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Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o
objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como
o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso
comercial do presente conteúdo
Sobre nós:
O Le Livros e seus parceiros, disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade
intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem
ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso
site: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.
Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.
DIREITO DE NASCER
O ÚLTIMO CAPÍTULO DA NOVELA
Direito de Nascer estava prestes a começar e eu aguardava ansioso. Mas
naquele 13 de agosto de 1965 não tinha o menor interesse em saber
como terminaria a trama de Albertinho Limonta, Maria Helena, mamãe
Dolores e Isabel Cristina.
A Isabel que interessava estava ali ao meu lado, na entrada do
edifício onde ela morava. Às 21h30, quando soaram os primeiros acordes
de Amor Eterno, tema de abertura do folhetim, ela me olhou com seu
habitual jeito sacana. Como vínhamos fazendo havia alguns meses,
sempre no mesmo horário, seguimos para as escadas do prédio. Todo
mundo via a novela, inclusive os pais dela, e os corredores ficavam vazios.
O Brasil parava. Não se ouvia um pio.
Nas escadas, porém, a vida seguia. Isabel era uma gracinha tijucana
de rosto redondo e cabelos compridos, baixinha e boa demais. E, o
melhor, entregava cheia de desejo aquele corpinho para mim, fechando os
olhos e respondendo às minhas carícias.
E eu me perguntava: “Será que ela gosta do artista ou do homem?”
Não sei. Me sentia completamente à vontade como Erasmo Carlos, nome
bem mais forte e capaz de traduzir minha personalidade que o Erasmo
Esteves de batismo. Tinha certeza disso ao ouvi-lo tantas vezes nas
rádios, graças ao sucesso de minhas músicas.
Na verdade, não me preocupava saber qual Erasmo Isabel queria.
Porque fosse qual fosse, ele estava ali, grudado nela e procurando não
fazer barulho.
Na minha cabeça, não havia silêncio: o Brasil inteiro cantava Festa
de Arromba e o amor de Isabel acompanhava. Eu vivia no paraíso. A vida
sorria para o menino da Tijuca.
O BONDE 51, QUE PASSAVA A
cada meia hora, concedia certo status à minha rua frente às suas
vizinhas do bairro da Tijuca. No mais, a rua do Matoso era um típico
cenário da Zona Norte carioca. Tinha de tudo lá: um posto de saúde com
um entra e sai constante de ambulâncias que davam carona aos
moradores; um templo batista também frequentado pelos garotos
católicos (afinal, havia meninas lá); casarões decadentes que viraram
casas de cômodos, nas quais cada quarto era alugado para uma família;
vilas com casas simples; pensões; mansões com direito a zoológico
particular; hotel; fortaleza de jogo do bicho; pequenas indústrias de fundo
de quintal; e um comércio variado, que incluía também os ambulantes,
como o comprador de garrafas, o amolador de facas e a “vaca leiteira”
(pequeno carro-pipa que vendia leite nas esquinas). Era uma babel de
comportamentos, com gente de todos os tipos.
Na periferia existiam malucos de várias periculosidades,
convivendo em harmonia com pessoas pacatas e gentis. Todos sabiam
dos segredos de todos e se frequentavam. Brigavam entre si para, no
final, fazerem as pazes bebendo democraticamente no mesmo bar. De
vez em quando, acontecia um escandalozinho — como um adultério,
que fazia a festa dos faladeiros de plantão — ou alguma confusão,
quase sempre originária de discordâncias entre torcedores do Vasco e
do Flamengo.
Às vezes, acho que a ingenuidade e o romantismo da época
amenizavam um pouco a dureza de nosso cotidiano. Eram tempos
difíceis, mas o Sol brilhava sempre, mesmo quando encoberto por
nuvens de incerteza. Nascido no dia 5 de junho de 1941, morei ali até os
15 anos. Fui crescendo com meus amigos no olho desse furacão, num
lugar que era um pedaço do Brasil daquele período. Seria, portanto,
compreensível que minha geração “chutasse o pau da barraca” no
futuro.
NOS TEMPOS DA MATOSO,
nem no melhor dos sonhos eu imaginaria estar ali, em 1965,
deleitando-me com Isabel e curtindo, em meus delírios, a sensação
maravilhosa de ouvir multidões cantando Festa de Arromba em uníssono.
Sexo e sucesso. Naquele momento, senti que o moleque Erasmo
Esteves tinha, sim, realizado o desejo juvenil de ser um cantor do rock and
roll — do qual Elvis era o modelo maior. A respiração de Isabel entrou no
ritmo dos versos: “Hey, hey/ Que onda/ Que festa de arromba”. Estrelas
mudaram de lugar quando ela passou a mão vagarosamente nos meus
cabelos.
ADOLESCENTE, EU QUERIA TER
o cabelo como o de Elvis. Me esforçava bastante usando gumex (o avô
de todos os géis), esticando meus fios com touca de meia e penteando
meu cabelo ao contrário, mas jamais consegui que ele ficasse liso. Meu
próprio suor ou qualquer chuvinha o condenava a ser como antes,
ondulado e rebelde. Até que surgiu a esperança, um papo sobre um
alisamento que era tiro e queda. “Eu de cabelo liso? Tim Maia também?
E mais Édson Trindade, Arlênio, Sabará, Pinto Nu, Marco Aurélio, todo
mundo?”
Seria algum milagre? Era duro de acreditar, mas procurei me
informar sobre a novidade, telefonando para o Tim:
— Bicho, como é esse negócio de alisar cabelo que andam falando
por aí?
— É a Timbolina, Erasmo! — respondeu ele. — Um melado mágico
que o Timbó inventou para alisar cabelo. Parece ser bom às pampas.
Vâmu lá experimentar.
Timbó era um paulista, negro, já de uma certa idade, gay assumido
e malandro cheio de ginga, que morava num quarto alugado no número
119 da rua. Fã ardoroso de Adoniran Barbosa e dos Demônios da
Garoa, era impossível visitá-lo e não ouvir Iracema, Samba do Arnesto e
Saudosa Maloca, hits da sua vitrola.
Ele era chegado ao candomblé e a dialetos africanos, usando
expressões como “Juru do céu” (para designar olhos azuis), “Juru do
mar” (olhos verdes) e “Juru da montanha” (olhos castanhos). Gente
finíssima, ele nos dava conselhos e tinha uma amizade paternal por
todos nós. Bebia cachaça com Coca-Cola e, depois do terceiro gole,
começava a chorar com saudades de São Paulo. Anos mais tarde, na
música Turma da Tijuca, que gravei em 1984, eu faria uma saudação a
ele.
No sábado à tarde, dia em que aplicaríamos a Timbolina, lá estava
eu, no primeiro lugar da fila, já me imaginando de visual novo, com as
meninas comentando: “Olha lá o Erasmo! O cabelo dele é igualzinho ao
do Elvis.”
Aos poucos, foram chegando mais “fregueses”: Renato, Raul,
Sérgio Maluco, Roberto Carlos, Zé Martins e o próprio Tim que, assim
como eu, queriam usufruir daquele invento revolucionário, misterioso e
alvissareiro. Fomos todos para a cozinha do casarão, onde fervia, numa
lata sobre o fogão a lenha, uma substância preta que mais parecia um
mingau de carvão. Timbó mexia com uma colher de pau e,
entusiasmado, nos apresentava como sendo a tal da Timbolina. Fomos
para o quintal levando a lata ainda fervendo para ser colocada na
beirada do tanque, com o murinho ao lado servindo de banco durante o
processo. O produto teria que ser aplicado quente. Timbó, com uma
espátula, ia distribuindo cuidadosamente a miscelânea por nossas
cabeças, ao mesmo tempo em que se gabava, dando vazão ao seu
exótico, incompreensível e louco repertório de filosofias:
— O caboclo vai gostar, Jurupema mandou reencarnar na flor e
puxar o céu para me cobrir. Timbó é mestre, ele faz a chuva e não se
molha, mas Adoniran é nagô...
Em seguida, dava uma gargalhada debochada, se cuspindo todo, e
emendava: “Saudosa maloca/ Maloca querida/ Din din donde nós
passemo/ Os dias feliz de nossa vida.”
O mingau me queimava, mas eu aguentava firme e ainda
lembrava:
— Ô Timbó, não se esqueça das costeletas.
Passada a aplicação, vinha a etapa final, que exigia a espera de
uma hora para que o processo de alisamento se completasse. Em
seguida, a lavagem da cabeça com sabão fazia escoar uma espuma
preta e malcheirosa pelo ralo do tanque. Pronto! Lá estava eu com o
cabelo liso para chamar de meu.
Naquela noite, fomos a uma festa na casa do Amilton, no Grajaú,
cheia de garotas lindas e moderninhas. Era engraçado o cacoete ridículo
que instantaneamente adquirimos, de forçar a barra para que nosso
topete desabasse a todo momento sobre os olhos. Em seguida, com um
movimento brusco, o jogávamos para trás. Me lembro que, na volta,
sentei de propósito ao lado da janela do ônibus, coloquei a cabeça para
fora, e deixei que o vento desalinhasse minha alisadíssima cabeleira.
No dia seguinte, porém, ao abrir os olhos pela manhã, senti de
imediato um desconforto. Alguma coisa estava errada. Minha cabeça
parecia uma tempestade. Doía da nuca até a testa, latejando com chuva,
vento, raios e trovões. Além disso, o desagradável odor cáustico da
Timbolina no travesseiro me anestesiava. Passei a mão na cabeça e não
gostei do que senti. Corri para o espelho e não gostei do que vi:
— Puta que pariu!
Meu couro cabeludo estava todo ferido, queimado pela agressão da
alquimia preta que o maluco do Timbó me aplicara. Vi que era o
momento de um recolhimento estratégico. Me entupi de Melhoral e
pomada e fugi da vida social por uns tempos, enquanto testemunhava
um outro problemão: conforme os dias passavam, meu cabelo foi
ficando cor de cobre, o que me levou a cortá-lo bem baixinho, à la
Príncipe Danilo (corte da época semelhante ao do volante Danilo, do
Vasco). Na verdade, a milagrosa pasta era um tipo de Henê, feito da
forma mais primitiva e perigosa possível, com ingredientes altamente
invasivos e prejudiciais à saúde: amônia, formol, álcool, tinta... Uma
fórmula corrosiva e daninha.
Assim como eu, muitos desistiram do tratamento capilar, mas Tim
Maia continuou. Quando foi para os Estados Unidos, em 1959, era o que
mais pedia nas cartas que me enviava:
“Erasmo, seu brasileiro de merda. Pelo amor de Deus, pare de
tocar punheta e me mande Timboliiiiinaaaaaaaaa!”
A LEMBRANÇA DE TIM MAIA
— sacana até em pensamento — não me trouxe sorte. Isabel e eu
ouvimos um barulho e paramos assustados, prendendo a respiração.
Escutamos uma chave girando na fechadura e uma porta batendo:
devia ser alguém atrasado para a novela. Passado o susto, consegui
acalmar a belezura e retomar o amasso. Alisando as formas de Isabel,
lembrei do meu velho violão de cravelhas de pau.
TIM MAIA ME ENSINOU TRÊS
acordes, com os quais dei meus primeiros passos. Eu treinava num
violão dado por minha avó Maria Luiza, a primeira a apostar em meu
talento.
Foi nesse violão que ouvi tocar pela primeira vez, lá em casa, um
cara do bairro de Lins de Vasconcelos, que eu tinha acabado de
conhecer. Adorei vê-lo cantando aqueles rocks americanos no meu
quarto.
Ele era um garoto que, como eu, amava Elvis — e poucos anos
depois, como eu, viria a amar João Gilberto. O baiano de Chega de
Saudade me confirmou que havia algo na Bahia que fazia meu coração
bater diferente, como eu já havia percebido com Dorival Caymmi. O
João Valentão de sua música (“João Valentão é brigão/ .../ Mas tem seu
momento na vida/ .../ É quando a morena se encolhe/ Se chega pro lado
querendo agradar/ .../ E assim adormece esse homem/ Que nunca
precisa dormir pra sonhar”), brigão e romântico, era eu.
O nome do cara do Lins era Roberto Carlos.
Após a maratona de abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim,
Isabel, toda dengosa, pousou a cabeça no meu ombro. Saímos da
escada e voltamos para a entrada do prédio. A novela estava acabando.
Festa de Arromba parou de tocar na minha cabeça e então comecei a
ouvir o barulho da chuva.
A chuva não atrapalhou o show que Carlos Imperial organizou em
frente à TV Rio, em Copacabana, para badalar a ida de Rita Pavone à
emissora, em 1963. A ideia era, no dia da apresentação da cantora na
TV, reunir uma multidão na rua, parando a cidade e impressionando os
jornais. Um evento dispensável, afinal a cantora-fenômeno já era mais
que badalada por si só. Não se falava de outra coisa. No rádio, nas
festinhas e nos bailes, seus sucessos Datemi un Martello e Cuore
tocavam mais que Parabéns pra Você. Seus clones se multiplicavam —
cabelos curtos, botinhas, camisa branca de mangas compridas, calça
preta e o indefectível suspensório.
Mas, como a cúpula da TV Rio pediu que Imperial se virasse para
fazer algo que chamasse mais a atenção para Rita, ele correu atrás. Eu
estava de bobeira em minha casa na Tijuca quando o telefone tocou. Era
ele, gritando:
— Figura, larga o que estiver fazendo e vem para a TV Rio agora!
Telefona para quem você puder e manda todo mundo vir para cá para
um grande show. Simonal e Marcos Moran já estão comigo.
Liguei para alguns amigos e saí a jato. Quando cheguei à
emissora, logo ao saltar do táxi, já fui envolvido pela multidão. Imperial,
nervoso, dava ordens aos berros, tentando organizar a bagunça. Aos
poucos, os artistas foram chegando: Cleide Alves, Golden Boys, Trio
Esperança, Roberto Rei (autor da História de um Homem Mau, sucesso
com Roberto Carlos), Amilton, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso,
Selmita, Maritza Fabiani, Tony Checker e Gerson Combo, entre outros.
O cast foi se encorpando, a aparelhagem foi ligada, a câmera
colocada num lugar estratégico e, exatamente às 18h, começou o show
no palco armado em frente à TV Rio. Enquanto a apresentação rolava,
as pessoas que passavam por ali paravam curiosas para ver o
burburinho, sem a mínima noção do que se tratava — como tudo foi feito
na pressa, não havia cartazes pela cidade ou anúncios nas rádios. Com
o acúmulo de gente, o trânsito também parou e começou o buzinaço. Em
pouco tempo, o Posto 6, em Copacabana, já abrigava uma multidão.
Como tudo foi improvisado e a transmissão era ao vivo, às vezes
entravam os comerciais com alguém ainda cantando e, quando voltava a
aparecer o palco, a música já tinha acabado.
Uma chuva fininha começou a cair, causando certa apreensão. Mas
mesmo com a garoa e sem a presença de muitos artistas, que estavam
fora do Rio ou não foram encontrados, Imperial se saía bem.
Apresentava os que chegavam, entrevistava o povão e convocava as
pessoas para imitar a dança característica da Rita.
Na minha hora de cantar, não fiz por menos e entrei todo pimpão
quando a banda atacou Terror dos Namorados. A emoção de quem está
lançando uma música nova tomou conta de mim. Vibrava a cada
compasso e a cada virada de bateria. Na parte da música em que a
banda para, deixando soar os acordes para eu cantar “eu beijo, beijo,
beijo, beijo, beijo, beijo, beijo, beijo, beijo...”, o público foi à loucura,
gritando sem parar. Confesso que me surpreendi com a reação e pensei
comigo: “Caramba, estou agradando em cheio. O povo está gostando!
Vou dar mais de mim.”
E dei. A visão dos pingos da chuva caindo sobre o facho de luz dos
refletores, em contraste com o escuro do céu, tornava aquela
demonstração de carinho emocionante para um iniciante como eu. A
galera continuou pulando e me ovacionando cada vez mais. Agora
também de braços erguidos, me saudando calorosamente.
De repente, caí do meu deslumbramento e despertei daquele
sonho. Notei que os olhares, os aplausos e os acenos não eram para
mim. E sim para alguém que estava no terraço da emissora. Virei meu
pescoço num gesto brusco, olhei para o alto e vi, cercada pelo seu staff,
a figura mignon de Rita Pavone, sorrindo e mandando beijinhos para a
multidão ensandecida.
Anos mais tarde, já famoso, a encontrei num show de Jorge Ben
numa boate em São Paulo. Brinquei com ela:
— Você lembra de mim naquele show de 1963, na porta da TV no
Rio de Janeiro?
Após sua negativa, respondi:
— Eu era um pingo da chuva que molhou você.
NO CAMINHO PARA CASA
apesar do frescor da pele de Isabel, temi pelo fim do namoro. Afinal, nove
dias depois daquela noite, estrearia em São Paulo o programa Jovem
Guarda.
CAPÍTULO 1
QUE TURMA MAIS MALUCA, AQUELA TURMA
DA TIJUCA
O INÍCIO
Rua da Tijuca da década de 40, palco da infância de Erasmo.
Com 10 anos, na rua Professor Gabizo, a caminho do baile
carnavalesco do America Football Club: “Odiei essa fantasia de índio.
Como era emprestada, não podia sentar, pois quebraria as penas.”
PROFESSOR GABIZO, 108
Minha infância e início da adolescência foram passados na rua do Matoso
– primeiro no número 113, e depois no 102 (Vila Matoso), na casa 21.
Mas quando penso naqueles meus anos de Tijuca, o primeiro cenário que
costuma vir à minha mente é a casa dos padrinhos da minha mãe, o
número 108 da rua Professor Gabizo, onde fomos morar num quarto
alugado, na segunda metade dos anos 50, quando ela se separou do meu
padrasto Augusto. Era um casarão antigo, meio sombrio, com azulejos
coloniais, uma confortável banheira com pés, tetos descascados e úmidos
devido a infiltrações e cozinha com fogão a lenha. Tinha o pé-direito alto,
paredes forradas com motivos florais, um candelabro sinistro e um
assoalho de tábuas corridas com cupins e pulgas, muitas pulgas.
A entrada principal se dava por um portão lateral. Um corredor
descampado dava acesso aos fundos, onde reinava imponente a frondosa
mangueira do vizinho, que cresceu inclinada para o nosso lado do muro e
por isso enchia de mangas o nosso quintal. Assim vivíamos, pobres e
felizes, em perfeita harmonia com gatos, um cágado, quinze periquitos e
as outras onze pessoas que também moravam lá.
Minha mãe, Maria Diva Esteves, era assistente de enfermagem do
Samdu (Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência, órgão
criado pela Previdência Social). A juventude começava a respirar o rock
and roll, que já tomara conta de mim. Passava os dias ouvindo rádio,
recortando fotos dos artistas e colando em álbuns, colecionando letras de
músicas que vivia assoviando e cantarolando pelos cantos: “You ain’t
nothing but a hound dog/ Cryin’ all the time/ Well, you ain’t never caught
a rabbit/ And you ain’t no friend of mine.”
É DO CARECA QUE ELAS GOSTAM MAIS
Antes da descoberta do rock, as meninas reinavam sozinhas nos meus
pensamentos. As irmãs Célia Regina e Célia Maria, por exemplo. Minhas
vizinhas da rua do Matoso, Célia Regina era um pudim de caramelo e
Célia Maria, uma gelatina de framboesa. Apetitosas e vitaminadas, elas
moravam no sobrado de uma serralheria. Suas presenças na janela
provocavam torcicolo nos passageiros do bonde e nos transeuntes,
hipnotizados pela visão daqueles doces maravilhosos.
Eu tinha de 16 para 17 anos. Elas deviam ter 17 e 18,
respectivamente. Eram recatadas e intocáveis devido ao policiamento
rígido e implacável dos pais. Ao saírem à rua, sempre acompanhadas por
eles, andavam invariavelmente em linha reta, como militares treinados. O
máximo que algum de nós conseguia era um sorriso educado como
cumprimento. Mas, assim que passavam por nós, vupt!, nossos olhares se
grudavam em seus corpos, ofuscados pelo volume dos pudicos
vestidinhos da época, dando asas à nossa imaginação.
Numa bela noite, quando jogávamos porrinha tranquilamente,
conversando alto, soltando gargalhadas exageradas e falando os
palavrões costumeiros, eis que vimos, com espanto, na penumbra da
esquina do Beco do Mota, uma cena impactante: a família das Célias
passava por nós bem vestida como se viesse de uma festa, andando
descontraidamente em zigue-zague, o que jamais tínhamos visto. E ainda
havia um atordoante detalhe: o pai vinha na frente de braços dados com a
mulher e com Célia Regina, enquanto Célia Maria caminhava atrás,
ostensivamente feliz, como Doris Day no filme Um Pijama para Dois, de
mãos dadas com um... CARECA!
Era demais! Como suportar tamanha afronta? Estávamos
preparados para tudo, menos para aquilo. Um careca... E, ainda por cima,
aparentando uns 30 anos. Um velho com o dobro da nossa idade. Que
castigo. A porrinha parou na hora e um silêncio sepulcral fez calar a
algazarra. Não poderíamos permitir que aquele intruso degustasse nossas
delícias assim, sem levar um troco.
Nossa cúpula teria trabalho naquela noite. Várias cabeças
indignadas não dormiriam, começando a pensar nas possibilidades e na
extensão da nossa vingança. Os dias seguintes foram humilhantes para
nós. Tornou-se rotina o namoro dos dois no portão, enquanto papai,
mamãe e a irmã torciam na janela do sobrado. Como optamos pela não
violência, começamos a executar, então, o plano B.
Primeiramente, dividimos as tarefas entre nós. Eu ficaria
encarregado de roubar sobras de giz no colégio. Renato Caravita entraria
com o telefone, fundamental para nossos intentos malignos — ele era o
único de nós que tinha um aparelho. Édson Trindade, que era amigo do
filho do dono de uma gráfica de fundo de quintal, ficaria responsável pela
impressão dos folhetos. Tim Maia conseguiria tinta branca e preta. Raul
faria cola de maisena. Arlênio e China, que tinham letra boa, escreveriam
cartas. Paçoca coordenaria os horários de ação. Pinto Nu, Adílson, Zé
Carlos, Nenéo e Zé Martins dariam apoio. Seria uma represália coletiva e
anônima.
A primeira investida em massa começou na madrugada. Colamos
cartazes e fizemos pichações por toda a rua na calada da noite. Os
dizeres variavam: “Cuidado com o Careca!”, “O Careca vem aí!”, “O
Careca é careca”... Nada escapava de nossa sanha vingativa: portas de
loja, postes, muros, árvores, marquises, bondes. Escrevemos até no
asfalto da rua, bem em frente à casa delas, com tinta branca e letras
enormes, para que nossa “arte” fosse vista da janela.
No dia seguinte, era Careca por tudo que era canto. As pessoas
ficaram curiosas e os comerciantes locais, logicamente, irritadíssimos ao
verem a fachada de suas lojas pichadas. Nossa postura era a de cara de
pau ao extremo. Nada vimos e nada sabíamos. Até participávamos da
revolta, fazendo eco às perguntas:
— Quem será que fez isso? Quem é esse tal de Careca?
Mas o plano não pararia aí. A segunda investida foi escrever nos
banheiros públicos, do cinema Madrid, do bar Divino e dos outros botecos
da região: “O Careca é cagão!” ou “Merda não é tinta, dedo não é pincel.
Quem quiser limpar a bunda, o Careca é seu papel”. Aproveitando o
telefone do Renato, ligamos para os programas de rádio nos quais
ouvintes podiam dedicar músicas a alguém. Pouco depois, ouvíamos o
locutor falar nosso texto: “O Careca apaixonado da rua do Matoso
oferece para sua namorada Célia Maria a música Nós os Carecas, com
os Anjos do Inferno.” Também telefonamos para a serralheria pedindo
para avisar no sobrado que o Careca não poderia se encontrar com a
Célia Maria naquele dia. Enviamos cartas de vários bairros da cidade
dizendo que o Careca morrera. Tudo foi feito com afinco e, conforme o
planejamento, a pressão foi total. Estávamos de parabéns.
A primeira casa de Erasmo: “Nos sobrados geminados vizinhos,
moravam amigos como Renato Caravita e Timbó, o ‘gênio’ da
Timbolina.”
Mas o tempo é o senhor da razão. Fomos chegando à conclusão de
que os resultados da operação não foram nem um pouco satisfatórios.
Não adiantara nada tanto trabalho. Todo nosso esforço coletivo servira
apenas para fortalecer ainda mais o namoro dos dois, pois agora eles já
iam ao cinema sozinhos, trocavam beijos e nem namoravam mais no
portão. Os pais, solidários, já permitiam que eles entrassem em casa. O
nosso plano para que ele sumisse de circulação e devolvesse Célia Maria
para os nossos sonhos foi um tiro no pé. Criamos um monstro. Fizemos
do Careca um ídolo.
A essa altura, todos já sabiam que éramos nós os autores daquela
“campanha infernal” contra o “pobre rapaz de família, trabalhador e bem
intencionado”, que só queria “cortejar a menina em paz”. As pessoas já
nos olhavam com reprovação, considerando uma cafajestada de mau
gosto o que fizemos. A história acabou chegando em nossos pais e a
barra pesou em casa.
O Careca tomou coragem e foi falar com a gente. Estávamos mais
uma vez na esquina do Beco do Mota, sem graça com a reviravolta do
caso, quando ele chegou e se apresentou como Mário não-sei-de-quê,
convidando o Paçoca para uma conversa particular. O ambiente se tornou
tenso, ficamos preparados para o que desse e viesse. Qualquer vacilo e,
vapt!, faríamos picadinho do Careca. Mas ele sabia onde estava pisando,
era malandro. Chegou gentil, educado e, ainda por cima, cheio de moral,
pois tinha certeza do apoio total de todas as famílias do pedaço.
Conversaram uns dez minutos quando, enfim, apertaram as mãos. Paçoca
se virou para nós, engoliu em seco e, com cara de injuriado/resignado,
decretou:
— Olha aí, pessoal... O Careca acabou de me dizer que não levou a
mal nossas brincadeiras, que não ficou com bronca da gente e pediu para
darmos um tempo nessa história de Careca. Ele vai se formar em
medicina, pretende se casar com a Célia Maria e pega mal ser chamado
assim. Queria pedir a vocês que, de hoje em diante, ninguém chamasse
mais o Careca de Careca e, se alguém de fora chamar o Careca de
Careca, a gente dá porrada. Legal?
E, abusando do cinismo, voltou-se para o Careca e encerrou:
— Vai na tua, em paz. Desculpe alguma coisa, seja feliz com a Célia
Maria e tenham muitos carequinhas.
E rindo, finalizou:
— Para a gente poder chamá-los de “os filhos do dr. Careca”.
Meses depois, eu sairia da rua do Matoso e me mudaria para o
quarto da rua Professor Gabizo. Nunca mais ouvi falar do Careca e acabei
esquecendo-o. Mas nos anos 80, passando de carro pela Barra, vi várias
pichações incríveis. Elas diziam: “A mulher do Zé faz boquete!”, “O Zé é
corno!”, “O Zé dá a bunda!”... Na hora me lembrei dos anos 50 e não
pude deixar de comentar com meus botões:
— Que sorte que o Careca deu!
BESOURO DE SOBREMESA
Outro episódio da minha infância contribuiria para minha aversão à
política. Aconteceu no subúrbio carioca de Cordovil, onde eu passava
férias duas vezes ao ano, na casa dos meus tios Alzira e Geraldo. Lá,
todo político era doutor. Bastava chegar a bordo de um belo automóvel,
fumando um charuto, com uma mulher boa do lado, fazendo cara de
simpático e com um séquito de puxa-sacos soltando morteiros... pronto!
Baixava na população local um abominável espírito subserviente que
induzia as pessoas a mandarem os meninos como eu alardear pelas ruas
do bairro: “Chegou o doutor fulano! Chegou o doutor fulano!” Podia ser um
simples candidato, mas, com o título, ele adquiria uma aura de
importância e respeitabilidade.
Eu só gostava quando um vereador que não me lembro o nome era
homenageado pela comunidade. Havia distribuição de balas e doces, junto
com sanduíches de mortadela e copos de suco de groselha. Mas uma
dessas comemorações se tornaria traumática para mim. Munido de uma
bicicleta emprestada, fui a um futebol de várzea onde jogavam Cordovil e
Brás de Pina. Durante o foguetório, após um gol do time da casa, um tiro
de verdade matou uma pessoa.
Apavorado com o tumulto que se formara, deixei meu lanche para lá,
peguei a bicicleta e fugi atabalhoadamente pela estrada do Quitungo, não
parando para nada. No meio do caminho, no auge da velocidade, com o
vento de encontro ao meu rosto e gritando adoidado devido ao pânico,
engoli um besouro. Desequilibrei-me em seguida, caindo da bicicleta e me
ralando todo. Na minha cabeça de menino de 9 anos, uni o vereador ao
tombo e desde então passei a odiar ainda mais a política.
A CRUZ DE MALTA É O MEU PENDÃO
Com a mesma idade que passei a odiar política, comecei a amar futebol.
A bola de meia foi minha primeira “bola oficial” nas peladas infantis que
rolavam no chão de cimento da vila Matoso, com direito a risíveis, porém
empolgadas, imitações dos locutores esportivos da época. Eu jogava e
narrava ao mesmo tempo. Ary Barroso, com sua famosa gaitinha, era um
dos que eu imitava. Incorporava artilheiros como Ademir Marques de
Menezes na hora do gol, sempre comemorado com morteiros imaginários.
De forma soprada e com emoção, emitia alto o som da letra “A”, para
reproduzir o barulho da torcida ensandecida.
Eu havia sido arrebatado pela grande euforia e expectativa em torno
da Copa do Mundo de 1950. Eu e a torcida do Brasil. O Rio de Janeiro,
por ser a casa do Maracanã, respirava futebol. Na seleção brasileira havia
um monte de jogadores do Vasco e acho que foi isso que provocou meu
interesse pelo clube. Depois da derrota brasileira nessa Copa, eles
voltaram para São Januário e foram campeões cariocas. A simpatia inicial
foi virando admiração, até se transformar numa febre que um dia
reconheci como paixão. Um amor tão forte que, depois da minha sagrada
família e da música que me guia, é o maior da minha vida.
Nas peladas com meus amigos, a bola de meia evoluiu para a de
borracha e depois para a de couro com gomos, que exigia o trabalho de
passar vela nos sulcos para não estragar o barbante da costura. Aprendi
linha de passe, embaixadinha, roda de bobo e ataque-defesa. No Vasco,
novas gerações vencedoras foram aparecendo e eu já não era mais
Ademir e sim Bellini, meu grande ídolo até hoje.
A primeira vez que fui ao Maracanã, levado por seu Ângelo, meu
vizinho na vila Matoso, foi um impacto. Fiquei maravilhado ao constatar
que o gramado era verde, a camisa do Bangu, branca com listas
vermelhas e a da Portuguesa de Desportos, verde e vermelha —
acostumado a ver os jogos pela televisão em preto e branco, também na
casa do seu Ângelo, jamais imaginei que ao vivo fosse tudo colorido.
Montei então um time de futebol de botão. Estava cansado dos
botões convencionais de galalite com escudinho, então passei a raspar
casca de coco em superfícies ásperas, até conseguir a forma
arredondada desejada. Em seguida, lustrava com cera de assoalho, o que
melhoraria muito seu desempenho ao deslizar. Valiam também botões de
sobretudo, além de tampas de relógio de pulso, feitas de plástico
transparente que eu mesmo pintava com esmalte de unha da minha mãe.
As balizas eu também construía artesanalmente, cortando cabides com
serra escolar Tico-Tico, pintando tudo de branco e colando redes de filó.
As bolinhas podiam ser de rolhas, dadinhos, miolo de pão, papel laminado
de bombom (amassado até ficar bem redondo), feltro ou botõezinhos de
camisa.
Em 1956, seis anos depois daquela fatídica Copa, eu viveria um
sonho. Num domingo, quando voltava do Maracanã, após um 2 a 1 do
Vasco contra o Bangu, vi o ônibus do meu time parado em frente à minha
casa na rua Professor Gabizo. Tomei um susto antes de me lembrar que
do outro lado da rua morava o médico do Vasco, o dr. Valdir Luz. Ele
havia convidado os jogadores para seu aniversário. Fiquei boquiaberto ao
ver as feras que idolatrava ali, bem pertinho de mim. Bellini, Orlando,
Sabará, Vavá, Valter Marciano, Pinga e outros ficaram um tempão na
festa, enquanto eu, numa atitude típica de torcedor, entrei correndo em
casa e pendurei minha bandeira na janela, só para eles saberem que ali
morava um vascaíno. Zagallo também morava na mesma rua e todos os
dias acenava para mim quando ia comprar pão na padaria.
Minha “carreira futebolística” passou pelo futebol de salão e de
campo (no time da rua do Matoso e no exército), por um teste no America
Football Club e pelo time da gravadora Polygram (atual Universal), até que
fui proibido de praticar esportes de impacto por culpa de uma hérnia
inguinal e problemas na coluna. Hoje, meus filhos e eu temos uma
pequena, porém especial, coleção de camisas com autógrafos de Djalma
Santos, Pelé, Zico, Roberto Dinamite, Palhinha, Mazinho, Cláudio Adão,
Bebeto, Zinho, Romário, Alcir Portela, Donato, Giovane e de todo o time
do Vasco de 86 (essas ganhei num show meu no qual os jogadores
foram), entre outros. Tenho também uma bola cujas assinaturas o tempo
apagou, mas não me importa, porque sei quem as escreveu: Evaristo de
Macedo, Alcir Portela, Felipe, Hélton e Euller.
Hoje, ao marcar algum compromisso, verifico se não vai coincidir
com o horário dos jogos do Vasco. Se for o caso, peço desculpas e
marco outra hora. Se não houver jeito, assumo o compromisso, mas faço
de tudo para não saber o resultado — gravo o jogo para ver depois. Se
alguém faz algum comentário sobre o jogo, ou um rádio ou uma TV nas
redondezas transmite a partida, chego a tapar os ouvidos e gritar para
abafar completamente todo e qualquer som externo.
Meus três filhos herdaram a minha paixão pelo futebol mas, por um
capricho dos deuses, Gil e Léo são flamenguistas e somente Gugu é
vascaíno. Ele inclusive gravou comigo um samba-exaltação que fiz para o
clube.1
Fazendo a primeira comunhão na Igreja de São Francisco Xavier: “Como qualquer criança, achava
aquele ritual um saco. Mas fiz tudo direitinho, usando até terno. Apesar de pobre, minha mãe não abriu
mão do figurino de jeito nenhum.”
NOSSA SENHORA DA MATOSO
Foi por volta de 1950, aqueles tempos de besouros e botões. Minha mãe
me mandou ir ao depósito do seu José comprar sabão, saponáceo, palha
de aço e anil. Não sem antes recomendar que eu olhasse para os lados
na hora de atravessar a rua. Afinal, eu fora atropelado um mês antes por
um carro no Rio Comprido, quase quebrando as costelas, e ela ainda
estava sob o impacto do acidente — nada grave, mas ficou o susto. Eu só
pensava numa coisa: quem sabe o troco do dinheiro não daria para
comprar figurinhas da bala Ruth que todos os meninos do estado da
Guanabara colecionavam?
Eu gostava do depósito do seu José. Tinha um pouco de tudo. Um
misto de armazém, bazar e loja de ferragens que abria ainda um espaço
para que um ou outro freguês anunciasse alguma quinquilharia para
vender. Mediante, é claro, uma pequena porcentagem para o bolso do
seu dono.
Resolvi passar primeiro na casa de um amigo, o Renato, para irmos
juntos, levando nossos álbuns para conferir as duplicatas. Tomei o
cuidado de chamá-lo da porta, para evitar a agressividade do seu
papagaio que vivia solto numa árvore e tinha o péssimo hábito de atacar
qualquer um que ousasse pôr a cara dentro do portão. Ele voava,
palrando desbocado: “Filho da puta, filho da puta!”
Ao chegarmos perto do depósito, estranhamos o movimento. Um
aglomerado de pessoas formava uma fila imensa ao longo da calçada,
atrapalhando as entradas do botequim e da farmácia ao lado. Sem saber
o porquê daquele burburinho, perguntei curioso a uma senhora o que se
passava. Ela respondeu, deslumbrada:
— A Santa, meu filho! A Santa está lá dentro! Ela apareceu para o
seu José. Entra na fila e vai lá ver.
Olhei para Renato, que estava com a boca aberta e surpreso igual a
mim, e fizemos o que ela mandou. A fila se encaminhava para os fundos
do depósito e, antes de chegar a minha vez, pude reparar na fisionomia
das pessoas que saíam pela outra mão do pequeno corredor. Uns meio
absortos, outros mexendo a boca sem emitir som, como se estivessem
rezando, e ainda algumas senhoras perplexas, esbarrando em mim,
afobadas e anunciando:
— Eu vi, eu vi! Era a Virgem. Ela estava sorrindo e olhando para
mim, é ela! A Nossa Senhora da Matoso!
Ao chegar a minha vez, me deparei com a seguinte cena: sobre um
tabuleiro de folha de flandres jazia uma grande quantidade de cera de
velas derretidas, naquele momento já seca, sobreposta em camadas,
formando relevos. No resto do ambiente, várias velas acesas aumentavam
o calor. Seu José, de avental branco e postura bondosa, me mandava
olhar a escultura natural, me entregando uma lupa e dizendo:
— Veja como ela é linda, Erasmo. Sinto que ela quer me dizer
alguma coisa. Foi por isso que ela escolheu meu depósito para aparecer.
Confesso que não vi nada. Procurei, procurei e nada. Vi, sim,
algumas formas sinuosas, saliências, cores reforçadas pela iluminação
das velas acesas ao redor e até contornos que poderiam sugerir uma
silhueta ou um rosto, mas Nossa Senhora sorrindo para mim, neca. Ele
ainda insistia dizendo para eu olhar bem, para abrir meu coração se
quisesse ver. Renato também não vira nada. Fomos correndo para casa
contar a novidade e esquecemos até das figurinhas.
No dia seguinte, o boato já havia ultrapassado as fronteiras da
Matoso. Curiosos da Barão de Iguatemi, da Dr. Satamini, da Barão de
Ubá, da Haddock Lobo e de outras vizinhanças chegavam aos borbotões.
Os comentários variavam:
— O seu José disse que conversa com ela.
— Rezei para ela proteger minha filha que mora em São Paulo.
— Valha-me Nossa Senhora da Matoso, fazei com que meu marido
arranje um emprego.
— Pedi tanto para ela me ajudar a ganhar na loteria federal...
Durante uns três ou quatro dias, a coisa foi ficando pior. Seu José
começou a cobrar por visita, e até minha mãe e a mãe do Renato
pagaram para conferir a “aparição”. Até que estourou a bomba: os padres
capuchinhos da igreja de São Sebastião não gostaram do que estava
acontecendo e intervieram no local. Consideraram abuso da faculdade da
fé e indução consciente para fato ilusório visando fins lucrativos. Deu
polícia e o depósito fechou. Tempos depois, veio a notícia: seu José fora
internado num hospital para doentes mentais. Pensei na hora:
— Não tem problema, Nossa Senhora da Matoso vai curá-lo.
PRIMEIROS TROCADOS
Sem esperar milagres da Nossa Senhora da Matoso, eu procurava
arrumar um jeito de faturar algum. A primeira vez em que me lembro de
ter ganhado um dinheirinho, estava na Tijuca, em 1951, aos 10 anos,
vendendo revistas usadas em frente à quitanda do seu Borges, na rua do
Matoso. Eu fazia uma coleta na vizinhança, contando com a boa vontade
de todos, estendia folhas de jornais no chão, espalhava a mercadoria em
cima e ficava esperando a freguesia comprar. A Cena Muda, Fon-Fon, O
Globo Juvenil, Gibi, O Cruzeiro, Mindinho e O Guri eram algumas das
ofertas do jornaleiro Erasmo.
Quando estava na casa da minha tia Alzira, em Cordovil, eu caçava e
vendia rãs para servir de tira-gosto nos botequins das redondezas. Já na
Professor Gabizo, a labuta era outra. Meu primo Raul era um eterno
desempregado, pois sua profissão de vitrinista era ingrata — as
oportunidades rareavam, concentradas no Natal, no Dia das Mães ou no
Carnaval. Eu era bom de traço e metido a desenhar letras espetaculares,
em perspectiva, iguais às da apresentação do filme Ben-Hur, o que levava
meu primo a solicitar constantemente meus préstimos em troca de algum
“dindin”. Sua mulher, Zuzu, era chefe das passadeiras das lojas Sloper
(minha mãe chegou a ser uma delas numa época), onde trabalhava
praticamente só para sustentá-lo, deixando todos os dias uma certa
quantia para que fosse providenciado o jantar. O dinheiro daria, se ele não
fosse viciado em apostas de cavalos e jogo do bicho. Ele contava então
com as rolinhas que eu capturava no nosso quintal com meu implacável
alçapão. Com elas, preparava, com muito zelo e requinte, fritadas,
massas ou arroz. Ele mesmo matava e depenava, me dando uns trocados
por unidade e enganando a mulher, ao servir “frango desfiado” para ela de
vez em quando.
De outra feita, primo Raul arrumou um “bico” como cabo eleitoral
para um candidato a deputado e contratou meus serviços para colagem
de cartazes de propaganda pelo bairro. Pedi ajuda a um amigo e colamos
centenas perto de casa, para dar a impressão que estavam bem
distribuídos. Se ele fosse mais atento, iria três quarteirões adiante e já
não encontraria mais nenhum. Ao ver o resultado, ele se surpreendeu,
elogiou e até nos recompensou, pagando além do combinado. Enfim, eu
me virava.
O TRAUMA DO BIFE VOADOR
Defendia meus trocados para garantir um ou outro pequeno prazer. Minha
vida não tinha luxos. Comer fora, por exemplo, era raríssimo. Uma vez
na vida, outra na morte. Numa dessas vezes, com 12 anos, fui jantar com
minha mãe e meu padrasto Augusto na confeitaria Cometa, localizada na
esquina da rua do Matoso com a praça da Bandeira.
Embora estivesse feliz com a oportunidade, não podia expressar
meu contentamento. Meu padrasto, sisudo, pecava pela insensibilidade e
não admitia manifestações de nenhum tipo: “Pinto só pia no galinheiro
quando o galo manda” e “Em boca fechada não entra mosca” eram
algumas das suas “pérolas”. Minha mãe não dizia nada, porque levaria um
pito também.
Seguia a noite nesse clima castrador quando veio o bife com fritas e
arroz que pediram para mim. Lambi os beiços, arregalei os olhos e
ataquei com fúria o banquete, esquecendo do mundo ao redor. Mas, ao
fazer força com a faca, tentando cortar um pedaço “nervudo” do
contrafilé, ele voou, ricocheteando na mesa ao lado, onde um casal
jantava tranquilamente. Para piorar, a outra parte do meu bife foi ao chão,
o arroz e as batatas fritas se espalharam pela mesa e o garfo derrubou
meu copo de guaraná, molhando a toalha e minha mãe, que estava em
frente.
O garçom correu para ajudar, mas o estrago já estava feito. Além do
esporro que levei, ficaria o trauma pelo novo bife que não foi pedido.
Duros tempos.
O ZUMBI DA ESCOLA
Se, em casa, a falta de grana era um problema, na escola o drama era
outro — igualmente sério. Dezembro se aproximava e eu, já no ginásio
(atual segundo ciclo do ensino fundamental), iria, sem dó nem piedade,
inapelavelmente, ser reprovado mais uma vez — o que aconteceu quatro
vezes ao longo da minha vida escolar. Teria que ouvir a mesma piada
maldita, repetida pelos meus colegas sádicos:
— Os professores gostam tanto do Erasmo que não deixaram ele
passar de ano!
Com um resignado sorriso amarelo, eu engolia em seco, abafava
meu grito e represava minhas lágrimas. Fora a reprise do blablablá dos
professores e a humilhação de ver minhas ex-companheiras de classe,
todas lindinhas e maravilhosas, agora mais adiantadas, exibidas,
mascando chicletes e me discriminando pela reprovação. Sofria acuado e
não podia disfarçar o ódio pelo causador renitente do meu sofrimento. Um
inimigo cruel que não media esforços para me prejudicar. Ano após ano,
ele infernizava a minha vida de estudante, com seu arsenal de dificuldades
e um repertório interminável de artimanhas. Esse vilão nefasto era o
terrível... latim.
O pior é que não adiantava desejar sua morte, porque ele já estava
morto. Era um zumbi, igualzinho àqueles mortos-vivos dos filmes de terror,
praga constante dos meus pesadelos. Mal dormia e já sonhava com suas
declinações, regras e traduções: ZZZZZZZZZZZzzzzzzzzzz... Dominus,
domini, domino, dominum, domine, domino ZZZZZZZZZZZzzzzzzzzzz...
ZZZZZZZZZZzzzzzzz... Supino nominativo, ablativo ZZZZZZZZzzzzzzz...
Primus, secundus, tertius, ZZZZZZZZZZzzzzzzz... Amo, amas, amat,
amamus, amatis, amant...
Eu não achava graça nenhuma naquela matéria. Não encontrava
razão alguma para estudá-la. A duras penas, consegui vencê-la e seguir
em frente, como fiz naquele ano. Depois, o latim se foi, mas ficou a lição
que expus em Análise Descontraída, que gravei em 1976:
Morro sem entender
Buscando meu tempo perdido
Estudando latim que era uma língua morta
Êta mundo velho
Você me parece ainda um ovo
Ou então precisa urgentemente se acabar
Pra nascer de novo
UMA IMPERFEIÇÃO E MUITOS RISOS
Latim à parte, sexo era o grande martírio no meu início de adolescência
— na verdade, a falta de sexo. A situação se tornara humilhante para mim
perante meus amigos Renato Caravita e Raul, sobretudo numa certa noite
de sábado. O Rio de Janeiro fervilhava de mocinhas assanhadas,
enquanto eu estava sozinho, cabisbaixo e macambúzio, sentado na
mesinha de um pé-sujo saboreando com tristeza uma Coca-Cola. Na
mesma hora, eles desfrutavam momentos divinos de prazer num rendez-
vous recém-inaugurado no Bairro de Fátima, cuja promessa era encantar
os fregueses com mulheres maravilhosas a preços acessíveis.
Não era justo, eu ali deprimido no botequim, comendo manjubinhas
fritas, e eles se deliciando. Fiquei delirando com minha mente tarada e
desbocada de adolescente virgem, repleta de imagens pornográficas.
Enquanto eu imaginava, eles faziam.
E depois, ainda tive que aturar os dois na volta, se gabando:
— A minha chupou o meu pau.
Ou:
— A minha gostou tanto de mim que na próxima vez vai me dar a
bunda.
Meu sofrimento tinha que acabar. Aquela realidade cruel de só eles
terem acesso ao Éden doía na minha alma, pois eu também era filho de
Deus. Já na casa do Renato, na rua do Matoso, de onde iríamos em
seguida para uma festa, meus pensamentos explodiram em revolta,
enquanto ele e Raul, felizes e satisfeitos, desinfetavam suas regiões
genitais com álcool. Resolvi dar um basta na minha cruz e criar coragem.
Afinal de contas, já estava com 15 anos. A decisão seria irreversível. No
dia seguinte, reuni minha família e implorei zangado:
— Mãe, tenho que operar minha fimose!
Todos já sabiam que eu teria que operar algum dia, pois quando
nasci os médicos da Pró-Matre, no bairro da Saúde, já haviam alertado
para o problema. Porém, preocupados com a constante e árdua luta pela
sobrevivência, esqueceram do meu crescimento e foram empurrando a
cirurgia com a barriga.
Minha fimose era extrema. Dificultava a masturbação e
impossibilitava a penetração, meu grande drama.
A família se movimentou, mexeu uns pauzinhos (sem trocadilho), e
minha mãe conseguiu que eu operasse de graça no hospital Gaffrée e
Guinle, na rua Mariz e Barros. Na operação, os médicos descobriram que,
por ser dotado de forte compleição física, minha dose de anestesia teria
que ser reforçada. Lembro-me de sentir dor, o que me levou a dar berros,
gritar palavrões e chorar. Estagiários de Medicina que estavam na sala de
cirurgia debochavam de mim, com vozes abichalhadas, me deixando ainda
mais bravo:
— Olha só, a bonequinha está sentindo dorzinha, chama a mamãe
dele...
Lembro-me também de sangrar muito na noite após a cirurgia, talvez
pelas rudimentares técnicas hospitalares daquele longínquo 1956.
Passada a tempestade, fui sendo apresentado aos poucos ao meu novo
pau, contemplando seu novo formato, que mais parecia um cogumelo,
analisando suas dimensões, percebendo sua sensibilidade... Comecei
então a guiá-lo pela mais grandiosa e gratificante das jornadas
imaginadas pelo Criador: a busca incessante do prazer divino,
desbravando vales, montanhas, florestas e grutas do indispensável e
inenarrável universo do corpo feminino.
Apenas uma coisa não estava nos conformes: com a extirpação do
prepúcio, a cirurgia revelara uma imperfeição de nascença, quase no meio
do orifício da uretra. Uma pele atrapalhava o fluxo livre da urina, criando
um esguicho lateral que me fazia mijar em “V”. Antes isso não acontecia,
pois o orifício do prepúcio unificava o fluxo. Passei a ter que ficar atento
na hora de direcionar o mijo na privada, para que os dois jorros saíssem
no ângulo mais agudo possível, e assim não respingassem fora do vaso.
Tudo ia bem até o dia em que, ao mijar no vestiário de um campo de
futebol de várzea, não tomei o devido cuidado e molhei a perna do
Renato, que urinava ao lado. Dando um salto, ele esbravejou:
— Que que é isso, cara? Tá me mijando? Vira isso pra lá...
— Passei a mijar assim depois que operei a fimose — respondi,
fingindo não dar a mínima importância.
Foi como assinar minha sentença de morte. Ele, como qualquer
menino do mundo, jamais deixaria passar em brancas nuvens uma história
daquelas. Exagerando uma cara de horror, alardeou geral:
— Pessoal, vem cá ver como o Erasmo mija engraçado — gritou e
começou a rir sem parar.
A galera foi chegando e o riso, que agora era coletivo, foi
aumentando. Uns já gritavam para outros garotos mais distantes:
— O Erasmo mija em “V”. O Erasmo tem um chafariz no pau.
Rapidamente, contraí a musculatura pubiana e parei de mijar.
Começaram então a me jogar chuteiras, camisas e meiões e a me bater
com toalhas molhadas. Saí da roda desconfiado de que eles fariam
daquilo uma anedota tradicional da turma.
Não deu outra. A partir daquele dia eu não teria mais sossego. Em
qualquer banheiro ou mictório que entrasse, eles fariam escândalos e
algazarra fugindo de mim e ainda alertando qualquer pessoa
desconhecida que estivesse por perto:
— Moço, cuidado com esse rapaz. Ele mija em “V” e vai molhar o
senhor...
As meninas da turma ficaram curiosas, pois acabaram ouvindo
boatos sobre a anomalia. Tive que mostrar a performance para uma
garota, mijando “ao vivo e a cores” para ela ver. As chacotas me
acompanhariam ainda por muito tempo, até a história deixar de ser
novidade. Um pouco antes da Jovem Guarda — numa viagem que fiz a
Goiânia para trabalhar meu primeiro disco, Terror dos Namorados —, o
frenético esfregar dos sexos, em deliciosos momentos de amor com uma
morena da terra, fez com que a pele se rompesse, deixando livre para
sempre o orifício da minha uretra. Respirei aliviado e exultei com a
normalidade do meu fluxo urinário. Nunca mais mijaria em “V”.
Foto da caderneta do Instituto Lafayette, tirada durante o 1º ano
ginasial (atual 6º ano do ensino fundamental): “O corte de cabelo era
na linha Príncipe Danilo, que estava na moda.”
ETERNA SENSAÇÃO DE GOL
“Casa do ócio, oficina do diabo”, diz o ditado que é uma definição precisa
daquela rapaziada da Tijuca. Afinal, a falta do que fazer, principalmente
nas noites de sábado, nos levava a aprontar, como quando trocávamos as
letras do letreiro do Cine Madrid, reinventando o nome dos filmes.
Começou quando um de nós descobriu que a própria chave de casa abria
também o cadeado da porta pantográfica do cinema. E só parou no dia
em que colocaram a polícia para ficar de olho nos engraçadinhos que
faziam aquela sacanagem. Antes disso, porém, trocamos Teseu e o
Minotauro por Tesão do Mineteiro. Criamos outras joias, como Uma Puta
em Nova York (Um Rei em Nova York) e Mogli, o Menino Viado (Mogli,
o Menino Lobo). Ficávamos esperando o dia amanhecer só para ver a
reação das pessoas indo trabalhar.
Havia também nossa corrida do ouro — na verdade, do chumbo.
Quando sabíamos que algum casarão iria ser desapropriado para
demolição, ficávamos em alerta. O roubo do chumbo dos canos, dos
trincos e das fechaduras renderia calças, camisas, cintos, meias e cuecas
para nós, geralmente comprados na Ducal e na Adonis. Ou sapatos,
mocassins de uma lojinha da rua Haddock Lobo.
Empolgados com a grana que conseguimos com a venda do chumbo
“aliviado” de um velho pardieiro desocupado da rua do Matoso,
resolvemos partir para outro ramo e planejamos assaltar o bar Divino. A
ideia de Renato Caravita era simples. Entraríamos no banheiro do Divino
em duplas alternadas. Um tomaria conta da porta enquanto o outro subiria
na privada e pegaria umas latas vistosas que ficavam perto do teto,
colocando-as em seguida numa sacola da Varig (brinde da companhia
aérea que era o must da juventude na época). Nos encontraríamos depois
no beco do Mota. Não sabíamos o que havia nas latas.
Tim Maia — que era um dos maiores entusiastas de nossos
“garimpos de chumbo”, por estar juntando dinheiro para ir para os
Estados Unidos — pulou fora, alegando que era um roubo mixuruca.
Depois do plano realizado, ele mudou de ideia e implorou para ficar com
uma lata, o que acabou conseguindo. Afinal, dentro delas, descobrimos
depois, havia litros de cobertura de chocolate da Kibon.
As brigas eram outra constante em nossas vidas. Brigava-se por
qualquer motivo e, às vezes, por nada. Quem não podia ter um canivete
igual ao do filme Juventude Transviada comprava uma imitação barata e
ridícula no camelô da estação da Leopoldina. Eu usava um fio de aço
flexível enrolado na barriga, por baixo da camisa, simulando um chicote.
A liberdade nos sorria, sem apontar limites. O rock and roll nascia e
viciava nossos ouvidos, num período em que não queríamos nem
sabíamos distinguir o joio do trigo. A aventura se delineava e os
pesadelos também eram sonhos. Estávamos apenas aprendendo.
Tim Maia falaria daquele tempo anos depois, na música Haddock
Lobo Esquina com Matoso, do disco Nuvens.2
Haddock Lobo esquina com Matoso
Foi lá que toda confusão começou
E foi lá que tudo começou mesmo, principalmente porque tínhamos a
Lilica, que era o nosso anjo, nosso talismã e nosso tesouro. Todas as
outras turmas nos invejavam por causa dela. Era nossa mãe, irmã, filha,
amiga e mulher, tendo inclusive me iniciado no maravilhoso e abençoado
mundo da sacanagem, numa noite em que conseguiu se multiplicar e
dividir seu corpo, beijos e abraços com dez de nós.
A notícia correu rápido: “A turma da Matoso tem uma mulher que
briga, joga bola, vai à praia, solta pipa, balão, vai a festas e ao Maracanã,
bebe e, ainda por cima, dá para todos eles.” Isso era muito bom, nos
tornava a turma mais admirada e famosa entre todas as que
frequentavam o bar Divino. Respeitávamos muito as turmas da Miguel
Lemos e do edifício Camões, ambas de Copacabana, e a da praça Saens
Peña, na própria Tijuca. Só que eles eram ricos, tinham carros e invadiam
cinemas com motocicletas, durante a exibição de filmes como Sementes
da Violência, que tinha Rock Around the Clock, com Bill Halley, na trilha
sonora. Coisa distante para nós que éramos duros e andávamos a pé.
Nosso lazer incluía apostas ridículas para ver quem tinha coragem
de molhar a língua na água suja do meio-fio (Tim e Trindade sempre
ganhavam) ou lamber o pneu dos automóveis (só dava Tim e Trindade
também). Outra diversão era telefonar aleatoriamente para números de
Copacabana na esperança de que alguma madame solitária e carente
atendesse, caísse no nosso papo, se apaixonasse perdidamente e nos
desse boa vida para sempre. Ainda perdíamos tempo infernizando a vida
do Ventania, mendigo que falava sozinho, habitava os terrenos baldios da
Tijuca e que diziam ser um “neurótico da Segunda Guerra Mundial”.
Quando o provocávamos, chamando-o de maluco, espantalho ou zumbi,
ele corria possesso em nossa direção, atirando pedras, latas e garrafas.
Hoje, no século XXI, época de computadores, jogos virtuais,
bonecos robotizados etc., não posso deixar de sentir saudades das
brincadeiras aguerridas e ingênuas, como apostar corrida de palitos de
fósforo, aproveitando as corredeiras que se formavam nos sulcos dos
trilhos do bonde após alguma chuva forte, roubar frutas nos quintais
alheios, assistir de graça aos jogos do campeonato carioca na barreira do
America Football Club, amarrar bombinhas no rabo dos gatos, caçar rãs
nas valas para vender nos bares, jogar bolinhas de gude, descer ladeiras
em carrinhos de rolimã feitos por nós; guerras de buscapés nas festas
juninas e soldadinhos de chumbo, ioiôs e piões.
Para o exercício da minha imaginação, havia as aventuras dos meus
heróis dos quadrinhos — Ferdinando Buscapé, Big Ben Bolt, Brucutu, Mut
& Jeff, Tarzan, Pinduca, Pafúncio, Super-Homem, Capitão Marvel,
Popeye, Fantasma, Zorro, Flash Gordon e tantos outros. Na hora de
sonhar, apelava ainda para a magia dos mundos de Walt Disney e
Monteiro Lobato, enquanto as fotos das misses e das vedetes na capa
das revistas da época faziam a festa da minha solidão.
Cultivo também recordações marcantes das matinês do cinema Velo,
na Haddock Lobo, onde minha mãe me deixava no início da sessão para
me apanhar no fim. Aliás, o mesmo Velo, anos mais tarde, viraria estúdio
da Atlândida Cinematográfica. Num bar perto dali, eu teria oportunidade
de ver várias vezes o diretor e futuro amigo Carlos Manga tomar
cafezinho, em companhia de astros famosos como Oscarito, Cyl Farney,
Grande Otelo, Eliana, José Lewgoy...
A descoberta da música como novo sentido na vida de alguns de nós
viria a fechar esse ciclo maravilhoso. Das tímidas serenatas que virariam
sessões de rock e bossa nova nas esquinas da Barão de Ubá, beco do
Mota, travessa São Vicente e Haddock Lobo ecoariam as vozes
promissoras dos Snakes, do futuro luthier Antônio Pedro, Tim Maia, Jorge
Ben e, em raríssimas vezes, Roberto Carlos. Na carona dos anos 60,
ganhamos o mundo. O corte no dedo para unir nosso sangue era coisa do
passado, mas o amor por aquela turma ficaria nas minhas veias para
sempre. Como escrevi em 1984, em Turma da Tijuca, parceria minha com
Roberto.3
Eu era aluno do Instituto Lafayette
Naquele tempo eu já pintava o sete
(...)
Nessa eterna sensação de gol
Muitas brigas e o nascer do rock and roll
CAPÍTULO 2
EU SOU TERRÍVEL
OS PRIMEIROS ACORDES
Na época dos Snakes, posando na vila Matoso, por volta de 1960.
DO TIJOLO REFRATÁRIO AO VIOLÃO
A barra foi ficando pior à medida que fui crescendo. Precisava de grana
até mesmo para ajudar minha mãe. Separada do meu padrasto, ela
ganhava pouco e bancava meu colégio, roupa e comida — e, quando
chegava do trabalho, ainda lavava e passava para pagar o quarto onde
morávamos, na casa dos padrinhos dela na Professor Gabizo. Assim fui
trabalhar, então, como mostrador de imóveis.
O ano era 1957 e a Imobiliária Mendonça ficava na praça da
Bandeira. Minha tarefa era simplesmente mostrar, para as pessoas
interessadas, os vários apartamentos das redondezas anunciados pela
empresa. Eu tinha a posse das chaves, inclusive à noite, o que permitiu
que convidasse meus amigos e minhas amigas para arrasta-pés regados
a cachaça com Coca-Cola nos apartamentos. Nem cheguei a vender
imóvel algum, pois o Mendonça, ao saber disso, logo me mandou embora.
A família começou a me pressionar:
— Esse menino é um vagabundo. Por que ele não encara os estudos
e faz concurso para o Banco do Brasil?
— Precisa trabalhar para ajudar a mãe.
— Um sujeito com saúde, forte e tão preguiçoso.
Fizeram então um plano para conseguir trabalho para mim. Aos
domingos, recortavam anúncios selecionados nos classificados do jornal e
colavam as ofertas de emprego numa folha de papel ofício, numa ordem
que já determinava o roteiro que eu deveria seguir. Por exemplo: vinham
quinze anúncios na avenida Rio Branco, depois três na Sete de Setembro,
seis na rua da Carioca e por aí afora, sempre acompanhando a
numeração dos prédios para facilitar minha tarefa.
Não funcionou. Baseado no primeiro anúncio, eu já fazia um perfil de
todos, multiplicando as dificuldades encontradas. Em seguida, certo de
que não conseguiria nada, desistia de caçar um trabalho, telefonava para
alguma garota e aproveitava o resto do dia namorando. Costumava ir ao
cemitério do Caju, que era tranquilo para dar uns amassos, ou à gruta da
Quinta da Boa Vista, que ficava quase deserta nos dias de semana,
servindo até de motel para os casais.
Quando chegava em casa “exausto”, no fim do dia, lamentava que a
jornada fora difícil. Pintava um quadro caótico, dizendo que não dera sorte
em lugar nenhum. Como nos dias seguintes as desculpas eram as
mesmas, acharam então que o meu problema era a roupa. Fizeram uma
vaquinha e compraram um terno para mim. O padrinho da minha mãe,
tomando a frente da “Operação Emprego para o Erasmo”, conseguiu com
um amigo um teste para auxiliar de almoxarifado na loja DeMillus da
avenida Gomes Freire, no Centro — por coincidência, ao lado do edifício
onde Roberto Carlos e Luiz Carlos Ismail morariam no futuro. E começou
então a ladainha:
— Agora sim você está com uma aparência de gente.
— As lojas gostam de funcionários bem-apessoados, educados e
ativos.
Logo na chegada, recebi uma bronca. O amigo do padrinho da minha
mãe vociferou:
— Pode ir tirando a gravata e o paletó, porque o serviço aqui é
pesado. Lugar de galã é no cinema.
Só Deus sabe o sufoco que passei naquele dia. Foi terrível, jamais
esquecerei a lufa-lufa, o pega pra capar e o show de indecisão das
mulheres na hora de comprar os produtos. Elas experimentavam várias
peças de tamanhos e cores diferentes, em modelos diversos.
Reclamavam, discutiam, brigavam, se arrependiam, pechinchavam, iam
embora, voltavam, para no fim quase sempre não comprarem nada.
Calcinhas, sutiãs, cintas-liga, corpetes, meias, tudo isso com a casa
cheia, um calor danado, o gerente marcando em cima, o barulho da rua...
Foi um horror.
As vendedoras não me davam trégua:
— Menino, pegue um sutiã azul-claro, tamanho 32, modelo X-9.
Rapidamente eu empurrava uma escada comprida que corria sobre
trilhos elevados, subia, pegava o que fora pedido, descia, subia de novo,
pegava outra coisa, descia, mudava a escada de lugar, subia, descia...
Suava em bicas, e o que mais me irritava era que, no balcão, dezenas de
produtos — que as clientes pediram para ver mas não compraram —
esperavam para serem arrumados e novamente estocados por mim. As
meninas acabaram por me ajudar, pois me atrapalhei todo. Na saída,
educadamente, disse um “até amanhã” e uma lindinha, que por sinal já
estava me dando bola, respondeu espantada:
— Ué... você vem amanhã? Duvido.
Eu sabia que ela tinha razão. Nunca mais apareci.
Nova tentativa, desta vez como office-boy da Cerâmica São
Caetano, cujo escritório ficava na rua Uruguaiana, também no Centro.
Justamente durante minha passagem pela firma, inventaram o tijolo
refratário, que revolucionaria a construção de fornos, possibilitando maior
resistência a grandes temperaturas. Ótimo! Que maravilha! Viva o
progresso! Pode ter sido um belo momento para a indústria ceramista,
mas para mim foi complicado. O tal tijolo pesava para caramba e quem
iria carregar vários de um lado para o outro era, adivinhem, eu.
Tive que desenvolver a arte de fazer embrulhos, transpassando o
barbante várias vezes, até formar uma alça que, reforçada por meu lenço
ou um pano, me ajudava a não machucar a mão. Dividia o peso fazendo
dois embrulhos com quatro tijolos cada e, para transportá-los pela cidade,
esperava o taioba (bonde de carga), que só passava de hora em hora.
Minha “fritura” nessa firma começou no dia em que, sem querer, vi uma
secretária sentada no colo de um diretor no maior love.
Da louça de barro, fui para o aço. A Acesita seria o próximo
trabalho. Ô empreguinho chato! Os diretores eram muito arrogantes. Eu
ficava sentado numa portaria com outros menores de idade, todos
vestindo uniformes azuis escrito “ACESITA” nas costas. Entregávamos
correspondências nos departamentos espalhados pelos vários andares de
um prédio, sempre que solicitados pelo soar de uma campainha
estridente. Tínhamos que nos levantar e ficar em posição de sentido,
como soldados, todas as vezes que um diretor passava pela portaria. E a
toda hora passava um.
Nesse emprego eu almoçava em casa, pois dava tempo certinho.
Meia hora de bonde para ir, meia hora para voltar e uma hora para o
rango. Só que, após uma gostosa refeição caseira, sentado sem fazer
nada, esperando a campainha tocar, com a brisa vadia dos corredores
afagando o rosto, não há quem resista a um cochilo. Um dia, os diretores
passaram e não levantei. Resultado: rua!
Ainda viria um emprego menos interessante, até chegar ao que
considero a maior das minhas aventuras trabalhistas pré-serviço militar,
pela minha participação num enredo rodrigueano. O patrão era dr.
Carmelo, advogado. Ele tinha um escritório na rua México, no Centro, e
minhas atribuições consistiam em chegar às 8h, fazer uma limpeza
superficial, atender telefones, anotar recados, sair às 18h.
A sala era pequena, separada por uma divisória que não ia até o
teto. De um lado, minha mesinha e duas poltronas, do outro, o gabinete
principal com uma grande estante cheia de livros, que ocupava uma
parede toda, uma mesona, duas poltronas e um sofá confortável. As
cortinas eram sóbrias e pesadas, formando uma atmosfera triste e
austera, com vista para os prédios cinzentos do outro lado da rua.
Dr. Carmelo era sisudo e mal-humorado, não fazendo a menor
questão de ser simpático. Com mais ou menos 50 anos, grandão, ele
falava olhando por cima dos óculos. Foi curto e grosso quando me disse:
— Minha mulher é cega e aleijada e vive me enchendo o saco.
Estamos separados, mas ela não admite. Nada de conversinhas no
telefone com ela.
Fui me acostumando à rotina do novo ambiente, me adaptando às
circunstâncias e fazendo minhas obrigações conforme o combinado. Optei
inclusive por “almoçar” café com leite ou suco com sanduíches e mãe-
benta que um vendedor servia de sala em sala num tabuleiro. Assim
economizava tempo — e o dinheiro do ônibus. No terceiro dia, toca o
telefone:
— É o rapaz novo? Muito prazer, sou a Isabel, mulher do dr.
Carmelo.
Pensando na ordem que recebi de “não dar linha para a pipa”,
procurei ser formal. Fui monossilábico ao responder a um calvário de
perguntas que ela me fez: idade, onde eu morava, como era minha
família, meu time, se eu estudava etc. Eu ia respondendo: 17 anos, rua
Professor Gabizo,108, Tijuca, filho único (nessa época ainda desconhecia
minha família paterna), Vasco da Gama, à noite, no Colégio Veiga de
Almeida. Intrigou-me o fato de ela perguntar quanto eu calçava, o que
respondi desconfiado: 43.
Quando o advogado chegava, não dava bom-dia nem boa-tarde, se
limitando a perguntar se havia recados. Nesse dia, disse que sim, que a
mulher dele ligara apenas para me conhecer, não deixando recado
nenhum para ele. O homem ficou brabo:
— Já disse que não quero que você fique de bate-papo com ela!
Naquela noite, ao chegar em casa, qual não foi minha surpresa ao
me deparar com um par de sapatos da loja Clark, cor preta, tamanho 43,
deixados pelo motorista da dona Isabel. Ela era uma mulher pegajosa,
que falava pelos cotovelos, conforme pude constatar nos dias que vieram.
De voz rouca e pausada, ela se abria comigo. Contou que ficou cega
e semiparalítica aos 32 anos por causa de um derrame, que a separação
era invenção dele e que ela jamais daria o desquite. Só o tratava de filho
da puta, puto, cafajeste, canalha, depravado, desclassificado e advogado
de merda. Estava magoada, chorava muito e sabia que existia uma loura
sirigaita na jogada. Em sua solidão, via em mim um confidente e protetor,
insinuando que eu a informasse de todos os movimentos do marido.
Tenso, eu ouvia o blablablá, me lembrando sempre da bronca que ele me
dera, mas deixei rolar.
Em quatro ou cinco dias, estava acomodado no novo emprego. Já
não chegava às 8h, a limpeza se limitava a uma olhada geral na sala e, ao
ver algum papelzinho ou sujeira a vista, zupt, jogava para baixo do tapete.
No mais, dava uma espanada básica na mesa para “espantar” o pó, e só.
E às vezes ainda me ausentava. Eu havia comunicado ao dr.
Carmelo que faltaria na terça-feira pela manhã. Teria que dar um pulo na
casa de minha tia na Urca para levar um dinheiro a mando da minha mãe.
Mentira deslavada. O que realmente aconteceu era que eu havia
conhecido Roberto Carlos pouco tempo antes e ele me convidou para
assistir ao vivo aos programas do Clube do Rock, que Carlos Imperial
comandava na TV Tupi ao meio-dia. Era ir, curtir e voltar para o trabalho.
A loura sirigaita apareceu finalmente no escritório. Era bonita, alta e
cheia de curvas. Entrou, me deu um leve sorriso e foi direto para o
gabinete, deixando um rastro estonteante de perfume, enquanto eu lia um
gibi. Dr. Carmelo levantou-se quando a viu, deu uma olhada para mim e
fechou a porta, que também não ia até o teto. Durante um tempo, ouvi
alguns sons ofegantes, que imaginei serem de um abraço ou de um beijo.
Por culpa da divisória vazada, ia identificando os ruídos: ela sentou-se,
abriu a bolsa, acendeu um cigarro e, chamando-o intimamente de “Melo”,
começou a reclamar da dificuldade de estacionar o carro.
Ele parecia outra pessoa. Descera do pedestal por causa do dengo
da amante. De repente, me falou:
— Erasmo, pode ir embora, não precisa voltar mais hoje.
— Sim, senhor. Só queria lembrar que amanhã é terça-feira e tenho
aquele compromisso na casa da minha tia. Boa tarde.
A essa altura dos acontecimentos, já ganhara também uma caneta
Parker 51 da dona Isabel. Na ânsia de me agradar para que eu atuasse
como seu informante, ela estava exagerando. Isso mexia com a minha
consciência e me deixava num beco sem saída. Ou contava para ela o
que realmente acontecia com o marido, ou dizia para ele que ela estava
me forçando a ser dedo-duro.
Naquela terça-feira, o Clube do Rock estava fervendo. Tudo tão bom
que nem me lembrei de voltar para o escritório. Não faltou ninguém:
Carlos Imperial, Roberto Carlos, Wilson Simonal, Marcos Moran, Tony
Tornado, os dançarinos Clito, Nilza, Mário Jorge, Arlete, Bolinha, Cidinho
Cambalhota, Mariinha, Ary Tel e Maria Gladys. Após o programa, me
convidaram para uma passeata de protesto em frente ao Snack’s Bar, no
Posto 6, em Copacabana, em desagravo a um motociclista que morrera
atingido por uma garrafa d’água atirada do alto de um prédio. Fui na
garupa de uma das lambretas da turma, me sentindo um deles.
Depois fomos para um apartamento sem móveis, onde ficamos
bebendo, cantando e dançando rocks até de madrugada. Roberto estava
namorando Maria Gladys e eu comecei a flertar com Nilza, embora ela
fosse par constante do Clito. No final da noitada, pensei: “Amanhã vou
levar um sabão do dr. Carmelo, mas valeu a pena.”
No dia seguinte, mal abri a porta e o telefone tocou. Para minha
surpresa, era dona Isabel, com a voz alterada, me passando a maior
descompostura:
— A loura sirigaita foi aí anteontem e você não me disse nada! Ela
ficou com ele a tarde toda. De que lado você está? Pensei que você fosse
meu amigo, mas estou vendo que me enganei.
Antes de responder, uma piada de humor negro me veio à cabeça:
“Pô, como é que ela está vendo se não enxerga?”
Dona Isabel continuou:
— Fique sabendo que tenho outros informantes aí no prédio e eles
me deram todo o serviço. A próxima vez que ela for aí, vou dar um
flagrante nos dois depravados e garanto que vai sobrar para você
também. Me aguardem.
E bateu o telefone na minha cara. Não tive nem tempo de ficar
indignado, pois vi o dr. Carmelo parado na minha frente, me encarando e
esperando que eu justificasse minha ausência do dia anterior. Minha tia
ficara doente e não pude avisar, disse na maior cara de pau. O advogado
não falou nada, mas a tensão tomou conta de mim quando vi que, após
tirar o paletó, ele sacou um revólver da cintura e o colocou sobre sua
mesa.
O clima estava pesado. A mulher enlouquecida de ciúmes e o marido
conquistador armado. Fui para minha mesa, esbravejando por dentro,
xingando o mundo e me perguntando o que é que estava fazendo naquele
lugar cheio de ódios e intrigas, envolvido até o pescoço numa briga
maluca de consequências imprevisíveis. Que diferença para meus novos
amigos do Clube do Rock, felizes e sinceros. Pareciam estar sempre na
hora do recreio. No auge das minhas divagações, dr. Carmelo soltou um
berro:
— Assim não dá! Ô rapaz, venha aqui. O senhor está despedido.
Corri sem imaginar qual seria o motivo da fúria do homem que,
nervoso, levantava o telefone e outros objetos que estavam sobre a sua
escrivaninha, apontando em seguida para os quadrados, círculos e
retângulos de poeira, resultado do meu desleixo. Quase descontrolado,
ele foi descobrindo outras mancadas, como guimbas de cigarro embaixo
do tapete e até crostas de sujeira sobre os livros da estante.
Nem argumentei, pois não valeria a pena. Fui embora feliz por ter
saído ileso daquele ambiente claustrofóbico e doentio, cenário de um
drama que não era meu. Jurei que, daquele dia em diante, só iria
trabalhar com música.
NO CAMINHO CERTO
Minha avó tinha uma fé em Santo Antônio que a levava a rezar até se
esgotarem todas as orações conhecidas. O pedido era sempre o mesmo:
dias melhores para nós. E como se previsse algo, foi ela quem me deu o
meu primeiro violão. A via-crúcis da minha mãe — iniciada após a
separação do meu padrasto — duraria a eternidade de uns três anos. Ela
trabalhava duro para garantir a minha “roupa da missa”. A imagem dela
encerando o chão com o escovão (uma espécie de vassoura com uma
escova grande na base) e lavando roupas para os treze moradores da
casa, de pés descalços, até altas horas, sobretudo nos dias de chuva,
doía em mim.
Vieram os Snakes, o Exército, Carlos Imperial e... a parceria com
Roberto Carlos. As cobranças na família atingiram o auge no período em
que comecei a compor, o que gerava comentários do tipo:
— Era só o que faltava. Ele agora fica o dia inteiro no blém-blém-
blém, tocando violão, enrolando a pobre mãe, que se mata de trabalhar.
Quando recebi meu primeiro trimestre de direitos autorais pela
versão de Splish Splash e a coautoria de Parei na Contramão, ambas
gravadas por Roberto Carlos, joguei o dinheiro vivo em cima da cama e,
antes de dizer de onde ele vinha, brinquei:
— Mãe, roubei esse dinheiro da padaria.
Uma brincadeira de mau gosto. Ela ficou possessa e, com lágrimas
pelo rosto, saiu pela rua falando aos céus:
— Meu Deus, meu Deus, meu filho é um ladrão!
Erasmo com seu violão, ao lado de China (agachado), Arlênio e
Trindade, os Snakes: “Fizemos essa foto para divulgar nos jornais
e dar para as meninas. Já havia uma demanda dos dois lados.”
Somente com a negativa do surpreso e boa-praça seu Antônio da
padaria, que não dera falta de dinheiro nenhum no seu caixa, e com a
minha presença pedindo perdão pela péssima piada, é que ela se
acalmou. Ao saber da verdadeira origem da bolada, as lágrimas
continuaram, só que agora eram de alegria.
Esse dia seria o início de uma vida diferente para nós. Uma nova
etapa. Eu começava numa profissão. Era um embrião de compositor e
estava no caminho certo. As coisas iriam melhorar, e finalmente minha
mãe não teria que encerar casarões antigos nem lavar pilhas de roupas
alheias. Eu e meu violão não deixaríamos.
Como a música era uma arte marginalizada na época, a família não
deu o braço a torcer. Os comentários mudaram para:
— Música não dá dinheiro. É mentira dele!
— Deve ser alguma mulher que ele arrumou em Copacabana e
agora está vivendo às custas dela.
— A pobre da mãe é a única pessoa que acredita nele.
Pouco depois, já não restava dúvida de que meu dinheiro vinha da
música mesmo. Mas uma pergunta não foi respondida até hoje: quem
dedurou para dona Isabel a visita da loura sirigaita? O porteiro, o
ascensorista, o vendedor de mãe-benta?
A YOKO DOS SNAKES
Sempre que ouço Gostava Tanto de Você, clássico de Édson Trindade
imortalizado na voz de Tim Maia, penso: Será que ele fez essa música
para a Meire?
Trindade foi o cara que me levou para a música, me convidando em
1958 para cantar nos Snakes — o grupo vocal, formado por ele, Arlênio e
China, era uma dissidência dos Sputniks, que tinha Roberto Carlos e Tim
Maia em sua formação. E Meire, namorada de Trindade na época, viria a
ser uma espécie de Yoko Ono dos Snakes. Ela seria culpada pelos
primeiros desentendimentos entre nós. No início do namoro dos dois, sua
presença em nossos compromissos passou a ser quase diária,
interferindo na liberdade e intimidade do grupo. Aos poucos fomos
perdendo nossa privacidade. Tínhamos que nos policiar na hora dos
palavrões, das piadas, dos peidos e arrotos. E, o mais importante, sua
presença tolhia nossa criação.
O casal me volta à mente ao som de Gostava Tanto de Você
também porque o namoro dos dois nos rendeu um susto. Trindade chegou
um dia vestindo um sobretudo com a gola alta, mãos no bolso e um
chapéu com aba dobrada para baixo, enterrado na testa, igualzinho a
Humphrey Bogart no filme Casablanca. Quando perguntamos que roupa
era aquela, ele respondeu:
— Vim me despedir de vocês. A Meire terminou comigo e vou me
suicidar!
Ninguém ligou. Se ele esperava alguma preocupação ou piedade da
nossa parte, com certeza se decepcionou. E ainda demos uma bronca
antológica e coletiva nele. Tim, Arlênio, China e eu soltamos o verbo:
— Porra, Trindade! Vai à merda, rapaz. Vai se orientar na vida,
procurar alguma coisa para fazer. Tem mulher pra caramba por aí.
— Já vai tarde. Avisa quando vai ser, para a gente mandar flores.
— Só faltava essa! Qual é o seu plano? Vai ser atropelado, tomar
veneno ou o quê?
Ele esperou calmamente encerrarmos a gozação e, olhando em
nossos olhos, falou com uma cara séria:
— Vou me jogar do cais da praça XV. Vou encher meus bolsos de
pedras e me jogar.
Continuamos sem dar bola para aquela maluquice:
— Vá com Deus! Cuidado que o peso das pedras pode não ser
suficiente. É melhor pular com um pedregulho amarrado no pescoço. E
presta atenção no que vai comer antes, para não dar indigestão nos
peixes.
Voltamos a conversar enquanto ouvíamos ele ir embora
esbravejando:
— Vocês vão ler amanhã nos jornais. Pensam que estou brincando?
Vocês vão ver.
E sumiu. Sabíamos perfeitamente que aquilo era mais uma
palhaçada das muitas do Trindade — um sujeito especialista em
imitações, capaz de se fingir de enfermeiro para arrumar mulher e, para
não pagar a conta, colocar uma barata no próprio prato após se refestelar
com o rango de alguma lanchonete.
Mas no dia seguinte ele não apareceu na rua. Nem no outro, o que
foi nos deixando preocupados. Seria verdade? E se ele se suicidara
mesmo? Por que não o impedimos? Que tipo de amigos éramos nós?
Resolvemos esperar mais um dia e, se não houvesse notícias, iríamos até
a casa dele na rua Dr. Satamini e falaríamos com dona Elza, seu Trindade
ou com a irmãzinha dele, que parecia uma Nossa Senhorinha, de tão puro
que era o seu rosto.
Não precisamos de nada disso. Lá pelas tantas da noite, chegou ele
todo sorridente e feliz como se nada houvesse acontecido. Ao ser
indagado por que não se suicidara, respondeu debochando da gente:
— O quê? Vocês estão pensando que sou otário? A vida é tão boa,
o mundo cheio de mulher...
Algum de nós, injuriado, reclamou:
— A gente tava aqui quieto no nosso canto e você veio com esse
papo de suicídio. Deixou todo mundo preocupado e agora vem dizer que
está tudo bem. Tudo bem nada. Por que você não se suicidou?
E ele, com a cara de um anjo pintado por Leonardo da Vinci,
explicou:
— Porque a Meire voltou comigo!
Eles se mereciam.
MI, LÁ, RÉ: UMA BÊNÇÃO
Mesmo com as desavenças entre Meire e Trindade, os Snakes estavam
caminhando. Tim ficou órfão de vocalistas com o fim dos Sputniks.
Acompanhado somente por seu violão, seu canto perdia força. Faltava
algo. Nada como vozes de apoio para preencher a música e valorizar a
melodia. Ele nos convidou, então, para participar de suas apresentações.
Os ensaios eram na pensão do pai de Tim, seu Altivo, um casarão antigo
que ficava na rua Barão de Itapagipe.
Abraçado com o pai no apartamento dele, em Salvador: “Era a
primeira vez que o visitava, depois de conhecê-lo no Rio.”
Nossos encontros eram sempre iguais. Arlênio tentava, com seu
falso inglês tijucano, reproduzir a letra dos originais americanos. Depois,
distribuía as vozes de cada um. Caprichávamos abrindo as vogais “a” e
“o” e os fraseados “tchururu”, “tchep” e “doo-woop-woop”. O quarto de
Tim ficava situado abaixo do nível da rua, bem em frente ao ponto do
bonde 51 (Matoso), que de meia em meia hora nos interrompia com sua
barulheira infernal. Nem ligávamos, pois estávamos sempre contemplando,
ocultos atrás das janelas de grade de ferro, dezenas de pernas, vistosas
e apetitosas, das meninas dos colégios Paulo de Frontin e Maria Raythe,
que ficavam ali esperando a condução. É claro que as saias abaixo do
joelho não nos deixavam vislumbrar as coxas, mas nossa imaginação via
além.
Na hora do almoço, o cheirinho da comida que vinha da cozinha
desafinava as nossas vozes. Ao anúncio de “tá na mesa”, devorávamos,
com a falta de educação que nos era costumeira, as delícias caseiras que
dona Maria Imaculada, a mãe de Tim, carinhosamente nos oferecia.
Depois de enchermos o bucho, Tim pegava novamente o violão e
voltávamos para Good Golly, Miss Molly, Jenny Jenny, Little Darling e
Bop-a-Lena, a base do nosso repertório com ele. Foi num desses ensaios
que Tim me ensinou no violão os acordes mi, lá e ré, abrindo para mim as
portas do abençoado mundo da composição.
ACONTECE QUE EU SOU (QUASE) BAIANO
Quando entrei para os Snakes, em 1958, o rock fazia a minha cabeça.
Mas, parafraseando Caymmi, acontece que eu sou quase baiano — e
isso faria diferença na minha relação com a música.
Quase baiano? Pois é. Vim de Salvador para o Rio na terceira
classe de um navio, ainda no ventre de minha mãe Maria Diva. Vieram
também minha avó Maria Luiza, minha tia Alzira e meu tio Geraldo.
Aqui cabe um parêntese. Meu pai não assumiu a gravidez da minha
mãe, por isso passei toda minha juventude achando que ele, Nilson
Ferreira Coelho, estava morto — preferiram me dizer isso que a verdade.
Quando comecei a aparecer na TV, ele me procurou. Seus outros filhos,
Nilsinho e Celinha, que viviam com ele, falaram que éramos parecidos —
diziam que, cantando, eu e meu pai fazíamos um movimento idêntico de
bater com a mão na perna. Lembrou-se de minha mãe, fez as contas e
teve certeza de que eu era seu filho. Nos conhecemos quando eu tinha 23
anos e chegamos a nos encontrar com alguma frequência, mas nunca
construímos um relação de amor do tipo pai e filho. Fecha parênteses.
Cresci assim, cercado de baianos por todos os lados e criado como
se fosse um. Absorvi a cultura baiana a ponto de fazer minhas primeiras
orações para o Senhor do Bonfim, que era o papai do céu para mim. Em
dias de festa, comia-se caruru, vatapá, munguzá com canela na
sobremesa, e até feijão de coco, que minha avó fazia.
O linguajar é que era difícil, pois jamais consegui dominar a famosa
“língua do P”, tradição baiana. Todos a falavam correntemente, em
especial quando queriam que eu não entendesse a conversa: dapá, depé,
dipí, dopó, dupú... O alfabeto também era estranho, pois o f era fê, o g
era guê, o l era lê, o m, mê...
Na hora da tosse era um Deus nos acuda: me davam melado com
farinha e aplicavam panos aquecidos pelo ferro de passar no peito e nas
costas. Se fosse dor de cabeça, duas rodelas de batata coladas na fronte
resolveriam. Lembro até hoje as sábias filosofias dos ditados populares,
que não cansavam de repetir para mim: “Junte-se aos bons que serás um
deles”, “Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz”, ou “Antes só do
que mal acompanhado” (que eu iria inverter mais tarde na música Mesmo
que Seja Eu). Um que custei a entender foi: “Godero me disse que eu
goderasse, comesse dos outros e do meu guardasse”, que usávamos
para nos resguardar de aproveitadores (“goderar” significa cercar o prato
alheio, na expectativa de ganhar algo). Também não entendia o
“Menininha sem arame, vá rodando e não me ame”, exclusiva para quando
minha mãe não simpatizava com alguma namorada minha.
Sou, portanto, um indivíduo de dupla cidadania, carioca de
nascimento e baiano de criação.
A música também me chegava pelo lado baiano. Quando ouvi João
Valentão, fiquei intrigado, porque eu era encrenqueiro e sonhava acordado
como o personagem da letra da música. Parecia que Dorival Caymmi
sabia da minha vida e estava me dando um toque. Tempos depois, todos
lá em casa cantariam de manhã, de tarde e de noite o sucesso
Maracangalha, que as rádios não paravam de tocar.
Quem é do signo de gêmeos, como eu, é um duplo, sendo
perfeitamente natural que um lado de mim tenha ficado chapado quando
ouviu Rock Around the Clock, com Bill Halley, enquanto o outro... ah, o
outro... sentiu um cataclisma interior ao escutar Chega de Saudade, com
João Gilberto. Foi um deslumbramento só. Provocou uma reação que eu
nunca sentira antes, uma mistura de ternura com felicidade, uma vontade
de entrar rádio adentro e fazer parte daquele som que parecia falar
diretamente comigo. Ao mesmo tempo, era o que eu queria ser para
qualquer namorada: simples, poético, harmônico, carinhoso, triste e
alegre.
Claro que o meu roqueiro interior não gostou muito do que o meu
outro eu sentiu. Mas os dois vivem comigo até hoje em regime de
coexistência pacífica. Com o tempo, vim a saber que aquilo era bossa
nova e que João — o inventor da batida que revolucionou a música
mundial e a minha vida — era baiano.
BRIGITTE BIJOU, A DECEPÇÃO
Se por dentro eu era um sujeito dividido entre rock e bossa nova, minha
imagem — calça Far-West nacional (o mais próximo que podíamos
chegar dos jeans que víamos nos filmes americanos), camisa de gola alta,
cabelo comprido e costeleta — não admitia dúvidas. Eu era o protótipo do
roqueiro. E foi graças ao rock que fiz minha estreia no cinema. Estava
com 17 anos, na ativa com os Snakes, quando Carlos Imperial nos
convidou para gravarmos com Cauby Peixoto um rock para o filme Minha
Sogra É da Polícia, com Violeta Ferraz no elenco e direção de Aloísio T.
de Carvalho. Como o China não pôde ir, eu, Arlênio e Édson Trindade
convidamos Roberto para cantar com a gente. No dia marcado, seguimos
para a igreja Santa Mônica, do Colégio Santo Agostinho, no Leblon, onde
a turma do Imperial já nos esperava para ensaiar.
A banda era composta por amigos do Imperial. Fui apresentado a
um cantor que eu jurava que fosse americano, pois havia lido em vários
jornais notinhas e reportagens afirmando que ele, Dixon Savannah, batera
Elvis Presley em prestígio nos Estados Unidos e era a nova sensação
mundial do rock and roll.
Seu nome, na verdade, era Paulo Silvino, um tipo simpático e
piadista. O cara era brasileiro e estava bem ali na minha frente: comprido,
voz grave, óculos fundo de garrafa, cara engraçada e jeito compenetrado.
Silvino logo me contou que Dixon Savannah não passava de uma jogada
de marketing para vender o disco que ele havia gravado. Um pouco
decepcionado com a revelação e me sentindo ludibriado, só me restou rir
da ousadia.
O ensaio foi rápido e, em pouco tempo, já estávamos afiados.
Imperial marcou a gravação para o dia seguinte e todos se dispersaram.
Como estava sem nada para fazer, fui parar na casa do Silvino, em
Ipanema, convidado por ele para ouvir uns discos de rock recém-lançados
nos States. Lá chegando, tive a honra de conhecer sua mãe, Naja Silvino,
renomada pianista, e seu famoso pai, o humorista Silvino Neto, que
arrebentava na Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
Ouvimos algumas músicas, jogamos conversa fora como se
fôssemos velhos conhecidos, até que, contemplando os livros da estante,
meus olhos se fixaram na capa de Éramos Três.
Flashback: Éramos Três havia sido fundamental, um ano antes, para
minha vida sexual, que na época ainda era devagar. Fora a Lilica da
Tijuca, que dava para todo mundo da turma, e uma prostituta da zona do
Mangue, não tinha transado com mais ninguém. Uma simples foto de
vedete ou de miss me excitava instantaneamente. As namoradinhas que
tinha eram virgens e eu e meus amigos disputávamos a tapa até as
revistinhas eróticas de Carlos Zéfiro.
Foi nessa época que descobri a literatura erótica, que a gente na
intimidade chamava de “livro de sacanagem” mesmo. O “pega” entre
Lenita e Manuel em A Carne, de Júlio Ribeiro, foi o primeiro a me
“sensibilizar” — uma alegria solitária que duraria até o dia em que perdi o
livro. Após um período sem “inspiração”, achei um tesouro quando li
Éramos Três, da escritora Brigitte Bijou. Caramba, não saía mais do
banheiro! A história de um triângulo amoroso envolvendo um homem e
duas mulheres fez minha cabeça. Troquei até o nome do personagem pelo
meu para me imaginar no seu lugar, na cama com duas gostosas
peitudas.
Confesso que, além do teor erótico da narrativa, me deixava muito
louco o fato de saber que era uma mulher que escrevia aquilo. Não era
possível que ela não fosse devassa. Na minha imaginação, Brigitte Bijou
devia ser uma messalina amoral e tesuda, uma vênus ninfomaníaca que
escravizava os homens com sua bunda magnífica. Uma maravilhosa deusa
do sexo.
Minha alegria duraria pouco, pois num belo dia me roubaram Éramos
Três no colégio. Peguei o exemplar de Paulo Silvino com a empolgação de
uma criança e não escondi a surpresa:
— Ih, bicho, você tem Éramos Três! A mulher que escreveu esse
livro é muito safada! Sou seu fã. Ela deve ser maquiavélica. Deve fazer
suruba com os caras, dar a bunda, chupar, fazer 69...
— Você acha? — interrompeu ele.
— Acho não, tenho certeza! Uma mulher para escrever as
sacanagens que ela escreve, só pode ser escolada.
Foi quando recebi o balde de água gelada:
— Que é isso, Erasmo? Ela é uma santa, uma moça de família. Sei
disso porque sou eu que escrevo os livros dela.
— O quê? Você está me dizendo que Brigitte Bijou é um
pseudônimo?
— Exatamente.
— Ah! Então me devolva todo o esperma que eu gastei tocando
punheta — respondi, injuriado.
Naquela noite, pediria o livro emprestado com a desculpa
esfarrapada de querer reler a história. Na contracapa, me chamou
atenção uma dedicatória:
“Helô, se esse livro não te aquecer nas noites frias, considera-te
feita de gelo...”
Até hoje, quando encontro Paulo Silvino, metralho:
— Dixon Savannah, como vai você? Ah, me desculpe... É Brigitte
Bijou, não?
Voltando ao Minha Sogra É da Polícia, gravamos a música That’s
Rock, com Cauby Peixoto, no dia marcado. No final da gravação, Imperial
nos convidou para dublarmos os instrumentos musicais no filme quando
soasse a canção — ele e Roberto nos violões, Édson Trindade na bateria,
eu no saxofone e Arlênio, que tinha um metro e sessenta e poucos de
altura, em cima de um banquinho no contrabaixo. Silvino apareceria na
cena seguinte dançando rock entre lambretas e vespas com Violeta
Ferraz. Minha Sogra É da Polícia se tornaria um filme cult, histórico pela
nossa reunião.
O filme ainda me rendeu uma cana. Ao assisti-lo no cinema Estácio,
no bairro homônimo, cercado pelos amigos e as namoradinhas da Tijuca,
tive a infeliz ideia de roubar uma das fotos de divulgação que ficavam ao
lado do cartaz. Fui preso e foi preciso minha mãe ir à delegacia para
testemunhar que um daqueles “delinquentes” da foto era eu.
Com Tim Maia, na época da Jovem Guarda: “Tim ainda fiel ao estilo Timbolina.
Eu, com uma camisa listrada que marcou meu guarda-roupa.”
SUCESSO FABRICADO
Com os Snakes, aprendi minhas primeiras lições sobre o show business.
Certa noite, estávamos no bar Divino eu, Arlênio, Trindade, China, além de
Raul e Almir, todos esperando que um casal, recém-saído da última
sessão do Cine Madrid, acabasse de degustar uma pizza aparentemente
saborosa para devorarmos o resto que a mulher deixaria. Sabíamos disso
porque, depois de incontáveis noites de observação, percebemos que
elas comiam pouquíssimo, por charme ou medo de engordar. Não deu
outra. Mal foram embora e atacamos as sobras.
Durante a conversa, enquanto traçávamos a pizza alheia, eis que
chega Paulo Murilo, divulgador da Copacabana Discos, que estava
fazendo alguns contatos para que os Snakes gravassem um disco. Não
queríamos passar a vida inteira fazendo vocais para Roberto Carlos e Tim
Maia. Acompanhar o “Elvis Presley brasileiro” (Roberto) e o “Little Richard
brasileiro” (Tim) no Clube do Rock era até então nossa principal e quase
exclusiva atividade. Mas nossa vontade era gravar e também fazer shows
solos. Eu e Trindade já estávamos tocando violão razoavelmente bem.
Murilo veio com o compositor André Duarte, famoso por ter feito
vários sambas, sambas-canção e marchas carnavalescas de sucesso.
André apresentou uma proposta para os Snakes. Era a seguinte: ele
estava lançando um cantor por uma gravadora da qual não quis revelar o
nome e queria nos contratar para fazermos o backing vocal. A música era
uma marcha de sua autoria e a gravação seria no dia seguinte. Trindade,
China, Arlênio e eu nos entreolhamos, sérios e contidos, porém satisfeitos
por dentro. Além de faturarmos um bom cachê, lucramos com a vaidade
de estarmos sendo requisitados. E o melhor: andando com os nossos
próprios pés, sem depender dos amigos Roberto e Tim.
Combinamos o pagamento, horário e, no dia seguinte, seguimos
para a Esplanada do Castelo, no Centro, onde ficava o estúdio de
gravação. Ao saltarmos do elevador do prédio, já começaram as
surpresas. O corredor estava cheio de gente e tivemos que pedir licença
para passar, enquanto ouvíamos os comentários de decepção:
— Ah, pensei que fosse o Carvalho.
O tal estúdio não passava de uma salinha, decorada com cartazes
de artistas da Rádio Nacional, como Emilinha Borba, Francisco Carlos,
Lúcio Alves... Um vidro o separava de um cubículo onde só cabiam uma
mesinha de som jurássica e o técnico. Falante e vaselina que era, André
nos recebeu com simpatia, explicando que o tal cantor estava atrasado,
era português e se chamava Joaquim Carvalho. Acrescentou que as
pessoas que estavam lá no corredor eram amigos que vieram dar uma
força.
Ficamos quietos, olhando ao redor no meio da confusão. No centro
da salinha, um microfone de pé captaria o som geral. O grupo que nos
acompanharia, formado por dois violões, uma tumbadora e um afoxé,
somados a nós quatro, já lotava o “estúdio”. Começamos a ensaiar:
Quem é que não conhece a Pedra da Moreninha em Paquetá
Só quem não ouviu o canto e o encanto que vem de lá...
Arlênio distribuía as vozes. Ele ficava com a mais grave (o baixo), eu
fazia o canto principal, Trindade ia uma oitava acima da minha e China
entrava com alguma outra voz que combinasse harmonicamente. Convém
dizer que usávamos na época o sistema de gravação direto no acetato, ou
seja, no disco. Não podia haver erros. Qualquer imperfeição na execução
e teríamos que recomeçar tudo do zero. Trocava-se a matriz e fazíamos
outra tentativa. Ou seja, até por motivo de economia, já que um acetato-
matriz custava caro, era aconselhável ensaiar bastante — e estávamos
fazendo isso. Para se conseguir o equilíbrio com um único microfone, as
vozes e os instrumentos mais agudos ficavam mais afastados. Só que um
detalhe importante estava faltando: cadê o cantor?
Não demorou muito e o burburinho do corredor anunciava que
chegara o Carvalho. Achamos estranho quando vimos a figura,
completamente diferente do que imaginávamos. Não tinha pinta de artista,
mais parecendo um bicheiro ou um cafetão da Lapa: gordo, parecendo ter
40 anos, baixinho, cabelos ondulados e penteados para trás com
brilhantina, bigodinho fino, terno jaquetão de linho branco, gravata, anéis
de ouro e sapato bicolor.
O grupo atacou e ele não entrou. Atacou de novo e ele entrou fora
do tom, depois fora do tempo. Se engasgou e pediu desculpas, com
algum sotaque lusitano, dizendo que havia alguma coisa diferente e que já
já ele iria acertar. Nem chegara ainda nossa hora de cantar e já
estávamos cansados. André tentava contornar a situação, pedindo calma,
mas já estava temeroso de que não iria dar certo. Carvalho, coitado,
transpirava por todos os poros, já sem paletó, com a camisa colada no
corpo. Não sabia o que fazer, enxugando o rosto, o pescoço e o peito
com um lenço encharcado de suor. Um dos músicos teve uma ideia:
— Os garotos poderiam cantar desde o início e o Carvalho vai atrás.
Pronto, a sugestão caiu do céu para André. Ensaiamos algumas
vezes, com a voz do Carvalho quase escondida em meio às nossas, e o
técnico então resolveu gravar. Carvalho nos atrapalhava, pois além do
suor e da péssima performance vocal, ele não tinha a mínima noção de
ritmo.
Cinco acetatos depois, imortalizava-se o “Quem é que não conhece
a pedra da Moreninha em Paquetá...”. Para completar, não recebemos
nosso cachê completo — o restante seria pago dias depois. Carvalho foi
embora, saudado em apoteose pelo fã-clube no corredor, quase
carregado, aos brados de “Boa, Carvalho!”, “Que maravilha!”, “Vai ser
sucesso!”, “Tá bom para chuchu!”.
Dois meses depois, Paulo Murilo nos convidou, a pedido de André,
para um almoço na casa do Carvalho em Nova Iguaçu. Seria o lançamento
do disco e ele aproveitaria para pagar o que nos devia. Juntamos uma
galera e para lá seguimos. Nas proximidades da rua, já dava para ouvir o
foguetório. Gente de todas as idades gritando “Carvalho, Carvalho!”,
serpentinas espalhadas, bandeirolas, uma bandeira do Vasco, moças
sorridentes e crianças brincando com línguas de sogra. A casa era grande
e o quintal idem. Fomos apresentados a todos como “os meninos que
cantavam com Carvalho”. Muitos diziam:
— Ah, sei. Os Snacks.
O que nos levava a corrigir pacientemente:
— Não é Snacks, é The Snakes, os cobras.
A mulher do Carvalho, portuguesa também, nos cativou com sua
amabilidade, nos apresentando a um panelão de moqueca com batatas e
mandando que nos servíssemos dos garrafões de palha de vinho tinto.
Percebemos, porém, que ela tinha um buço tão notável que mais parecia
um bigode. Olhares mais cuidadosos nos permitiram ver que a senhora
Carvalho não raspava as pernas nem os pelos do sovaco.
Num momento descontraído em que Carvalho se divertia, dançando
desengonçado com familiares e amigos, eis que chega André correndo,
trazendo um rádio de pilha a todo volume, gritando excitado:
— Carvalho, Carvalho, olha o que está tocando no rádio! “Quem é
que não conhece a Pedra da Moreninha de Paquetá...”.
Todos deram vivas e abraçaram Carvalho, que não cabia em si de
contentamento. Passado algum tempo, a música tocou de novo e de novo,
sempre saudada pelos presentes. Carvalho estava eufórico. Foi quando
ouvimos André dizer:
— É, Carvalho... Vamos precisar de mais grana para prensar mais
discos, porque Pedra da Moreninha é um sucesso.
Bebemos, comemos e nada do nosso dinheiro. No final, André
evocou todas as desculpas do mundo e prometeu que iria fazer nosso
pagamento no bar Divino, pessoalmente, no dia seguinte, nos deu um
disco com a música e ponto final. Vimos cair por terra o nosso lema “a
esperança é a última que morre”, pois ela morreu mesmo. Já não
alimentávamos mais pretensão alguma de recebermos o resto do nosso
cachê. André sumiria e nunca mais ouviríamos falar dele.
Com o tempo, ficamos sabendo da maracutaia. Ele conhecera
Carvalho numa roda de violão onde a birita rolava solta. Depois de alguns
goles, soube tratar-se de um comerciante rico de Nova Iguaçu,
vaidosíssimo, que tinha o sonho de ser cantor. Imediatamente prometeu
ao pobre coitado a realização do seu desejo, contando com a ajuda de
alguns amigos que trabalhavam em rádios da periferia. Carvalho soltava a
grana e, devidamente pagos, eles alimentavam o ego do aspirante à
estrela, a ponto de convencê-lo de que ele era um novo Francisco Alves.
A gravação, o fã-clube, a festa e a música tocando no rádio, era tudo uma
grande armação.
Esse episódio me serviria de ensinamento logo no início da minha
estrada. Foi apenas uma das muitas armadilhas capciosas que eu ainda
presenciaria no mundo da música.
A história de Erasmo e o alisamento capilar com Timbolina
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A história de Erasmo e o alisamento capilar com Timbolina

  • 1.
  • 2. DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros, disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.
  • 3.
  • 4. DIREITO DE NASCER O ÚLTIMO CAPÍTULO DA NOVELA Direito de Nascer estava prestes a começar e eu aguardava ansioso. Mas naquele 13 de agosto de 1965 não tinha o menor interesse em saber como terminaria a trama de Albertinho Limonta, Maria Helena, mamãe Dolores e Isabel Cristina. A Isabel que interessava estava ali ao meu lado, na entrada do edifício onde ela morava. Às 21h30, quando soaram os primeiros acordes de Amor Eterno, tema de abertura do folhetim, ela me olhou com seu habitual jeito sacana. Como vínhamos fazendo havia alguns meses, sempre no mesmo horário, seguimos para as escadas do prédio. Todo mundo via a novela, inclusive os pais dela, e os corredores ficavam vazios. O Brasil parava. Não se ouvia um pio. Nas escadas, porém, a vida seguia. Isabel era uma gracinha tijucana de rosto redondo e cabelos compridos, baixinha e boa demais. E, o
  • 5. melhor, entregava cheia de desejo aquele corpinho para mim, fechando os olhos e respondendo às minhas carícias. E eu me perguntava: “Será que ela gosta do artista ou do homem?” Não sei. Me sentia completamente à vontade como Erasmo Carlos, nome bem mais forte e capaz de traduzir minha personalidade que o Erasmo Esteves de batismo. Tinha certeza disso ao ouvi-lo tantas vezes nas rádios, graças ao sucesso de minhas músicas. Na verdade, não me preocupava saber qual Erasmo Isabel queria. Porque fosse qual fosse, ele estava ali, grudado nela e procurando não fazer barulho. Na minha cabeça, não havia silêncio: o Brasil inteiro cantava Festa de Arromba e o amor de Isabel acompanhava. Eu vivia no paraíso. A vida sorria para o menino da Tijuca. O BONDE 51, QUE PASSAVA A cada meia hora, concedia certo status à minha rua frente às suas vizinhas do bairro da Tijuca. No mais, a rua do Matoso era um típico cenário da Zona Norte carioca. Tinha de tudo lá: um posto de saúde com um entra e sai constante de ambulâncias que davam carona aos moradores; um templo batista também frequentado pelos garotos católicos (afinal, havia meninas lá); casarões decadentes que viraram casas de cômodos, nas quais cada quarto era alugado para uma família; vilas com casas simples; pensões; mansões com direito a zoológico particular; hotel; fortaleza de jogo do bicho; pequenas indústrias de fundo de quintal; e um comércio variado, que incluía também os ambulantes, como o comprador de garrafas, o amolador de facas e a “vaca leiteira” (pequeno carro-pipa que vendia leite nas esquinas). Era uma babel de comportamentos, com gente de todos os tipos. Na periferia existiam malucos de várias periculosidades, convivendo em harmonia com pessoas pacatas e gentis. Todos sabiam dos segredos de todos e se frequentavam. Brigavam entre si para, no final, fazerem as pazes bebendo democraticamente no mesmo bar. De vez em quando, acontecia um escandalozinho — como um adultério, que fazia a festa dos faladeiros de plantão — ou alguma confusão, quase sempre originária de discordâncias entre torcedores do Vasco e do Flamengo.
  • 6. Às vezes, acho que a ingenuidade e o romantismo da época amenizavam um pouco a dureza de nosso cotidiano. Eram tempos difíceis, mas o Sol brilhava sempre, mesmo quando encoberto por nuvens de incerteza. Nascido no dia 5 de junho de 1941, morei ali até os 15 anos. Fui crescendo com meus amigos no olho desse furacão, num lugar que era um pedaço do Brasil daquele período. Seria, portanto, compreensível que minha geração “chutasse o pau da barraca” no futuro. NOS TEMPOS DA MATOSO, nem no melhor dos sonhos eu imaginaria estar ali, em 1965, deleitando-me com Isabel e curtindo, em meus delírios, a sensação maravilhosa de ouvir multidões cantando Festa de Arromba em uníssono. Sexo e sucesso. Naquele momento, senti que o moleque Erasmo Esteves tinha, sim, realizado o desejo juvenil de ser um cantor do rock and roll — do qual Elvis era o modelo maior. A respiração de Isabel entrou no ritmo dos versos: “Hey, hey/ Que onda/ Que festa de arromba”. Estrelas mudaram de lugar quando ela passou a mão vagarosamente nos meus cabelos. ADOLESCENTE, EU QUERIA TER o cabelo como o de Elvis. Me esforçava bastante usando gumex (o avô de todos os géis), esticando meus fios com touca de meia e penteando meu cabelo ao contrário, mas jamais consegui que ele ficasse liso. Meu próprio suor ou qualquer chuvinha o condenava a ser como antes, ondulado e rebelde. Até que surgiu a esperança, um papo sobre um alisamento que era tiro e queda. “Eu de cabelo liso? Tim Maia também? E mais Édson Trindade, Arlênio, Sabará, Pinto Nu, Marco Aurélio, todo mundo?” Seria algum milagre? Era duro de acreditar, mas procurei me informar sobre a novidade, telefonando para o Tim: — Bicho, como é esse negócio de alisar cabelo que andam falando por aí? — É a Timbolina, Erasmo! — respondeu ele. — Um melado mágico que o Timbó inventou para alisar cabelo. Parece ser bom às pampas.
  • 7. Vâmu lá experimentar. Timbó era um paulista, negro, já de uma certa idade, gay assumido e malandro cheio de ginga, que morava num quarto alugado no número 119 da rua. Fã ardoroso de Adoniran Barbosa e dos Demônios da Garoa, era impossível visitá-lo e não ouvir Iracema, Samba do Arnesto e Saudosa Maloca, hits da sua vitrola. Ele era chegado ao candomblé e a dialetos africanos, usando expressões como “Juru do céu” (para designar olhos azuis), “Juru do mar” (olhos verdes) e “Juru da montanha” (olhos castanhos). Gente finíssima, ele nos dava conselhos e tinha uma amizade paternal por todos nós. Bebia cachaça com Coca-Cola e, depois do terceiro gole, começava a chorar com saudades de São Paulo. Anos mais tarde, na música Turma da Tijuca, que gravei em 1984, eu faria uma saudação a ele. No sábado à tarde, dia em que aplicaríamos a Timbolina, lá estava eu, no primeiro lugar da fila, já me imaginando de visual novo, com as meninas comentando: “Olha lá o Erasmo! O cabelo dele é igualzinho ao do Elvis.” Aos poucos, foram chegando mais “fregueses”: Renato, Raul, Sérgio Maluco, Roberto Carlos, Zé Martins e o próprio Tim que, assim como eu, queriam usufruir daquele invento revolucionário, misterioso e alvissareiro. Fomos todos para a cozinha do casarão, onde fervia, numa lata sobre o fogão a lenha, uma substância preta que mais parecia um mingau de carvão. Timbó mexia com uma colher de pau e, entusiasmado, nos apresentava como sendo a tal da Timbolina. Fomos para o quintal levando a lata ainda fervendo para ser colocada na beirada do tanque, com o murinho ao lado servindo de banco durante o processo. O produto teria que ser aplicado quente. Timbó, com uma espátula, ia distribuindo cuidadosamente a miscelânea por nossas cabeças, ao mesmo tempo em que se gabava, dando vazão ao seu exótico, incompreensível e louco repertório de filosofias: — O caboclo vai gostar, Jurupema mandou reencarnar na flor e puxar o céu para me cobrir. Timbó é mestre, ele faz a chuva e não se molha, mas Adoniran é nagô... Em seguida, dava uma gargalhada debochada, se cuspindo todo, e emendava: “Saudosa maloca/ Maloca querida/ Din din donde nós passemo/ Os dias feliz de nossa vida.” O mingau me queimava, mas eu aguentava firme e ainda lembrava:
  • 8. — Ô Timbó, não se esqueça das costeletas. Passada a aplicação, vinha a etapa final, que exigia a espera de uma hora para que o processo de alisamento se completasse. Em seguida, a lavagem da cabeça com sabão fazia escoar uma espuma preta e malcheirosa pelo ralo do tanque. Pronto! Lá estava eu com o cabelo liso para chamar de meu. Naquela noite, fomos a uma festa na casa do Amilton, no Grajaú, cheia de garotas lindas e moderninhas. Era engraçado o cacoete ridículo que instantaneamente adquirimos, de forçar a barra para que nosso topete desabasse a todo momento sobre os olhos. Em seguida, com um movimento brusco, o jogávamos para trás. Me lembro que, na volta, sentei de propósito ao lado da janela do ônibus, coloquei a cabeça para fora, e deixei que o vento desalinhasse minha alisadíssima cabeleira. No dia seguinte, porém, ao abrir os olhos pela manhã, senti de imediato um desconforto. Alguma coisa estava errada. Minha cabeça parecia uma tempestade. Doía da nuca até a testa, latejando com chuva, vento, raios e trovões. Além disso, o desagradável odor cáustico da Timbolina no travesseiro me anestesiava. Passei a mão na cabeça e não gostei do que senti. Corri para o espelho e não gostei do que vi: — Puta que pariu! Meu couro cabeludo estava todo ferido, queimado pela agressão da alquimia preta que o maluco do Timbó me aplicara. Vi que era o momento de um recolhimento estratégico. Me entupi de Melhoral e pomada e fugi da vida social por uns tempos, enquanto testemunhava um outro problemão: conforme os dias passavam, meu cabelo foi ficando cor de cobre, o que me levou a cortá-lo bem baixinho, à la Príncipe Danilo (corte da época semelhante ao do volante Danilo, do Vasco). Na verdade, a milagrosa pasta era um tipo de Henê, feito da forma mais primitiva e perigosa possível, com ingredientes altamente invasivos e prejudiciais à saúde: amônia, formol, álcool, tinta... Uma fórmula corrosiva e daninha. Assim como eu, muitos desistiram do tratamento capilar, mas Tim Maia continuou. Quando foi para os Estados Unidos, em 1959, era o que mais pedia nas cartas que me enviava: “Erasmo, seu brasileiro de merda. Pelo amor de Deus, pare de tocar punheta e me mande Timboliiiiinaaaaaaaaa!”
  • 9. A LEMBRANÇA DE TIM MAIA — sacana até em pensamento — não me trouxe sorte. Isabel e eu ouvimos um barulho e paramos assustados, prendendo a respiração. Escutamos uma chave girando na fechadura e uma porta batendo: devia ser alguém atrasado para a novela. Passado o susto, consegui acalmar a belezura e retomar o amasso. Alisando as formas de Isabel, lembrei do meu velho violão de cravelhas de pau. TIM MAIA ME ENSINOU TRÊS acordes, com os quais dei meus primeiros passos. Eu treinava num violão dado por minha avó Maria Luiza, a primeira a apostar em meu talento. Foi nesse violão que ouvi tocar pela primeira vez, lá em casa, um cara do bairro de Lins de Vasconcelos, que eu tinha acabado de conhecer. Adorei vê-lo cantando aqueles rocks americanos no meu quarto. Ele era um garoto que, como eu, amava Elvis — e poucos anos depois, como eu, viria a amar João Gilberto. O baiano de Chega de Saudade me confirmou que havia algo na Bahia que fazia meu coração bater diferente, como eu já havia percebido com Dorival Caymmi. O João Valentão de sua música (“João Valentão é brigão/ .../ Mas tem seu momento na vida/ .../ É quando a morena se encolhe/ Se chega pro lado querendo agradar/ .../ E assim adormece esse homem/ Que nunca precisa dormir pra sonhar”), brigão e romântico, era eu. O nome do cara do Lins era Roberto Carlos. Após a maratona de abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim, Isabel, toda dengosa, pousou a cabeça no meu ombro. Saímos da escada e voltamos para a entrada do prédio. A novela estava acabando. Festa de Arromba parou de tocar na minha cabeça e então comecei a ouvir o barulho da chuva. A chuva não atrapalhou o show que Carlos Imperial organizou em frente à TV Rio, em Copacabana, para badalar a ida de Rita Pavone à emissora, em 1963. A ideia era, no dia da apresentação da cantora na
  • 10. TV, reunir uma multidão na rua, parando a cidade e impressionando os jornais. Um evento dispensável, afinal a cantora-fenômeno já era mais que badalada por si só. Não se falava de outra coisa. No rádio, nas festinhas e nos bailes, seus sucessos Datemi un Martello e Cuore tocavam mais que Parabéns pra Você. Seus clones se multiplicavam — cabelos curtos, botinhas, camisa branca de mangas compridas, calça preta e o indefectível suspensório. Mas, como a cúpula da TV Rio pediu que Imperial se virasse para fazer algo que chamasse mais a atenção para Rita, ele correu atrás. Eu estava de bobeira em minha casa na Tijuca quando o telefone tocou. Era ele, gritando: — Figura, larga o que estiver fazendo e vem para a TV Rio agora! Telefona para quem você puder e manda todo mundo vir para cá para um grande show. Simonal e Marcos Moran já estão comigo. Liguei para alguns amigos e saí a jato. Quando cheguei à emissora, logo ao saltar do táxi, já fui envolvido pela multidão. Imperial, nervoso, dava ordens aos berros, tentando organizar a bagunça. Aos poucos, os artistas foram chegando: Cleide Alves, Golden Boys, Trio Esperança, Roberto Rei (autor da História de um Homem Mau, sucesso com Roberto Carlos), Amilton, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Selmita, Maritza Fabiani, Tony Checker e Gerson Combo, entre outros. O cast foi se encorpando, a aparelhagem foi ligada, a câmera colocada num lugar estratégico e, exatamente às 18h, começou o show no palco armado em frente à TV Rio. Enquanto a apresentação rolava, as pessoas que passavam por ali paravam curiosas para ver o burburinho, sem a mínima noção do que se tratava — como tudo foi feito na pressa, não havia cartazes pela cidade ou anúncios nas rádios. Com o acúmulo de gente, o trânsito também parou e começou o buzinaço. Em pouco tempo, o Posto 6, em Copacabana, já abrigava uma multidão. Como tudo foi improvisado e a transmissão era ao vivo, às vezes entravam os comerciais com alguém ainda cantando e, quando voltava a aparecer o palco, a música já tinha acabado. Uma chuva fininha começou a cair, causando certa apreensão. Mas mesmo com a garoa e sem a presença de muitos artistas, que estavam fora do Rio ou não foram encontrados, Imperial se saía bem. Apresentava os que chegavam, entrevistava o povão e convocava as pessoas para imitar a dança característica da Rita. Na minha hora de cantar, não fiz por menos e entrei todo pimpão
  • 11. quando a banda atacou Terror dos Namorados. A emoção de quem está lançando uma música nova tomou conta de mim. Vibrava a cada compasso e a cada virada de bateria. Na parte da música em que a banda para, deixando soar os acordes para eu cantar “eu beijo, beijo, beijo, beijo, beijo, beijo, beijo, beijo, beijo...”, o público foi à loucura, gritando sem parar. Confesso que me surpreendi com a reação e pensei comigo: “Caramba, estou agradando em cheio. O povo está gostando! Vou dar mais de mim.” E dei. A visão dos pingos da chuva caindo sobre o facho de luz dos refletores, em contraste com o escuro do céu, tornava aquela demonstração de carinho emocionante para um iniciante como eu. A galera continuou pulando e me ovacionando cada vez mais. Agora também de braços erguidos, me saudando calorosamente. De repente, caí do meu deslumbramento e despertei daquele sonho. Notei que os olhares, os aplausos e os acenos não eram para mim. E sim para alguém que estava no terraço da emissora. Virei meu pescoço num gesto brusco, olhei para o alto e vi, cercada pelo seu staff, a figura mignon de Rita Pavone, sorrindo e mandando beijinhos para a multidão ensandecida. Anos mais tarde, já famoso, a encontrei num show de Jorge Ben numa boate em São Paulo. Brinquei com ela: — Você lembra de mim naquele show de 1963, na porta da TV no Rio de Janeiro? Após sua negativa, respondi: — Eu era um pingo da chuva que molhou você. NO CAMINHO PARA CASA apesar do frescor da pele de Isabel, temi pelo fim do namoro. Afinal, nove dias depois daquela noite, estrearia em São Paulo o programa Jovem Guarda.
  • 12. CAPÍTULO 1 QUE TURMA MAIS MALUCA, AQUELA TURMA DA TIJUCA O INÍCIO Rua da Tijuca da década de 40, palco da infância de Erasmo.
  • 13. Com 10 anos, na rua Professor Gabizo, a caminho do baile carnavalesco do America Football Club: “Odiei essa fantasia de índio. Como era emprestada, não podia sentar, pois quebraria as penas.” PROFESSOR GABIZO, 108 Minha infância e início da adolescência foram passados na rua do Matoso – primeiro no número 113, e depois no 102 (Vila Matoso), na casa 21. Mas quando penso naqueles meus anos de Tijuca, o primeiro cenário que costuma vir à minha mente é a casa dos padrinhos da minha mãe, o número 108 da rua Professor Gabizo, onde fomos morar num quarto alugado, na segunda metade dos anos 50, quando ela se separou do meu padrasto Augusto. Era um casarão antigo, meio sombrio, com azulejos coloniais, uma confortável banheira com pés, tetos descascados e úmidos devido a infiltrações e cozinha com fogão a lenha. Tinha o pé-direito alto, paredes forradas com motivos florais, um candelabro sinistro e um assoalho de tábuas corridas com cupins e pulgas, muitas pulgas. A entrada principal se dava por um portão lateral. Um corredor descampado dava acesso aos fundos, onde reinava imponente a frondosa
  • 14. mangueira do vizinho, que cresceu inclinada para o nosso lado do muro e por isso enchia de mangas o nosso quintal. Assim vivíamos, pobres e felizes, em perfeita harmonia com gatos, um cágado, quinze periquitos e as outras onze pessoas que também moravam lá. Minha mãe, Maria Diva Esteves, era assistente de enfermagem do Samdu (Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência, órgão criado pela Previdência Social). A juventude começava a respirar o rock and roll, que já tomara conta de mim. Passava os dias ouvindo rádio, recortando fotos dos artistas e colando em álbuns, colecionando letras de músicas que vivia assoviando e cantarolando pelos cantos: “You ain’t nothing but a hound dog/ Cryin’ all the time/ Well, you ain’t never caught a rabbit/ And you ain’t no friend of mine.” É DO CARECA QUE ELAS GOSTAM MAIS Antes da descoberta do rock, as meninas reinavam sozinhas nos meus pensamentos. As irmãs Célia Regina e Célia Maria, por exemplo. Minhas vizinhas da rua do Matoso, Célia Regina era um pudim de caramelo e Célia Maria, uma gelatina de framboesa. Apetitosas e vitaminadas, elas moravam no sobrado de uma serralheria. Suas presenças na janela provocavam torcicolo nos passageiros do bonde e nos transeuntes, hipnotizados pela visão daqueles doces maravilhosos. Eu tinha de 16 para 17 anos. Elas deviam ter 17 e 18, respectivamente. Eram recatadas e intocáveis devido ao policiamento rígido e implacável dos pais. Ao saírem à rua, sempre acompanhadas por eles, andavam invariavelmente em linha reta, como militares treinados. O máximo que algum de nós conseguia era um sorriso educado como cumprimento. Mas, assim que passavam por nós, vupt!, nossos olhares se grudavam em seus corpos, ofuscados pelo volume dos pudicos vestidinhos da época, dando asas à nossa imaginação. Numa bela noite, quando jogávamos porrinha tranquilamente, conversando alto, soltando gargalhadas exageradas e falando os palavrões costumeiros, eis que vimos, com espanto, na penumbra da esquina do Beco do Mota, uma cena impactante: a família das Célias passava por nós bem vestida como se viesse de uma festa, andando descontraidamente em zigue-zague, o que jamais tínhamos visto. E ainda havia um atordoante detalhe: o pai vinha na frente de braços dados com a
  • 15. mulher e com Célia Regina, enquanto Célia Maria caminhava atrás, ostensivamente feliz, como Doris Day no filme Um Pijama para Dois, de mãos dadas com um... CARECA! Era demais! Como suportar tamanha afronta? Estávamos preparados para tudo, menos para aquilo. Um careca... E, ainda por cima, aparentando uns 30 anos. Um velho com o dobro da nossa idade. Que castigo. A porrinha parou na hora e um silêncio sepulcral fez calar a algazarra. Não poderíamos permitir que aquele intruso degustasse nossas delícias assim, sem levar um troco. Nossa cúpula teria trabalho naquela noite. Várias cabeças indignadas não dormiriam, começando a pensar nas possibilidades e na extensão da nossa vingança. Os dias seguintes foram humilhantes para nós. Tornou-se rotina o namoro dos dois no portão, enquanto papai, mamãe e a irmã torciam na janela do sobrado. Como optamos pela não violência, começamos a executar, então, o plano B. Primeiramente, dividimos as tarefas entre nós. Eu ficaria encarregado de roubar sobras de giz no colégio. Renato Caravita entraria com o telefone, fundamental para nossos intentos malignos — ele era o único de nós que tinha um aparelho. Édson Trindade, que era amigo do filho do dono de uma gráfica de fundo de quintal, ficaria responsável pela impressão dos folhetos. Tim Maia conseguiria tinta branca e preta. Raul faria cola de maisena. Arlênio e China, que tinham letra boa, escreveriam cartas. Paçoca coordenaria os horários de ação. Pinto Nu, Adílson, Zé Carlos, Nenéo e Zé Martins dariam apoio. Seria uma represália coletiva e anônima. A primeira investida em massa começou na madrugada. Colamos cartazes e fizemos pichações por toda a rua na calada da noite. Os dizeres variavam: “Cuidado com o Careca!”, “O Careca vem aí!”, “O Careca é careca”... Nada escapava de nossa sanha vingativa: portas de loja, postes, muros, árvores, marquises, bondes. Escrevemos até no asfalto da rua, bem em frente à casa delas, com tinta branca e letras enormes, para que nossa “arte” fosse vista da janela. No dia seguinte, era Careca por tudo que era canto. As pessoas ficaram curiosas e os comerciantes locais, logicamente, irritadíssimos ao verem a fachada de suas lojas pichadas. Nossa postura era a de cara de pau ao extremo. Nada vimos e nada sabíamos. Até participávamos da revolta, fazendo eco às perguntas: — Quem será que fez isso? Quem é esse tal de Careca?
  • 16. Mas o plano não pararia aí. A segunda investida foi escrever nos banheiros públicos, do cinema Madrid, do bar Divino e dos outros botecos da região: “O Careca é cagão!” ou “Merda não é tinta, dedo não é pincel. Quem quiser limpar a bunda, o Careca é seu papel”. Aproveitando o telefone do Renato, ligamos para os programas de rádio nos quais ouvintes podiam dedicar músicas a alguém. Pouco depois, ouvíamos o locutor falar nosso texto: “O Careca apaixonado da rua do Matoso oferece para sua namorada Célia Maria a música Nós os Carecas, com os Anjos do Inferno.” Também telefonamos para a serralheria pedindo para avisar no sobrado que o Careca não poderia se encontrar com a Célia Maria naquele dia. Enviamos cartas de vários bairros da cidade dizendo que o Careca morrera. Tudo foi feito com afinco e, conforme o planejamento, a pressão foi total. Estávamos de parabéns. A primeira casa de Erasmo: “Nos sobrados geminados vizinhos, moravam amigos como Renato Caravita e Timbó, o ‘gênio’ da Timbolina.” Mas o tempo é o senhor da razão. Fomos chegando à conclusão de que os resultados da operação não foram nem um pouco satisfatórios. Não adiantara nada tanto trabalho. Todo nosso esforço coletivo servira apenas para fortalecer ainda mais o namoro dos dois, pois agora eles já
  • 17. iam ao cinema sozinhos, trocavam beijos e nem namoravam mais no portão. Os pais, solidários, já permitiam que eles entrassem em casa. O nosso plano para que ele sumisse de circulação e devolvesse Célia Maria para os nossos sonhos foi um tiro no pé. Criamos um monstro. Fizemos do Careca um ídolo. A essa altura, todos já sabiam que éramos nós os autores daquela “campanha infernal” contra o “pobre rapaz de família, trabalhador e bem intencionado”, que só queria “cortejar a menina em paz”. As pessoas já nos olhavam com reprovação, considerando uma cafajestada de mau gosto o que fizemos. A história acabou chegando em nossos pais e a barra pesou em casa. O Careca tomou coragem e foi falar com a gente. Estávamos mais uma vez na esquina do Beco do Mota, sem graça com a reviravolta do caso, quando ele chegou e se apresentou como Mário não-sei-de-quê, convidando o Paçoca para uma conversa particular. O ambiente se tornou tenso, ficamos preparados para o que desse e viesse. Qualquer vacilo e, vapt!, faríamos picadinho do Careca. Mas ele sabia onde estava pisando, era malandro. Chegou gentil, educado e, ainda por cima, cheio de moral, pois tinha certeza do apoio total de todas as famílias do pedaço. Conversaram uns dez minutos quando, enfim, apertaram as mãos. Paçoca se virou para nós, engoliu em seco e, com cara de injuriado/resignado, decretou: — Olha aí, pessoal... O Careca acabou de me dizer que não levou a mal nossas brincadeiras, que não ficou com bronca da gente e pediu para darmos um tempo nessa história de Careca. Ele vai se formar em medicina, pretende se casar com a Célia Maria e pega mal ser chamado assim. Queria pedir a vocês que, de hoje em diante, ninguém chamasse mais o Careca de Careca e, se alguém de fora chamar o Careca de Careca, a gente dá porrada. Legal? E, abusando do cinismo, voltou-se para o Careca e encerrou: — Vai na tua, em paz. Desculpe alguma coisa, seja feliz com a Célia Maria e tenham muitos carequinhas. E rindo, finalizou: — Para a gente poder chamá-los de “os filhos do dr. Careca”. Meses depois, eu sairia da rua do Matoso e me mudaria para o quarto da rua Professor Gabizo. Nunca mais ouvi falar do Careca e acabei esquecendo-o. Mas nos anos 80, passando de carro pela Barra, vi várias pichações incríveis. Elas diziam: “A mulher do Zé faz boquete!”, “O Zé é
  • 18. corno!”, “O Zé dá a bunda!”... Na hora me lembrei dos anos 50 e não pude deixar de comentar com meus botões: — Que sorte que o Careca deu! BESOURO DE SOBREMESA Outro episódio da minha infância contribuiria para minha aversão à política. Aconteceu no subúrbio carioca de Cordovil, onde eu passava férias duas vezes ao ano, na casa dos meus tios Alzira e Geraldo. Lá, todo político era doutor. Bastava chegar a bordo de um belo automóvel, fumando um charuto, com uma mulher boa do lado, fazendo cara de simpático e com um séquito de puxa-sacos soltando morteiros... pronto! Baixava na população local um abominável espírito subserviente que induzia as pessoas a mandarem os meninos como eu alardear pelas ruas do bairro: “Chegou o doutor fulano! Chegou o doutor fulano!” Podia ser um simples candidato, mas, com o título, ele adquiria uma aura de importância e respeitabilidade. Eu só gostava quando um vereador que não me lembro o nome era homenageado pela comunidade. Havia distribuição de balas e doces, junto com sanduíches de mortadela e copos de suco de groselha. Mas uma dessas comemorações se tornaria traumática para mim. Munido de uma bicicleta emprestada, fui a um futebol de várzea onde jogavam Cordovil e Brás de Pina. Durante o foguetório, após um gol do time da casa, um tiro de verdade matou uma pessoa. Apavorado com o tumulto que se formara, deixei meu lanche para lá, peguei a bicicleta e fugi atabalhoadamente pela estrada do Quitungo, não parando para nada. No meio do caminho, no auge da velocidade, com o vento de encontro ao meu rosto e gritando adoidado devido ao pânico, engoli um besouro. Desequilibrei-me em seguida, caindo da bicicleta e me ralando todo. Na minha cabeça de menino de 9 anos, uni o vereador ao tombo e desde então passei a odiar ainda mais a política. A CRUZ DE MALTA É O MEU PENDÃO Com a mesma idade que passei a odiar política, comecei a amar futebol. A bola de meia foi minha primeira “bola oficial” nas peladas infantis que rolavam no chão de cimento da vila Matoso, com direito a risíveis, porém
  • 19. empolgadas, imitações dos locutores esportivos da época. Eu jogava e narrava ao mesmo tempo. Ary Barroso, com sua famosa gaitinha, era um dos que eu imitava. Incorporava artilheiros como Ademir Marques de Menezes na hora do gol, sempre comemorado com morteiros imaginários. De forma soprada e com emoção, emitia alto o som da letra “A”, para reproduzir o barulho da torcida ensandecida. Eu havia sido arrebatado pela grande euforia e expectativa em torno da Copa do Mundo de 1950. Eu e a torcida do Brasil. O Rio de Janeiro, por ser a casa do Maracanã, respirava futebol. Na seleção brasileira havia um monte de jogadores do Vasco e acho que foi isso que provocou meu interesse pelo clube. Depois da derrota brasileira nessa Copa, eles voltaram para São Januário e foram campeões cariocas. A simpatia inicial foi virando admiração, até se transformar numa febre que um dia reconheci como paixão. Um amor tão forte que, depois da minha sagrada família e da música que me guia, é o maior da minha vida. Nas peladas com meus amigos, a bola de meia evoluiu para a de borracha e depois para a de couro com gomos, que exigia o trabalho de passar vela nos sulcos para não estragar o barbante da costura. Aprendi linha de passe, embaixadinha, roda de bobo e ataque-defesa. No Vasco, novas gerações vencedoras foram aparecendo e eu já não era mais Ademir e sim Bellini, meu grande ídolo até hoje. A primeira vez que fui ao Maracanã, levado por seu Ângelo, meu vizinho na vila Matoso, foi um impacto. Fiquei maravilhado ao constatar que o gramado era verde, a camisa do Bangu, branca com listas vermelhas e a da Portuguesa de Desportos, verde e vermelha — acostumado a ver os jogos pela televisão em preto e branco, também na casa do seu Ângelo, jamais imaginei que ao vivo fosse tudo colorido. Montei então um time de futebol de botão. Estava cansado dos botões convencionais de galalite com escudinho, então passei a raspar casca de coco em superfícies ásperas, até conseguir a forma arredondada desejada. Em seguida, lustrava com cera de assoalho, o que melhoraria muito seu desempenho ao deslizar. Valiam também botões de sobretudo, além de tampas de relógio de pulso, feitas de plástico transparente que eu mesmo pintava com esmalte de unha da minha mãe. As balizas eu também construía artesanalmente, cortando cabides com serra escolar Tico-Tico, pintando tudo de branco e colando redes de filó. As bolinhas podiam ser de rolhas, dadinhos, miolo de pão, papel laminado de bombom (amassado até ficar bem redondo), feltro ou botõezinhos de camisa.
  • 20. Em 1956, seis anos depois daquela fatídica Copa, eu viveria um sonho. Num domingo, quando voltava do Maracanã, após um 2 a 1 do Vasco contra o Bangu, vi o ônibus do meu time parado em frente à minha casa na rua Professor Gabizo. Tomei um susto antes de me lembrar que do outro lado da rua morava o médico do Vasco, o dr. Valdir Luz. Ele havia convidado os jogadores para seu aniversário. Fiquei boquiaberto ao ver as feras que idolatrava ali, bem pertinho de mim. Bellini, Orlando, Sabará, Vavá, Valter Marciano, Pinga e outros ficaram um tempão na festa, enquanto eu, numa atitude típica de torcedor, entrei correndo em casa e pendurei minha bandeira na janela, só para eles saberem que ali morava um vascaíno. Zagallo também morava na mesma rua e todos os dias acenava para mim quando ia comprar pão na padaria. Minha “carreira futebolística” passou pelo futebol de salão e de campo (no time da rua do Matoso e no exército), por um teste no America Football Club e pelo time da gravadora Polygram (atual Universal), até que fui proibido de praticar esportes de impacto por culpa de uma hérnia inguinal e problemas na coluna. Hoje, meus filhos e eu temos uma pequena, porém especial, coleção de camisas com autógrafos de Djalma Santos, Pelé, Zico, Roberto Dinamite, Palhinha, Mazinho, Cláudio Adão, Bebeto, Zinho, Romário, Alcir Portela, Donato, Giovane e de todo o time do Vasco de 86 (essas ganhei num show meu no qual os jogadores foram), entre outros. Tenho também uma bola cujas assinaturas o tempo apagou, mas não me importa, porque sei quem as escreveu: Evaristo de Macedo, Alcir Portela, Felipe, Hélton e Euller. Hoje, ao marcar algum compromisso, verifico se não vai coincidir com o horário dos jogos do Vasco. Se for o caso, peço desculpas e marco outra hora. Se não houver jeito, assumo o compromisso, mas faço de tudo para não saber o resultado — gravo o jogo para ver depois. Se alguém faz algum comentário sobre o jogo, ou um rádio ou uma TV nas redondezas transmite a partida, chego a tapar os ouvidos e gritar para abafar completamente todo e qualquer som externo. Meus três filhos herdaram a minha paixão pelo futebol mas, por um capricho dos deuses, Gil e Léo são flamenguistas e somente Gugu é vascaíno. Ele inclusive gravou comigo um samba-exaltação que fiz para o clube.1
  • 21. Fazendo a primeira comunhão na Igreja de São Francisco Xavier: “Como qualquer criança, achava aquele ritual um saco. Mas fiz tudo direitinho, usando até terno. Apesar de pobre, minha mãe não abriu mão do figurino de jeito nenhum.” NOSSA SENHORA DA MATOSO Foi por volta de 1950, aqueles tempos de besouros e botões. Minha mãe me mandou ir ao depósito do seu José comprar sabão, saponáceo, palha de aço e anil. Não sem antes recomendar que eu olhasse para os lados na hora de atravessar a rua. Afinal, eu fora atropelado um mês antes por um carro no Rio Comprido, quase quebrando as costelas, e ela ainda estava sob o impacto do acidente — nada grave, mas ficou o susto. Eu só pensava numa coisa: quem sabe o troco do dinheiro não daria para comprar figurinhas da bala Ruth que todos os meninos do estado da Guanabara colecionavam? Eu gostava do depósito do seu José. Tinha um pouco de tudo. Um misto de armazém, bazar e loja de ferragens que abria ainda um espaço para que um ou outro freguês anunciasse alguma quinquilharia para vender. Mediante, é claro, uma pequena porcentagem para o bolso do
  • 22. seu dono. Resolvi passar primeiro na casa de um amigo, o Renato, para irmos juntos, levando nossos álbuns para conferir as duplicatas. Tomei o cuidado de chamá-lo da porta, para evitar a agressividade do seu papagaio que vivia solto numa árvore e tinha o péssimo hábito de atacar qualquer um que ousasse pôr a cara dentro do portão. Ele voava, palrando desbocado: “Filho da puta, filho da puta!” Ao chegarmos perto do depósito, estranhamos o movimento. Um aglomerado de pessoas formava uma fila imensa ao longo da calçada, atrapalhando as entradas do botequim e da farmácia ao lado. Sem saber o porquê daquele burburinho, perguntei curioso a uma senhora o que se passava. Ela respondeu, deslumbrada: — A Santa, meu filho! A Santa está lá dentro! Ela apareceu para o seu José. Entra na fila e vai lá ver. Olhei para Renato, que estava com a boca aberta e surpreso igual a mim, e fizemos o que ela mandou. A fila se encaminhava para os fundos do depósito e, antes de chegar a minha vez, pude reparar na fisionomia das pessoas que saíam pela outra mão do pequeno corredor. Uns meio absortos, outros mexendo a boca sem emitir som, como se estivessem rezando, e ainda algumas senhoras perplexas, esbarrando em mim, afobadas e anunciando: — Eu vi, eu vi! Era a Virgem. Ela estava sorrindo e olhando para mim, é ela! A Nossa Senhora da Matoso! Ao chegar a minha vez, me deparei com a seguinte cena: sobre um tabuleiro de folha de flandres jazia uma grande quantidade de cera de velas derretidas, naquele momento já seca, sobreposta em camadas, formando relevos. No resto do ambiente, várias velas acesas aumentavam o calor. Seu José, de avental branco e postura bondosa, me mandava olhar a escultura natural, me entregando uma lupa e dizendo: — Veja como ela é linda, Erasmo. Sinto que ela quer me dizer alguma coisa. Foi por isso que ela escolheu meu depósito para aparecer. Confesso que não vi nada. Procurei, procurei e nada. Vi, sim, algumas formas sinuosas, saliências, cores reforçadas pela iluminação das velas acesas ao redor e até contornos que poderiam sugerir uma silhueta ou um rosto, mas Nossa Senhora sorrindo para mim, neca. Ele ainda insistia dizendo para eu olhar bem, para abrir meu coração se quisesse ver. Renato também não vira nada. Fomos correndo para casa contar a novidade e esquecemos até das figurinhas.
  • 23. No dia seguinte, o boato já havia ultrapassado as fronteiras da Matoso. Curiosos da Barão de Iguatemi, da Dr. Satamini, da Barão de Ubá, da Haddock Lobo e de outras vizinhanças chegavam aos borbotões. Os comentários variavam: — O seu José disse que conversa com ela. — Rezei para ela proteger minha filha que mora em São Paulo. — Valha-me Nossa Senhora da Matoso, fazei com que meu marido arranje um emprego. — Pedi tanto para ela me ajudar a ganhar na loteria federal... Durante uns três ou quatro dias, a coisa foi ficando pior. Seu José começou a cobrar por visita, e até minha mãe e a mãe do Renato pagaram para conferir a “aparição”. Até que estourou a bomba: os padres capuchinhos da igreja de São Sebastião não gostaram do que estava acontecendo e intervieram no local. Consideraram abuso da faculdade da fé e indução consciente para fato ilusório visando fins lucrativos. Deu polícia e o depósito fechou. Tempos depois, veio a notícia: seu José fora internado num hospital para doentes mentais. Pensei na hora: — Não tem problema, Nossa Senhora da Matoso vai curá-lo. PRIMEIROS TROCADOS Sem esperar milagres da Nossa Senhora da Matoso, eu procurava arrumar um jeito de faturar algum. A primeira vez em que me lembro de ter ganhado um dinheirinho, estava na Tijuca, em 1951, aos 10 anos, vendendo revistas usadas em frente à quitanda do seu Borges, na rua do Matoso. Eu fazia uma coleta na vizinhança, contando com a boa vontade de todos, estendia folhas de jornais no chão, espalhava a mercadoria em cima e ficava esperando a freguesia comprar. A Cena Muda, Fon-Fon, O Globo Juvenil, Gibi, O Cruzeiro, Mindinho e O Guri eram algumas das ofertas do jornaleiro Erasmo. Quando estava na casa da minha tia Alzira, em Cordovil, eu caçava e vendia rãs para servir de tira-gosto nos botequins das redondezas. Já na Professor Gabizo, a labuta era outra. Meu primo Raul era um eterno desempregado, pois sua profissão de vitrinista era ingrata — as oportunidades rareavam, concentradas no Natal, no Dia das Mães ou no Carnaval. Eu era bom de traço e metido a desenhar letras espetaculares,
  • 24. em perspectiva, iguais às da apresentação do filme Ben-Hur, o que levava meu primo a solicitar constantemente meus préstimos em troca de algum “dindin”. Sua mulher, Zuzu, era chefe das passadeiras das lojas Sloper (minha mãe chegou a ser uma delas numa época), onde trabalhava praticamente só para sustentá-lo, deixando todos os dias uma certa quantia para que fosse providenciado o jantar. O dinheiro daria, se ele não fosse viciado em apostas de cavalos e jogo do bicho. Ele contava então com as rolinhas que eu capturava no nosso quintal com meu implacável alçapão. Com elas, preparava, com muito zelo e requinte, fritadas, massas ou arroz. Ele mesmo matava e depenava, me dando uns trocados por unidade e enganando a mulher, ao servir “frango desfiado” para ela de vez em quando. De outra feita, primo Raul arrumou um “bico” como cabo eleitoral para um candidato a deputado e contratou meus serviços para colagem de cartazes de propaganda pelo bairro. Pedi ajuda a um amigo e colamos centenas perto de casa, para dar a impressão que estavam bem distribuídos. Se ele fosse mais atento, iria três quarteirões adiante e já não encontraria mais nenhum. Ao ver o resultado, ele se surpreendeu, elogiou e até nos recompensou, pagando além do combinado. Enfim, eu me virava. O TRAUMA DO BIFE VOADOR Defendia meus trocados para garantir um ou outro pequeno prazer. Minha vida não tinha luxos. Comer fora, por exemplo, era raríssimo. Uma vez na vida, outra na morte. Numa dessas vezes, com 12 anos, fui jantar com minha mãe e meu padrasto Augusto na confeitaria Cometa, localizada na esquina da rua do Matoso com a praça da Bandeira. Embora estivesse feliz com a oportunidade, não podia expressar meu contentamento. Meu padrasto, sisudo, pecava pela insensibilidade e não admitia manifestações de nenhum tipo: “Pinto só pia no galinheiro quando o galo manda” e “Em boca fechada não entra mosca” eram algumas das suas “pérolas”. Minha mãe não dizia nada, porque levaria um pito também. Seguia a noite nesse clima castrador quando veio o bife com fritas e arroz que pediram para mim. Lambi os beiços, arregalei os olhos e ataquei com fúria o banquete, esquecendo do mundo ao redor. Mas, ao
  • 25. fazer força com a faca, tentando cortar um pedaço “nervudo” do contrafilé, ele voou, ricocheteando na mesa ao lado, onde um casal jantava tranquilamente. Para piorar, a outra parte do meu bife foi ao chão, o arroz e as batatas fritas se espalharam pela mesa e o garfo derrubou meu copo de guaraná, molhando a toalha e minha mãe, que estava em frente. O garçom correu para ajudar, mas o estrago já estava feito. Além do esporro que levei, ficaria o trauma pelo novo bife que não foi pedido. Duros tempos. O ZUMBI DA ESCOLA Se, em casa, a falta de grana era um problema, na escola o drama era outro — igualmente sério. Dezembro se aproximava e eu, já no ginásio (atual segundo ciclo do ensino fundamental), iria, sem dó nem piedade, inapelavelmente, ser reprovado mais uma vez — o que aconteceu quatro vezes ao longo da minha vida escolar. Teria que ouvir a mesma piada maldita, repetida pelos meus colegas sádicos: — Os professores gostam tanto do Erasmo que não deixaram ele passar de ano! Com um resignado sorriso amarelo, eu engolia em seco, abafava meu grito e represava minhas lágrimas. Fora a reprise do blablablá dos professores e a humilhação de ver minhas ex-companheiras de classe, todas lindinhas e maravilhosas, agora mais adiantadas, exibidas, mascando chicletes e me discriminando pela reprovação. Sofria acuado e não podia disfarçar o ódio pelo causador renitente do meu sofrimento. Um inimigo cruel que não media esforços para me prejudicar. Ano após ano, ele infernizava a minha vida de estudante, com seu arsenal de dificuldades e um repertório interminável de artimanhas. Esse vilão nefasto era o terrível... latim. O pior é que não adiantava desejar sua morte, porque ele já estava morto. Era um zumbi, igualzinho àqueles mortos-vivos dos filmes de terror, praga constante dos meus pesadelos. Mal dormia e já sonhava com suas declinações, regras e traduções: ZZZZZZZZZZZzzzzzzzzzz... Dominus, domini, domino, dominum, domine, domino ZZZZZZZZZZZzzzzzzzzzz... ZZZZZZZZZZzzzzzzz... Supino nominativo, ablativo ZZZZZZZZzzzzzzz...
  • 26. Primus, secundus, tertius, ZZZZZZZZZZzzzzzzz... Amo, amas, amat, amamus, amatis, amant... Eu não achava graça nenhuma naquela matéria. Não encontrava razão alguma para estudá-la. A duras penas, consegui vencê-la e seguir em frente, como fiz naquele ano. Depois, o latim se foi, mas ficou a lição que expus em Análise Descontraída, que gravei em 1976: Morro sem entender Buscando meu tempo perdido Estudando latim que era uma língua morta Êta mundo velho Você me parece ainda um ovo Ou então precisa urgentemente se acabar Pra nascer de novo UMA IMPERFEIÇÃO E MUITOS RISOS Latim à parte, sexo era o grande martírio no meu início de adolescência — na verdade, a falta de sexo. A situação se tornara humilhante para mim perante meus amigos Renato Caravita e Raul, sobretudo numa certa noite de sábado. O Rio de Janeiro fervilhava de mocinhas assanhadas, enquanto eu estava sozinho, cabisbaixo e macambúzio, sentado na mesinha de um pé-sujo saboreando com tristeza uma Coca-Cola. Na mesma hora, eles desfrutavam momentos divinos de prazer num rendez- vous recém-inaugurado no Bairro de Fátima, cuja promessa era encantar os fregueses com mulheres maravilhosas a preços acessíveis. Não era justo, eu ali deprimido no botequim, comendo manjubinhas fritas, e eles se deliciando. Fiquei delirando com minha mente tarada e desbocada de adolescente virgem, repleta de imagens pornográficas. Enquanto eu imaginava, eles faziam. E depois, ainda tive que aturar os dois na volta, se gabando: — A minha chupou o meu pau. Ou: — A minha gostou tanto de mim que na próxima vez vai me dar a bunda.
  • 27. Meu sofrimento tinha que acabar. Aquela realidade cruel de só eles terem acesso ao Éden doía na minha alma, pois eu também era filho de Deus. Já na casa do Renato, na rua do Matoso, de onde iríamos em seguida para uma festa, meus pensamentos explodiram em revolta, enquanto ele e Raul, felizes e satisfeitos, desinfetavam suas regiões genitais com álcool. Resolvi dar um basta na minha cruz e criar coragem. Afinal de contas, já estava com 15 anos. A decisão seria irreversível. No dia seguinte, reuni minha família e implorei zangado: — Mãe, tenho que operar minha fimose! Todos já sabiam que eu teria que operar algum dia, pois quando nasci os médicos da Pró-Matre, no bairro da Saúde, já haviam alertado para o problema. Porém, preocupados com a constante e árdua luta pela sobrevivência, esqueceram do meu crescimento e foram empurrando a cirurgia com a barriga. Minha fimose era extrema. Dificultava a masturbação e impossibilitava a penetração, meu grande drama. A família se movimentou, mexeu uns pauzinhos (sem trocadilho), e minha mãe conseguiu que eu operasse de graça no hospital Gaffrée e Guinle, na rua Mariz e Barros. Na operação, os médicos descobriram que, por ser dotado de forte compleição física, minha dose de anestesia teria que ser reforçada. Lembro-me de sentir dor, o que me levou a dar berros, gritar palavrões e chorar. Estagiários de Medicina que estavam na sala de cirurgia debochavam de mim, com vozes abichalhadas, me deixando ainda mais bravo: — Olha só, a bonequinha está sentindo dorzinha, chama a mamãe dele... Lembro-me também de sangrar muito na noite após a cirurgia, talvez pelas rudimentares técnicas hospitalares daquele longínquo 1956. Passada a tempestade, fui sendo apresentado aos poucos ao meu novo pau, contemplando seu novo formato, que mais parecia um cogumelo, analisando suas dimensões, percebendo sua sensibilidade... Comecei então a guiá-lo pela mais grandiosa e gratificante das jornadas imaginadas pelo Criador: a busca incessante do prazer divino, desbravando vales, montanhas, florestas e grutas do indispensável e inenarrável universo do corpo feminino. Apenas uma coisa não estava nos conformes: com a extirpação do prepúcio, a cirurgia revelara uma imperfeição de nascença, quase no meio do orifício da uretra. Uma pele atrapalhava o fluxo livre da urina, criando
  • 28. um esguicho lateral que me fazia mijar em “V”. Antes isso não acontecia, pois o orifício do prepúcio unificava o fluxo. Passei a ter que ficar atento na hora de direcionar o mijo na privada, para que os dois jorros saíssem no ângulo mais agudo possível, e assim não respingassem fora do vaso. Tudo ia bem até o dia em que, ao mijar no vestiário de um campo de futebol de várzea, não tomei o devido cuidado e molhei a perna do Renato, que urinava ao lado. Dando um salto, ele esbravejou: — Que que é isso, cara? Tá me mijando? Vira isso pra lá... — Passei a mijar assim depois que operei a fimose — respondi, fingindo não dar a mínima importância. Foi como assinar minha sentença de morte. Ele, como qualquer menino do mundo, jamais deixaria passar em brancas nuvens uma história daquelas. Exagerando uma cara de horror, alardeou geral: — Pessoal, vem cá ver como o Erasmo mija engraçado — gritou e começou a rir sem parar. A galera foi chegando e o riso, que agora era coletivo, foi aumentando. Uns já gritavam para outros garotos mais distantes: — O Erasmo mija em “V”. O Erasmo tem um chafariz no pau. Rapidamente, contraí a musculatura pubiana e parei de mijar. Começaram então a me jogar chuteiras, camisas e meiões e a me bater com toalhas molhadas. Saí da roda desconfiado de que eles fariam daquilo uma anedota tradicional da turma. Não deu outra. A partir daquele dia eu não teria mais sossego. Em qualquer banheiro ou mictório que entrasse, eles fariam escândalos e algazarra fugindo de mim e ainda alertando qualquer pessoa desconhecida que estivesse por perto: — Moço, cuidado com esse rapaz. Ele mija em “V” e vai molhar o senhor... As meninas da turma ficaram curiosas, pois acabaram ouvindo boatos sobre a anomalia. Tive que mostrar a performance para uma garota, mijando “ao vivo e a cores” para ela ver. As chacotas me acompanhariam ainda por muito tempo, até a história deixar de ser novidade. Um pouco antes da Jovem Guarda — numa viagem que fiz a Goiânia para trabalhar meu primeiro disco, Terror dos Namorados —, o frenético esfregar dos sexos, em deliciosos momentos de amor com uma morena da terra, fez com que a pele se rompesse, deixando livre para sempre o orifício da minha uretra. Respirei aliviado e exultei com a normalidade do meu fluxo urinário. Nunca mais mijaria em “V”.
  • 29. Foto da caderneta do Instituto Lafayette, tirada durante o 1º ano ginasial (atual 6º ano do ensino fundamental): “O corte de cabelo era na linha Príncipe Danilo, que estava na moda.” ETERNA SENSAÇÃO DE GOL “Casa do ócio, oficina do diabo”, diz o ditado que é uma definição precisa daquela rapaziada da Tijuca. Afinal, a falta do que fazer, principalmente nas noites de sábado, nos levava a aprontar, como quando trocávamos as
  • 30. letras do letreiro do Cine Madrid, reinventando o nome dos filmes. Começou quando um de nós descobriu que a própria chave de casa abria também o cadeado da porta pantográfica do cinema. E só parou no dia em que colocaram a polícia para ficar de olho nos engraçadinhos que faziam aquela sacanagem. Antes disso, porém, trocamos Teseu e o Minotauro por Tesão do Mineteiro. Criamos outras joias, como Uma Puta em Nova York (Um Rei em Nova York) e Mogli, o Menino Viado (Mogli, o Menino Lobo). Ficávamos esperando o dia amanhecer só para ver a reação das pessoas indo trabalhar. Havia também nossa corrida do ouro — na verdade, do chumbo. Quando sabíamos que algum casarão iria ser desapropriado para demolição, ficávamos em alerta. O roubo do chumbo dos canos, dos trincos e das fechaduras renderia calças, camisas, cintos, meias e cuecas para nós, geralmente comprados na Ducal e na Adonis. Ou sapatos, mocassins de uma lojinha da rua Haddock Lobo. Empolgados com a grana que conseguimos com a venda do chumbo “aliviado” de um velho pardieiro desocupado da rua do Matoso, resolvemos partir para outro ramo e planejamos assaltar o bar Divino. A ideia de Renato Caravita era simples. Entraríamos no banheiro do Divino em duplas alternadas. Um tomaria conta da porta enquanto o outro subiria na privada e pegaria umas latas vistosas que ficavam perto do teto, colocando-as em seguida numa sacola da Varig (brinde da companhia aérea que era o must da juventude na época). Nos encontraríamos depois no beco do Mota. Não sabíamos o que havia nas latas. Tim Maia — que era um dos maiores entusiastas de nossos “garimpos de chumbo”, por estar juntando dinheiro para ir para os Estados Unidos — pulou fora, alegando que era um roubo mixuruca. Depois do plano realizado, ele mudou de ideia e implorou para ficar com uma lata, o que acabou conseguindo. Afinal, dentro delas, descobrimos depois, havia litros de cobertura de chocolate da Kibon. As brigas eram outra constante em nossas vidas. Brigava-se por qualquer motivo e, às vezes, por nada. Quem não podia ter um canivete igual ao do filme Juventude Transviada comprava uma imitação barata e ridícula no camelô da estação da Leopoldina. Eu usava um fio de aço flexível enrolado na barriga, por baixo da camisa, simulando um chicote. A liberdade nos sorria, sem apontar limites. O rock and roll nascia e viciava nossos ouvidos, num período em que não queríamos nem
  • 31. sabíamos distinguir o joio do trigo. A aventura se delineava e os pesadelos também eram sonhos. Estávamos apenas aprendendo. Tim Maia falaria daquele tempo anos depois, na música Haddock Lobo Esquina com Matoso, do disco Nuvens.2 Haddock Lobo esquina com Matoso Foi lá que toda confusão começou E foi lá que tudo começou mesmo, principalmente porque tínhamos a Lilica, que era o nosso anjo, nosso talismã e nosso tesouro. Todas as outras turmas nos invejavam por causa dela. Era nossa mãe, irmã, filha, amiga e mulher, tendo inclusive me iniciado no maravilhoso e abençoado mundo da sacanagem, numa noite em que conseguiu se multiplicar e dividir seu corpo, beijos e abraços com dez de nós. A notícia correu rápido: “A turma da Matoso tem uma mulher que briga, joga bola, vai à praia, solta pipa, balão, vai a festas e ao Maracanã, bebe e, ainda por cima, dá para todos eles.” Isso era muito bom, nos tornava a turma mais admirada e famosa entre todas as que frequentavam o bar Divino. Respeitávamos muito as turmas da Miguel Lemos e do edifício Camões, ambas de Copacabana, e a da praça Saens Peña, na própria Tijuca. Só que eles eram ricos, tinham carros e invadiam cinemas com motocicletas, durante a exibição de filmes como Sementes da Violência, que tinha Rock Around the Clock, com Bill Halley, na trilha sonora. Coisa distante para nós que éramos duros e andávamos a pé. Nosso lazer incluía apostas ridículas para ver quem tinha coragem de molhar a língua na água suja do meio-fio (Tim e Trindade sempre ganhavam) ou lamber o pneu dos automóveis (só dava Tim e Trindade também). Outra diversão era telefonar aleatoriamente para números de Copacabana na esperança de que alguma madame solitária e carente atendesse, caísse no nosso papo, se apaixonasse perdidamente e nos desse boa vida para sempre. Ainda perdíamos tempo infernizando a vida do Ventania, mendigo que falava sozinho, habitava os terrenos baldios da
  • 32. Tijuca e que diziam ser um “neurótico da Segunda Guerra Mundial”. Quando o provocávamos, chamando-o de maluco, espantalho ou zumbi, ele corria possesso em nossa direção, atirando pedras, latas e garrafas. Hoje, no século XXI, época de computadores, jogos virtuais, bonecos robotizados etc., não posso deixar de sentir saudades das brincadeiras aguerridas e ingênuas, como apostar corrida de palitos de fósforo, aproveitando as corredeiras que se formavam nos sulcos dos trilhos do bonde após alguma chuva forte, roubar frutas nos quintais alheios, assistir de graça aos jogos do campeonato carioca na barreira do America Football Club, amarrar bombinhas no rabo dos gatos, caçar rãs nas valas para vender nos bares, jogar bolinhas de gude, descer ladeiras em carrinhos de rolimã feitos por nós; guerras de buscapés nas festas juninas e soldadinhos de chumbo, ioiôs e piões. Para o exercício da minha imaginação, havia as aventuras dos meus heróis dos quadrinhos — Ferdinando Buscapé, Big Ben Bolt, Brucutu, Mut & Jeff, Tarzan, Pinduca, Pafúncio, Super-Homem, Capitão Marvel, Popeye, Fantasma, Zorro, Flash Gordon e tantos outros. Na hora de sonhar, apelava ainda para a magia dos mundos de Walt Disney e Monteiro Lobato, enquanto as fotos das misses e das vedetes na capa das revistas da época faziam a festa da minha solidão. Cultivo também recordações marcantes das matinês do cinema Velo, na Haddock Lobo, onde minha mãe me deixava no início da sessão para me apanhar no fim. Aliás, o mesmo Velo, anos mais tarde, viraria estúdio da Atlândida Cinematográfica. Num bar perto dali, eu teria oportunidade de ver várias vezes o diretor e futuro amigo Carlos Manga tomar cafezinho, em companhia de astros famosos como Oscarito, Cyl Farney, Grande Otelo, Eliana, José Lewgoy... A descoberta da música como novo sentido na vida de alguns de nós viria a fechar esse ciclo maravilhoso. Das tímidas serenatas que virariam sessões de rock e bossa nova nas esquinas da Barão de Ubá, beco do Mota, travessa São Vicente e Haddock Lobo ecoariam as vozes promissoras dos Snakes, do futuro luthier Antônio Pedro, Tim Maia, Jorge Ben e, em raríssimas vezes, Roberto Carlos. Na carona dos anos 60, ganhamos o mundo. O corte no dedo para unir nosso sangue era coisa do passado, mas o amor por aquela turma ficaria nas minhas veias para sempre. Como escrevi em 1984, em Turma da Tijuca, parceria minha com Roberto.3
  • 33. Eu era aluno do Instituto Lafayette Naquele tempo eu já pintava o sete (...) Nessa eterna sensação de gol Muitas brigas e o nascer do rock and roll
  • 34. CAPÍTULO 2 EU SOU TERRÍVEL OS PRIMEIROS ACORDES Na época dos Snakes, posando na vila Matoso, por volta de 1960. DO TIJOLO REFRATÁRIO AO VIOLÃO
  • 35. A barra foi ficando pior à medida que fui crescendo. Precisava de grana até mesmo para ajudar minha mãe. Separada do meu padrasto, ela ganhava pouco e bancava meu colégio, roupa e comida — e, quando chegava do trabalho, ainda lavava e passava para pagar o quarto onde morávamos, na casa dos padrinhos dela na Professor Gabizo. Assim fui trabalhar, então, como mostrador de imóveis. O ano era 1957 e a Imobiliária Mendonça ficava na praça da Bandeira. Minha tarefa era simplesmente mostrar, para as pessoas interessadas, os vários apartamentos das redondezas anunciados pela empresa. Eu tinha a posse das chaves, inclusive à noite, o que permitiu que convidasse meus amigos e minhas amigas para arrasta-pés regados a cachaça com Coca-Cola nos apartamentos. Nem cheguei a vender imóvel algum, pois o Mendonça, ao saber disso, logo me mandou embora. A família começou a me pressionar: — Esse menino é um vagabundo. Por que ele não encara os estudos e faz concurso para o Banco do Brasil? — Precisa trabalhar para ajudar a mãe. — Um sujeito com saúde, forte e tão preguiçoso. Fizeram então um plano para conseguir trabalho para mim. Aos domingos, recortavam anúncios selecionados nos classificados do jornal e colavam as ofertas de emprego numa folha de papel ofício, numa ordem que já determinava o roteiro que eu deveria seguir. Por exemplo: vinham quinze anúncios na avenida Rio Branco, depois três na Sete de Setembro, seis na rua da Carioca e por aí afora, sempre acompanhando a numeração dos prédios para facilitar minha tarefa. Não funcionou. Baseado no primeiro anúncio, eu já fazia um perfil de todos, multiplicando as dificuldades encontradas. Em seguida, certo de que não conseguiria nada, desistia de caçar um trabalho, telefonava para alguma garota e aproveitava o resto do dia namorando. Costumava ir ao cemitério do Caju, que era tranquilo para dar uns amassos, ou à gruta da Quinta da Boa Vista, que ficava quase deserta nos dias de semana, servindo até de motel para os casais. Quando chegava em casa “exausto”, no fim do dia, lamentava que a jornada fora difícil. Pintava um quadro caótico, dizendo que não dera sorte em lugar nenhum. Como nos dias seguintes as desculpas eram as mesmas, acharam então que o meu problema era a roupa. Fizeram uma vaquinha e compraram um terno para mim. O padrinho da minha mãe, tomando a frente da “Operação Emprego para o Erasmo”, conseguiu com
  • 36. um amigo um teste para auxiliar de almoxarifado na loja DeMillus da avenida Gomes Freire, no Centro — por coincidência, ao lado do edifício onde Roberto Carlos e Luiz Carlos Ismail morariam no futuro. E começou então a ladainha: — Agora sim você está com uma aparência de gente. — As lojas gostam de funcionários bem-apessoados, educados e ativos. Logo na chegada, recebi uma bronca. O amigo do padrinho da minha mãe vociferou: — Pode ir tirando a gravata e o paletó, porque o serviço aqui é pesado. Lugar de galã é no cinema. Só Deus sabe o sufoco que passei naquele dia. Foi terrível, jamais esquecerei a lufa-lufa, o pega pra capar e o show de indecisão das mulheres na hora de comprar os produtos. Elas experimentavam várias peças de tamanhos e cores diferentes, em modelos diversos. Reclamavam, discutiam, brigavam, se arrependiam, pechinchavam, iam embora, voltavam, para no fim quase sempre não comprarem nada. Calcinhas, sutiãs, cintas-liga, corpetes, meias, tudo isso com a casa cheia, um calor danado, o gerente marcando em cima, o barulho da rua... Foi um horror. As vendedoras não me davam trégua: — Menino, pegue um sutiã azul-claro, tamanho 32, modelo X-9. Rapidamente eu empurrava uma escada comprida que corria sobre trilhos elevados, subia, pegava o que fora pedido, descia, subia de novo, pegava outra coisa, descia, mudava a escada de lugar, subia, descia... Suava em bicas, e o que mais me irritava era que, no balcão, dezenas de produtos — que as clientes pediram para ver mas não compraram — esperavam para serem arrumados e novamente estocados por mim. As meninas acabaram por me ajudar, pois me atrapalhei todo. Na saída, educadamente, disse um “até amanhã” e uma lindinha, que por sinal já estava me dando bola, respondeu espantada: — Ué... você vem amanhã? Duvido. Eu sabia que ela tinha razão. Nunca mais apareci. Nova tentativa, desta vez como office-boy da Cerâmica São Caetano, cujo escritório ficava na rua Uruguaiana, também no Centro. Justamente durante minha passagem pela firma, inventaram o tijolo refratário, que revolucionaria a construção de fornos, possibilitando maior resistência a grandes temperaturas. Ótimo! Que maravilha! Viva o progresso! Pode ter sido um belo momento para a indústria ceramista,
  • 37. mas para mim foi complicado. O tal tijolo pesava para caramba e quem iria carregar vários de um lado para o outro era, adivinhem, eu. Tive que desenvolver a arte de fazer embrulhos, transpassando o barbante várias vezes, até formar uma alça que, reforçada por meu lenço ou um pano, me ajudava a não machucar a mão. Dividia o peso fazendo dois embrulhos com quatro tijolos cada e, para transportá-los pela cidade, esperava o taioba (bonde de carga), que só passava de hora em hora. Minha “fritura” nessa firma começou no dia em que, sem querer, vi uma secretária sentada no colo de um diretor no maior love. Da louça de barro, fui para o aço. A Acesita seria o próximo trabalho. Ô empreguinho chato! Os diretores eram muito arrogantes. Eu ficava sentado numa portaria com outros menores de idade, todos vestindo uniformes azuis escrito “ACESITA” nas costas. Entregávamos correspondências nos departamentos espalhados pelos vários andares de um prédio, sempre que solicitados pelo soar de uma campainha estridente. Tínhamos que nos levantar e ficar em posição de sentido, como soldados, todas as vezes que um diretor passava pela portaria. E a toda hora passava um. Nesse emprego eu almoçava em casa, pois dava tempo certinho. Meia hora de bonde para ir, meia hora para voltar e uma hora para o rango. Só que, após uma gostosa refeição caseira, sentado sem fazer nada, esperando a campainha tocar, com a brisa vadia dos corredores afagando o rosto, não há quem resista a um cochilo. Um dia, os diretores passaram e não levantei. Resultado: rua! Ainda viria um emprego menos interessante, até chegar ao que considero a maior das minhas aventuras trabalhistas pré-serviço militar, pela minha participação num enredo rodrigueano. O patrão era dr. Carmelo, advogado. Ele tinha um escritório na rua México, no Centro, e minhas atribuições consistiam em chegar às 8h, fazer uma limpeza superficial, atender telefones, anotar recados, sair às 18h. A sala era pequena, separada por uma divisória que não ia até o teto. De um lado, minha mesinha e duas poltronas, do outro, o gabinete principal com uma grande estante cheia de livros, que ocupava uma parede toda, uma mesona, duas poltronas e um sofá confortável. As cortinas eram sóbrias e pesadas, formando uma atmosfera triste e austera, com vista para os prédios cinzentos do outro lado da rua. Dr. Carmelo era sisudo e mal-humorado, não fazendo a menor questão de ser simpático. Com mais ou menos 50 anos, grandão, ele falava olhando por cima dos óculos. Foi curto e grosso quando me disse:
  • 38. — Minha mulher é cega e aleijada e vive me enchendo o saco. Estamos separados, mas ela não admite. Nada de conversinhas no telefone com ela. Fui me acostumando à rotina do novo ambiente, me adaptando às circunstâncias e fazendo minhas obrigações conforme o combinado. Optei inclusive por “almoçar” café com leite ou suco com sanduíches e mãe- benta que um vendedor servia de sala em sala num tabuleiro. Assim economizava tempo — e o dinheiro do ônibus. No terceiro dia, toca o telefone: — É o rapaz novo? Muito prazer, sou a Isabel, mulher do dr. Carmelo. Pensando na ordem que recebi de “não dar linha para a pipa”, procurei ser formal. Fui monossilábico ao responder a um calvário de perguntas que ela me fez: idade, onde eu morava, como era minha família, meu time, se eu estudava etc. Eu ia respondendo: 17 anos, rua Professor Gabizo,108, Tijuca, filho único (nessa época ainda desconhecia minha família paterna), Vasco da Gama, à noite, no Colégio Veiga de Almeida. Intrigou-me o fato de ela perguntar quanto eu calçava, o que respondi desconfiado: 43. Quando o advogado chegava, não dava bom-dia nem boa-tarde, se limitando a perguntar se havia recados. Nesse dia, disse que sim, que a mulher dele ligara apenas para me conhecer, não deixando recado nenhum para ele. O homem ficou brabo: — Já disse que não quero que você fique de bate-papo com ela! Naquela noite, ao chegar em casa, qual não foi minha surpresa ao me deparar com um par de sapatos da loja Clark, cor preta, tamanho 43, deixados pelo motorista da dona Isabel. Ela era uma mulher pegajosa, que falava pelos cotovelos, conforme pude constatar nos dias que vieram. De voz rouca e pausada, ela se abria comigo. Contou que ficou cega e semiparalítica aos 32 anos por causa de um derrame, que a separação era invenção dele e que ela jamais daria o desquite. Só o tratava de filho da puta, puto, cafajeste, canalha, depravado, desclassificado e advogado de merda. Estava magoada, chorava muito e sabia que existia uma loura sirigaita na jogada. Em sua solidão, via em mim um confidente e protetor, insinuando que eu a informasse de todos os movimentos do marido. Tenso, eu ouvia o blablablá, me lembrando sempre da bronca que ele me dera, mas deixei rolar. Em quatro ou cinco dias, estava acomodado no novo emprego. Já não chegava às 8h, a limpeza se limitava a uma olhada geral na sala e, ao
  • 39. ver algum papelzinho ou sujeira a vista, zupt, jogava para baixo do tapete. No mais, dava uma espanada básica na mesa para “espantar” o pó, e só. E às vezes ainda me ausentava. Eu havia comunicado ao dr. Carmelo que faltaria na terça-feira pela manhã. Teria que dar um pulo na casa de minha tia na Urca para levar um dinheiro a mando da minha mãe. Mentira deslavada. O que realmente aconteceu era que eu havia conhecido Roberto Carlos pouco tempo antes e ele me convidou para assistir ao vivo aos programas do Clube do Rock, que Carlos Imperial comandava na TV Tupi ao meio-dia. Era ir, curtir e voltar para o trabalho. A loura sirigaita apareceu finalmente no escritório. Era bonita, alta e cheia de curvas. Entrou, me deu um leve sorriso e foi direto para o gabinete, deixando um rastro estonteante de perfume, enquanto eu lia um gibi. Dr. Carmelo levantou-se quando a viu, deu uma olhada para mim e fechou a porta, que também não ia até o teto. Durante um tempo, ouvi alguns sons ofegantes, que imaginei serem de um abraço ou de um beijo. Por culpa da divisória vazada, ia identificando os ruídos: ela sentou-se, abriu a bolsa, acendeu um cigarro e, chamando-o intimamente de “Melo”, começou a reclamar da dificuldade de estacionar o carro. Ele parecia outra pessoa. Descera do pedestal por causa do dengo da amante. De repente, me falou: — Erasmo, pode ir embora, não precisa voltar mais hoje. — Sim, senhor. Só queria lembrar que amanhã é terça-feira e tenho aquele compromisso na casa da minha tia. Boa tarde. A essa altura dos acontecimentos, já ganhara também uma caneta Parker 51 da dona Isabel. Na ânsia de me agradar para que eu atuasse como seu informante, ela estava exagerando. Isso mexia com a minha consciência e me deixava num beco sem saída. Ou contava para ela o que realmente acontecia com o marido, ou dizia para ele que ela estava me forçando a ser dedo-duro. Naquela terça-feira, o Clube do Rock estava fervendo. Tudo tão bom que nem me lembrei de voltar para o escritório. Não faltou ninguém: Carlos Imperial, Roberto Carlos, Wilson Simonal, Marcos Moran, Tony Tornado, os dançarinos Clito, Nilza, Mário Jorge, Arlete, Bolinha, Cidinho Cambalhota, Mariinha, Ary Tel e Maria Gladys. Após o programa, me convidaram para uma passeata de protesto em frente ao Snack’s Bar, no Posto 6, em Copacabana, em desagravo a um motociclista que morrera atingido por uma garrafa d’água atirada do alto de um prédio. Fui na garupa de uma das lambretas da turma, me sentindo um deles.
  • 40. Depois fomos para um apartamento sem móveis, onde ficamos bebendo, cantando e dançando rocks até de madrugada. Roberto estava namorando Maria Gladys e eu comecei a flertar com Nilza, embora ela fosse par constante do Clito. No final da noitada, pensei: “Amanhã vou levar um sabão do dr. Carmelo, mas valeu a pena.” No dia seguinte, mal abri a porta e o telefone tocou. Para minha surpresa, era dona Isabel, com a voz alterada, me passando a maior descompostura: — A loura sirigaita foi aí anteontem e você não me disse nada! Ela ficou com ele a tarde toda. De que lado você está? Pensei que você fosse meu amigo, mas estou vendo que me enganei. Antes de responder, uma piada de humor negro me veio à cabeça: “Pô, como é que ela está vendo se não enxerga?” Dona Isabel continuou: — Fique sabendo que tenho outros informantes aí no prédio e eles me deram todo o serviço. A próxima vez que ela for aí, vou dar um flagrante nos dois depravados e garanto que vai sobrar para você também. Me aguardem. E bateu o telefone na minha cara. Não tive nem tempo de ficar indignado, pois vi o dr. Carmelo parado na minha frente, me encarando e esperando que eu justificasse minha ausência do dia anterior. Minha tia ficara doente e não pude avisar, disse na maior cara de pau. O advogado não falou nada, mas a tensão tomou conta de mim quando vi que, após tirar o paletó, ele sacou um revólver da cintura e o colocou sobre sua mesa. O clima estava pesado. A mulher enlouquecida de ciúmes e o marido conquistador armado. Fui para minha mesa, esbravejando por dentro, xingando o mundo e me perguntando o que é que estava fazendo naquele lugar cheio de ódios e intrigas, envolvido até o pescoço numa briga maluca de consequências imprevisíveis. Que diferença para meus novos amigos do Clube do Rock, felizes e sinceros. Pareciam estar sempre na hora do recreio. No auge das minhas divagações, dr. Carmelo soltou um berro: — Assim não dá! Ô rapaz, venha aqui. O senhor está despedido. Corri sem imaginar qual seria o motivo da fúria do homem que, nervoso, levantava o telefone e outros objetos que estavam sobre a sua escrivaninha, apontando em seguida para os quadrados, círculos e retângulos de poeira, resultado do meu desleixo. Quase descontrolado,
  • 41. ele foi descobrindo outras mancadas, como guimbas de cigarro embaixo do tapete e até crostas de sujeira sobre os livros da estante. Nem argumentei, pois não valeria a pena. Fui embora feliz por ter saído ileso daquele ambiente claustrofóbico e doentio, cenário de um drama que não era meu. Jurei que, daquele dia em diante, só iria trabalhar com música. NO CAMINHO CERTO Minha avó tinha uma fé em Santo Antônio que a levava a rezar até se esgotarem todas as orações conhecidas. O pedido era sempre o mesmo: dias melhores para nós. E como se previsse algo, foi ela quem me deu o meu primeiro violão. A via-crúcis da minha mãe — iniciada após a separação do meu padrasto — duraria a eternidade de uns três anos. Ela trabalhava duro para garantir a minha “roupa da missa”. A imagem dela encerando o chão com o escovão (uma espécie de vassoura com uma escova grande na base) e lavando roupas para os treze moradores da casa, de pés descalços, até altas horas, sobretudo nos dias de chuva, doía em mim. Vieram os Snakes, o Exército, Carlos Imperial e... a parceria com Roberto Carlos. As cobranças na família atingiram o auge no período em que comecei a compor, o que gerava comentários do tipo: — Era só o que faltava. Ele agora fica o dia inteiro no blém-blém- blém, tocando violão, enrolando a pobre mãe, que se mata de trabalhar. Quando recebi meu primeiro trimestre de direitos autorais pela versão de Splish Splash e a coautoria de Parei na Contramão, ambas gravadas por Roberto Carlos, joguei o dinheiro vivo em cima da cama e, antes de dizer de onde ele vinha, brinquei: — Mãe, roubei esse dinheiro da padaria. Uma brincadeira de mau gosto. Ela ficou possessa e, com lágrimas pelo rosto, saiu pela rua falando aos céus: — Meu Deus, meu Deus, meu filho é um ladrão!
  • 42. Erasmo com seu violão, ao lado de China (agachado), Arlênio e Trindade, os Snakes: “Fizemos essa foto para divulgar nos jornais e dar para as meninas. Já havia uma demanda dos dois lados.” Somente com a negativa do surpreso e boa-praça seu Antônio da padaria, que não dera falta de dinheiro nenhum no seu caixa, e com a minha presença pedindo perdão pela péssima piada, é que ela se acalmou. Ao saber da verdadeira origem da bolada, as lágrimas continuaram, só que agora eram de alegria. Esse dia seria o início de uma vida diferente para nós. Uma nova etapa. Eu começava numa profissão. Era um embrião de compositor e estava no caminho certo. As coisas iriam melhorar, e finalmente minha mãe não teria que encerar casarões antigos nem lavar pilhas de roupas alheias. Eu e meu violão não deixaríamos. Como a música era uma arte marginalizada na época, a família não deu o braço a torcer. Os comentários mudaram para: — Música não dá dinheiro. É mentira dele! — Deve ser alguma mulher que ele arrumou em Copacabana e agora está vivendo às custas dela.
  • 43. — A pobre da mãe é a única pessoa que acredita nele. Pouco depois, já não restava dúvida de que meu dinheiro vinha da música mesmo. Mas uma pergunta não foi respondida até hoje: quem dedurou para dona Isabel a visita da loura sirigaita? O porteiro, o ascensorista, o vendedor de mãe-benta? A YOKO DOS SNAKES Sempre que ouço Gostava Tanto de Você, clássico de Édson Trindade imortalizado na voz de Tim Maia, penso: Será que ele fez essa música para a Meire? Trindade foi o cara que me levou para a música, me convidando em 1958 para cantar nos Snakes — o grupo vocal, formado por ele, Arlênio e China, era uma dissidência dos Sputniks, que tinha Roberto Carlos e Tim Maia em sua formação. E Meire, namorada de Trindade na época, viria a ser uma espécie de Yoko Ono dos Snakes. Ela seria culpada pelos primeiros desentendimentos entre nós. No início do namoro dos dois, sua presença em nossos compromissos passou a ser quase diária, interferindo na liberdade e intimidade do grupo. Aos poucos fomos perdendo nossa privacidade. Tínhamos que nos policiar na hora dos palavrões, das piadas, dos peidos e arrotos. E, o mais importante, sua presença tolhia nossa criação. O casal me volta à mente ao som de Gostava Tanto de Você também porque o namoro dos dois nos rendeu um susto. Trindade chegou um dia vestindo um sobretudo com a gola alta, mãos no bolso e um chapéu com aba dobrada para baixo, enterrado na testa, igualzinho a Humphrey Bogart no filme Casablanca. Quando perguntamos que roupa era aquela, ele respondeu: — Vim me despedir de vocês. A Meire terminou comigo e vou me suicidar! Ninguém ligou. Se ele esperava alguma preocupação ou piedade da nossa parte, com certeza se decepcionou. E ainda demos uma bronca antológica e coletiva nele. Tim, Arlênio, China e eu soltamos o verbo: — Porra, Trindade! Vai à merda, rapaz. Vai se orientar na vida, procurar alguma coisa para fazer. Tem mulher pra caramba por aí. — Já vai tarde. Avisa quando vai ser, para a gente mandar flores. — Só faltava essa! Qual é o seu plano? Vai ser atropelado, tomar veneno ou o quê?
  • 44. Ele esperou calmamente encerrarmos a gozação e, olhando em nossos olhos, falou com uma cara séria: — Vou me jogar do cais da praça XV. Vou encher meus bolsos de pedras e me jogar. Continuamos sem dar bola para aquela maluquice: — Vá com Deus! Cuidado que o peso das pedras pode não ser suficiente. É melhor pular com um pedregulho amarrado no pescoço. E presta atenção no que vai comer antes, para não dar indigestão nos peixes. Voltamos a conversar enquanto ouvíamos ele ir embora esbravejando: — Vocês vão ler amanhã nos jornais. Pensam que estou brincando? Vocês vão ver. E sumiu. Sabíamos perfeitamente que aquilo era mais uma palhaçada das muitas do Trindade — um sujeito especialista em imitações, capaz de se fingir de enfermeiro para arrumar mulher e, para não pagar a conta, colocar uma barata no próprio prato após se refestelar com o rango de alguma lanchonete. Mas no dia seguinte ele não apareceu na rua. Nem no outro, o que foi nos deixando preocupados. Seria verdade? E se ele se suicidara mesmo? Por que não o impedimos? Que tipo de amigos éramos nós? Resolvemos esperar mais um dia e, se não houvesse notícias, iríamos até a casa dele na rua Dr. Satamini e falaríamos com dona Elza, seu Trindade ou com a irmãzinha dele, que parecia uma Nossa Senhorinha, de tão puro que era o seu rosto. Não precisamos de nada disso. Lá pelas tantas da noite, chegou ele todo sorridente e feliz como se nada houvesse acontecido. Ao ser indagado por que não se suicidara, respondeu debochando da gente: — O quê? Vocês estão pensando que sou otário? A vida é tão boa, o mundo cheio de mulher... Algum de nós, injuriado, reclamou: — A gente tava aqui quieto no nosso canto e você veio com esse papo de suicídio. Deixou todo mundo preocupado e agora vem dizer que está tudo bem. Tudo bem nada. Por que você não se suicidou? E ele, com a cara de um anjo pintado por Leonardo da Vinci, explicou: — Porque a Meire voltou comigo! Eles se mereciam.
  • 45. MI, LÁ, RÉ: UMA BÊNÇÃO Mesmo com as desavenças entre Meire e Trindade, os Snakes estavam caminhando. Tim ficou órfão de vocalistas com o fim dos Sputniks. Acompanhado somente por seu violão, seu canto perdia força. Faltava algo. Nada como vozes de apoio para preencher a música e valorizar a melodia. Ele nos convidou, então, para participar de suas apresentações. Os ensaios eram na pensão do pai de Tim, seu Altivo, um casarão antigo que ficava na rua Barão de Itapagipe. Abraçado com o pai no apartamento dele, em Salvador: “Era a primeira vez que o visitava, depois de conhecê-lo no Rio.”
  • 46. Nossos encontros eram sempre iguais. Arlênio tentava, com seu falso inglês tijucano, reproduzir a letra dos originais americanos. Depois, distribuía as vozes de cada um. Caprichávamos abrindo as vogais “a” e “o” e os fraseados “tchururu”, “tchep” e “doo-woop-woop”. O quarto de Tim ficava situado abaixo do nível da rua, bem em frente ao ponto do bonde 51 (Matoso), que de meia em meia hora nos interrompia com sua barulheira infernal. Nem ligávamos, pois estávamos sempre contemplando, ocultos atrás das janelas de grade de ferro, dezenas de pernas, vistosas e apetitosas, das meninas dos colégios Paulo de Frontin e Maria Raythe, que ficavam ali esperando a condução. É claro que as saias abaixo do joelho não nos deixavam vislumbrar as coxas, mas nossa imaginação via além. Na hora do almoço, o cheirinho da comida que vinha da cozinha desafinava as nossas vozes. Ao anúncio de “tá na mesa”, devorávamos, com a falta de educação que nos era costumeira, as delícias caseiras que dona Maria Imaculada, a mãe de Tim, carinhosamente nos oferecia. Depois de enchermos o bucho, Tim pegava novamente o violão e voltávamos para Good Golly, Miss Molly, Jenny Jenny, Little Darling e Bop-a-Lena, a base do nosso repertório com ele. Foi num desses ensaios que Tim me ensinou no violão os acordes mi, lá e ré, abrindo para mim as portas do abençoado mundo da composição. ACONTECE QUE EU SOU (QUASE) BAIANO Quando entrei para os Snakes, em 1958, o rock fazia a minha cabeça. Mas, parafraseando Caymmi, acontece que eu sou quase baiano — e isso faria diferença na minha relação com a música. Quase baiano? Pois é. Vim de Salvador para o Rio na terceira classe de um navio, ainda no ventre de minha mãe Maria Diva. Vieram também minha avó Maria Luiza, minha tia Alzira e meu tio Geraldo. Aqui cabe um parêntese. Meu pai não assumiu a gravidez da minha mãe, por isso passei toda minha juventude achando que ele, Nilson Ferreira Coelho, estava morto — preferiram me dizer isso que a verdade. Quando comecei a aparecer na TV, ele me procurou. Seus outros filhos, Nilsinho e Celinha, que viviam com ele, falaram que éramos parecidos — diziam que, cantando, eu e meu pai fazíamos um movimento idêntico de bater com a mão na perna. Lembrou-se de minha mãe, fez as contas e
  • 47. teve certeza de que eu era seu filho. Nos conhecemos quando eu tinha 23 anos e chegamos a nos encontrar com alguma frequência, mas nunca construímos um relação de amor do tipo pai e filho. Fecha parênteses. Cresci assim, cercado de baianos por todos os lados e criado como se fosse um. Absorvi a cultura baiana a ponto de fazer minhas primeiras orações para o Senhor do Bonfim, que era o papai do céu para mim. Em dias de festa, comia-se caruru, vatapá, munguzá com canela na sobremesa, e até feijão de coco, que minha avó fazia. O linguajar é que era difícil, pois jamais consegui dominar a famosa “língua do P”, tradição baiana. Todos a falavam correntemente, em especial quando queriam que eu não entendesse a conversa: dapá, depé, dipí, dopó, dupú... O alfabeto também era estranho, pois o f era fê, o g era guê, o l era lê, o m, mê... Na hora da tosse era um Deus nos acuda: me davam melado com farinha e aplicavam panos aquecidos pelo ferro de passar no peito e nas costas. Se fosse dor de cabeça, duas rodelas de batata coladas na fronte resolveriam. Lembro até hoje as sábias filosofias dos ditados populares, que não cansavam de repetir para mim: “Junte-se aos bons que serás um deles”, “Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz”, ou “Antes só do que mal acompanhado” (que eu iria inverter mais tarde na música Mesmo que Seja Eu). Um que custei a entender foi: “Godero me disse que eu goderasse, comesse dos outros e do meu guardasse”, que usávamos para nos resguardar de aproveitadores (“goderar” significa cercar o prato alheio, na expectativa de ganhar algo). Também não entendia o “Menininha sem arame, vá rodando e não me ame”, exclusiva para quando minha mãe não simpatizava com alguma namorada minha. Sou, portanto, um indivíduo de dupla cidadania, carioca de nascimento e baiano de criação. A música também me chegava pelo lado baiano. Quando ouvi João Valentão, fiquei intrigado, porque eu era encrenqueiro e sonhava acordado como o personagem da letra da música. Parecia que Dorival Caymmi sabia da minha vida e estava me dando um toque. Tempos depois, todos lá em casa cantariam de manhã, de tarde e de noite o sucesso Maracangalha, que as rádios não paravam de tocar. Quem é do signo de gêmeos, como eu, é um duplo, sendo perfeitamente natural que um lado de mim tenha ficado chapado quando ouviu Rock Around the Clock, com Bill Halley, enquanto o outro... ah, o outro... sentiu um cataclisma interior ao escutar Chega de Saudade, com
  • 48. João Gilberto. Foi um deslumbramento só. Provocou uma reação que eu nunca sentira antes, uma mistura de ternura com felicidade, uma vontade de entrar rádio adentro e fazer parte daquele som que parecia falar diretamente comigo. Ao mesmo tempo, era o que eu queria ser para qualquer namorada: simples, poético, harmônico, carinhoso, triste e alegre. Claro que o meu roqueiro interior não gostou muito do que o meu outro eu sentiu. Mas os dois vivem comigo até hoje em regime de coexistência pacífica. Com o tempo, vim a saber que aquilo era bossa nova e que João — o inventor da batida que revolucionou a música mundial e a minha vida — era baiano. BRIGITTE BIJOU, A DECEPÇÃO Se por dentro eu era um sujeito dividido entre rock e bossa nova, minha imagem — calça Far-West nacional (o mais próximo que podíamos chegar dos jeans que víamos nos filmes americanos), camisa de gola alta, cabelo comprido e costeleta — não admitia dúvidas. Eu era o protótipo do roqueiro. E foi graças ao rock que fiz minha estreia no cinema. Estava com 17 anos, na ativa com os Snakes, quando Carlos Imperial nos convidou para gravarmos com Cauby Peixoto um rock para o filme Minha Sogra É da Polícia, com Violeta Ferraz no elenco e direção de Aloísio T. de Carvalho. Como o China não pôde ir, eu, Arlênio e Édson Trindade convidamos Roberto para cantar com a gente. No dia marcado, seguimos para a igreja Santa Mônica, do Colégio Santo Agostinho, no Leblon, onde a turma do Imperial já nos esperava para ensaiar. A banda era composta por amigos do Imperial. Fui apresentado a um cantor que eu jurava que fosse americano, pois havia lido em vários jornais notinhas e reportagens afirmando que ele, Dixon Savannah, batera Elvis Presley em prestígio nos Estados Unidos e era a nova sensação mundial do rock and roll. Seu nome, na verdade, era Paulo Silvino, um tipo simpático e piadista. O cara era brasileiro e estava bem ali na minha frente: comprido, voz grave, óculos fundo de garrafa, cara engraçada e jeito compenetrado. Silvino logo me contou que Dixon Savannah não passava de uma jogada de marketing para vender o disco que ele havia gravado. Um pouco decepcionado com a revelação e me sentindo ludibriado, só me restou rir da ousadia.
  • 49. O ensaio foi rápido e, em pouco tempo, já estávamos afiados. Imperial marcou a gravação para o dia seguinte e todos se dispersaram. Como estava sem nada para fazer, fui parar na casa do Silvino, em Ipanema, convidado por ele para ouvir uns discos de rock recém-lançados nos States. Lá chegando, tive a honra de conhecer sua mãe, Naja Silvino, renomada pianista, e seu famoso pai, o humorista Silvino Neto, que arrebentava na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Ouvimos algumas músicas, jogamos conversa fora como se fôssemos velhos conhecidos, até que, contemplando os livros da estante, meus olhos se fixaram na capa de Éramos Três. Flashback: Éramos Três havia sido fundamental, um ano antes, para minha vida sexual, que na época ainda era devagar. Fora a Lilica da Tijuca, que dava para todo mundo da turma, e uma prostituta da zona do Mangue, não tinha transado com mais ninguém. Uma simples foto de vedete ou de miss me excitava instantaneamente. As namoradinhas que tinha eram virgens e eu e meus amigos disputávamos a tapa até as revistinhas eróticas de Carlos Zéfiro. Foi nessa época que descobri a literatura erótica, que a gente na intimidade chamava de “livro de sacanagem” mesmo. O “pega” entre Lenita e Manuel em A Carne, de Júlio Ribeiro, foi o primeiro a me “sensibilizar” — uma alegria solitária que duraria até o dia em que perdi o livro. Após um período sem “inspiração”, achei um tesouro quando li Éramos Três, da escritora Brigitte Bijou. Caramba, não saía mais do banheiro! A história de um triângulo amoroso envolvendo um homem e duas mulheres fez minha cabeça. Troquei até o nome do personagem pelo meu para me imaginar no seu lugar, na cama com duas gostosas peitudas. Confesso que, além do teor erótico da narrativa, me deixava muito louco o fato de saber que era uma mulher que escrevia aquilo. Não era possível que ela não fosse devassa. Na minha imaginação, Brigitte Bijou devia ser uma messalina amoral e tesuda, uma vênus ninfomaníaca que escravizava os homens com sua bunda magnífica. Uma maravilhosa deusa do sexo. Minha alegria duraria pouco, pois num belo dia me roubaram Éramos Três no colégio. Peguei o exemplar de Paulo Silvino com a empolgação de uma criança e não escondi a surpresa: — Ih, bicho, você tem Éramos Três! A mulher que escreveu esse
  • 50. livro é muito safada! Sou seu fã. Ela deve ser maquiavélica. Deve fazer suruba com os caras, dar a bunda, chupar, fazer 69... — Você acha? — interrompeu ele. — Acho não, tenho certeza! Uma mulher para escrever as sacanagens que ela escreve, só pode ser escolada. Foi quando recebi o balde de água gelada: — Que é isso, Erasmo? Ela é uma santa, uma moça de família. Sei disso porque sou eu que escrevo os livros dela. — O quê? Você está me dizendo que Brigitte Bijou é um pseudônimo? — Exatamente. — Ah! Então me devolva todo o esperma que eu gastei tocando punheta — respondi, injuriado. Naquela noite, pediria o livro emprestado com a desculpa esfarrapada de querer reler a história. Na contracapa, me chamou atenção uma dedicatória: “Helô, se esse livro não te aquecer nas noites frias, considera-te feita de gelo...” Até hoje, quando encontro Paulo Silvino, metralho: — Dixon Savannah, como vai você? Ah, me desculpe... É Brigitte Bijou, não? Voltando ao Minha Sogra É da Polícia, gravamos a música That’s Rock, com Cauby Peixoto, no dia marcado. No final da gravação, Imperial nos convidou para dublarmos os instrumentos musicais no filme quando soasse a canção — ele e Roberto nos violões, Édson Trindade na bateria, eu no saxofone e Arlênio, que tinha um metro e sessenta e poucos de altura, em cima de um banquinho no contrabaixo. Silvino apareceria na cena seguinte dançando rock entre lambretas e vespas com Violeta Ferraz. Minha Sogra É da Polícia se tornaria um filme cult, histórico pela nossa reunião. O filme ainda me rendeu uma cana. Ao assisti-lo no cinema Estácio, no bairro homônimo, cercado pelos amigos e as namoradinhas da Tijuca, tive a infeliz ideia de roubar uma das fotos de divulgação que ficavam ao lado do cartaz. Fui preso e foi preciso minha mãe ir à delegacia para testemunhar que um daqueles “delinquentes” da foto era eu.
  • 51. Com Tim Maia, na época da Jovem Guarda: “Tim ainda fiel ao estilo Timbolina. Eu, com uma camisa listrada que marcou meu guarda-roupa.” SUCESSO FABRICADO Com os Snakes, aprendi minhas primeiras lições sobre o show business. Certa noite, estávamos no bar Divino eu, Arlênio, Trindade, China, além de Raul e Almir, todos esperando que um casal, recém-saído da última sessão do Cine Madrid, acabasse de degustar uma pizza aparentemente saborosa para devorarmos o resto que a mulher deixaria. Sabíamos disso porque, depois de incontáveis noites de observação, percebemos que elas comiam pouquíssimo, por charme ou medo de engordar. Não deu outra. Mal foram embora e atacamos as sobras. Durante a conversa, enquanto traçávamos a pizza alheia, eis que chega Paulo Murilo, divulgador da Copacabana Discos, que estava fazendo alguns contatos para que os Snakes gravassem um disco. Não queríamos passar a vida inteira fazendo vocais para Roberto Carlos e Tim Maia. Acompanhar o “Elvis Presley brasileiro” (Roberto) e o “Little Richard brasileiro” (Tim) no Clube do Rock era até então nossa principal e quase exclusiva atividade. Mas nossa vontade era gravar e também fazer shows solos. Eu e Trindade já estávamos tocando violão razoavelmente bem. Murilo veio com o compositor André Duarte, famoso por ter feito vários sambas, sambas-canção e marchas carnavalescas de sucesso. André apresentou uma proposta para os Snakes. Era a seguinte: ele estava lançando um cantor por uma gravadora da qual não quis revelar o nome e queria nos contratar para fazermos o backing vocal. A música era uma marcha de sua autoria e a gravação seria no dia seguinte. Trindade, China, Arlênio e eu nos entreolhamos, sérios e contidos, porém satisfeitos
  • 52. por dentro. Além de faturarmos um bom cachê, lucramos com a vaidade de estarmos sendo requisitados. E o melhor: andando com os nossos próprios pés, sem depender dos amigos Roberto e Tim. Combinamos o pagamento, horário e, no dia seguinte, seguimos para a Esplanada do Castelo, no Centro, onde ficava o estúdio de gravação. Ao saltarmos do elevador do prédio, já começaram as surpresas. O corredor estava cheio de gente e tivemos que pedir licença para passar, enquanto ouvíamos os comentários de decepção: — Ah, pensei que fosse o Carvalho. O tal estúdio não passava de uma salinha, decorada com cartazes de artistas da Rádio Nacional, como Emilinha Borba, Francisco Carlos, Lúcio Alves... Um vidro o separava de um cubículo onde só cabiam uma mesinha de som jurássica e o técnico. Falante e vaselina que era, André nos recebeu com simpatia, explicando que o tal cantor estava atrasado, era português e se chamava Joaquim Carvalho. Acrescentou que as pessoas que estavam lá no corredor eram amigos que vieram dar uma força. Ficamos quietos, olhando ao redor no meio da confusão. No centro da salinha, um microfone de pé captaria o som geral. O grupo que nos acompanharia, formado por dois violões, uma tumbadora e um afoxé, somados a nós quatro, já lotava o “estúdio”. Começamos a ensaiar: Quem é que não conhece a Pedra da Moreninha em Paquetá Só quem não ouviu o canto e o encanto que vem de lá... Arlênio distribuía as vozes. Ele ficava com a mais grave (o baixo), eu fazia o canto principal, Trindade ia uma oitava acima da minha e China entrava com alguma outra voz que combinasse harmonicamente. Convém dizer que usávamos na época o sistema de gravação direto no acetato, ou seja, no disco. Não podia haver erros. Qualquer imperfeição na execução e teríamos que recomeçar tudo do zero. Trocava-se a matriz e fazíamos outra tentativa. Ou seja, até por motivo de economia, já que um acetato- matriz custava caro, era aconselhável ensaiar bastante — e estávamos fazendo isso. Para se conseguir o equilíbrio com um único microfone, as vozes e os instrumentos mais agudos ficavam mais afastados. Só que um detalhe importante estava faltando: cadê o cantor? Não demorou muito e o burburinho do corredor anunciava que chegara o Carvalho. Achamos estranho quando vimos a figura,
  • 53. completamente diferente do que imaginávamos. Não tinha pinta de artista, mais parecendo um bicheiro ou um cafetão da Lapa: gordo, parecendo ter 40 anos, baixinho, cabelos ondulados e penteados para trás com brilhantina, bigodinho fino, terno jaquetão de linho branco, gravata, anéis de ouro e sapato bicolor. O grupo atacou e ele não entrou. Atacou de novo e ele entrou fora do tom, depois fora do tempo. Se engasgou e pediu desculpas, com algum sotaque lusitano, dizendo que havia alguma coisa diferente e que já já ele iria acertar. Nem chegara ainda nossa hora de cantar e já estávamos cansados. André tentava contornar a situação, pedindo calma, mas já estava temeroso de que não iria dar certo. Carvalho, coitado, transpirava por todos os poros, já sem paletó, com a camisa colada no corpo. Não sabia o que fazer, enxugando o rosto, o pescoço e o peito com um lenço encharcado de suor. Um dos músicos teve uma ideia: — Os garotos poderiam cantar desde o início e o Carvalho vai atrás. Pronto, a sugestão caiu do céu para André. Ensaiamos algumas vezes, com a voz do Carvalho quase escondida em meio às nossas, e o técnico então resolveu gravar. Carvalho nos atrapalhava, pois além do suor e da péssima performance vocal, ele não tinha a mínima noção de ritmo. Cinco acetatos depois, imortalizava-se o “Quem é que não conhece a pedra da Moreninha em Paquetá...”. Para completar, não recebemos nosso cachê completo — o restante seria pago dias depois. Carvalho foi embora, saudado em apoteose pelo fã-clube no corredor, quase carregado, aos brados de “Boa, Carvalho!”, “Que maravilha!”, “Vai ser sucesso!”, “Tá bom para chuchu!”. Dois meses depois, Paulo Murilo nos convidou, a pedido de André, para um almoço na casa do Carvalho em Nova Iguaçu. Seria o lançamento do disco e ele aproveitaria para pagar o que nos devia. Juntamos uma galera e para lá seguimos. Nas proximidades da rua, já dava para ouvir o foguetório. Gente de todas as idades gritando “Carvalho, Carvalho!”, serpentinas espalhadas, bandeirolas, uma bandeira do Vasco, moças sorridentes e crianças brincando com línguas de sogra. A casa era grande e o quintal idem. Fomos apresentados a todos como “os meninos que cantavam com Carvalho”. Muitos diziam: — Ah, sei. Os Snacks. O que nos levava a corrigir pacientemente: — Não é Snacks, é The Snakes, os cobras.
  • 54. A mulher do Carvalho, portuguesa também, nos cativou com sua amabilidade, nos apresentando a um panelão de moqueca com batatas e mandando que nos servíssemos dos garrafões de palha de vinho tinto. Percebemos, porém, que ela tinha um buço tão notável que mais parecia um bigode. Olhares mais cuidadosos nos permitiram ver que a senhora Carvalho não raspava as pernas nem os pelos do sovaco. Num momento descontraído em que Carvalho se divertia, dançando desengonçado com familiares e amigos, eis que chega André correndo, trazendo um rádio de pilha a todo volume, gritando excitado: — Carvalho, Carvalho, olha o que está tocando no rádio! “Quem é que não conhece a Pedra da Moreninha de Paquetá...”. Todos deram vivas e abraçaram Carvalho, que não cabia em si de contentamento. Passado algum tempo, a música tocou de novo e de novo, sempre saudada pelos presentes. Carvalho estava eufórico. Foi quando ouvimos André dizer: — É, Carvalho... Vamos precisar de mais grana para prensar mais discos, porque Pedra da Moreninha é um sucesso. Bebemos, comemos e nada do nosso dinheiro. No final, André evocou todas as desculpas do mundo e prometeu que iria fazer nosso pagamento no bar Divino, pessoalmente, no dia seguinte, nos deu um disco com a música e ponto final. Vimos cair por terra o nosso lema “a esperança é a última que morre”, pois ela morreu mesmo. Já não alimentávamos mais pretensão alguma de recebermos o resto do nosso cachê. André sumiria e nunca mais ouviríamos falar dele. Com o tempo, ficamos sabendo da maracutaia. Ele conhecera Carvalho numa roda de violão onde a birita rolava solta. Depois de alguns goles, soube tratar-se de um comerciante rico de Nova Iguaçu, vaidosíssimo, que tinha o sonho de ser cantor. Imediatamente prometeu ao pobre coitado a realização do seu desejo, contando com a ajuda de alguns amigos que trabalhavam em rádios da periferia. Carvalho soltava a grana e, devidamente pagos, eles alimentavam o ego do aspirante à estrela, a ponto de convencê-lo de que ele era um novo Francisco Alves. A gravação, o fã-clube, a festa e a música tocando no rádio, era tudo uma grande armação. Esse episódio me serviria de ensinamento logo no início da minha estrada. Foi apenas uma das muitas armadilhas capciosas que eu ainda presenciaria no mundo da música.