RACISMO EXISTE:
Prova 10: Cabelos bons e ruins.

Ela tinha cinco anos. Nos dias de festa, a mãe fazia cachinhos em seus cabelos. Nos dias comuns da semana, dia de aula, era uma trança rabo de cavalo. Enorme. Seus cabelos eram penteados e escovados ainda molhados, puxados para trás e arrumados para que nenhum fio escapasse. Mas eles escapavam. Sempre, entre o sinal de entrada na escola e o da saída. Seus cabelos eram crespos e finos e os fios da frente escapuliam à medida que secavam, espetando para o alto um assanhamento que assim seria para a vida toda.

Um dia, uma professora olhou para a menina e disse que ela parecia um sol. A verdade a verdade é que desconfiou perguntando-se se não estava a professora zombando dela, mas acolheu o elogio, gostou de se imaginar ensolarando com seus muitos fios de cabelos teimosamente assanhando apesar do elástico tentando prendê-los firme no alto da cabeça. Depois, ela adolesceria e ouviria outras referências menos poéticas por conta do volume de seus cachos, sempre altos, muito altos. Sem paciência para escovas – na época não havia uma variedade tão grande das tais nem tão pouco assim definitivas – por anos apelou para os mais diversos tipos de relaxamentos: para reduzir o volume, para eliminar os assanhamentos, para que o cabelo ficasse talvez um pouco “bom”.

Bom. Segundo o Wikcionário, “adjetivo que corresponde ao que é exigido, desejado ou esperado quanto à sua natureza”.  Cotidianamente, assim acontece, exige-se que os cabelos, especialmente o das mulheres, sejam lisos e pouco volumosos. Deseja-se que os cabelos dos homens, especialmente dos homens negros, sejam curtos. Espera-se que homens e mulheres negros e negras façam o possível e o impossível para esconderem suas cabeleiras vastas, seus rastas, seus blacks, dreads, tranças, trançados, lindezas permitidas apenas pelos cabelos crespos. Espera-se cabelos domesticados como se espera domesticadas as almas dos negros das mulheres negras das crianças negras.itatila (1)

E o fazem de modo assim cruel. Nos entremeios das coisas cotidianas, porque são elas, quer queiramos ou não, que nos preenchem, nossos corpos e nossos imaginários.

Uma vez. Casal jovem. Ele, negro. Ela, branca.  Ainda não tiveram filhos. Pensam em tê-los. Ele expressa seu ideal de beleza: “queria ter uma menina, pele como a minha e cabelos bons como o da mãe”. Outra vez. Os grossos cachos do sobrinho são discutidos. “Não está na hora de cortar?” A senhora explicou: “não pode cortá-los agora com essa idade, senão o cabelo vai ficar ruim”. Bom. Ruim. O ruim tem peso.  É inadequado, feio, inaceitável. Cotidianamente as pessoas comem-no, digerem-no e cospem-no: são milhares de crianças e mulheres esforçando-se para se tornarem barbies. São milhares de olhos mirando desconfiados os cabelos negros.

Noutro dia, estava numa doceria em Salvador. E entrou uma outra menina, de uns três anos, acompanhada de sua mãe, usando a farda amarela da escola. Seus cabelos ensolaradando em cada um de seus fios, cheios, volumosos, cacheados, soltos, livres. A verdade a verdade é que suspeitei .  Aquela mãe certamente precisava conversar sobre o quanto seus cabelos nada parecidos com os da maioria de seus coleguinhas eram lindos. Nem ruim nem bom. Apenas lindos. Abençoadas sejam as mães e as professoras sábias.

Keu Apoema