ROMANCE E REIFICAÇÃO: GEORG
LUKÁCS, THEODOR W. ADORNO E
FREDRIC JAMESON.
À OCASIÃO DO CENTENÁRIO DE
HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE
BRUNA DELLA TORRE
Bruna Della Torre é pós-doutoranda no Instituto de Pesquisa Social (IfS) com a bolsa Max
Horkheimer, no departamento de Sociologia da Unicamp com bolsa FAPESP e editora
executiva da revista Crítica Marxista
.
Resumo: Este artigo se debruça sobre a teoria da reificação e do conceito de “totalidade” a ela
referido expostos por Lukács em História e Consciência de Classe para discutir os
desdobramentos dessa obra para a teoria do romance na obra de Theodor W. Adorno e Fredric
Jameson. Trata-se de debater a importância do conceito de “reificação” para a leitura que
Adorno fez do realismo do século XIX e do modernismo do XX e retomar a proposta de Fredric
Jameson de que o livro de Lukács é um manifesto, uma espécie de projeto inacabado cuja
atualidade ainda ressoa no presente.
Palavras-chave: George Lukács; Theodor W. Adorno; Fredric Jameson; História e
Consciência de Classe; teoria do romance
TORRE
Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
Está claro que não romperei este muro com a testa, se realmente não tiver forças para fazê-lo, mas não
me conformarei com ele unicamente pelo fato de ter pela frente um muro de pedra e terem sido
insuficientes as minhas forças.
Dostoiévski, Memórias do Subsolo
Apesar das referências explícitas a Goethe, Shakespeare, Defoe, Carlyle, Ruskin,
Schiller, Flaubert, Tolstoi, Konrad, entre outros, História e Consciência de Classe não é lida
como uma obra orientada para problemas da literatura e, em particular, do romance. Em geral,
não consta do currículo de estudantes de Letras e tampouco dos debates ligados à crítica literária
contemporânea. No entanto, talvez sem este livro – que inaugura a tradição chamada por seus
detratores de “marxismo ocidental” (Anderson, 1989; Losurdo, 2018), linhagem da qual é a
grande matriz – pouco ou nada do que foi a crítica literária dialética no século XX teria sido
escrita. Das reflexões sobre história à definição do marxismo como “método” de investigação
da realidade, da pergunta relativa à mudança de função do materialismo histórico ao problema
dos pontos de vista e de suas consequências epistemológicas e políticas, do conceito de
consciência de classe às considerações sobre a temporalidade, o livro de Lukács propõe não só
uma nova forma de compreender a obra de Marx e sua teoria do capitalismo, como inaugura
caminhos para uma nova teoria do romance na sua própria obra e nas teorias de seus seguidores
mais ou menos ortodoxos.
Há três maneiras de se ler Lukács. A primeira e mais comum envolve acompanhar o
autor nas muitas revoluções teóricas que marcaram sua obra e negar as obras de juventude –
período que vai justamente até História e Consciência de Classe – como uma espécie de desvio
idealista e esquerdista, como sugere o próprio autor em seus famosos prefácios à Teoria do
Romance (1916) e à História e Consciência de Classe (1923). Esse tipo de abordagem privilegia
a obra de maturidade em detrimento da de juventude e atribui aos primeiros escritos um valor
que é, no máximo, formativo. O segundo modo de ler Lukács é uma inversão do primeiro; tratase de uma defesa das primeiras obras em oposição ao desvio “estalinista” que até hoje sobrepuja
a leitura das obras de Lukács posteriores à década de 1920. O caso emblemático da fortuna
crítica que vai nessa direção é o de Theodor W. Adorno que, até o final de sua vida, defendeu
Lukács contra si mesmo, por meio de “reconciliações extorquidas” que fizeram do diálogo entre
eles um dos debates mais brilhantes do século XX. A leitura de Adorno reúne de maneira inédita
as reflexões do jovem Lukács sobre literatura às suas reflexões políticas e marxistas em História
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TORRE
Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
e Consciência de Classe. A terceira forma de acompanhar a obra de Lukács recusa o caminho
das rupturas e segue o desenvolvimento intelectual do autor a partir do desdobramento de uma
grande questão: a narrativa, que toma a forma do conceito de “totalidade” em seus escritos
políticos. Um de seus maiores expoentes é Fredric Jameson, para quem “a obra de Lukács pode
ser vista como uma meditação contínua, de toda uma vida, sobre a narrativa, suas estruturas
básicas, seu relacionamento com a realidade expressa, e seu valor epistemológico quando
comparada com outras formas de compreensão mais abstratas e filosóficas” (Jameson, 1985, p.
129-130).
Este ensaio apresenta alguns dos principais traços do conceito de “reificação” para se
debruçar sobre algumas as leituras que Adorno e Jameson fizeram desse livro. A ideia é tratar
dos desdobramentos da – há muito impopular – teoria da reificação e do já desgastado conceito
de “totalidade” a ela referido para a teoria do romance.
Reificação
132
História e Consciência de Classe consiste na reunião de uma série de ensaios escritos
entre 1919 e 1922, posteriormente organizados na forma de livro e publicados em 1923 pela
editora Malik, em Berlim. Quem financiou a publicação foi Felix Weil, que organizou também,
junto de Karl Korsch, a Primeira Semana de Trabalho Marxista [Erste Marxistische
Arbeitswoche - EMA], da qual Lukács foi um dos participantes mais destacados1. A semana, a
publicação de HCC e de Marxismo e Filosofia, de Karl Korsch, bem como a fundação do
Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt são marcadas por um esforço de renovação do
marxismo depois da falência da Revolução Alemã e da Revolução Húngara, da qual Lukács
havia participado.
1
Além de Lukács, participaram da semana,Felix e Käte Weil, Karl e Hedda Korsch, Karl August e Rose Wittfogel,
Richard e Christiane Sorge, Eduard e Gertrud Alexander, Julian Gumperz e Hede Eisler, Béla Fogarasi, Margarete
Lissauer, bem como Friedrich Pollock, Konstantin Zetkin, e Kazuo Fukumoto. Por muito tempo acreditou-se que
a EMA havia dado origem ao projeto do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, mas a mais recente biografia
de de Weil, escrita por Hans-Peter Gruber, mostra que o IfS já havia sido fundado quando a semana aconteceu.
Foi Weil quem concebeu a ideia de um instituto marxista a partir do modelo do Instituto Marx Engels de Moscou,
ligado à universidade e independente dos partidos comunistas. O nome de Korsch foi cotado para assumir a direção
do Instituto, mas sua atuação política seria um empecilho para a universidade alemã, até hoje alérgica ao marxismo.
O livro de Lukács seria um elemento essencial na formulação da “teoria crítica”, o nome que o marxismo assumiu
sob a pena de Max Horkheimer a partir da década de 1930. Nesse sentido, História e Consciência de Classe pode
ser compreendido como uma agenda de pesquisa desenvolvida pelo IfS nas décadas conseguintes.
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Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
Não é nenhuma novidade que História e Consciência de Classe inaugura uma nova
forma de ler a obra de Marx. Lukács descobriu no conceito de “reificação” [Verdinglichung]
uma nova chave de leitura de O Capital2, encontrou no método dialético o cerne da ortodoxia
marxista e sublinhou a importância de Hegel para a compreensão da obra marxiana. Assim,
contrariou o economicismo, o cientificismo e o mecanicismo presentes nos marxismos oficiais
dos partidos comunistas e na socialdemocracia alemã. Embora o entusiasmo com a efetivação
do proletariado como sujeito da história na Revolução Soviética seja um dos motores do livro
– que propõe, assim como Korsch, que o marxismo é “a expressão teórica de um movimento
histórico” (Korsch, 2008, p. 46) –, seus ensaios podem ser lidos igualmente como uma reflexão
sobre a derrota política, para a qual o conceito de reificação é fundamental (Eiden-Offe, 2021).
Marcado pela ambivalência própria daquele contexto, o livro aborda inequivocamente o
problema da ideologia – ou melhor, propõe uma nova teoria da ideologia que passa pela teoria
da reificação, que diz respeito tanto aos obstáculos quanto às possibilidades do movimento
revolucionário. A reificação, diz Lukács, adquire
133
importância decisiva, tanto para o desenvolvimento objetivo da sociedade
quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para a submissão de sua
consciência às formas na quais essa reificação se exprime, para as tentativas
de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos
destruidores, para se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge
desse modo. (Lukács, 2003, p. 198 - Grifos meus).
Orientado pelo problema das formas, que em sua obra de juventude aparecia vinculado
a questões estéticas, Lukács aborda a mercadoria como uma espécie de forma das formas, uma
“forma universal” (Lukács, 2003, p. 198) que é o “protótipo de todas as formas de objetividade
e de todas as suas formas correspondente de subjetividade” (Lukács, 2003, p. 193 - grifos meus)
sob o capitalismo. Por meio do conceito de reificação, Lukács aborda a passagem dos
desdobramentos objetivos do capitalismo para seus desdobramentos subjetivos, conferindo
centralidade ao problema da consciência, da vivência e do “ponto de vista” e, descobre campos
inexplorados pelo marxismo até então, como o indivíduo (e sua relação com a temporalidade).
2
Essa leitura dá origem não só ao chamado “marxismo ocidental”, como à subsequente tradição das chamadas
“Novas Leituras de Marx” e da crítica do valor (Hoff, 2021).
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Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
História e Consciência de Classe pode ser pensada como uma espécie de “evento”, uma
vez que é resultado de uma série de encontros teóricos inusitados de um húngaro – preocupado
com o desenvolvimento cultural e social de seu país – com o romantismo, a filosofia e a
sociologia alemãs e, por fim, com o marxismo e a revolução comunista. Como sugerem alguns
de seus comentadores, é possível afirmar, ademais, que em alguma medida, a obra filosófica de
Lukács tem origem em sua crítica literária, de modo que o marxismo aparece como uma
resposta prática para suas indagações filosóficas, que nasceram, por sua vez, de problemas
estéticos (Lichtheim, 1970; Jameson, 1985; Tertulian, 2008; Silva, 2021).
Isso significa que a trajetória de Lukács na direção do marxismo foi, de certo modo,
única, o que lhe permitiu ler O Capital informado por problemas que até então não faziam parte
da reflexão marxista. Todas essas questões estavam ligadas ao impacto da modernidade
capitalista na teoria dos gêneros e formas literárias, no indivíduo e na organização social, bem
como na percepção do tempo. Em livros como A alma e as formas (1911) e A Teoria do
Romance (1916), Lukács revisava o debate do romantismo e do pós-romantismo alemão a
respeito da alienação e de suas consequências para a épica, o drama e a lírica. Sua preocupação
centrava-se no problema da “mutilação da alma”, que relacionava a crise da forma à crise da
cultura3.
O mundo moderno “reificado”, nesse sentido, já aparecia como tema no conceito de
“segunda natureza” em A Teoria do Romance, que tratava do problema do confronto do
indivíduo com o mundo enrijecido e naturalizado das convenções sociais, com suas leis
implacáveis, “naturais” e exteriores aos homens. Nas palavras de Lukács,
Quando objetivo algum é dado de modo imediato, as estruturas com que a
alma se defronta no processo de sua humanização como cenário e substrato
de sua atividade entre os homens perdem seu enraizamento evidente em
necessidades suprapessoais do dever-ser; elas simplesmente existem, talvez
poderosas, talvez carcomidas, mas não portam em si a consagração do
absoluto nem são os recipientes naturais da interioridade transbordante da
alma. Constituem elas o mundo da convenção, um mundo de cuja onipotência
esquiva-se apenas o mais recôndito da alma; um mundo presente por toda a
3
Conforme destaca Arlenice Almeida da Silva, que escreveu um dos melhores livros sobre a obra de juventude
de Lukács, as reflexões de Lukács sobre a forma estão ligadas à sua relação com o Romantismo, especialmente
em sua primeira fase. Trata-se, diz a autora, de uma pergunta sobre a cultura que no fundo está profundamente
ligada à reflexão sobre a “possibilidade de uma vida sem alienação” (SILVA, 2021, p. 39). Nesse sentido, em
relação aos românticos, Lukács já daria um passo na direção de uma teoria materialista.
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Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
parte em sua opaca multiplicidade e cuja estrita legalidade, tanto no devir
quanto no ser, impõe-se como evidência necessária ao sujeito cognitivo, mas
que, a despeito de toda essa regularidade, não se oferece como sentido para o
sujeito em busca de objetivo nem como matéria imediatamente sensível para
o sujeito que age. Ele é uma segunda natureza; assim como a primeira, só é
definível como a síntese das necessidades conhecidas e alheias aos sentidos,
sendo, portanto, impenetrável e inapreensível em sua verdadeira substância.
(Lukács, 2007, p. 62).
Para Lukács, a crise da arte – especialmente, da épica – estava ligada à fragmentação do
mundo, agora distinguido pela irracionalidade da empiria capitalista. Nesse contexto, cabia ao
romance estruturar-se como uma busca de um sentido não mais dado organicamente e cuja
ausência (que incitava a busca) tornava-se ela própria o caminho para uma reconstituição – de
segunda ordem – do sentido perdido, por meio da forma. Lukács tratava, assim, de uma espécie
de “astúcia do romance”. O tema da busca pelo “sentido”, herdada de Weber, que informa a
crise da forma na Teoria do Romance, reunida à noção de Dilthey de “vivência”4 e de Bergson
de “durée”5 – envolvia a defesa de que a temporalidade da forma consistia num protesto contra
o tempo vazio da modernidade capitalista.
História e Consciência de Classe herda a ambiguidade de Teoria do Romance e de seu
próprio tempo: trata-se da exposição de uma crise profunda (do romance e do marxismo, ambas
assentadas em fenômenos sociais ligados ao capitalismo) e de uma busca por reconfigurar a
totalidade por meio da forma (e do protesto contra sua impossibilidade), na Teoria do Romance,
ou da revolução, em História e Consciência de Classe. Como destaca Arlenice Almeida da
Silva (2021, p. 203), assim como a Teoria do Romance expõe uma espécie de mapeamento dos
dilemas ligados ao romance, isto é, um estudo da irracionalidade da empiria, da descontinuidade
da matéria a ser configurada e da busca melancólica por um objeto perdido, uma ausência – que
o romance enquanto forma tenta substituir –, História e Consciência de Classe também se
4
“As vivências são as fontes das quais cada parte da obra poética/literária se alimenta, mas no sentido eminente
de que a vivência se torna criativa no poeta ao revelar a ele um novo aspecto da vida. (Dilthey,1922).
Conforme destaca Arlenice Almdeida da Silva, a mobilização do conceito de “vivência” tem um elemento estético
fundamental, no sentido de ser produtora de formas. Para Lukács, a vivência “não é só a interioridade, mas a
relação imediata entre interior e exterior” (Silva, 2021, p. 39).
5
Em seu livro “Matéria e Memória”, Bergson buscou mostrar como a concepção de tempo na história da filosofia
não comporta sua característica qualitativa. A esse aspecto qualitativo, ele dá o nome de durée. A percepção
matematizada do tempo, como sucessão de partes iguais, diz Bergson, faz parte de uma homogeneização da
experiência produzido pelo social, que não se verifica na experiência individual do tempo. Esse processo de
espacialização levaria a uma percepção do tempo como “quantidade sem qualidade” (Bergson, 1999, p. 87).
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Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
debruça sobre as possibilidades e obstáculos do acesso, por meio da práxis e da consciência, à
totalidade do processo social. Nessa chave, História e Consciência de Classe é também uma
espécie de investigação das formas do processo social capitalista e de suas deformações no
âmbito da consciência e da própria realidade.
Lukács, portanto, carrega para a leitura de Marx os problemas envolvidos no debate do
romantismo e classicismo alemão (Schiller, Schlegel, Kierkegaard, Novalis e Goethe), da
filosofia alemã (Hegel e Kant), da sociologia alemã (Weber, Simmel e Tönnies) e do vitalismo
(Dilthey, Bergson) (Cf. SILVA, 2021; TERTULIAN, 2008). O autor metamorfoseia a querela
dos antigos contra os modernos numa questão sociológica, buscando desvendar na obra de
Marx o que de fato constitui a modernidade capitalista 6 . Os conceitos de “comunidade” e
“sociedade”, oriundos da sociologia alemã, bem como sua preocupação com o indivíduo e com
o fenômeno do individualismo, são fundamentais para a leitura mais “sociológica” e menos
economicista de Marx. Com isso, Lukács propõe que o capitalismo, para Marx, é mais do que
um modo de produção econômico, mas um modo de produção da própria sociedade e do
indivíduo enquanto forma fragmentária típica desse mundo capitalista. Essa preocupação com
o “individualismo”, que advinha também dos escritos estéticos e do debate hegeliano e
goethiano a respeito da luta da poesia da vida com a prosa do capitalismo, fazem ressoar em
História e Consciência de Classe o problema alemão da Bildung, na qual essa “mutilação da
alma” passa a ser investigada em termos materialistas – elemento esse que se tornará um
programa de estudos do romance sob a pena de Adorno.
A reificação apresenta-se, então, em História e Consciência de Classe, como um
componente estrutural de toda a vida social, o que significa afirmar que a história da expansão
do capitalismo é a história da extensão do fenômeno da reificação para todas as esferas da vida.
Lukács desloca a centralidade do conceito de trabalho, cerne da interpretação de Marx até então,
para conceito de “fetichismo da mercadoria”, o que lhe atribuiu, até hoje, uma fama de
revisionista em meios mais dogmáticos. Para tratar das consequências da reificação para o
debate sobre o romance, vale destacar alguns dos principais elementos de seus dois aspectos
fundamentais: como processo objetivo e como processo subjetivo (lembrando sempre que este
é também objetivamente produzido).
6
Nesse sentido, Lukács pode ser lido também como um crítico da periferia do capitalismo, para quem o problema
da modernização é fundamental
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Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
Enquanto processo objetivo, um dos principais desdobramentos da reificação refere-se a
uma realidade invertida e, portanto, opaca, na qual uma série de articulações dialéticas torna
impossível a compreensão da sociedade a olho nu, ou seja, apenas no âmbito da superfície.
Trata-se sobretudo de uma explicação materialista da desordenação da empiria, que já estava
presente como diagnóstico na obra do jovem Lukács, e de uma investigação sobre as
possibilidades epistemológicas de conhecimento da totalidade.
Com a generalização da força de trabalho como mercadoria sob o capitalismo, diz Lukács,
a mercadoria torna-se a forma universal de conformação social. A troca entre força de trabalho
e salário, a forma básica de sociabilidade no capitalismo, apresenta-se como uma troca entre
iguais no mercado – uma pessoa vende força de trabalho e outra a adquire7. Como mostra Marx,
no entanto, a partir de uma série de processos (que não é possível retomar aqui), essa relação
envolve não só uma relação de equivalência, embora a envolva também, mas a exploração do
trabalho – que Marx só descobre quando olha para o sistema capitalista como um todo, para a
articulação entre a produção, circulação e distribuição de mercadorias, dinheiro e capital. A
extração de mais-valia não pode ser descoberta a olho nu, pois ela está encoberta por uma
complexa articulação de formas sociais. Isso significa que, no momento da troca entre força de
trabalho e salário há de fato uma troca de equivalentes, mas, se levados em conta o emprego da
mercadoria força de trabalho, o destino do produto do trabalho, bem como a distribuição desse
valor, como faz Marx, então é possível descobrir a exploração do mais-valia8.
O que interessa discutir aqui é a relação dos homens entre si e com as coisas, que é
ocultada pela troca mercantil imediata. A generalização da troca capitalista envolve
equivalência, um processo social que compara quantitativamente elementos qualitativamente
distintos, produzindo – efetivamente – uma abstração do caráter qualitativo dessas coisas; daí
o duplo caráter da mercadoria, discutido por Marx, esconder já o duplo caráter do trabalho,
7
Conforme destacou Jorge Grespan, “considerar todo o processo pela forma, significa examiná-lo pelo prisma da
sociabilidade que o constitui” (GRESPAN, 2019, p. 100)
8
Isso quer dizer que “o capital não tem simples ‘formas’, portanto, e sim formas aptas à realização de uma
‘função’ dentro do movimento mais amplo que o compõe, ‘percurso total’ a unificar o processo de produção e o
de circulação como algo por ele apresentado. São esses os processos que as formas funcionais ‘apresentam’,
resolvendo e recolocando desse modo as contradições mediante as quais se desenvolve o valor que se valoriza”
(GRESPAN, 2019, p. 100).
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Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
como valor de uso e valor 9 . Essa cisão do trabalho acarreta uma série de outras cisões –
separações do que está unido e uniões daquilo que está separado –, de maneira que a própria
realidade passa a se constituir sob a forma da contradição. O desdobramento objetivo da
reificação consiste no aparecimento de um mundo de coisas acabadas e de relações sociais que
aparecem como relações entre coisas, cujas leis enxergamos também como acabadas e contra
as quais nada podemos. Leis do mercado.
Lukács mostra como a divisão capitalista do trabalho contida na forma mercadoria e da
qual ela é resultado despedaça, assim, a imagem da totalidade social. Uma vez que o
capitalismo, baseado na divisão social do trabalho, tende a repartir-se em esferas distintas em
que cada parte tem sua função específica, essas partes tendem a se desenvolver independente
das outras, guiadas por uma racionalidade própria. Assim, a racionalização das partes levada
ao extremo leva à irracionalidade do todo, que aparece com mais evidência na crise econômica.
Isso quer dizer que o sistema capitalista funciona sob a lei das contingências, uma vez que os
sistemas parciais submetidos ao cálculo devem funcionar de maneira racional. Porém, essa lei
jamais pode corresponder à totalidade do sistema que precisa que suas leis jamais sejam
inteiramente e adequadamente cognoscíveis para funcionar. Assim, conforme discorre Lukács,
“toda a estrutura da produção capitalista repousa sobre essa interação entre uma necessidade
submetida a leis restritas em todos os fenômenos isolados e uma irracionalidade relativa ao
processo como um todo” (Lukács, 2003, p. 225).
Lukács reúne Marx e Weber para explicar como a divisão capitalista do trabalho constitui
uma série de sistemas parciais aparentemente autônomos: a economia, a política, o direito, a
ciência etc. Para Weber, essas esferas eram de fato separadas e a perda de sentido da
Modernidade tinha a ver com a multiplicação desses sentidos, que Weber chamou de
“politeísmo dos valores” (Weber, 1972, p. 41). Lukács adere parcialmente ao diagnóstico de
seu antigo mentor 10 , mas descobre que esses sistemas aparentemente independentes se
9
Lukács cita Marx: “Com a subordinação do homem à máquina, os homens acabam sendo apagados pelo trabalho,
o pêndulo do relógio torna-se a medida da velocidade de duas locomotivas. Sendo assim, não se pode dizer que
uma hora [de trabalho] de um homem vale a mesma hora de outro, mas que, durante uma hora, um homem vale
tanto quanto outro. O tempo é tudo, o homem não é mais nada; quando muito, é a personificação do tempo. A
qualidade não está mais em questão. Somente a quantidade decide tudo, hora por hora, jornada por jornada”. (Marx
apud Lukács, 2003, p. 205).
10
Um dos maiores mal-entendidos da recepção de História e Consciência de Classe consiste na ideia de que
haveria nesse conjunto de ensaios um “marxismo weberiano” – expressão cunhada por Merleau-Ponty (2006) em
1955 e difundida por intérpretes contemporâneos de Lukács, como Michael Löwy. Conforme procura demonstrar
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Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
desdobram a partir de uma mesma forma, a forma mercadoria, na qual a relação distorcida entre
sujeito e objeto do processo social, entre trabalho e capital, replica-se em cada uma dessas
esferas de maneira mediada.
Aqui o conceito de forma é fundamental. Trata-se não só de uma investigação das
formas ligadas ao processo social capitalista, mas de formas que se tornam autônomas e
produzem uma “objetividade fantasmagórica” (Lukács, 2003, p. 194) da realidade advinda
dessa inversão. Lukács redimensiona o problema da alienação ao afirmar que o “fetichismo da
mercadoria” é um processo social que produz a realidade na qual “o homem é confrontado com
sua própria atividade, com seu próprio trabalho como algo objetivo, independente dele e que o
domina por leis próprias, que lhes são estranhas” (Lukács, 2003, p. 199).
De um lado, fragmenta-se, por meio da divisão capitalista do trabalho, o objeto da
produção. A produção de um valor de uso – antes um processo orgânico de trabalho – aparece
separada no espaço e no tempo. Sua unidade como mercadoria, afirma Lukács, passa a não
coincidir com sua unidade como valor de uso. Por meio do cálculo, da racionalização e da
especialização, o processo de trabalho torna-se uma reunião de sistemas parciais que parecem
ser ligados uns aos outros de modo arbitrário. De outro, fragmenta-se o sujeito da produção: o
humano deixa de aparecer como verdadeiro portador do processo de trabalho. Como mais uma
peça na engrenagem da produção, ele perde seu caráter ativo, afirma Lukács, para assumir uma
atitude contemplativa frente ao processo de produção. O desdobramento subjetivo desse
processo está ligado à objetivação da atividade humana, uma vez que o trabalho torna-se uma
mercadoria que se vende no mercado (baseada na igualdade formal do trabalho humano
abstrato). O trabalho assume para o trabalhador, portanto, a forma de uma mercadoria que lhe
pertence, afirma Lukács. O operário é reificado, pois se depara com a sua força de trabalho
como algo alienado de si. As pessoas são incorporadas como parte do processo de produção,
como mais um elemento da maquinaria, como “parte mecanizada num sistema mecânico”
(Lukács, 2003, p. 204). Nas palavras de Lukács,
Löwy (2014), “marxismo weberiano” diz respeito à incorporação de ideias e argumentos de Weber pelas teorias
marxistas que mantêm uma posição política socialista. Não me parece haver razão suficiente para defender a
expressão, tendo em vista que Lukács argumenta justamente que um dos elementos que definem a ortodoxia
marxista é a possibilidade de se apropriar e criticar as mais variadas teorias burguesas sem abdicar do método
marxiano. O “marxismo weberiano”, portanto, não é uma mescla de dois métodos distintos, mas a subsunção do
arcabouço weberiano à dialética.
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Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
a mecanização racional penetra até na ‘alma’ do trabalhador: inclusive suas
qualidades psicológicas são separadas do conjunto de sua personalidade e são
objetivadas em relação a esta última, para poderem ser integradas em sistemas
especiais e racionais e reconduzidas ao conceito calculador (Lukács, 2003, p.
202).
O desdobramento político e subjetivo desse arranjo é a passividade. Quando o
trabalhador chega na fábrica, ele encontra todo o processo de trabalho já definido como um
sistema acabado e fechado. De acordo com Lukács,
A atitude contemplativa diante de um processo mecanicamente conforme às
leis e que se desenrola independentemente da consciência e sem a influência
possível de uma atividade humana, ou seja, que se manifesta como um sistema
acabado e fechado, transforma também as categorias fundamentais da atitude
imediata dos homens em relação ao mundo: reduz o espaço e o tempo a um
mesmo denominador e o tempo ao nível do espaço. [...] Nesse ambiente em
que o tempo é abstrato, minuciosamente mensurável e transformado em
espaço físico, um ambiente que constitui, ao mesmo tempo, a condição e a
consequência da produção especializada e fragmentada, no âmbito científico
e mecânico, do objeto de trabalho, os sujeitos do trabalho devem ser
igualmente fragmentados de modo racional. (Lukács, 2003, p. 204-205).
Preocupado com o debate relativo à temporalidade do mundo moderno – eixo da forma
romance –, Lukács desdobra o conceito de reificação também nessa direção. Numa sociedade
na qual o valor é medido por tempo de trabalho, a temporalidade é completamente alterada:
o tempo perde, assim, o seu caráter qualitativo, mutável e fluido, ele se fixa
num continuum delimitado com precisão, quantitativamente mensuráveis (os
“trabalhos realizados” pelo trabalhador, reificados, mecanicamente
objetivados, minuciosamente separados do conjunto da personalidade
humana); torna-se um espaço” (Lukács, 2003, p. 205).
O caráter qualitativo, mutável e fluido do tempo que faz parte da esfera da vivência
dilui-se, nessa chave, em horas idênticas de trabalho – é separado de si mesmo e torna-se, para
usar um termo posteriormente empregado de modo brilhante por Herbert Marcuse,
unidimensional. As consequências desse elemento para a teoria do romance em Adorno também
serão inúmeras.
Lukács apresenta primeiramente o fenômeno da reificação no interior da fábrica, para
passar posteriormente ao Direito, ao Estado, à burocracia etc. Se todo o sistema econômico é
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TORRE
Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
baseado no cálculo, não seria diferente com o sistema político, de modo que o Estado funciona
também como uma empresa, preocupada em, como se diz atualmente, “otimizar recursos”. Nas
palavras de Lukács, “surge uma sistematização racional de todas as regulamentações jurídicas
da vida, sistematização que representa, pelo menos em sua tendência, um sistema fechado e que
pode se relacionar com todos os casos possíveis e imagináveis” (Lukács, 2003, p. 216). O
sistema jurídico aparece para o sujeito capitalista também como um sistema de leis prontas e
fechadas, isentas de qualquer “arbítrio individual”, que não concedem ao sujeito alternativa que
não a da atitude contemplativa; a mesma postura que o trabalhador assume frente ao processo
de trabalho. A gama de ação do sujeito restringe-se ao cálculo de possibilidades e de
probabilidades no interior desse sistema fechado – que lhe é estranho. Assim, a diferença de
um trabalhador não-operário para o operário não é qualitativa, mas meramente quantitativa,
pois se trata, segundo Lukács, da mesma estrutura reificada. Só assim pode se compreender,
diz ele, a burocracia moderna. Passa-se, com isso, a lidar com todas as questões, inclusive as
de cunho subjetivo, de maneira formal e racionalista. Conforme destaca Lukács,
141
a constatação de Marx acerca do trabalho na fábrica, segundo a qual ‘o próprio
indivíduo é dividido, transformado em engrenagem automática de um trabalho
fragmentado’ e, desse modo, ‘atrofiado até se tornar uma anomalia”, verificase aqui de modo tanto mais evidente quanto mais elevados, avançados e
intelectuais forem os resultados exigidos pela divisão do trabalho. A
separação da força de trabalho e da personalidade do operário, sua
metamorfose numa coisa, num objeto que o operário vende no mercado,
repete-se igualmente aqui. (Lukács, 2003, p. 220)
Isto é, um trabalhador intelectual, por assim dizer, destaca um elemento de sua
personalidade e dispõe dela como uma mercadoria a ser vendida no mercado, tal como um
jornalista dispõe de sua criatividade e a vende como propaganda. Lukács afirma que a divisão
do trabalho penetrou na “ética assim como o taylorismo penetrou no psíquico” (Lukács, 2003,
p. 221). A estrutura reificada da consciência impõe-se, assim, como categoria fundamental para
toda a sociedade, independente das classes sociais, embora possa variar em grau, pois a
reificação aparece na classe dominante de forma refinada, espiritualizada e intensificada. Esse
elemento também é fundamental para a reflexão do romance, já que, historicamente, seus
personagens centrais sempre foram burgueses. Assim como o valor de uso é mero suporte do
valor de troca, os indivíduos tornam-se portadores das relações econômicas. O mesmo se passa
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À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
com a burguesia, que é classe dominante, mas que está, ela própria, submetida às formas do
capital, que se impõe como verdadeiro sujeito de fato de todo processo social:
quanto mais profundamente a reificação se estender na ‘alma’ daquele que
vende sua produção como mercadoria, mais ilusória será essa aparência
(jornalismo) (...) o homem reificado na burocracia etc. reifica-se, mecanizase, torna-se mercadoria, também naqueles órgãos que poderiam ser os únicos
portadores de sua rebelião contra essa reificação. Seus pensamentos,
sentimentos etc. são igualmente reificados em seu ser qualitativo (Lukács,
2003, p. 347).
Embora Lukács defenda que o proletariado tem uma vantagem epistemológica e política
comparado à burguesia, pois sua autonegação consiste na negação da sociedade burguesa como
um todo, de modo que “em seu destino, é típico da estrutura de toda a sociedade que essa autoobjetivação, esse tornar-se mercadoria de uma função do homem revelem com vigor extremo
o caráter desumanizado e desumanizante da relação mercantil” (Lukács, 2003, p. 209), a ideia
de que a reificação atravessa as classes é central para a compreensão dessa teoria como algo
objetivo com consequências subjetivas. Isto é, elimina a ideia de que “reificação” tem a ver
com instrução ou envolveria um “fora”, uma “metafísica da exterioridade” (Eiden-Offe, 2021)
que faria de Lukács um autor elitista.
Em História e Consciência de Classe, há a formulação de uma noção de método ligada
à apreensão do movimento do todo contraditório que pressupõe uma relação entre
conhecimento e totalidade – é esse elo que permitiria Jameson conectar a crítica literária de
Lukács à sua filosofia. Reificação, aqui, também pode ser entendida como “perda [da
capacidade] de dominar intelectualmente a sociedade como totalidade” (Lukács, 2003, p. 259).
Lukács transpõe de certa maneira essa teoria do conhecimento para a literatura, de modo que,
nessa, a forma ocupará o mesmo lugar privilegiado do proletariado e será capaz, por uma série
de mediações, de reconstruir, no romance, a totalidade do processo social capitalista por meio
de um destino individual típico (Lukács, 2011, p. 68).
Lukács afirma que “é justamente porque o pensamento proletário tem por objetivo
prático a transformação fundamental do conjunto da sociedade que ele concebe a sociedade
burguesa e todas as suas produções intelectuais e artísticas como ponto de partida para seu
próprio método” (Lukács, 2003, p. 332). A analogia entre a crítica da economia política e o
realismo seria um dos principais desdobramentos da teoria de Lukács para sua crítica literária
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nas décadas seguintes – para a qual o romance burguês do século XIX, especialmente de Balzac,
Scott e Tolstoi, serviria de inspiração11.
Se o romance é o mais empírico dos gêneros, o mais referido à realidade objetiva, cuja
forma nasce da busca pela configuração da totalidade extensiva da vida, não mais dada de
maneira orgânica, como pensar essa forma a partir da teoria da reificação? Se o romance é uma
forma “essencialmente biográfica” que trata da vida de um indivíduo “problemático” (Lukács,
2000, p. 79), usualmente um burguês ou personagem mediano no âmbito da hierarquia entre as
classes – de classe média (Watt, 2010) –, como figurar a reificação em seu desdobramento
subjetivo? Sem dúvida, Lukács já tratava dessas questões em sua obra de juventude, mas, depois
de História e Consciência de Classe, como busquei indicar, a noção de totalidade, que ganha
chave materialista, abre caminhos para a teoria lukácsiana do realismo, que mantém – por meio
do conceito de forma – a ideia de que é possível “acessar” a totalidade subjacente à realidade
reificada. Isso permite, por exemplo, que Lukács estabeleça uma relação de continuidade entre
Balzac e Thomas Mann. Apesar da ambivalência do conceito de reificação, o caminho político
de Lukács fará sua teoria desdobrar-se nas possibilidades de figuração da totalidade, enquanto
os desdobramentos da teoria da reificação, como produção e reprodução opaca da realidade e
das subjetividades a ela conectadas, serão desenvolvidas por aquele que é considerado um de
seus principais antagonistas – mas que se revela, como buscarei mostrar, um de seus principais
discípulos.
Adorno e a reificação como problema literário
O papel da teoria da reificação na teoria literária de Adorno ainda é pouco explorado,
assim como a presença do marxismo em geral em sua obra é pouco reconhecida. Entretanto, é
possível afirmar que História e Consciência de Classe é central para Adorno desde sua
publicação 12 . Conforme sugere Susan Buck-Morss, enquanto o livro de Lukács pode ser
11
Por limitações de espaço, não é possível abordar aqui a relação da teoria do realismo de Lukács com o conceito
de reificação. As indicações presentes nos trechos acima têm como objetivo apenas retomar aspectos importantes
que informam as teorias de Adorno e Jameson. Para uma apreciação mais detalhada do problema do realismo, cf.
Tertulian, 2008.
12
Conforme destaca Tertulian, o jovem Adorno, numa carta enviada a Alban Berg, comenta sua visita à Lukács
em Viena e diz que o autor é “aquele que me influenciou, do ponto de vista intelectual, mais profundamente que
qualquer outro” (Adorno apud Tertulian, 2016, p. 230).
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considerado a pedra fundamental da teoria crítica do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt,
para Adorno tratava-se sobretudo de “experimentar com o marxismo [lukácsiano] como um
método de análise estética” (Buck-Morss, 1979, p. 21). Isto é, seria possível afirmar que Adorno
fez com a teoria de Lukács o mesmo que este fizera com a de Hegel na Teoria do Romance
(Silva, 2021, p. 209), ao tomar os resultados filosóficos de sua filosofia e referi-los a problemas
literários. Além disso, se a obra de Lukács é marcada pelo entusiasmo com a revolução
comunista, Adorno, na década de 1950 e 1960 – período no qual sua obra de crítica literária é
publicada sob a forma de livro com Notas de Literatura e Prismas: Crítica Cultural e Sociedade
–, aborda essas questões literárias a partir da experiência de Auschwitz e da pergunta relativa à
cultura após o fascismo, que faz o conceito de reificação ganhar centralidade absoluta para a
reflexão a respeito do romance. É essa ênfase que separa as análises de Lukács e Adorno sobre
as obras de Kafka, Proust, Joyce, Beckett, entre outras.
Diferentemente de Lukács, Adorno não escreveu uma “teoria do romance” a partir da
qual poderíamos compreender sua relação com a obra lukácsiana de modo mais explícito. Mas
isso não significa que não possamos inferir elementos mais gerais de uma teoria do romance a
partir de seus ensaios sobre literatura. Tendo em vista o objetivo proposto neste texto, é possível
selecionar alguns ensaios que ajudam a rastrear esse diálogo. Os textos sobre Balzac, “Leitura
de Balzac” e “Discurso sobre um folhetim imaginário”, que tratam da questão do “realismo”
do escritor, constituem bom ponto de partida para examinar a presença do conceito de
“reificação” nas reflexões de Adorno sobre o romance, uma vez que, neles, Adorno relaciona
essa teoria aos problemas do romance realista13. Além desse ensaio, vale comentar também o
13
No que diz respeito ao debate sobre o realismo, os textos de Adorno mais comentados são os textos sobre
Beckett, Kafka e Proust, além de "Reconciliação extorquida", em que Adorno retoma criticamente uma série de
livros e artigos de Lukács das décadas de 1940 e 1950 (como A Destruição da Razão), nos quais Lukács estende
sua tese sobre a decadência burguesa tanto para o modernismo quanto para a filosofia de Nietzsche em diante. Os
escritos de Adorno sobre Balzac geralmente desaparecem em meio à controvérsia, mas representam uma de suas
críticas mais consistentes a Lukács. No entanto, a escolha de Balzac para tratar desse problema é estratégica do
ponto de vista do diálogo de Adorno com Lukács, já que, para este, o escritor é o grande exemplo do grande
realismo burguês do século XIX. Ele é o grande exemplo da tipologia romanesca do idealismo abstrato em A teoria
do romance, retorna como um grande representante do realismo burguês (mas também como grande romancista
da desilusão) em O romance histórico e em outros escritos da década de 1930 e é objeto de um dos exemplos mais
brilhantes de crítica imanente na história da crítica literária. Ilusões perdidas, maior e mais importante livro da
Comédia Humana segundo o próprio Balzac, é, de acordo com Lukács, um romance sobre a tragédia da geração
pós-napoleônica, uma geração cujas esperanças herdadas da Revolução Francesa foram bloqueadas pela
Restauração. A partir daqui retomo alguns argumentos publicados no ensaio “Theodor W. Adorno versus György
Lukács: duas leituras de Balzac”, no qual desenvolvi mais detidamente uma comparação entre as leituras que
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texto a respeito da “Posição do narrador no romance contemporâneo”, uma espécie de programa
de estudos do romance no século XIX cuja base é indubitavelmente produto da reunião da obra
de juventude de Lukács e de História e Consciência de Classe.
Nos ensaios sobre Balzac, Adorno desdobra o tema da reificação a partir de dois
elementos no âmbito do romance, um de caráter cronológico e outro de caráter interno, ligado
à crise da representação estética. De um lado, o autor argumenta que o realismo do século XIX
não seria mais possível devido às transformações pelas quais passou o capitalismo na direção
do aprofundamento da reificação e do aumento da opacidade da realidade social.
Transformações essas, que acarretariam numa série de consequências para a forma romance.
De outro lado, discute como o próprio realismo do XIX já carregava em si o germe de sua
negação, ou melhor, de sua autodissolução.
Em chave cronológica, para Adorno – em concordância com Lukács –, ainda era
possível falar em “realismo” no século XIX, uma vez que a sociedade burguesa constituía-se
naquele momento e sua opacidade ainda não havia obscurecido por completo o acesso à
totalidade. Balzac, nesse sentido, seria uma expressão das “forças produtivas da burguesia na
soleira do alto capitalismo” (Adorno, 2020a, p. 139). Adorno segue Lukács na avaliação de que
Balzac ainda representa a fase heroica da consciência burguesa. Nesse momento, diz Adorno,
no qual os homens aparecem como “máscaras de personagens”: “a reificação irradia no frescor
da manhã, nas cores reluzentes da origem, mais terrivelmente que a crítica da economia política
em pleno meio-dia” (Adorno, 2020a, p. 140.) A desilusão das Ilusões Perdidas, nesse sentido,
dizia respeito à dissonância entre os indivíduos e sua função social, que ainda era percebida
com estranhamento. O caráter de totalidade da sociedade, diz, Adorno,
que a economia clássica e a filosofia hegeliana pensavam de modo teórico
anteriormente, ele [Balzac] trouxe de modo cabal do céu das ideias para a
evidência sensível. De modo algum aquela totalidade permanece meramente
extensiva, a fisiologia da vida como um todo em seus distintos aspectos que o
programa da Comédia Humana quis configurar. Ela se torna intensiva como
interrelação funcional. Nela, ruge a dinâmica: que apenas como todo por meio
do sistema a sociedade se reproduz e que ela necessita até do último homem
como cliente para tal. (Adorno, 2020a, p. 140-141)
Adorno e Lukács fizeram de Balzac (cf. https://blogdaboitempo.com.br/2021/11/24/theodor-w-adorno-versusgyorgy-lukacs-duas-leituras-de-balzac/).
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Nesse sentido, Balzac teria “conjurado instintivamente a sociedade tornada abstrata”
(Adorno, 2020a, p. 141), como outras teorias haviam conseguido fazer por meio de conceitos.
Adorno empresta de Lukács (citado em nota no ensaio) a ideia de que Balzac figura um processo
de acumulação primitiva (Lukács, 1965). Para Lukács, Balzac representa esse processo no
âmbito da literatura, ao tratar da mercantilização da arte e da reificação intelectual no âmbito
do jornalismo, no qual se perde Lucien. Segundo Adorno, não se trata apenas de figurar a
reificação da literatura. Balzac figuraria, na Comédia, esse processo para o todo da sociedade
ao descrever a constituição do capitalismo pelas margens nas quais a apropriação do trabalho
ainda não se fazia completamente segundo as leis do mercado. Balzac acompanha, afirma
Adorno, a generalização do princípio de troca e equivalência (que derruba a maior parte dos
personagens da Comédia). O escritor já intuiria, nesse sentido, que a “proliferação burguesa por
meio de traços idiossincráticos destrói, ao mesmo tempo, os indivíduos” (Adorno, 2020a, p.
141). Nas palavras de Adorno, a obra de Balzac teria algo de musical, por fazer uma série de
figuras emergir apenas para sucumbir novamente, numa sucessão de movimentos, como num
“scherzo da modernidade” (Adorno, 2020a, p. 143). Adorno sugere que Balzac figura um
momento de transformação do capitalismo, de um momento no qual o homo oeconomicus ainda
não se reduz a um conjunto de comportamentos padronizados para um momento no qual “a
mão invisível de Adam Smith se converte na mão escura sobre o muro do cemitério” (Adorno,
2020a, p. 145).
Recorrendo a uma citação de Brecht, na qual este dizia que “a situação se tornou tão
complicada que uma ‘reprodução da realidade’ diz cada vez menos sobre a realidade” (Brecht
apud Adorno, 2020a, p. 147), Adorno evidencia a diferença entre a fase realista e o capitalismo
tardio. Essa, diz Adorno, não é a época de Balzac, mas a nossa. Balzac apreende a realidade no
momento de sua perdição, de seu esvanecimento, esse seria seu realismo. Ele figura a
transformação dos homens em usurários, financistas, banqueiros, prostitutas, criminosos, no
momento no qual esses papéis substituem a individualidade, ou melhor, farão dela seu
significante vazio e, dos homens e mulheres, meros portadores do processo social. Em Balzac,
ressalta Adorno, ainda não se distingue a determinação humana/individual da social (Adorno,
2020a, p. 149).
Trata-se sobretudo, sublinha Adorno, de um esforço – que consiste no principal impulso
da Comédia –, em alguma medida paranoico, de figurar o sistema em formação, de apreender
o processo social em “suas forças centrífugas” e daquilo que elas aniquilam (Adorno, 2020a, p.
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145). Balzac intuiu que a totalidade capitalista tornar-se-ia sufocante e destrutiva para os
indivíduos que, a partir de então, serviam como instrumentos de sua reprodução. A totalidade
é reconhecida, afirma Adorno, enquanto uma espécie de universalidade opressiva, com força
desintegradora. O realismo balzaquiano, nesse sentido, tem menos a ver com uma representação
concreta da realidade e mais sobre seu efeito sobre os indivíduos. Em suas palavras, “a prosa
de Balzac não se curva diante da realidade, mas a encara, até que se torne transparente em seu
horror” (Adorno, 2020a, p. 149).
Mas a dificuldade do realismo, por assim dizer, não se refere apenas à passagem do
século XIX ao XX 14 . Isto é, não se resume a uma questão cronológica, embora esta seja
fundamental. Em “Discurso sobre um folhetim imaginário” – um texto pouco comentado por
sua fortuna crítica –, Adorno chama a atenção para um detalhe muito significativo presente nas
centenas de páginas do romance de Balzac: a apresentação do folhetim que Lucien escreve na
noite de estreia de “O alcaide em apuros” no Panorama-Dramatique e que será, em muitos
aspectos, a razão de sua ruína. Segundo Adorno, a novidade de Balzac em relação aos escritores
anteriores reside no fato de este incluir o folhetim de Lucien no romance ao invés de discorrer
sobre ele e de narrar o grande sucesso do artigo escrito pelo personagem. Isto é, Balzac
apresenta o talento literário de Lucien ao invés de descrevê-lo, diz Adorno, com o vocabulário
pobre dos jornalistas que ele satiriza no romance. Com isso, Balzac cumpre “o contrato épico”
à risca, mas, ao cumpri-lo e realizar aquilo que é narrado, transforma completamente a forma
do romance; abrindo-a e evidenciando seu caráter de representação.
A presença do folhetim na obra, “de uma obra de arte no interior de outra obra de arte”,
afirma Adorno, “faz a obra de arte refletir sobre si mesma, tornar-se consciente de si própria
como ilusão, assim como é ilusório o mundo do jornalismo no qual Lucien perde suas ilusões”
(Adorno, 2020b, p. 362). A aparência da obra de arte, a imanência fechada do romance – que
se assemelha à técnica da ilusão do teatro italiano burguês na medida em que “o narrador ergue
uma cortina e o leitor deve participar do que acontece como se estivesse presente em carne e
14
Em Marxismo e Forma, Jameson faz uma observação que pode servir de contraponto à leitura de Adorno: “O
realismo, depende, portanto, da possibilidade de acesso às forças de mudança num dado momento histórico. Nos
tempos de Balzac, tais forças são a do capitalismo nascente, mas a natureza de tais forças não é assim tão
importante, pois em outra situação, a vitalidade literária de Tolstoi vem da existência, na sociedade russa, da classe
ascendente dos camponeses, com a qual ele se identifica de uma forma utópica e religiosa, mas cuja própria
presença lhe dá uma força inacessível a seus contemporâneos ocidentais” (Jameson, 1985, 159). Talvez a leitura
de Adorno não seja válida apenas para o capitalismo nascente, mas para momentos de grandes mudanças na
história, como sugere o próprio Jameson sobre o romance histórico posteriormente. Cf. Jameson, 2007b.
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osso” (Adorno, 2008b, p. 60) – é rompida pela presença do folhetim. Por isso, nas palavras de
Adorno, Balzac, apesar de realista em alguns aspectos, rompe com o realismo e apresenta um
“programa para o modernismo”, fazendo de Gide e Proust seus herdeiros. No coração da grande
épica realista do XIX residiria, então, a crise que se desdobraria nos vários modernismos e
vanguardas do século XX; em Balzac, já não haveria nenhuma “ingenuidade épica” (Adorno,
2008a, p. 47). Adorno comenta como a música de Adrian Leverkühn em Doutor Fausto,
descrita por Thomas Mann nos mínimos detalhes, seguiria o mesmo projeto de Balzac. Ao
contrário de Lukács, que estabelecia um elo de ligação entre os dois escritores por meio do
realismo, Adorno une-os pela via da crise da representação e da ilusão da obra de arte.
Findadas as possibilidades do realismo, passamos aos problemas do romance no século
XX. Nessa chave, o ensaio “Posição do narrador no romance contemporâneo” pode ser lido ao
mesmo tempo como um diagnóstico sobre o romance no século XX e um programa de estudos
da literatura sob o mundo obscurecido pela reificação. Muitas vezes lido como um ensaio sobre
o “narrador” (um dos elementos básicos da narrativa, como o enredo, as personagens, entre
outros), o título do texto já revela seu diálogo com Lukács. Não se trata do narrador, mas de
sua posição, de seu ponto de vista e do que pode ser alcançado por ele. Trata-se de uma crise
do próprio romance produzida pelo avanço da reificação que solapa as possibilidades de
apreensão do todo. Nas palavras de Adorno,
O romance foi a forma literária específica da era burguesa. Em seu início
encontra-se a experiência do mundo desencantado no Dom Quixote, e a
capacidade de dominar artisticamente a mera existência continuou sendo o seu
elemento. O realismo era-lhe imanente; até mesmo os romances que, devido
ao assunto, eram considerados “fantásticos”, tratavam de apresentar seu
conteúdo de maneira a provocar a sugestão do real. No curso de um
desenvolvimento que remonta ao século XIX, e que hoje se intensificou ao
máximo, esse procedimento tornou-se questionável. Do ponto de vista do
narrador, isso é uma decorrência do subjetivismo, que não tolera mais
nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da
objetividade. (Adorno, 2008b, p. 55)
Para além da derrota da literatura e de sua função para a indústria cultural, enfatizada
por Adorno no texto, a razão da crise da objetividade épica está ligada a dois elementos. Em
primeiro lugar, trata-se da desintegração da experiência, antes articulada pelo narrador do
romance. Agora, afirma Adorno, não há nada mais a dizer, pois não se trata mais de contar
aventuras. Da realidade, sobram apenas “estandardização”, “mesmice” e horror, diante dos
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quais a narrativa emudece (Benjamin, 1994, p. 198). Nesse sentido, não se trata apenas da
possibilidade de articulação da experiência por um autor ou narrador, mas da própria
possibilidade da narrativa e da forma à qual ela dá lugar15. Em segundo lugar, sugere Adorno,
a crise da objetividade da épica está ligada à reificação da própria individualidade, que faz com
que a lírica invada o romance – já que, nesse contexto de intensificação da reificação e da
opacidade do mundo, a realidade só pode ser apreendida subjetivamente (Jameson, 2007a, p.
206). Conforme avança a reificação, se seguirmos a teoria presente em História e Consciência
de Classe, reduz-se a capacidade daquilo que a sociologia, já reificada ela própria, chama de
“agência” – o máximo que as pessoas podem fazer é o cálculo racional weberiano que se reduz
à tentativa de previsão num sistema pronto e fechado. Conforme ressalta Lukács sobre a
burguesia, “sua atividade se esgota na observação e no cálculo exatos do efeito objetivo das leis
sociais naturais” (Lukács, 2000, p. 280). Sendo assim, escreve Adorno, “antes de qualquer
mensagem de conteúdo ideológico já é ideológica a própria pretensão do narrador, como se o
curso do mundo ainda fosse essencialmente um processo de individuação, como se o indivíduo,
com suas emoções e sentimentos [...] ainda pudesse alcançar algo por si mesmo (Adorno,
2008b, p. 57).
Para permanecer fiel à sua herança realista, diz Adorno, o romance “precisa renunciar a
um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas auxilia na produção do engodo”
(Adorno, 2008b, p. 57). A crise do romance está profundamente ligada à crise da crítica da
economia política, que, segundo Adorno não é mais apreensível apenas por meio de seu caráter
econômico. Em “Tentativa de entender fim de partida”, Adorno afirma que a irracionalidade da
sociedade capitalista cresceu a tal ponto que passou a resistir ainda mais à compreensão – eram
bons os tempos, diz ele, nos quais era possível “escrever uma crítica da economia política dessa
sociedade tomando-a pela sua própria ratio” (Adorno, 2020c, p. 284). Isto é, a ideologia não é
mais passível de ser derrubada em seus próprios termos, por isso a linguagem e a interpretação
não são mais suficientes para apreender essa sociedade, diz Adorno, e o protesto contra o
15
É notável como Adorno também absorve a leitura que Walter Benjamin fez de Lukács e do conceito de
reificação, referindo-a de maneira mais explícita ao tema da experiência. Se, no jovem Lukács, o conceito de
“vivência” [Erlebnis] tratava de diferenciar a experiência vazia, daquela articulada e com sentido, em Benjamin,
essa experiência, que aparece enquanto Erfahrung, se diferencia da Erlebnis (vivência), sendo esta última a forma
que a reificação assume enquanto experiência social e individual. Também é interessante destacar que Benjamin
relaciona reificação a enrijecimento, desenvolvendo ainda mais a teoria de Lukács e remetendo-a ao debate da
percepção sensível do mundo. Esse traço de enrijecimento da reificação aparece de maneira recorrente na teoria
literária de Adorno.
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À ocasião do centenário de História e Consciência de Classe
realismo, em Beckett e Joyce, por exemplo, vai passar por uma recusa da linguagem discursiva.
O mesmo se passa com a crítica dessa sociedade na obra de Adorno, que aparece mediada pelos
jogos entre luz e sombra típicos do ensaio e de uma escrita que não se entrega ao consumo
imediato.
Apesar disso, não se trata de um diagnóstico apocalíptico para a teoria literária, muito
pelo contrário. Para Adorno, “o romance está equipado como poucas formas de arte” (Adorno,
2008b, p. 57) para chamar a reificação das relações entre os indivíduos por seu próprio nome,
uma vez que seu objeto sempre foi “o conflito entre os homens vivos e as relações petrificadas”
(Adorno, 2008b, p. 58). Nesse processo, sublinha Adorno – e aí reside seu programa de estudos
do romance –
a própria alienação torna-se um meio estético para o romance. Pois quanto
mais se alienam uns dos outros os homens, os indivíduos e a coletividades,
tanto mais enigmáticos eles se tornam uns para os outros. O impulso
característico do romance, a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior,
converte-se no esforço de captar a essência, que por sua vez aparece como
algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento
cotidiano imposto pelas convenções sociais [note-se aqui o tema da obra de
juventude de Lukács]. O momento antirrealista do romance moderno, sua
dimensão metafísica, amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma
sociedade em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos
(Adorno, 2008b, p. 58).
Isso significa que os romances que permanecem fiéis à função histórica do romance
incorporam a precariedade da individuação e do mundo como matéria e procedimento e
apresentam um tipo de reflexão que “rompe a pura imanência da forma” (Adorno, 2008b, p.
57) que consiste “numa tomada de partido contra a mentira da representação, e na verdade
contra o próprio narrador, que busca, como um atento comentador dos acontecimentos, corrigir
sua inevitável perspectiva” (Adorno, 2008b, p. 60). Ou seja, trata-se de uma consciência da
própria obra de arte da parcialidade de qualquer posição narrativa num mundo que se tornou
inapreensível com o advento do capitalismo tardio e de sua complexidade reificada, com a
falência (ao menos momentânea) das revoluções comunistas e do proletariado como sujeito da
transformação histórica. Isso significa que – muito longe de substituir o proletariado pela obra
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de arte (Bürger, 2023) – trata-se de uma abdicação de uma posição de universalidade imediata
ou de acesso a ela no âmbito do romance16.
Dentre os casos exemplares expostos no texto, vale destacar os de Proust, Kafka e
Thomas Mann, que Adorno desdobra também em outros ensaios. No último, diz Adorno, a
ironia enigmática de seus narradores é “recurso de construção da forma” e “com o gesto irônico
que revoga seu próprio discurso, exime-se da pretensão de criar algo real, uma pretensão da
qual nenhuma de suas palavras pode, entretanto, escapar” (Adorno, 2008b, p. 60). No caso de
Proust, a tradição do romance realista e psicológico é mantida ao ser levada, por meio do
subjetivismo, às suas últimas consequências:
Seu ciclo de romances se inicia com a lembrança do modo como uma criança
adormece, e todo o primeiro livro não é senão um desdobramento das
dificuldades que o menino enfrenta para adormecer, quando sua querida mãe
não lhe dá o beijo de boa-noite. O narrador parece fundar um espaço interior
que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, um passo que se
manifestaria na falsidade do tom de quem age como se a estranheza do mundo
lhe fosse familiar. Imperceptivelmente, o mundo é puxado para esse espaço
interior – atribuiu-se à técnica o nome de monologue intérieur – e qualquer
coisa que se desenrole no exterior é apresentada da mesma maneira como, na
primeira página, Proust descreve o instante do adormecer: como um pedaço
do mundo interior, um momento do fluxo de consciência, protegido da
refutação pela ordem espaciotemporal objetiva, que a obra proustiana
mobiliza-se para suspender (Adorno, 2008b, p. 59).
16
Postone chama a atenção para o fato de que Lukács, inspirado na dialética hegeliana, desloca a ideia
de “Sujeito”, associada ao “espírito” em Hegel, para o trabalhador – na figura do proletariado – de modo
que este, ao mesmo tempo em que sofre com o processo de reificação, passa a ocupar a posição
privilegiada da crítica da sociedade capitalista. A centralidade que Lukács conferiu a essa posição –
mirando na posição epistemológica privilegiada que ele desejava atribuir ao proletariado e que aparece
na metáfora do teatro em História e Consciência de Classe – está ligada ao papel que o conceito de
totalidade tem em sua teoria. Porque faz uma leitura de Marx que não identifica a condição de sujeito à
de proletariado, mas à de capital, Adorno buscar um caminho crítico que tem menos a ver com a
reconstituição dessa totalidade e mais com a sua negação. Isso se desdobra também em suas reflexões
sobre o romance, o que evidencia como a leitura de Marx e dos processos econômicos e sociais por ele
descritos, estão intimamente relacionados a seus desdobramentos culturais na obra de Adorno. Em
Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade, Adorno faz um adendo à tese lukácsiana: o todo
[Adorno utiliza a expressão “Das Ganze” ao invés de “Die Totalität”] também só existe como tendência,
como desdobramento, como “ponto de fuga” (2008c, p. 41). Interessante notar a referência que Adorno
tira da pintura para corrigir a dialética onipotente de Lukács. O ponto de fuga, constituído a partir de
linhas paralelas que dão origem à perspectiva, é aquilo que permite representar bidimensionalmente algo
tridimensional. Aqui Adorno alude às retas paralelas, cujo encontro se dá no infinito.
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O caráter de representação é perturbado, em Proust, pela mediação do mundo pela
interioridade que – de forma dialética – converte-se em exterioridade ao constituir a narrativa
do romance como um todo. Proust expõe a parcialidade de seu narrador, cuja posição explicita
a contradição entre o “foi assim” e o “como se” (Adorno, 2008b, p. 58). A memória
fragmentária de Proust expõe ela também a fragmentação do indivíduo e da realidade que ele
não pode mais aspirar a apreender. Não é fortuito que o tempo seja um elemento tão central em
seu romance, que se conta menos em anos que em xícaras de chá. O mergulho na interioridade
exclui também a objetividade do tempo do mundo do trabalho no capitalismo.
Por fim, vale comentar o caso de Kafka, a partir do qual a relação entre a teoria da
reificação e do romance é ainda mais desenvolvida no ensaio de Adorno. A perturbação da
ilusão representacional se apresenta nele, segundo a leitura adorniana, a partir da perturbação
da distância estética entre narrador e leitor. Esta, diz Adorno, passa a variar “como as posições
da câmara no cinema: o leitor é ora deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentário até o
palco, os bastidores e a casa de máquinas” (Adorno, 2008b, p. 61). Em Kafka, a supremacia da
realidade e do mundo das coisas sobre os indivíduos e sua passividade, enquanto impulso
formal, passa a atingir o leitor:
por meio de choques ele destrói no leitor a tranquilidade contemplativa diante
da coisa lida. Seus romances, se é que de fato eles ainda cabem nesse conceito,
são a resposta antecipada a uma constituição do mundo na qual a atitude
contemplativa tornou-se um sarcasmo sangrento, porque a permanente
ameaça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem mesmo
a imitação estética dessa situação. A distância é também encolhida pelos
narradores menores, que já não ousam escrever nenhuma palavra que,
enquanto relato factual, não peça desculpas por ter nascido (Adorno, 2008b,
p. 61).
Em “Anotações sobre Kafka”, Adorno reitera essa ideia ao afirmar que o escritor
transforma seus leitores em vítimas, de forma a “excitar de tal forma seus sentimentos que ela
deve temer que o narrado venha em sua direção, assim como as locomotivas avançam sobre o
público na técnica tridimensional do cinema mais recente” (Adorno, 1998, p. 241). A posição
de impotência que o narrador problematiza e impõe também ao leitor desdobra-se, segundo
Adorno, nessas obras, na crítica do mundo que produz essa realidade. A própria forma não pode
mais ser pensada sem a teoria da reificação. Nesse sentido, as personagens desumanizadas de
Kafka, com membranas misteriosas entre as mãos, os personagens de Beckett cuja
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fragmentação do eu produzida pela reificação é tão literal que os deforma e os reduz a membros
do corpo, as histórias sem referente geográfico explícito e aparentemente fora do tempo (ou
completamente imersa na temporalidade interior, no caso de Proust), a redução da comunicação
ao monólogo interior – ele próprio um sintoma da incomunicabilidade, a tentativa de narrar
aquilo que é incomensurável na experiência, tudo isso e mais são maneiras pelas quais as obras
literárias opõem-se à reificação, ao expô-la, mostrá-la em toda sua potência diante dos homens.
Adorno encerra seu ensaio com uma referência à Lukács,
Quarenta anos atrás, em sua Teoria do romance, Lukács perguntava se os
romances de Dostoiévski seriam as pedras basilares das épicas futuras, caso
eles mesmos já não fossem essa épica. De fato, os romances que hoje contam,
aqueles em que a subjetividade liberada é levada por sua própria força de
gravidade a converter-se em seu contrário, assemelham-se a epopeias
negativas. São testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si
mesmo, convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um
dia pareceu endossar o mundo pleno de sentido.
Em sua Teoria Estética – e aqui Adorno refere-se diretamente à defesa do realismo por
seu autor –, Lukács enfatiza como geralmente a forma é confundida com unidade e/ou
coerência. Segundo ele, a arte moderna pode ser autônoma e ainda não compor uma unidade,
ou ainda, argumenta que sua unidade advém justamente da dissolução dessa unidade, uma
astúcia do romance modernista (Adorno, 2020d, p. 221). Na arte moderna, sublinha Adorno, a
forma é aberta, uma unidade alcançada pelo afrouxamento da própria unidade. Especialmente
no modernismo, a obra de arte nunca termina de forma convincente, diz ele. Adorno refere-se
aqui uma forma desamparada (Adorno, 2020d, p. 221). Uma forma que, em certo sentido,
alinha-se à concepção de Lukács na juventude, para quem a forma estava ligada a um equilíbrio
de tensões e contradições.
Esse é o programa desenvolvido por Adorno em toda sua crítica literária, que aborda as
formas a partir da sua relação com a opacidade do mundo e a fragmentação dos indivíduos
produzida pela reificação. No âmbito da crítica literária, portanto, ele é o maior discípulo do
autor de História e Consciência de Classe. Mas sua leitura ressoa em outro autor, para quem a
junção das teorias de Adorno e Lukács abre novos caminhos para a reflexão sobre o romance.
Passemos, finalmente, à teoria de Fredric Jameson.
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Jameson, totalidade e narrativa
Em “História e Consciência de Classe, um projeto inacabado”, publicado em 1988,
Jameson busca discutir a atualidade das reflexões de Lukács e rastrear a relação do livro com a
sua defesa posterior do realismo, que, à primeira vista, distanciar-se-ia do refinamento do
debate ligado à reificação e consistiria numa fuga para a estética após as críticas dirigidas pela
Terceira Internacional ao livro e às suas “Teses de Blum”. O texto tem um caminho oblíquo
que vai da crítica de Lukács ao modernismo até a reconsideração da teoria feminista do “ponto
de vista” (ou, se quisermos, do “lugar de fala”) como a verdadeira herdeira do projeto de
História e Consciência de Classe. Trata-se sobretudo de uma tentativa de demonstrar que o
conceito de totalidade no livro tem menos a ver com uma busca pela reconciliação entre sujeito
e objeto e mais com a necessidade de perceber o processo social como algo profundamente
mediado por várias camadas que se interpõem entre ambos. Para Jameson, nesse sentido, o
“ponto de vista” não seria algo inerente apenas à classe trabalhadora, mas uma “experiência de
grupo”, que pode ser pensada a partir de outras experiências sociais ligadas aos movimentos da
década de 1970. Jameson sugere ainda, sem desenvolver suficientemente, que essa nova leitura
de História e Consciência de Classe, como um projeto inacabado, tem uma série de
consequências literárias ligadas à teoria do realismo e do romance histórico.
A primeira questão a ser considerada, tendo em vista os objetivos deste texto, de discutir
a relação entre romance e reificação – para a qual Jameson já chamava a atenção em Marxismo
e Forma (1971) –, é que História e Consciência de Classe, mais do que um texto político, no
sentido imediato do termo, é uma espécie de tentativa de estabelecer uma teoria marxista do
conhecimento (Jameson, 1985, p. 144). Nesse sentido, a “consciência de classe” não é
entendida como algo “empírico ou psicológico” (Jameson, 1985, p. 144), mas como a
possibilidade objetiva de apreensão do mundo exterior. A preocupação hegeliana com a relação
entre o concreto e o abstrato, presente nas obras de juventude é aqui, afirma Jameson,
redirecionada para uma reflexão marxista. A ideia é desfazer o engano pós-moderno que ligaria
totalitarismo e totalidade ou, no caso da literatura, totalitarismo e realismo.
Jameson ocupa-se, então, de desfazer um mal-entendido: aquele que defende que a
ideia de “realismo” ocuparia o lugar ocupado pelo conceito de “consciência do proletariado”
em História e Consciência de Classe. Segundo Jameson,
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normalmente se assume que a relação sujeito/objeto é uma de suas categorias
básicas [...] e então presume-se que o próximo passo “positivo” de Lukács vai
necessariamente envolver alguma restauração da unidade entre o sujeito e o
objeto, certa invocação de uma reconciliação entre essas zonas do ser
danificadas e fragmentadas. [...] Mas de forma alguma é esse o movimento de
Lukács. Sua dialética é um tanto mais imprevisível que isso e não restaura,
pela via do trabalho, a síntese mecânica (equivocadamente atribuída à Hegel)”
(Jameson, 2009, p. 53).
Sendo assim, o que resulta das várias camadas que se interpõem entre sujeito e objeto,
afirma Jameson, não é uma reconciliação, mas a própria totalidade e a narrativa (compreendida
aqui como desdobramento literário da última). Isso significa que, para Lukács, conforme já
destaquei nos itens anteriores, a realidade não é apreensível em sua imediaticidade e o trabalho
da dialética é alcançar suas determinantes últimas ou fundamentais. No âmbito do romance,
escreve Jameson, o escritor deve ser capaz de ultrapassar “os constrangimentos da
imediaticidade e de alguma forma sugerir a influência ativa e os efeitos de todo aquele escopo
de formas históricas e sociais sem as quais esse evento único não é finalmente inconcebível”
(Jameson, 2009, 53 – grifos meus). E esse “de alguma forma”, afirma Jameson, é o ponto crítico
de sua teoria. Seguindo de perto o argumento de Adorno de que não haveria mais uma
identidade entre crítica imanente da economia política e crítica da realidade17, Jameson afirma
que o conceito de totalidade/narrativa de Lukács pressupõe – especialmente se levarmos em
conta sua equiparação entre modernismo e naturalismo em oposição ao realismo – uma
interrelação que envolve transparência e possibilidade de estabelecer conexões. Desse ponto,
afirma Jameson, a crítica de Lukács não passa.
O estranho, sugere Jameson, é que os modernismos também buscavam a totalidade para
representar a complexidade da cidade, da dinâmica da vida moderna, sua temporalidade e
simultaneidade, entre outros. Mas faziam-no, afirma Jameson, pela recusa do narrador
onisciente ou ponto de vista totalizante. Essa recusa, diz ele, faria com que os modernismos
falhassem na medida em que não exprimem os limites da experiência de seus personagens –
apresentando-as como as únicas possíveis (como O Processo, por exemplo, que não permite
17
Jameson refere-se aqui ao “pós-modernismo” e das dificuldades de apreender o sistema capitalista por meio da
crítica da economia política. A ideia de que a infraestrutura do capitalismo assume uma forma cultural que o autor
desenvolveria em Pós-Modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, é tratada, ela própria, um
desdobramento da reificação.
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Romance e reificação: Georg Lukács, Theodor W. Adorno e Fredric Jameson.
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nenhuma exterioridade para a experiência de K 18). A narrativa, então, fracassa na visão de
Lukács, diz Jameson, e torna-se um objeto de contemplação. Nesse sentido, as narrativas
modernistas discutidas no item anterior nada mais seriam do que sintomas das antinomias da
consciência burguesa, na medida em que permanecem no âmbito da contingência, o limite da
consciência burguesa que, por sua vez, é produto da incapacidade de retraçar o caminho da
totalidade. O papel do acaso, da crise e da catástrofe (tanto na literatura, quanto na teoria
burguesa), diz ele, seriam marcos da passagem do momento no qual as coisas fazem sentido
para o momento no qual passam a não fazer e esses termos tornam-se “explicativos”.
Mas totalidade não se resumiria a uma forma de conhecimento, sublinha Jameson, na
medida em que diz respeito a uma “moldura [framework] na qual vários tipos de conhecimento
são posicionados, perseguidos e avaliados” (Jameson, 2009, p. 60). O acesso à totalidade,
assim, depende menos de um esforço da inteligência e refere-se mais a uma possibilidade ligada
a um projeto coletivo. O indivíduo permaneceria, para Lukács, do lado da objetividade, como
um produto (e não um sujeito) da fragmentação produzida pela reificação – daí seu desprezo
pelo modernismo como sintoma desse individualismo.
Isto é, para Lukács, a vantagem do “ponto de vista do proletariado” advém, escreve
Jameson, não da categoria abstrata de classe, mas do “conteúdo de verdade” de sua experiência
de grupo (Jameson, 2009, p. 64). Em outras palavras, “’a prioridade epistemológica’ da
‘consciência do proletariado’ como classe ou fenômeno coletivo tem a ver com as condições
de possibilidade de um novo pensamento inerente à essa posição de classe particular” (Jameson,
2009, p. 66). O feminismo da década de 1970 seria herdeiro do projeto exposto em História e
Consciência de Classe justamente por criticar a ciência e o conhecimento a partir de sua
experiência específica de grupo. Nesse sentido, o gênero (Jameson não utiliza essa palavra, mas
recorro a ela aqui para fins de elucidação do argumento) seria uma das mediações presentes na
totalidade como processo social complexo. O que Jameson indica é que a totalidade estaria
ligada a uma análise ampla dos pontos de vista sob o capitalismo, capaz de identificar as mais
18
Aqui há uma espécie de correspondência evidente com a teoria de Marx. Não se trata de considerar que a
consciência parcial burguesa é falsa. Seu momento de falsidade não diz respeito a conteúdos, mas à forma sob a
qual se apresenta. Ou seja, a falsidade consiste no movimento de sua universalização enquanto fenômeno
particular. Esse raciocínio vale tanto para a relação da consciência burguesa (ciência, filosofia, burocracia) com a
totalidade em História e Consciência de Classe, quanto para a crítica ao modernismo (no qual também se insinuaria
um falso universalismo niilista, de fim da história) nos escritos sobre o realismo.
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diversas experiências de constrangimento para além da classe e das teorias tradicionais da
“dominação”.
Jameson ressalta como a obra de Lukács fornece um referencial teórico para pensarmos
a relação entre narrativa e totalidade. Nesse sentido, ele afirma que esse elemento de
“experiência de grupo” pode se desdobrar em termos estéticos e literários, abrindo novos
caminhos para o realismo. Hoje, o boom da chamada literatura de testemunho, das literaturas
feministas, queer, negras, indígenas, pós-coloniais, entre outras, consistem numa interessante
busca contemporânea pelo realismo.
Para terminar, tendo em vista a discussão inevitável a respeito da atualidade de História
e Consciência de Classe em seu centenário, a grande originalidade desse ensaio de Jameson
está em abordar o livro não como algo do passado, mas como um projeto inacabado tanto da
perspectiva política quanto literária. Jameson compara o texto de Lukács ao Manifesto
Comunista de Marx e Engels naquilo que ele tem de devir. Isto é, como esse texto coloca-se
não apenas como uma análise do presente, mas como algo que contém em si uma poesia do
futuro, que cabe a nós realizar. Quem sabe esse manifesto não consistiria no impulso modernista
da obra de Lukács, que Adorno transformou numa agenda de pesquisas e que pode ecoar, hoje,
nos lugares mais inesperados.
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