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REIFICAÇÃO EM AXEL HONNETH: ARTICULAÇÕES COM O CONTEXTO RACIAL BRASILEIRO Sheila Ferreira Miranda 1 Resumo Neste trabalho, defendemos que as teorizações de Axel Honneth do modo existencial do reconhecimento contribuem de maneira profícua para pensarmos as relações raciais no Brasil, que condizem tanto com a impressão da própria imagem, quanto com a expressão de legitimidade do outro nas relações interativas. É neste arcabouço teórico que buscamos aportes para discussões de polêmicas contemporâneas brasileiras, a saber: a relação do negro consigo mesmo, a educação em nível fundamental, os atos governamentais institucionalizados e as relações raciais nos mais altos estratos da profissionalização acadêmica - estas últimas, inevitavelmente atravessadas pela ideologia do mérito, perduram obscurecidas, silenciadas nas práticas contemporâneas brasileiras. Palavras-chave: Ideologia; Negros; Reificação; Reconhecimento, Teoria Crítica REIFICATION IN AXEL HONNETH: ARTICULATIONS WITH BRAZILIAN RACIAL CONTEXT Abstract In this work, we argue that the theories of Axel Honneth's existential mode of recognition contribute in a fruitful way to think about race relations in Brazil, which match well with the impression of his own image, as with the expression of the legitimacy of the other interactive relationships. In this theoretical framework we seek contributions to Brazilian contemporary and controversial discussions, namely: the relation of black with himself, education in fundamental level, the government acts institutionalized and race relations in the highest strata of academic professionalization the latter, inevitably traversed by the ideology of merit, persist obscured, silenced in Brazilian contemporary practices. Keywords: Ideology; African-descendants; Reification; Recognition, Critical Theory. 1 Psicóloga, Mestre em Psicologia (UFSJ), Doutoranda em Psicologia Social (PUC/SP) e membro do NEPIM – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Identidade-Metamorfose, pesquisando relações raciais e docência universitária. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 19 RÉIFICATION EN AXEL RACIALES BRÉSILIEN HONNETH: JOINTS ET DES ORIGINES Résumé Dans cet article, nous soutenons que les théorisations d'Axel Honneth du mode existentielle de reconnaissance contribuent manière fructueuse à penser les relations raciales au Brésil, qui correspondent tant à l'impression de sa propre image, quant à l'expression de la légitimité des autres relations interactives. C’est dans cette cadre théorique que nous cherchons des contributions aux discussions contemporaines des controverses brésiliens, à savoir: la relation du noir avec lui, l'éducation en niveau fondamental, les actes gouvernement institutionnalisés et inévitablement les relations raciales dans les plus hautes strates de la professionnalisation académique - ces dernieres inévitablement traversé par l'idéologie du mérite, de s'attarder obscurci, silence dans les pratiques contemporaines brésiliennes. Mots-clés: Idéologie; Noir, réification, Reconnaissance, théorie critique. REIFICACIÓN EN AXEL HONNETH: CONTEXTO RACIAL BRASILEÑO ARTICULACIONES CON EL Resumen En este trabajo, defendemos que las teorías de Axel Honneth de modo existencial del reconocimiento contribuyen de manera intensa para pensar las relaciones raciales en Brasil, que conducen tanto con la impresión del imagen mismo, cuanto con la expresión de legitimidad del otro en las relaciones interactivas. Es este contexto vamos a buscar aportes para las discusiones de polémicas contemporáneas brasileñas, a saber: la relación del negro consigo mismo, la educación en nivel básico, los actos gubernamentales institucionalizados y las relaciones académicas - las últimas, inevitablemente atravesadas por la ideología del mérito siguen oscurecidas, silenciadas en las prácticas contemporáneas brasileñas. Palabras- clave: Ideología; Negros; Reificación; Reconocimiento, Teoría Crítica. O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM HONNETH Durante as décadas de 20 e 30 do século passado, o conceito de reificação foi bastante difundido em função das experiências históricas vividas pelos países de língua alemã. Inicialmente encontrado nos textos de Karl Marx, Max Weber e Georg Simmel, foi posteriormente desenvolvido por Georg Lukács (Honneth, 2007b) e incorporado Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 19 como uma das categorias essenciais entre os autores da Teoria Crítica da Sociedade (Melo, 2010). Originalmente, a ideia central diz respeito às formas pelas quais as vivências pessoais são transformadas situações instrumentais (Trevisan et al. 2010) ou seja, a coisificação dos indivíduos pelo avanço do capital2, através de práticas nas quais estes últimos não são tratados de acordo com suas qualidades humanas, mas como objetos insensíveis, mercadorias passíveis de consumo (Honneth, 2007b). Axel Honneth irá realizar uma reatualização do conceito de Lukács, sem no entanto retornar às premissas do marxismo ocidental – levando-se em consideração que suas raízes teóricas repousam sobre o pensamento habermasiano: Habermas empreendeu, a partir dos anos setenta do século passado, com base na linguistic turn, uma verdadeira reviravolta no modo de fundamentação da teoria crítica da sociedade: sua tese do entendimento comunicativo como telos imanente à ação humana conduziu-o a revisar o significado e o papel de conceitos centrais da tradição do marxismo ocidental, como os conceitos de trabalho social e reificação humana. Não há dúvida de que tal pensamento serve como fonte principal de inspiração a Honneth, hoje talvez o principal herdeiro desta longa tradição intelectual, tanto para sua exegese do conceito lukácsiano de reificação como à sua tentativa de atualizá-lo (Dalbosco, 2011, p. 34, grifos do autor). No texto Reificación: um estúdio em la teoria del reconocimiento, Honneth (2007b) irá reatualizar o conceito a partir da noção cunhada por Lukács, recuperando o potencial crítico destes pressupostos no presente, ainda que de maneira modificada. Lukács partiu do fenômeno da ampliação da troca de mercadorias para pensar o quanto as pessoas se vêm reciprocamente forçadas a se relacionarem tanto com os indivíduos quanto com os objetos do mundo circundante somente como coisas potencialmente lucrativas (Melo, 2010). 2 Segundo Melo (2010, p. 234, grifos do autor) ao apontar o fenômeno da reificação como resultado do ‘fetichismo da mercadoria’, Marx já tinha diante dos olhos a experiência de um capitalismo relativamente avançado [...] em que os processos de produção, levados a um alto grau de desenvolvimento, criariam relações impessoais de socialização. Pois quando o mundo das mercadorias se impõe de forma eficaz diante dos homens e os sujeitam às suas próprias leis de reprodução (como no caso sublinhado por Marx, da autovalorização do capital) os sujeitos passam a adotar atitudes como se esse mundo externo da produção fosse o mundo da própria natureza, de modo que a relação entre homens – se transforma numa relação entre coisas. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 20 Segundo Honneth (2007b), Lukács demarca três dimensões essenciais por meio das quais se podem compreender o fenômeno: a relação com o mundo objetivo na qual os objetos são vistos como coisas; a relação com a sociedade em que os indivíduos enxergam seus parceiros de interação como objetos; a reificação do sujeito consigo mesmo, quando as próprias características pessoais são utilizadas como meros recursos para obtenção do lucro. Entretanto, estas formas nas quais a reificação se exprime (em acordo com o conceito formulado por Lukács) são consideradas por Honneth (2007b) muito centradas no contexto economicista, de maneira que todas as esferas da vida seriam atingidas pela expansão do capitalismo e o fenômeno se restringiria a uma dimensão ontologizante do processo: É preciso atentar nesse ponto para um dos aspectos mais importantes da reatualização do conceito de reificação. Assim como Habermas, também Honneth pretende reformular tal conceito evitando um reducionismo funcionalista em que a teoria crítica, desenvolvida tanto a partir de Marx como de Lukács, permanecia presa a uma imagem de sociedade entendida essencialmente a partir do trabalho, uma vez que analisaram a sociedade e os fenômenos da reificação com base no conjunto das relações de produção (Melo, 2010, p. 237, grifos do autor). É a partir deste debate que Honneth (2007b) irá empreender sua reelaboração do conceito, afirmando posteriormente em um novo texto, a necessidade de se distanciar de um paradigma produtivista por acreditar que o sentido puramente ontológico do conceito tenha abrangência limitada: Sob ‘reificação’, eu não gostaria de ver entendido, tal como acontece em geral hoje no emprego do conceito, apenas uma postura ou ação através da qual outras pessoas são ‘instrumentalizadas’; [...] Diferente da ‘instrumentalização’, a reificação pressupõe que nós nem percebamos mais nas outras pessoas as suas características que as tornam propriamente exemplares do gênero humano: tratar alguém como uma ‘coisa’ significa justamente torná-la (o) como ‘algo’, despido de quaisquer características ou habilidades humanas. Possivelmente a equiparação do conceito de ‘reificação’ ao de ‘instrumentalização’ só ocorra com tanta freqüência porque com ‘instrumentos’ nós normalmente nos referimos a objetos materiais; mas isto leva a perder de vista que aquilo que torna pessoas adequadas a serem utilizadas como instrumentos para fins de Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 21 terceiros geralmente são suas características especificamente humanas (Honneth, 2008, p. 69-70, grifos do autor). A abordagem honnetiana opera um deslocamento do ponto de referência conceitual em relação à Lukács, de forma que a reificação é considerada no nível do agir social (práxis intersubjetiva) e sua reconstrução teórica elege contemplação e indiferença como conceitos-chave ao entendimento dessa nova leitura: Aqui, “contemplação” não significa tanto a postura de quem está absorto ou concentrado na teoria, mas uma atitude de observação paciente, passiva; e indiferença quer dizer que o agente já não está afetado emocionalmente pelo que ocorre, mas deixa acontecer sem se implicar de fato, apenas observa (Honneth, 2007b, p. 29, tradução nossa). Para o autor, a reificação caracteriza-se essencialmente pelos aspectos de contemplação e indiferença, produzindo transformações expressivas nos atos sociais, de forma que os indivíduos não mais participam ativamente dos eventos, comportando-se como meros expectadores. A atitude contemplativa exprime, portanto, uma postura de “observação neutra” (Melo, 2010), na qual os indivíduos tornam-se passivos aos acontecimentos; ao passo de que a indiferença demarca a não existência de engajamento ou interesse, não sendo afetados psíquica ou existencialmente pelo evento. Dessa forma as relações pessoais e os próprios predicados individuais são empreendidos com indiferença, sem qualquer vestígio de atitude emotiva ou de implicação; isto é, são vistos como se tivessem “qualidades de coisa” (Trevisan; Rossatto, 2010). Ainda inspirado na tese de Lukács, Honneth (2007b) irá compreender a reificação como segunda natureza humana, mas não de maneira exclusivamente ligada à esfera econômica. Segundo o autor, a percepção reificante está tão impregnada no cotidiano que se transforma em hábito durante o processo de socialização, em tal grau que é capaz de determinar comportamentos individuais, atingindo todo o espectro da vida humana. Por isso, Honneth (2008, p. 72) indica que sua intenção representa a tentativa “[...] de chamar atenção para o caráter não-epistêmico desta forma de reconhecimento”, buscando mostrar que existe uma condição apriorística de assunção da perspectiva do outro, denominada por ele “reconhecimento elementar” (Honneth, 2007b, 2008). Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 22 Baseado em John Dewey3, o autor compreende a experiência de uma atitude intersubjetiva de envolvimento existencial consigo mesmo e com o Outro, que possui anterioridade genética e categorial em comparação a todas as outras atitudes do sujeito. É uma forma de experiência originária de todas as outras vivências, caracterizada pela proximidade, não-distanciamento e engajamento prático com os próprios desejos e com o mundo circundante. Partindo destes pressupostos, o autor chega ao raciocínio de que a conduta de implicação precede a apreensão neutra da realidade, de forma que o “reconhecimento elementar” precede o conhecimento das coisas, das pessoas e do mundo. Assim, para que um indivíduo seja capaz colocar-se na perspectiva de um Outro, é necessária uma forma de reconhecimento não apreendida através das capacidades cognitivas ou epistêmicas, mas por um momento prévio de abertura emocional, identificação e implicação afetiva: No processo de formação individual, a criança deve haver-se identificado em um primeiro momento com as pessoas de referência, deve tê-las reconhecido emocionalmente antes de poder alcançar um conhecimento da realidade objetiva mediante as perspectivas dos outros (Honneth, 2007b, p. 72). Reconhecer (to acknowledge)4 significa implicar-se, adotar uma postura na qual as manifestações de conduta de uma segunda pessoa possam ser entendidas como requisitos para reagirmos de uma maneira determinada, seja através de ações e 3 Honneth (2007b) utiliza como base teórica o pensamento de John Dewey para realizar a transição teórica do conceito de “cura”, elaborado por Heidegger, “implicação” em Lukács, ao de “reconhecimento”, inspirado na obra de Heggel, buscando condensar elementos teóricos pertinentes para defender a tese da precedência de um interesse existencial pelo mundo. Segundo o autor, “em dois trabalhos fascinantes [...] John Dewey delineou em sua teoria uma concepção da relação original do homem com o mundo que, inesperadamente, se assemelha em vários pontos às idéias de Lukács e de Heidegger. As reflexões de Dewey desembocam na afirmação de que toda compreensão racional da realidade está ligada previamente a uma forma holística da experiência, na qual todos os dados de uma situação são acessíveis qualitativamente a partir de uma perspectiva de compromisso interessado. Se seguirmos esta linha de pensamento suficientemente, falamos de uma justificação não só para a transição do conceito de “cura” ao de “reconhecimento”, mas também podemos demonstrar a primazia de tal reconhecimento sobre todas as atitudes cognitivas frente ao mundo” (Honneth, 2007b, p. 52, tradução nossa). 4 Aqui Honneth (2007b) parte do conceito acknowlegement elaborado por Stanley Cavell, para esclarecer o sentido que pretende dar à categoria “reconhecimento elementar”. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 23 sentimentos amistosos ou de críticas negativas, de forma que haja uma atitude mínima de confirmação intersubjetiva (Honneth, 2007b). A postura de reconhecimento elementar pode ser vista como uma atitude prática, disponível por hábito no contexto societário, cuja realização faz-se essencial para podermos ter acesso a um saber acerca de si mesmo, das outras pessoas e do mundo. Igualmente, “[...] significa a expressão da valorização do significado qualitativo que possuem outras pessoas ou coisas para a realização de nossa existência” (Honneth, 2007b, p. 56, tradução nossa), de forma que ela não implica num assentimento positivo dos valores do Outro, mas no fato de re-conhecer, respeitar, enxergar o Outro como parceiro legítimo nas atitudes de interação, ou seja, a aceitação de determinadas qualidades ou capacidades de outras pessoas, a partir de um momento prévio de implicação afetiva. Honneth (2007b, 2008) então defende a tese de que a reificação implica no esquecimento do reconhecimento elementar, de maneira que a incapacidade de reconhecer passa a significar em última instância, a falta de condições de manter relações sociais não-distorcidas. Esquecimento não tem o sentido de desaprender ou simplesmente subtrair da consciência os sentidos e significados compreendidos na vivência do reconhecimento elementar, mas uma diminuição da atenção que relega a um segundo plano tais experiências: “a reificação no sentido de um esquecimento do reconhecimento, significa então, na relação intersubjetiva do conhecer, perder de vista o fato de que este conhecimento se deve a um reconhecimento prévio” (Honneth, 2007b, p. 96). Na reificação, o sujeito deixa de reconhecer o outro como próximo, [...] é anulado aquele reconhecimento elementar que geralmente faz com que nós experimentemos cada pessoa existencialmente como o outro de nós mesmos, queiramos ou não, nós concedemos a ele pré-pedicativamente [sic] uma auto-relação que partilha com a nossa própria a característica de estar voltada emocionalmente para a realização dos objetivos pessoais. Se este reconhecimento prévio não se realizar, se não tomamos mais parte existencialmente no outro, então nós o tratamos repentinamente apenas como um objeto inanimado, uma simples coisa [...] (Honneth, 2008, p. 75). Para Honneth (2007b) existe a possibilidade de uma percepção reificada em três diferentes dimensões: objetiva (percepção reificada do mundo físico), intersubjetiva 24 Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 (percepção reificada do mundo social) e subjetiva (percepção reificada de si), embora não haja necessariamente uma conexão entre todos os modos de apresentação do fenômeno. A gênese das diferentes relações de reconhecimento está intrinsecamente articulada ao processo de socialização, no qual ocorre a formação do indivíduo na relação consigo mesmo, com o Outro e com o mundo circundante, mas não necessariamente o indivíduo que apresente uma percepção reificada de si, concretiza esta perspectiva nas ações com o Outro (Honneth, 2007b). Isto porque o esquecimento do reconhecimento está relacionado às práticas ou mecanismos sociais na forma como eles se apresentam, os quais agem sistematicamente para possibilitar ou perpetuar o fenômeno da reificação, ocorrendo de maneira distinta em relação aos intrasubjetivos e subjetivos, como veremos adiante. Apenas a reificação do mundo objetivo está fundamentalmente conectada ao fenômeno em seu aspecto intrasubjetivo, pelo fato de que em sua gênese, a percepção reificada do mundo físico deve ser entendida como uma derivação do reconhecimento do mundo social. Para comprovar esta assertiva Honneth (2007b), apropria-se do pensamento de Adorno, afirmando que o acesso cognitivo ao mundo objetivo só ocorre diante da identificação com figuras de referência, ou seja, somente é possível falar de reconhecimento em relação a objetos quando o Outro nos orienta à percepção do mundo físico diante dos aspectos e significados por ele atribuídos. Assim, a reificação objetiva ocorre quando os indivíduos passam a não reconhecer as sensações subjetivas possíveis acerca dos objetos não humanos, bem como os significados atribuídos a eles, percebendo-os apenas como instrumentos despidos de qualquer outro tipo de sentido: Como no caso da reificação dos seres humanos, ocorre aqui também uma classe especial de cegueira do conhecer: percebemos os animais, as plantas ou as coisas identificando-os somente como coisas, sem ter em conta que possuem uma multiplicidade de significados existenciais para as pessoas que nos rodeiam e para nós mesmos (Honneth, 2007b, p. 104, tradução nossa). Já a dimensão intersubjetiva caracteriza-se por um tratamento instrumental do Outro, uma postura ou forma de conduta que distorce nossa perspectiva, criando um Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 25 tipo de hábito de pensamento, em virtude do qual as pessoas perdem sua capacidade de implicação com o mundo: Ela funciona como uma espécie de capa de dessensibilização para que o indivíduo não sinta compaixão pelo outro, levando-o assim, à perda da atitude original com ele e com seu entorno social (Trevisan; Rossato, 2010, p. 278). Nesta dimensão, existem duas causas possíveis para a adoção do comportamento reificante: quando as pessoas participam de uma práxis social na qual a mera observação do Outro se torna um fim em si mesma e, neste caso, a consciência acerca do engajamento existencial se perde; ou quando seus atos passam a ser governados por um sistema ideológico de convicções, o que automaticamente impõe aos indivíduos uma denegação do reconhecimento elementar (Honneth, 2007b). No primeiro caso, temos a participação dos indivíduos numa práxis unilateral, exercida de forma tão contínua que seu objetivo imediato autonomiza-se e leva à reificação, relegando as referências apreendidas no processo de socialização. Aqui, a ação (de observação) torna-se mais importante do que as referências de mundo que a antecederam, ocasionando o esquecimento do reconhecimento elementar. No segundo caso, na execução da práxis rotineira, o indivíduo está envolvido por sistemas ideológicos de convicções tão socialmente efetivos, que o conduzem a uma cegueira sistemática da condição humana de determinados grupos de sujeitos, normalmente sustentada por preconceitos e estereótipos vigentes. Neste caso o autor refere-se não a um tipo de esquecimento, mas a uma condição de “negação ou resistência” do reconhecimento elementar (Honneth, 2007b). A percepção reificada de si, ou dimensão subjetiva do fenômeno é denominada por Honneth (2007b) autorreificação e diz respeito à vivência distorcida adotada pelo sujeito em relação aos próprios desejos, sensações e vontades, de modo que estes são experimentados de duas formas: ou como elementos fixos e rígidos, definitivamente já existentes e prontos para serem descobertos; ou como se tais sentimentos e desejos fossem simplesmente produtos de nossa vontade, instrumentos a serem dispostos de acordo com as necessidades da situação apresentada. De qualquer maneira, no processo de autorreificação os próprios desejos, sensações e sentimentos são tratados como elementos que podem ser observados 26 Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 passivamente ou produzidos ativamente (Honneth, 2007b), de acordo com uma condição “interesseira” (Habermas, 1983). Para Honneth (2007b), a principal causa social da reificação passa pelas práticas institucionalizadas, que sugerem um modelo de apresentação de si padronizado, em acordo com as exigências hegemônicas. No contexto atual, diversas instituições exigem dos sujeitos formas públicas de apresentação que se adequem a uma gama desmedida de expectativas. Neste processo, cada vez mais os indivíduos são impelidos a simular sensações ou a fixar determinadas características de forma conclusiva, como se as próprias qualidades fossem objetos manipuláveis. A exemplo disto, temos os sites de busca de pares amorosos, as entrevistas de emprego ou determinadas redes de prestações de serviço que impõem diversas exigências, potencializando uma apresentação estereotipada de si na arena pública. A consequência disto é uma instrumentalização subjetiva, que ocasiona a simulação de sensações e a re-produção de padrões estereotipados de personalidade visando interesses específicos e produzindo indivíduos presos a identidades convencionais (Habermas, 1983) – que no afã de serem reconhecidos pelo exogrupo, ignoram os próprios anseios, desejos ou sentimentos, tratando-os como elementos indignos de atenção. REIFICAÇÃO DE HABERMAS A HONNETH Do mesmo modo que a relação intersubjetiva dos indivíduos com o mundo não deve ser entendida como uma mera apreensão cognitiva dos objetos, a relação do indivíduo consigo mesmo não deve ser concebida como um mecanismo completamente independente, mas como uma construção articulada ao processo de socialização, na qual as vivências intersubjetivas, à medida em que ocorrem, constituem vivências psíquicas, sentimentos e desejos em relação a si mesmo como componentes do mundo da vida compartilhados mediante a linguagem (Honneth, 2007b). Aqui podemos situar articulações e tensões possíveis em relação ao pensamento de Honneth e de Habermas. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 27 Diferentemente de Habermas (2002), Honneth defende a tese de que o tecido da interação social não se constitui através do ato cognitivo, mas pelo reconhecimento elementar (Dalbosco, 2010). Mas Honneth (2007b) não ignora a importância do desenvolvimento cognitivo ao processo de socialização (desenvolvido por Mead); ele antepõe, como condição necessária à construção do pensamento simbólico, a relação reconhecimento em sua dimensão existencial. Com Mead (1973) Honneth (2007b) reitera o fato de que a gênese das capacidades de interação ocorre pelo mecanismo de “adoção de perspectiva”, citando inclusive a leitura habermasiana do autor. Para ele, a compreensão dos códigos sociais compartilhados torna-se elemento essencial à formação das primeiras relações comunicativas, pois o indivíduo só toma consciência de si mesmo na condição de objeto “[...] na medida em que ele aprende a perceber sua própria ação da perspectiva, simbolicamente representada, de uma segunda pessoa” (Honneth, 2003, p. 131). Tal acepção remete às elaborações de Mead (1973) sobre o processo de socialização, que ele ilustra também a partir da atividade lúdica infantil denominada play, diante da qual o indivíduo torna-se capaz de adquirir consciência das próprias ações a partir da relação com um Outro. Temos então, que na medida em que o sujeito consegue colocar-se na perspectiva do Outro e perceber o mundo através dela, também será capaz de compreender os objetos como entidades de um mundo que existe independentemente de nossos comportamentos individuais (Honneth, 2007a). A crítica de Honneth (2007b) ao trabalho de Mead (1978), diz respeito ao fato dele considerá-lo um autor que apresenta certa propensão ao cognitivismo, pelo fato de não demarcar a importância do investimento afetivo da criança para com as pessoas de referência na gênese do processo de socialização. Neste sentido Honneth (2007b) complementa suas asserções com os estudos de Peter Hobson, Michael Tomasello e Adorno, partindo do pressuposto de que no surgimento das atividades intelectuais (a partir do ponto de vista comunicativo), a carga emocional investida no Outro constitui a condição necessária para permitir a adoção de perspectiva que leva ao desenvolvimento do pensamento simbólico. Assim, não é possível um processo de aprendizagem interativo sem o anterior desenvolvimento de um sentimento primário de afinidade com as pessoas de referência, pois: Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 28 Colocar-se na perspectiva da segunda pessoa requer uma forma de reconhecimento que não pode ser plenamente apreendida a partir de conceitos cognitivos ou epistêmicos, porque contém sempre um momento de abertura, entrega ou amor involuntários (Honneth, 2007b, p. 69, tradução nossa). Dessa forma, Honneth (2007b) sustenta que a capacidade cognitiva (ou racional) de tomada de perspectiva diante do Outro está intrinsecamente relacionada a uma forma de interação prévia, a saber, o conceito de reconhecimento elementar. E esta condição transcendental de reconhecimento atua como pressuposto à socialização dos indivíduos. Logo, No processo de socialização, indivíduos aprendem a interiorizar as normas de reconhecimento específicas da respectiva cultura; desse modo eles enriquecem passo-a-passo aquela representação elementar do próximo, que desde cedo lhes está disponível por hábito, com aqueles valores específicos que estão corporificados nos princípios de reconhecimento vigentes (Honneth, 2007b, p. 74, tradução nossa). Para Honneth o propósito teórico do conceito se assenta em pensarmos este reconhecimento elementar como uma condição apriorística, à luz do qual serão postos estágios de reconhecimento cada vez mais sofisticados, encontrando uma forma de interligar a dimensão existencial do reconhecimento aos propósitos de uma Luta pelo Reconhecimento (Honneth, 2003), tal como ele a desenvolveu eu seu texto anterior. A REIFICAÇÃO NO TERRENO DA PRÁXIS Em Honneth (2007b; 2008), o conceito de práxis não se reserva apenas ao terreno da atividade produtiva (como em Lukács ou Marx). Utilizando-se de uma base teórico-crítica habermasiana, o autor amplia o conceito de práxis aos termos de uma atitude intersubjetiva - que inclui tanto a esfera pública e as relações políticas de reconhecimento quanto suas dimensões existenciais aqui delineadas. Além disto, como autor referenciado nos parâmetros de uma Teoria Crítica, Honneth também visa uma leitura crítico-emancipatória dos fenômenos, assim como seu antecessor. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 29 Dessa forma, a própria reificação situa-se no terreno da práxis, relaciona-se às patologias da intersubjetividade humana e suas manifestações nas rotinas diárias do vivido (Trevisan; Rossatto, 2010). Aqui, a construção identitária dos indivíduos fica atrelada à condição do reconhecimento elementar, bem como às vicissitudes deste processo. Com Honneth (2007b) consideramos que a raiz de toda a sociabilidade humana reside no reconhecimento elementar. Somente esta experiência irá levar o indivíduo a se compreender e apreender os Outros como sujeitos de intencionalidade, ou seja, sujeitos humanos. De forma que a própria construção do self é gerada a partir das dimensões existenciais do reconhecimento5 (Saavedra, 2008) – e corroborada a partir do desenvolvimento cognitivo da linguagem – já que esta condição elementar é também fundadora da condição humana em Honneth (2007b). Compreender o destino das dimensões existenciais do reconhecimento significa também compreender como se dão as relações afetivas originalmente estabelecidas pelos indivíduos, que, como elementos fundadores da percepção sobre o mundo e sobre si, têm um papel essencial na formação das capacidades interativas necessárias às ações emancipatórias. Ao explicitarmos a forma como tais relações se estabelecem, supomos também esclarecer a gênese de uma capacidade reflexiva essencial para a percepção das exigências da realidade: a forma como se dá a constituição das expectativas morais que serão expostas nas relações comunicativas. Pois de acordo com Honneth (2008) o reconhecimento elementar opera como pressuposto essencial à apropriação de valores morais, diante dos quais poderemos reconhecer o outro de uma forma determinada, normativa. Por conseguinte propomos uma articulação conceitual que inclua dimensões existenciais do reconhecimento apontadas por Honneth (2007b; 2008), devidamente aplicada à realidade sócio-racial do contexto acadêmico brasileiro. 5 A partir de textos inéditos e ainda não traduzidos do alemão, Saavedra (2008) - orientando de Honneth - conduz uma análise ativa da obra honnetiana sobre o conceito de reificação, chegando a este raciocínio. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 30 NOVOS PARÂMETROS AO CONCEITO DE AUTONOMIA A reificação em sua dimensão existencial (Honneth, 2007b) constitui, portanto, uma postura ou forma de conduta que distorce nossa perspectiva, distorce nosso olhar diante do universo. Ela pode evidenciar a abjeção (no sentido de degradação) da condição humana do Outro, dos próprios sentimentos e desejos, bem como dos significados existenciais atribuídos aos objetos não humanos. A percepção reificante em sua dimensão existencial torna-se um hábito tão impregnado no cotidiano que acaba determinando comportamentos individuais dos sujeitos. E, se a construção do self é gerada a partir das dimensões existenciais do reconhecimento (Saavedra, 2007b), para que as relações no contexto da práxis sejam menos assimétricas, faz-se mister a superação da reificação em sua dimensão existencial, já que esta opera na difusão e solidificação de práticas que agem sistematicamente para manter relações desiguais no contexto vigente (Honneth, 2007b). Vejamos agora como esta conceituação pode ser articulada ao contexto sócioracial brasileiro. O MODO EXISTENCIAL DE REIFICAÇÃO E SEUS EFEITOS NO CONTEXTO RACIAL BRASILEIRO: APORTES PARA DISCUSSÕES DE POLÊMICAS CONTEMPORÂNEAS A reificação em Honneth (2007b) representa uma postura que distorce nossa perspectiva, evidenciando a degradação da condição humana do Outro e, por consequência, dos objetos com significados existenciais e/ou de si mesmo. Segundo Honneth (2007b) o núcleo da reificação reside no esquecimento do reconhecimento. Neste sentido o processo de reificação não se relaciona diretamente à sua gênese, mas à solidificação das práticas ou mecanismos sociais que, quando se transformam em hábitos tornam-se tão cristalizados que impedem o acesso original ao significado qualitativo que possa ter o próximo ou mesmo os próprios sentimentos e desejos. Afirma Melo (2010) que a tarefa fundamental da teoria crítica é buscar suas fontes sociais nas práticas e mecanismos que perpetuam este tipo de reconhecimento. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 31 Compreendemos a partir dessa articulação que a reificação pode ser ocasionada pela instituição de práticas sociais que impedem o acesso à condição existencial de reconhecimento ou reconhecimento elementar – como designado por Honneth (2007b; 2008). Como já vimos anteriormente, na dimensão subjetiva do conhecer ou autorreificação, o sujeito adota uma vivência distorcida em relação aos próprios desejos, sensações e vontades, tratando-os como elementos fixos e pré-determinados ou como instrumentos (Honneth, 2007b). Neste caso, as práticas relacionadas são operadas pelos próprios sujeitos, como a simulação de sensações e/ou a reprodução de padrões de vida estereotipados. Aqui, a percepção reificada de si implica na adoção de uma postura de observação em relação às próprias pretensões e desejos, que ocasiona a instrumentalização da subjetividade através do esquecimento dos próprios reclames individuais (Honneth, 2007b) ambicionando maior aceitabilidade no contexto social. Esta discussão nos remete à condição heterônoma de vida dos sujeitos, que, ao reproduzirem um padrão de vida pressuposto pela sociedade, confirma uma espécie de sentença que se realiza pela interiorização dos conteúdos convencionados pelo sistema normativo. A situação de heteronomia se expressa pela recusa de uma identidade que vá para além das convenções e estereótipos prescritos. Facilmente identificamos a complexa situação dos negros que se omitem em relação à própria condição racial ou simplesmente renegam-na. Souza (1983), em seu brilhante texto Tornar-se negro, discute a conquista da ascensão social paga ao preço do massacre da própria identidade. Aqui, a deformação da própria existência ocorre através de um mecanismo subjetivo de inferiorização e/ou supressão da própria condição racial, concretizando a submissão a um código de comportamento que denega a própria imagem corporal e materializa a figura racista do “negro de alma branca”. No depoimento seguinte, retirado das elaborações da autora, podemos perceber claramente como o modo existencial de reconhecimento é esquecido em função de uma prática na qual a condição de artista toma relevo no processo identitário; para corroborar a negativa da própria condição racial: “Eu estava crescendo como artista e então ia sendo aceito. Aí eu já não era negro. Perdi a cor [...] Eu era aceito sem cor e ia vivendo. Esse jogo era meu jogo também” (Souza, 1983, p. 65). Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 32 Muitas são as estratégias elencadas pela autora, dentre elas, a aceitação da mistificação dada pela perda da cor, negação das tradições negras ou simplesmente a omissão de um posicionamento em relação à discussão racial. De qualquer forma, vale demarcarmos que quando ocorre a autorreificação, o indivíduo torna-se incapaz de se expressar em suas pretensões de validade, porque há uma instrumentalização subjetiva, visando uma aceitação por parte do exogrupo. Esta instrumentalização é resultado de um processo socializador carregado de contradições, do qual o negro torna-se produto, vitimando-se em função dos ditames sociais. Já a dimensão intersubjetiva do processo de reificação torna evidentes os impedimentos societários aos objetivos emancipatórios dos sujeitos, como veremos adiante. Para Honneth (2007b), em tal dimensão o tratamento instrumental do outro é gerado por um tipo de hábito de pensamento tão recorrente que a consciência sobre o engajamento existencial acaba se dissipando ou é denegada. No primeiro caso (quando a consciência se dissipa, ou seja, ocorre o esquecimento do reconhecimento), o hábito de pensamento materializa-se, suscitando uma práxis social em que a mera observação do outro se torna um fim em si mesma. Neste contexto, toda a consciência do engajamento existencial é esquecida, de modo que a prática se converte em algo unilateral, cristalizado e autônomo (2007b, 2008). É o caso dos atos de guerra, mencionados pelo autor: [...] em tais contextos é possível ver ou ler como, no transcurso dos acontecimentos, a finalidade da destruição do adversário se autonomiza a tal ponto, que mesmo na percepção de pessoas não participantes [...] gradativamente se perde toda a atenção para suas características humanas; no final, todos os membros dos grupos que presuntivamente são atribuídos ao inimigo são considerados apenas como objetos inanimados, coisificados, face aos quais a morte ou violação são justificadas sem dificuldade (Honneth, 2008, p. 76, grifos nossos). Sobre esta questão, podemos associar as diferentes práticas institucionalizadas de discriminação descritas por Munanga (1990). Segundo este autor, o racismo de assimilação corrobora-se através de práticas de imposição cultural, religiosa e de certos costumes, cujos efeitos podemos perceber de forma clássica no etnocídio indígena e das culturas negras que migraram para o Brasil na condição escravista. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 33 Mas estas práticas também podem ser percebidas em atitudes um tanto sutis, quando, a partir da introdução de determinados costumes, padrões de beleza e da homogeneização da imagem do povo brasileiro, os resquícios culturais advindos da diáspora negra são relegados à mera folclorização. Desse modo acaba ocorrendo, ainda que de maneira velada, uma resistência dos professores do ensino fundamental a aprenderem e lecionarem disciplinas renovadas, incluindo a resolução de impasses em situações discriminatórias, ao invés da valorização da cultura negra no cotidiano das crianças, para além das comemorações pontuais de 13 de maio e 20 de novembro (Santana; Alves, 2010). Com relação a isto, o maior reclame e preocupação dos professores diz respeito à própria formação. Entretanto, o que se verifica muitas vezes é um imobilismo em relação à equipe, pois pouco é feito para que este quadro se modifique. Para Santana e Alves (2010), a educação escolar entra numa crise de sentido com a instituição da lei 10639/03 e a falta de uma ação mais concreta por parte dos professores (que acaba sendo justificada pelo desconhecimento do tema) reforça a manutenção de práticas pedagógicas assentadas em princípios de homogeneidade e, portanto, de imposição cultural. Avaliamos, por conseguinte, que o foco excessivo na condição professoral e o temor por uma atitude de desconhecimento perante os alunos, ocasionam resistência por parte dos professores em apreenderem algo novo, fato que implica em se colocarem na condição de “construtores de saberes” e não de “meros portadores do conhecimento” – como discute Chauí (1981). Por consequência, as demandas acerca da discussão racial tanto na teoria quanto na prática escolar são ignoradas, a despeito de uma postura pretensamente “neutra” que ignora os conflitos e as peculiaridades acerca deste segmento. Com efeito, reitera-se a marginalização dos valores das culturas negras pela via da exclusão, de maneira que o debate sobre as diferenças é neutralizado, ignorado (Santana; Alves, 2010) e como resultado a própria condição humana dessas crianças é relegada – pois uma formação humanizante implica também na compreensão acerca das características que singularizam os grupos sociais. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 34 Assim, as atitudes de resistência ao cumprimento da lei 10.639/03 também contribuem ao etnocídio da cultura negra, afinal de contas, não há nada mais efetivamente violento do que a omissão da história de um povo e suas raízes às gerações futuras, objetivando sua morte cultural e a manutenção de uma história do Brasil que sustente as contribuições afro-diaspóricas como algo estritamente acessório. As práticas que perpetuam o racismo diferencialista também são demarcadas por Munanga (1990) através da segregação institucionalizada dos diferentes e/ou sua eliminação física. No âmbito internacional, o fenômeno conhecido como Apartheid ilustra o caso extremo de segregação instituída, bem como o genocídio aos judeus, por ocasião da segunda guerra mundial. Entretanto, afirma o autor, “[...] a segregação por hábito comum é possível até nos países como o Brasil” (Munanga, 1990, p. 53). Neste contexto, não seria um tipo de racismo institucionalizado pela segregação física, as imensas estatísticas de pobreza, a segregação geográfica dos negros às favelas e aos bairros periféricos em comparação à população não-negra, além, é claro, da histórica falta de acesso ao sistema educacional de melhor qualidade discutida ao longo deste texto? Nestes casos, as práticas que sustentam o racismo diferencialista e de assimilação (Munanga, 1990) demonstram claramente o quanto contribuem perpetuam a reificação (Honneth, 2007) e podem ser efetivas ao futuro de um segmento; instituindo, do ponto de vista da sociedade, a simples existência destes sujeitos como algo inadmissível, em casos mais extremos. A imagem do diferente torna-se inconcebível aos olhos da sociedade, de forma que a simples existência e/ou ocupação de determinados lugares sociais apresenta-se como algo intolerável em acordo com os ditames da política hegemônica, isto é, não há o reconhecimento intrasubjetivo da condição de sujeitos destes indivíduos. A segunda proposição de Honneth (2007b), relacionada à denegação do reconhecimento elementar, diz respeito a situações cotidianas nas quais a aderência a certos ditames ideológicos leva à rotinização cega de práticas despersonalizantes. Lembrando que aqui não ocorre o “esquecimento” (Honneth, 2007b), mas a negativa do reconhecimento elementar, ocasionada pela assunção de preconceitos e estereótipos. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 35 Podemos facilmente compreender a partir destes parâmetros, o porquê dos questionamentos tácitos sobre o fato de negros brasileiros estarem ocupando o lugar de professores, pesquisadores e intelectuais, lugares “inatingíveis” para sujeitos considerados de acordo com o imaginário dominante, indivíduos historicamente inferiorizados pela sua condição racial. Perde-se de vista a proposição de humanização do Outro, de forma que a associação entre raça e inferioridade é quase que automatizada pelo hábito. Tais acontecimentos perduram em função de uma ideologia do branqueamento – muito mais complexa no caso brasileiro, por carregar consigo o mito de democracia racial. Assim, a academia não se percebe racista, por priorizar de forma prescrita o discurso do mérito e da não existência do racismo, utilizados como formas de escamotear, num emaranhado de informações, a verdadeira face do racismo à brasileira (Pereira, 1998): um racismo cordial – que se converte em racismo acadêmico6, neste contexto. O negro no meio acadêmico é relegado a uma espécie de subcidadania (isolado, questionado e discriminado negativamente), assim como sua condição legítima de acadêmico acaba sendo obstruída dos olhares pela leitura distorcida de um contexto racial agonístico – conjuntura que há muito já deveria ter sido superada. A condição de negro aparece na visão hegemônica, sobreposta à condição de acadêmico, mas ao mesmo tempo, obscurecida pelo discurso da ideologia do mérito7: prática que constitui, nesta situação específica, a principal causa da reificação em seu modo existencial. Segundo Carvalho (2006, p. 08), “existe racismo onde o resultado do convívio social multiracial é a exclusão sistemática e generalizada do grupo racial negro”. O mesmo autor, ao chamar a atenção para o “racismo acadêmico”, demarca a centenária impunidade de nossas universidades diante do silenciamento crônico das situações de exclusão racial. 7 No Brasil, o sistema jurídico (do ponto de vista formal) e o discurso de funcionamento da sociedade estão impregnados pelo ideal do mérito, como política de avaliação do desempenho e apuração do merecimento, “[...] ideal considerado moralmente correto para toda e qualquer ordenação social, principalmente no que diz respeito à posição socioeconômica das pessoas” (Barbosa, 1996, p. 67-68). Contudo, no contexto brasileiro a igualdade fica exclusivamente no plano das ideias, pois o sistema social de desigualdades é soberano em relação ao ideal jurídico, ou seja, os sujeitos deveriam nascer “livres e iguais”, mas são discriminados no plano social, seja pelas relações sociais estabelecidas, pela origem socioeconômica ou pela condição racial. A consequência disto é que as produções individuais são incomparáveis entre si (Barbosa, 1996), de forma que toda e qualquer avaliação justificada pelo critério meritocrático, tem em suas raízes a função de alienar os sujeitos das deficiências estruturais do Estado. O discurso 6 Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 36 Esta situação obtusa pode ser ratificada pelo silenciamento sobre a situação de desvantagem do negro; o qual se deve, em grande parte, ao fato de que a própria academia não se vê racializada (Carvalho, 2006). Assim, em muitos segmentos ainda é incontestável a crença de que apenas os critérios de excelência sustentam a configuração atual (e eminentemente não-negra) de nossas universidades públicas. (IN)CONCLUSÕES: PENSANDO A QUESTÃO RACIAL A PARTIR DO MODO EXISTENCIAL DE RECONHECIMENTO Acreditamos que as teorizações honnethianas acerca do modo existencial do reconhecimento contribuam de maneira profícua para pensarmos as relações raciais no Brasil, principalmente a partir da concepção de um momento prévio de implicação afetiva; inaugurando a ideia de um re-conhecer primordial, que condiz tanto com a impressão da própria imagem, quanto como a expressão de legitimidade do Outro nas relações interativas. Vejamos como esta teorização nos pode ser útil. No caso da autorreificação, ocorre uma instrumentalização subjetiva, de forma que o indivíduo, produto de um processo socializador estigmatizante, cede aos ideais hegemônicos, aceitando a mistificação dada pela cor ou omitindo-se em relação a situações que tangem à discussão racial. Assim, os sujeitos acabam tornando-se incapazes de se expressarem em suas pretensões de validade, facilitando a manifestação de atitudes racistas. Já em ambos os processos descritos para a dimensão intersubjetiva da reificação, ocorre o seguinte fenômeno: quando não há o reconhecimento intrasubjetivo e, por vezes, objetivo – pois ambos estão intrinsecamente relacionados segundo Honneth (2007a) – o processo de assunção da perspectiva do Outro (ou implicação) é denegado ou esquecido, de modo a ocasionar atitudes de contemplação e indiferença, nas quais o próximo é tratado como objeto inanimado, degradando sua condição humana (Honneth, 2008). As ações então passam a ser guiadas por relações coercitivas e distorcidas. meritocrático toma função de instrumento de dominação, estabelecendo-se como ideologia do mérito (Carvalho, 2006). Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 37 No primeiro caso citado, temos a conversão do reconhecimento elementar numa prática cega aos ideais de autonomia. Dessa forma, na prática escolar, as demandas acerca da discussão racial acabam sendo ignoradas, neutralizadas em função de um foco na condição “professoral”, reiterando a marginalização da cultura negra e ocasionando a negação de uma formação humanizante às crianças - que implique minimamente na discussão sobre características que singularizam os grupos sociais. Já no segundo caso, o lugar ocupado por sujeitos negros na academia constitui, levando-se em consideração o olhar hegemônico, a representação deformada daquilo que é tido como adequado, pois a condição de negro e intelectual não é prescrita como um hábito, de acordo com os procedimentos da norma vigente. Dessa maneira, o racismo toma espaço em nossa sociedade e manifesta-se a maioria das situações de modo silencioso, (e por vezes, inexprimível para muitos); de maneira que a condição de implicação (seja por parte de um Outro, da sociedade ou das instituições) em relação a este segmento é denegada ou esquecida, ocorrendo o fenômeno da reificação. Isto significa, de forma prática, que o preconceito e suas manifestações continuam vigorando em solo brasileiro, entretanto, prosseguem repetidamente obscurecidos por atos de contemplação e indiferença. Estes ocorrem tanto por via da interiorização subjetiva, quanto através das relações sociais e como vimos, a discussão se estende a temas polêmicos em solo brasileiro quer sejam: a educação em nível fundamental, os atos governamentais institucionalizados e as relações nos mais altos estratos da profissionalização acadêmica. De forma que a condição humana dos negros fica degradada, pois tais indivíduos não são sequer re-conhecidos como sujeitos; abrindo-se espaços para o estabelecimento de relações desiguais no cotidiano, que vão desde a violação dos direitos fundamentais até as ações institucionalizadas de eliminação do segmento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Lívia. Meritocracia à brasileira; o que é desempenho no Brasil? Revista do Serviço Público. Ano, 47, vol. 120, n. 3, set./ dez. 1996. Revista da ABPN • v. 5, n. 10 • mar.–jun. 2013 • p. 18-40 38 CARVALHO, José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. 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