Reificação e estranhamento: Adorno e Chklóvski
As obras modernas abandonam-se mimeticamente à
reificação, ao seu princípio de morte. (Adorno,
Theodor. Teoria Estética, 2011:205)
Não somos Marxistas, mas se em nossa casa esse
utensílio se mostrar necessário, não comeremos com
as mãos por desprezo. (Chklóvski, Victor. A terceira
fábrica, 2002: 54)
Em linhas gerais, esse ensaio estabelece uma intersecção entre os conceitos de
forma e conteúdo, elaborados pelo filósofo alemão, Theodor Adorno, no seu Teoria
estética, de 1960, e a noção de estranhamento artístico (ostraniênie), desenvolvida pelo
eminente crítico literário russo, Victor Chklóvski, entre 1915 e 30, no âmbito da Escola
Formalista. Comecemos pelo último.
O conceito de estranhamento tal como o concebemos hoje teve na figura
Chklóvski o seu teórico mais contundente, embora não se trate propriamente de uma
criação do eminente crítico. Conforme demonstrou o historiador italiano, Carlo Ginzburg,
em Olhos de madeira, o fenômeno do estranhamento é tema recorrente em toda história
da literatura e pode ser aferido com certa facilidade desde os gregos até nossos dias. Na
obra de Chklóvski, o conceito incialmente apareceu em um consagrado ensaio de 1917
denominado “A arte como procedimento”. Depois disso, o termo sofreu diversas
reformulações no interior de sua obra e passou de um dispositivo de análise imanente do
fenômeno literário – sua acepção primeira – a um instrumento de extrema pertinência na
abordagem de fenômenos de natureza social. Entre os mais recentes renovadores do termo
está Svetlana Boym, uma crítica literária e artista plástica de São Petersburgo, emigrada
para os Estados Unidos, que tem mostrado a pertinência do conceito em contextos bem
diferentes daquele inicialmente pensado pelo teórico russo1. Também é mister citar o
trabalho do esteta francês contemporâneo, George Didi-Hubermann, que retoma a
Sirva de exemplo o seu ensaio “The poetics and politics of strangement: Viktor Shklovsky and Hanna Arendt”, uma
notável incursão do termo schklovskiano na área da Ciência Política.
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ostraniênie schklovskiana e mostra, com desenvoltura, o quão válida ela ainda se mostra
na análise de obras do universo das artes plásticas.2
No que se refere às declarações de Adorno concernentes aos conceitos de forma e
conteúdo, achamos mais indicado escolher o capítulo “Consonância e sentido”, do livro
Teoria Estética, por estar justamente nesta seção o melhor tratamento dado pelo autor a
esses dois temas. Também encontra-se na mesma parte algumas formulações
esclarecedoras no que tange à configuração formal da obra de arte, tema bastante afim do
universo formalista russo e que vem de encontro às intensão deste ensaio. No mais, para
anteciparmos um tópico que será desenvolvido mais adiante, ariscaríamos afirmar que
Adorno, guardadas as devidas proporções e arriscando um pouco, um ativo defensor do
formalismo artístico3. A passagem a seguir, extraída do capítulo em questão, embora de
forma um tanto quanto indireta, deixa transparecer tal defesa:
Quem invectiva contra o pretenso formalismo – contra o fato de a arte ser a
arte – advoga aquela inumanidade, de que ele acusa o formalismo: em nome
de cliques que, para melhor segurarem as rédeas dos indivíduos dominados,
exigem a adaptação a tal inumanidade. (Adorno, 2011: 221)
1.1 Ostraniênie
O surgimento, no século XX, de uma nova teoria da literatura, de procedência
russa, foi profundamente marcado pela concepção de “estranhamento artístico” de
Chklóvski. O jovem formalista russo, para muitos o enfant terrible do movimento,
advogou que, no processo de criação, o artista deveria prezar por formas desconhecidas,
por algo que se apresentasse como não-familiar ao repertório do receptor. Isso resultaria
em construções com um elevado grau de dificuldades, exigindo assim maior dispêndio de
energia perceptiva por parte do fruidor. Segundo essa concepção, a obra literária eficaz
seria aquela que, a partir de uma configuração formal particular – da sua logicidade
interna –, melhor retesse a percepção do fruidor sobre si mesma. Essa seria, advoga o
teórico, a maneira pelo qual uma dada obra alcançaria a sua almejada comunicação
estética.
Ao defender uma arte como uma “forma difícil”, embora fale, primordialmente,
do ponto de vista da manipulação do material linguístico, Chklóvski pretendia alcançar,
2
3
O ensaio .... do liv o O ue nos olha e o
Falar que ele gostava da música de Arnold Schoemberg echamado música dodecafônica
2
pelo menos, dois objetivos. O primeiro certamente estava relacionado à liberação da
percepção do interprete de uma espécie de letargia mental, já diagnosticada em sua época
(1917). Nesse sentido, quanto mais elevado o teor de “estranhamento” vinculado pela
obra, mais elevado também seria a sua eficácia estética e, consequentemente, maior a sua
ação em prol da des-reificação perceptiva daquele que eventualmente viesse a fruí-la. Em
“A arte como procedimento”, Chklóvski assim se coloca:
E eis que para se ter a sensação de vida, para sentir os objetos, para
sentir que a pedra e pedra, existe aquilo que se chama arte. A finalidade da arte
é dar uma sensação do objeto como uma visão e não como reconhecimento; o
processo da arte é o processo de singularização dos objetos e o processo que
consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da
percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser
prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objeto, aquilo que já se
“tornou” não interessa à arte. (Chklóvski, 1984:36)
O segundo objetivo consistia em se posicionar contra o vigoroso e persistente
pensamento por meio de imagens, um das características mais vigorosas do Simbolismo
Russo, movimento intelectual de grande amplitude que antecipou o Formalismo. Na sua
crítica a esse princípio estético, o teórico russo argumentou que a teoria segundo a qual a
imagem é sempre mais simples do que o conceito que ela ilustra é absolutamente errônea.
Também não poupou críticas ao modelo filosófico estabelecido pelo pensador inglês,
Herbert Spencer, que, entre outras coisas, também postulou que no processo de percepção
deve-se dispender a mínima energia possível para obter o máximo de resultado. A crença
de Chklóvski de que a verdadeira obra de arte deveria ser sinônimo de insólito,
rebarbativo e do não-familiar colocou abaixo ambas as teorias. Por essa razão, ele
concebia o material que se perpetua de uma obra a outra, mesmo recebendo configurações
particulares em cada nova aparição, acabaria enfraquecendo a vitalidade estética da obra
de arte. A busca pela singularidade da expressão foi, dentre todas, a mais recorrente
preocupação de seus escritos, tanto no que se refere às obras de caráter puramente teórico
como aquelas de pendor biográfico.
Essas formulação de Chklóvski encontram na obra do escritor mineiro, João
Guimarães Rosa uma ilustração bastante convincente. Rosa
As formulações de Chklóvski em torna da questão do estranhamento tem um
débito declarado para com as vanguardas históricas do começo do século XX, em especial
para com o Futurismo Russo. Há uma ligação direta entre estranhamento e Futurismo,
mais particularmente com aquilo que na Rússia foi denominado de Cubo-futurismo. Sem
3
possibilidade de ora nos determos sobre esse ponto, gostaríamos de ao menos indicar a
monografia Formalismo e Futurismo da crítica polonesa, Krystyna Pomorska, que
certamente é um dos melhores sobre o tema.
É possível estabelecer um percurso evolutivo do conceito de estranhamento no
interior da escola formalista russa. E tal percurso certamente teria como ponto de partida
os postulados pioneiros de Chklóvski da década de 191o e se estenderia até suas
configurações finais que termo recebeu nos trabalhos de Jakobson e Iuri Tyniánov. Nas
obras desses dois, o estranhamento ao mesmo tempo que apontava para um
enfraquecimento das ideias nascedouras do movimento formalista, uma espécie de canto
do cisne do movimento, também preludiavam o que veio a ser denominado no ocidente
de pós-estruturalismo.
A abertura do pensamento formalista, proposto por Tyniánov e Jakobson, rumo
àquilo que eles denominaram de “série literária”, parece não ter despertado o interesse de
muitos teóricos ocidentais e por isso não recebeu na época a devida atenção.
Recentemente, Didi-Huberman, mencionado anteriormente, apresentou uma leitura
atualizada e convincente do mais importante movimento crítico literário russo, no seu
livro O que vemos, o que nos olha. Tomemos como ponto de partida o ensaio “forma em
sua contextualidade”:
É o ponto de vista ampliado do paradigma; ele busca enunciar o
caráter metapsicológico, histórico e antropológico do trabalho formal enquanto
tal. Ora, ainda que esse programa tenha sido formulado por Tyniánov desde
1923, ele representa o aspecto menos compreendido do formalismo, na medida
em que a palavra “formalismo”, trivialmente empregada, significa mais ou
menos a recusa de compreender uma forma em seu contexto. É que a visão
trivial só se prende aos dilemas e ignora a dialética, e assim confunde
autonomia ou especificidade com tautologia. Os formalistas russos certamente
afirmaram os caracteres autônomos e específicos de toda construção formal –
mais jamais os encerraram numa concepção tautológica da obra de arte. Aliás,
eles condenavam a estética da “arte pela arte”. Jakobson, na Rússia, alternava
as elaborações teóricas, as reuniões com os poetas ou os pintores de vanguarda
e as pesquisas de campo – à maneira do etnolinguista – para recolher seus
documentos de poesia oral. Tynianov tentava dialetizar a “integridade
dinâmica” da forma – fator puramente sincrônico – com sua dimensão
diacrônica, sua “importância histórica” a reconhecer sempre, a problematizar
em sua própria dinâmica. Quanto a Eichenbaum, ele resumia todo o projeto
4
dizendo que “a teoria reclama o direito de tornar-se história” e, mais ainda,
reivindica soberanamente sua pertença a uma antropologia. (Didi-Huberman,
2010: 219)
Didi-Huberman toca num ponto importante que é a aura de descredibilidade que
pairou sobre o Formalismo Russo, em certos países do Ocidente. Esses, por sua vez, quase
sempre decorrentes de equívocos de assimilação de teses centrais do movimento. Mas, as
preocupações em desfazer tais mitos não é de hoje. Já em 1957, Jakobson se mostrava
empenhado em combater essa visão equivocada que de alguma forma ainda persistiam
mundo afora. Num artigo de 1957, o linguista esclareceu:
Neither Tynyanov, nor Mukarovsky, nor Shklovsky, nor I have
preached that art is sufficient unto itself; on the contrary, we show that art is a
part of the social edifice, a component correlating with the others, a variable
component, since the sphere of art and its relationship with other sectors of the
social structure ceaselessly changes dialectically. What we stress is not a
separation of art, but the autonomy of the aesthetic function. (Jakobson,
Roman, 1987: 377)
Muitos críticos, numa ânsia de sistematização, alegaram que a escola formalista
carecia de um programa estético estabelecido que contivesse todas as vertentes de
interesse do movimento, o que de fato nunca ocorreu. E isso se deve ao fato de que os
membros do formalismo, tanto aqueles reunidos sob a denominação de Círculo
Linguístico de Moscou quanto os representantes da Sociedade para o Estudo de
Linguagem Poética, de São Petersburgo, teorizaram sobre os mais diferentes temas, pelas
mais variadas perspectivas. O que de inegavelmente os unia era a defesa comum da
especificidade do fato literário, ou seja, o interesse mantido do começo ao fim em
reconhecer o que de fato tornava uma dada obra, uma obra literária. Essa especificidade,
que Chklóvski arrolou como um das características do estranhamento, tempos depois,
fora denominada por Jakobson de literariedade. A literariedade de Jakobson, tomada
como um desdobramento do formulação inicial de Chklóvski, marcou substancialmente
os trabalhos do Círculo Linguístico de Praga e do Estruturalismo Francês.
2. Ostraniênie, forma e conteúdo
Retomando o fenômeno do estranhamento, se tomarmos um de seus aspectos
elementares, a sua noção de organização do material linguístico (sua organização interna
(priom)), por exemplo, logo fica evidente que tal noção pressupõe uma certa logicidade
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interna à própria obra, uma preocupação com a orquestração da linguagem. O artista deve
saber dosar as partes constituintes da obra, distribuindo por assim dizer os seus
“acidentes” para dar a sensação de estranhamento. Nas palavras de Adorno, “a forma é
mediação enquanto relação das partes entre si e com o todo e enquanto plena elaboração
dos pormenores.” (Adorno, 2011: 221).
Ao pensar a obra literária por esse ângulo, ou seja, a partir da configuração do seu
material linguístico, tanto Adorno como Chklóvski teriam na Filosofia da composição de
Edgar Alan Poe uma ilustração convincente de suas teorias. Nessa obra, Poe analisa
palavra por palavra, estrutura por estrutura, cada um dos efeitos fônicos que estruturam a
composição seu famoso poema “O corvo”. “O mais escandaloso deste texto”, dirá
Umberto Eco, “é que seu autor explica a regra mediante a qual conseguiu dar a impressão
de espontaneidade.” (Eco, 2006:221) Na mesma chave, dirá Adorno: “uma coisa deve
provir de outra, e não apenas nas artes temporais; as artes visuais têm necessidade de igual
rigor lógico”. (Adorno, 2009: 200)
Ainda na Teoria estética, Adorno dirá algo que ressoa às formulações de
Chklóvski, anteriormente colocadas. Para o filósofo alemão, a obra de arte não deve ser
concebida enquanto uma “fetichização” individual de nenhuma de suas partes, ou melhor,
enquanto fragmentos autonomizados. Em linguagem mais simples, ele advoga que não se
pode decompor em partes menores aquilo que fora, a duras penas, configurado pelo artista
criador. Mas, sua formulação mais rente ao estranhamento artístico de Chklóvski se
encontra no capítulo “Consonância e sentido” no qual ele escreve que “Na sua relação
com o outro, cuja estranheza atenua e, no entanto, mantém, ela é elemento antibárbaro da
arte; através da forma, a arte participa na civilização, que ela critica mediante a sua
existência.” (Adorno: 220). É justamente nesta pretensa participação da arte na
civilização, enquanto um “elemento antibárbaro” que Adorno denuncia sua mais evidente
intersecção com a poética do estranhamento chklovskiano que, como já dito, também
combatia a reificação perceptiva do fruidor.
Na perspectiva evidenciada por Adorno, o estranhamento artístico, ao mesmo
tempo em que representa uma particularidade da obra em que se insere, também adquire
uma dimensão de além texto: ele tem consigo um desejo utópico, ou – para lançarmos
mão de uma expressão recorrente da Escola de Frankfurt – uma “promesse de bonheur”
[promessa de felicidade]. Na sua tentativa de se opor ao mundo empírico reificado, o
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estranhamento formalista participa como um dispositivo que se apresenta como uma
possibilidade de harmonia social futura. Tal aspecto do conceito de estranhamento não
era, como poderíamos pensar, algo totalmente alheio ao seu criador. Chklóvski, em obras
da maturidade, como Knight’s move, Zoo, or letter not about love, ou mesmo Theory of
prose, procurou expandir a noção inicial do termo para além de um dispositivo crítico
capaz de fornecer respostas à uma literatura que nascia na Rússia, no século XX e obras
do cânone ocidental, embora não lesse em nenhuma outra língua que não a russa.
Intrínseco a isso, podemos entrever uma fecunda forma de crítica ao estado passivo do
sujeito no mundo contemporâneo: o estranhamento formalista se tornou um poderoso
instrumento de análise social capaz de corroborar para um reencantamento do mundo,
para uma volta às coisas em si, máxima já preludiada no início do século XIX por Edmund
Husserl, por meio da sua conhecida redução fenomenológica. Numa passagem de Theory
of prose, nota-se uma primeira tentativa de ampliar o conceito:
There is old term, ostranenie, which was often written with one ‘n’
even though the word comes from strannnyi (strange). Ostranenie entered life
in such a spelling in 1917. When discussed orally it is often confused with
otstranenie, which means ‘distancing of the world’. Ostranenie is a form of
wonder at the world, of an acute and heightened perception of the world. This
is term presupposes the existence of so-called ‘content’[soderzhanie] if we
understanding by ‘content’ deferred, slowed-down, attentive examination of
the world. (Chklóvski: 2009: 188)
Em suma, o combate à coisificação, esteja ela materializada na percepção
automatizada do leitor ante a obra de arte ou mesmo nas relações intrapessoais da
contemporaneidade, esteve, acreditamos, presente entre as tópicas do pensamento de
Chklóvski.
Em diagnóstico recente, o também frankfurtiano, Axel Honneth, retoma a
categoria da reificação que há muito permeia o universo intelectual alemão e que, mais
uma vez, denuncia certo similaridade com o pensamento do crítico formalista. Para
Honneth a categoria da reificação ainda é bastante válida por caracterizar certos processos
chamativos da contemporaneidade: “Como um fragmento não elaborado pela filosofia,
retorna a categoria da “reificação” desde o abismo insondável da República de Weimar e
se incorpora novamente na cena do discurso intelectual” (Honneth, Axel). Entre os
indícios contemporâneos que justifica a retomada dessa categoria filosófica alemã,
Honneth, apresenta três: a reificação no âmbito da literatura contemporânea; da sociologia
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cultural e da psicologia social. Dos três pincemos um, qual seja, o permite averiguar as
formas de representação da reificação no âmbito da produção literária dos nossos dias:
Em primeiro lugar (...) pode-se assinalar a existência de uma
quantidade de romances e relatos recentes que disseminam uma aura estética
de economia furtiva de nossa vida cotidiana: através do tipo de meio estilísticos
utilizados ou de uma seleção do vocabulário empregado, estes testemunhos
literários insinuam que observam o mundo como se seus habitantes,
essencialmente, tratam a si mesmos e também os demais como objetos
inanimados, ou seja, sem vestígio de sensibilidade ou do intento de uma
tomada de perspectiva. A lista de autores que poderíamos mencionar neste
contexto compreende os escritores norte-americanos Raymond Carver e
Harold Brodker, passando pelo enfant terrible da literatura francesa, Michel
Houellebecq, até os escritores de língua alemã Elfriede Jelinek e Silke
Scheuermann. (Honneth, 2007:14)4
Como lembrará Honneth no mesmo livro, o fenômeno da reificação em si não é
uma característica particular da contemporaneidade. O mesmo tema foi a tese central do
importante estudo de filósofo húngaro Georg Lukács, em História e consciência de
classe. Principalmente a seção “A reificação e a consciência do proletariado”. A obra de
Lukács, que em vários aspectos recupera pontos chaves de formulações de Karl Marx,
representou uma fecunda inspiração a uma série de pensadores, aí incluindo o próprio
Adorno. Para Lukács, a problemática da relação mercantil não aparece como uma questão
isolada na obra de Karl Marx. Ela também configura na sua manifestação “o protótipo de
todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de
subjetividade na sociedade burguesa”. Nesse sentido, um fenômeno comum ao universo
mercantil – o fetichismo da mercadoria – possui um protótipo na relação social entre os
indivíduos. Numa passagem importante de História e consciência de classe, essa
problemática aparece configurada das seguintes maneiras:
A essência da estrutura da mercadoria já foi ressaltada várias vezes.
Ela se baseia no fato de uma relação entre as pessoas tomar o caráter de uma
coisa e, desta maneira, o de uma “objetividade fantasmagórica” que, em sua
legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada,
oculta todo traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens.
(Lukács, 2012:194)
4
Tradução feita a partir do texto em espanhol. Honneth, Axel. Reificacion: un estudio en la teoría del
reconocimiento. Trad. Graciela Calderón. Bueno Aires, Katz, 2007, p. 14.
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E também:
Marx descrevendo o fenômeno fundamental da reificação: “o caráter
misterioso da forma mercantil consiste, portanto, simplesmente em revelar
para os homens os caracteres sociais do seu próprio trabalho como caracteres
objetivos do produto trabalho, como qualidades sociais naturais dessas coisas
e, consequentemente, também a relação social dos produtores com o conjunto
do trabalho como uma relação social de objetos que existe exteriormente a eles.
Como esse quiproquó, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas
que podem ser percebidas ou não pelos sentidos ou serem coisas sociais (...).
É apenas a relação social determinada dos próprios homens que assume para
eles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (Lukács, 2012: 199)
Nesse sentido, a relação entre as pessoas não é mais que uma relação entre coisas, uma
relação entre autômatos. Lukács vai mais adiante no e anuncia as implicações da
reificação num nível muito mais profundo:
Com a moderna análise “psicológica” do processo de trabalho (sistema de
Taylor) essa mercantilização racional penetra até na “alma” do trabalhador:
inclusive suas qualidades psicológicas são separadas do conjunto de suas
personalidades e são objetivadas em sistemas especiais e racionais e
reconduzidas ao conceito calculador. (Lukács: 2012: 201, 202)
A aceitação de tal diagnóstico, esteja ele nas formulações de Lukács ou mesmo
nas de Honneth, nos conduz a uma reavaliação da contribuição do conceito de
estranhamento de Chklóvski enquanto um dispositivo vigoroso ante à coisificação do
mundo, devemos reavaliá-lo no que ele seu alto teor de elemento “anti-bárbaro”5, na sua
energia desreificadora.
Pensado num sentido muito mais concreto, uma forma de reificação pode ser
aferida no âmbito da própria escola formalista russa. A massificação artística6 promovida
pelo realismo socialista de face stalinista tanto abafou a promissora carreira de
5
Para uma discussão das dimensões políticas do Formalismo Russo ver as seguintes obras: Boym, Svetlana.
“The poetics and politics of estrangement: Viktor Shklovsky and Hannah Arendt”. In: Tihanov, Galin.
Critical theory in Russia and the West. Routledge: New York, 2010, pp. 98-123. Também de Svetlana
Boym: Another Freedom: The alternative history of an Idea. Chicago and London: The University of
Chicago Press, 2012. Bennett, Tony. Formalism and marxism. Routledge: London and New York:
Routledge, 2ed., 2003. E, em certo sentido, também vale conferir Jameson: Frederic. The prison-house of
language: A critical account of Structuralism and Russian Formalism. Princeton: Princeton University
Press, 1974.
6
Para um entendimento deste período da História Russa cf. Groys, Boris. The total art of stalinism: Avantgarde, aesthetic dictatorship, and beyond. London/New York: Verso, 2011.
9
intelectuais como Iuri Tyniánov e Chklóvski7, como também calou mais profundo ao por
fim, direta ou indiretamente, na vida de artistas de talento inegável, como Vladimir
Maiakovski e Marina Tsvetáeva, dentre tantos outros.
Referências bibliográficas
7
Chklóvski teve seu pedido de retorno à Rússia negado diversas vezes. Por um longo período ele viveu
entre a Alemanha, a Finlândia e a Persa. Com o assassinato de seu filho pelos soldados stalinistas, seu
retorno fora concedido. Mas isso lhe custou uma renúncia pública de todas as suas concepções artísticas. A
“rendição” veio em 1930 sob o título de “Um monumento a um erro científico”. A habilidade de Chklóvski
fez deste texto uma espécie de grande alegoria. A obra não convence, mas aos olhos dos sensores funcionou.
Como disse Adorno, “para melhor segurarem as rédeas dos indivíduos dominados, exigem a adaptação a
tal inumanidade.” (Adorno: 2011: 221) Chklóvski, Victor. A sentimental journey: memoirs, 1917-1922.
Illinois: Dalkey Archive Press. 2001. Quanto a Tyniánov, um promissor intelectual, não tivera oportunidade
de levar suas pesquisas adiante. Ele e Jakobson representaram uma vertente menos ortodoxa do formalismo.
O conceito de “série literária”, a grande promessa formalista rumo a uma integração de outros saberes como
a história, a sociologia, a psicanálise, entre outras, não fora totalmente concluído. Jakobson emigrou para o
ocidente e Tyniánov teve que se contentar com uma vaga de professor na Universidade de Moscou.
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