Academia.eduAcademia.edu
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA GLAUBER ATAIDE O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE, DE GEORG LUKÁCS Belo Horizonte 2020 GLAUBER ATAIDE O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE, DE GEORG LUKÁCS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Orientador: Prof. Dr. Verlaine Freitas. Belo Horizonte 2020 2 3 4 Dedico essa dissertação à Geisa. 5 AGRADECIMENTOS À minha esposa e filhos, por compreenderem a presença-ausente que a confecção de uma dissertação requer. Tive que passar muitas e longas horas isolado em meu escritório, tal qual um Gregor Samsa alienado de todo convívio social. À minha professora de história do ensino médio que me emprestou, sem eu pedir, o Manifesto do partido comunista, de Marx e Engels. Talvez ela nunca leia isso e não saiba como influenciou parte de quem sou hoje. Aos diversos camaradas de lutas sociais, com quem muito aprendi tanto na teoria, quanto na prática. Combatemos juntos aos humilhados e ofendidos desta terra, juntos ao que não possuem casa, aos que não possuem emprego e também àqueles que, mesmo trabalhando, mal conseguem sobreviver com seu salário. Ao povo humilde, por me ensinarem a virtude da coragem ao realizar ocupações por moradias, a virtude da rebeldia ao cruzar os braços e realizar greves, e a virtude da solidariedade e do espírito comunitário ao se apoiarem mutuamente. Estes são os que mais sentem os efeitos da reificação e protestam contra ela. Aos companheiros de diretoria do sindicato, pelas lições e companhia em (quase) três gestões consecutivas, e em especial à Rosane Cordeiro. Sem sua intervenção eu não poderia, como proletário que sou, ter assistido às aulas da pósgraduação na UFMG, que acontecem apenas no período da tarde. Ao meu orientador, Verlaine Freitas, por ter me acompanhado desde o TCC, passando pela iniciação cientifica, chegando até ao mestrado. Aos colegas Veronica Campos e Rodrigo Pithon. Também ao Guilherme Malta, pelo companheirismo e pelas longas conversas sobre o idealismo alemão; ao Felipe Torres, pela ansiedade que compartilhamos para passar neste concurso de mestrado, e à Regina Sanches, que me deu muitas dicas sobre como chegar até aqui. 6 RESUMO Neste trabalho investigaremos inicialmente as categorias de totalidade e mediação, através das quais Lukács pensa todo o problema da reificação. Em segundo lugar, analisaremos a unidade mínima, nuclear, da qual se desdobra a estrutura da consciência reificada: a mercadoria. Na sequência, veremos de que maneira a troca de mercadorias, como forma dominante de intercâmbio entre os homens, afeta toda a estrutura de consciência, de modo a tornar o proletariado um híbrido bizarro de humano e inumano, a chamada “mercadoria consciente de si”. Por último, investigaremos como o proletariado, sendo o sujeito-objeto idêntico do processo histórico, pode superar o fenômeno da reificação através de uma práxis transformadora da realidade social. Palavras-chave: reificação, marxismo, idealismo alemão 7 ABSTRACT In this work we will initially investigate the category of totality, through which Lukács articulates the problem of reification. After that we will analyze the smallest and nuclear unit from which the structure of reification unfolds itself: the commodity. Next we will show how the commodity exchange, as the main form of interchange between human beings, affects the whole structure of their consciousness in such a way that it turns the proletarian into a bizarre hybrid of human and non-human, the so called “commodity conscious of itself”. Lastly, we will investigate how the proletariat, being the identical subject-object of the historical process, might overcome reification through a transforming praxis on the social reality. Keywords: reification, marxism, german idealism 8 ÍNDICE Introdução...................................................................................................... 10 Capítulo 1. As categoria de totalidade e mediação ....................................... 13 1.1 A perda da totalidade ............................................................................. 13 1.2 A totalidade em Kant ............................................................................. 15 1.3 A totalidade de Hegel a Marx ................................................................. 18 1.4 Totalidade e práxis ................................................................................. 27 1.5 A mediação ............................................................................................ 28 Capítulo 2. O núcleo originário da reificação ............................................... 34 2.1 O fetichismo da mercadoria ................................................................... 36 2.2 O fetichismo em Marx ........................................................................... 37 2.3 O fetichismo em Lukács......................................................................... 42 2.4 Manifestações do fetichismo .................................................................. 46 Capítulo 3. A mercadoria consciente de si .................................................... 50 3.1 As classes sociais no marxismo .............................................................. 52 3.2 O desenvolvimento da consciência proletária ......................................... 61 Capítulo 4. O proletariado como sujeito-objeto idêntico ............................. 65 4.1 A constituição do sujeito histórico em Hegel .......................................... 65 4.2 O sujeito-objeto idêntico se efetiva na história ....................................... 74 4.3 As antinomias do pensamento burguês ................................................... 78 4.4 O primado da filosofia prática ................................................................ 82 4.5 Superação da reificação? ........................................................................ 87 Considerações finais ...................................................................................... 93 Referências ................................................................................................... 100 9 INTRODUÇÃO A reificação (Verdinglichung) é “a realidade imediata e necessária para todo homem que vive no capitalismo”1. Segundo Feenberg2, ela é uma forma de objetividade, e se refere à máscara conceitual que o mundo social assume na era burguesa ao se tentar compreendê-lo através de categorias racionais formais. Honneth3 resume o conceito, em sua forma mais básica, como um processo cognitivo através do qual algo que em si não possui propriedades de coisa — como, por exemplo, relações humanas — passa a ser visto como tal. O termo se origina, etimologicamente, do substantivo alemão Ding, que significa “coisa”. O prefixo ver- indica aqui um movimento de transformação, de modo que o verbo verdinglichen significa “coisificar”, e em sua forma substantivada — Verdinglichung —, “coisificação”. Em vários idiomas, como português, inglês, francês e espanhol, predomina a forma latina do termo, a partir do radical res, que tem o mesmo significado que Ding. Daí a tradução de Verdinglichung, nestas línguas, respectivamente como “reificação”, “reification”, “réification” e “reificación”. A forma acabada do conceito surgiu no contexto de uma crítica à ciência e à filosofia alemã no fim do século XIX e início do século XX. Este foi um período de rápido crescimento industrial, acompanhado pelo surgimento de uma ideologia cientificista que atingiu até mesmo a interpretação da obra de Marx dentro do movimento comunista internacional.4 História e consciência de classe, a obra de Lukács na qual ele publicou, pela primeira vez, o tema desta dissertação, polemiza contra tal tendência. A principal categoria filosófica utilizada anteriormente para tratar dos fenômenos que a reificação visa explicar era a alienação. Tratar deste tema sem relacioná-lo às suas determinações ou fundamentos sociais era parte do Zeitgeist5. Karl Marx, todavia, representa um ponto de ruptura. Mesmo abordando o tema de maneira breve ou marginal, apontou a relação dialética existente entre a base econômica e os 1 HCC, p. 391. FEENBERG, 2011, p. 179. 3 HONNETH, 2005, p. 19. 4 FEENBERG, 2015, p. 492. 5 BLUMENTRITT, 1988. 2 10 fundamentos do conhecimento, entre a forma da mercadoria e a forma do pensamento. A alienação não era apenas uma categoria psicológica, mas uma categoria do real.6 Já no século XX, ao desenvolver este conceito em maior profundidade, Lukács também manterá este fundamento real — a estrutura da mercadoria — como ponto de partida de sua análise, investigando, daí em diante, os principais desdobramentos que a troca de mercadorias como forma generalizada de intercâmbio entre os homens imprime sobre a estrutura da consciência. O desenvolvimento da filosofia clássica alemã e da ciência moderna é analisado por Lukács também neste sentido, como desdobramento de uma estrutura de consciência já reificada. No caso da filosofia, essa estrutura se constitui como o limite intransponível das chamadas “antinomias do pensamento burguês”, cuja solução será buscada em uma prática pelo idealismo alemão. A trajetória intelectual de Lukács reproduziu, em um microcosmo, o percurso da própria filosofia alemã. Ele passou, inicialmente, por um ciclo de transição de Kant a Hegel — o chamado período de Heidelberg —, que foi seguido pela fase na qual ele caminha de Hegel a Marx. História e consciência de classe é uma obra deste segundo período, e por isso ele a chamou de “meu caminho para Marx”.7 Embora tendências aparentemente conflitantes possam coexistir lado a lado em um período de mudanças, Lukács enxerga uma linha de continuidade neste processo: a ética “impele à prática, ao ato e, assim, à política. Esta, por sua vez, impele à economia, o que leva a um aprofundamento teórico e, por fim, à filosofia do marxismo.”8 Por isso Lukács também caminha no sentido de buscar a superação das chamadas antinomias da razão — ou, mais exatamente, de sua causa originária, a reificação — em uma prática e, mais especificamente, na práxis do proletariado, o qual se constitui como o sujeito-objeto idêntico do processo histórico. Tanto esta práxis quanto este sujeito seriam, para o filósofo húngaro, a realização do programa inconcluso da filosofia clássica alemã, o qual se articularia em três pontos: 1) o princípio da prática, 2) o método dialético e 3) a história como realidade.9 Em nossa pesquisa buscamos compreender como Lukács articulou o conceito de reificação, demonstrando quais foram suas fontes, quais os conceitos auxiliares 6 LOTZ, 2013, p. 185. HCC, p. 1. 8 HCC, p. 5. 9 FEENBERG, 2011, p. 186. 7 11 utilizados e quais os passos de sua reflexão. O olhar de nosso estudo se direciona, portanto, de Lukács para trás, não para frente.10 Em que pese a enorme influência do conceito de reificação para o surgimento do chamado marxismo ocidental e também da Escola de Frankfurt, nosso recorte não comporta estes desdobramentos. Refazer o percurso intelectual de Lukács revela-se uma tarefa complexa, instigante e enriquecedora, que possibilita compreender melhor não apenas os destinos de seu conceito, mas também sua atualidade. Ao discutirmos o conceito de totalidade no primeiro capítulo, nossa análise também se concentrará apenas em História e consciência de classe, deixando de lado tanto obras anteriores, como A teoria do romance (1916), quanto posteriores, como A particularidade do estético (1964) e Ontologia do ser social (1964-1971), nas quais o conceito também é discutido. A obra principal que estudamos neste trabalho, História e consciência de classe, aparece abreviada como HCC. Utilizamos principalmente a tradução brasileira de Rodnei Nascimento, mas sempre cotejando com o texto original, Geschichte und Klassenbewußtsein. As contribuições de comentadores em alemão, inglês e francês foram traduzidas por nós e incorporadas diretamente no corpo do texto. 10 Utilizamos também obras do próprio Lukács posteriores a HCC, redigidas pouco após a publicação desta obra e antes de sua ruptura conceitual com a mesma. 12 CAPÍTULO 1. AS CATEGORIA DE TOTALIDADE E MEDIAÇÃO A análise do conceito de reificação na obra de Lukács pressupõe um exame da categoria de totalidade.11 O surgimento deste fenômeno pode ser considerado, de certa forma, como uma perda da visão da totalidade12, e o seu desaparecimento, ou a desreificação, só pode se dar através de uma práxis específica também articulada a ela. Segundo Lukács, a totalidade é “um problema categorial e, mais precisamente, um problema da ação transformadora”13, sendo um elo entre a dialética e a reificação, seu horizonte metodológico e objeto de resolução.14 Em um prefácio de 1967 a História e consciência de classe, Lukács afirma que nesta obra a totalidade ocupou o centro do sistema, tendo mais importância que o próprio fator econômico. Isso aparece de maneira explícita em Rosa Luxemburgo como marxista, o segundo artigo de História e consciência de classe: “Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.”15 1.1 A perda da totalidade Considerada por Lukács um fator chave para o surgimento da reificação na sociedade capitalista, a perda da totalidade teve como base concreta a especialização do trabalho.16 A necessidade humana de apreender a totalidade nos leva a pensar que a própria ciência teria “despedaçado a totalidade da realidade”, isso é, perdido o sentido da totalidade justamente por força da especialização, pois, desde a era moderna, investiga fatias cada vez menores do real, de maneira cada vez mais vertical e profunda, de modo que quanto mais uma ciência progride, mais ela volta as costas aos problemas ontológicos. 11 CHARBONNIER, 1998, p. 31 CHARBONNIER, 1998, p. 20 13 HCC 392. 14 CHARBONNIER, 1998, p. 31 15 HCC 105 16 HCC 228 12 13 Segundo Lukács, esta perda progressiva da totalidade se manifestou também na história da filosofia moderna. A sociedade burguesa, ao mesmo tempo em que, com o desenvolvimento da ciência, dominava cada vez mais os detalhes de sua existência social, perdia a “possibilidade de dominar intelectualmente a sociedade enquanto totalidade.”17 A filosofia clássica alemã, em seu esforço para dominar a totalidade do mundo como autoprodução do sujeito do conhecimento, baseada na concepção de o pensamento ser capaz de compreender apenas o que ele mesmo produziu, “esbarrou contra a barreira intransponível do dado, da coisa em si. Se não quisesse renunciar à apreensão da totalidade, deveria tomar o caminho da interioridade.”18 A consequência inevitável deste princípio foi considerar possível a apreensão da totalidade através da arte. A partir da Crítica da faculdade do juízo, de Kant, surge na filosofia crítica alemã uma nova concepção de natureza, determinante do ser humano autêntico, em sua real essência, liberado das formas sociais falsas e mecanizantes, enquanto totalidade acabada, em que liberdade e necessidade coincidem. 19 A importância sem precedentes da estética e da filosofia da arte para uma concepção total de mundo, a partir do século XVIII, não se deveria ao florescimento artístico, mas sim à função “teórica, sistemática e ideológica que o princípio da arte assume neste momento.”20 A realização da totalidade na arte foi uma tentativa de resolver de forma concreta as antinomias insolúveis no plano teórico. Uma ciência que tente unificar todos os campos do saber através da filosofia não pode alcançar a coesão do todo, à qual as ciências particulares “renunciaram conscientemente ao se distanciarem do substrato material do seu aparato conceitual.”21 Isso não seria possível por meio da filosofia que ainda não rompeu com a barreira do formalismo mergulhado na fragmentação e que tente, de maneira acidental, costurar os campos do saber considerados totalmente independentes uns dos outros, fechados em si mesmos e regidos por leis internas próprias. Para alcançar tal coesão seria necessária uma orientação radicalmente diferente, revelando “os fundamentos, a gênese e a necessidade desse formalismo”22, de modo a não ligar mecanicamente as ciências particulares, mas sim remodelá-las interiormente por um método filosófico capaz dessa 17 HCC 259 HCC 260 19 HCC 286 20 HCC 287 21 HCC 238 22 HCC 238 18 14 unificação. Isso somente é realizável fora do campo da filosofia burguesa, não pelo fato de inexistir um desejo de tal síntese, mas por isso ser impossível no terreno da sociedade capitalista. 23 A história tem demonstrado que a filosofia continua apresentando como tendência fundamental “reconhecer os resultados e os métodos das ciências particulares como necessários [...], e atribuir à filosofia a tarefa de desvendar e justificar a base da validade dos conceitos assim formados.”24 Correntes filosóficas episódicas, como as que tentam abarcar todo o saber de maneira enciclopédica, ou que suspeitam do valor do conhecimento formal em relação à “vida viva” (como é o caso das filosofias irracionalistas), são exceções que apenas confirmam a regra. A atitude da filosofia em relação às ciências particulares é a mesma dessas em relação à realidade empírica. A conceituação formalista das ciências particulares torna-se, para a filosofia, um “substrato imutavelmente dado.”25 1.2 A totalidade em Kant A crítica de Lukács a Kant se dá no contexto de sua análise do formalismo na filosofia. Segundo Martin Jay26, foi a categoria de totalidade que permitiu a Lukács investigar e criticar as chamadas “antinomias do pensamento burguês” e uma de suas principais contradições: entre forma e conteúdo, característica do filósofo de Königsberg. A fonte dessas antinomias, de maneira geral, repousa na natureza contraditória da própria existência burguesa, e por isso o exame de Lukács, de perspectiva contextualista (considerando o marxismo uma forma de contextualismo), tem como ponto de partida o período de consolidação da burguesia enquanto classe social dominante, justamente quando Kant redigiu suas três críticas. Desenvolvendo a discussão de Marx sobre o fetichismo da mercadoria em O capital e valendo-se de contribuições de Bergson, Simmel e Weber, Lukács introduziu o conceito de reificação para “caracterizar a experiência fundamental da sociedade burguesa.” Este termo, Verdinglichung, não encontrado nas obras de Marx, significa “a 23 HCC 238 HCC 238 25 HCC 239 26 JAY, 1984, p. 109. 24 15 petrificação de processos vivos em coisas mortas, as quais aparecem como uma ‘segunda natureza’.”27 Segundo Charbonnier28, a totalidade é uma exigência prática da razão. Uma exigência “método-lógica” (méthodo-logique), pois a razão, como faculdade, visa compreender a realidade através de sua apropriação tanto sincrônica quanto diacrônica. Diante da crescente pulverização dos campos investigativos da realidade em setores cada vez mais autônomos, aumenta o tensionamento entre a apropriação da realidade (produzindo a cada dia mais questões e problemas) e a disponibilidade real de resultados (geralmente muito parciais). Faltaria uma articulação global dos diferentes campos de investigação do real, pois se as segmentações são, por um lado, cômodas, elas não têm, por outro, vocação à substancialidade. A totalidade, contudo, não pode ser compreendida em ato, como um objeto, capaz de produzir um conceito. Ela deve ser compreendida dialeticamente, ligando o pensamento à ação.29 Maurice Merleau-Ponty30 também argumenta neste sentido, afirmando que a totalidade em Lukács não é uma totalidade metafísica, do absoluto, de todos os seres possíveis e atuais, mas uma “totalidade da empiria”, a “reunião coerente de todos os fatos que conhecemos”: Quando o sujeito se reconhece na história e reconhece a história nele mesmo, não domina o todo como o filósofo hegeliano, mas está ao menos empenhado numa tarefa de totalização, sabe que para nós nenhum fato histórico adquirirá todo o seu sentido a menos que tenha sido ligado a todos aqueles que podemos conhecer, tenha sido inserido, a título de momento, numa única empresa que os reúne, inscrito numa história vertical, registro das tentativas que tinham um sentido, de suas implicações, de suas sequências concebíveis. Esta “totalidade da empiria” de que fala Merleau-Ponty, vale ressaltar, não significa abarcar todos os fatos materiais ou sociais, não é uma mera inversão de sinal da totalidade buscada pelo pensamento metafísico: “não podemos considerar um método como totalizante se ele trata do conteúdo de ‘todos os problemas’ (o que, evidentemente, é impossível)”.31 Centrais não apenas para o conceito de reificação, mas 27 JAY, loc. cit. CHARBONNIER, 1998, p. 5. 29 Ibid., p. 6. 30 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 33. 31 HCC 392 28 16 para a própria obra de Marx32, “a categoria de totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx recebeu de Hegel”, de modo que não seria, portanto, “o predomínio de motivos econômicos na explicação da história” o que distinguiria “de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.”33 Essa categoria constitui o princípio revolucionário não apenas na sociedade, mas também na ciência.34 No que diz respeito à transformação social, a totalidade é portadora de seu princípio revolucionário, pois determina o ponto de partida e de chegada do método dialético, seu pressuposto e suas exigências. Sem a categoria de totalidade, a revolução social passa a ser vista como um ato isolado, sem conexão com a evolução social, de modo que o aspecto revolucionário do marxismo se perde, passando a ser visto como uma recaída nas revoltas operárias primitivas ou no blanquismo.35 Outro aspecto que configura a totalidade como portadora do princípio revolucionário na ciência é que esta surge, na leitura de Marx, de uma necessidade ontológica objetiva do real. Daí a necessidade de forjar ferramentas categoriais capazes de apreender a pluralidade do real em múltiplos níveis ontológicos ou de objetividade. A categoria de totalidade tem como função e objeto precisamente a articulação dialética desta pluralidade.36 A abordagem marxiana difere qualitativamente daquela da tradição kantiana. Na Crítica da razão pura a categoria de totalidade é desenvolvida como um conceito puro do entendimento e aparece subsumida à classe de “quantidade” na “Tabela das categorias”. Lukács afirma que a dialética transcendental “gira sempre em torno da questão da totalidade”. “Deus” e “alma”, por exemplo, seriam apenas “expressões mitológicas para o sujeito unitário, ou, para o objeto unitário, da totalidade dos objetos do conhecimento, pensado como acabado (e completamente conhecido).”37 A 32 HCC 20 No prefácio de 1967 a História e consciência de classe, em meio a diversas autocríticas sobre o seu trabalho lançado quatro décadas antes, Lukács ainda reconhecia, embora com algumas ressalvas, que um dos méritos desta sua obra foi “ter restituído à categoria de totalidade [...] a posição metodológica central que sempre ocupou nas obras de Marx” (HCC 21). 34 HCC 106 35 HCC 109. O blanquismo foi uma corrente de esquerda formada a partir das doutrinas do revolucionário francês Louis Auguste Blanqui. Os blanquistas acreditavam que a revolução seria obra apenas de um pequeno e seleto grupo de revolucionários, e que somente após a tomada do poder através de um Putsch, ou golpe, o povo seria envolvido. 36 CHARBONNIER, 1998, p. 28. 37 HCC 248 33 17 totalidade, em Kant, é uma categoria extensiva (quantitativa), e se aproxima da figura matemática da exaustão, sendo impossível conhecê-la. Uma das funções da coisa em si é limitadora justamente neste sentido, e expressa a “impossibilidade de apreender a totalidade a partir dos conceitos formados nos sistemas racionais parciais.”38 Já em Hegel, Marx e Engels, o acento recai sobre a dimensão intrinsecamente qualitativa da totalidade. Segundo Charbonnier39, ela é também uma categoria intensiva, propriamente ontológica, pois é dentro de uma totalidade que o conhecimento dos atos se torna possível enquanto conhecimento da realidade. Kant tentou, com a Crítica da razão prática, saltar rumo a uma práxis que não havia sido encontrada unicamente pela razão pura teórica. Sua solução permaneceu, no entanto, ainda formal e abstrata. A categoria de totalidade não desempenhou nenhum papel neste esforço de articulação entre teoria e práxis, o que viria a ser alcançado em Marx com a mediação de Hegel. 1.3 A totalidade de Hegel a Marx Hegel já havia afirmado que “a verdade é o todo”, ressaltando, com isso, o aspecto contraditório e histórico da realidade40. Por ser contraditória, ela não pode ser reduzida a nenhuma de suas partes e, por ser histórica, não se confunde com os seus diversos momentos. Desde Heráclito, o pensamento dialético confere prioridade ontológica do todo sobre as partes, “como uma característica própria da realidade, como realidade ‘mais real’ do que as partes que a integram”41. A totalidade em Hegel é dividida, fragmentada devido a sucessivas alienações do Espírito. O Espírito Absoluto, ao final do processo de alienação (Entfremdung), se reconcilia em uma totalidade harmoniosa em que as partes então se reconhecem em sua racionalidade como pertencentes ao todo. A falta de clareza dos escritos de Hegel, porém, permitiu uma leitura ora idealista, ora materialista, com as categorias derivando por vezes do pensamento e, em outras, da realidade42. 38 HCC 250 CHARBONNIER, 1998, p. 29. 40 FREDERICO, 1997, p. 39. 41 Ibid., p. 39. 42 Ibid., loc. cit. 39 18 Marx toma Hegel como ponto de partida43 mas, em lugar das peripécias do Espírito, tem-se agora a saga da vida social dos homens. O homem torna-se um ser ativo, desprendendo-se da natureza através do trabalho e fazendo dela o seu objeto. O mundo social também se torna um produto da atividade humana, reafirmando-se, com isso, uma visão monista e o primado da totalidade44. A história mundial, para Marx, era decifrável apenas quando suas interligações totalizantes surgiam objetivamente das condições do desenvolvimento e da concorrência capitalistas espalhadas por todo o globo. O capitalismo gerou um mundo à sua imagem e semelhança, destruindo a exclusividade natural anterior das nações individualizadas45. Foi somente com Marx que a categoria de totalidade, que se constitui na essência do método dialético para Lukács, se tornou de fato uma “álgebra da revolução”. Isso não ocorreu através de uma simples inversão materialista de Hegel, mas justamente porque a categoria de totalidade, isso é, “a consideração de todos os fenômenos parciais como elemento do todo, do processo dialético, que é apreendido na unidade do pensamento e da história”, foi mantido nessa inversão46. Isso se manifesta na forma como Marx articula a relação totalizante entre sujeito e objeto na tomada dos meios de produção pelo proletariado. Sendo o objeto, isso é, as forças produtivas, uma totalidade que existe apenas dentro de um intercâmbio universal, e sendo sua apropriação o desenvolvimento das capacidades individuais que correspondem aos instrumentos materiais de produção, apenas o proletariado poderia delas se apropriar. A apropriação de um objeto total pode se dar apenas por um sujeito também total47. Enquanto a ciência burguesa atribui ou “realidade”, com um realismo ingênuo, ou uma autonomia “crítica” àquelas abstrações que, por um lado, resultam de uma separação dos objetos de investigação, e por outro, de uma divisão do trabalho e 43 De acordo com Lukács, Marx nunca abandonou o método filosófico de Hegel, isso é, a posição dominante do conceito de totalidade. Mesmo a polêmica de Marx contra a visão “idealista” da história se dirigia muito mais aos discípulos de Hegel do que ao próprio mestre. A identidade hegeliana dialética de pensamento e ser, a concepção de sua unidade como unidade e totalidade de um processo também constitui a essência da filosofia da história do materialismo histórico (HCC 116). 44 FREDERICO, 1997, p. 39. 45 BOTTOMORE et al, 1983, p. 381. 46 HCC 106 47 BOTTOMORE et al, 1983, p. 381. 19 especialização, o marxismo supera (aufhebt) essas separações, tornando-as momentos dialéticos48. Um exemplo pode ser encontrado quando Marx critica a economia política inglesa como expressão da divisão do trabalho, do pensamento alienado. Marx exigia, pelo contrário, a reprodução conceitual do todo ao invés de conhecimentos parcelares que apenas reproduzem o esfacelamento do mundo burguês. A sociedade capitalista é totalidade viva e articulada, e não pode ser compreendida “pelas visões parciais do economista, do sociólogo, do historiador, etc.”.49 De acordo com Lukács50, neste isolamento das ciências em campos de pesquisa específicos, neste fatiamento artificial da realidade, o que importa é saber se este movimento é apenas um meio para o conhecimento do todo, sendo integrado “no contexto correto de conjunto que ele pressupõe e ao qual apela”, ou se conhecimento parcial e abstrato permanece isolado e um fim em si mesmo. É por essa razão que para o marxismo, não há áreas ou campos do saber isolados, como uma ciência jurídica, uma economia política ou uma história autônomas, por exemplo, mas apenas uma única “ciência histórico-dialética, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como totalidade”. Não apenas o objeto do conhecimento é determinado pelo ponto de vista da totalidade, mas também o próprio sujeito. Os fenômenos sociais são considerados pelas ciências burguesas sempre a partir do ponto de vista do indivíduo isolado, mas este ponto de vista é incapaz de abranger os fenômenos em um todo integrado. Ele pode, quando muito, levar a aspectos de um domínio parcial, mas quase sempre a algo apenas fragmentário, a fatos desconexos ou a leis parciais abstratas. A totalidade, para Lukács51, “só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar o objeto como totalidade.” Por essa razão, apenas as classes sociais, e não os indivíduos isolados, podem representar este ponto de vista na sociedade moderna. Esta perspectiva se apresenta também na obra de Marx através de sua concepção de que a superestrutura não tem história, isso é, que ela não possui uma história autônoma, independente, movida por leis próprias. Desta maneira, as artes, o direito e a 48 HCC 106 FREDERICO, 1997, p. 40. 50 HCC 107 51 HCC 107 49 20 religião, por exemplo, não se desenvolvem sozinhos, movidos por leis internas, mas expressam o movimento geral da sociedade52. A totalidade concreta é a reprodução conceitual da realidade, não sendo simplesmente um dado imediato para o pensamento53. Segundo Marx, “o concreto é concreto porque é uma síntese de muitos determinantes particulares, isso é, uma unidade de elementos diversos”54. Essa reprodução intelectual da totalidade, todavia, ainda não é a própria estrutura do real: “No pensamento, o concreto aparece como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora ele seja o real ponto de partida e, por isso, também o ponto de partida da intuição e da representação”55. Esta reprodução da realidade não deve se confundir com sua própria construção. O conceito de totalidade, embora pareça colocar uma grande distância entre si e a realidade e reproduzi-la de maneira “não científica”, é a única categoria capaz de compreendê-la56. O concreto, no entanto, não pode ser encontrado, como pensa a ciência burguesa, no indivíduo empírico e histórico, quer se trate de uma pessoa, de uma classe ou mesmo de um povo. Quando pensa ter encontrado aí o mais concreto, é quando ela está mais longe dele: a sociedade como totalidade efetiva, isso é, “a organização da produção num determinado nível do desenvolvimento social e a divisão de classes que opera na sociedade”57. Ao não apreender o real dessa maneira, a ciência burguesa apreende como concreto algo de completamente abstrato. Este só pode aparecer na relação com a sociedade enquanto totalidade. Todo conhecimento da realidade é, antes de tudo, conhecimento de uma realidade determinada historicamente, espacialmente, etc., podendo ser decomposto em dois movimentos sucessivos: analítico e sintético. A partir da percepção de um concreto obtemos, analiticamente e partindo das entidades abstratas, as determinações mais simples; neste estado, então, é necessário fazer o caminho de volta, retornando sinteticamente ao concreto de onde se partiu. Este concreto, agora, não é mais o mesmo, mas está qualitativamente superior, sendo não mais apenas um concreto percebido, uma 52 FREDERICO, 1997, p. 40. HCC 76 54 MARX, 1961, p. 632. 55 Ibid., loc. cit. 56 HCC 78 57 HCC 140 53 21 representação caótica de um todo, mas um concreto pensado, uma totalidade rica de múltiplas determinações e relações58. O conhecimento é um processo genético de reconstrução da totalidade real em uma totalidade pensada. A concepção marxiana da totalidade enquanto realidade pensada, enquanto concreto de pensamento, é um produto do ato de pensar, do conceber. O todo pensado, tal como aparece no espírito, é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, mas de um modo que difere da apropriação espiritual do mundo artístico, religioso ou prático59. É importante notar que tal concepção de apropriação do real, como encontrada em Marx, é muito mais elaborada que a chamada “teoria do reflexo”, a qual seria uma simples duplicação do real no espírito, haja vista que esta totalidade concreta não é simplesmente dada ao pensamento. Dessa maneira, qualquer totalidade é necessariamente dialética, unidade da diversidade e diversidade da unidade60. Para Lukács, a totalidade é o verdadeiro ponto de partida para compreender, seja na vida social ou econômica, todas as partes. O momento particular não é uma parcela de uma totalidade mecânica que pode ser composta a partir de tais parcelas. Cada momento tem em si a possibilidade de desenvolver, a partir de si, toda a riqueza do conteúdo da totalidade, de modo que dentro de uma totalidade dialética, os momentos particulares carregam em si a estrutura da totalidade61. O benefício teórico da totalidade é imenso, seja de um ponto de vista global, da teoria do conhecimento, seja de um ponto de vista mais específico, para uma compreensão da evolução do modo de produção capitalista. “A fecundidade da totalidade se atesta precisamente em sua capacidade metodológica de pensar a realidade na abundante multiplicidade de suas facetas”62. Ela permite pensar a diversidade na unidade, sem isolar (hipostasiar) cada um de seus momentos. Ela também torna possível ligar, conectar dialeticamente o que pode parecer num primeiro momento desprovido de relação imediata, mas não se tornando um mero ajuntamento sem princípios. A dialética não é nem eclética, nem uma soma. 58 MARX, 1961, p. 632. Ibid., loc. cit. 60 Ibid., p. 30. 61 Ibid., loc. cit. 62 Ibid., loc. cit. 59 22 A inovação de Lukács63 consiste em que, graças à totalidade, ele analisa a íntima conexão entre o fenômeno da reificação, que caracteriza o capitalismo de sua época, e uma metodologia científica que, participante desta reificação, a redobra. Isso lhe permite não apenas compreender a unidade dialética das contradições da sociedade burguesa e de seu modo de produção capitalista, mas também esclarecer sua significação e sua gênese. A utilização deficiente da categoria de totalidade impede o conhecimento real até mesmo de fenômenos isolados64. A integração na totalidade, cuja condição é admitir que a verdadeira realidade histórica é precisamente o todo do processo histórico, “muda não somente nosso julgamento sobre o fenômeno isolado de maneira decisiva, mas também provoca uma mudança fundamental no conteúdo desse fenômeno, enquanto fenômeno isolado.”65 A oposição entre a atitude que isola os fenômenos históricos e o ponto de vista da totalidade torna-se ainda mais nítida quando comparadas as concepções burguesa e marxiana da função da máquina: As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria não existem pelo fato de não nascerem da própria maquinaria, mas sim de sua utilização capitalista! Sendo assim, uma vez que a maquinaria, considerada isoladamente, encurta o tempo de trabalho, enquanto seu uso capitalista prolonga a jornada de trabalho; uma vez que, por si só, ameniza o trabalho, enquanto seu uso capitalista aumenta sua intensidade; uma vez que, por si só, representa uma vitória do homem sobre as forças da natureza, enquanto seu uso capitalista o coloca sob o jugo dessas forças; uma vez que, por si só, aumenta a riqueza dos produtores, enquanto seu uso capitalista os empobrece etc., o economista burguês explica que a consideração da maquinaria em si prova rigorosamente que todas essas contradições patentes não passam de uma aparência da realidade comum, mas que, em si, isto é, também na teoria, não existem.66 Do ponto de vista metodológico, a concepção burguesa considera a máquina de maneira isolada, em sua pura facticidade, como uma mônada. Sua função no processo 63 Ibid., p. 31. HCC 313 65 HCC 314 66 MARX apud LUKÁCS, 2012, p. 314. Traducão alterada. Como o texto se mostra um pouco confuso na primeira frase, reproduzimos toda a citação no original: “Die von der kapitalistischen Anwendung der Maschinerie untrennbaren Widersprüche und Antagonismen existieren nicht, weil sie nicht aus der Maschinerie selbst erwachsen, sondern aus ihrer kapitalistischen Anwendung! Da also die Maschinerie an sich betrachtet die Arbeitszeit verkürzt, während sie kapitalistisch angewandt den Arbeitstag verlängert, an sich die Arbeit erleichtert, kapitalistisch angewandt ihre Intensität steigert, an sich ein Sieg des Menschen über die Naturkraft ist, kapitalistisch angewandt den Menschen durch die Naturkraft unterjocht, an sich den Reichtum des Produzenten vermehrt, kapitalistisch angewandt ihn verpaupert usw., erklärt der bürgerliche Ökonom einfach, das Ansichbetrachten der Maschinerie beweise haarscharf, daß alle jene handgreiflichen Widersprüche bloßer Schein der gemeinen Wirklichkeit, aber an sich, also auch in der Theorie gar nicht vorhanden sind.” (MARX, 1962, p. 465). 64 23 de produção capitalista é vista como eterna e, assim como toda mônada, não interage com as outras. Nenhuma forma estrutural — seja uma máquina, uma grande personalidade ou uma época — pode ser apreendida de maneira imediata pelo historiador ou pelo indivíduo que a vive. Ela deve ser apreendida, antes, na dissolução dos objetos em processos, isso é, considerando o desenvolvimento histórico como totalidade67. Em cada parte da realidade apreendida dialeticamente está contida a totalidade, e aqui também a analogia com uma mônada se torna evidente. Isso só pode se dar, no entanto, se cada aspecto isolado for considerado como “ponto de passagem para a totalidade”, sem recair no imediatismo68. O método dialético pode se desenvolver a partir de cada aspecto do real, como demonstrado metodologicamente pela própria estrutura da Lógica, de Hegel, na qual o capítulo que trata do ser, do não-ser e do vir-aser contém em si toda a filosofia hegeliana. De forma semelhante, o capítulo sobre o fetichismo da mercadoria, em O capital, também oculta em si toda a obra de Marx, considerando que o proletariado é uma mercadoria e que isso implicaria, por consequência, o autoconhecimento do proletariado como conhecimento da sociedade capitalista69. Para Lukács70, “cada elemento comporta a estrutura do todo”, de modo que “o conhecimento de toda a sociedade pode ser desenvolvido a partir da estrutura da mercadoria.” A categoria de totalidade “não reduz [aufheben] seus vários elementos a uma uniformidade indiferenciada, a uma identidade”71. A aparente independência que os vários elementos do real possuem no modo capitalista de produção — como a máquina — é uma ilusão que pode ser desvelada como tal apenas à medida em que são colocados em uma relação dinâmico-dialética uns com os outros, à medida em que são percebidos como momentos de um todo igualmente dialético-dinâmico72. Um exemplo deste procedimento pode ser encontrado, segundo Marx, no fato de que na sociedade capitalista, produção, distribuição, troca e consumo não são idênticos, mas membros de uma totalidade, aspectos diferentes de uma unidade. Uma determinada forma de produção determina formas definidas de consumo, distribuição e troca, assim como 67 HCC 316 HCC 344 69 HCC 343 70 HCC 393 71 HCC 83 72 HCC 84 68 24 relações definidas entre estes diferentes elementos. Uma interação ocorre entre estes vários elementos, como é o caso com todo corpo orgânico73. As formas objetivas de todos os fenômenos sociais mudam constantemente no curso de suas incessantes interações dialéticas, de modo que a inteligibilidade dos objetos se desenvolve em proporção ao que conseguimos apreender de sua função na totalidade à qual pertencem. Esta é a razão pela qual apenas a categoria de totalidade possibilita a compreensão da realidade enquanto processo social. Ela pode dissolver as formas fetichistas produzidas necessariamente pelo modo capitalista de produção e possibilitar que sejam vistas como meras ilusões. A objetividade de um fenômeno pode ser percebida em seu caráter histórico, transitório, apenas em sua relação com a totalidade .74 A ilusão do fetichismo abarca todos os fenômenos da sociedade capitalista, mascarando seu caráter histórico, transitório. Esta ocultação só é possível pelo fato de que “todas as formas de objetividade, nas quais o mundo aparece necessária e imediatamente ao homem na sociedade capitalista, ocultam [...] as categorias econômicas”, de modo que elas apareçam como se fossem relações entre coisas quando, na verdade, dizem respeito a relações entre os homens. É apenas a partir do ponto de vista da totalidade do método dialético que se torna possível o “conhecimento real do que ocorre na sociedade”. A totalidade rompe o caráter reificado das categorias econômicas da sociedade capitalista 75. O ponto de vista metódico do todo, que se constitui como o problema central e a condição primordial do conhecimento da realidade, é um produto da história em dois sentidos. No primeiro, somente com o surgimento histórico do proletariado — através das condições econômicas que o produziram —, a possibilidade objetiva e formal do materialismo histórico pôde surgir como conhecimento. No segundo, somente no curso da evolução do proletariado é que essa possibilidade formal se tornou real 76. Esta evolução social, contudo, aumenta cada vez mais a tensão entre os momentos parciais e a totalidade. Enquanto, por um lado, o sentido imanente da realidade irradia com um brilho cada vez mais forte o sentido do devir, ela tem, por outro, uma ligação cada vez mais profunda com a vida cotidiana, de modo que a 73 MARX, 1961, p. 630. HCC 85 75 HCC 87 76 HCC 100 74 25 totalidade “afunda-se nos aspectos momentâneos, espaciais e temporais dos fenômenos”77. Seja qual for o tema específico em discussão, a totalidade do processo histórico é sempre o problema principal de que trata o método dialético. A expressão literária ou científica de um problema aparece sempre como a expressão de uma totalidade social, de suas possibilidades e limites, de modo que “a história de um determinado problema torna-se efetivamente uma história dos problemas.”78 Lukács vê nas obras A acumulação do capital¸ de Rosa Luxemburgo, e O Estado e a revolução, de Lênin, dois exemplos de aplicação da categoria de totalidade na realidade social. Tanto Luxemburgo quanto Lênin teriam tecido uma exposição histórico-literária da gênese do problema a ser analisado, ressaltando o processo histórico cujo resultado “constitui sua abordagem e sua solução” (HCC 118). Tal procedimento, que pode ser identificado no jovem Marx, é o próprio conceito hegeliano. O conceito, para Hegel, não é uma representação mental, como o uso comum do termo pode sugerir, mas um objeto visto em sua lógica imanente de desenvolvimento. O conceito, na dialética, dissolve a rigidez dos objetos e os transforma em processos. É assim que Lênin e Luxemburgo analisam os objetos de suas obras. O abandono da categoria de totalidade de Hegel e Marx leva, inevitavelmente, de volta à “ética imperativa abstrata da escola kantiana”79. O individualismo metodológico, isso é, aquele método que parte do indivíduo isolado, é o lado subjetivo da ausência da categoria de totalidade, a qual deságua, por sua vez, no fatalismo. Para o indivíduo isolado, seja ele capitalista ou proletário, o mundo só pode ser visto como que subordinado a leis imutáveis e a um destino brutal e absurdo, completamente estranhos a ele. A própria realidade social também é vista como submetida a leis eternas, diante das quais o indivíduo que visa transformar o mundo tem apenas duas saídas, sendo ambas falsas e aparentes: 1) tentar manipular tais “leis eternas” através da técnica ou 2) transformar o interior do homem, a única esfera que permaneceu livre (ética). Como a mecanização do mundo, no entanto, mecaniza também o próprio homem, tal ética permanece abstrata e “apenas normativa, e não realmente ativa e criadora de objetos, mesmo em relação à totalidade do homem isolado do mundo”80. 77 HCC 103 HCC 117 79 HCC 124 80 Ibidem, loc. cit. 78 26 1.4 Totalidade e práxis O conceito de totalidade em Lukács tem forte influência hegeliana, sendo de importância central na obra de ambos. Em Hegel, a “totalidade concreta” constitui o início do progresso e do desenvolvimento, cujo resultado “é o ‘todo idêntico a si mesmo’ que recobre a imediatez original na forma de ‘determinação transcendente’ através do ‘sistema de totalidade’.81“ A fragmentação capitalista do processo de trabalho separou o produtor do processo global de produção, deixando de lado o caráter humano do trabalhador e desencadeando a atomização da sociedade em “indivíduos que produzem irrefletidamente, sem planejamento nem coerência82.” Isso trouxe reflexos não apenas sobre o pensamento, a ciência e a filosofia do capitalismo, mas também sobre a própria consciência do trabalhador individual. A reificação seria, neste sentido, uma perda da totalidade. O domínio da categoria de totalidade, isso é, a capacidade de apreender a totalidade da sociedade enquanto totalidade concreta histórica, é a única superioridade do proletariado sobre a burguesia e também seu instrumento de desreificação. A burguesia, enquanto for a classe dominante, sempre disporá de mais recursos, poder, formação, organização e conhecimento do que o proletariado. Através da categoria de totalidade, contudo, este pode “compreender as formas reificadas como processos entre os homens”, elevar à consciência o sentido imanente do desenvolvimento e transpô-lo para a prática83. Neste sentido, a totalidade leva a uma prática pois transforma não apenas o objeto do conhecimento, mas o próprio sujeito. Este não pode ser, contudo, apenas um indivíduo isolado. Este, quando muito, pode conhecer apenas aspectos de um domínio parcial, algo fragmentário como “fatos” desconexos ou leis parciais abstratas. O sujeito que tenta apreender a totalidade deve ser ele próprio uma totalidade, e isso somente as classes sociais podem ser 84. 81 BOTTOMORE et al, 1983, p. 381. HCC 105 83 HCC 390 84 HCC 107 82 27 A superação da reificação passa pela aplicação da categoria de totalidade à prática do proletariado, através de uma “referência concreta às contradições que se manifestam concretamente no desenvolvimento global, e com a conscientização do sentido imanente dessas contradições para a totalidade do desenvolvimento85.” Esta relação com a totalidade, no entanto, “não exige que a plenitude extensiva dos conteúdos esteja conscientemente integrada nos motivos e nos objetos da ação.” Antes, importa apenas que “haja uma intenção voltada para a totalidade, que a ação cumpra a função [...] na totalidade do processo”.86 De maneira geral, a totalidade dialética em Lukács não se limita à investigação da realidade. Ela é também um guia para a ação política, inseparável da reflexão teórica. A totalidade fornece um enorme ganho de inteligibilidade no que se refere à sociedade capitalista e sua história, relacionando todo momento particular à totalidade do processo histórico. Enquanto categoria, ela forma um entroncamento entre a dialética e a reificação, de modo que a análise da reificação pressupõe, logicamente, a categoria de totalidade, às vezes como horizonte metodológico e objetivo de resolução e, por outras, como uma terapia social, incluindo a superação do capitalismo87. 1.5 A mediação As categorias de totalidade e mediação estão de tal forma imbricadas que uma totalidade social sem mediação seria, segundo Mészáros 88, como “liberdade sem igualdade”, um “postulado vazio e abstrato”. Segundo o discípulo de Lukács, “a ‘totalidade social’ existe por e nessas mediações multiformes, por meio das quais os complexos específicos – isto é, as ‘totalidades parciais’ – se ligam uns aos outros em um complexo dinâmico geral que se altera e modifica o tempo todo”.89 O culto direto da totalidade, sua mistificação como imediaticidade, sem as mediações, só poderia produzir um mito, e um mito perigoso, como provou o nazismo.90 Neste sentido, Konder91 chama a atenção para o fato de que “intuir o todo” sem a 85 HCC 391 HCC 392 87 Ibid., loc. cit. 88 MÉSZÁROS, 2013, p. 58. 89 Ibid., loc. cit. 90 Ibid., loc. cit. 91 KONDER, 1984, p. 46. 86 28 consideração pelas partes, sem as necessárias mediações, é irracionalismo, sendo este um dos pontos que Hegel criticava na perspectiva de totalidade (do absoluto) de Schelling, chamado-a de “uma noite na qual todas as vacas são pardas”. 92 Não havia espaço para a imediaticidade no sistema de Hegel. Em sua Ciência da Lógica, ao discutir sobre o início da ciência, ele rejeita a ideia de que o ponto de partida deve ser algo externo ao próprio sistema, pois isso seria a afirmação de um princípio não-mediado, e todo e qualquer conceito é mediado. Ele sugere então tentar encontrar o princípio da filosofia em um conceito que parece imediato, ou que pelo menos temos a impressão de experimentar de forma imediata, e o que melhor se apresenta para este propósito é o conceito de Ser. Após examinar este princípio, todavia, Hegel percebe que este também se mostra afetado por uma série de determinações, de modo que sua imediaticidade era apenas aparente.93 Em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas ele apresenta, nos parágrafos 61 a 78, uma detalhada discussão sobre o conceito de mediação. Ela é aquilo que mantém a unidade do sistema e uma característica daquilo que pode ser apreendido através de categorias. Um objeto mediado é não-ilimitado, não-absoluto e não-independente. Categorias são sinônimos de conceitos, e compreender – pensar através de conceitos – significa apreender um objeto na forma de um condicionado e mediado. Se a mediação aponta para a natureza da relação entre conceitos dentro de uma totalidade, então a dialética é o elemento-chave para expor o todo. A dialética é a metodologia auxiliar com a qual a natureza mediada de nosso conhecimento é desvelada.94 Adorno afirma que a mediação, para Hegel, significa a transformação que se espera que um conceito sofra no momento em que se tenta apreendê-lo. Ela é o momento do tornar-se (Werden) colocado necessariamente em cada ser. Sendo a dialética a filosofia da mediação universal, isso significa que não existe nenhum ser que não seja ao mesmo tempo um vir-a-ser.95 Uma das definições de Lukács sobre a mediação é que esta seria a expressão pensada da própria estrutura dialética do ser, a qual se constitui de antagonismos e oposições dissolventes e produtoras de novos antagonismos. Ela é a forma lógica na qual podemos reproduzir no pensamento a processualidade dialética da existência (Sein) 92 Ibid., loc. cit. SANDKÜHLER, 2005, p. 73. 94 Ibid., loc. cit. 95 ADORNO, 2017, p. 32. 93 29 e, com isso, cada resultado do processo realmente como resultado, e não como um produto metafisicamente enrijecido, solidificado.96 Marx percebeu a importância da categoria de mediação em Hegel e, na disputa entre Feuerbach e o filósofo de Jena nesta questão, ficou com este último. Em seu ensaio filosófico sobre Moses Hess e os problemas da dialética idealista, publicado pouco após HCC e ainda antes da ruptura conceitual que Lukács faria posteriormente com importantes aspectos desta obra, Lukács discute a questão da mediação e aponta os erros da crítica de Feuerbach a esta categoria. O solo metodológico equivocado do qual Moses Hess parte é sua rejeição feuerbachiana do conceito hegeliano de mediação. Feuerbach teve o cuidado de tentar diferenciar sua posição de tentativas anteriores de alcançar o conhecimento imediato, como a de Jacobi, por exemplo. Mesmo que ele tivesse tido razão, contudo, teria-se perdido aqui uma das principais conquistas da filosofia hegeliana, um dos pontos que continha em si a possibilidade de se desenvolver em uma dialética materialista: a possibilidade metodológica de apreender e reconhecer a realidade social do presente em sua efetividade e, mesmo assim, ter com ela uma relação crítica, no sentido de uma atividade prático-crítica. Certamente havia em Hegel apenas a possibilidade desta passagem, mas justamente aqui Marx se ligou diretamente a Hegel e rejeitou a crítica de Feuerbach.97 Os chamados “socialistas verdadeiros”, corrente que Marx e Engels criticam no Manifesto do partido comunista e da qual Moses Hess fazia parte, cometeram o erro de considerar Hegel, desde seu ponto de partida, um mero “idealista”, e converteram sua dialética objetiva do processo histórico em uma simples dialética do pensamento. Esta falsa concepção da obra hegeliana fez com que percebessem a crítica de Feuerbach como uma possível saída de seus impasses teóricos. O que Feuerbach e os jovens hegelianos – dos quais os “socialistas verdadeiros” também eram parte – tinham em comum era o fato de que todos tratavam a mediação como algo puramente da esfera do pensamento. Em seu Fundamentos da filosofia do futuro, Feuerbach afirma que “verdadeiro e divino é apenas aquilo que não precisa de provas, o que [...] fala por si de maneira imediata [...] Tudo é mediado, afirma a filosofia hegeliana. Mas algo é verdadeiro apenas quando não é mais mediado, mas imediato [...] 96 97 LUKÁCS, 2013, 668. Ibid., p. 665. 30 Quem pode estabelecer a mediação como necessidade, como lei da verdade?”.98 A mediação, para Feuerbach, não passava de um meio formal para a comunicação do imediato e evidente conteúdo do pensamento.99 Em sua Crítica à filosofia hegeliana ele afirma claramente: O pensamento é uma atividade imediata, na medida em que é independente ... A demonstração não é nada mais do que mostrar que aquilo que eu falo é verdadeiro; nada mais do que o retorno da exteriorização do pensamento à fonte original do pensamento ... A demonstração tem agora apenas na atividade de mediação do pensamento para outros o seu fundamento. Quando quero provar alguma coisa, então eu o provo para outros ... Toda demonstração é, consequentemente, não uma mediação do pensamento em e para o pensamento mesmo, mas uma mediação através da linguagem, à medida que é minha, e ao pensamento dos outros, à medida que é deles ... À filosofia hegeliana falta unidade imediata, certeza imediata, verdade imediata.100 O idealismo de Hegel, ao contrário do que Feuerbach esperava com esta crítica, não foi superado. Lukács afirma que isso fez apenas com que o utopismo eticizante fosse elevado ao seu mais alto grau filosófico e que se estabelecesse o fundamento epistemológico deste, pois uma certeza imediata, uma verdade imediata evidente pode ser alcançada em apenas dois pontos. O primeiro é que as formas sociais de nosso presente nos são dadas de maneira imediata, e quanto mais sofisticadas e complexas (ou mediadas, para usar uma expressão hegeliana), mais imediatamente evidentes. No que diz respeito aos fundamentos econômicos sociais, esta imediaticidade é percebida como mera ilusão do ponto de vista do proletariado. Este ato de percepção, esta compreensão clara (Durchschauen), no entanto, não muda nada na certeza imediata, já que esta é a forma de existência de nosso presente. Ela pode, entretanto, dar uma direção ao nosso comportamento prático em relação a ela, o qual reage modificando o comportamento imediato. Lukács fornece dois exemplos para ilustrar este ponto: o primeiro é sobre nossa existência enquanto indivíduos isolados no capitalismo. Isso nos é simplesmente dado e conseguimos perceber de maneira imediata, mas também podemos apreendê-lo como resultado do desenvolvimento do capitalismo. Quando este é o caso, tal saber permanece como um mero fato teórico, e a estrutura individualista não é alterada, mas permanece em sua imóvel imediaticidade. Outro exemplo, mas que serve apenas como 98 FEUERBACH, 2016, p. 47. LUKÁCS, 2013, p. 668. 100 FEUERBACH apud LUKÁCS, 2013, p. 668. 99 31 ilustração psicológica, ocorre também em relação ao nosso conhecimento da teoria copernicana e nossa experiencia diária imediata de que é o sol que nasce e se põe, e não que é a terra que gira. Apenas a tendência prática para a transformação dos fundamentos sociais desta própria imediaticidade – e também aquelas não tão obviamente visíveis – é capaz de causar uma comportamento transformador.101 Este problema estrutural influenciou tanto o pensamento de Hegel quanto o de Feuerbach. O primeiro tratou a questão como meramente lógica e teórica, e com isso as categorias de mediação se tornaram independentes e se tornaram “essências” (Wesenheiten), se separaram do processo histórico real, do solo de sua verdadeira inteligibilidade (Begreifbarkeit) e se enrijeceram em uma nova imediaticidade. Feuerbach, por sua vez, conduziu sua polêmica exclusivamente pelo aspecto problemático da solução hegeliana e deixou de perceber não só a correta colocação do problema por Hegel e o progresso que ele já tinha alcançado, mas também o próprio problema em si. Ele tratou toda a questão da mediação como um puro problema de lógica, que poderia ser solucionado em parte unicamente pela lógica, e em parte fazendo recurso à percepção imediata, à sensibilidade. O segundo ponto que Lukács menciona é a evidência imediata da utopia ética. Ela diz respeito ao fato de que as formas de objetividade do meio são dadas aos indivíduos imediatamente, e que o grau de sua evidência imediata não fornece, nem de longe, nenhuma medida de sua essência supra-histórica. Elas são, de um lado, a consequência das forças objetivas daqueles poderes econômicos que lhe causam e, por outro, o desdobramento dos interesses de classe decorrentes da situação social. A utopia só pode levar, por isso, à aparência de uma práxis, a uma pseudo-práxis que, ou deixa intocada a estrutura da realidade objetiva, ou que não é capaz de apresentar como problema concreto a transição da realidade presente para a realidade “transformada”. A nova realidade – a utopia - é apresentada como uma situação, como um estado, uma condição já pronta (Zustand) e contrastada com a presente realidade objetiva, sem apresentar o caminho que leva de uma à outra. 102 Entre presente e futuro falta a mediação real, pois nos elementos do presente, nas tendências que ela trouxe e tornou problemáticas, as forças reais para ir além de si não foram reconhecidas. 103 Ao falarmos sobre a possibilidade de superação de reificação, mostraremos a relevância da categoria 101 Ibid., loc. cit. Ibid., p. 670. 103 Ibid., p. 661. 102 32 de mediação para articular a relação entre teoria e práxis, entre consciência de classe e partido. 33 CAPÍTULO 2. O NÚCLEO ORIGINÁRIO DA REIFICAÇÃO A investigação lukácsiana do fenômeno da reificação tem seu ponto de partida na unidade nuclear, mínima, de todo e qualquer problema da objetividade e de suas respectivas formas correspondentes de subjetividade na sociedade capitalista: na estrutura da mercadoria. A “solução deste enigma”, isso é, da estrutura da mercadoria, seria uma exigência de todo problema nesse estágio de desenvolvimento da humanidade. Este procedimento, que parte de um elemento nuclear do qual se desdobram todas as características do objeto investigado, foi inspirado por Hegel e Marx. Lukács observa que assim como o capítulo da Lógica de Hegel sobre o ser, o não-ser e o vir-aser contém em si toda a filosofia hegeliana, poder-se-ia dizer talvez que o capítulo sobre o caráter fetichista da mercadoria, de forma semelhante, “oculta em si todo o materialismo histórico, todo o autoconhecimento do proletariado como conhecimento da sociedade capitalista”.104 A máxima de que “todo início é difícil” se aplica, segundo Marx, a todas as ciências, o que justificaria o fato de a análise da mercadoria apresentar as maiores dificuldades de compreensão em sua obra.105 A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista. Assim como é mais fácil estudar um corpo já inteiramente formado do que suas células, é mais fácil tentar compreender o capitalismo por inteiro do que investigar a forma mercadoria do produto do trabalho ou a forma do valor da mercadoria. Nem todo produto é uma mercadoria. Em sociedades primitivas, a produção é essencialmente para satisfazer necessidades de suas comunidades, sejam elas pequenas (famílias) ou grandes (tribos ou clãs). Os primeiros grandes impérios que tinham por base a agricultura não apresentavam grandes diferenças econômicas em relação aos posteriores. O rei da Babilônia, por exemplo, era chamado de “Camponês da Babilônia” e “Pastor de homens”. No Egito, o faraó e sua administração eram chamados de Pr’o, que significava algo como “a grande casa”. A totalidade do estado econômico dessas 104 105 HCC 343 MARX, 1962, p. 11. 34 sociedades era como um grande Estado produzindo valores de uso para satisfazer suas necessidades. 106 Com o surgimento das profissões independentes, as quais não requeriam um esforço coletivo para sua realização (como a agricultura, por exemplo), aparece um novo tipo de produção. Antes, camponeses-artesãos que moravam em comunidades traziam ao mercado apenas o excedente de sua produção, aquilo que restava depois de satisfeitas as necessidades de suas famílias e comunidades. Agora, o artesão especialista, não mais ligado a nenhuma comunidade, tais como o ferreiro ou oleiro itinerantes, por exemplo, não mais produz valor de uso para satisfazer suas necessidades, mas a totalidade de sua produção é voltada para a troca. Ele só pode adquirir seus meios de subsistência (como roupas, alimentação, etc.) através da troca de seus produtos. O artesão separado da comunidade não produz mais produtos, mas apenas valores de uso, mercadorias destinadas ao mercado.107 Este artesão, contudo, ainda é o proprietário de seus próprios meios de produção. Nestes sistemas simples de produção podia-se encontrar de tudo à venda no mercado: leite, pão, matérias-primas, botas, etc., mas não uma mercadoria especial que só apareceu no capitalismo: a força de trabalho. Esta não era vendida, pois seu possuidor, o artesão, era dono de suas próprias ferramentas. Ele trabalhava sozinho, era dono de sua própria indústria. Será apenas no capitalismo que o possuidor da força de trabalho não mais possuirá os meios de produção, sendo incapaz de aplicar sua força de trabalho ao seu próprio negócio. Para não morrer de fome, ele deve vender esta mercadoria especial, a força de trabalho, ao capitalista. Agora, no mercado, ao lado de lã, queijo e máquinas, aparece uma nova mercadoria: a força de trabalho.108 Todas as mercadorias são trocadas por seu valor real, o qual é calculado através do tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-las. Num primeiro momento tem-se a impressão de que o capitalista se enriquece ao vender a mercadoria por um preço maior que seu valor real, mas isso é apenas aparente. O preço da mercadoria para o consumidor final corresponde ao preço real da mercadoria, e o lucro do empresário consiste no fato de os custos de produção da mercadoria serem menores que seu valor real. Isso só é possível devido a uma propriedade específica da força de trabalho: uma vez consumida, ela gera um valor maior que o seu próprio. Todas as mercadorias, ao 106 MANDEL, 1976, p. 58. Ibid., loc. cit. 108 BUCHARIN, 1921, p. 17. 107 35 serem consumidas, se deterioram, mas a mercadoria força de trabalho produz um valor a mais, um Mehrwert, comumente chamado de mais-valia. A mercadoria é composta por duas porções de riqueza: uma diz respeito ao seu custo de produção, e a outra corresponde ao valor a mais que lhe foi transferida pelo trabalhador no momento de sua produção. Estas duas partes são indissociáveis, de modo que só é possível separá-las 1) destruindo a própria mercadoria ou 2) trocando-lhe por dinheiro. Neste segundo caso, a riqueza contida na mercadoria é decomposta e pode ser dividida em partes: uma quantidade é devolvida ao trabalhador sob a forma de salário, outra é destinada a cobrir os custos de produção com maquinário, energia, matéria prima, etc., e uma outra parte, aquela do valor a mais da mercadoria (mais-valia) é embolsada pelo capitalista.109 Marx não parte, vale ressaltar, de um conceito básico, como o valor, por exemplo, mas sim de um fenômeno material elementar, que é a mercadoria, a base do sistema capitalista. Segundo Mandel110, seria incorreto afirmar que o método de Marx consiste em partir do abstrato para o concreto. Ele parte, na verdade, de elementos do concreto material em direção ao abstrato teórico, para então reproduzir a totalidade concreta em sua análise teórica. O concreto, em toda sua riqueza, é sempre a combinação de inúmeras abstrações teóricas, mas o concreto material, isso é, a sociedade burguesa, já existe antes desta empreitada científica, determinando-a em última instância e permanecendo como um ponto de referência para testar a validade da teoria. 2.1 O fetichismo da mercadoria A análise do fetichismo da mercadoria é essencial para se compreender o fenômeno da reificação. Segundo O’Kane111, a reificação em Lukács é uma tentativa de ampliar, de continuar, de estender a teoria marxista, de modo que ela também seja aplicável em importantes facetas da realidade sociocultural contemporânea que não estavam originalmente incluídas na crítica da economia política de Marx. Tais aspectos incluem instituições tais como o Estado e a burocracia, além de alguns específicos modos de consciência. O fetichismo da mercadoria, ademais, também será importante 109 TONET; LESSA, 2012, p. 30. MANDEL, 1976, p. 20. 111 O'KANE, 2013, p. 83. 110 36 para compreender a unidade sujeito-objeto do proletariado de que vamos tratar no quarto capítulo desta dissertação, pois na seção de O capital que trata sobre no fetichismo da mercadoria está contido todo o materialismo histórico, todo o autoconhecimento do proletariado enquanto conhecimento da sociedade capitalista. 112 2.2 O fetichismo em Marx O termo “fetiche” deriva do francês “fétiche”, o qual remete ao latim “facticius”, isso é “artificial”, “fictício”. Uma das definições de fetiche lhe designa como um objeto de culto das civilizações primitivas, um objeto ao qual se atribui poderes mágicos ou benéficos.113 A analogia religiosa parece ser mesmo o que Marx tinha em mente ao abordá-lo em O capital, haja vista que nela encontraremos uma relação entre a mercadoria e a religião e também um comentário sobre o cristianismo como a religião mais apropriada ao capitalismo. É um trecho repleto de referências a magia, mistério e necromancia.114 Paul Ricoeur115 afirmou que Marx era um dos “mestres da suspeita”, ou mestre da escola da suspeição. Segundo o filósofo francês, o método de Marx é de desmistificação. Ele parte de uma suspeita em relação às ilusões da consciência e emprega um estratagema para decifrá-la, para mostrar o que jaz oculto, fora do alcance da aparência imediata. Este é o procedimento que ele emprega na seção em que analisa o fetiche da mercadoria, no primeiro capítulo de O capital. Marx começa dizendo que a mercadoria parece, num primeiro momento, algo extremamente simples, mas que seu exame revelará toda uma complexidade insuspeita. Considerada do ponto de vista de seu valor de uso, isso é, que através de suas propriedades ela satisfaz necessidades humanas ou que essas propriedades são produtos do trabalho humano, ela não possui nada de misterioso. É muito claro que o homem, através de sua atividade, transforma a matéria natural de uma maneira que lhe seja útil, como a madeira que é transformada em uma mesa, por exemplo. O argumento de Marx se concentra, num primeiro momento, em identificar como surge o fetichismo e como ele é um aspecto fundamental e inevitável no 112 HCC 343 FLECK, p. 143. 114 HARVEY, 2010, p. 38. 115 RICOEUR, 1970, p. 32. 113 37 capitalismo. O caráter místico da mercadoria não emerge nem do seu valor de uso e nem do conteúdo da determinação do valor, e isso por duas razões. Primeiro pelo fato de que, sejam quais forem as variadas formas de trabalho ou de atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que estas são funções do organismo humano e que cada uma dessas funções são sempre o gasto ou o consumo do cérebro, dos nervos, dos órgãos, dos sentidos, etc. Em segundo lugar, o que jaz na raiz da determinação do valor, que é o tempo de duração deste gasto ou a quantidade de trabalho, é claramente distinguível da qualidade do trabalho. Em todos os casos, este tempo de trabalho, que custa a produção dos meios de vida, deve interessar aos homens, embora não de maneira uniforme. E, finalmente, à medida que os homens trabalham uns para os outros, o seu trabalho toma uma forma também social.116 A forma misteriosa da mercadoria surge da própria forma da mercadoria, e isso de três maneiras: 1) a igualdade entre os diversos tipos de trabalho humano assume a forma física da igual objetividade do valor dos produtos do trabalho; 2) a medida do gasto da força de trabalho humano através de sua duração assume a forma da grandeza do valor dos produtos do trabalho; e 3) as relações dos produtores assume a forma de uma relação entre os produtos do trabalho. O misterioso caráter da forma-mercadoria consiste “simplesmente no fato de que a mercadoria reflete as características sociais do próprio trabalho dos homens como características objetivas dos próprios produtos do trabalho.”117 Ela também reflete a relação social entre os produtores e a soma total de trabalho (Gesamtarbeit) como uma relação entre coisas, fora das relações sociais existentes. A fim de esclarecer as sutilezas metafísicas no processo de transformação dos produtos do trabalho em mercadorias, Marx traça uma analogia entre a mercadoria e a religião. Na religião, os produtos do cérebro humano aparecem como figuras autônomas, hipostasiadas e possuindo uma vida própria, e nessa forma entram em relação com os homens e também entre si. No mundo das mercadorias acontece o mesmo. Inicialmente oriundas dos próprios homens, as mercadorias se separam destes e se relacionam tanto entre si quanto com estes. No mundo da religião, assim como no mundo das mercadorias, opera o processo de alienação, no sentido de que há uma 116 117 MARX, 1962, p. 85. MARX, 1962, p. 86. 38 exteriorização do homem em objetos nos quais ele posteriormente não mais se reconhece. Neste trecho é clara a influência de Feuerbach sobre Marx. Em sua principal obra, A essência do cristianismo, Feuerbach pretende demonstrar que o cristianismo é a forma mística e alienada do próprio homem: “o segredo da teologia é a antropologia”. Feuerbach faz a religião retroceder ao firme solo da experiência, mostrando que Deus é uma projeção das maiores qualidades do gênero humano (entendido como Gattungswesen). O conhecimento de Deus é o autoconhecimento do homem. O movimento de Marx aqui também vai neste sentido: o segredo da mercadoria são as relações sociais entre os homens. Os homens não percebem, entretanto, as relações entre si. O contato dos homens uns com os outros se dá através das mercadorias. As relações dos diferentes tipos de trabalho só aparecem mediante a troca dos produtos de seu trabalho, inicialmente objetos de uso, tornados mercadorias. Os produtores não percebem as relações sociais de seu trabalho social como o que realmente são, isso é, como relações sociais imediatas entre os indivíduos. Tudo aparece invertido: as relações entre as pessoas são relações coisificadas, e as relações entre as coisas, relações sociais. 118 Este relacionamento entre os produtores, tornado oculto pelas mercadorias, fica mais claro ao compreendermos, por exemplo, a origem do que consumimos cotidianamente. Num primeiro momento, ao tentarmos explicar a origem de um simples pão francês, poderíamos dizer que ele veio de uma padaria, adquirido através de uma troca em dinheiro: o comerciante nos forneceu o pão em troca de algumas moedas. Mas devemos levar a questão mais a fundo: como o pão foi produzido? De onde vieram seus ingredientes? Seguindo nesta trilha de investigação vamos descobrir toda uma complexa cadeia produtiva que nos remeterá do padeiro ao agricultor na produção do trigo, o qual, por seu turno, fez uso de máquinas e ferramentas que, por sua vez, também foram produzidas por outros trabalhadores em uma fábrica metalúrgica. Nesta fábrica o processo se repete: o aço, o minério, o cobre e outras matérias primas também foram extraídas da natureza por outros trabalhadores, de modo que a cadeia parece não ter fim. Cada um dos trabalhadores que encontramos neste processo também consome, por sua 118 MARX, 1962, p. 87. 39 vez, aquele mesmo pão francês do qual partiu nossa investigação. Marx e Engels119 afirmam que o capital é um produto social e que, em última análise, só pode ser colocado em movimento pela atividade de todos os membros da sociedade. A mercadoria manifesta suas duas faces no ato de troca: a de coisa útil e de coisa de troca. Esta separação, contudo, se torna prática apenas quando este processo já se expandiu de tal forma e com tal importância que coisas úteis passam a ser produzidas especificamente para a troca, de modo que o valor é levado em consideração já no momento da produção. A partir de então o trabalho privado dos produtores toma também um duplo caráter social: por um lado ele deve, como trabalho útil determinado, satisfazer determinadas necessidades sociais que não são suas e se tornar parte da soma total de trabalho (Gesamtarbeit), da divisão social do trabalho. Por outro, este trabalho deve satisfazer as múltiplas necessidades dos próprios produtores, de modo que cada trabalho privado útil seja intercambiável. Esta igualdade entre os diferentes tipos de trabalho, contudo, só pode se dar através de uma abstração de sua desigualdade efetiva.120 Esta abstração é a redução ao caráter comum de todo tipo de trabalho, que é o gasto ou consumo de força de trabalho. Este duplo caráter social do trabalho privado é refletido ou espelhado no cérebro do indivíduo, tendo em sua consciência a mesma forma que apresenta no processo social de troca dos produtos. O caráter socialmente útil de seu trabalho privado aparece na forma de que o produto do trabalho deve ser útil para outros, e o caráter social da igualdade dos diversos tipos de trabalho se reflete em sua consciência na forma do caráter comum, enquanto valores, dessas diversas coisas materiais, que são os produtos do trabalho.121 Ao trocarem seus produtos uns com os outros, os homens não os relacionam enquanto valores, pois essas coisas são, para eles, apenas um tegumento, uma casca, um invólucro material que envolve trabalho humano igual, homogêneo, equivalente. O que acontece no processo de troca é justamente o contrário.122 No momento em que os produtores igualam seus produtos na troca enquanto valores, o que eles estão fazendo é igualar seus diversos tipos de trabalho enquanto trabalho humano. É nesta passagem que 119 MARX, ENGELS, 1977b, p. 475. MARX, 1962, p. 87. 121 MARX, 1962, p. 88. 122 MARX, 1962, p. 88. 120 40 Marx, como um psicanalista das relações sociais no capitalismo, faz a emblemática afirmação: “eles não sabem, mas o fazem” (“Sie wissen das nicht, aber sie tun es”). O valor, continua Marx, não traz escrito em sua testa o que ele é. Ele transforma cada produto em um hieróglifo social, de modo a esconder, camuflar, escamotear sua essência. Os homens tentam, posteriormente, fazer o caminho reverso para decifrar este enigma, para chegar ao que está por trás do segredo de seus próprios produtos sociais, pois “a determinação dos objetos de uso enquanto valores são, para eles, um produto social assim como a linguagem”123. A descoberta científica de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são apenas expressões materiais (sachliche) do trabalho humano gasto (verausgabten) em sua produção, embora faça época no desenvolvimento humano da humanidade, não é capaz, contudo, de afastar a forma objetiva (gegenständlichen) do caráter social do trabalho. O produtor se interessa agora pela quantidade de produtos que pode trocar pelo seu. A proporção pela qual é possível trocar um produto por outros parece emanar da própria natureza do produto, da mesma forma que uma tonelada de ferro equivale, em valor, a três gramas de ouro, por exemplo, ou uma tonelada de ferro equivale a uma tonelada de ouro quanto ao peso, embora sejam diferentes em todas as suas outras propriedades físicas e químicas. Marx124 afirma que na troca de produtos o movimento social dos produtores toma para estes a forma de um movimento das próprias coisas, acontecendo uma inversão: o processo toma a aparência, para os produtores, de que eles estão submetidos às coisas, e não as coisas a eles. É importante ressaltar que a análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, localizada na última seção do primeiro capítulo de O capital, é uma parte integrada a um todo. A análise do fetichismo não pode ser separada de sua teoria do valor, da qual a mercadoria é uma materialização125. É por isso que ele afirma que a determinação da grandeza de valor contida em uma mercadoria através do tempo de trabalho é um segredo que se esconde por baixo daqueles movimentos aparentes, manifestos (erscheinenden) dos valores relativos das mercadorias. Esta descoberta só pôde ser alcançada num momento em que a produção de mercadorias já estava completamente desenvolvida. Com ela foi possível perceber que os trabalhados privados são 123 Ibid., loc.cit. MARX, 1962, p. 89. 125 O'KANE, 2013, 58. 124 41 incessantemente reduzidos à sua medida socialmente proporcional, de modo que nas relações contingentes de troca o tempo de trabalho socialmente necessário à produção de determinada mercadoria se impõe praticamente como uma lei natural. Tal descoberta científica, embora suprima a aparência da mera determinação acidental, casuística, contingente da grandeza do valor dos produtos do trabalho, não toca em sua forma concreta (sachliche).126 2.3 O fetichismo em Lukács Lukács estende a análise marxiana da estrutura fetichista da mercadoria à realidade social dos homens através de uma articulação das categorias de dialética e totalidade. O filósofo húngaro compreende o fetichismo em termos de uma coisificação na qual partes de um processo social característico da sociedade capitalista aparecem como coisas separadas, divorciadas, independentes da totalidade. Essas coisas, enquanto fetiches, possuem uma falsa objetividade que dissimula os processos sociais que os constituem. O fetichismo em Lukács é utilizado, portanto, para “articular a constituição social da aparência coisificada da sociedade capitalista, na qual a atividade prática é objetificada, e na qual ela aparece como uma coisa que possui uma falsa objetividade”.127 O que está contido, por exemplo, na expressão “um par de sapatos custa 5 mil francos”, é uma relação social e implicitamente humana entre diversas pessoas: “O criador de gado, o curtidor de couro, [o produtor de calçados,] seus operários, seus empregos, o revendedor, o comerciante de calçados e, por fim, o consumidor” estão, todos, em relação mútua, embora até ignorem a existência um do outro.128 Lukács considera fundamental chamar a atenção para os problemas resultantes do caráter fetichista da mercadoria como forma de objetividade, por um lado, e do comportamento dos indivíduos submetidos sobre ela, por outro. Segundo Netto129, a forma mercadoria não é apenas a célula econômica da sociedade burguesa; ela é também a matriz que contém e escamoteia a raiz dos processos alienantes que têm curso nesta sociedade. Esses processos são alienantes pois 126 MARX, 1962, p. 89. O'KANE, 2013, p. 92. 128 GOLDMANN, 2008, p. 122. 129 NETTO, 1981, p. 78. 127 42 a reificação, posta pelo fetichismo, deve ser vista como a estrutura específica da alienação que se engendra na sociedade burguesa constituída.130 O fetichismo da mercadoria é específico do capitalismo moderno. Embora em sociedades anteriores já existisse a troca de mercadorias, assim como suas relações objetivas e subjetivas correspondentes, a diferença entre esses períodos não pode ser considerada como meramente quantitativa. A questão é saber “em que medida a troca de mercadorias e suas consequências estruturais são capazes de influenciar toda a vida exterior e interior da sociedade”.131 Neste trecho da Contribuição à crítica da economia política, citado por Lukács132, Marx enfatiza com precisão este aspecto: De fato, o processo de troca de mercadorias não aparece originalmente no seio das comunidades naturais, mas sim onde elas cessam de existir, em suas fronteiras, nos poucos pontos em que entram em contato com outras comunidades. Aqui começa a troca que, em seguida, repercute no interior da comunidade, na qual ela atua de maneira desagregadora.133 À medida que a troca prossegue na marcha histórica, tanto esta quanto a produção regular específica para troca perdem cada vez mais seu caráter contingente. É apenas no capitalismo moderno que este processo se torna a forma de dominação efetiva sobre o conjunto da sociedade. Este é o fenômeno social fundamental da sociedade capitalista: “a transformação das relações humanas qualitativas em atributo quantitativo das coisas inertes, a manifestação do trabalho social necessário utilizado para produzir certos bens como valor, como qualidade objetiva desses bens”.134 Somente aqui, portanto, a mercadoria pode ser compreendida em sua essência autêntica, isso é, quando se torna categoria universal de todo o ser social. A reificação surgida da relação mercantil aparece neste ponto com uma importância decisiva, “tanto para o desenvolvimento objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito”.135 De fundamental importância é a consequência que essa essência, que essa estrutura impõe ao homem: este vê sua própria atividade como algo objetivo, 130 Ibid., p. 80. HCC 195 132 MARX, apud LUKÁCS, 2012, p. 195. 133 MARX, 1961, p. 36. No original: „In der Tat erscheint der Austauschprozeß von Waren ursprünglich nicht im Schoß der naturwüchsigen Gemeinwesen, sondern da, wo sie aufhören, an ihren Grenzen, den wenigen Punkten, wo sie in Kontakt mit andern Gemeinwesen treten. Hier beginnt der Tauschhandel und schlägt von da ins Innere des Gemeinwesens zurück, auf das er zersetzend wirkt.“ 134 GOLDMANN, 2008, p. 122. 135 HCC 198 131 43 “independente dele e que o domina por leis próprias, que lhe são estranhas”.136 Como afirma Marx em O Capital137, o que caracteriza a época capitalista é o fato de a força de trabalho assumir para o próprio trabalhador a forma de uma mercadoria que lhe pertence e, por outro lado, generalizar-se a forma mercantil da força de trabalho. Marx já havia observado também em A miséria da filosofia138 que, no modo de produção capitalista, não mais uma hora do trabalho de um homem corresponde a uma hora de trabalho de um outro homem, mas que um homem durante uma hora tem tanto valor quanto um outro homem durante uma hora. “O tempo é tudo, o homem não é mais nada; ele é, no máximo, a corporificação do tempo”.139 Segundo Charbonnier140, esta fórmula enuncia uma primeira dimensão da reificação capitalista, como uma redução substancial da humanidade à sua força de trabalho, à sua utilidade. Sendo, portanto, a força de trabalho uma mercadoria, isso significa que ela pode e deve ser tomada em seu aspecto formal para possibilitar seu intercâmbio, isso é, a permutabilidade de objetos qualitativamente diferentes, pois isso é o que possibilita que uma mercadoria seja trocada por outra. No caso da mercadoria força de trabalho, esse denominador comum a que ela deve ser reduzida é o trabalho humano abstrato. Este trabalho abstrato, mensurável em relação ao tempo de trabalho socialmente necessário, surge somente no curso de desenvolvimento da sociedade capitalista e, portanto, somente aqui é que “ele se torna uma categoria social que influencia de maneira decisiva a forma de objetivação tanto dos objetos como dos sujeitos”.141 À medida que o processo de trabalho se desenvolve, desde o artesanato até a indústria mecânica, as propriedades humanas e qualitativas do trabalhador desaparecem cada vez mais, de modo que quanto mais este se intensifica, mais o período de trabalho socialmente necessário, que forma a base do cálculo racional, deixa de ser considerado como tempo médio e empírico para figurar como uma quantidade de trabalho objetivamente calculável, que se opõe ao trabalhador sob a forma de uma objetividade pronta e estabelecida.142 136 HCC 199 MARX, 1962, p. 184. 138 MARX, 1977, p. 181. 139 Ibid., loc. cit. 140 CHARBONNIER, 2014, p. 1. 141 HCC 201 142 Ibid., loc.cit. 137 44 O taylorismo realiza de maneira inequívoca tal tendência, a ponto de destacar as qualidades psicológicas do trabalhador de seu conjunto, objetivando-as em relação à sua própria personalidade para que possam “ser integradas em sistemas espaciais e racionais e reconduzidas ao conceito calculador”.143 O princípio da racionalização baseada no cálculo — isso é, a possibilidade do cálculo — se impõe como o aspecto mais importante, tendo desdobramentos tanto sobre o sujeito quanto sobre o objeto do processo econômico. Quanto ao objeto, sua unidade orgânica irracional é rompida para que seja possível calcular seu processo de trabalho. A racionalização, a previsibilidade da produção, só pode ser alcançada caso se desmembre todo o processo de produção em sistemas parciais e isolados, cada um regido por leis próprias. Assim, o produto final não passa de uma reunião objetiva e arbitrária de sistemas parciais. Essa fragmentação do objeto, por sua vez, se reflete necessariamente no sujeito. Suas qualidades especificamente humanas são vistas apenas como fontes de erro, pois se tornam interferências nos sistemas de leis parciais calculados previamente. O homem não aparece como o portador do processo de trabalho, mas como mero apêndice, parte mecanizada de um “sistema mecânico que já encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e a cujas leis ele deve se submeter”.144 A progressiva mecanização do processo de trabalho leva então a um paradoxo: a atividade do trabalhador torna-se, cada vez mais, contemplativa. Isso é, o sistema fechado e acabado da produção aparece como regulado por leis próprias, livre de uma influência possível da atividade humana. Esta atitude contemplativa, segundo Lukács, “transforma também as categorias fundamentais da atividade imediata dos homens em relação ao mundo: reduz o espaço e o tempo a um mesmo denominador e o tempo ao nível do espaço”.145 O processo de especialização do trabalho leva a uma perda da imagem da totalidade, mas como no campo cognitivo a necessidade de apreender a totalidade não pode desaparecer, tem-se a impressão de que é a própria ciência que teria despedaçado assim a realidade por força de seu próprio método de investigação, isso é, devido à fragmentação da totalidade em áreas específicas do saber. Lukács recupera aqui a observação de Marx de que essa separação dos aspectos da realidade não vai dos manuais para a realidade, mas vem da realidade para os manuais. E isso de tal modo que 143 HCC 202 HCC 204 145 Ibid., loc.cit. 144 45 quanto mais desenvolvida for uma ciência, mais clara será sua visão sobre si mesma e mais ela “voltará as costas aos problemas ontológicos de sua esfera e os eliminará resolutamente do domínio de conceitualização que forjou”, isso é, quanto mais uma ciência se desenvolver, mais incompreensível e inapreensível será para ela seu substrato concreto de realidade, e mais provavelmente ela se configurará apenas como um sistema formalmente fechado de leis parciais e especiais, tal como Marx identificou no caso da economia em relação ao valor de uso, o qual estava “além da esfera de investigação da economia política”.146 Este substrato concreto de realidade, sendo inapreensível, transforma-se em um problema de transcendência, pois é algo que não pode ser alcançado pelas ciências, de modo que seria vão alimentar a esperança de que a coesão da totalidade pudesse ser adquirida por uma ciência que a todas unisse através da filosofia. Tal tentativa só poderia ser bem-sucedida se fosse rompido o formalismo das próprias ciências fragmentadas, mas não através de uma ligação mecânica entre elas, as quais trazem a marca dessa fragmentação desde sua gênese. As ciências teriam que ser remodeladas internamente por este novo método unificador, colocando-se a questão “segundo uma orientação radicalmente diferente e orientando-se para a totalidade material e concreta do que pode ser conhecido, do que é dado a conhecer”.147 No terreno da sociedade burguesa é impossível essa modificação radical do ponto de vista, não obstante o desejo de síntese da filosofia burguesa e de sua tentativa para abarcar de maneira enciclopédica todo o saber. Em relação às ciências particulares a filosofia tem aqui, no entanto, a mesma posição destas em relação à realidade empírica: considera-as um substrato dado, imutável. E isso lhe retira qualquer possibilidade “de revelar a reificação que está na base desse formalismo”.148 2.4 Manifestações do fetichismo O fetichismo em Lukács não se restringe apenas à forma da mercadoria, mas torna-se um fenômeno teórico geral. Ele engloba desde métodos científicos que tentam compreender a sociedade capitalista até a consciência cotidiana dos seres humanos sob este sistema. A própria filosofia crítica de Kant, por exemplo, é entendida por Lukács 146 HCC 229 HCC 238 148 HCC 239 147 46 como tendo por ponto de partida a estrutura reificada da consciência, ou seja, a estrutura fetichizada da consciência no capitalismo. Um dos tipos de fetichismo que encontramos na obra de Lukács como objeto de crítica é chamado por O’Kane149 de “fetichismo metodológico”, e temos um exemplo dele na crítica lukácsiana da ciência. O método científico se constitui pela aparência exterior fetichista e fragmentada do capitalismo, pela objetificação e pela fragmentação da totalidade. Esta aparência se harmoniza com a especialização e se torna a base da ciência, fazendo com que aspectos objetificados da realidade sejam concebidos como “coisas” não relacionadas à totalidade de onde foram extraídas. Lukács critica estas formas de fetichismo metodológico por meio da relação sujeito-objeto típica de seu marxismo hegeliano. Ao contrário do método científico, a dialética insiste na unidade concreta do todo, de modo que expõe as aparências fetichistas como elas realmente são, isso é, como ilusões necessariamente engendradas pelo capitalismo. Esta crítica de Lukács se dá, primeiramente, através do reconhecimento dialético dessas “coisas” como meras formas da aparência nas quais seu núcleo necessariamente é trazido para fora, exposto, revelado.150 O fetichismo metodológico consiste, assim, em pressupostos metodológicos de especialização e racionalidade formal. Tendo por base a aparência coisificada gerada pela reificação de todas as relações humanas e a divisão social do trabalho que transformam esses processos sociais em aparência de coisas, o fetichismo metodológico fornece uma orientação fragmentada em direção à totalidade. Os processos sociais da totalidade não podem ser compreendidos, e os objetos são concebidos como coisas separadas dos processos que os coisificam.151 Outro tipo de fetichismo que encontramos na obra de Lukács é o fetichismo cotidiano. As concepções cotidianas dos homens que vivem no capitalismo têm por base as aparências 152 imediatas deste último, sendo incapazes, no entanto, de apreender o substrato material das relações de classes que constituem esta aparência coisificada. O método marxista, em virtude de sua apreensão dialética da totalidade, é capaz de apreender este substrato. O conhecimento da totalidade dissolve as concepções 149 O'KANE, 2013, p. 93. Ibid., loc.cit. 151 Ibid., loc.cit. 152 Ibid., loc.cit. 150 47 fetichistas do homem comum da sociedade capitalista de duas maneiras: 1) dissolvendo a concepção de que o capitalismo é algo natural, uma entidade não-histórica e 2) dissolvendo a aparência fetichista do capitalismo. A naturalização do capitalismo é um exemplo de como funciona o fetichismo cotidiano. O homem comum não consegue compreender, em seu dia-a-dia, como o capitalismo funciona enquanto totalidade social dialética, e a aparência coisificada deste sistema gera a ilusão de que ele é natural. A reificação petrifica todos os processos sociais, de modo que a máxima “houve história, não há mais”, que Marx atribuía aos economistas, se estende a todos os aspectos da vida. Em todos os campos da investigação social pode-se perceber tanto o surgimento quanto a superação de ideias, teorias, modelos, modos de produção, reinos, governos, culturas e civilizações. Quando se trata do presente, contudo, o processo histórico reificado parece ter encontrado seu termo, de forma que o capitalismo é considerado o fim da odisseia humana, a última estação do trem da história. Alguns termos, expressões e atitudes aparentemente inocentes e comuns no cotidiano das sociedades capitalistas são índices de como os homens e suas relações são coisificados. Durante décadas, por exemplo, o setor responsável por auxiliar na gestão de pessoal das empresas teve o nome de “recursos humanos”. O que ele deixa implícito é que ao lado dos diversos tipos de recursos que uma empresa possui — ferramentas, computadores, mobília, insumos, etc. —, há também, no processo de produção, um tipo de recurso especial, o qual recebe o rótulo de “humano”. Este tipo de recurso exige um tratamento especial por parte do capital pois fala, tem emoções, necessidades e motivações que as máquinas não possuem. Quanto mais voltamos no tempo e nos aproximamos da revolução industrial, mais claro isso se mostra. Antes da instituição de regimes de previdência e seguridade social — conquistas dos próprios trabalhadores —, o “recurso humano” adoecido, acidentado ou aposentado era descartado como qualquer outra mercadoria que chegasse ao fim de sua vida útil. Quando não mais pudesse produzir, quando não mais tinha utilidade para o capital, era abandonado à sua própria sorte, largado em uma situação ainda pior que a dos servos ou escravos, que pelo menos dispunham de alguma segurança nestas situações. Romances de época como o francês Germinal, de Emile Zolá, e o inglês Hard times, de Charles Dickens, oferecem um retrato contundente e em 48 escala ampliada do que era e continua sendo a objetificação do trabalhador no modo de produção capitalista. O ponto de vista da totalidade dissolve a petrificação, a rigidez de conceitos que entendemos bem no cotidiano da vida no capitalismo mas que, sob escrutínio filosófico, são absurdos. Expressões que encontramos nos noticiários dando conta de que “o mercado reagiu bem” ao fato de que determinado político foi preso, por exemplo, não causam a estranheza que deveriam causar. Ao deus mercado são atribuídos sentimentos, emoções, ações, reações e até mesmo características físicas, como sua famosa “mão”. Ele não é percebido como uma relação entre homens, entre produtores de mercadorias isolados uns dos outros em um sistema anárquico de produção, mas sim como uma coisa, um ente, uma figura mitológica que, com sua “mão invisível”, controla a vida dos homens ao invés de ser controlado por eles. 49 CAPÍTULO 3. A MERCADORIA CONSCIENTE DE SI Este capítulo articula o anterior, que tratou sobre a mercadoria, com o seguinte, que irá analisar o sujeito-objeto idêntico. Vamos demonstrar aqui como o proletário, por ser obrigado a vender sua força de trabalho e tornar-se, por isso, uma mercadoria como qualquer outra, se tornará a “mercadoria consciente de si” e, posteriormente, o sujeitoobjeto idêntico do processo histórico. A reflexão de Lukács sobre a autoconsciência da mercadoria se articula, passo a passo, com questões históricas concretas. Ele apresenta, inicialmente, o problema e a dinâmica do autoconhecimento do proletariado com a descoberta de si mesmo como sujeito. Esta descoberta, para Lukács, é um exemplo clássico da relação entre gênese conceitual e histórica. O proletariado deve apreender a si próprio e a sua existência como produto de sua própria atividade, tendo claro, para isso, que todas as categorias relevantes utilizadas para tal compreensão são determinações da existência humana, momentos dos próprios processos históricos. Isso pressupõe que os instrumentos desta gênese, as categorias, devem ser apreendidas como em sua própria sequência e configuração como característica estrutural do presente. Esta “sequência” é determinada através da relação que possuem na moderna sociedade burguesa.153 Os métodos de conhecimento da realidade social são necessariamente determinados pela existência e pelos interesses de cada classe social. Proletariado e burguesia, portanto, apresentam distintas formas de consciência e autoconsciência justamente pelo lugares que ocupam no processo de produção. A realidade social na qual a burguesia é a classe dominante se apresenta, para ela própria, como o “melhor dos mundos possíveis”, para usar uma expressão de Leibniz. A burguesia não consegue imaginar o mundo com uma configuração diferente do atual, o que se reflete no campo da indústria cultural na enorme quantidade de livros, filmes e jogos que tratam de temas escatológicos ou apocalípticos: ou a terra acaba, e a humanidade precisa fugir do planeta, ou o capitalismo dura para sempre. Outra realidade, neste planeta, seria impossível. Seus interesses de classe constituem uma barreira intransponível para seu pensamento. 153 HAHN, 2017, p. 84. 50 Já para o proletariado, o objetivo é uma transformação radical, estrutural da sociedade, de modo que os limites da imediatidade devem ser superados a cada passo de sua práxis transformadora. E isso começa com a definição de qual será o ponto de partida de seu ponto de vista. Como o método dialético sempre produz e reproduz seus próprios momentos essenciais, e sua essência é a negação de uma linha reta, contínua de pensamento, o problema do ponto de partida do proletariado se coloca a cada passo prático-histórico, assim como a apreensão da realidade no pensamento. Este ponto de partida não pode ser, de tal maneira, uma “tabula rasa”, ou quaisquer aparências isoladas da realidade, como ideias ou postulados morais arbitrários. O proletariado não pode tentar apreender a realidade partindo de um novo início, sem pressupostos, como tentou a burguesia em relação às formas feudais medievais. O pensamento proletário deve partir da compreensão da atual sociedade burguesa.154 O proletariado é obrigado pela miséria a vender uma propriedade humana — sua força de trabalho — como uma mercadoria, como uma “coisa” que lhe pertence, que pode ser mensurada, calculada em horas ou em termos de “produtividade” pela burguesia. Assim, aquelas características que aparecem à burguesia como quantitativas tornam-se, do ponto de vista do proletariado, qualitativas, pois envolvem toda sua existência física, mental e moral. Ao vender sua força de trabalho, sua única “mercadoria”, e integrá-la a um sistema mecanizado e racionalizado que funciona independente dele, no qual ele não passa de uma engrenagem, de um número, de uma estatística, o proletariado se integra em sua totalidade a este sistema, pois a sua “mercadoria”, sua força de trabalho, é inseparável de sua própria existência. Marx afirma que quando o capitalista vai ao mercado para comprar trabalho, ele não se depara diretamente com o trabalho em si, mas sim com o trabalhador. O que ele compra é a força de trabalho, não a mercadoria trabalho. À medida que o trabalho começa, este já não pertence ao trabalhador, e não pode mais ser vendida por ele.155 Esta situação leva ao que Lukács chama de “autoconsciência da mercadoria”, um híbrido bizarro de humano e não-humano.156 154 HAHN, 2017, p. 86. MARX, 1962, p. 559. 156 FEENBERG, 2011, p.180. 155 51 3.1 As classes sociais no marxismo O pensamento marxista parte do firme terreno da experiência. O método dialético e sua apreensão da totalidade significam que não há aspecto isolado da realidade que seja regido por leis próprias, internas — este ponto de vista, na verdade, é uma consequência da própria reificação. Uma filosofia alienada de conteúdos sociais concretos é uma filosofia reificada, como discute Lukács em HCC ao falar sobre as “antinomias do pensamento burguês”. A fim de prosseguir, portanto, em nossa investigação de como o proletariado toma consciência de si enquanto mercadoria, precisamos compreender sua realidade social concreta e em seu devir histórico, pois este é o ponto de partida de seu pensamento. Não se trata, aqui, de uma mera operação entre conceitos abstratos, como faz parecer Hegel em sua Fenomenologia do Espírito ao não expor de maneira clara a quais realidades sociais ele se refere. Quando falamos de filosofia marxista, os conceitos são vivos e inseparáveis da economia e da história. Os humanos se distinguem de todos os outros animais pelo trabalho. Mais especificamente, pela capacidade de, ao transformar a natureza, também se transformarem. As abelhas, por exemplo, produzem mel, mas permanecem sempre as mesmas, assim como as formigas, que sempre vivem da mesma maneira. Apenas os humanos, ao transformarem a natureza, ao mesmo tempo transformam-se a si mesmos.157 Segundo Marx e Engels158, pode-se distinguir os homens pela consciência, pela religião ou o que for, mas eles próprios só começam a se distinguir dos animais a partir do momento em que começam a produzir seus meios de vida, um passo que está condicionado através de sua organização corpórea. À medida que começam a produzir seus meios de vida, os humanos produzem indiretamente sua própria vida material. Ao transformar a natureza em meios de produção (ferramentas, fontes de energia, matérias-primas, etc.) ou em meios de subsistência (comida, casa, roupas, etc.), os homens produzem também novas possibilidades e necessidades, as quais impulsionam o desenvolvimento tanto das sociedades, quanto de seus indivíduos. Neste intercâmbio material entre humanos e natureza, ambos são alterados, transformados, mudados, de forma que por essa razão o trabalho é considerado a categoria fundante do 157 158 TONET, LESSA, 2012, p. 9. MARX, ENGELS, 1978, p. 21. 52 mundo dos homens e das classes sociais. 159 Nossa definição de proletário, portanto, passa pela questão do trabalho, da relação homem-natureza. A maneira pela qual os humanos transformam a natureza determina em grande parte a forma como a sociedade se reproduz. Cada modo particular de trabalho fundou um diferente modo de produção. O trabalho de coleta, por exemplo, fundou o modo de produção primitivo. O trabalho escravo, por sua vez, fundou o escravismo. O trabalho do servo fundou o modo de produção feudal, e o trabalho proletário é fundante do modo de produção capitalista.160 Quando nos referimos a trabalho, queremos ressaltar que se trata sempre de trabalho manual. A única maneira de transformar a natureza é através de processos químicos, físicos ou biológicos, isso é, por meio de processos também naturais. Para desencadear os processos naturais necessários à produção, é preciso que a consciência empregue a matéria natural imediatamente sob seu controle, que é o próprio corpo humano. Segundo Marx161, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, no qual o homem medeia, regula e relaciona seu próprio metabolismo com a natureza através de sua atividade, de sua ação. Ele se defronta com a matéria natural como uma força natural e coloca em movimento a força natural de sua própria corporeidade, a saber, braços e pernas, cabeça e mãos, para que a matéria natural possa tomar uma forma utilizável para sua própria vida. A primeira forma de trabalho da humanidade foi a coleta. Utilizada por pequenos bandos e tribos, este período começou há cerca de 100 mil anos e terminou entre 12 e 10 mil anos atrás, com a Revolução Neolítica. A coleta definia algumas características e limites das sociedades primitivas. O deslocamento constante significava que as pessoas não podiam carregar senão o indispensável, como alimento, água e crianças. As ferramentas eram feitas com o menor emprego de tempo possível, sendo abandonadas logo depois de utilizadas (período da pedra lascada, bem antes ainda das ferramentas de pedra polida e dos primeiros metais). Os grupos também eram muito pequenos, e ao final do período primitivo, não eram mais que tribos e associações de tribos. Este modo de produção não permitia uma sociedade mais numerosa, além de exigir a participação de todos os indivíduos da comunidade no processo produtivo. Cada 159 TONET, LESSA, 2012, p. 9-10. TONET, LESSA, 2012, p. 10. 161 MARX, 1962, p. 192. 160 53 membro dava sua colaboração e também acessava o produto do trabalho coletivo, não havendo aqui apropriação privada da riqueza.162 Por volta de 10 mil anos atrás houve um salto no desenvolvimento das forças produtivas. Durante o longo período de coleta os humanos foram descobrindo novas maneiras, cada vez mais eficientes, de retirar da natureza o que precisavam. Com a descoberta da semente surgiu a agricultura e também a pecuária. As comunidades, anteriormente nômades, se tornaram sedentárias. Foi a partir daí que surgiram os grandes impérios da antiguidade, como Suméria, Egito, Pérsia, Grécia e Roma, substituindo os primitivos bandos e tribos. A este período de grandes transformações se dá o nome de Revolução Neolítica.163 Neste novo período, as ferramentas se desenvolveram, e da pedra lascada se passou à pedra polida e, em seguida, aos metais. O artesanato se separou aos poucos da agricultura e da pecuária, e em alguns milhares de anos a cidade foi se separando do campo. Pela primeira vez na história, os humanos deram conta de dominar as forças da natureza para produzirem o que necessitavam, o que deu origem, por sua vez, a uma capacidade de trabalho que ultrapassava meramente suas necessidades pessoais. A partir deste momento foi possível gerar um excedente de trabalho.164 Todas estas condições históricas tornaram possível a exploração do trabalho alheio, aparecendo então indivíduos que podiam ter muito mais do que conseguiriam pelo próprio trabalho. A exploração dos trabalhadores produtivos, retirando deles o trabalho excedente, se mostrou lucrativa, e os modos de produção de todas as sociedades daí em diante têm em comum a existência das classes sociais exploradas e exploradoras.165 O trabalho alienado trouxe também novas necessidades. Tendo em vista que só é possível “obrigar uma pessoa a produzir a riqueza que a oprime pela aplicação cotidiana da violência”166, a classe dominante criou então mecanismos e instituições para controlar aqueles que produzem a riqueza. Um dos mais importantes é o Estado. Outra característica surgida com o trabalho alienado foi a oposição entre trabalho manual e intelectual. As classes dominantes precisam organizar seus negócios, a compra e venda de mercadorias, os processos de produção em suas propriedades, etc. O trabalho 162 TONET; LESSA, 2012, p. 11. Idem, p. 12. 164 Idem, p. 13. 165 Ibidem., loc.cit. 166 Ibidem., loc.cit. 163 54 intelectual é composto por todas as atividades necessárias para manter sob controle a classe trabalhadora, e o trabalho manual corresponde à transformação da natureza nos bens necessários à reprodução da vida material.167 Todas as sociedades divididas em classes têm em comum o fato de que as classes dominantes são numericamente pequenas. Esta é uma condição necessária para que a riqueza possa se concentrar nas mãos de poucos. Consequentemente, não sendo capazes de controlar sozinhos a imensa classe trabalhadora, eles precisam de auxiliares, de lacaios. Estes são os soldados, policiais, juízes, advogados, juristas e a burocracia em geral. No processo produtivo eles são os capatazes, feitores, capitães-do-mato, gerentes, supervisores, diretores, chefes de departamento pessoal, etc. Encontramos, assim, entre a classe trabalhadora e as classes dominantes sempre uma camada intermediária de assalariados, às vezes menor, às vezes maior, mas sempre presente e com a função social de auxiliar a classe dominante a explorar os trabalhadores. Estas classes são também assalariadas, mas como não trabalham diretamente na produção, os salários que recebem são oriundos da exploração dos proletários. Duas das principais características que esta camada auxiliar tem em comum com a classe dominante é que 1) ambas vivem da exploração do trabalho proletário e 2) são parasitárias. 168 Por outro lado, há uma contradição fundamental entre essas camadas auxiliares e as classes dominantes. Pelo fato de também serem assalariadas, estas compartilham da mesma sorte da classe produtiva, e quanto menor seu salário, maior o lucro dos patrões. Ao mesmo tempo, portanto, em que concordam com a classe dominante quanto à exploração dos trabalhadores produtivos, discordam quanto ao valor dos salários, pois estão na mesma situação destes últimos.169 Cada época histórica tem suas próprias particularidades, mas estas características são comuns a todas as sociedades de classes. O escravismo, que foi o modo de produção fundado pelo trabalho escravo, tinha como classes sociais os senhores de escravos, seus auxiliares e os escravos. O feudalismo, fundado pelo trabalho feudal, era composto pelos senhores feudais, pela camada de assalariados auxiliares e os servos. Já no modo de produção capitalista, fundado pelo trabalho proletário, temos uma estrutura 167 Idem., p. 14. Idem., p. 17-18. 169 Idem., p. 18. 168 55 semelhante: uma classe de parasitas exploradores, que é a burguesia, seus auxiliares lacaios e o proletariado.170 O modo de produção capitalista possui características exclusivas e de grande importância para nossa compreensão do fenômeno da reificação. Uma delas é que as relações de exploração no feudalismo e no escravismo eram bastante evidentes. Isso se devia ao fato de que a propriedade privada ainda estava, em grande medida, ligada à natureza. Havia outras formas de propriedade, como a imobiliária, que não estavam vinculadas diretamente à natureza, mas elas não determinavam a reprodução da totalidade social.171 O fato de a propriedade ainda estar ligada à natureza, pouco ainda afastada das barreiras naturais, traz duas consequências importantes: a primeira é que isso colocava um limite ao processo de acumulação de riqueza. A partir de determinado ponto não era mais possível conquistar novos territórios e nem obter mais escravos ou servos, e então o sistema entrava em crise. A segunda é que a acumulação de riquezas vinha quase que exclusivamente da exploração direta e imediata do trabalhador manual, daquele que transformava a natureza em meios de subsistência e produção.172 O modo de produção capitalista se caracteriza por um afastamento destas “barreiras naturais” que impunham limites de expansão às sociedades anteriores. A propriedade privada, chamada agora de capital, não se vincula mais necessariamente à natureza, e sua acumulação é ilimitada. Sem a intervenção de outros fatores sociais, a regra é a expansão da riqueza num processo sem fim. Esta é uma das condições para a manutenção do sistema, uma condição sem a qual o capital não pode continuar se reproduzindo.173 Outra inovação trazida pelo capitalismo foi a possibilidade de enriquecimento através da exploração não somente de trabalhadores que transformam a natureza, mas também de outros que não atuam diretamente nesta atividade. Parte da burguesia pode se enriquecer sem ser proprietária de fábricas na cidade ou fazendas no campo. 174 Este ponto é muito importante para nossa reflexão na medida em que explica como o sistema capitalista, devido à sua complexidade, esconde, encobre, escamoteia a verdadeira origem da exploração, gerando ilusões na consciência. No capitalismo é possível ficar 170 Idem., p. 23-24. Idem., p. 25. 172 Ibidem., loc.cit. 173 Ibidem., loc.cit. 174 Idem., p. 26. 171 56 rico em atividades como no comércio ou nos bancos, por exemplo, atividades que não transformam a natureza. Se é possível explorar tanto os trabalhadores que transformam a natureza quanto aqueles envolvidos em outras atividades, o que distinguiria uns dos outros? Precisamos prosseguir em nossa análise para compreender a diferença entre eles e chegar a uma definição mais precisa do que define as classes sociais, entre o que distingue os proletários dos outros assalariados. Em qualquer modo de produção, seja ele o escravista, o feudal ou o capitalista, os trabalhadores manuais são os únicos responsáveis por criar o que Marx chama de conteúdo material da riqueza social, qualquer que seja sua forma. A forma social desta riqueza nos modos de produção escravista e feudal era a propriedade do senhor de escravos e do senhor feudal. Na sociedade capitalista, ela aparece sob a forma de capital.175 A riqueza total da sociedade é composta por tudo o que as gerações vão produzindo ao longo do tempo. À medida que uma sociedade constrói fábricas, estradas, portos, aeroportos, navios, cidades, etc., sua riqueza total vai se acumulando no tempo e crescendo. Para que ela possa se acumular é necessário, no entanto, que o produto resultante da atividade econômica que a produziu continue existindo depois de terminada a atividade que lhe deu origem. É necessário, por exemplo, que após encerrada a atividade de construção de uma estrada, a estrada continue existindo. Que após encerrada a atividade de construção de um navio, este ainda exista. Como a matéria natural já existia antes do processo de trabalho e continuará existindo depois de transformada, o produto também continua existindo, e às vezes por milhares de anos. Basta uma visita a um museu para constatar a permanência de ferramentas primitivas construídas há milhares de anos, utensílios utilizados na sociedade egípcia, nas pirâmides dos faraós, no império romano, etc. São estes objetos que constituem o conteúdo material da riqueza social.176 Isso parece óbvio, mas é importante ressaltar que a única forma de se acumular riqueza é através da permanência do produto, e isso só é possível nas atividades que transformam a natureza. Esta é a razão de as classes dominantes e seus auxiliares não produzirem nenhum tipo de riqueza, sendo sempre e em qualquer lugar parasitas da 175 176 Idem., p. 28. Idem., p. 29. 57 riqueza produzida pelos trabalhadores que transformam a natureza. Nas sociedades escravista, feudal e capitalista, são os escravos, os servos e os proletários, respectivamente, os responsáveis pelo intercâmbio material com a natureza e os únicos produtores da riqueza social.177 No capitalismo, os responsáveis por transformar a natureza em produtos que constituem a totalidade da riqueza social são os proletários. Marx nos oferece uma definição precisa de proletário, diferenciando-o do restante da classe trabalhadora. Ele seria somente aquele trabalhador que produz e valoriza capital: Por ‘proletariado’ não se deve entender, economicamente, nada além do trabalhador assalariado que produz e valoriza ‘capital’, e é lançado na sarjeta tão logo se torne supérfluo às necessidades de valorização do ‘Monsieur Capital’, como lhe chama Pecqueur.178 Como Atlas, o titã da mitologia grega que sustenta os céus em seus ombros, o proletariado é a classe social que sustenta a sociedade capitalista. Toda forma de riqueza, inclusive o dinheiro, é oriunda do trabalho proletário. Marx, ao tomar para si o ponto de vista do proletariado e enxergar esta classe como a única capaz de subverter o modo de produção capitalista rumo ao comunismo, não o fazia por condescendência ou proteção a uma “minoria explorada”. Ele percebeu que o proletariado é o criador de todo um mundo: o mundo social dos homens. O proletariado é apenas parte da classe trabalhadora, e não se confunde com sua totalidade. Nas atividades laborais que não produzem mercadoria, como a dos burocratas do Estado e dos administradores de empresas, por exemplo, não há produção de mais-valia. Isso não significa que não haja exploração destes trabalhadores, mas apenas que esta não é da mesma ordem da exploração daqueles que transformam a natureza. O caso do comércio é ilustrativo neste ponto. É evidente a exploração a que estão submetidos os trabalhadores deste setor, tais como caixas de supermercado, estoquistas, vendedores, balconistas, etc. A atividade laboral destes trabalhadores, no entanto, não produz nenhum valor maior que o seu próprio trabalho. Ao fim do dia, absolutamente nada resta da atividade que o vendedor ou o caixa desenvolveu. A força 177 178 Idem., p. 28. MARX, 1962, p. 642. Tradução nossa. 58 de trabalho que o dono do comércio emprega não é capaz de, ao ser consumida, produzir um valor maior que o utilizado. Isso só acontece, como vimos, na produção de mercadorias. Como o comércio não produz mercadorias, mas apenas as faz circular, o que este setor faz é passar de mãos em mãos a mercadoria produzida na fábrica. O lucro do comerciante, que o faz enriquecer, não tem origem no trabalho de seus empregados, mas sim na atividade dos trabalhadores das fábricas. O comerciante compra as mercadorias do capitalista por um preço inferior ao que ele espera conseguir no mercado, e o que acontecesse aqui é que o industrial cede ao comerciante parte do lucro que teria se vendesse diretamente sua mercadoria. Tendo em vista a mistificação que envolve a natureza da exploração do trabalho no capitalismo, vale a pena compreendermos melhor a articulação entre a atividade do comércio e a produção de mercadorias, a fim de deixar ainda mais clara a especificidade do trabalho proletário. Nos modos de produção pré-capitalistas, o capital mercantil era a forma predominante de capital. Ele incorporava uma economia monetária preste a nascer em meio a uma economia essencialmente baseada na produção de valores de uso, isso é, de produtos destinados diretamente à satisfação de necessidades, e não ao mercado. Em todos estes períodos, o capital mercantil aparecia na dupla forma de comércio internacional em larga escala e também em comércio local. Quanto mais a produção de mercadorias crescia, mais os produtores precisavam vender sua própria produção no mercado, e não havia espaço para o comércio profissional exceto fora desta circulação normal de bens. Esta união entre produção e comércio, contudo, apresentava problemas técnicos com soluções limitadas. O artesão que precisava vender sua própria mercadoria tinha que parar sua produção enquanto viajava. Esta é a razão pela qual em sociedades de pequena produção de mercadorias, as feiras acontecem geralmente nos feriados. O comércio profissional surgiu, assim, como resultado da divisão do trabalho que poupava os produtores de perdas que sofreriam se tivessem que interromper a produção para vender diretamente suas mercadorias.179 O mesmo problema surge quando o capital industrial toma o lugar da pequena produção de mercadorias e substitui o velho capital mercantil. Segundo Mandel180, 179 180 MANDEL, 1971, p. 184. Ibidem., 1971, p. 185. 59 quando a produção de mercadorias se completa, o capitalista industrial já possui a maisvalia produzida por seus trabalhadores. Ela só existe, contudo, na forma cristalizada de mercadoria, assim como o capital adiantado pelos industriais. Enquanto o capitalista está de posse apenas da mercadoria, ele não pode nem recuperar o capital que adiantou, nem se apropriar da mais-valia. Para realizar este valor a mais produzido pelo trabalho proletário e cristalizado nas mercadorias, é necessário vendê-las, transformá-las em dinheiro. O capitalista não trabalha, contudo, para nenhum consumidor específico, mas sim para uma entidade anônima chamada “mercado”. Esta é a chamada anarquia da produção, uma das principais características do capitalismo. Cada um produz o que quer, na quantidade que quer, mas para ninguém em específico, apenas na esperança de que conseguirá escoar sua produção. Se o capitalista tivesse que vender suas próprias mercadorias, ele teria que parar o trabalho na fábrica ao final de cada ciclo de produção, vender seus produtos para recuperar seu investimento e, só então, religar as máquinas. Aqui então entra o comerciante em seu auxílio. Ao comprar o que o industrial produz, o comerciante poupa ao capitalista o problema de ter que ir ao mercado para procurar consumidores para seus bens. O comerciante poupa ao capitalista as perdas que seriam decorrentes de parar a produção até que as mercadorias alcançassem o consumidor final. Ele, de certa forma, adianta ao industrial o dinheiro-capital que lhe permite continuar a produzir sem parar.181 Os comerciantes, por sua vez, precisam vender rapidamente as mercadorias que compraram a fim de realizar a mais-valia nelas cristalizadas e repor seu capital, estando livres para recomeçar a operação o quanto antes. Historicamente, à medida que o capitalismo se expandiu e a produção de mercadorias se tornou generalizada, cidades e vilarejos se viram inundados de uma extensa rede de lojas de atacado e varejo. Assim como na Idade Média os comerciantes viajantes se tornaram aos poucos sedentários, nos primórdios do capitalismo os ambulantes também se estabeleceram nas pequenas vilas.182 O capitalista industrial não precisa apenas realizar a mais-valia contida na mercadoria. Ele precisa também capitalizá-la, transformá-la em mais capital, em máquinas, matéria-prima e salários. Este processo de capitalização implica uma 181 182 MANDEL, 1971, p. 185. Idem., p. 185-186. 60 circulação de mercadorias na qual o industrial aparece agora como comprador ao invés de vendedor. Neste sentido, ele está interessado também em reduzir ao máximo o período de circulação de maquinário e matérias primas, a espera entre pedidos e entregas. O capital comercial presta então dois serviços ao capital industrial: reduz o tempo de circulação de suas próprias mercadorias e também daquelas que ele pretende comprar.183 O ato de compra e revenda de mercadorias, portanto, não lhes adiciona nenhum valor. O lucro do comércio se origina de parte da mais-valia que o industrial retira do proletário e divide com o comércio a fim de lhe poupar o trabalho de ter que vender suas próprias mercadorias. A diferença entre o proletariado e as outras camadas assalariadas, como a dos trabalhadores do comércio, por exemplo, é importante não apenas para compreender o próprio funcionamento do modo de produção capitalista, mas também a razão pela qual o proletariado é a única classe que, ao se libertar, traz junto consigo todas as outras classes oprimidas. 3.2 O desenvolvimento da consciência proletária O ponto de partida do pensamento proletário é esta estrutura da sociedade burguesa e sua divisão em classes que acabamos de analisar. Uma vez definido o que é o proletariado, qual o seu lugar no modo de produção capitalista e sua relação com as outras classes sociais, podemos prosseguir e compreender a reflexão de Lukács quanto ao desenvolvimento da consciência proletária enquanto classe e o tornar-se consciente de si enquanto mercadoria. Em diversos pontos de HCC, Lukács pretende mostrar que a imediatidade da existência (Dasein) e as formas fetichistas das estruturas capitalistas podem ser superadas porque o trabalhador — o proletário — pode se tornar consciente de si como objeto. Nesta articulação ele opera também com a dialética sujeito-objeto, buscando esclarecer a relação entre a existência econômica e ideológica tanto da burguesia, quanto do proletariado.184 Para a burguesia, esta dialética aparece em uma “forma duplicada”. Em relação aos eventos de seu ambiente imediato, o indivíduo burguês se sente como sujeito. Ao 183 184 Ibidem., loc.cit. HAHN, 2017, p. 87. 61 mesmo tempo ele se encontra, no entanto, como objeto no devir histórico, no qual o sujeito é a burguesia enquanto classe. Isso não aparece à consciência cotidiana do sujeito individual burguês. Sujeito e objeto permanecem, assim, em uma relação de troca dialética, mas permanece inconsciente para os atores. Para o proletariado, por sua vez, não existe tal forma duplicada. O trabalhador individual pode se compreender em sua vida cotidiana e em suas decisões pessoais como sujeito, mas mesmo ali, onde ele aparece como sujeito de sua própria vida através das satisfações de suas necessidades enquanto consumidor, esta aparência se mostra como ilusão. Suas atividades são momentos objetivos da produção e reprodução do capital, e nele se consuma um processo de abstração. O tempo de trabalho é, para ele, a forma objetiva de sua mercadoria vendida, a força de trabalho, e ao mesmo tempo, a forma de existência determinada de seu ser como sujeito, como homem.185 O caráter reificado das formas de aparência imediatas da sociedade capitalista é elevado, para o proletariado, a seu grau máximo. Ao mesmo tempo, contudo, há também a possibilidade de o pensamento proletário superar essa imediatidade. Por um lado, o trabalhador é colocado, em seu ser social, do lado do objeto de forma imediata e completa: ele aparece a si mesmo como objeto e não mais como ator. Por outro lado, ele vende sua força de trabalho e, com isso, objetiva o total de sua personalidade (Gesamtpersönlichkeit). Surge assim, no homem objetivante (objektivierenden) enquanto mercadoria, uma divisão entre objetividade e subjetividade. Essa situação possibilita o “tornar-se-consciente” (“Bewusstwerdens”).186 O trabalhador só pode se tornar consciente de seu ser social, afirma Lukács, se se tornar consciente de si mesmo enquanto mercadoria.187 Trata-se aqui de um ponto de inflexão crucial de HCC. Lukács compreende a chance histórica de o proletariado cumprir sua missão ao conhecer, por um lado, os processos históricos e, por outro, superar as formações capitalistas. As possibilidades para tanto são dadas com o fato de que a classe proletária é, ao mesmo tempo, objeto da exploração capitalista e também consciência da mercadoria, ou seja, consciência da reificação, e como esta permeia toda a estrutura da sociedade, o proletariado pode então apreender a sociedade como totalidade concreta. Formulando de maneira metafórica: à medida que a consciência de classe do proletariado experimenta e percebe em seu 185 Ibidem., loc.cit. Ibidem., p. 87-88. 187 HCC, p. 340. 186 62 próprio corpo a mercadoria-corpo como corpo-mercadoria (“Warenkörper als Körperware”) que é comercializada no mercado, ele se torna então o sujeito-objeto da história. Lukács vê aqui a possibilidade do desvendamento geral das formas fetichistas da estrutura da mercadoria. O autoconhecimento do trabalhador como mercadoria poderia ser mais bem descrito não como o conhecimento que ele tem sobre sua existência como mercadoria, mas sim como a personificação dessa relação. Esta autocompreensão, como Lukács ressalta em vários pontos de HCC, não é consciência “de” um objeto. Ela é, antes de tudo, uma autocompreensão essencialmente prática, que traz uma mudança estrutural ao objeto de seu conhecimento.188 Esta autocompreensão do próprio trabalhador enquanto mercadoria torna possível visualizar em que consiste o caráter especial objetivo do trabalho proletário: este reside em seu valor de uso, em sua capacidade de produzir mais-valia. Sem esta consciência, o caráter objetivo desta mercadoria seria apenas uma força motriz cega do desenvolvimento histórico. Isso revela, ao mesmo tempo, sua objetividade específica: ela é uma relação entre homens, mas escondida, encoberta, ocultada por relações entre coisas. A percepção de que sob essa crosta quantificada subsiste ainda um núcleo vivo desvenda o caráter fetichista de toda e qualquer mercadoria. O proletário, ao conhecer a si mesmo, conhece a essência, a estrutura do modo de produção capitalista.189 O ser imediato do trabalhador enquanto simples objeto do processo de produção se revela, no entanto, através de inúmeras mediações. Lukács está consciente de que esta autocompreensão do trabalhador sobre si mesmo é, inicialmente, apenas implícita. Enquanto o trabalhador ainda não consegue se elevar, de maneira prática, desta situação de objeto, ele é então a “mercadoria consciente de si”: ele é o autoconhecimento, o autodesvendamento de uma sociedade que se estabelece pela produção e troca de mercadorias.190 Neste momento desempenha aqui a categoria de totalidade um papel essencial. Para Lukács, o problema determinante reside na capacidade do pensamento proletário de conhecer a sociedade enquanto um todo. A essência do método dialético reside, para ele, no fato de que a totalidade está presente e pode ser desenvolvida a partir de cada momento apreendido de forma dialética. A mais simples mercadoria, por exemplo, traz em si todo o segredo da forma-dinheiro. Os momentos particulares não são simples 188 HAHN, 2017, p. 87-88. Idem., p. 88-89. 190 Idem., p. 89. 189 63 peças de um todo mecânico, mas oferecem a possibilidade de, a partir de si, desenvolver a totalidade do conteúdo social. Cada momento é um ponto de passagem para a totalidade.191 Tendo em vista o lugar que ocupa no processo de produção, apenas o proletariado pode desenvolver o “tornar-se-mercadoria” em consciência de classe revolucionária. A estrutura fundante da reificação pode ser encontrada em todas as formas sociais capitalistas, mas apenas no proletariado ela se torna clara e capaz de ser revelada. Em outras classes sociais ou áreas profissionais de atuação, esta estrutura se esconde atrás de fachadas mistificadoras, e esta aparência se torna tanto mais enganosa, quanto mais fundo a reificação penetra na alma do indivíduo que se vende como mercadoria. O processo de reificação, de “tornar-se-mercadoria”, pode deformar e encrustar a alma do trabalhador, mas tão somente enquanto ele não se rebelar contra isso, enquanto ele não permitir que sua essência humana-espiritual se torne também uma mercadoria. Já o trabalhador de escritório, por exemplo, reificado na burocracia, se torna cada vez mais mecanizado e coisificado, até ser completamente abstraído em mercadoria. Gregor Samsa, protagonista de A metamorfose, de Franz Kafka, seria o que Lukács chamaria na literatura de “tipo ideal”, e representa o trabalhador completamente atingido pela reificação. Gregor acorda certo dia transformado em um monstruoso inseto, mas sua vida interior permanece exatamente como antes. Ele não parece admirado de ter se transformado em um inseto, continua tendo as mesmas preocupações de sempre, como com seu emprego e sua família, mas agora não é apenas seu interior que está coisificado: a reificação de sua alma se exteriorizou e tomou também seu corpo, de modo que por fora ele é um inseto, mas por dentro, continua um ser humano como antes. Gregor Samsa se torna, usando a expressão de Feenberg 192, um híbrido bizarro de humano e não-humano. Ele é uma expressão metafórica do indivíduo reificado, alienado, tornado coisa, assim como a mercadoria consciente de si. 191 192 Ibidem., loc.cit. FEENBERG, 2011, p.180. 64 CAPÍTULO 4. O PROLETARIADO COMO SUJEITO-OBJETO IDÊNTICO O problema da reificação é, segundo Mayer 193, um problema de sujeito e objeto, e uma herança da filosofia clássica alemã. Diz respeito às condições de possibilidade do conhecimento, o qual se expressa na relação entre consciência e ser, idealidade e realidade, e na relação do eu com o seu contraposto (Gegenüber). Para articular o capítulo anterior, no qual falamos sobre a mercadoria consciente de si, com a unidade sujeito-objeto no proletariado como sujeito histórico, faremos inicialmente uma breve exposição das fontes do idealismo alemão com as quais Lukács dialoga, sobretudo Hegel, e apresentaremos posteriormente sua contribuição para o tema. Ao final, falaremos também sobre as possibilidades de superação da reificação. 4.1 A constituição do sujeito histórico em Hegel A identidade sujeito-objeto foi o conceito hegeliano mais influente na redação de História e consciência de classe. No prefácio de 1967, Lukács afirma ter começado a estudar Marx pelas lentes de Hegel no período da Primeira Guerra Mundial, e que esse viés interpretativo o acompanhou ainda por muitos anos, até à época de publicação de HCC. Ao mesmo tempo em que se apropriava do marxismo em seu percurso intelectual, outras correntes teóricas coexistiam lado a lado com esta apropriação da obra de Marx, de modo que Lukács se compara ao Fausto, de Goethe, que abrigava duas almas eu seu peito.194 Em sua autocrítica Lukács avalia que tentou, em alguns aspectos195, ser mais hegeliano que o próprio Hegel (“ein Überhegeln Hegels”). Ao redigir HCC, as principais obras de Marx que explicitavam a relação deste com Hegel ainda não haviam sido publicadas. Este é o caso dos Manuscritos econômico-filosóficos, por exemplo, publicado apenas em 1932. Lukács conseguiu reconstruir a relação entre Marx e Hegel de maneira independente, sem acesso aos principais textos que deixavam clara a influência de um sobre o outro. 193 MAYER, 2014, p. 10. HCC, p. 4. 195 HCC, p. 25. 194 65 Em seus Manuscritos, por exemplo, Marx afirma que a grandeza da Fenomenologia de Hegel reside em que nela a autocriação do homem é apreendida como um processo que se dá através da dialética da negatividade como princípio motor e criador, pela objetivação (Vergegenständlichung) como desobjetivação (Entgegenständlichung), como exteriorização e suprassunção dessa exteriorização. Hegel considera os homens como resultado de seu próprio trabalho, e desenvolve sua reflexão em diálogo com os outros principais nomes do idealismo alemão, em especial Kant, Fichte e Schelling. Fichte observa que o primeiro princípio da filosofia é um sujeito autoconsciente, um eu. Este eu pode ser autoconsciente apenas na medida em que se distingue do mundo, ou do não-eu, o que se configura como o segundo princípio da filosofia. Ele então aponta que há apenas duas formas em que o eu e o não-eu podem ser determinados: ou o não-eu pode determinar o eu (o mundo pode afetar o sujeito), ou o eu pode determinar o não-eu (o sujeito pode afetar o mundo). Neste segundo modo de determinação, o eu funciona como uma vontade, um sujeito consciente que busca efetivar seus fins no mundo. Já no primeiro, o eu funciona como um “intelecto”, um sujeito consciente registrando os impactos do mundo sobre si. Destes dois princípios emerge, no entanto, uma contradição. Ela acontece quando a consciência coloca (setzen) a atualidade do não-eu (o primeiro princípio) e desloca o eu como o único objeto da consciência, o que havia sido feito no primeiro princípio. Desta forma, se a consciência pode colocar a atualidade de apenas um objeto, então o primeiro e o segundo princípio são incompatíveis. Fichte desfaz a tensão esclarecendo que a consciência é capaz de colocar tanto o eu quanto o não-eu simultaneamente, e atribuindo atualidade a ambos. Esta reconciliação, na qual um é limitado ou determinado pelo outro, é a síntese do eu e do não-eu. O método aplicado por Fichte para resolver esta tensão servirá de base para o subsequente desenvolvimento de sua filosofia: ela se movimenta através da tríade “teseantítese-síntese”. Embora erroneamente atribuído a Hegel e também a Marx, este método busca unir, em uma grande conjunção, características contrárias que permanecem após a anulação dos contrários, repetindo o processo até que encontre opostos que não possam mais ser conciliados.196 196 DUDLEY, 2007, p. 90. 66 Schelling, por sua vez, considera que subjetividade e objetividade são dois modos de manifestação de uma mesma substância.197 O primeiro passo para a filosofia acontece tão logo o homem se defronta com o mundo externo, deixando o absoluto e cindindo o que ele chama de nosso “ser originário” ou “essência originária”. Neste ato, o homem afasta o que a natureza havia fundido para sempre. Esta separação, contudo, não isola apenas o objeto de sua percepção e o conceito de sua imagem, mas também o próprio homem de si mesmo, ao se tornar objeto de si. Com isso é eliminado o mecanismo de reflexão humana, o equilíbrio da consciência, no qual “sujeito e objeto estão intrinsecamente ligados”. Na medida em que o indivíduo representa o objeto, são objeto e representação um e o mesmo. Schelling tenta retomar uma metafísica já criticada por Kant, e postula um “Eu absoluto” que, como ele mesmo admite, não possui uma definição clara. No lugar de “como são possíveis juízos sintéticos a priori?”, Schelling pergunta: “como pode o Eu absoluto sair de si e opor a si um não-eu?”. Toda a filosofia de Schelling lida, de certo modo, com a questão sujeito-objeto, haja vista que se trata, assim como em Fichte, de um sistema fechado no qual o ponto de chegada leva ao ponto de origem.198 Hegel faz um balanço da discussão entre Fichte e Schelling em As diferenças entre os sistemas de Filosofia de Fichte e Schelling. No prefácio desta obra, ele caracteriza a razão como a “identidade de sujeito e objeto”. Segundo Dudley199, o que o filósofo de Jena quer dizer com isso se torna evidente quando se observa o fato de que o uso dessa formulação ocorre no contexto de um engajamento direto com Kant, e particularmente com sua dedução transcendental das categorias. O objetivo da dedução kantiana foi mostrar que as categorias necessariamente utilizadas pelo sujeito pensante devem se aplicar também aos objetos do pensamento, o que, para Hegel, mostraria que existe uma “identidade de sujeito e objeto”. Esta identidade em Kant, no entanto, seria apenas uma identidade “subjetiva” de sujeito e objeto, não sendo ainda o que Hegel define como “razão”. Se a dedução transcendental de Kant é bem-sucedida, o que ela faz é demonstrar a identidade entre o sujeito e o objeto enquanto fenômeno, ou seja, o objeto como ele aparece, mas tal dedução não pode demonstrar a identidade entre o 197 Esta é a segunda fase de seu pensamento, na qual se aproxima de Espinosa. DUDLEY, 2007, p. 131. 199 Ibidem., p. 144. 198 67 sujeito e o objeto-em-si. 200 A contribuição de maior fôlego de Hegel para o tema será também sua principal obra, a Fenomenologia do espírito. A Fenomenologia pode ser considerada uma tentativa de superar o dualismo sujeito-objeto.201 Ela opera através da exposição das contradições internas desta relação, examinando uma sequência de “formas da consciência” ou maneiras de compreender a relação entre o sujeito conhecedor e objeto do conhecimento. Nos três primeiros capítulos, a consciência se interessa pelo ser objetivo, no qual ela busca compreender sua racionalidade (no mundo orgânico e inorgânico). Ela vê o objeto como independente de si, como uma verdade em si. Posteriormente, ao tratar das leis lógicas e psicológicas, a razão procura uma identidade imediata com o ser objetivo, empírico, palpável, o que acabou levando à tese — criticada por Hegel — da frenologia202, na qual a consciência se identificava com o osso do crânio. Apenas no final desta experiência ela fará a passagem à consciência de si, percebendo que a consciência do objeto é consciência de si mesma e a consciência de si mesma é consciência do objeto.203 Relevante para a reflexão de Lukács é o movimento da consciência que a transforma, de razão observadora, para razão que age (Tätige Vernunft), e a tensão entre razão ativa individual e razão ativa universal. Na primeira etapa do desenvolvimento da razão ativa individual, a consciência faz um esforço para se afirmar em uma outra consciência de si, para ser reconhecida por ela, à maneira como já havia acontecido na dialética do senhor e do escravo. O senhor procurava se afirmar diante do escravo, ser reconhecido por ele, mas sem querer reconhecê-lo. Tratou-se de uma imposição de um indivíduo sobre outro.204 A consciência, contudo, só será livre na medida em que partilhar de uma existência comum, ao invés de querer se afirmar impondo sua efetividade sobre outras consciências. A liberdade não significa o isolamento da consciência de si, mas a convivência com outras. 200 Ibidem., loc.cit. Ibidem., p. 182. 202 A frenologia acreditava, por exemplo, ser capaz de determinar o caráter de um indivíduo através do formato de seu crânio. Isso se assemelha à tese surgida posteriormente de que seria possível identificar características morais de um indivíduo pelo exame de seu DNA. Uma aplicação prática desta perspectiva, defendida por forças políticas de direita, seria que pessoas com tendência ao crime poderiam ser detectadas — e talvez até mesmo eliminadas — tão cedo quanto possível, ainda no início da gestação. 203 VIEIRA, 2010. 204 Ibidem. 201 68 Tomemos em sua realidade essa meta [alcançada]: o conceito, que já surgiu para nós — isto é, a consciência-de-si reconhecida, que tem em outra consciência-de-si livre a certeza de si mesma, e aí precisamente encontra sua verdade. Destaquemos esse espírito ainda interior como substância já amadurecida em sua existência. O que vemos patentear-se nesse conceito é o reino da eticidade. Com efeito, esse reino não é outra coisa que a absoluta unidade espiritual dos indivíduos em sua efetividade independente. É uma consciência-de-si universal em si, que é tão efetiva em uma outra consciência, que essa tem perfeita independência — ou seja, é uma coisa para ela. [Tão efetiva] que justamente nessa independência está cônscia da sua unidade com a outra, e só nessa unidade com tal essência objetiva é consciência-de-si. Essa substância ética, na abstração da universalidade, é apenas lei pensada; mas, não menos imediatamente, é a consciência-de-si efetiva ou o ethos. Inversamente, a consciência singular só é esse Uno essente porque em sua própria singularidade está cônscia da consciência universal, como de seu [próprio] ser: porque seu agir e sua existência são o ethos universal.205 No parágrafo acima Hegel articula a relação entre singularidade e universalidade. A razão universal, ou substância real, se manifesta de duas formas: geral e abstrata. De forma abstrata, ela aparece enquanto lei pensada, enquanto as leis que regularão aquela comunidade espiritual, que governarão as relações individuais. Enquanto lei pensada, a substância ética é algo abstrato, separado da vida concreta da consciência de si, e pode ser efetivada apenas nas ações do indivíduo. Para de fato existir, ela precisa ser assumida e praticada pela consciência de si individual, pois a lei se torna efetiva quando é respeitada. A substância ética possui dois momentos: o abstrato e universal, e o concreto e singular. A consciência singular é uma consciência universal ao assumir, em sua singularidade, o ethos universal. Este assumir consiste em seu operar, em seu agir. Ela não é mais, neste momento, considerada em seu aspecto natural, mas entra no reino do espírito, no qual sua independência individual e sua liberdade são conservadas, preservadas. Hegel afirma que estes dois aspectos se efetivam na vida de um povo: É na vida de um povo que o conceito tem, de fato, a efetivação da razão consciente-de-si e sua realidade consumada: ao intuir, na independência do 205 HEGEL, 1992, p. 222. Tradução modificada. 69 Outro, a perfeita unidade com ele; ou seja, ao ter por objeto, como meu serpara-mim, essa livre coisidade de um outro, por mim descoberta — que é o negativo de mim mesmo. A razão está presente como fluida substância universal, como imutável coisidade simples, que igualmente se refrata em múltiplas essências completamente independentes, como a luz nas estrelas, em seus inúmeros pontos rutilantes. Em seu absoluto ser-para-si, tais essências não só em si se dissolvem na substância independente simples, mas ainda são para si mesmas; cônscias de serem tais essências simples singulares, porque sacrificam sua singularidade e porque essa substância universal é sua alma e essência. Do mesmo modo, esse universal é, por sua vez, o agir dessas essências como singulares; ou a obra por elas produzida.206 A alma e essência das essências simples singulares são o próprio coletivo, ao qual elas se sacrificam. Este sacrifício, contudo, não é simplesmente sua própria anulação, mas a conquista de sua liberdade. Na medida em que ele é negado para si, é dada a positividade da comunidade. O agir e o atarefar-se puramente singulares do indivíduo referem-se às necessidades que possui como ser-natural, quer dizer, como singularidade essente. Graças ao meio universal que sustém o indivíduo, graças à força de todo o povo, sucede que suas funções inferiores não sejam anuladas, mas tenham efetividade. Na substância universal, porém, o indivíduo não só tem essa forma da subsistência de seu agir em geral, mas também seu conteúdo. O que ele faz, é o gênio universal, o ethos de todos. Esse conteúdo, enquanto se singulariza completamente, está em sua efetividade encerrada nos limites do agir de todos. O trabalho do indivíduo para [prover as] suas necessidades, é tanto satisfação das necessidades alheias quanto das próprias; e o indivíduo só obtém a satisfação de suas necessidades mediante o trabalho dos outros. Assim como o singular, em seu trabalho singular, já realiza inconscientemente um trabalho universal, assim também realiza agora o [trabalho] universal como seu objeto consciente: torna-se sua obra o todo como todo, pelo qual se sacrifica, e por isso mesmo dele se recebe de volta. Nada há aqui que não seja recíproco, nada em que a independência do indivíduo não se atribua sua significação positiva — a de ser para si — na dissolução de seu ser-para-si e na negação de si mesmo.207 A interpenetração entre singular e universal se manifesta através das carências do indivíduo. Alimentação, vestuário e moradia são exemplos das necessidades ou carências naturais de todo o povo. O trabalho, que já havia sido abordado antes na 206 207 HEGEL, 1992, p. 222. HEGEL, 1992, p. 223. 70 Fenomenologia, é retomado por Hegel como exemplo da reciprocidade entre universal e singular. O indivíduo obtém a satisfação de suas carências através daquilo que o povo lhe oferece e lhe permite fazer, e na medida em que este indivíduo supre assim suas carências naturais, ele também atende aquilo que é necessário para a sobrevivência de todo o povo. O trabalho é a plena realização do que o indivíduo é e carece, assim como efetiva aquilo que é o próprio povo, aquilo que é necessário para a sobrevivência de toda a comunidade. Há aqui uma relação entre negação e positivação. Na medida em que o indivíduo é negado em seu ser para si, é realizada a positividade da comunidade. A positividade da comunidade pressupõe este trabalho negativo do indivíduo, já que o trabalho realiza esta obra de transformação, de mudança. Na continuação deste parágrafo Hegel fala ainda de uma linguagem universal: Essa unidade do ser para outro — ou do fazer-se coisa — com o ser-para-si, essa substância universal fala sua linguagem universal nos costumes e nas leis de seu povo. No entanto, essa imutável essência não é outra coisa que a expressão da individualidade singular que aparenta ser-lhe oposta. As leis exprimem o que cada indivíduo é e faz; o indivíduo não as conhece somente como sua coisidade objetiva universal, mas também nela se reconhece, ou: [conhece-a] como singularizada em sua própria individualidade, e na de cada um de seus concidadãos. Assim, no espírito universal, tem cada um a certeza de si mesmo — a certeza de não encontrar, na efetividade essente, outra coisa que a si mesmo. Cada um está tão certo dos outros quanto de si mesmo. Vejo em todos eles que, para si mesmos, são apenas esta essência independente, como Eu sou. Neles vejo a livre unidade com os outros, de modo que essa unidade é através dos Outros como é através de mim. Vejo-os como me vejo, e me vejo como os vejo.208 Esta linguagem universal é constituída pelos costumes e leis de um povo que mostram a unidade de um ser para o outro e um ser para si. Esta linguagem é universal e singular ao mesmo tempo, pois tanto o indivíduo quanto a coletividade falam a mesma língua. É uma linguagem de comum acordo, não de confrontação. É a sinfonia das vozes do indivíduo e da coletividade. 208 HEGEL, 1992, p. 223. 71 Por conseguinte, em um povo livre, a razão em verdade está efetivada: é o espírito vivo presente. Nela, o indivíduo não apenas encontra seu destino, isto é, sua essência universal e singular expressa e dada como coisidade, senão que ele mesmo é tal essência e alcançou também seu destino. Por isso os homens mais sábios da Antigüidade fizeram esta máxima: que a sabedoria e a virtude consistem em viver de acordo com os costumes de seu povo.209 A razão está agora realizada em um povo livre, sendo o espírito vivo, presente. Tanto a dimensão individual quanto a coletiva estão satisfeitas, e o indivíduo alcança sua determinação, aquilo que de fato ele é. A vida virtuosa ou sábia consiste em viver de acordo com os costumes, com o ethos de seu povo. Esta situação, no entanto, é apenas ideal. Esta é uma relação em que o ethos de um povo não está degenerado e expressa a própria razão. Esta unidade imediata entre o individual e o coletivo é uma tensão a ser resolvida nas próximas experiências da consciência. No desenvolvimento que examinamos até aqui — desde o momento em que a consciência vê a si mesma como coisa e a coisa como a si mesma, até o estágio em que ela se realiza em um povo —, temos como que um movimento arquetípico de formação da autoconsciência da mercadoria até sua efetivação na consciência de classe. O proletário, ao ser reduzido no modo de produção capitalista a apenas um de seus aspectos — sua força de trabalho —, se encontra sujeito a todas as leis que regulam a compra e venda de toda e qualquer outra mercadoria-objeto. Ele precisa ir ao mercado para vender uma mercadoria que lhe pertence, mas esta mercadoria é inseparável de sua própria existência. Se há muita oferta de mão-de-obra, seu valor é reduzido. Se há muita demanda, seu valor se eleva. O preço que ele consegue por essa mercadoria, contudo, afeta diretamente sua própria subsistência. Ela não é algo externo, independente, sem relação com sua vida. Caso ele não consiga vendê-la, sua própria existência está ameaçada — ele não terá roupas, nem comida, nem abrigo. Neste momento ele vê então a si mesmo como coisa — como uma mercadoria — e essa coisa como a si mesmo. O papel predominante do trabalho na formação da consciência também encontra paralelos tanto na obra de Marx, quanto na obra de Lukács. O trabalho é responsável pela relação entre singular e universal, e realiza (efetiva) aquilo que o indivíduo é, ao mesmo tempo em que fornece à comunidade o que ela necessita para sua sobrevivência. No processo de formação da autoconsciência é fundamental a mediação do trabalho, que desempenha um papel negativo — o indivíduo se reduz a coisa — e também 209 Ibidem., p. 223-224. 72 positivo. O indivíduo nega a si mesmo ao trabalhar para a comunidade — ou para o capitalista —, mas recebe desta aquilo que precisa para sua própria manutenção e não é produzido por si próprio. Em sua obra O jovem Hegel, Lukács afirma que não é possível compreender as noções de Hegel sobre vida ética, sociedade civil (que inclui os mecanismos institucionais do mercado) e suas relações do Estado sem reconhecer a apropriação de Hegel das teorias modernas da economia política, assim como ideais comunitários de uma vida ética compartilhada (Sittlichkeit) inspiradas da filosofia política clássica grega.210 Quando Marx e Lukács localizam, portanto, a efetivação hegeliana da razão em um ethos na própria efetividade histórica, o salto ou a “inversão materialista” de Hegel parece bem menor. Eles substituem o conceito analiticamente vago de “povo” pelo de classe social. Por isso Marx, ao falar sobre a consciência de classe, afirma que é ao partilhar de uma vida e costumes comuns — ou seja, de um determinado ethos —, que a consciência de classe tem sua origem. Ao descrever a formação do proletariado em Miséria da filosofia, Marx211 afirma que a concentração de um grande número de operários nas grandes fábricas das cidades foi o que primeiramente uniu o proletariado nos primórdios do capitalismo. Nessa primeira forma de união, contudo, o proletariado se constituía apenas como uma classe em si, ou seja, era uma classe em relação ao capital. Para que o proletariado se tornasse uma classe para si mesmo, seria necessário que ele elevasse “a necessidade econômica de sua luta de classe ao nível de uma vontade consciente, de uma consciência de classe ativa”.212 No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels fazem uma observação semelhante, afirmando que um dos fatores que contribuíam em sua época para a crescente união do proletariado de diversas localidades, até que este se constituísse em um proletariado nacional, era o desenvolvimento dos novos meios de comunicação: O resultado real de suas lutas não é a vitória imediata, mas a união cada vez maior dos trabalhadores. Ela é promovida através dos crescentes meios de 210 SINNERBRINK, 2007, p.63. MARX, 1977, p. 181. 212 LUKÁCS, 2012, p. 184. 211 73 comunicação desenvolvidos pela grande indústria e coloca em contato uns com os outros os trabalhadores de diferentes localidades.213 A concentração de operários em grandes fábricas e o contato destes com outros mais distantes através dos meios de comunicação foram dois aspectos que contribuíram para formar, desenvolver, estabelecer o ethos próprio do proletariado. A vida comum dentro e fora das plantas, o compartilhamento das mesmas funções ou de ofícios semelhantes, a situação social de exploração, de desamparo e o mesmo nível econômico são alguns dos fatores que constituem o ethos de uma classe social. A partir deste solo concreto, material, econômico, forma-se uma visão de mundo comum e costumes semelhantes, de modo que um trabalhador, ao olhar para seus companheiros, pode dizer: “Vejo-os como me vejo, e me vejo como os vejo”. 4.2 O sujeito-objeto idêntico se efetiva na história A relação entre sujeito e objeto que se configurou na forma da substância ética não está livre de contradições. O movimento dialético da Fenomenologia vai prosseguir opondo saber e verdade em níveis cada vez mais elevados, e em sua caminhada para o autoconhecimento, a Ideia exterioriza-se, aliena-se, objetiva-se, sai de si, divide-se em sua peregrinação para, no momento final, superar as divisões e reencontrar-se, reconhecendo-se como um sujeito-objeto idêntico. Hegel chama esta figura de “razão”, e ela se refere precisamente a um aspecto que Kant negava: para o filósofo de Jena, as determinações constitutivas do pensamento são as determinações constitutivas dos seres em si mesmos. Para estabelecer a verdadeira identidade sujeito-objeto, segundo Hegel, ambos são estabelecidos como sujeito-objeto; e cada um por si é, daqui em diante, capaz de ser o objeto de uma ciência particular. Cada uma dessas ciências exige abstração do princípio da outra. No Sistema de Inteligência os objetos não são nada em si, a natureza existe apenas na consciência, e se abstrai daí que o objeto é uma natureza e que a inteligência é condicionada através dele. Mas se esquece no sistema da natureza que a natureza é um Consciente, e que as determinações ideais, as quais a natureza possui na ciência, são nela igualmente imanentes.214 213 214 MARX; ENGELS, 1977, p. 471. HEGEL, 1970, p. 99. 74 Em HCC, todavia, esta construção da Fenomenologia do espírito encontra uma “autêntica efetivação ontológica no ser e na consciência do proletariado”, e Lukács oferece uma justificativa filosófica à transformação histórica do proletariado na luta por uma sociedade sem classes por meio da revolução.215 Segundo Frederico216, Lukács reproduz o autodesenvolvimento da Ideia no plano social. O proletariado é o sujeito-objeto idêntico do processo de desenvolvimento histórico pois o autoconhecimento do proletariado é, ao mesmo tempo, o conhecimento objetivo da essência da sociedade. Enquanto persegue os seus fins de classe, o proletariado realiza de maneira consciente os fins — objetivos — do desenvolvimento da sociedade, os quais, sem a sua intervenção consciente, teriam de permanecer como possibilidades abstratas e barreiras objetivas.217 A identidade sujeito-objeto do proletariado em Lukács é uma tradução do conceito hegeliano de Espírito (Geist). Em Hegel, o processo pelo qual o Espírito constitui objetividade e subjetividade é um processo histórico, fundamentado nas contradições internas da totalidade, que se desenrola dialeticamente. O processo histórico de auto-objetivação, de acordo com Hegel, é de autoalienação, e leva à reapropriação pelo Espírito daquilo de que ele havia sido alienado no curso deste desenvolvimento. Isso é, o desenvolvimento histórico tem um ponto final, que é a realização do Espírito por si mesmo como um Sujeito total e totalizante. Neste sentido, Lukács identifica o proletariado como este sujeito, o qual constitui o mundo social e a si mesmo através de seu trabalho. Segundo Postone218, ao derrubar a sociedade capitalista o proletariado realizaria si próprio como o sujeito histórico. A tarefa que Lukács se propõe é desenvolver, ampliar, continuar a reflexão sobre o papel histórico mundial do proletariado já iniciada por Marx e Engels. Os autores do Manifesto comunista derivaram a função e o papel desta classe das contradições do modo de produção capitalista, principalmente do antagonismo de sua situação econômica e social. A descoberta das forças motrizes da história e da transição do capitalismo para o socialismo se articula a uma análise histórica concreta desta situação.219 215 FREDERICO, 1997, p. 14. FREDERICO, 1997, p. 14. 217 HCC, p. 309. 218 POSTONE, 2009, p. 68. 219 HAHN, 2017, p. 65. 216 75 Marx afirma em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, por exemplo, que a dissolução da ordem existente deriva do próprio Dasein, da própria existência do proletariado: “Quando o proletariado anuncia a dissolução da ordem mundial até então existente, exprime apenas o segredo de sua própria existência, pois ele é a dissolução efetiva dessa ordem mundial”.220 E juntamente com Engels, em A Sagrada Família, afirma que a alienação atinge tanto a burguesia quanto o proletariado, mas com uma diferença: A classe possuidora e a classe do proletariado apresentam a mesma autoalienação humana. Mas a primeira sente-se à vontade e confirmada nessa autoalienação, reconhece a alienação como seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana. A segunda se sente aniquilada na alienação, percebe nela sua impotência e a realidade de uma existência desumana.221 A noção hegeliana de “alienação” utilizada por Marx na passagem acima é mencionada diversas vezes em suas obras de juventude, sendo também o conceito básico a partir do qual Lukács chegou à reificação. Hegel cometeu, no entanto, um erro primordial, segundo Lukács, ao ter tomado objetificação e alienação como equivalentes. Ele identificou corretamente o trabalho como um dos principais elementos na constituição da subjetividade moderna, como na dialética do senhor e do escravo. A objetificação da força humana através do trabalho produtivo permitiu ao escravo reconhecer sua liberdade como refletida na realidade social. Ao mesmo tempo, no entanto, Hegel também demonstrou como a objetificação resulta do fato de produtos de nossa atividade tomarem vida própria como parte da objetividade social na qual nos reconhecemos como membros da comunidade. Para Hegel, todas as nossas ações, seja através da fala ou do trabalho, estão sujeitas às normas e interpretações de nossa comunidade, não havendo, portanto, expressão “privada” de nossas subjetividades ou desejos. 222 Hegel confunde a objetificação em geral com o sentido especifico de alienação característico da modernidade. Isso tornou a alienação uma característica inescapável da atividade humana, consequência da simples objetificação ou humanização da natureza através do trabalho produtivo. O que Lukács e Marx salientam, no entanto, são as 220 MARX, apud LUKÁCS, 2012, p. 308. MARX, apud LUKÁCS, 2012, p. 309. 222 SINNERBRINK, 2007, p. 64. 221 76 dimensões negativas da alienação, às quais Hegel pensava poder superar através do pensamento ou do espírito absoluto. Para Hegel, a alienação é uma característica estrutural da história, e a divisão entre sujeito e objeto pode ser superada apenas pelo pensamento. Para Marx, por outro lado, a alienação significa um estranhamento de nossa própria essência humana enquanto seres sociais e produtivos, e este conflito entre sujeito e objeto pode ser superado apenas pela transformação da ordem econômica e social. Contra Hegel, Lukács afirma que nem toda objetificação pode ser considerada alienação, seja no sentido de um estranhamento de seu potencial humano fundamental, ou no sentido de que a relação entre sujeito e objeto permanece fundamentalmente conflituosa. A objetificação existe em diferentes formações históricas e sociais, é uma característica fundamental da racionalidade autoconsciente, pois todas as formas de atividade humana envolvem uma objetificação de capacidades humanas. A alienação, por outro lado, é uma forma específica da objetificação sob as condições históricas do capitalismo, nas quais predomina a produção e a circulação de mercadorias como principais formas de intercâmbio entre os homens. Apenas este tipo de objetificação produz uma alienação patológica.223 A alienação a que o proletariado está submetido não é apenas intelectual. Ela surge de sua situação material concreta enquanto assalariado, explorado, subjugado. A libertação desta situação, portanto, não pode se dar unicamente através de um ato mental ou de consciência. A reflexão de Lukács, que havia começado de maneira econômico-sociológica, culmina na filosofia e na teoria do conhecimento. A mera discussão epistemológica, contudo, deve ser superada, pois o campo da filosofia e sua discussão sobre as possibilidades do conhecimento torna-se cada vez mais estreito, incapaz de apreender o movimento dialético da história.224 Este é o ponto de passagem da filosofia teórica para a filosofia prática, uma tendência que pode ser observada claramente no idealismo alemão, sobretudo em Kant (com sua passagem da Crítica da razão pura para a Crítica da razão prática) e também em Fichte (com seu sujeito como pura atividade). A necessidade de se resolver em uma prática problemas identificados na teoria é a razão de Lukács dedicar grande parte de sua discussão sobre a reificação e a constituição do sujeito-objeto idêntico às chamadas “antinomias do pensamento 223 224 Ibidem., loc.cit. HAHN, 2017, p. 65. 77 burguês” e relacioná-las ao “primado da filosofia prática”, os dois próximos temas deste capítulo. 4.3 As antinomias do pensamento burguês Lukács relaciona o nascimento da filosofia crítica moderna ao surgimento histórico da reificação. Isso se localiza no momento em que a estrutura da mercadoria se generaliza e se torna a forma dominante de intercâmbio e relação entre os homens. Os problemas específicos dessa filosofia, portanto, podem ser identificados como oriundos da estrutura de consciência que espelha esta base material. Um dos principais problemas da filosofia moderna diz respeito a “não mais aceitar o mundo como algo que surgiu independentemente do sujeito cognoscitivo”, mas como produto do próprio sujeito.225 Tal conclusão vem de uma linha de desenvolvimento que teve sua forma mais acabada em Kant, sendo que este tirou as conclusões de uma maneira mais radical que seus predecessores e representou um grande avanço teórico em relação ao racionalismo anterior.226 Outra característica fundamental dessa nova filosofia é sua tendência a tomar os métodos da matemática e da geometria como exemplos na construção de objetos a partir de condições formais de uma objetividade em geral. Lukács afirma que não é de modo algum evidente por qual razão o entendimento humano chegou a compreender tais sistemas de formas como sua própria essência, sendo simplesmente aceitos. O sinal característico de toda essa época, afirma Lukács, seria a equivalência ingênua entre o conhecimento racional, formal e matemático, de um lado, e o “nosso” conhecimento de outro. E este conhecimento formal e racional seria unificador, ao contrário do pensamento medieval, que dividia o mundo em sublunar e supralunar, e com o qual o racionalismo moderno travou combate quando de seu surgimento. O racionalismo, no sentido de um sistema formal, existiu nas mais diferentes épocas. A diferença entre o racionalismo moderno e os antigos é que estes se orientavam no sentido de descobrir apenas aqueles aspectos dos fenômenos que podem ser apreendidos, produzidos, previstos e calculados, enquanto o moderno reivindica para si a descoberta do princípio unificador entre todos os fenômenos “que se opõem à vida do 225 226 HCC, p. 241. FEENBERG, 1981, p. 106. 78 homem na natureza e na sociedade”. Dessa forma, afirma Lukács, “os problemas ‘últimos’ da existência humana persistem numa irracionalidade que escapa ao entendimento humano”.227 Blumentritt228 afirma que Lukács, com essa afirmação, tem em vista especialmente o sistema kantiano, com o famoso conceito de coisa em si, o qual cumpre em Kant várias funções dependendo do contexto, mas sempre com a característica comum de constituir uma barreira à faculdade humana abstrata de cognição, de modo que, às vezes, este significa os limites das formas do conhecimento em contraposição ao conteúdo e, em outras, o conhecimento em contraposição à totalidade. Estes limites contrapostos ao conteúdo só podem ser eliminados através da supressão da separação entre teoria e prática. Coloca-se em relação à atividade prática a questão sobre a constituição do objeto, pois uma determinada percepção do conteúdo é produzida segundo um modelo. O recurso ao conceito de coisa em si é, tanto para Lukács quanto para Hegel, apenas preguiça intelectual (Denkfaulheit) e irracionalismo. A coisa em si teria, segundo Lukács, dois momentos: o da irracionalidade do conteúdo do conceito e o da incognoscibilidade da totalidade. Ambos os momentos estariam relacionados entre si, baseados um no outro. É necessário que as categorias tenham significado universal, mas isso não é possível diante da impossibilidade de se conhecer a totalidade.229 O idealismo alemão tentou resolver o problema da incompatibilidade do princípio da sistematização com a realidade de um conteúdo — o qual não pode ser derivado de um princípio da posição da forma — mediando a afirmação da total derivação e da inderivabilidade do que é dado.230 Levando isso em conta, Lukács evitou duas posições: 1) o racionalismo ingênuo e dogmático, que renuncia ao conteúdo irracional de um conceito, como se ele não existisse ou fosse indiferente, e 2) um realismo dogmático, segundo o qual o conteúdo em si (ansichseiende Inhalt) penetra na estrutura do próprio sistema de forma determinante. 231 A filosofia clássica não ficou, porém, neste nível superficial do dilema. Ela levou ao extremo a oposição lógica entre forma e conteúdo, “onde se encontram todas 227 Ibidem., p. 245. BLUMENTRITT, 1988. 229 Ibidem., loc.cit.. 230 Ibidem., loc.cit. 231 HCC, p. 253. 228 79 as oposições subjacentes à filosofia”. Segundo Lukács232, “sua persistência em construir um sistema racional, a despeito da irracionalidade [...] do conteúdo do conceito (do dado) devia necessariamente agir de maneira metódica no sentido de uma relativização dinâmica dessas posições.” Mesmo adotando o método matemático como modelo, a filosofia clássica não conseguiu superar esta oposição. Na matemática, o dado irracional, o conteúdo preexistente é como um estímulo para modificar e reinterpretar o sistema das formas, de modo que o conteúdo, que aparecia como “dado”, mostra-se a partir daí como “produzido”. Isso é, “a facticidade se torna em necessidade”.233 Este modelo matemático, porém, é adaptado às suas próprias exigências, de modo que a irracionalidade do ser ou da matéria é qualitativamente distinta daquilo que é chamado de matéria inteligível, não sendo este método, portanto, capaz de solucionar o dilema. Na matemática, enquanto a produção de um objeto coincide completamente com a possibilidade de compreende-lo racionalmente, na filosofia essa “produção” significa tão somente a possibilidade de compreensão racional do objeto. O modelo do método matemático, embora adequado para produzir objetos segundo suas exigências, mostra-se assim inadequado para a filosofia. Fichte foi, segundo Lukács, quem viu tal problema com mais clareza entre os representantes da filosofia clássica. Em sua A doutrina da ciência de 1804, o filósofo alemão afirma que quanto a essa produção, trata-se “da projeção absoluta de um objeto, de cujo surgimento não se pode prestar conta, e que contém, por conseguinte, uma obscuridade e um vazio no centro entre a projeção e o projetado”.234 Isso é, Fichte fala de uma projeção por hiato, de um “hiato irracional”, o que expressa claramente o caráter idealista deste problema: “Wo das Bewusstsein aufhört, ist der Tod” [“onde cessa a consciência, é a morte”].235 Essa problemática seria, de acordo com Lukács, a chave para se compreender os rumos tomados pela filosofia moderna: O reconhecimento incondicional desse problema e a renúncia em superá-lo conduziram diretamente às diversas formas da doutrina da ficção: recusar toda “metafísica” (no sentido de ciência do ser), fixar como objetivo a 232 HCC, p. 254. HCC, p. 255. 234 HCC, p. 256. 235 BLUMENTRITT, 1988. 233 80 compreensão dos fenômenos de setores parciais, particularizados e altamente especializados, com o auxílio de sistemas parciais, abstratos e de cálculo que lhes sejam perfeitamente adaptados sem, a partir disso, tentar sequer dominar de maneira unitária a totalidade do saber possível.236 O surgimento das ciências particulares, fragmentadas, especializadas e totalmente independentes entre si, decorre justamente do reconhecimento do caráter insolúvel desse problema. Segundo Lukács237, “cada ciência busca sua ‘exatidão’ precisamente nessa fonte”, deixando repousar em uma irracionalidade intocada o substrato material que subjaz em seu fundamento último, de modo a poder operar em um mundo fechado, sem obstáculos, com categorias racionais de fácil aplicação.238 O dilema citado anteriormente, isto é, essa dupla tendência da “renúncia em reconhecer a realidade efetiva como um todo e como ser”239, impõe-se filosoficamente no pensamento da sociedade burguesa, de modo a dominar cada vez mais os detalhes de sua existência social e submetê-los às formas de sua necessidade, mas perdendo, com isso, de maneira progressiva, a possibilidade de dominar a sociedade como totalidade e, desse modo, a “vocação para liderá-la”. Todo o problema das “antinomias do pensamento burguês”, segundo Feenberg240, estrutura-se em torno dessa questão da “irracionalidade” do conteúdo das formas racionais do entendimento humano. Esta distância, esta separação, este gap entre forma e conteúdo, o qual se constitui como o problema de fundo de toda a crítica lukacsiana à filosofia clássica e ao idealismo alemão, não pode ser resolvido simplesmente “forçando” o conteúdo às formas disponíveis. Esta limitação, continua Feenberg, nunca incomodou os físicos ou os geógrafos, mas acaba colocando problemas práticos à vida cotidiana, dos quais todos já tivemos alguma experiência: burocracias que não fazem exceções a circunstâncias individuais, leis cuja aplicação estrita gera patologias sociais, o trabalho tentando controlar as greves, o ensino que tem em vista provas ou exames, interfaces técnicas e manuais que requerem que os usuários pensem como se fossem engenheiros, etc. 236 HCC, p. 257. Ibidem., loc.cit. 238 Richard Westerman (2010, p. 114) observa que Edmund Husserl já relacionava o surgimento de uma atitude científica instrumental com a reificação: “To follow the model of the natural sciences almost inevitably means to reify consciousness.” (HUSSERL, Edmund, “Philosophy as a Strict Science”, in Phenomenology and the Crisis of Philosophy, trans. Quentin Lauer (New York: Harper, 1965), 103. 239 HCC, p. 259. 240 FEENBERG, 2011, p. 177. 237 81 Ernest Mandel241 observa, ainda neste sentido, como o caráter privado da apropriação capitalista se torna cada vez mais objetivo e abstrato na bolsa de valores, onde o domínio do capital assume sua forma mais geral e anônima. Aparentemente não são mais homens de carne e sangue que incorporam a exploração, mas “empresas”, sinônimos de forças objetivas e cegas. O senso comum, na prática, trata as formas não como absolutos, mas como recursos no contexto de atividades orientadas a um tipo de conteúdo. Lukács sustenta que a moderna sociedade capitalista é uma gigantesca instância de formas sociais e econômicas impostas cegamente ao conteúdo. A forma da mercadoria prevalece independentemente se ela é bem-sucedida em mediar a distribuição de valores de uso ou se apenas abandona as massas à fome.242 A filosofia clássica alemã falha em superar este problema: o conteúdo de sua racionalidade formal escapa a toda tentativa de abarcá-lo totalmente dentro das formas. A contingência e a facticidade do mundo permanecem e são conceitualizadas na coisa em si. Todos estes problemas levaram o idealismo alemão a buscar uma solução para além da filosofia teórica.243 4.4 O primado da filosofia prática A relação entre teoria e prática não seria apenas mais um dos aspectos do problema da reificação. Segundo Mayer244, o fenômeno em si, de maneira geral, pode ser considerado como um problema de teoria-práxis. Sua solução é, portanto, de responsabilidade tanto da filosofia teórica quanto da filosofia prática. O “hiato irracional” mencionado por Fichte em sua A Doutrina da ciência de 1804 exige sua solução em uma revisão do primado da filosofia prática, a fim de superar os intransponíveis limites daquilo que é dado. O idealismo alemão tentou elaborar uma concepção na qual o sujeito fosse criador não apenas das formas, mas também da totalidade do conteúdo. Para isso seria necessário encontrar um ponto de unidade do qual pudesse ser derivada a inegável diferença entre sujeito e objeto. 241 MANDEL, 1971, p. 237. FEENBERG, 2011, p. 178. 243 Ibidem., loc.cit. 244 MAYER, 2014, p. 11. 242 82 Fichte tentou superar este hiato através da unidade entre filosofia teórica e filosofia prática, a qual transforma em princípio a “anfibolia dos conceitos da reflexão”, quer sejam empíricos ou inteligíveis. Com isso o Eu prático, e não o teórico, se torna o primeiro princípio.245 A intuição intelectual deságua então em uma ação: A intuição intelectual, de que fala a doutrina da ciência, não vai de forma alguma ao ser, mas a uma ação, e ela nem sequer é designada em Kant (exceto, caso se queira, através da expressão apercepção pura).246 A razão prática toma precedência. O “Eu penso”, que deve acompanhar todas as representações, será compreendido num sentido prático. O que ele aqui chama de intuição intelectual (intellektuelle Anschauung) é uma consciência imediata, mas não sensível. A filosofia teórica de Kant, segundo Fichte, forneceu apenas a forma do “Eu penso”, para o qual o pensar permanece indeterminado. Um “Eu” cujas aparências podemos conhecer, um Eu cujo conteúdo em si pode ser visualizado apenas de forma prática. Para Fichte, no entanto, é a filosofia prática que deve fundamentar a filosofia teórica. A intuição intelectual, como certeza imediata do imperativo categórico, deve fundamentar também a razão teórica. As ideias serão constitutivas não apenas em relação à prática, mas também em relação à teoria. Nossa capacidade de conhecer o mundo depende de nossa capacidade de ativamente constituir o mundo que conhecemos. O Eu prático, com isso, tem prioridade ontológica sobre o Eu teórico, no sentido de que ele gera o Não-eu que é o objeto da atividade intelectual. 247 Lukács aponta, no entanto, os limites de uma razão prática apenas ética, a qual não dá conta de alcançar a verdadeira unidade: Em oposição à aceitação dogmática de uma realidade simplesmente dada e estranha ao sujeito, nasce a exigência de compreender, a partir do sujeitoobjeto idêntico, todo dado como produto desse sujeito-objeto idêntico, toda dualidade como caso particular derivado dessa unidade primitiva. No entanto, essa unidade é atividade. Após Kant ter tentado mostrar, na Crítica da razão prática — muitas vezes mal compreendida em termos de método e falsamente oposta à Crítica da razão pura —, que os obstáculos teoricamente (contemplativamente) insuperáveis podem encontrar uma 245 BLUMENTRITT, 1988. “Die intellektuelle Anschauung, von welcher die Wissenschaftslehre redet, geht gar nicht auf ein Sein, sondern auf ein Handeln, und sie ist bei Kant gar nicht bezeichnet (außer, wenn man will, durch den Ausdruck reine Apperzeption)“ (FICHTE, 1845, p. 472). 247 DUDLEY, 2007, p. 92 246 83 solução na prática, Fichte põe a prática, a ação, a atividade no centro metodológico do conjunto da filosofia unificada.248 A filosofia de Fichte, neste aspecto, é apenas idealismo subjetivo. O sujeitoobjeto idêntico a que ele chegou é apenas sujeito-objeto subjetivo, não superando efetivamente o dualismo.249 Esta crítica havia sido apontada já por Hegel em sua obra Diferenças entre os sistemas de filosofia de Fichte e Schelling, na qual ele afirma que o idealismo de Fichte permanece um idealismo “subjetivo” por não conseguir gerar uma identidade especulativa, através da razão, entre sujeito e objeto. Ele mantém a identidade entre sujeito e objeto apenas no plano teórico, enquanto no plano prático há uma separação entre a razão e o mundo.250 Lukács avalia assim a solução proposta por Fichte: Repete-se aqui, contudo, num nível filosoficamente mais elevado, a impossibilidade de resolver a questão colocada pela filosofia clássica alemã. Com efeito, desde que surge a questão da essência concreta desse sujeitoobjeto idêntico, o pensamento depara com o seguinte dilema: por um lado, é somente no ato ético, na relação do sujeito (individual) — agindo moralmente — consigo mesmo que essa estrutura da consciência, essa relação com seu objeto pode ser descoberta de modo real e concreto; por outro, a dualidade instransponível entre a forma autoproduzida, mas totalmente voltada para o interior (forma da máxima ética em Kant), e a realidade estranha ao entendimento e ao sentido, o dado, a experiência, impõem-se de maneira ainda mais abrupta à consciência ética do indivíduo que age do que ao sujeito contemplativo do conhecimento.251 O idealismo alemão elevou ao nível da consciência a necessidade de resolver os problemas da razão (pura) através da prática. O princípio da prática, contudo, pode ser encontrado apenas quando se indica ao mesmo tempo um conceito de forma, cuja validade não tenha mais como fundamento e condição metodológica essa pureza em relação a toda determinação de conteúdo, essa pura racionalidade. O princípio da prática, enquanto princípio de transformação da realidade, deve então ser talhado na medida do substrato material e concreto da ação, para poder agir sobre ele quando entrar em vigor.252 Para Lukács, só é possível falar de uma prática “verdadeira” ou não distorcida onde o objeto pode ser pensado como produto do sujeito, e espírito e mundo coincidam. 248 HCC, p. 262-263. BLUMENTRITT, 1988. 250 SINNERBRINK, 2007, p. 9. 251 HCC, p. 263-264. 252 HCC, p. 267. 249 84 Nisso ele está bem próximo da concepção de Fichte253 sobre a atividade espontânea do Espírito254, mas foi Hegel, contudo, quem lhe influenciou de maneira mais decisiva em sua formulação do proletariado como o sujeito-objeto idêntico do processo histórico. A unidade entre teoria e prática não se dá, contudo, de maneira imediata. Assim como em toda e qualquer relação dialética, sua concretude e efetividade só pode ocorrer através de uma mediação,255 e para isso se mostram de fundamental importância as categorias de consciência de classe e partido. À medida que o movimento dos trabalhadores amadurece como consequência do desenvolvimento de sua consciência, a questão de sua organização torna-se também um problema teórico, e não mais apenas uma questão prática. O objetivo final para o qual tende o próprio ser do proletariado não pode ser considerado apenas como um estado ou situação (Zustand) no futuro, como fazem os utopistas. Visto desta forma, ele seria apenas uma “solução possível” para o momento presente, mas longínquo, remoto, distante. É necessário indicar as mediações, o caminho e os passos para tal, e o que decide a maturidade ou imaturidade do movimento é justamente o fato de a visão sobre o que deve ser feito agora estar disponível de maneira abstrata e imediata ou concreta e mediada.256 Seria ilusório acreditar que a superação do utopismo estaria definitivamente consumada devido à superação intelectual de suas primeiras manifestações levada a cabo por Marx. A questão da relação dialética entre “objetivo final” e “movimento”, entre teoria e práxis, ressurge sempre em formas mais desenvolvidas e com conteúdos alterados em cada nível decisivo do desenvolvimento revolucionário. Isso se explica, em partes, pelo fato de uma tarefa se tornar visível em sua possibilidade abstrata sempre antes das formas concretas de sua efetivação.257 A forma de mediação entre teoria e práxis é a organização. Isso se mostra da maneira mais clara pelo fato de ela mostrar uma sensitividade em relação às opiniões conflitantes muito mais refinada e segura do que em qualquer outro lugar do pensamento e ação políticos. Enquanto consideradas apenas teoreticamente, as mais divergentes visões podem viver pacificamente uma ao lado da outra, e suas oposições 253 Feenberg (2011, p. 109) considera implausível esta transferência do sujeito-objeto fichteano para o proletariado. 254 HONNETH, 2005, p. 26. 255 LUKÁCS, 2013, p. 475. 256 LUKÁCS, 2013, p. 472. 257 Ibidem., loc. cit. 85 tomam apenas a forma de discussões que podem permanecer no espaço de uma única e mesma organização sem maiores problemas. Estas mesmas questões, no entanto, se colocadas de maneira organizatória, mostram-se como incompatíveis e mutualmente excludentes. Toda questão meramente teórica ou diferença de opinião deve ser transformada no mesmo instante em questão organizatória, caso de fato tenha a intenção de mostrar seu caminho para a efetivação e não queira permanecer apenas como teoria ou opinião abstrata.258 O partido corresponde a uma representação da situação da consciência de classe proletária, na qual se trata apenas de tornar consciente o inconsciente, de fazer atual o latente. Não se trata aqui de uma resposta ao medo oportunista quanto à “imaturidade” do proletariado para a tomada e a manutenção do poder. Isso diz respeito, antes, ao fato de que a consciência de classe do proletariado não se desenvolve paralelamente à crise econômica objetiva, linearmente e em todo o proletariado ao mesmo tempo. A maior parte do proletariado permanece espiritualmente sob influência da burguesia, de modo que sua reação à crise permanece, tanto em intensidade quanto em virulência, muito atrás da própria crise. Em diversas momentos, a situação objetiva da sociedade burguesa permanece em sua cabeça ainda em sua velha forma sólida, de modo que isso o mantém fortemente preso às formas de pensar e sentir do capitalismo. 259 No que diz respeito à sua forma de organização, o partido comunista é a preparação e o primeiro passo consciente para o salto no reino da liberdade. Como este não é dado ao proletariado como gratia irresistibilis260, e como o objetivo final não é algo fora do processo e que espera por ele em algum lugar, mas reside em cada momento individual do processo, então o partido comunista, enquanto forma consciente revolucionária do proletariado, também é algo processual e surge como produto da própria luta.261 Para cada proletário individual, e devido à reificação de sua consciência, o caminho para a conquista da consciência de classe objetivamente possível só pode ocorrer através do esclarecimento posterior de suas experiências imediatas, de modo que sua consciência psicológica mantém ainda seu caráter post festum. Esta contradição entre consciência de classe e consciência individual em cada proletário não é acidental. 258 Ibidem., p. 475. Ibidem., p. 481. 260 Graça irresistível. Este termo designa, na teologia calvinista, a maneira como a graça divina alcança o indivíduo, de modo que ele não pode evitar se converter após tocado por ela. 261 Ibidem., p. 494. 259 86 A forma superior do partido comunista em relação às outras formas de organização se mostra precisamente no fato de que nele, pela primeira vez na história, o caráter práticoobjetivo da consciência de classe se mostra, por um lado, como o princípio influente imediato das ações individuais de cada indivíduo e, por outro, como o fator consciente codeterminante do desenvolvimento histórico. Esta dupla relação entre o partido enquanto único portador da consciência de classe proletária e o curso da história se configura como a mediação concreta entre homem e história.262 A relação apropriada entre partido e classe só pode ser encontrada na própria consciência de classe do proletariado. Por um lado, a unidade objetiva da consciência de classe fornece o fundamento para a agregação dialética na separação organizatória entre classe e partido. Por outro, os diferentes graus de clareza e profundidade da consciência de classe nos diferentes indivíduos, grupos e camadas do proletariado determinam a necessidade da separação entre ambos. A luta do partido comunista é pela consciência de classe do proletariado, e sua separação organizatória não quer dizer que ele queira lutar no lugar da classe e por seus interesses, mas sempre com a classe. Mesmo que isso possa acontecer em períodos revolucionários, o objetivo é apenas levar adiante e acelerar o processo de desenvolvimento da consciência. A independência organizatória do partido comunista é necessária para que o proletariado possa imediatamente ver sua própria consciência de classe como forma histórica.263 4.5 Superação da reificação? A descrição do processo no qual o proletariado se torna consciente de si mesmo não é apenas uma formulação teórica. Ao perceber que é o sujeito-objeto da história, o proletariado se descobre também como o sujeito do processo da reprodução social, e não meramente um objeto de contemplação. O ato de consciência, neste caso, derruba a forma objetiva de seu objeto. O proletariado pode, assim, superar a reificação através de um engajamento prático com a totalidade ao conscientemente transformá-la em produto de sua ação coletiva. Este processo, na perspectiva de Lukács em HCC, não seria outra coisa que a revolução comunista. Lukács não quer dizer, contudo, que uma sociedade totalmente transparente na qual a reificação seja completamente superada seja possível, 262 263 Ibidem., p. 495. Ibidem., p. 503-504. 87 já que isso seria um exercício de previsão do futuro incompatível com a filosofia marxista. O senso de realismo que Marx herdou de Hegel sempre lhe manteve com os dois pés firmes no presente e lhe conteve de fazer prognósticos, previsões, antecipações ou quaisquer outras práticas futurológicas. Podemos perceber esta tendência em Hegel na descrição das sucessivas experiências da consciência em sua Fenomenologia do Espírito. Ao chegar no tempo presente o movimento cessa, as tendências que apontam para o futuro se perdem e o próprio Hegel deixa de ser dialético.264 Isso não significa, contudo, que ele era conservador ou que considerava aquele período o fim da história. A tese de Hegel de que “tudo o que é real é racional; e tudo o que é racional é real” teria sido, segundo Engels265, interpretada de maneira equivocada como “a santificação de tudo que existe, a bênção filosófica dada ao despotismo, ao Estado policial, à justiça de gabinete” e à censura, inclusive por Frederico Guilherme III e seus súditos. Esta tese hegeliana, aplicada ao estado prussiano da época, permitiria uma única interpretação: este estado é racional, corresponde à razão, na medida em que é necessário; se, no entanto, nos parece mau, e continua existindo, apesar disso, a má qualidade do governo justifica-se e explica-se pela má qualidade correspondente de seus súditos. Os prussianos da época tinham o governo que mereciam.266 Engels prossegue: não era também real a república romana, assim como o império romano que a substituiu? Não havia se tornado irreal a monarquia francesa em 1789, isto é, “tão destituída de toda necessidade, tão irracional, que teve de ser varrida pela grande Revolução”, da qual Hegel falava sempre com grande entusiasmo? Aqui, portanto, o irreal era a monarquia, e o real, a revolução. Considerando que os Estados e os sistemas políticos passam de reais a irreais, eles perderiam, assim, seu caráter de necessidade, seu direito de existir, seu caráter racional, tornando a tese de Hegel em seu contrário: tudo que é real, nos domínios da história humana, converte-se em irracional, com o correr do tempo; já o é, portanto, por seu próprio destino, leva previamente, em si mesmo, o germe do irracional, e tudo que é racional na cabeça do homem está hoje com a aparente realidade existente.267 264 Ibidem., p. 653. ENGELS, 1975, p. 82. 266 Ibidem., loc.cit. 267 Ibidem., loc.cit. 265 88 Segundo as regras de seu próprio método dialético, a tese de Hegel se resolve nesta outra: “tudo o que existe merece perecer”. Nisso residiria, segundo Engels268, o caráter revolucionário da filosofia hegeliana, pois ela acabou com o caráter definitivo de todos os resultados do pensamento e da ação do homem. Para Hegel, a verdade que a filosofia procurava conhecer já não era uma coleção de teses dogmáticas fixas, mas residia no próprio processo do conhecimento, através do longo desenvolvimento histórico da ciência, da filosofia, nos demais ramos do conhecimento e no domínio da atividade prática. Se é possível, portanto, reconhecer um aspecto conservador nesta tese de Hegel quando ela legitima determinadas formas sociais, este conservadorismo é apenas relativo. Seu caráter revolucionário, pelo contrário, é absoluto — na verdade, “a única coisa absoluta que ele deixa de pé”.269 Marx segue Hegel de perto neste aspecto. Ele fornece uma nova perspectiva para interpretar a história, à qual se deu posteriormente o nome de “materialismo histórico”270, e o próprio título de sua principal obra, O capital, já é indicativo de que seus esforços se voltavam não para imaginar uma sociedade ideal fundada em postulados éticos, mas sim para uma ampla e minuciosa crítica do presente. Ao contrário dos clássicos da filosofia política utópica, tais como Platão (A República), Thomas Morus (A Utopia), Francis Bacon (Atlântida) e Tommaso Campanella (A cidade do sol), Marx não buscava elaborar em seu cérebro uma nova sociedade para depois lutar por sua efetivação.271 Nas palavras de Feenberg272, Marx tinha um “desgosto por especulação utópica”. Quando ele e Engels anunciam, em linguagem incendiária, a dissolução do capitalismo e da ordem social existente no Manifesto do partido comunista, isso de modo algum deve ser entendido como uma tentativa de antecipar o futuro. Tendo em vista sua compreensão dialética da história, o fato de que nada permanece e de que formações sociais, reinos e impérios surgem e desaparecem, seria realmente surpreendente o contrário: se Marx pelo menos cogitasse a possibilidade de o capitalismo ser a estação final da história humana. Se seu discurso sobre a inevitável queda do capitalismo soa profética, isso se deve mais ao tipo de linguagem 268 Ibidem., loc.cit. Ibidem., p. 83. 270 O próprio Marx não utiliza este termo. 271 Com exceção de alguns pontos em sua Crítica ao programa de Gotha e menções dispersas em outros textos e cartas, Marx praticamente não fala sobre como deve ser uma sociedade comunista. Os revolucionários que se inspiraram em sua obra para derrubar o capitalismo tiveram que desenvolver por si próprios os fundamentos da nova sociedade que buscavam construir. 272 FEENBERG, 2011b, p. 106. 269 89 exigido por este tipo de literatura — um manifesto político —, do que a algum aspecto conceitual de seu pensamento. Marx aponta tão somente o próximo elo da cadeia, tendo em vista o desenvolvimento histórico e as contradições do presente. Merleau-Ponty273 afirma que quando alguém diz que o marxismo encontra um sentido na história, isso não deve ser entendido como se houvesse uma orientação irresistível em direção a alguns fins. Isso significa que há, antes, imanente na história, um problema ou uma questão em relação à qual o que acontece a cada momento pode ser classificado, situado, compreendido como progresso ou regresso, comparado com o que acontece em outros momentos, que pode ser expresso na mesma linguagem, compreendido como uma contribuição ao mesmo empreendimento e pode, em princípio, ensinar uma lição. Em sua obra de juventude Marx desenvolveu um novo conceito de razão na revolução através de um tratamento ontológico de categorias sociais. 274 Sua preocupação com o problema da racionalidade revolucionária é formulada em seus primeiros escritos, nos quais ele tenta demonstrar que a revolução pode satisfazer o que ele chama de “exigências da razão”, e que através da prática revolucionária a razão, ou a filosofia, pode ser “realizada”. Sua abordagem metateórica para formular este ponto possui, segundo Feenberg275, três momentos. Marx mostra, inicialmente, que as categorias filosóficas são, na realidade, deslocamentos de categorias sociais. Esta é leitura que Marx faz, por exemplo, da obra de Hegel, que teria como real fundamento o trabalho alienado, embora Hegel não tenha conseguido perceber isso. Num segundo momento, Marx converte então as categorias sociais em forma de categorias filosóficas (seguindo Feuerbach) para, finalmente, demonstrar a pertinência filosófica da ação social para resolver as contradições da filosofia reconvertidas agora em categorias sociais. Lukács opera de forma semelhante a Hegel e Marx. Tal abordagem permeia sua obra de juventude, da qual depreende-se uma leitura do marxismo, enquanto filosofia da práxis, que estabelece uma relação entre as exigências da razão e os objetivos políticos revolucionários, isso é, entre teoria e prática276. Para Lukács, o que está em jogo na luta 273 MERLEAU-PONTY, 1973, p. 38. FEENBERG, 1981, p. 2. 275 Ibidem., p. 47. 276 Ibidem., p. 27. 274 90 pelo socialismo não é apenas uma mudança na sociedade, mas o próprio destino da racionalidade, pois a revolução é uma tarefa da razão.277 Não se trata de simplesmente associar o fim da reificação a um único ato revolucionário de derrubada do capitalismo. Lukács afirma que se em algum ponto a reificação for superada, surge também, no mesmo instante, o perigo de esse novo estado de consciência se petrificar, enrijecer.278 A revolução deve ser entendida aqui como uma mediação da ordem social reificada, como sua transformação através da resistência autoconsciente do proletariado à sua própria forma de objetividade enquanto mercadoria. Formalmente, a reificação é total no sentido de que fornece uma “forma de objetividade” tanto para objetos, quanto para sujeitos na sociedade capitalista. Forma e conteúdo, no entanto, não são idênticos, de modo que o conteúdo pode romper a forma de objetividade e modificá-la.279 A reificação poderia ser gradualmente superada em um processo de longo prazo. A iniciativa e a liberdade humanas seriam recuperadas à medida que as barreiras estruturais de uma sociedade racionalizada e administrada fossem superadas por um proletariado que inicia a transição ao socialismo. Lukács reafirma este ponto repetidamente e de diferentes maneiras por toda a terceira seção de seu ensaio sobre a reificação em HCC, mas nunca desenvolve o argumento de maneira formal em relação à problemática da filosofia clássica alemã. Ele escreve, por exemplo, que o pensamento proletário não pode partir de uma tabula rasa, como tentou a filosofia burguesa em relação à filosofia medieval. Antes, a filosofia proletária parte da própria reificação, a qual dialeticamente torna possível, pela primeira vez, compreender a sociedade como produto humano.280 A superação da reificação passaria por uma interminável alternância entre ossificação, contradição e movimento. Lukács rejeita a tendência humanista de tornar o homem um absoluto no lugar das forças transcendentes que ele deveria explicar, dissolver e sistematicamente substituir. O proletariado não é capaz de constituir uma realidade como se estivesse em uma transcendência no além.281 Cada relação humana que rompe com a estrutura de uma abstração da personalidade total do homem, com sua 277 Ibidem., p. 60. LUKÁCS, 2013, p. 511. 279 Ibidem., p. 107. 280 Ibidem., loc.cit. 281 Ibidem., p. 110. 278 91 subsunção a um ponto de vista abstrato é um passo em direção ao rompimento com a reificação da consciência humana.282 O conceito de mediação com que trabalha Lukács, inspirado em Hegel e Marx, sugere uma imagem de revolução diferente daquela derivada das revoluções Francesa (1789) e Russa (1917). Apesar dessas experiências terem influenciado sua noção de desenvolvimento histórico com o conceito de mudança repentina na redação de HCC, sua teoria pode ainda abrigar um padrão evolucionário no qual a reificação e sua superação permanecem em uma relação contínua de conflito e resolução. A revolução alteraria as condições deste conflito, favorecendo ou a estrutura, ou os agentes. Esta abordagem implica uma teoria da modernidade como uma formação social diferenciada com duas variantes: uma capitalista, na qual a reificação é predominante e oprime a resistência, e uma socialista, na qual as relações entre reificação e resistência são invertidas e é possível submeter sistemas reificados maleáveis a uma constante revisão. A revolução, em Lukács, é distinta de uma exigência utópica de abolição imediata da reificação, a qual é um pressuposto necessário da luta e cria potencialidades que podem ser realizadas através da derrubada de instituições sociais que formam e limitam a vida do proletariado. A consciência de classe que leva à revolução não descobre algo anterior à sociedade, uma essência humana originaria à qual é preciso retornar, mas expõe o potencial humano criado e suprimido pelo capitalismo.283 A revolução altera o sistema das formas de objetividade da vida real, e por isso ela é a mediação necessária através da qual a superação da reificação se torna possível. 282 283 LUKÁCS, 2013, p. 497. FEENBERG, 2015, p. 497. 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS A reificação, como máscara conceitual, é um “erro categorial epistêmico”, um processo cognitivo através do qual algo que em si não possui propriedades de coisa passa a ser visto como tal.284 Este processo, em extensão, atinge todos os homens sob o capitalismo, tendo como causa social de sua generalizada disseminação a ampliação da troca de mercadorias, a qual se estabeleceu como forma dominante de intercâmbio entre os homens a partir da instauração da sociedade capitalista. As consequências da reificação se estendem a todos os domínios da vida. Uma vez colocados em relações reificantes entre si, no qual o que mais importa é calcular, medir e abstrair todo aspecto qualitativo, os homens veem-se compelidos a travar uma relação reificante com todo o seu entorno, o que cria um mundo completamente administrado. Esta generalização se agudiza a ponto de gerar uma “segunda natureza” humana.285 A filosofia clássica alemã sentiu profundamente os efeitos da reificação, e elevou os problemas resultantes deste processo social ao nível de problemas filosóficos, embora não consciente de sua origem. Um destes problemas foi a perda da visão da totalidade, que teve como um de seus desdobramentos a crescente especialização das ciências, as quais se tornaram, por isso, sistemas fechados parciais de leis independentes umas das outras. Outro problema, que atingiu tanto as ciências particulares como também a filosofia, foi o da irracionalidade do dado, do conteúdo das formas. Em Kant, por exemplo, ele se manifesta na forma do conceito de coisa em si. As tentativas da filosofia clássica alemã de solucionar os problemas por ela identificados já apontavam na direção de uma prática. A Crítica da razão prática, de Kant, ou o conceito do “Eu como pura atividade”, de Fichte, são esforços para resolver tais questões, as quais permaneceriam insolúveis se tratadas apenas no âmbito da razão teórica. Lukács afirma, em Die Zerstörung der Vernunft (“A destruição da razão”), que no período do idealismo alemão a dialética “estava no ar”.286 Isso pode ser observado, por exemplo, no capítulo sobre a dialética da razão na Crítica da razão pura, de Kant, na dialética fichteana de tese-antítese-síntese, e até mesmo nas obras do jovem 284 HONNETH, 2005, p. 19. Ibidem., p. 21. 286 LUKACS, 1973, p. 125. 285 93 Schelling, como em suas Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo. Foi apenas Hegel, no entanto, que soube desenvolver filosoficamente esta tendência histórica que se apresentava também no âmbito do pensamento. Através do movimento dialético na Fenomenologia do espírito, a consciência supera a figura na qual ela se colocava fora de si e não se reconhecia mais em suas exteriorizações: a alienação. Depois de sucessivos conflitos entre seu saber e sua verdade, ela finalmente encontra a unidade consigo mesma. Neste trajeto ela se constituiu através do trabalho, e o jovem Marx percebe que esta marcha dialética descrita por Hegel de maneira abstrata e parcial correspondia à realidade social concreta de um meta-sujeito histórico: o proletariado. Hegel considerava, porém, apenas o aspecto positivo do trabalho, através do qual a consciência formava a si mesma. Marx visualiza então um outro aspecto: o trabalhador, através de sua atividade laboral, cria também sua própria alienação. Ao ser obrigado a vender sua força de trabalho e se integrar a um sistema de leis que funciona de forma completamente independente de si e à qual ele se integra como mero apêndice, o proletário transforma um aspecto qualitativo de seu ser — sua força de trabalho — em um aspecto quantitativo. Sendo este aspecto, no entanto, inseparável de sua personalidade total, ele então se coisifica neste processo. Essa contradição o leva à tomada de consciência de sua própria situação, à chamada “autoconsciência da mercadoria”. O conhecimento de si do proletariado é, ao mesmo tempo, o conhecimento objetivo da estrutura da sociedade capitalista, e por isso ele realiza no plano social a unidade sujeito-objeto. O trabalhador, ao se autoconhecer, traz uma mudança estrutural no objeto de seu conhecimento. A ascensão e a evolução do conhecimento do proletariado, por um lado, e sua ascensão e evolução no curso da história, de outro, são apenas dois aspectos do mesmo processo real287. O ato de tornar-se consciente transforma radicalmente a forma de objetividade de seu objeto.288 287 Lukács volta a explicar esta determinação recíproca entre sujeito e objeto em sua obra A defense of History and Class Consciousness, a qual foi escrita pouco após a publicação de História e Consciência de Classe (por volta de 1925) mas permaneceu inédita até 1996: “a interação dialética entre sujeito e objeto no processo histórico consiste no fato de que o momento subjetivo é [...] um produto, um momento do processo objetivo. [...] Esta interação dialética [...] surge ‘exclusivamente’ na práxis.” (LUKÁCS, 2002, p. 56) 288 HCC, p. 357. 94 É no horizonte dessa autoconsciência do proletariado que Lukács situa a possibilidade de superação da reificação. A mera consciência do proletariado quanto à sua situação de classe não é, no entanto, todo o processo. Este ainda deve seguir através da mediação da análise social e da ação do Partido Comunista na direção de sua resolução revolucionária.289 O partido, segundo Lukács, é a forma de mediação entre teoria e práxis.290 Ele “corresponde a uma apresentação do estado da consciência de classe proletária, na qual se trata apenas de tornar consciente o inconsciente, de tornar atual o latente.”291 A menção a uma revolução ou a um partido comunista são marcas do tempo que encontramos em HCC. Quando vistas através das lentes ideológicas daquela interpretação histórica — reificada em si mesma — que define o retrocesso das experiências socialistas reais como vitórias definitivas do capitalismo, tende-se a considerar as reflexões de Lukács, se não refutadas, pelo menos ultrapassadas. O que não se pode perder de vista, todavia, é que as realidades sociais concretas das quais a reificação se origina são fundamentalmente as mesmas. As mutações pelas quais o capitalismo passou no século XX e a reorganização da classe trabalhadora foram, no sentido aristotélico do termo, acidentais, não essenciais. Nos dias de Marx e Lukács, eram os proletários os mais afetados pelos efeitos da reificação. As tecnologias estavam, de fato, concentradas principalmente nas fábricas. Os trabalhadores eram reunidos em amplas massas devido ao maquinário que utilizavam, e podiam desenvolver a partir daí consciência de classe e resistir ao capitalismo coletivamente. A tecnologia passou, então, a um ritmo cada vez mais acelerado, a envolver todos os aspectos da vida, e não se restringe mais apenas ao ambiente fabril.292 Se o proletariado, que cumpre um papel essencial nos textos de Lukács, parece ter desaparecido da cena social e ter sido substituído por outros atores sociais candidatos a sujeitos revolucionários, uma análise concreta mostra que esta impressão é apenas ilusória. A partir da década de 1950, no apogeu do estado de bem-estar social, diversas teses acerca do fim do proletariado ganharam corpo,293 seguindo-se daí outras tantas buscas por um novo “sujeito revolucionário”. Apoiadas na ausência da classe operária como antagonista do capital nas lutas do período, tais teorias deduziram uma 289 FEENBERG, 2011, p. 181. HCC, p. 529. 291 HCC, p. 537. 292 FEENBERG, 2015, p. 498. 293 LESSA, 2012, p. 81. 290 95 transformação nas próprias relações de produção que teria eliminado o proletariado enquanto classe social. Os novos atores propostos, no entanto, não tinham com o capital a mesma relação de antagonismo fundada nas relações de produção como a classe operária, fossem eles assalariados ou parte do exército industrial de reserva. A impossibilidade de serem portadores de um projeto emancipador de toda a humanidade e que supere a sociedade de classes já havia sido assinalada por Lukács. Na sociedade capitalista, apenas a burguesia e o proletariado são “classes puras”, isso é, classes “cuja existência e evolução baseiam-se exclusivamente no desenvolvimento do processo moderno de produção”.294 As outras classes, pelo fato de sua posição na sociedade não se fundar exclusivamente no seu lugar no processo de produção, são incapazes de perceber a sociedade atual em sua totalidade, e por isso estão condenadas a desempenhar um papel subordinado, nunca podendo intervir efetivamente na marcha histórica como fator efetivo de conservação ou progresso. As lutas travadas pelos candidatos a novo sujeito revolucionário são sempre lutas parciais, confrontos limitados contra alguns efeitos do capitalismo e que não colocam em questão a sociedade burguesa enquanto tal.295 Elas já trazem em si, neste sentido, uma das principais características da reificação, que é a perda da visão da totalidade. As lutas identitárias, por exemplo, a partir de recortes da realidade fundados em aspectos outros que não as relações de produção, mostram com particular clareza a fragilidade de tais perspectivas quando colocadas diante da tarefa de transformação radical da sociedade. Suas pautas, por não colidirem frontalmente com os fundamentos da sociedade capitalista, com sua estrutura e divisão em classes, e por não questionarem exatamente a extração de mais-valia, mas apenas uma exploração “desigual” a que são sujeitos os indivíduos das camadas assalariadas, são progressivamente absorvidas pelo capitalismo296, fazendo com que os movimentos que militam por sua concretização tornem-se organizações de pseudo-atividades políticas. O capitalismo assimila, incorpora, integra em si toda sorte de movimento contestatório, em uma dinâmica análoga à extração de um antídoto a partir do próprio veneno. Uma das maneiras mais eficientes que o sistema desenvolveu para lidar, combater ou negar certas reivindicações é através de sua manipulação e concessão parcial, a conta-gotas. Esta foi a estratégia do 294 HCC, p. 156. LESSA, 2012, p. 86. 296 Herbert Marcuse já afirmava em sua obra One-Dimensional Man que o capitalismo havia se tornado capaz de absorver suas contradições através de reformas parciais e ajustes que “integravam” o proletariado. 295 96 capital, por exemplo, com a social-democracia e a criação do estado de bem-estar social. A imagem toma o lugar da coisa, o simulacro substitui o real. Às exigências de liberdade e emancipação o capital oferece, em troca, seus espectros, seus fantasmas, suas sombras. As transformações no mundo do trabalho, a aparente saída de cena do proletariado e eventos como a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto deram novos rumos ao conceito de reificação. Este foi de fundamental importância para o surgimento da Escola de Frankfurt e em especial para a redação da Dialética do esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Horkheimer. Junto a outras fontes teóricas, a reificação foi a base de sua crítica ao positivismo, de sua reformulação dialética da teoria marxista e de sua reflexão sobre como a crescente racionalidade capitalista resultou na perversão totalitária. O novo momento histórico, porém, fez com que os fundadores da teoria crítica divergissem de Lukács em aspectos fundamentais. Adorno desconsidera, por exemplo, o conceito de totalidade devido à sua relutância em relacionar validade epistemológica e gênesis social. Na Dialética do esclarecimento, por exemplo, a totalidade perdeu todas as suas conotações positivas para se tornar quase um sinônimo de totalitarismo.297 Uma simetria entre o fazer e o saber, colocada pelo princípio verum-factum298, seria para ele uma falácia. A teoria marxista, ademais, nunca poderia ser reduzida à consciência de uma classe progressista. A própria noção de um meta-sujeito capaz de totalizar a realidade seria uma tentativa ilegítima de hipostasiar a realidade emprestada da noção idealista de sujeito transcendental. Tal tentativa seria não apenas uma filosofia questionável, mas também perniciosa. Sua raiz mais profunda poderia ser encontrada na predominância do valor de troca nas relações sociais, uma predominância que reduzia os indivíduos a meros exemplares de uma subjetividade abstrata.299 Adorno também parecia não ter esperança em uma completa superação da reificação. Em sua Dialética negativa, ele afirma que o pensamento, para se consolar, facilmente se imagina como possuidor da pedra filosofal junto à dissolução da reificação, do caráter de mercadoria. Mas a própria reificação é a forma de reflexão da falsa objetividade; centrar a teoria em torno dela, uma figura da 297 JAY, 1984, p. 261. Princípio de Giambattista Vico, “verum et factum convertuntur”: o verdadeiro e o realizado são intercambiáveis. O homem pode conhecer a história, feita por ele, melhor do que a natureza, feita por Deus (JAY, 1984, p. 34). 299 JAY, 1984, 259. 298 97 consciência, torna a teoria crítica aceitável de maneira idealista para a consciência dominante e para o inconsciente coletivo.300 Sendo impossível a constituição de um meta-sujeito coletivo e estando as saídas bloqueadas, a dissolução da reificação, como vislumbrada por Lukács, não tem lugar no pensamento de Adorno. Os momentos históricos de redação de HCC e da Dialética negativa mostraram-se determinantes para os destinos do conceito: o otimismo de Lukács, surgido do calor da revolução russa, deu lugar ao ceticismo pessimista de Adorno, resultado de décadas sem revoluções proletárias e dos rumos insatisfatórios do socialismo realmente existente. Em sua avaliação, o momento de realizar a filosofia foi perdido, e a transformação do mundo fracassou. 301 Décadas mais tarde, a reificação voltou novamente à cena do debate filosófico e recebeu de Axel Honneth uma releitura que buscou, no entanto, desvencilhá-la de seu solo material concreto: a estrutura da mercadoria. Honneth define a reificação como um esquecimento do reconhecimento do outro, e a identifica com práticas e atitudes individuais que tendem a bloquear este reconhecimento. Quando em larga escala, isso tem consequências coletivas que ele chama de “patologias sociais”. Atitudes psicológicas, todavia, raramente são abordadas por Lukács, mesmo quando ele discute sobre a consciência.302 O tema da reificação em Lukács foca no progresso social. A patologia social que de fato lhe interessa não é a falta de reconhecimento, por mais importante que seja, mas sim a predominância das estruturas racionais que distorcem e oprimem as vidas humanas. Honneth afirma, por exemplo, que Lukács erra ao descrever o trabalho assalariado e a troca de mercadorias como reificados, não obstante estes serem fundamentais para o filósofo húngaro. Tanto a troca de mercadorias quanto o trabalho assalariado são baseados em relações contratuais que implicam o reconhecimento do outro, e é justamente isso o que diferencia a troca do roubo e o trabalho assalariado da escravidão.303 300 ADORNO, 2009, p. 163. Ibidem., p. 11. Adorno se refere aqui à passagem de Marx, na introdução de sua Critica à filosofia do direito de Hegel, na qual ele afirma que a suprassunção (Aufhebung) do proletariado — sua emancipação através da revolução — é a efetivação da filosofia. 302 FEENBERG, 2011, p. 102. 303 Ibidem., p. 103. 301 98 Feenberg304 afirma que dificilmente Lukács não perceberia a diferença entre troca e roubo, ou trabalho assalariado e escravidão, e tampouco teria ele compreendido mal sua própria inovação conceitual. Se a conclusão de Honneth é falsa, então uma das premissas deve ser falsa, e seu erro está em identificar a reificação apenas como uma falha no reconhecimento. Lukács aborda extensivamente a reificação em HCC, mas sempre em conexão com os conceitos de alienação e fetichismo da mercadoria, de Marx, e com o conceito de racionalização, de Weber. Raramente ele o faz em termos de relações humanas. A reificação se manifesta em todas as esferas da atividade humana, e refletir a partir deste conceito possibilita não apenas compreender melhor as relações humanas no capitalismo tardio, mas também as próprias práticas ou movimentos de contestação ao mundo reificado. Questões sociais candentes, como o entendimento individualista da liberdade e a consequente busca por saídas pessoais, a extensa máquina burocrática tomando conta de todas as esferas da vida, a atitude contemplativa diante do mundo e a submissão de todas as criações humanas (leis, cultura, ética, política) aos procedimentos quantitativos das ciências naturais são características de uma sociedade completamente tomada pela reificação. 304 Ibidem., loc.cit. 99 REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009. ADORNO, Theodor. Einführung in die Dialektik. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2017. BLUMENTRITT, Martin. Einführung Lukács: Geschichte und Klassenbewusstsein – Das Problem der Verdinglichung. Hamburg, 1988. BUCHARIN, Nikolai. A.B.C. of Communism. Detroit: The Marxian Educational Society, 1921. CHARBONNIER, Vincent. La réification chez Lukács. In: La reification: histoire et actualité d’un concept critique. La Dispute, 2014. ______. Totalité & Dialectique (à partir de György Lukács). Nantes: Université de Nantes, 1998. DUDLEY, Will. Understanding German Idealism. Stocksfield: Acumen, 2007. ENGELS. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos. São Paulo: Edições Sociais, 1975. FEENBERG, Andrew. Lukács, Marx and the sources of critical theory. Rowman and Littlefield: Totowa, New Jersey, 1981. ______. Lukács’s Theory of Reification and Contemporary Social Movements. In: Rethinking Marxism, 27:4, 490-507, 2015. ______. Reification and its critics. In: Georg Lukács reconsidered: critical essays in Politics, Philosophy, and Aesthetics. Edited by Michael Thompson. New York: Continuum International Publishing Group, 2011. ______. Rethinking reification. In: Georg Lukács: The Fundamental Dissonance of Existence. Edited by Timothy Bewes and Timothy Hall. New York: Continuum International Publishing Group, 2011b. FEUERBACH, Ludwig. Grundsätze der Philosophie der Zukunft. Berlin: Holzinger, 2016. FICHTE, Johann Gottlieb. Zweite Einleitung in Wissenschaftlehre. In: Werke, Band 1. Berlin: Verlag von Veit und Comp., 1845. 100 FLECK, A. O conceito de fetichismo na obra marxiana: uma tentativa de interpretação. Ethic@ Revista Internacional de Filosofia da Moral. Florianópolis, v. 11, n. 1, p. 141 – 158 Jun. 2012. FREDERICO, Celso. Lukács: um clássico do século XX. São Paulo: Moderna, 1997. GOLDMANN, Lucien. Reificação. In: Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade. LÖWY, Michael; SAMI, Naïr. São Paulo: Boitempo, 2008. HAHN, Erich. Lukacs und der orthodoxe Marxismus. Eine Studie über “Geschichte und Klassenbewusstsein”. Berlin: Aurora Verlag, 2017. HARVEY, D. A companion to Marx’s Capital. London: Verson Books, 2010. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Differenz des Fichteschen und Schellingschen Systems der Philosophie. In: Georg Wilhelm Friedrich Hegel Werke. Band 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1970. ______. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Editora Vozes, 1992. HONNETH, Axel. Verdinglichung: Eine Anerkennungstheoretische Studie. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 2005. JAY, Martin. Marxism and totality: The adventures of a concept from Lukacs to Habermas. California: University of California Press, 1984. KONDER, Leandro. O que é dialética? 10ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. LOTZ, Christian. Reification through commodity form or technology? From Honneth back to Heidegger and Marx. In: Rethinking Marxism, 2013, Vol. 25, No. 2, 184-200. LUDWIG, Ralf. Hegel für Anfänger: Phänomenologie des Geistes. München: DTV, 2009. LUKÁCS, Georg. A defense of History and Class Consciousness: Tailism and the dialectic. London: Verso, 2002. ______. Die Zerstörung der Vernunft. Band I. Irrationalismus zwischen den Revolutionen. Darmstadt: Hermann Luchterhand Verlang, 1973. ______. Geschichte und Klassenbewußtsein: Studien über marxistische Dialektik. Bielefeld: Aisthesis Verlag, 2013. 101 ______. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2012. ______. Geschichte und Klassenbewußtsein: Studien über marxistische Dialektik. Bielefeld: Aisthesis Verlag, 2013. MANDEL, Ernest. Marxist Economic Theory. London: The Merlin Press, 1971. ______. Introduction. In: MARX, Karl. Capital. A critique of Political Economy. London: Penguin Books, 1976. MARX, Karl. Das Elend der Philosophie. In: Marx Engels Werke: Band 4. Berlin: Dietz Verlag Berlin, 1977. ______. Das Kapital. In: Marx Engels Werke: Band 23. Berlin: Dietz Verlag Berlin, 1962. ______, Karl; ENGELS, Friedrich. Die deutsche Ideologie. In: Marx Engels Werke: Band 4. Berlin: Dietz Verlag Berlin, 1978. ______. Manifest der Kommunistischen Partei. In: Marx Engels Werke: Band 4. Berlin: Dietz Verlag Berlin, 1977b. ______. Zur Kritik der Politischen Ökonomie. In: Marx Engels Werke: Band 13. Berlin: Dietz Verlag Berlin, 1961. MAYER, Matthias. Objekt-Subjekt – F. W. J. Schellings Naturphilosophie als Beitrag zu einer Kritik der Verdinglichung. Bielefeld: Transcript Verlag, 2014. MERLEAU-PONTY, Maurice. Adventures of the dialectic. United States of America: Northwestern University Press, 1973. ______. As aventuras da dialética. São Paulo: Martins Fontes, 2006. MÉSZÁROS, István. O conceito de dialética em Lukács. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. NETTO, José Paulo. Capitalismo e reificação. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981. O’KANE, Chris. Fetishism and Social Domination in Marx, Lukacs, Adorno and Lefebvre. 2013. Tese (Doutorado em Filosofia) - Centre for Social and Political Thought, University of Sussex, Sussex. 102 POSTONE, Moishe. The Subject and Social Theory: Marx and Lukács on Hegel. In: History and Heteronomy: Critical Essays. Tokyo: The University of Tokyo Center for Philosophy, 2009. RICOEUR, Paul. Freud and Philosophy: An Essay on Interpretation. New Haven and London: Yale University Press, 1970. SANDKÜHLER, Hans Jörg. Handbuch Deutscher Idealismus. Stuttgart: J. B. Metzler, 2005. SINNERBRINK, Roger. Understanding Hegelianism. Stocksfield: Acumen, 2007. TONET, Ivo; LESSA, Sérgio. Proletariado e sujeito revolucionário. São Paulo: Instituto Lukács, 2012. VIEIRA, Leonardo Alves. V. B. A efetivação da consciência de si racional através de si mesma. 05 de março de 2010. Arquivo MP3. Disponível em <http://www.fafich.ufmg.br/~leonarva/Disc_arquivos/FENOMENOLOGIA/5B/5B. htm>. Acesso em 26/06/2018. WESTERMAN, Richard. Lukács’ Theory of Reification and Contemporary Social Movements. In: Rethinking Marxism, 27:4, 490-507, 2015. ______. Reification and its critics. In: Georg Lukács reconsidered: critical essays in Politics, Philosophy, and Aesthetics. Edited by Michael Thompson. New York: Continuum International Publishing Group, 2011. ______. Rethinking reification. In: Georg Lukács: The Fundamental Dissonance of Existence. Edited by Timothy Bewes and Timothy Hall. New York: Continuum International Publishing Group, 2011b. ______. The Reification of Consciousness: Husserl’s Phenomenology in Lukács’ Identical Subject-Object. New German Critique 111, Vol. 37, No 3, 2010. 103