em mais capital, em
máquinas, matéria-prima e salários. Este processo de capitalização implica uma
181
182
MANDEL, 1971, p. 185.
Idem., p. 185-186.
60
circulação de mercadorias na qual o industrial aparece agora como comprador ao invés
de vendedor. Neste sentido, ele está interessado também em reduzir ao máximo o
período de circulação de maquinário e matérias primas, a espera entre pedidos e
entregas. O capital comercial presta então dois serviços ao capital industrial: reduz o
tempo de circulação de suas próprias mercadorias e também daquelas que ele pretende
comprar.183 O ato de compra e revenda de mercadorias, portanto, não lhes adiciona
nenhum valor. O lucro do comércio se origina de parte da mais-valia que o industrial
retira do proletário e divide com o comércio a fim de lhe poupar o trabalho de ter que
vender suas próprias mercadorias.
A diferença entre o proletariado e as outras camadas assalariadas, como a dos
trabalhadores do comércio, por exemplo, é importante não apenas para compreender o
próprio funcionamento do modo de produção capitalista, mas também a razão pela qual
o proletariado é a única classe que, ao se libertar, traz junto consigo todas as outras
classes oprimidas.
3.2 O desenvolvimento da consciência proletária
O ponto de partida do pensamento proletário é esta estrutura da sociedade
burguesa e sua divisão em classes que acabamos de analisar. Uma vez definido o que é
o proletariado, qual o seu lugar no modo de produção capitalista e sua relação com as
outras classes sociais, podemos prosseguir e compreender a reflexão de Lukács quanto
ao desenvolvimento da consciência proletária enquanto classe e o tornar-se consciente
de si enquanto mercadoria.
Em diversos pontos de HCC, Lukács pretende mostrar que a imediatidade da
existência (Dasein) e as formas fetichistas das estruturas capitalistas podem ser
superadas porque o trabalhador — o proletário — pode se tornar consciente de si como
objeto. Nesta articulação ele opera também com a dialética sujeito-objeto, buscando
esclarecer a relação entre a existência econômica e ideológica tanto da burguesia,
quanto do proletariado.184
Para a burguesia, esta dialética aparece em uma “forma duplicada”. Em relação
aos eventos de seu ambiente imediato, o indivíduo burguês se sente como sujeito. Ao
183
184
Ibidem., loc.cit.
HAHN, 2017, p. 87.
61
mesmo tempo ele se encontra, no entanto, como objeto no devir histórico, no qual o
sujeito é a burguesia enquanto classe. Isso não aparece à consciência cotidiana do
sujeito individual burguês. Sujeito e objeto permanecem, assim, em uma relação de
troca dialética, mas permanece inconsciente para os atores.
Para o proletariado, por sua vez, não existe tal forma duplicada. O trabalhador
individual pode se compreender em sua vida cotidiana e em suas decisões pessoais
como sujeito, mas mesmo ali, onde ele aparece como sujeito de sua própria vida através
das satisfações de suas necessidades enquanto consumidor, esta aparência se mostra
como ilusão. Suas atividades são momentos objetivos da produção e reprodução do
capital, e nele se consuma um processo de abstração. O tempo de trabalho é, para ele, a
forma objetiva de sua mercadoria vendida, a força de trabalho, e ao mesmo tempo, a
forma de existência determinada de seu ser como sujeito, como homem.185
O caráter reificado das formas de aparência imediatas da sociedade capitalista é
elevado, para o proletariado, a seu grau máximo. Ao mesmo tempo, contudo, há
também a possibilidade de o pensamento proletário superar essa imediatidade. Por um
lado, o trabalhador é colocado, em seu ser social, do lado do objeto de forma imediata e
completa: ele aparece a si mesmo como objeto e não mais como ator. Por outro lado, ele
vende sua força de trabalho e, com isso, objetiva o total de sua personalidade
(Gesamtpersönlichkeit). Surge assim, no homem objetivante (objektivierenden)
enquanto mercadoria, uma divisão entre objetividade e subjetividade. Essa situação
possibilita o “tornar-se-consciente” (“Bewusstwerdens”).186 O trabalhador só pode se
tornar consciente de seu ser social, afirma Lukács, se se tornar consciente de si mesmo
enquanto mercadoria.187
Trata-se aqui de um ponto de inflexão crucial de HCC. Lukács compreende a
chance histórica de o proletariado cumprir sua missão ao conhecer, por um lado, os
processos históricos e, por outro, superar as formações capitalistas. As possibilidades
para tanto são dadas com o fato de que a classe proletária é, ao mesmo tempo, objeto da
exploração capitalista e também consciência da mercadoria, ou seja, consciência da
reificação, e como esta permeia toda a estrutura da sociedade, o proletariado pode então
apreender a sociedade como totalidade concreta. Formulando de maneira metafórica: à
medida que a consciência de classe do proletariado experimenta e percebe em seu
185
Ibidem., loc.cit.
Ibidem., p. 87-88.
187
HCC, p. 340.
186
62
próprio corpo a mercadoria-corpo como corpo-mercadoria (“Warenkörper als
Körperware”) que é comercializada no mercado, ele se torna então o sujeito-objeto da
história. Lukács vê aqui a possibilidade do desvendamento geral das formas fetichistas
da estrutura da mercadoria. O autoconhecimento do trabalhador como mercadoria
poderia ser mais bem descrito não como o conhecimento que ele tem sobre sua
existência como mercadoria, mas sim como a personificação dessa relação. Esta
autocompreensão, como Lukács ressalta em vários pontos de HCC, não é consciência
“de” um objeto. Ela é, antes de tudo, uma autocompreensão essencialmente prática, que
traz uma mudança estrutural ao objeto de seu conhecimento.188
Esta autocompreensão do próprio trabalhador enquanto mercadoria torna
possível visualizar em que consiste o caráter especial objetivo do trabalho proletário:
este reside em seu valor de uso, em sua capacidade de produzir mais-valia. Sem esta
consciência, o caráter objetivo desta mercadoria seria apenas uma força motriz cega do
desenvolvimento histórico. Isso revela, ao mesmo tempo, sua objetividade específica:
ela é uma relação entre homens, mas escondida, encoberta, ocultada por relações entre
coisas. A percepção de que sob essa crosta quantificada subsiste ainda um núcleo vivo
desvenda o caráter fetichista de toda e qualquer mercadoria. O proletário, ao conhecer a
si mesmo, conhece a essência, a estrutura do modo de produção capitalista.189
O ser imediato do trabalhador enquanto simples objeto do processo de produção
se revela, no entanto, através de inúmeras mediações. Lukács está consciente de que
esta autocompreensão do trabalhador sobre si mesmo é, inicialmente, apenas implícita.
Enquanto o trabalhador ainda não consegue se elevar, de maneira prática, desta situação
de objeto, ele é então a “mercadoria consciente de si”: ele é o autoconhecimento, o
autodesvendamento de uma sociedade que se estabelece pela produção e troca de
mercadorias.190
Neste momento desempenha aqui a categoria de totalidade um papel essencial.
Para Lukács, o problema determinante reside na capacidade do pensamento proletário
de conhecer a sociedade enquanto um todo. A essência do método dialético reside, para
ele, no fato de que a totalidade está presente e pode ser desenvolvida a partir de cada
momento apreendido de forma dialética. A mais simples mercadoria, por exemplo, traz
em si todo o segredo da forma-dinheiro. Os momentos particulares não são simples
188
HAHN, 2017, p. 87-88.
Idem., p. 88-89.
190
Idem., p. 89.
189
63
peças de um todo mecânico, mas oferecem a possibilidade de, a partir de si, desenvolver
a totalidade do conteúdo social. Cada momento é um ponto de passagem para a
totalidade.191
Tendo em vista o lugar que ocupa no processo de produção, apenas o
proletariado pode desenvolver o “tornar-se-mercadoria” em consciência de classe
revolucionária. A estrutura fundante da reificação pode ser encontrada em todas as
formas sociais capitalistas, mas apenas no proletariado ela se torna clara e capaz de ser
revelada. Em outras classes sociais ou áreas profissionais de atuação, esta estrutura se
esconde atrás de fachadas mistificadoras, e esta aparência se torna tanto mais enganosa,
quanto mais fundo a reificação penetra na alma do indivíduo que se vende como
mercadoria. O processo de reificação, de “tornar-se-mercadoria”, pode deformar e
encrustar a alma do trabalhador, mas tão somente enquanto ele não se rebelar contra
isso, enquanto ele não permitir que sua essência humana-espiritual se torne também
uma mercadoria. Já o trabalhador de escritório, por exemplo, reificado na burocracia, se
torna cada vez mais mecanizado e coisificado, até ser completamente abstraído em
mercadoria.
Gregor Samsa, protagonista de A metamorfose, de Franz Kafka, seria o que
Lukács chamaria na literatura de “tipo ideal”, e representa o trabalhador completamente
atingido pela reificação. Gregor acorda certo dia transformado em um monstruoso
inseto, mas sua vida interior permanece exatamente como antes. Ele não parece
admirado de ter se transformado em um inseto, continua tendo as mesmas preocupações
de sempre, como com seu emprego e sua família, mas agora não é apenas seu interior
que está coisificado: a reificação de sua alma se exteriorizou e tomou também seu
corpo, de modo que por fora ele é um inseto, mas por dentro, continua um ser humano
como antes. Gregor Samsa se torna, usando a expressão de Feenberg 192, um híbrido
bizarro de humano e não-humano. Ele é uma expressão metafórica do indivíduo
reificado, alienado, tornado coisa, assim como a mercadoria consciente de si.
191
192
Ibidem., loc.cit.
FEENBERG, 2011, p.180.
64
CAPÍTULO 4. O PROLETARIADO COMO SUJEITO-OBJETO
IDÊNTICO
O problema da reificação é, segundo Mayer 193, um problema de sujeito e objeto,
e uma herança da filosofia clássica alemã. Diz respeito às condições de possibilidade do
conhecimento, o qual se expressa na relação entre consciência e ser, idealidade e
realidade, e na relação do eu com o seu contraposto (Gegenüber). Para articular o
capítulo anterior, no qual falamos sobre a mercadoria consciente de si, com a unidade
sujeito-objeto no proletariado como sujeito histórico, faremos inicialmente uma breve
exposição das fontes do idealismo alemão com as quais Lukács dialoga, sobretudo
Hegel, e apresentaremos posteriormente sua contribuição para o tema. Ao final,
falaremos também sobre as possibilidades de superação da reificação.
4.1 A constituição do sujeito histórico em Hegel
A identidade sujeito-objeto foi o conceito hegeliano mais influente na redação de
História e consciência de classe. No prefácio de 1967, Lukács afirma ter começado a
estudar Marx pelas lentes de Hegel no período da Primeira Guerra Mundial, e que esse
viés interpretativo o acompanhou ainda por muitos anos, até à época de publicação de
HCC. Ao mesmo tempo em que se apropriava do marxismo em seu percurso intelectual,
outras correntes teóricas coexistiam lado a lado com esta apropriação da obra de Marx,
de modo que Lukács se compara ao Fausto, de Goethe, que abrigava duas almas eu seu
peito.194 Em sua autocrítica Lukács avalia que tentou, em alguns aspectos195, ser mais
hegeliano que o próprio Hegel (“ein Überhegeln Hegels”).
Ao redigir HCC, as principais obras de Marx que explicitavam a relação deste
com Hegel ainda não haviam sido publicadas. Este é o caso dos Manuscritos
econômico-filosóficos, por exemplo, publicado apenas em 1932. Lukács conseguiu
reconstruir a relação entre Marx e Hegel de maneira independente, sem acesso aos
principais textos que deixavam clara a influência de um sobre o outro.
193
MAYER, 2014, p. 10.
HCC, p. 4.
195
HCC, p. 25.
194
65
Em seus Manuscritos, por exemplo, Marx afirma que a grandeza da
Fenomenologia de Hegel reside em que nela a autocriação do homem é apreendida
como um processo que se dá através da dialética da negatividade como princípio motor
e
criador,
pela
objetivação
(Vergegenständlichung)
como
desobjetivação
(Entgegenständlichung), como exteriorização e suprassunção dessa exteriorização.
Hegel considera os homens como resultado de seu próprio trabalho, e desenvolve sua
reflexão em diálogo com os outros principais nomes do idealismo alemão, em especial
Kant, Fichte e Schelling.
Fichte observa que o primeiro princípio da filosofia é um sujeito autoconsciente,
um eu. Este eu pode ser autoconsciente apenas na medida em que se distingue do
mundo, ou do não-eu, o que se configura como o segundo princípio da filosofia. Ele
então aponta que há apenas duas formas em que o eu e o não-eu podem ser
determinados: ou o não-eu pode determinar o eu (o mundo pode afetar o sujeito), ou o
eu pode determinar o não-eu (o sujeito pode afetar o mundo). Neste segundo modo de
determinação, o eu funciona como uma vontade, um sujeito consciente que busca
efetivar seus fins no mundo. Já no primeiro, o eu funciona como um “intelecto”, um
sujeito consciente registrando os impactos do mundo sobre si. Destes dois princípios
emerge, no entanto, uma contradição. Ela acontece quando a consciência coloca (setzen)
a atualidade do não-eu (o primeiro princípio) e desloca o eu como o único objeto da
consciência, o que havia sido feito no primeiro princípio. Desta forma, se a consciência
pode colocar a atualidade de apenas um objeto, então o primeiro e o segundo princípio
são incompatíveis. Fichte desfaz a tensão esclarecendo que a consciência é capaz de
colocar tanto o eu quanto o não-eu simultaneamente, e atribuindo atualidade a ambos.
Esta reconciliação, na qual um é limitado ou determinado pelo outro, é a síntese do eu e
do não-eu.
O método aplicado por Fichte para resolver esta tensão servirá de base para o
subsequente desenvolvimento de sua filosofia: ela se movimenta através da tríade “teseantítese-síntese”. Embora erroneamente atribuído a Hegel e também a Marx, este
método busca unir, em uma grande conjunção, características contrárias que
permanecem após a anulação dos contrários, repetindo o processo até que encontre
opostos que não possam mais ser conciliados.196
196
DUDLEY, 2007, p. 90.
66
Schelling, por sua vez, considera que subjetividade e objetividade são dois
modos de manifestação de uma mesma substância.197 O primeiro passo para a filosofia
acontece tão logo o homem se defronta com o mundo externo, deixando o absoluto e
cindindo o que ele chama de nosso “ser originário” ou “essência originária”. Neste ato,
o homem afasta o que a natureza havia fundido para sempre. Esta separação, contudo,
não isola apenas o objeto de sua percepção e o conceito de sua imagem, mas também o
próprio homem de si mesmo, ao se tornar objeto de si. Com isso é eliminado o
mecanismo de reflexão humana, o equilíbrio da consciência, no qual “sujeito e objeto
estão intrinsecamente ligados”. Na medida em que o indivíduo representa o objeto, são
objeto e representação um e o mesmo. Schelling tenta retomar uma metafísica já
criticada por Kant, e postula um “Eu absoluto” que, como ele mesmo admite, não possui
uma definição clara. No lugar de “como são possíveis juízos sintéticos a priori?”,
Schelling pergunta: “como pode o Eu absoluto sair de si e opor a si um não-eu?”. Toda
a filosofia de Schelling lida, de certo modo, com a questão sujeito-objeto, haja vista que
se trata, assim como em Fichte, de um sistema fechado no qual o ponto de chegada leva
ao ponto de origem.198
Hegel faz um balanço da discussão entre Fichte e Schelling em As diferenças
entre os sistemas de Filosofia de Fichte e Schelling. No prefácio desta obra, ele
caracteriza a razão como a “identidade de sujeito e objeto”. Segundo Dudley199, o que o
filósofo de Jena quer dizer com isso se torna evidente quando se observa o fato de que o
uso dessa formulação ocorre no contexto de um engajamento direto com Kant, e
particularmente com sua dedução transcendental das categorias. O objetivo da dedução
kantiana foi mostrar que as categorias necessariamente utilizadas pelo sujeito pensante
devem se aplicar também aos objetos do pensamento, o que, para Hegel, mostraria que
existe uma “identidade de sujeito e objeto”. Esta identidade em Kant, no entanto, seria
apenas uma identidade “subjetiva” de sujeito e objeto, não sendo ainda o que Hegel
define como “razão”. Se a dedução transcendental de Kant é bem-sucedida, o que ela
faz é demonstrar a identidade entre o sujeito e o objeto enquanto fenômeno, ou seja, o
objeto como ele aparece, mas tal dedução não pode demonstrar a identidade entre o
197
Esta é a segunda fase de seu pensamento, na qual se aproxima de Espinosa.
DUDLEY, 2007, p. 131.
199
Ibidem., p. 144.
198
67
sujeito e o objeto-em-si. 200 A contribuição de maior fôlego de Hegel para o tema será
também sua principal obra, a Fenomenologia do espírito.
A Fenomenologia pode ser considerada uma tentativa de superar o dualismo
sujeito-objeto.201 Ela opera através da exposição das contradições internas desta relação,
examinando uma sequência de “formas da consciência” ou maneiras de compreender a
relação entre o sujeito conhecedor e objeto do conhecimento. Nos três primeiros
capítulos, a consciência se interessa pelo ser objetivo, no qual ela busca compreender
sua racionalidade (no mundo orgânico e inorgânico). Ela vê o objeto como
independente de si, como uma verdade em si. Posteriormente, ao tratar das leis lógicas e
psicológicas, a razão procura uma identidade imediata com o ser objetivo, empírico,
palpável, o que acabou levando à tese — criticada por Hegel — da frenologia202, na
qual a consciência se identificava com o osso do crânio. Apenas no final desta
experiência ela fará a passagem à consciência de si, percebendo que a consciência do
objeto é consciência de si mesma e a consciência de si mesma é consciência do
objeto.203
Relevante para a reflexão de Lukács é o movimento da consciência que a
transforma, de razão observadora, para razão que age (Tätige Vernunft), e a tensão entre
razão ativa individual e razão ativa universal. Na primeira etapa do desenvolvimento da
razão ativa individual, a consciência faz um esforço para se afirmar em uma outra
consciência de si, para ser reconhecida por ela, à maneira como já havia acontecido na
dialética do senhor e do escravo. O senhor procurava se afirmar diante do escravo, ser
reconhecido por ele, mas sem querer reconhecê-lo. Tratou-se de uma imposição de um
indivíduo sobre outro.204
A consciência, contudo, só será livre na medida em que partilhar de uma
existência comum, ao invés de querer se afirmar impondo sua efetividade sobre outras
consciências. A liberdade não significa o isolamento da consciência de si, mas a
convivência com outras.
200
Ibidem., loc.cit.
Ibidem., p. 182.
202
A frenologia acreditava, por exemplo, ser capaz de determinar o caráter de um indivíduo
através do formato de seu crânio. Isso se assemelha à tese surgida posteriormente de que seria possível
identificar características morais de um indivíduo pelo exame de seu DNA. Uma aplicação prática desta
perspectiva, defendida por forças políticas de direita, seria que pessoas com tendência ao crime poderiam
ser detectadas — e talvez até mesmo eliminadas — tão cedo quanto possível, ainda no início da gestação.
203
VIEIRA, 2010.
204
Ibidem.
201
68
Tomemos em sua realidade essa meta [alcançada]: o conceito, que já surgiu
para nós — isto é, a consciência-de-si reconhecida, que tem em outra
consciência-de-si livre a certeza de si mesma, e aí precisamente encontra sua
verdade. Destaquemos esse espírito ainda interior como substância já
amadurecida em sua existência. O que vemos patentear-se nesse conceito é o
reino da eticidade. Com efeito, esse reino não é outra coisa que a absoluta
unidade espiritual dos indivíduos em sua efetividade independente. É uma
consciência-de-si universal em si, que é tão efetiva em uma outra
consciência, que essa tem perfeita independência — ou seja, é uma coisa para
ela. [Tão efetiva] que justamente nessa independência está cônscia da sua
unidade com a outra, e só nessa unidade com tal essência objetiva é
consciência-de-si. Essa substância ética, na abstração da universalidade, é
apenas lei pensada; mas, não menos imediatamente, é a consciência-de-si
efetiva ou o ethos. Inversamente, a consciência singular só é esse Uno essente
porque em sua própria singularidade está cônscia da consciência universal,
como de seu [próprio] ser: porque seu agir e sua existência são o ethos
universal.205
No parágrafo acima Hegel articula a relação entre singularidade e
universalidade. A razão universal, ou substância real, se manifesta de duas formas: geral
e abstrata. De forma abstrata, ela aparece enquanto lei pensada, enquanto as leis que
regularão aquela comunidade espiritual, que governarão as relações individuais.
Enquanto lei pensada, a substância ética é algo abstrato, separado da vida concreta da
consciência de si, e pode ser efetivada apenas nas ações do indivíduo. Para de fato
existir, ela precisa ser assumida e praticada pela consciência de si individual, pois a lei
se torna efetiva quando é respeitada.
A substância ética possui dois momentos: o abstrato e universal, e o concreto e
singular. A consciência singular é uma consciência universal ao assumir, em sua
singularidade, o ethos universal. Este assumir consiste em seu operar, em seu agir. Ela
não é mais, neste momento, considerada em seu aspecto natural, mas entra no reino do
espírito, no qual sua independência individual e sua liberdade são conservadas,
preservadas. Hegel afirma que estes dois aspectos se efetivam na vida de um povo:
É na vida de um povo que o conceito tem, de fato, a efetivação da razão
consciente-de-si e sua realidade consumada: ao intuir, na independência do
205
HEGEL, 1992, p. 222. Tradução modificada.
69
Outro, a perfeita unidade com ele; ou seja, ao ter por objeto, como meu serpara-mim, essa livre coisidade de um outro, por mim descoberta — que é o
negativo de mim mesmo. A razão está presente como fluida substância
universal, como imutável coisidade simples, que igualmente se refrata em
múltiplas essências completamente independentes, como a luz nas estrelas,
em seus inúmeros pontos rutilantes. Em seu absoluto ser-para-si, tais
essências não só em si se dissolvem na substância independente simples, mas
ainda são para si mesmas; cônscias de serem tais essências simples
singulares, porque sacrificam sua singularidade e porque essa substância
universal é sua alma e essência. Do mesmo modo, esse universal é, por sua
vez, o agir dessas essências como singulares; ou a obra por elas produzida.206
A alma e essência das essências simples singulares são o próprio coletivo, ao
qual elas se sacrificam. Este sacrifício, contudo, não é simplesmente sua própria
anulação, mas a conquista de sua liberdade. Na medida em que ele é negado para si, é
dada a positividade da comunidade.
O agir e o atarefar-se puramente singulares do indivíduo referem-se às
necessidades que possui como ser-natural, quer dizer, como singularidade
essente. Graças ao meio universal que sustém o indivíduo, graças à força de
todo o povo, sucede que suas funções inferiores não sejam anuladas, mas
tenham efetividade. Na substância universal, porém, o indivíduo não só tem
essa forma da subsistência de seu agir em geral, mas também seu conteúdo.
O que ele faz, é o gênio universal, o ethos de todos. Esse conteúdo, enquanto
se singulariza completamente, está em sua efetividade encerrada nos limites
do agir de todos. O trabalho do indivíduo para [prover as] suas necessidades,
é tanto satisfação das necessidades alheias quanto das próprias; e o indivíduo
só obtém a satisfação de suas necessidades mediante o trabalho dos outros.
Assim
como
o
singular,
em
seu
trabalho
singular,
já
realiza
inconscientemente um trabalho universal, assim também realiza agora o
[trabalho] universal como seu objeto consciente: torna-se sua obra o todo
como todo, pelo qual se sacrifica, e por isso mesmo dele se recebe de volta.
Nada há aqui que não seja recíproco, nada em que a independência do
indivíduo não se atribua sua significação positiva — a de ser para si — na
dissolução de seu ser-para-si e na negação de si mesmo.207
A interpenetração entre singular e universal se manifesta através das carências
do indivíduo. Alimentação, vestuário e moradia são exemplos das necessidades ou
carências naturais de todo o povo. O trabalho, que já havia sido abordado antes na
206
207
HEGEL, 1992, p. 222.
HEGEL, 1992, p. 223.
70
Fenomenologia, é retomado por Hegel como exemplo da reciprocidade entre universal e
singular. O indivíduo obtém a satisfação de suas carências através daquilo que o povo
lhe oferece e lhe permite fazer, e na medida em que este indivíduo supre assim suas
carências naturais, ele também atende aquilo que é necessário para a sobrevivência de
todo o povo. O trabalho é a plena realização do que o indivíduo é e carece, assim como
efetiva aquilo que é o próprio povo, aquilo que é necessário para a sobrevivência de
toda a comunidade. Há aqui uma relação entre negação e positivação. Na medida em
que o indivíduo é negado em seu ser para si, é realizada a positividade da comunidade.
A positividade da comunidade pressupõe este trabalho negativo do indivíduo, já que o
trabalho realiza esta obra de transformação, de mudança.
Na continuação deste parágrafo Hegel fala ainda de uma linguagem universal:
Essa unidade do ser para outro — ou do fazer-se coisa — com o ser-para-si,
essa substância universal fala sua linguagem universal nos costumes e nas
leis de seu povo. No entanto, essa imutável essência não é outra coisa que a
expressão da individualidade singular que aparenta ser-lhe oposta. As leis
exprimem o que cada indivíduo é e faz; o indivíduo não as conhece somente
como sua coisidade objetiva universal, mas também nela se reconhece, ou:
[conhece-a] como singularizada em sua própria individualidade, e na de cada
um de seus concidadãos. Assim, no espírito universal, tem cada um a certeza
de si mesmo — a certeza de não encontrar, na efetividade essente, outra coisa
que a si mesmo. Cada um está tão certo dos outros quanto de si mesmo. Vejo
em todos eles que, para si mesmos, são apenas esta essência independente,
como Eu sou. Neles vejo a livre unidade com os outros, de modo que essa
unidade é através dos Outros como é através de mim. Vejo-os como me vejo,
e me vejo como os vejo.208
Esta linguagem universal é constituída pelos costumes e leis de um povo que
mostram a unidade de um ser para o outro e um ser para si. Esta linguagem é universal e
singular ao mesmo tempo, pois tanto o indivíduo quanto a coletividade falam a mesma
língua. É uma linguagem de comum acordo, não de confrontação. É a sinfonia das
vozes do indivíduo e da coletividade.
208
HEGEL, 1992, p. 223.
71
Por conseguinte, em um povo livre, a razão em verdade está efetivada: é o
espírito vivo presente. Nela, o indivíduo não apenas encontra seu destino, isto
é, sua essência universal e singular expressa e dada como coisidade, senão
que ele mesmo é tal essência e alcançou também seu destino. Por isso os
homens mais sábios da Antigüidade fizeram esta máxima: que a sabedoria e a
virtude consistem em viver de acordo com os costumes de seu povo.209
A razão está agora realizada em um povo livre, sendo o espírito vivo, presente.
Tanto a dimensão individual quanto a coletiva estão satisfeitas, e o indivíduo alcança
sua determinação, aquilo que de fato ele é. A vida virtuosa ou sábia consiste em viver de
acordo com os costumes, com o ethos de seu povo. Esta situação, no entanto, é apenas
ideal. Esta é uma relação em que o ethos de um povo não está degenerado e expressa a
própria razão. Esta unidade imediata entre o individual e o coletivo é uma tensão a ser
resolvida nas próximas experiências da consciência.
No desenvolvimento que examinamos até aqui — desde o momento em que a
consciência vê a si mesma como coisa e a coisa como a si mesma, até o estágio em que
ela se realiza em um povo —, temos como que um movimento arquetípico de formação
da autoconsciência da mercadoria até sua efetivação na consciência de classe. O
proletário, ao ser reduzido no modo de produção capitalista a apenas um de seus
aspectos — sua força de trabalho —, se encontra sujeito a todas as leis que regulam a
compra e venda de toda e qualquer outra mercadoria-objeto. Ele precisa ir ao mercado
para vender uma mercadoria que lhe pertence, mas esta mercadoria é inseparável de sua
própria existência. Se há muita oferta de mão-de-obra, seu valor é reduzido. Se há muita
demanda, seu valor se eleva. O preço que ele consegue por essa mercadoria, contudo,
afeta diretamente sua própria subsistência. Ela não é algo externo, independente, sem
relação com sua vida. Caso ele não consiga vendê-la, sua própria existência está
ameaçada — ele não terá roupas, nem comida, nem abrigo. Neste momento ele vê então
a si mesmo como coisa — como uma mercadoria — e essa coisa como a si mesmo.
O papel predominante do trabalho na formação da consciência também encontra
paralelos tanto na obra de Marx, quanto na obra de Lukács. O trabalho é responsável
pela relação entre singular e universal, e realiza (efetiva) aquilo que o indivíduo é, ao
mesmo tempo em que fornece à comunidade o que ela necessita para sua sobrevivência.
No processo de formação da autoconsciência é fundamental a mediação do trabalho,
que desempenha um papel negativo — o indivíduo se reduz a coisa — e também
209
Ibidem., p. 223-224.
72
positivo. O indivíduo nega a si mesmo ao trabalhar para a comunidade — ou para o
capitalista —, mas recebe desta aquilo que precisa para sua própria manutenção e não é
produzido por si próprio.
Em sua obra O jovem Hegel, Lukács afirma que não é possível compreender as
noções de Hegel sobre vida ética, sociedade civil (que inclui os mecanismos
institucionais do mercado) e suas relações do Estado sem reconhecer a apropriação de
Hegel das teorias modernas da economia política, assim como ideais comunitários de
uma vida ética compartilhada (Sittlichkeit) inspiradas da filosofia política clássica
grega.210
Quando Marx e Lukács localizam, portanto, a efetivação hegeliana da razão em
um ethos na própria efetividade histórica, o salto ou a “inversão materialista” de Hegel
parece bem menor. Eles substituem o conceito analiticamente vago de “povo” pelo de
classe social. Por isso Marx, ao falar sobre a consciência de classe, afirma que é ao
partilhar de uma vida e costumes comuns — ou seja, de um determinado ethos —, que a
consciência de classe tem sua origem.
Ao descrever a formação do proletariado em Miséria da filosofia, Marx211
afirma que a concentração de um grande número de operários nas grandes fábricas das
cidades foi o que primeiramente uniu o proletariado nos primórdios do capitalismo.
Nessa primeira forma de união, contudo, o proletariado se constituía apenas como uma
classe em si, ou seja, era uma classe em relação ao capital. Para que o proletariado se
tornasse uma classe para si mesmo, seria necessário que ele elevasse “a necessidade
econômica de sua luta de classe ao nível de uma vontade consciente, de uma
consciência de classe ativa”.212
No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels fazem uma observação
semelhante, afirmando que um dos fatores que contribuíam em sua época para a
crescente união do proletariado de diversas localidades, até que este se constituísse em
um proletariado nacional, era o desenvolvimento dos novos meios de comunicação:
O resultado real de suas lutas não é a vitória imediata, mas a união cada vez
maior dos trabalhadores. Ela é promovida através dos crescentes meios de
210
SINNERBRINK, 2007, p.63.
MARX, 1977, p. 181.
212
LUKÁCS, 2012, p. 184.
211
73
comunicação desenvolvidos pela grande indústria e coloca em contato uns
com os outros os trabalhadores de diferentes localidades.213
A concentração de operários em grandes fábricas e o contato destes com outros
mais distantes através dos meios de comunicação foram dois aspectos que contribuíram
para formar, desenvolver, estabelecer o ethos próprio do proletariado. A vida comum
dentro e fora das plantas, o compartilhamento das mesmas funções ou de ofícios
semelhantes, a situação social de exploração, de desamparo e o mesmo nível econômico
são alguns dos fatores que constituem o ethos de uma classe social. A partir deste solo
concreto, material, econômico, forma-se uma visão de mundo comum e costumes
semelhantes, de modo que um trabalhador, ao olhar para seus companheiros, pode dizer:
“Vejo-os como me vejo, e me vejo como os vejo”.
4.2 O sujeito-objeto idêntico se efetiva na história
A relação entre sujeito e objeto que se configurou na forma da substância ética
não está livre de contradições. O movimento dialético da Fenomenologia vai prosseguir
opondo saber e verdade em níveis cada vez mais elevados, e em sua caminhada para o
autoconhecimento, a Ideia exterioriza-se, aliena-se, objetiva-se, sai de si, divide-se em
sua peregrinação para, no momento final, superar as divisões e reencontrar-se,
reconhecendo-se como um sujeito-objeto idêntico. Hegel chama esta figura de “razão”,
e ela se refere precisamente a um aspecto que Kant negava: para o filósofo de Jena, as
determinações constitutivas do pensamento são as determinações constitutivas dos seres
em si mesmos. Para estabelecer a verdadeira identidade sujeito-objeto, segundo Hegel,
ambos são estabelecidos como sujeito-objeto; e cada um por si é, daqui em
diante, capaz de ser o objeto de uma ciência particular. Cada uma dessas
ciências exige abstração do princípio da outra. No Sistema de Inteligência os
objetos não são nada em si, a natureza existe apenas na consciência, e se
abstrai daí que o objeto é uma natureza e que a inteligência é condicionada
através dele. Mas se esquece no sistema da natureza que a natureza é um
Consciente, e que as determinações ideais, as quais a natureza possui na
ciência, são nela igualmente imanentes.214
213
214
MARX; ENGELS, 1977, p. 471.
HEGEL, 1970, p. 99.
74
Em HCC, todavia, esta construção da Fenomenologia do espírito encontra uma
“autêntica efetivação ontológica no ser e na consciência do proletariado”, e Lukács
oferece uma justificativa filosófica à transformação histórica do proletariado na luta por
uma sociedade sem classes por meio da revolução.215 Segundo Frederico216, Lukács
reproduz o autodesenvolvimento da Ideia no plano social.
O proletariado é o sujeito-objeto idêntico do processo de desenvolvimento
histórico pois
o autoconhecimento do proletariado é, ao mesmo tempo, o conhecimento
objetivo da essência da sociedade. Enquanto persegue os seus fins de classe,
o proletariado realiza de maneira consciente os fins — objetivos — do
desenvolvimento da sociedade, os quais, sem a sua intervenção consciente,
teriam de permanecer como possibilidades abstratas e barreiras objetivas.217
A identidade sujeito-objeto do proletariado em Lukács é uma tradução do
conceito hegeliano de Espírito (Geist). Em Hegel, o processo pelo qual o Espírito
constitui objetividade e subjetividade é um processo histórico, fundamentado nas
contradições internas da totalidade, que se desenrola dialeticamente. O processo
histórico de auto-objetivação, de acordo com Hegel, é de autoalienação, e leva à
reapropriação pelo Espírito daquilo de que ele havia sido alienado no curso deste
desenvolvimento. Isso é, o desenvolvimento histórico tem um ponto final, que é a
realização do Espírito por si mesmo como um Sujeito total e totalizante. Neste sentido,
Lukács identifica o proletariado como este sujeito, o qual constitui o mundo social e a si
mesmo através de seu trabalho. Segundo Postone218, ao derrubar a sociedade capitalista
o proletariado realizaria si próprio como o sujeito histórico.
A tarefa que Lukács se propõe é desenvolver, ampliar, continuar a reflexão sobre
o papel histórico mundial do proletariado já iniciada por Marx e Engels. Os autores do
Manifesto comunista derivaram a função e o papel desta classe das contradições do
modo de produção capitalista, principalmente do antagonismo de sua situação
econômica e social. A descoberta das forças motrizes da história e da transição do
capitalismo para o socialismo se articula a uma análise histórica concreta desta
situação.219
215
FREDERICO, 1997, p. 14.
FREDERICO, 1997, p. 14.
217
HCC, p. 309.
218
POSTONE, 2009, p. 68.
219
HAHN, 2017, p. 65.
216
75
Marx afirma em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, por exemplo, que a
dissolução da ordem existente deriva do próprio Dasein, da própria existência do
proletariado: “Quando o proletariado anuncia a dissolução da ordem mundial até então
existente, exprime apenas o segredo de sua própria existência, pois ele é a dissolução
efetiva dessa ordem mundial”.220 E juntamente com Engels, em A Sagrada Família,
afirma que a alienação atinge tanto a burguesia quanto o proletariado, mas com uma
diferença:
A classe possuidora e a classe do proletariado apresentam a mesma
autoalienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade e confirmada nessa
autoalienação, reconhece a alienação como seu próprio poder e possui nela a
aparência de uma existência humana. A segunda se sente aniquilada na
alienação, percebe nela sua impotência e a realidade de uma existência
desumana.221
A noção hegeliana de “alienação” utilizada por Marx na passagem acima é
mencionada diversas vezes em suas obras de juventude, sendo também o conceito
básico a partir do qual Lukács chegou à reificação. Hegel cometeu, no entanto, um erro
primordial, segundo Lukács, ao ter tomado objetificação e alienação como equivalentes.
Ele identificou corretamente o trabalho como um dos principais elementos na
constituição da subjetividade moderna, como na dialética do senhor e do escravo. A
objetificação da força humana através do trabalho produtivo permitiu ao escravo
reconhecer sua liberdade como refletida na realidade social. Ao mesmo tempo, no
entanto, Hegel também demonstrou como a objetificação resulta do fato de produtos de
nossa atividade tomarem vida própria como parte da objetividade social na qual nos
reconhecemos como membros da comunidade. Para Hegel, todas as nossas ações, seja
através da fala ou do trabalho, estão sujeitas às normas e interpretações de nossa
comunidade, não havendo, portanto, expressão “privada” de nossas subjetividades ou
desejos. 222
Hegel confunde a objetificação em geral com o sentido especifico de alienação
característico da modernidade. Isso tornou a alienação uma característica inescapável da
atividade humana, consequência da simples objetificação ou humanização da natureza
através do trabalho produtivo. O que Lukács e Marx salientam, no entanto, são as
220
MARX, apud LUKÁCS, 2012, p. 308.
MARX, apud LUKÁCS, 2012, p. 309.
222
SINNERBRINK, 2007, p. 64.
221
76
dimensões negativas da alienação, às quais Hegel pensava poder superar através do
pensamento ou do espírito absoluto. Para Hegel, a alienação é uma característica
estrutural da história, e a divisão entre sujeito e objeto pode ser superada apenas pelo
pensamento. Para Marx, por outro lado, a alienação significa um estranhamento de
nossa própria essência humana enquanto seres sociais e produtivos, e este conflito entre
sujeito e objeto pode ser superado apenas pela transformação da ordem econômica e
social. Contra Hegel, Lukács afirma que nem toda objetificação pode ser considerada
alienação, seja no sentido de um estranhamento de seu potencial humano fundamental,
ou no sentido de que a relação entre sujeito e objeto permanece fundamentalmente
conflituosa. A objetificação existe em diferentes formações históricas e sociais, é uma
característica fundamental da racionalidade autoconsciente, pois todas as formas de
atividade humana envolvem uma objetificação de capacidades humanas. A alienação,
por outro lado, é uma forma específica da objetificação sob as condições históricas do
capitalismo, nas quais predomina a produção e a circulação de mercadorias como
principais formas de intercâmbio entre os homens. Apenas este tipo de objetificação
produz uma alienação patológica.223
A alienação a que o proletariado está submetido não é apenas intelectual. Ela
surge de sua situação material concreta enquanto assalariado, explorado, subjugado. A
libertação desta situação, portanto, não pode se dar unicamente através de um ato
mental ou de consciência. A reflexão de Lukács, que havia começado de maneira
econômico-sociológica, culmina na filosofia e na teoria do conhecimento. A mera
discussão epistemológica, contudo, deve ser superada, pois o campo da filosofia e sua
discussão sobre as possibilidades do conhecimento torna-se cada vez mais estreito,
incapaz de apreender o movimento dialético da história.224 Este é o ponto de passagem
da filosofia teórica para a filosofia prática, uma tendência que pode ser observada
claramente no idealismo alemão, sobretudo em Kant (com sua passagem da Crítica da
razão pura para a Crítica da razão prática) e também em Fichte (com seu sujeito como
pura atividade). A necessidade de se resolver em uma prática problemas identificados
na teoria é a razão de Lukács dedicar grande parte de sua discussão sobre a reificação e
a constituição do sujeito-objeto idêntico às chamadas “antinomias do pensamento
223
224
Ibidem., loc.cit.
HAHN, 2017, p. 65.
77
burguês” e relacioná-las ao “primado da filosofia prática”, os dois próximos temas deste
capítulo.
4.3 As antinomias do pensamento burguês
Lukács relaciona o nascimento da filosofia crítica moderna ao surgimento
histórico da reificação. Isso se localiza no momento em que a estrutura da mercadoria se
generaliza e se torna a forma dominante de intercâmbio e relação entre os homens. Os
problemas específicos dessa filosofia, portanto, podem ser identificados como oriundos
da estrutura de consciência que espelha esta base material.
Um dos principais problemas da filosofia moderna diz respeito a “não mais
aceitar o mundo como algo que surgiu independentemente do sujeito cognoscitivo”,
mas como produto do próprio sujeito.225 Tal conclusão vem de uma linha de
desenvolvimento que teve sua forma mais acabada em Kant, sendo que este tirou as
conclusões de uma maneira mais radical que seus predecessores e representou um
grande avanço teórico em relação ao racionalismo anterior.226 Outra característica
fundamental dessa nova filosofia é sua tendência a tomar os métodos da matemática e
da geometria como exemplos na construção de objetos a partir de condições formais de
uma objetividade em geral. Lukács afirma que não é de modo algum evidente por qual
razão o entendimento humano chegou a compreender tais sistemas de formas como sua
própria essência, sendo simplesmente aceitos.
O sinal característico de toda essa época, afirma Lukács, seria a equivalência
ingênua entre o conhecimento racional, formal e matemático, de um lado, e o “nosso”
conhecimento de outro. E este conhecimento formal e racional seria unificador, ao
contrário do pensamento medieval, que dividia o mundo em sublunar e supralunar, e
com o qual o racionalismo moderno travou combate quando de seu surgimento. O
racionalismo, no sentido de um sistema formal, existiu nas mais diferentes épocas. A
diferença entre o racionalismo moderno e os antigos é que estes se orientavam no
sentido de descobrir apenas aqueles aspectos dos fenômenos que podem ser
apreendidos, produzidos, previstos e calculados, enquanto o moderno reivindica para si
a descoberta do princípio unificador entre todos os fenômenos “que se opõem à vida do
225
226
HCC, p. 241.
FEENBERG, 1981, p. 106.
78
homem na natureza e na sociedade”. Dessa forma, afirma Lukács, “os problemas
‘últimos’ da existência humana persistem numa irracionalidade que escapa ao
entendimento humano”.227
Blumentritt228 afirma que Lukács, com essa afirmação, tem em vista
especialmente o sistema kantiano, com o famoso conceito de coisa em si, o qual cumpre
em Kant várias funções dependendo do contexto, mas sempre com a característica
comum de constituir uma barreira à faculdade humana abstrata de cognição, de modo
que, às vezes, este significa os limites das formas do conhecimento em contraposição ao
conteúdo e, em outras, o conhecimento em contraposição à totalidade.
Estes limites contrapostos ao conteúdo só podem ser eliminados através da
supressão da separação entre teoria e prática. Coloca-se em relação à atividade prática a
questão sobre a constituição do objeto, pois uma determinada percepção do conteúdo é
produzida segundo um modelo. O recurso ao conceito de coisa em si é, tanto para
Lukács quanto para Hegel, apenas preguiça intelectual (Denkfaulheit) e irracionalismo.
A coisa em si teria, segundo Lukács, dois momentos: o da irracionalidade do
conteúdo do conceito e o da incognoscibilidade da totalidade. Ambos os momentos
estariam relacionados entre si, baseados um no outro. É necessário que as categorias
tenham significado universal, mas isso não é possível diante da impossibilidade de se
conhecer a totalidade.229
O idealismo alemão tentou resolver o problema da incompatibilidade do
princípio da sistematização com a realidade de um conteúdo — o qual não pode ser
derivado de um princípio da posição da forma — mediando a afirmação da total
derivação e da inderivabilidade do que é dado.230 Levando isso em conta, Lukács evitou
duas posições: 1) o racionalismo ingênuo e dogmático, que renuncia ao conteúdo
irracional de um conceito, como se ele não existisse ou fosse indiferente, e 2) um
realismo dogmático, segundo o qual o conteúdo em si (ansichseiende Inhalt) penetra na
estrutura do próprio sistema de forma determinante. 231
A filosofia clássica não ficou, porém, neste nível superficial do dilema. Ela
levou ao extremo a oposição lógica entre forma e conteúdo, “onde se encontram todas
227
Ibidem., p. 245.
BLUMENTRITT, 1988.
229
Ibidem., loc.cit..
230
Ibidem., loc.cit.
231
HCC, p. 253.
228
79
as oposições subjacentes à filosofia”. Segundo Lukács232, “sua persistência em construir
um sistema racional, a despeito da irracionalidade [...] do conteúdo do conceito (do
dado) devia necessariamente agir de maneira metódica no sentido de uma relativização
dinâmica dessas posições.”
Mesmo adotando o método matemático como modelo, a filosofia clássica não
conseguiu superar esta oposição. Na matemática, o dado irracional, o conteúdo
preexistente é como um estímulo para modificar e reinterpretar o sistema das formas, de
modo que o conteúdo, que aparecia como “dado”, mostra-se a partir daí como
“produzido”. Isso é, “a facticidade se torna em necessidade”.233 Este modelo
matemático, porém, é adaptado às suas próprias exigências, de modo que a
irracionalidade do ser ou da matéria é qualitativamente distinta daquilo que é chamado
de matéria inteligível, não sendo este método, portanto, capaz de solucionar o dilema.
Na matemática, enquanto a produção de um objeto coincide completamente com
a possibilidade de compreende-lo racionalmente, na filosofia essa “produção” significa
tão somente a possibilidade de compreensão racional do objeto. O modelo do método
matemático, embora adequado para produzir objetos segundo suas exigências, mostra-se
assim inadequado para a filosofia.
Fichte foi, segundo Lukács, quem viu tal problema com mais clareza entre os
representantes da filosofia clássica. Em sua A doutrina da ciência de 1804, o filósofo
alemão afirma que quanto a essa produção, trata-se “da projeção absoluta de um objeto,
de cujo surgimento não se pode prestar conta, e que contém, por conseguinte, uma
obscuridade e um vazio no centro entre a projeção e o projetado”.234 Isso é, Fichte fala
de uma projeção por hiato, de um “hiato irracional”, o que expressa claramente o caráter
idealista deste problema: “Wo das Bewusstsein aufhört, ist der Tod” [“onde cessa a
consciência, é a morte”].235
Essa problemática seria, de acordo com Lukács, a chave para se compreender os
rumos tomados pela filosofia moderna:
O reconhecimento incondicional desse problema e a renúncia em superá-lo
conduziram diretamente às diversas formas da doutrina da ficção: recusar
toda “metafísica” (no sentido de ciência do ser), fixar como objetivo a
232
HCC, p. 254.
HCC, p. 255.
234
HCC, p. 256.
235
BLUMENTRITT, 1988.
233
80
compreensão dos fenômenos de setores parciais, particularizados e altamente
especializados, com o auxílio de sistemas parciais, abstratos e de cálculo que
lhes sejam perfeitamente adaptados sem, a partir disso, tentar sequer dominar
de maneira unitária a totalidade do saber possível.236
O surgimento das ciências particulares, fragmentadas, especializadas e
totalmente independentes entre si, decorre justamente do reconhecimento do caráter
insolúvel desse problema. Segundo Lukács237, “cada ciência busca sua ‘exatidão’
precisamente nessa fonte”, deixando repousar em uma irracionalidade intocada o
substrato material que subjaz em seu fundamento último, de modo a poder operar em
um mundo fechado, sem obstáculos, com categorias racionais de fácil aplicação.238
O dilema citado anteriormente, isto é, essa dupla tendência da “renúncia em
reconhecer a realidade efetiva como um todo e como ser”239, impõe-se filosoficamente
no pensamento da sociedade burguesa, de modo a dominar cada vez mais os detalhes de
sua existência social e submetê-los às formas de sua necessidade, mas perdendo, com
isso, de maneira progressiva, a possibilidade de dominar a sociedade como totalidade e,
desse modo, a “vocação para liderá-la”.
Todo o problema das “antinomias do pensamento burguês”, segundo
Feenberg240, estrutura-se em torno dessa questão da “irracionalidade” do conteúdo das
formas racionais do entendimento humano. Esta distância, esta separação, este gap entre
forma e conteúdo, o qual se constitui como o problema de fundo de toda a crítica
lukacsiana à filosofia clássica e ao idealismo alemão, não pode ser resolvido
simplesmente “forçando” o conteúdo às formas disponíveis. Esta limitação, continua
Feenberg, nunca incomodou os físicos ou os geógrafos, mas acaba colocando problemas
práticos à vida cotidiana, dos quais todos já tivemos alguma experiência: burocracias
que não fazem exceções a circunstâncias individuais, leis cuja aplicação estrita gera
patologias sociais, o trabalho tentando controlar as greves, o ensino que tem em vista
provas ou exames, interfaces técnicas e manuais que requerem que os usuários pensem
como se fossem engenheiros, etc.
236
HCC, p. 257.
Ibidem., loc.cit.
238
Richard Westerman (2010, p. 114) observa que Edmund Husserl já relacionava o surgimento
de uma atitude científica instrumental com a reificação: “To follow the model of the natural sciences
almost inevitably means to reify consciousness.” (HUSSERL, Edmund, “Philosophy as a Strict Science”,
in Phenomenology and the Crisis of Philosophy, trans. Quentin Lauer (New York: Harper, 1965), 103.
239
HCC, p. 259.
240
FEENBERG, 2011, p. 177.
237
81
Ernest Mandel241 observa, ainda neste sentido, como o caráter privado da
apropriação capitalista se torna cada vez mais objetivo e abstrato na bolsa de valores,
onde o domínio do capital assume sua forma mais geral e anônima. Aparentemente não
são mais homens de carne e sangue que incorporam a exploração, mas “empresas”,
sinônimos de forças objetivas e cegas.
O senso comum, na prática, trata as formas não como absolutos, mas como
recursos no contexto de atividades orientadas a um tipo de conteúdo. Lukács sustenta
que a moderna sociedade capitalista é uma gigantesca instância de formas sociais e
econômicas impostas cegamente ao conteúdo. A forma da mercadoria prevalece
independentemente se ela é bem-sucedida em mediar a distribuição de valores de uso ou
se apenas abandona as massas à fome.242
A filosofia clássica alemã falha em superar este problema: o conteúdo de sua
racionalidade formal escapa a toda tentativa de abarcá-lo totalmente dentro das formas.
A contingência e a facticidade do mundo permanecem e são conceitualizadas na coisa
em si. Todos estes problemas levaram o idealismo alemão a buscar uma solução para
além da filosofia teórica.243
4.4 O primado da filosofia prática
A relação entre teoria e prática não seria apenas mais um dos aspectos do
problema da reificação. Segundo Mayer244, o fenômeno em si, de maneira geral, pode
ser considerado como um problema de teoria-práxis. Sua solução é, portanto, de
responsabilidade tanto da filosofia teórica quanto da filosofia prática.
O “hiato irracional” mencionado por Fichte em sua A Doutrina da ciência de
1804 exige sua solução em uma revisão do primado da filosofia prática, a fim de superar
os intransponíveis limites daquilo que é dado. O idealismo alemão tentou elaborar uma
concepção na qual o sujeito fosse criador não apenas das formas, mas também da
totalidade do conteúdo. Para isso seria necessário encontrar um ponto de unidade do
qual pudesse ser derivada a inegável diferença entre sujeito e objeto.
241
MANDEL, 1971, p. 237.
FEENBERG, 2011, p. 178.
243
Ibidem., loc.cit.
244
MAYER, 2014, p. 11.
242
82
Fichte tentou superar este hiato através da unidade entre filosofia teórica e
filosofia prática, a qual transforma em princípio a “anfibolia dos conceitos da reflexão”,
quer sejam empíricos ou inteligíveis. Com isso o Eu prático, e não o teórico, se torna o
primeiro princípio.245 A intuição intelectual deságua então em uma ação:
A intuição intelectual, de que fala a doutrina da ciência, não vai de forma
alguma ao ser, mas a uma ação, e ela nem sequer é designada em Kant
(exceto, caso se queira, através da expressão apercepção pura).246
A razão prática toma precedência. O “Eu penso”, que deve acompanhar todas as
representações, será compreendido num sentido prático. O que ele aqui chama de
intuição intelectual (intellektuelle Anschauung) é uma consciência imediata, mas não
sensível.
A filosofia teórica de Kant, segundo Fichte, forneceu apenas a forma do “Eu
penso”, para o qual o pensar permanece indeterminado. Um “Eu” cujas aparências
podemos conhecer, um Eu cujo conteúdo em si pode ser visualizado apenas de forma
prática. Para Fichte, no entanto, é a filosofia prática que deve fundamentar a filosofia
teórica. A intuição intelectual, como certeza imediata do imperativo categórico, deve
fundamentar também a razão teórica. As ideias serão constitutivas não apenas em
relação à prática, mas também em relação à teoria.
Nossa capacidade de conhecer o mundo depende de nossa capacidade de
ativamente constituir o mundo que conhecemos. O Eu prático, com isso, tem prioridade
ontológica sobre o Eu teórico, no sentido de que ele gera o Não-eu que é o objeto da
atividade intelectual. 247
Lukács aponta, no entanto, os limites de uma razão prática apenas ética, a qual
não dá conta de alcançar a verdadeira unidade:
Em oposição à aceitação dogmática de uma realidade simplesmente dada e
estranha ao sujeito, nasce a exigência de compreender, a partir do sujeitoobjeto idêntico, todo dado como produto desse sujeito-objeto idêntico, toda
dualidade como caso particular derivado dessa unidade primitiva.
No entanto, essa unidade é atividade. Após Kant ter tentado mostrar, na
Crítica da razão prática — muitas vezes mal compreendida em termos de
método e falsamente oposta à Crítica da razão pura —, que os obstáculos
teoricamente (contemplativamente) insuperáveis podem encontrar uma
245
BLUMENTRITT, 1988.
“Die intellektuelle Anschauung, von welcher die Wissenschaftslehre redet, geht gar nicht auf
ein Sein, sondern auf ein Handeln, und sie ist bei Kant gar nicht bezeichnet (außer, wenn man will, durch
den Ausdruck reine Apperzeption)“ (FICHTE, 1845, p. 472).
247
DUDLEY, 2007, p. 92
246
83
solução na prática, Fichte põe a prática, a ação, a atividade no centro
metodológico do conjunto da filosofia unificada.248
A filosofia de Fichte, neste aspecto, é apenas idealismo subjetivo. O sujeitoobjeto idêntico a que ele chegou é apenas sujeito-objeto subjetivo, não superando
efetivamente o dualismo.249 Esta crítica havia sido apontada já por Hegel em sua obra
Diferenças entre os sistemas de filosofia de Fichte e Schelling, na qual ele afirma que o
idealismo de Fichte permanece um idealismo “subjetivo” por não conseguir gerar uma
identidade especulativa, através da razão, entre sujeito e objeto. Ele mantém a
identidade entre sujeito e objeto apenas no plano teórico, enquanto no plano prático há
uma separação entre a razão e o mundo.250 Lukács avalia assim a solução proposta por
Fichte:
Repete-se aqui, contudo, num nível filosoficamente mais elevado, a
impossibilidade de resolver a questão colocada pela filosofia clássica alemã.
Com efeito, desde que surge a questão da essência concreta desse sujeitoobjeto idêntico, o pensamento depara com o seguinte dilema: por um lado, é
somente no ato ético, na relação do sujeito (individual) — agindo
moralmente — consigo mesmo que essa estrutura da consciência, essa
relação com seu objeto pode ser descoberta de modo real e concreto; por
outro, a dualidade instransponível entre a forma autoproduzida, mas
totalmente voltada para o interior (forma da máxima ética em Kant), e a
realidade estranha ao entendimento e ao sentido, o dado, a experiência,
impõem-se de maneira ainda mais abrupta à consciência ética do indivíduo
que age do que ao sujeito contemplativo do conhecimento.251
O idealismo alemão elevou ao nível da consciência a necessidade de resolver os
problemas da razão (pura) através da prática. O princípio da prática, contudo, pode ser
encontrado apenas
quando se indica ao mesmo tempo um conceito de forma, cuja validade não
tenha mais como fundamento e condição metodológica essa pureza em
relação a toda determinação de conteúdo, essa pura racionalidade. O
princípio da prática, enquanto princípio de transformação da realidade, deve
então ser talhado na medida do substrato material e concreto da ação, para
poder agir sobre ele quando entrar em vigor.252
Para Lukács, só é possível falar de uma prática “verdadeira” ou não distorcida
onde o objeto pode ser pensado como produto do sujeito, e espírito e mundo coincidam.
248
HCC, p. 262-263.
BLUMENTRITT, 1988.
250
SINNERBRINK, 2007, p. 9.
251
HCC, p. 263-264.
252
HCC, p. 267.
249
84
Nisso ele está bem próximo da concepção de Fichte253 sobre a atividade espontânea do
Espírito254, mas foi Hegel, contudo, quem lhe influenciou de maneira mais decisiva em
sua formulação do proletariado como o sujeito-objeto idêntico do processo histórico.
A unidade entre teoria e prática não se dá, contudo, de maneira imediata. Assim
como em toda e qualquer relação dialética, sua concretude e efetividade só pode ocorrer
através de uma mediação,255 e para isso se mostram de fundamental importância as
categorias de consciência de classe e partido.
À medida que o movimento dos trabalhadores amadurece como consequência do
desenvolvimento de sua consciência, a questão de sua organização torna-se também um
problema teórico, e não mais apenas uma questão prática. O objetivo final para o qual
tende o próprio ser do proletariado não pode ser considerado apenas como um estado ou
situação (Zustand) no futuro, como fazem os utopistas. Visto desta forma, ele seria
apenas uma “solução possível” para o momento presente, mas longínquo, remoto,
distante. É necessário indicar as mediações, o caminho e os passos para tal, e o que
decide a maturidade ou imaturidade do movimento é justamente o fato de a visão sobre
o que deve ser feito agora estar disponível de maneira abstrata e imediata ou concreta e
mediada.256
Seria ilusório acreditar que a superação do utopismo estaria definitivamente
consumada devido à superação intelectual de suas primeiras manifestações levada a
cabo por Marx. A questão da relação dialética entre “objetivo final” e “movimento”,
entre teoria e práxis, ressurge sempre em formas mais desenvolvidas e com conteúdos
alterados em cada nível decisivo do desenvolvimento revolucionário. Isso se explica,
em partes, pelo fato de uma tarefa se tornar visível em sua possibilidade abstrata sempre
antes das formas concretas de sua efetivação.257
A forma de mediação entre teoria e práxis é a organização. Isso se mostra da
maneira mais clara pelo fato de ela mostrar uma sensitividade em relação às opiniões
conflitantes muito mais refinada e segura do que em qualquer outro lugar do
pensamento e ação políticos. Enquanto consideradas apenas teoreticamente, as mais
divergentes visões podem viver pacificamente uma ao lado da outra, e suas oposições
253
Feenberg (2011, p. 109) considera implausível esta transferência do sujeito-objeto fichteano
para o proletariado.
254
HONNETH, 2005, p. 26.
255
LUKÁCS, 2013, p. 475.
256
LUKÁCS, 2013, p. 472.
257
Ibidem., loc. cit.
85
tomam apenas a forma de discussões que podem permanecer no espaço de uma única e
mesma organização sem maiores problemas. Estas mesmas questões, no entanto, se
colocadas de maneira organizatória, mostram-se como incompatíveis e mutualmente
excludentes. Toda questão meramente teórica ou diferença de opinião deve ser
transformada no mesmo instante em questão organizatória, caso de fato tenha a intenção
de mostrar seu caminho para a efetivação e não queira permanecer apenas como teoria
ou opinião abstrata.258
O partido corresponde a uma representação da situação da consciência de classe
proletária, na qual se trata apenas de tornar consciente o inconsciente, de fazer atual o
latente. Não se trata aqui de uma resposta ao medo oportunista quanto à “imaturidade”
do proletariado para a tomada e a manutenção do poder. Isso diz respeito, antes, ao fato
de que a consciência de classe do proletariado não se desenvolve paralelamente à crise
econômica objetiva, linearmente e em todo o proletariado ao mesmo tempo. A maior
parte do proletariado permanece espiritualmente sob influência da burguesia, de modo
que sua reação à crise permanece, tanto em intensidade quanto em virulência, muito
atrás da própria crise. Em diversas momentos, a situação objetiva da sociedade burguesa
permanece em sua cabeça ainda em sua velha forma sólida, de modo que isso o mantém
fortemente preso às formas de pensar e sentir do capitalismo. 259
No que diz respeito à sua forma de organização, o partido comunista é a
preparação e o primeiro passo consciente para o salto no reino da liberdade. Como este
não é dado ao proletariado como gratia irresistibilis260, e como o objetivo final não é
algo fora do processo e que espera por ele em algum lugar, mas reside em cada
momento individual do processo, então o partido comunista, enquanto forma consciente
revolucionária do proletariado, também é algo processual e surge como produto da
própria luta.261
Para cada proletário individual, e devido à reificação de sua consciência, o
caminho para a conquista da consciência de classe objetivamente possível só pode
ocorrer através do esclarecimento posterior de suas experiências imediatas, de modo que
sua consciência psicológica mantém ainda seu caráter post festum. Esta contradição
entre consciência de classe e consciência individual em cada proletário não é acidental.
258
Ibidem., p. 475.
Ibidem., p. 481.
260
Graça irresistível. Este termo designa, na teologia calvinista, a maneira como a graça divina
alcança o indivíduo, de modo que ele não pode evitar se converter após tocado por ela.
261
Ibidem., p. 494.
259
86
A forma superior do partido comunista em relação às outras formas de organização se
mostra precisamente no fato de que nele, pela primeira vez na história, o caráter práticoobjetivo da consciência de classe se mostra, por um lado, como o princípio influente
imediato das ações individuais de cada indivíduo e, por outro, como o fator consciente
codeterminante do desenvolvimento histórico. Esta dupla relação entre o partido
enquanto único portador da consciência de classe proletária e o curso da história se
configura como a mediação concreta entre homem e história.262
A relação apropriada entre partido e classe só pode ser encontrada na própria
consciência de classe do proletariado. Por um lado, a unidade objetiva da consciência de
classe fornece o fundamento para a agregação dialética na separação organizatória entre
classe e partido. Por outro, os diferentes graus de clareza e profundidade da consciência
de classe nos diferentes indivíduos, grupos e camadas do proletariado determinam a
necessidade da separação entre ambos. A luta do partido comunista é pela consciência
de classe do proletariado, e sua separação organizatória não quer dizer que ele queira
lutar no lugar da classe e por seus interesses, mas sempre com a classe. Mesmo que isso
possa acontecer em períodos revolucionários, o objetivo é apenas levar adiante e
acelerar o processo de desenvolvimento da consciência. A independência organizatória
do partido comunista é necessária para que o proletariado possa imediatamente ver sua
própria consciência de classe como forma histórica.263
4.5 Superação da reificação?
A descrição do processo no qual o proletariado se torna consciente de si mesmo
não é apenas uma formulação teórica. Ao perceber que é o sujeito-objeto da história, o
proletariado se descobre também como o sujeito do processo da reprodução social, e
não meramente um objeto de contemplação. O ato de consciência, neste caso, derruba a
forma objetiva de seu objeto. O proletariado pode, assim, superar a reificação através de
um engajamento prático com a totalidade ao conscientemente transformá-la em produto
de sua ação coletiva. Este processo, na perspectiva de Lukács em HCC, não seria outra
coisa que a revolução comunista. Lukács não quer dizer, contudo, que uma sociedade
totalmente transparente na qual a reificação seja completamente superada seja possível,
262
263
Ibidem., p. 495.
Ibidem., p. 503-504.
87
já que isso seria um exercício de previsão do futuro incompatível com a filosofia
marxista.
O senso de realismo que Marx herdou de Hegel sempre lhe manteve com os dois
pés firmes no presente e lhe conteve de fazer prognósticos, previsões, antecipações ou
quaisquer outras práticas futurológicas. Podemos perceber esta tendência em Hegel na
descrição das sucessivas experiências da consciência em sua Fenomenologia do
Espírito. Ao chegar no tempo presente o movimento cessa, as tendências que apontam
para o futuro se perdem e o próprio Hegel deixa de ser dialético.264 Isso não significa,
contudo, que ele era conservador ou que considerava aquele período o fim da história.
A tese de Hegel de que “tudo o que é real é racional; e tudo o que é racional é
real” teria sido, segundo Engels265, interpretada de maneira equivocada como “a
santificação de tudo que existe, a bênção filosófica dada ao despotismo, ao Estado
policial, à justiça de gabinete” e à censura, inclusive por Frederico Guilherme III e seus
súditos. Esta tese hegeliana, aplicada ao estado prussiano da época, permitiria
uma única interpretação: este estado é racional, corresponde à razão, na
medida em que é necessário; se, no entanto, nos parece mau, e continua
existindo, apesar disso, a má qualidade do governo justifica-se e explica-se
pela má qualidade correspondente de seus súditos. Os prussianos da época
tinham o governo que mereciam.266
Engels prossegue: não era também real a república romana, assim como o
império romano que a substituiu? Não havia se tornado irreal a monarquia francesa em
1789, isto é, “tão destituída de toda necessidade, tão irracional, que teve de ser varrida
pela grande Revolução”, da qual Hegel falava sempre com grande entusiasmo? Aqui,
portanto, o irreal era a monarquia, e o real, a revolução.
Considerando que os Estados e os sistemas políticos passam de reais a irreais,
eles perderiam, assim, seu caráter de necessidade, seu direito de existir, seu caráter
racional, tornando a tese de Hegel em seu contrário:
tudo que é real, nos domínios da história humana, converte-se em irracional,
com o correr do tempo; já o é, portanto, por seu próprio destino, leva
previamente, em si mesmo, o germe do irracional, e tudo que é racional na
cabeça do homem está hoje com a aparente realidade existente.267
264
Ibidem., p. 653.
ENGELS, 1975, p. 82.
266
Ibidem., loc.cit.
267
Ibidem., loc.cit.
265
88
Segundo as regras de seu próprio método dialético, a tese de Hegel se resolve
nesta outra: “tudo o que existe merece perecer”. Nisso residiria, segundo Engels268, o
caráter revolucionário da filosofia hegeliana, pois ela acabou com o caráter definitivo de
todos os resultados do pensamento e da ação do homem. Para Hegel, a verdade que a
filosofia procurava conhecer já não era uma coleção de teses dogmáticas fixas, mas
residia no próprio processo do conhecimento, através do longo desenvolvimento
histórico da ciência, da filosofia, nos demais ramos do conhecimento e no domínio da
atividade prática. Se é possível, portanto, reconhecer um aspecto conservador nesta tese
de Hegel quando ela legitima determinadas formas sociais, este conservadorismo é
apenas relativo. Seu caráter revolucionário, pelo contrário, é absoluto — na verdade, “a
única coisa absoluta que ele deixa de pé”.269
Marx segue Hegel de perto neste aspecto. Ele fornece uma nova perspectiva para
interpretar a história, à qual se deu posteriormente o nome de “materialismo
histórico”270, e o próprio título de sua principal obra, O capital, já é indicativo de que
seus esforços se voltavam não para imaginar uma sociedade ideal fundada em
postulados éticos, mas sim para uma ampla e minuciosa crítica do presente. Ao
contrário dos clássicos da filosofia política utópica, tais como Platão (A República),
Thomas Morus (A Utopia), Francis Bacon (Atlântida) e Tommaso Campanella (A
cidade do sol), Marx não buscava elaborar em seu cérebro uma nova sociedade para
depois lutar por sua efetivação.271 Nas palavras de Feenberg272, Marx tinha um
“desgosto por especulação utópica”. Quando ele e Engels anunciam, em linguagem
incendiária, a dissolução do capitalismo e da ordem social existente no Manifesto do
partido comunista, isso de modo algum deve ser entendido como uma tentativa de
antecipar o futuro. Tendo em vista sua compreensão dialética da história, o fato de que
nada permanece e de que formações sociais, reinos e impérios surgem e desaparecem,
seria realmente surpreendente o contrário: se Marx pelo menos cogitasse a possibilidade
de o capitalismo ser a estação final da história humana. Se seu discurso sobre a
inevitável queda do capitalismo soa profética, isso se deve mais ao tipo de linguagem
268
Ibidem., loc.cit.
Ibidem., p. 83.
270
O próprio Marx não utiliza este termo.
271
Com exceção de alguns pontos em sua Crítica ao programa de Gotha e menções dispersas
em outros textos e cartas, Marx praticamente não fala sobre como deve ser uma sociedade comunista. Os
revolucionários que se inspiraram em sua obra para derrubar o capitalismo tiveram que desenvolver por si
próprios os fundamentos da nova sociedade que buscavam construir.
272
FEENBERG, 2011b, p. 106.
269
89
exigido por este tipo de literatura — um manifesto político —, do que a algum aspecto
conceitual de seu pensamento. Marx aponta tão somente o próximo elo da cadeia, tendo
em vista o desenvolvimento histórico e as contradições do presente. Merleau-Ponty273
afirma que quando alguém diz que o marxismo encontra um sentido na história, isso não
deve ser entendido como se houvesse uma orientação irresistível em direção a alguns
fins. Isso significa que há, antes, imanente na história, um problema ou uma questão em
relação à qual o que acontece a cada momento pode ser classificado, situado,
compreendido como progresso ou regresso, comparado com o que acontece em outros
momentos, que pode ser expresso na mesma linguagem, compreendido como uma
contribuição ao mesmo empreendimento e pode, em princípio, ensinar uma lição.
Em sua obra de juventude Marx desenvolveu um novo conceito de razão na
revolução através de um tratamento ontológico de categorias sociais. 274 Sua
preocupação com o problema da racionalidade revolucionária é formulada em seus
primeiros escritos, nos quais ele tenta demonstrar que a revolução pode satisfazer o que
ele chama de “exigências da razão”, e que através da prática revolucionária a razão, ou a
filosofia, pode ser “realizada”. Sua abordagem metateórica para formular este ponto
possui, segundo Feenberg275, três momentos. Marx mostra, inicialmente, que as
categorias filosóficas são, na realidade, deslocamentos de categorias sociais. Esta é
leitura que Marx faz, por exemplo, da obra de Hegel, que teria como real fundamento o
trabalho alienado, embora Hegel não tenha conseguido perceber isso. Num segundo
momento, Marx converte então as categorias sociais em forma de categorias filosóficas
(seguindo Feuerbach) para, finalmente, demonstrar a pertinência filosófica da ação
social para resolver as contradições da filosofia reconvertidas agora em categorias
sociais.
Lukács opera de forma semelhante a Hegel e Marx. Tal abordagem permeia sua
obra de juventude, da qual depreende-se uma leitura do marxismo, enquanto filosofia da
práxis, que estabelece uma relação entre as exigências da razão e os objetivos políticos
revolucionários, isso é, entre teoria e prática276. Para Lukács, o que está em jogo na luta
273
MERLEAU-PONTY, 1973, p. 38.
FEENBERG, 1981, p. 2.
275
Ibidem., p. 47.
276
Ibidem., p. 27.
274
90
pelo socialismo não é apenas uma mudança na sociedade, mas o próprio destino da
racionalidade, pois a revolução é uma tarefa da razão.277
Não se trata de simplesmente associar o fim da reificação a um único ato
revolucionário de derrubada do capitalismo. Lukács afirma que se em algum ponto a
reificação for superada, surge também, no mesmo instante, o perigo de esse novo estado
de consciência se petrificar, enrijecer.278 A revolução deve ser entendida aqui como uma
mediação da ordem social reificada, como sua transformação através da resistência
autoconsciente do proletariado à sua própria forma de objetividade enquanto
mercadoria. Formalmente, a reificação é total no sentido de que fornece uma “forma de
objetividade” tanto para objetos, quanto para sujeitos na sociedade capitalista. Forma e
conteúdo, no entanto, não são idênticos, de modo que o conteúdo pode romper a forma
de objetividade e modificá-la.279
A reificação poderia ser gradualmente superada em um processo de longo prazo.
A iniciativa e a liberdade humanas seriam recuperadas à medida que as barreiras
estruturais de uma sociedade racionalizada e administrada fossem superadas por um
proletariado que inicia a transição ao socialismo. Lukács reafirma este ponto
repetidamente e de diferentes maneiras por toda a terceira seção de seu ensaio sobre a
reificação em HCC, mas nunca desenvolve o argumento de maneira formal em relação à
problemática da filosofia clássica alemã. Ele escreve, por exemplo, que o pensamento
proletário não pode partir de uma tabula rasa, como tentou a filosofia burguesa em
relação à filosofia medieval. Antes, a filosofia proletária parte da própria reificação, a
qual dialeticamente torna possível, pela primeira vez, compreender a sociedade como
produto humano.280
A superação da reificação passaria por uma interminável alternância entre
ossificação, contradição e movimento. Lukács rejeita a tendência humanista de tornar o
homem um absoluto no lugar das forças transcendentes que ele deveria explicar,
dissolver e sistematicamente substituir. O proletariado não é capaz de constituir uma
realidade como se estivesse em uma transcendência no além.281 Cada relação humana
que rompe com a estrutura de uma abstração da personalidade total do homem, com sua
277
Ibidem., p. 60.
LUKÁCS, 2013, p. 511.
279
Ibidem., p. 107.
280
Ibidem., loc.cit.
281
Ibidem., p. 110.
278
91
subsunção a um ponto de vista abstrato é um passo em direção ao rompimento com a
reificação da consciência humana.282
O conceito de mediação com que trabalha Lukács, inspirado em Hegel e Marx,
sugere uma imagem de revolução diferente daquela derivada das revoluções Francesa
(1789) e Russa (1917). Apesar dessas experiências terem influenciado sua noção de
desenvolvimento histórico com o conceito de mudança repentina na redação de HCC,
sua teoria pode ainda abrigar um padrão evolucionário no qual a reificação e sua
superação permanecem em uma relação contínua de conflito e resolução. A revolução
alteraria as condições deste conflito, favorecendo ou a estrutura, ou os agentes. Esta
abordagem implica uma teoria da modernidade como uma formação social diferenciada
com duas variantes: uma capitalista, na qual a reificação é predominante e oprime a
resistência, e uma socialista, na qual as relações entre reificação e resistência são
invertidas e é possível submeter sistemas reificados maleáveis a uma constante revisão.
A revolução, em Lukács, é distinta de uma exigência utópica de abolição
imediata da reificação, a qual é um pressuposto necessário da luta e cria potencialidades
que podem ser realizadas através da derrubada de instituições sociais que formam e
limitam a vida do proletariado. A consciência de classe que leva à revolução não
descobre algo anterior à sociedade, uma essência humana originaria à qual é preciso
retornar, mas expõe o potencial humano criado e suprimido pelo capitalismo.283 A
revolução altera o sistema das formas de objetividade da vida real, e por isso ela é a
mediação necessária através da qual a superação da reificação se torna possível.
282
283
LUKÁCS, 2013, p. 497.
FEENBERG, 2015, p. 497.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reificação, como máscara conceitual, é um “erro categorial epistêmico”, um
processo cognitivo através do qual algo que em si não possui propriedades de coisa
passa a ser visto como tal.284 Este processo, em extensão, atinge todos os homens sob o
capitalismo, tendo como causa social de sua generalizada disseminação a ampliação da
troca de mercadorias, a qual se estabeleceu como forma dominante de intercâmbio entre
os homens a partir da instauração da sociedade capitalista.
As consequências da reificação se estendem a todos os domínios da vida. Uma
vez colocados em relações reificantes entre si, no qual o que mais importa é calcular,
medir e abstrair todo aspecto qualitativo, os homens veem-se compelidos a travar uma
relação reificante com todo o seu entorno, o que cria um mundo completamente
administrado. Esta generalização se agudiza a ponto de gerar uma “segunda natureza”
humana.285
A filosofia clássica alemã sentiu profundamente os efeitos da reificação, e
elevou os problemas resultantes deste processo social ao nível de problemas filosóficos,
embora não consciente de sua origem. Um destes problemas foi a perda da visão da
totalidade, que teve como um de seus desdobramentos a crescente especialização das
ciências, as quais se tornaram, por isso, sistemas fechados parciais de leis independentes
umas das outras. Outro problema, que atingiu tanto as ciências particulares como
também a filosofia, foi o da irracionalidade do dado, do conteúdo das formas. Em Kant,
por exemplo, ele se manifesta na forma do conceito de coisa em si. As tentativas da
filosofia clássica alemã de solucionar os problemas por ela identificados já apontavam
na direção de uma prática. A Crítica da razão prática, de Kant, ou o conceito do “Eu
como pura atividade”, de Fichte, são esforços para resolver tais questões, as quais
permaneceriam insolúveis se tratadas apenas no âmbito da razão teórica.
Lukács afirma, em Die Zerstörung der Vernunft (“A destruição da razão”), que
no período do idealismo alemão a dialética “estava no ar”.286 Isso pode ser observado,
por exemplo, no capítulo sobre a dialética da razão na Crítica da razão pura, de Kant,
na dialética fichteana de tese-antítese-síntese, e até mesmo nas obras do jovem
284
HONNETH, 2005, p. 19.
Ibidem., p. 21.
286
LUKACS, 1973, p. 125.
285
93
Schelling, como em suas Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo. Foi
apenas Hegel, no entanto, que soube desenvolver filosoficamente esta tendência
histórica que se apresentava também no âmbito do pensamento.
Através do movimento dialético na Fenomenologia do espírito, a consciência
supera a figura na qual ela se colocava fora de si e não se reconhecia mais em suas
exteriorizações: a alienação. Depois de sucessivos conflitos entre seu saber e sua
verdade, ela finalmente encontra a unidade consigo mesma. Neste trajeto ela se
constituiu através do trabalho, e o jovem Marx percebe que esta marcha dialética
descrita por Hegel de maneira abstrata e parcial correspondia à realidade social concreta
de um meta-sujeito histórico: o proletariado.
Hegel considerava, porém, apenas o aspecto positivo do trabalho, através do
qual a consciência formava a si mesma. Marx visualiza então um outro aspecto: o
trabalhador, através de sua atividade laboral, cria também sua própria alienação. Ao ser
obrigado a vender sua força de trabalho e se integrar a um sistema de leis que funciona
de forma completamente independente de si e à qual ele se integra como mero apêndice,
o proletário transforma um aspecto qualitativo de seu ser — sua força de trabalho — em
um aspecto quantitativo. Sendo este aspecto, no entanto, inseparável de sua
personalidade total, ele então se coisifica neste processo. Essa contradição o leva à
tomada de consciência de sua própria situação, à chamada “autoconsciência da
mercadoria”.
O conhecimento de si do proletariado é, ao mesmo tempo, o conhecimento
objetivo da estrutura da sociedade capitalista, e por isso ele realiza no plano social a
unidade sujeito-objeto. O trabalhador, ao se autoconhecer, traz uma mudança estrutural
no objeto de seu conhecimento. A ascensão e a evolução do conhecimento do
proletariado, por um lado, e sua ascensão e evolução no curso da história, de outro, são
apenas dois aspectos do mesmo processo real287. O ato de tornar-se consciente
transforma radicalmente a forma de objetividade de seu objeto.288
287
Lukács volta a explicar esta determinação recíproca entre sujeito e objeto em sua obra A
defense of History and Class Consciousness, a qual foi escrita pouco após a publicação de História e
Consciência de Classe (por volta de 1925) mas permaneceu inédita até 1996: “a interação dialética entre
sujeito e objeto no processo histórico consiste no fato de que o momento subjetivo é [...] um produto, um
momento do processo objetivo. [...] Esta interação dialética [...] surge ‘exclusivamente’ na práxis.”
(LUKÁCS, 2002, p. 56)
288
HCC, p. 357.
94
É no horizonte dessa autoconsciência do proletariado que Lukács situa a
possibilidade de superação da reificação. A mera consciência do proletariado quanto à
sua situação de classe não é, no entanto, todo o processo. Este ainda deve seguir através
da mediação da análise social e da ação do Partido Comunista na direção de sua
resolução revolucionária.289 O partido, segundo Lukács, é a forma de mediação entre
teoria e práxis.290 Ele “corresponde a uma apresentação do estado da consciência de
classe proletária, na qual se trata apenas de tornar consciente o inconsciente, de tornar
atual o latente.”291
A menção a uma revolução ou a um partido comunista são marcas do tempo que
encontramos em HCC. Quando vistas através das lentes ideológicas daquela
interpretação histórica — reificada em si mesma — que define o retrocesso das
experiências socialistas reais como vitórias definitivas do capitalismo, tende-se a
considerar as reflexões de Lukács, se não refutadas, pelo menos ultrapassadas. O que
não se pode perder de vista, todavia, é que as realidades sociais concretas das quais a
reificação se origina são fundamentalmente as mesmas. As mutações pelas quais o
capitalismo passou no século XX e a reorganização da classe trabalhadora foram, no
sentido aristotélico do termo, acidentais, não essenciais. Nos dias de Marx e Lukács,
eram os proletários os mais afetados pelos efeitos da reificação. As tecnologias estavam,
de fato, concentradas principalmente nas fábricas. Os trabalhadores eram reunidos em
amplas massas devido ao maquinário que utilizavam, e podiam desenvolver a partir daí
consciência de classe e resistir ao capitalismo coletivamente. A tecnologia passou,
então, a um ritmo cada vez mais acelerado, a envolver todos os aspectos da vida, e não
se restringe mais apenas ao ambiente fabril.292 Se o proletariado, que cumpre um papel
essencial nos textos de Lukács, parece ter desaparecido da cena social e ter sido
substituído por outros atores sociais candidatos a sujeitos revolucionários, uma análise
concreta mostra que esta impressão é apenas ilusória.
A partir da década de 1950, no apogeu do estado de bem-estar social, diversas
teses acerca do fim do proletariado ganharam corpo,293 seguindo-se daí outras tantas
buscas por um novo “sujeito revolucionário”. Apoiadas na ausência da classe operária
como antagonista do capital nas lutas do período, tais teorias deduziram uma
289
FEENBERG, 2011, p. 181.
HCC, p. 529.
291
HCC, p. 537.
292
FEENBERG, 2015, p. 498.
293
LESSA, 2012, p. 81.
290
95
transformação nas próprias relações de produção que teria eliminado o proletariado
enquanto classe social. Os novos atores propostos, no entanto, não tinham com o capital
a mesma relação de antagonismo fundada nas relações de produção como a classe
operária, fossem eles assalariados ou parte do exército industrial de reserva. A
impossibilidade de serem portadores de um projeto emancipador de toda a humanidade
e que supere a sociedade de classes já havia sido assinalada por Lukács. Na sociedade
capitalista, apenas a burguesia e o proletariado são “classes puras”, isso é, classes “cuja
existência e evolução baseiam-se exclusivamente no desenvolvimento do processo
moderno de produção”.294 As outras classes, pelo fato de sua posição na sociedade não
se fundar exclusivamente no seu lugar no processo de produção, são incapazes de
perceber a sociedade atual em sua totalidade, e por isso estão condenadas a
desempenhar um papel subordinado, nunca podendo intervir efetivamente na marcha
histórica como fator efetivo de conservação ou progresso.
As lutas travadas pelos candidatos a novo sujeito revolucionário são sempre
lutas parciais, confrontos limitados contra alguns efeitos do capitalismo e que não
colocam em questão a sociedade burguesa enquanto tal.295 Elas já trazem em si, neste
sentido, uma das principais características da reificação, que é a perda da visão da
totalidade. As lutas identitárias, por exemplo, a partir de recortes da realidade fundados
em aspectos outros que não as relações de produção, mostram com particular clareza a
fragilidade de tais perspectivas quando colocadas diante da tarefa de transformação
radical da sociedade. Suas pautas, por não colidirem frontalmente com os fundamentos
da sociedade capitalista, com sua estrutura e divisão em classes, e por não questionarem
exatamente a extração de mais-valia, mas apenas uma exploração “desigual” a que são
sujeitos os indivíduos das camadas assalariadas, são progressivamente absorvidas pelo
capitalismo296, fazendo com que os movimentos que militam por sua concretização
tornem-se organizações de pseudo-atividades políticas. O capitalismo assimila,
incorpora, integra em si toda sorte de movimento contestatório, em uma dinâmica
análoga à extração de um antídoto a partir do próprio veneno. Uma das maneiras mais
eficientes que o sistema desenvolveu para lidar, combater ou negar certas reivindicações
é através de sua manipulação e concessão parcial, a conta-gotas. Esta foi a estratégia do
294
HCC, p. 156.
LESSA, 2012, p. 86.
296
Herbert Marcuse já afirmava em sua obra One-Dimensional Man que o capitalismo havia se
tornado capaz de absorver suas contradições através de reformas parciais e ajustes que “integravam” o
proletariado.
295
96
capital, por exemplo, com a social-democracia e a criação do estado de bem-estar social.
A imagem toma o lugar da coisa, o simulacro substitui o real. Às exigências de
liberdade e emancipação o capital oferece, em troca, seus espectros, seus fantasmas,
suas sombras.
As transformações no mundo do trabalho, a aparente saída de cena do
proletariado e eventos como a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto deram novos
rumos ao conceito de reificação. Este foi de fundamental importância para o surgimento
da Escola de Frankfurt e em especial para a redação da Dialética do esclarecimento, de
Theodor Adorno e Max Horkheimer. Junto a outras fontes teóricas, a reificação foi a
base de sua crítica ao positivismo, de sua reformulação dialética da teoria marxista e de
sua reflexão sobre como a crescente racionalidade capitalista resultou na perversão
totalitária. O novo momento histórico, porém, fez com que os fundadores da teoria
crítica divergissem de Lukács em aspectos fundamentais.
Adorno desconsidera, por exemplo, o conceito de totalidade devido à sua
relutância em relacionar validade epistemológica e gênesis social. Na Dialética do
esclarecimento, por exemplo, a totalidade perdeu todas as suas conotações positivas
para se tornar quase um sinônimo de totalitarismo.297 Uma simetria entre o fazer e o
saber, colocada pelo princípio verum-factum298, seria para ele uma falácia. A teoria
marxista, ademais, nunca poderia ser reduzida à consciência de uma classe progressista.
A própria noção de um meta-sujeito capaz de totalizar a realidade seria uma tentativa
ilegítima de hipostasiar a realidade emprestada da noção idealista de sujeito
transcendental. Tal tentativa seria não apenas uma filosofia questionável, mas também
perniciosa. Sua raiz mais profunda poderia ser encontrada na predominância do valor de
troca nas relações sociais, uma predominância que reduzia os indivíduos a meros
exemplares de uma subjetividade abstrata.299
Adorno também parecia não ter esperança em uma completa superação da
reificação. Em sua Dialética negativa, ele afirma que o pensamento, para se consolar,
facilmente se imagina como possuidor da pedra filosofal junto à dissolução
da reificação, do caráter de mercadoria. Mas a própria reificação é a forma de
reflexão da falsa objetividade; centrar a teoria em torno dela, uma figura da
297
JAY, 1984, p. 261.
Princípio de Giambattista Vico, “verum et factum convertuntur”: o verdadeiro e o realizado
são intercambiáveis. O homem pode conhecer a história, feita por ele, melhor do que a natureza, feita por
Deus (JAY, 1984, p. 34).
299
JAY, 1984, 259.
298
97
consciência, torna a teoria crítica aceitável de maneira idealista para a
consciência dominante e para o inconsciente coletivo.300
Sendo impossível a constituição de um meta-sujeito coletivo e estando as saídas
bloqueadas, a dissolução da reificação, como vislumbrada por Lukács, não tem lugar no
pensamento de Adorno. Os momentos históricos de redação de HCC e da Dialética
negativa mostraram-se determinantes para os destinos do conceito: o otimismo de
Lukács, surgido do calor da revolução russa, deu lugar ao ceticismo pessimista de
Adorno, resultado de décadas sem revoluções proletárias e dos rumos insatisfatórios do
socialismo realmente existente. Em sua avaliação, o momento de realizar a filosofia foi
perdido, e a transformação do mundo fracassou. 301
Décadas mais tarde, a reificação voltou novamente à cena do debate filosófico e
recebeu de Axel Honneth uma releitura que buscou, no entanto, desvencilhá-la de seu
solo material concreto: a estrutura da mercadoria. Honneth define a reificação como um
esquecimento do reconhecimento do outro, e a identifica com práticas e atitudes
individuais que tendem a bloquear este reconhecimento. Quando em larga escala, isso
tem consequências coletivas que ele chama de “patologias sociais”. Atitudes
psicológicas, todavia, raramente são abordadas por Lukács, mesmo quando ele discute
sobre a consciência.302
O tema da reificação em Lukács foca no progresso social. A patologia social que
de fato lhe interessa não é a falta de reconhecimento, por mais importante que seja, mas
sim a predominância das estruturas racionais que distorcem e oprimem as vidas
humanas. Honneth afirma, por exemplo, que Lukács erra ao descrever o trabalho
assalariado e a troca de mercadorias como reificados, não obstante estes serem
fundamentais para o filósofo húngaro. Tanto a troca de mercadorias quanto o trabalho
assalariado são baseados em relações contratuais que implicam o reconhecimento do
outro, e é justamente isso o que diferencia a troca do roubo e o trabalho assalariado da
escravidão.303
300
ADORNO, 2009, p. 163.
Ibidem., p. 11. Adorno se refere aqui à passagem de Marx, na introdução de sua Critica à
filosofia do direito de Hegel, na qual ele afirma que a suprassunção (Aufhebung) do proletariado — sua
emancipação através da revolução — é a efetivação da filosofia.
302
FEENBERG, 2011, p. 102.
303
Ibidem., p. 103.
301
98
Feenberg304 afirma que dificilmente Lukács não perceberia a diferença entre
troca e roubo, ou trabalho assalariado e escravidão, e tampouco teria ele compreendido
mal sua própria inovação conceitual. Se a conclusão de Honneth é falsa, então uma das
premissas deve ser falsa, e seu erro está em identificar a reificação apenas como uma
falha no reconhecimento. Lukács aborda extensivamente a reificação em HCC, mas
sempre em conexão com os conceitos de alienação e fetichismo da mercadoria, de
Marx, e com o conceito de racionalização, de Weber. Raramente ele o faz em termos de
relações humanas.
A reificação se manifesta em todas as esferas da atividade humana, e refletir a
partir deste conceito possibilita não apenas compreender melhor as relações humanas no
capitalismo tardio, mas também as próprias práticas ou movimentos de contestação ao
mundo reificado. Questões sociais candentes, como o entendimento individualista da
liberdade e a consequente busca por saídas pessoais, a extensa máquina burocrática
tomando conta de todas as esferas da vida, a atitude contemplativa diante do mundo e a
submissão de todas as criações humanas (leis, cultura, ética, política) aos procedimentos
quantitativos das ciências naturais são características de uma sociedade completamente
tomada pela reificação.
304
Ibidem., loc.cit.
99
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