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A reificação das emoções e a negação do sofrimento no trabalho contemporâneo MATHEUS VIANA BRAZ* Resumo: Como o mal-estar e o sofrimento profissional vinculam-se aos investimentos subjetivos entre indivíduo e empresa? Entre as exigências cada vez maiores de desempenho e a busca pela superação contínua de si mesmo, como o trabalhador exprime seu sofrimento e como isso é visto? A partir do arcabouço teórico-metodológico da Sociologia Clínica, objetivamos responder a essas questões, com ênfase na forma como as emoções e o sofrimento são majoritariamente concebidos no contexto de trabalho contemporâneo. Em suma, constatamos que em substituição à visão de um profissional neutro, que deveria deixar seus sentimentos fora do ambiente de trabalho, hoje as emoções tornam-se competências a serem geridas. Falar de fato do que sente, exprimir suas fraquezas e sofrimento representa vergonha e, por vezes, humilhação. Assim, reificam-se as emoções e a novilíngua gerencialista difunde uma abordagem distorcida da psicologia humana, de modo que somente são passíveis de verbalização as emoções que se colocam a serviço da produção. Palavras-chave: Gerencialismo; Saúde do Trabalhador; Sociologia Clínica. The reification of emotions and the denial of suffering in contemporary work Abstract: How, then, is professional malaise and suffering linked to subjective investments between individual and company? Between the increasing demands of performance and the search for continuous surpassing of oneself, how does the suffering of the worker express itself? From the theoretical-methodological framework of Clinical Sociology, we aim to understand this phenomenon, with emphasis on the way in which emotions and suffering are mostly conceived in the context of contemporary work. Briefly, we find that instead of the vision of a neutral professional, who should leave his feelings out of the work environment, today the emotions become competencies to be managed. To express the authentic feelings, weaknesses and suffering, the workers feel shame and sometimes humiliation. Thus, emotions are reified and the managerial new language diffuses a distorted approach of human psychology, so that only the emotions that are put at the service of production can be verbalized. Página MATHEUS VIANA BRAZ é docente do curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO), Psicólogo do Trabalho, doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp/Assis e Correspondente Internacional do Réseau International de Sociologie Clinique (RISC). Email: mvianabraz@gmail.com * 1 Key words: Management; Worker's health; Clinical Sociology. “Multiple faces with the world as their hat", de Todd Davidson. Ao fazermos alusão à atividade, focamo-nos ao que fazemos no mundo em três dimensões basais – material, social e existencial –, o que implica um confronto polissêmico de interrogações: O que eu faço aqui? Para além de minha remuneração, por que estou nessa empresa? A que e a quem serve meu trabalho? O que fazer? Como fazer? Qual o significado do trabalho em minha vida? O que me faz sofrer em meu cotidiano? Em outras palavras, a atividade é compreendida como elaboração, que contempla sensações e 2 Quando nos remetermos ao trabalho, é comum recorrermos a um viés dualista, enaltecendo que ele pode ser vivido como uma sentença, o que implica sofrimento, empobrecimento e angústia, ou ressaltando que o trabalho é fonte de emancipação, prazer, desenvolvimento pessoal e espaço para realização de desejo. Aqui, contudo, embora não discordemos dessas acepções, acreditamos que o cotidiano do trabalho, em sua complexidade, implica a interpenetração constante de ambas as dimensões, com a particularidade, por vezes, de uma dimensão se sobrepor e assumir protagonismo perante a outra. As tentativas de eliminar os conflitos e sofrimento nas organizações, nessa óptica se desvelam infrutíferas e ingênuas, pois é da natureza mesma da atividade, enquanto trabalho real e mesmo que isolada, se desenvolver sempre em um contexto social, histórico e institucional, imerso em dissensos específicos. Página Demarcações preliminares No momento da entrega do relatório final de um projeto em uma empresa, por exemplo, remetemo-nos ao trabalho realizado, enquanto produto do trabalho prescrito, mas essencialmente distante do trabalho real, à medida que externamente não é possível compreender a atividade que precisou ser feita a fim de que o trabalho fosse finalizado. 2 No original, “travail vécu”. 1 Contextualmente, no contemporâneo, embora os riscos físicos de trabalho não tenham desaparecido nos países industrializados, incluindo o Brasil, é notável que diminuíram e que suas condições melhoraram consideravelmente (GAULEJAC, 2011). Contudo, as condições subjetivas laborais parecem se degradar cada vez mais, o que revela o surgimento de novas fontes de risco e modos sofrimentos no trabalho. Segundo relatório da Organização para 3 A esse respeito, ver Castodiaris (1982). 3 O cotidiano laboral, desse modo, é produto da intersecção de problemáticas de ordem existencial (correlatas à história das pessoas), organizacional (vinculadas à gestão das organizações), social (determinadas pelas significações imaginárias3 e normas sociais) e econômica (vinculadas aos modos de produção e cenários políticoeconômicos) (AUBERT; GAULEJAC, 1991/2007). Logo, a compreensão do sofrimento de um trabalhador passa por uma análise em termos de processos sociopsíquico-organizacionais, de modo a evitar a oposição entre indivíduo e organização. Em consonância com a Sociologia Clínica, é prudente observar que as organizações se caracterizam pela integração de processos organizacionais (procedimentos, regras, normas, instrumentos e práticas de gestão), mentais (discursos, representações e percepções) e psíquicos (introjeção, projeção, identificação, idealização, incorporação). Ora, para afirmar-se e existir socialmente, se o indivíduo produz a organização, ela inversamente também o produz, visando assegurar sua reprodução. É então justamente em razão desse caráter intrínseco entre funcionamento psíquico e organizacional que não tratamos indivíduo e organização como entidades opostas ou sobrepostas, mas interdependentes e inter-relacionadas (GAULEJAC; HANIQUE; ROCHE, 2012). Página busca a produção de uma significação. O sentido no trabalho, por conseguinte, é definido como o produto de uma tripla elaboração: ação, sentir e significar. Quando nos interrogamos sobre qual o sentido de nosso trabalho, procuramos a realização desse triplo movimento do agir (DUJARIER, 2015). Faz-se pertinente esta digressão, pois é fundamental que explicitemos nossos níveis de compreensão. Em um primeiro plano, a atividade remete-se ao trabalho real e se contrapõe ao trabalho prescrito, isto é, traduz um trabalho que não se reduz àquilo que é normativamente prescrito e formalizado na organização (DEJOURS, 2012). Portanto, a atividade “compreende os elementos que resistem à simbolização, ao controle, e que vão além do pensamento que se pode ter ou fazer previamente, relativo ao trabalho” (VIANA BRAZ, 2014, p. 74). Depois, cabe sublinhar que o trabalho real se distingue do trabalho realizado, restrito ao exterior, ao que é feito visível e finalmente1. Por fim, apreendemos ainda que o trabalho vivido2, segundo Dujarier (2015), pressupõe a multiplicidade interpretativa das relações entre trabalho prescrito, trabalho real e trabalho realizado, em articulação direta com relatos e histórias de vida polissêmicas. Realismo econômico e a novilíngua gerencialista Nicolai Hartmann, filósofo representante do realismo crítico, remeteu-se à noção de aporia4 para designar problemas ou fenômenos incompreendidos e insolucionáveis no plano racional. A aporia comporta a contradição inerente a certo sistema de significados e compreende a “dificuldade efetiva de um raciocínio ou da conclusão que leva a um raciocínio” (ABBAGNANO, 2012, p. 84). A aporética, por sua vez, constitui a forma como se articulam as aporias e envolve as relações de fenômenos que configuram a ausência de passagem, a imobilização. Jacques Derrida, em Marges de la philosophie (1972), apropria-se dessa reflexão e discorre que o “evento aporético” é uma desconstrução e um deslocamento, que contamina e afeta os sentidos, os discursos, os valores de ato e as verdades incorporadas. A aporia compreenderia, nessa esteira, um 4 Literalmente, a palavra aporia origina-se do grego, significa “sem saída, sem caminho” (aporos), remetendo a incerteza, ausência de passagem. 4 Considerando tais premissas, o presente trabalho tem como objetivo problematizar a forma como o sofrimento e as emoções tendem a ser hegemonicamente tratados nas organizações de trabalho atualmente. Certamente, não se trata de fechar-se em uma generalização, uma vez que o cenário laboral brasileiro é marcado por uma polissemia de estruturas, as quais nunca poderão ser reduzidas a uma só óptica. O que questionamos, contudo, com um caráter teórico e reflexivo, é a predominância e expansão de um código discursivo específico, que emerge no universo corporativo, dissemina-se nas esferas públicas e privadas e parece arraigar-se de forma indelével na organização do social hodierna. De um lado, nos remetemos a um contexto de superação do paradigma taylorista, isto é, hoje em dia torna-se difícil conceber um trabalhador como uma simples engrenagem, desprovida de desejos e emoções. Por outro, embora as emoções sejam concebidas e inclusive utilizadas favoravelmente em direção ao aumento da produtividade, o sofrimento parece ser cada vez mais negado e sentido como ameaçador. Página Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2015), estima-se que 20% da população ativa laboral sofrem de algum transtorno mental relacionado ao trabalho. Dentre os 32 países da OCDE, um em cada cinco trabalhadores sofre de perturbações mentais, sendo que a maior parte é considerada leve ou moderada e vinculam-se predominantemente a alterações de humor e ansiedade. O relatório alerta, ainda, que a saúde mental deve ser considerada como prioritária no mercado de trabalho hodierno. Apesar da forte incidência e do crescimento em escala mundial, raros são os sistemas de seguro desemprego no mundo que contemplam problemas de saúde mental. Ademais, a prevenção de riscos psicossociais vinculados ao trabalho, no âmbito das políticas de saúde e segurança, progride lentamente em escala mundial (OCDE, 2015). Destaca-se ainda que em pesquisa realizada pelo Eurofound (2015), pouco mais de um quarto da amostra de 35 765 trabalhadores relataram que escondem seus sentimentos no trabalho na “maior parte do tempo” ou “sistematicamente”. No cerne das novas formas de sofrimento no trabalho, portanto, se coloca o entrave e ocultação da expressão de sentido e da comunicação das emoções (VANDEVELVE-ROUGALE, 2017). No plano simbólico, a novilíngua gerencialista evoca valores como Para entendermos essa transformação, resgatamos que a contradição compreende polos opostos e indissociáveis, cujo engendramento dialético coexiste com certa conflitualidade. Ainda que nessa polaridade o embate de forças coloque sempre essa relação em movimento, a contradição se distingue do paradoxo pelo fato de que a escolha é logicamente sempre possível (GAULEJAC; HANIQUE, 2015). No paradoxo e na aporética, ao contrário, os dois polos não se opõem, mas se excluem, de modo que o indivíduo não encontra meios para se libertar da obrigação de resposta nos termos que lhe são 5 No original: “[...] elle propose un monde présumé harmonieux, dans lequel disparaissent conflits d’intérêts, rapports de force, corruption et même contradictions”. 5 Resgatamos esses postulados, pois nos referimos aos efeitos da incorporação de um código linguístico específico, que parece expandir-se significativamente no mundo do trabalho atual, e cujo engendramento permanente das tensões encerra os trabalhadores em uma lógica paradoxal, que não admite proposições alternativas. Vandevelde-Rougale (2017), em consonância, baseada na noção de novilíngua (newspeak) criada por George Orwell em sua obra 1984, postula o conceito de novilíngua gerencialista (novlangue managérial) para designar um sistema verbal de expressão do discurso gerencialista, cuja difusão implementada pelas mídias para além dos espaços organizacionais, estabelece parâmetros específicos que balizam as relações humanas. As modalidades do exercício do poder se alteram, de sorte que a palavra “governança” surge como um eufemismo para mitigar qualquer tipo de relação entre patrões, direção etc. A fim de atenuar e ocultar as novas formas de poder torna-se comum dizer que os disparates de uma companhia foram unicamente produtos de “boas” ou “más” práticas de governanças. integridade, rigor, eficiência, otimização e honestidade (GAULEJAC; HANIQUE, 2015). A “boa governança”, nesse sentido, “propõe um mundo presumidamente harmonioso, no qual desaparecem conflitos de interesses, relações de força, corrupção e mesmo contradições” (GAULEJAC; HANIQUE, 2015, p. 106, tradução nossa5). Reduz-se a política a um conjunto de técnicas, conjecturadas pelo léxico organizacional e a novilíngua passa a ser recheada de anglicismos e neologismos, amparados em dogmas do universo corporativo: empowerment, organização por projetos, melhoria contínua, nova governança, gerenciamento pela excelência, equipes de alta performance, meritocracia pelo esforço, gestão do tempo e do estresse, para citar alguns. Em resumo, trata-se de um sistema simbólico amplamente difundido no universo corporativo, cujo ideal discursivo exerce uma forma de controle social, pela transformação das contradições em paradoxos. Página fenômeno que atravessa a linguagem e que, portanto, não é redutível a uma contradição lógica. E é justamente por reduzir-se a um sistema no qual não existe a possibilidade de saída que ela implica no plano discursivo a imobilidade e a negação de vias significantes alternativas. De acordo com o autor, ela pressupõe uma estrutura cuja oposição é esquecida ou ocultada, que traduz em seu bojo uma cadeia de significados inaceitável, mas que ao mesmo tempo carrega uma promessa, a expectativa de algo que esteja por vir. Na novilíngua gerencialista, supera-se o paradigma cujos conflitos devem ser sempre evitados. Predomina a ideia de que eles devem ser gerenciados, à medida que podem ser funcionais e alimentam a estrutura de inovação da empresa. Todavia, o dissenso e a natureza do conflito são sempre tratados no plano psicológico: problemas de comunicação, ausência de informações, choque de interesses entre departamentos ou interpessoais, malentendidos, “problemas de caráter”, “estrutura emocional fragilizada ou limitada”, “personalidade incompatível com a função”, “comportamento pouco Um dos efeitos colaterais centrais desse discurso está ligado à ausência de questionamento no nível coletivo e ao escamoteamento da natureza dos conflitos. Parece sempre clara a concepção de que a organização é produto das condutas individuais, mas se oculta que há nesse ínterim uma relação dialética, pois também as organizações induzem, governam e suscitam não somente uma cadeia específica de comportamentos, como também modos de ser e pensar previamente estabelecidos. Por manter-se sempre na superficialidade e no plano comportamental, a novilíngua gerencialista não concebe questionamentos vinculados a disparidades políticas e ideológicas imbricadas nas relações de trabalho (VANDEVELDE-ROUGALE, 2017). A descartabilidade coloca-se como inquestionável, uma regra já dada pelo jogo, o que gera uma situação paradoxal, sobretudo para profissionais que atuam em posições gerenciais e que se sentem impotentes a discutir diretrizes das quais não estão convencidos, assim como difundem um discurso de segurança e confiança, mesmo quando não sentem o mesmo. Em suma, seguem a cartilha gerencialista e incentivam as prescrições, mesmo que, por vezes, não estejam de acordo. Em um universo massivamente lógico, falar de sentimentos e sofrimento traduz uma exposição negativa, apreendida como fraqueza e fragilidade. Como a hiperperformance se coloca de forma imperativa, o sofrimento e adoecimento são mobilizadores de culpa e vergonha. Sabemos que no cenário atual os trabalhadores são cada vez mais 6 A naturalização da pressão, por exemplo, surge como resposta a algo “impossível de ser evitado”. Instaura-se uma lógica paradoxal, pois para alcançar o sucesso, é preciso “ser resiliente” e “se antecipar às mudanças” em um ambiente em constante mutação, entretanto predomina o sentimento de que cada mudança parece demandar maior carga de trabalho, reduzindo ainda mais a segurança no emprego. O estresse, portanto, nasce da incerteza do resultado e do sentimento de impotência. Quando o trabalhador não sabe se alcançará ou não as metas (sejam objetivas, sejam provenientes de uma cobrança interna), se conseguirá ou não fazer todas as atividades pendentes ou se será possível alimentar em dia os sistemas de prescrição, sua rotina tornase ainda mais estressante. estimulante”, “falta de automotivação” etc. Página impostos. Na injunção paradoxal, por consequência, a possibilidade mesma de escolha é barrada, de maneira que nenhuma saída alternativa é possível, afinal a novilíngua gerencialista se pauta no investimento da formação de uma lógica sólida, com rituais, códigos e gratificações simbólicas específicas, cuja função é sustentar jornadas de trabalho intensas. A novilíngua, enfim, instaura uma relação paradoxal do sujeito com seu trabalho. Do ponto de vista da gestão, lhe é requisitado inteligência emocional, foco em pessoas e sensibilidade aos componentes humanos que incidem no cotidiano laboral. Sem embargo, com a escalada da degradação das condições subjetivas de trabalho (GAULEJAC, 2011), as demandas ressoam de forma paradoxal, pois as emoções são colocadas em debate, mas se esquece que na gênese de conflitos entre indivíduos há sempre um componente social, que concerne a própria organização. Discursivamente, a novilíngua gerencialista reforça a 7 Em trabalho anterior (VIANA BRAZ, 2018), realizado com gerentes e diretores de organizações multinacionais, empiricamente observamos que queixas, manifestações de sofrimento e dificuldades surgiam de maneira oculta, periférica, e eram precedidas de justificativas generalistas (“faz parte”, “é o jogo”, “não temos escolha”), no entanto, também estava sempre presente certa “cobrança pessoal”, cuja injunção impunha como imperativo uma necessidade de atentar ao emocional, para conseguir lidar com a aridez do cotidiano e fazer frutificar a atividade laboral. Constatamos, por conseguinte, que, em substituição à visão de um profissional neutro, que deveria deixar seus sentimentos fora do ambiente de trabalho, hoje, as emoções se transformam em competências a serem geridas. Inteligência emocional (IE), inteligência relacional (IR), automotivação, resiliência, controle de si e perseverança são exemplos de terminologias que carregam em seu bojo uma perspectiva utilitária das emoções. Falar de fato do que se sente, exprimir suas fraquezas e sofrimentos representa vergonha e, por vezes, humilhação. Assim, reificam-se as emoções e a novilíngua gerencialista difunde uma abordagem parcial da psicologia humana, de modo que somente são passíveis de verbalização as emoções que se colocam a serviço da produção. Conforme sublinha Valdevelde-Rougale (2017), as “emoções negativas” permanecem à margem e nutrem continuamente esse sentimento de vergonha, de sorte que a expressão de sofrimento, no trabalho, traduz uma ameaça simbólica, que traz à tona a vulnerabilidade das condições subjetivas laborais, tal como se fosse posto à prova que a cena organizacional não é somente um espaço de desenvolvimento profissional. Ademais, quando um indivíduo pestaneja, recua ou não consolida algo que “inevitavelmente deveria ser feito”, é visto como um fraco profissional, sem grandes convicções e que não possui o perfil para o universo corporativo no qual está inserido. No horizonte desses julgamentos, compreendemos que esse trabalhador se desvela uma fonte de reativação do medo alheio e, uma vez que tal conduta foge à ideologia hegemônica, ela torna-se intolerável no ambiente laboral, alimentando a ideia de que é necessário preventivamente evitar ou excluir essa figura que desestabiliza o sistema. Página descartáveis; todavia, o “contrato de trabalho” não pressupõe somente uma dimensão racional. O contato do indivíduo com a situação de trabalho, envolve decuplicados fenômenos de ordem ideológica e psicológica que não podem ser banalizados. Ora, analisar essa relação pelo viés estrito da produção e da economia nos parece insuficiente, pois esse realismo se torna uma ferramenta para legitimar a falta de responsabilidade social de algumas companhias e a resignação dos trabalhadores perante uma série de injustiças sociais. As exigências cada vez maiores de performance, acompanhadas da cobrança pessoal pela manutenção de um padrão de vida específico, em termos materiais e simbólicos, tende a enclausurar o trabalhador em uma rotina insidiosa, a qual não autoriza o questionamento do papel do trabalho em sua vida. A lógica do “é ganhando do tempo que se ganha dos novos mercados” o enclausura em um paradigma de imediatidade e urgência ininterruptas. Ao mesmo tempo em que a urgência faz com que o trabalhador se vincule à instantaneidade, ele pode rapidamente desligar-se dela (AUBERT, 2003). Todavia, isso produz um efeito em que ele se vê confrontado Nesse ínterim, os indivíduos tendem a se encerrar em um universo de demandas sem limites e malgrado a presença de muitas críticas, a realidade paradoxal é comumente justificada com discursos prontos e estanques: “não temos escolha”, “o mercado é competitivo”, “joga-se o jogo”, “a única coisa que importa são os números”. Por mais caótica que seja a situação, o trabalhador deve fazer escolhas e é sempre individualmente cobrado e responsável por encontrar a harmonia na desordem. Afinal, são pagos para “encontrar soluções e não trazer problemas”. Por fim, embora a novilíngua gerencialista enfatize seu compromisso com o fomento à espontaneidade, observamos que, paradoxalmente, ela tende a gerar uma profunda desconfiança (quando não o medo) em relação à livre circulação da palavra e da criatividade. Com efeito, o trabalhador pode não mais acreditar nas promessas da empresa, no que concerne à proteção, à isenção de tornar-se um desfiliado, de maneira que sempre a vê com receio, como uma relação transitória. As empresas, por outro lado, insistem na difusão dessa lógica racional discursiva, que nega o sofrimento e não parecem reconhecer que isso não basta para acalmar a inquietude do desejo dos indivíduos. Considerações finais Historicamente, compreendemos que a passagem da modernidade à hipermodernidade foi marcada pela 8 Enquanto a gestão e a teologia do empreendedorismo difundem uma visão instrumental e estritamente econômica da vida, no âmbito do trabalho vivido, do cotidiano das empresas, esse discurso não faz suficientemente o eco esperado. Como os trabalhadores são impelidos a dominar cada vez mais suas emoções e seu tempo, para torná-los rentáveis, mais suas produções se esgotam, são marcadas pela evanescência e transitoriedade, como se não vissem mais o tempo passar. O sentimento de impotência ao fim de uma jornada de trabalho, então, tende a se proliferar nessa conjuntura. Mais ainda, se as novas tecnologias e a volatilidade do mercado dão a impressão de maior domínio e apropriação do tempo, notamos que, paradoxalmente, o indivíduo se vê refém de seu tempo e passa a não conseguir estabelecer uma hierarquia das prioridades de sua vida (AUBERT, 2010). com a instabilidade permanente. Portanto, é necessário buscar constantemente a adaptação e a transformação, de modo a se afirmar, evitar a exclusão e resistir à instabilidade (sem poder expressar de fato as angústias que lhe tocam). Página psicologização das contradições sociais, oculta conflitos sistêmicos, de ordem estrutural e direcionam toda sorte de sofrimento para o plano individual. De forma alguma estamos negando os avanços e superações existentes, por exemplo, se compararmos a visão de sofrimento hegemônica na era da Segunda Revolução Industrial. Somente chamamos a atenção para o fato de que, quanto mais emergimos na novilíngua gerencialista, quanto mais nos refugiamos em justificativas vinculadas à operadores como auto-motivação, resiliência, controle de si, perseverança, entre outras, mais alimentamos uma visão utilitária das emoções e 9 No Brasil, mormente a partir de 1990, com a explosão das redes eletrônicas de comunicação, o desenvolvimento da tecnociência e a internacionalização da economia, embora as condições de acesso ao consumo tenham permanecido desiguais, a globalização o colocou no centro de nossa sociedade e passou a difundir uma estética universal. Ganhou força, especialmente em centros corporativos e em uma parcela privilegiada de brasileiros a concepção de que o trabalho constitui o palco principal para realização de si mesmo (VIANA BRAZ; HASHIMOTO, 2017). Não é mais suficiente ser bem remunerado, reconhecido ou fazer um trabalho de qualidade. É preciso triunfar, subir ao pódio, sentir-se raro e se autorreferenciar. Com efeito, ao passo que o trabalho torna-se o epicentro da contemporaneidade, surgem também novas fontes de sofrimento, marcados por um alto investimento psíquico. Paradoxalmente, contudo, embora as condições físicas de trabalho venham melhorando consideravelmente nos últimos anos (GAULEJAC, 2011), as condições subjetivas parecem se degradar. Conforme apresentamos, as emoções são cada vez mais reificadas, concebidas de forma superficial, binária e desconsiderando conflitos estruturais que concernem toda organização. A expansão da novilíngua gerencialista, nesse sentido, impõe novos desafios ao campo da Saúde do Trabalhador, pelo fato mesmo de nos dar uma falsa ideia de neutralidade, ao mesmo tempo em que oculta sofrimentos fundamentais, que amiúde surgem no contexto organizacional. Página transição de um tipo de sociedade em que as trajetórias sociais eram estáveis e institucionalizadas, para uma sociedade cuja individualização dos percursos se desvela central (NIEWIADOMSKI, 2012). A injunção social que preconiza que cada indivíduo deve governar a si mesmo em busca da autonomia e autorreferenciação substitui as identidades profissionais. Gradualmente, o sentido no trabalho passa a ser atravessado por novos signos: fragmentação das grandes narrativas sociopolíticas e religiosas, fragilização da sociedade salarial, desinstitucionalização da família, aceleração do tempo, descrença na política, amplificação da mobilidade social, desterritorizalização das formas de pertencimento e sobrevalorização do mercado em detrimento ao poderio dos Estados-nações (VIANA BRAZ, 2018). Com efeito, a mobilização subjetiva vinculada às relações de trabalho operase em uma dinâmica de fluidez, transitoriedade, mas também de profunda instabilidade profissional e incerteza quanto ao futuro. O excesso marca a experiência de trabalho das pessoas em diversas vertentes: excesso de pressão, intensidade, riscos, cobrança, estresse e excesso de investimento psíquico. O imperativo da hiperperformance, na ausência de elementos estruturantes do coletivo, tende a fazer com que o indivíduo sinta com cada vez mais peso os efeitos dessas injunções, como se a busca pela afirmação de sua existência social não o levasse a lugar algum. Cabe ressaltar que obviamente as empresas nunca tiveram por função acolher o sofrimento no trabalho, todavia a partir do momento em que notamos que o imaginário gerencialista da excelência possui contrapartidas notadamente violentas (reenviadas ao plano individual), muito embora aparentemente seja neutro, torna-se premente o desenvolvimento de um Por fim, a Sociologia Clínica nos convida a trabalhar nas organizações no plano das metacomunicações. Ou seja, é infrutífero tentar combater as injunções paradoxais se servindo de seus termos mediadores. Ao contrário, é preciso analisar os cenários de acordo com a perspectiva clínica da complexidade, incluindo ingredientes como a historicidade, as narrativas de vida, as emoções genuínas (inclusive as consideradas ameaçadoras) e as angústias. Tratar de fato os conflitos implica sairmos do paradigma da imediatidade e assumirmos que para mudar é preciso abandonar posições maniqueístas e metodologias prescritivas. Esforcemo-nos para compreender o indizível, o não-dito e as contradições estruturais que permeiam 10 Mais ainda, corremos ainda o risco de acreditar que a lógica discursiva da novilíngua gerencialista pode ser levada para outros espaços. Esse movimento, denominado de empresarização da vida (EHRENBERG, 2010), assentado na ideologia da realização de si mesmo, mascara que o indivíduo tem vontade de fazer outras coisas, para além da empresa. Oculta-se que não necessariamente o desenvolvimento do potencial humano na empresa está ligado ao desenvolvimento autêntico do sujeito, isto é, que o progresso da organização nem sempre é simultâneo ao progresso do trabalhador. Uma pessoa feliz no trabalho, mas cuja vida toda foi condicionada pela empresa, pode descobrir-se em uma vida pobre e apequenada no âmbito pessoal. As modalidades de vínculos, igualmente, não podem ser transportadas de um lugar ao outro, como se isso fosse de fato possível. O comportamento assertivo, rígido ou talvez até excessivamente firme de um diretor não deveria ser instrumento de base para determinar a forma como responde aos conflitos em seu matrimônio. O profissional controlador, metódico, frio e “matador”, tido como alguém com grande inteligência emocional em seu trabalho, pode desvelar-se alguém muito pobre emocionalmente nos espaços familiares. olhar mais vigilante e sensível às novas formas de sofrimento e vínculos subjetivos no trabalho. Tampouco somos contra a eficiência, a qualidade e o desenvolvimento das organizações, mas sublinhamos a necessidade de repensar formas de agir que possam dinamizar e alterar sua lógica de funcionamento. O problema consiste no fato de que comumente, para satisfazer os critérios de performance e para se alinhar ao discurso corporativo, o indivíduo sente-se esgotado, vulnerável e impotente, o que dificulta a construção de sentido no trabalho. Em consonância com Gaulejac (2012), acreditamos que o pessimismo e o caráter agudo de nossa crítica encontra um correspondente direto no otimismo da ação. Preventivamente, é preciso ser mais sensível ao sofrimento no trabalho, debruçando sobre a trama complexa das emoções e angústias, para além do realismo econômico. Só assim iremos de encontro à psicologização das contradições sociais, em favor da intervenção em situações de mal-estar e sofrimento no trabalho. Página diminuímos a gênese do sofrimento humano. organizações de Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. ed. 6, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. AUBERT, N. Le culte de l’urgence. La société malade du temps. Champs Essais. Paris: Flamarion, 2003. AUBERT, N. La societé hypermoderne: une societé << par excès >> In: N. Aubert (org.) La societé hypermoderne: ruptures et contradictions. pp. 23-34. Collection Changement Social nº 15, Paris: L’Harmanttan, 2010. AUBERT, N.; GAULEJAC, V. 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Dissertação (Mestrado Acadêmico em Psicologia). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2018. Recebido em 2018-09-30 Publicado em 2018-10-09 11 nas Página os conflitos trabalho.