Mundo Coronavírus

Na África, logística precária e vacinas sem prazo certo de entrega agravam dificuldades na luta contra a Covid

Planejamento para o combate à pandemia precisa driblar problemas como escassez de seringas e falta de conscientização sobre riscos do coronavírus
Chefes tribais entram em um caminhão sanitário para receber a vacina contra Covid-19 em Abidjã, Costa do Marfim Foto: LUC GNAGO / REUTERS/23-9-21
Chefes tribais entram em um caminhão sanitário para receber a vacina contra Covid-19 em Abidjã, Costa do Marfim Foto: LUC GNAGO / REUTERS/23-9-21

LONDRES — Falta de previsibilidade e logística: são esses os fatores a complicar ainda mais a desastrosa situação dos países africanos no combate à Covid-19. Não bastasse a quantidade de vacinas — ainda muito aquém das necessidades da região — as entregas são erráticas e feitas sem muito aviso prévio. Tudo isso dificulta o planejamento das campanhas, que também precisam prever de escassez de seringas, a longas distâncias em áreas de pouca infraestrutura (inclusive em zonas de conflito), passando pela conscientização da gravidade da pandemia em comunidades que lidam com doenças ainda mais mortais, como ebola e cólera.

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Na lanterna mundial, este continente com 1,2 bilhão de habitantes tem apenas 7,3% de sua população totalmente vacinada. A média cai para menos de 5% quando considerada só a região subsaariana. Nada mais propício ao desenvolvimento de novas cepas, como a Ômicron , identificada pela primeira vez na África do Su l, que deixou o mundo em alerta. Nos países ricos, que garantiram a maior parte dos estoques de vacinas bem antes dos africanos — e em quantidades muito superiores ao número de seus habitantes — enquanto as pessoas são convidadas à terceira dose, as autoridades já discutem um calendário para a quarta. É caso do Reino Unido, que acaba de anunciar a compra de mais 114 milhões de imunizantes, e de Israel.

Na África, só Angola — entre os 54 países do continente — conseguiu aplicar a totalidade das doses recebidas até agora. Nem por isso conseguiu vacinar mais do que 8,4% da população com duas doses. Afinal, as quantidades recebidas estão longe de dar conta de seus 32 milhões de habitantes.

— Alguns países só sabem que os carregamentos de imunizante estão chegando com uma semana de antecedência. Assim é impossível fazer o planejamento — disse o especialista em desenvolvimento Michael Jennings, da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

Reduzir o abismo

Segundo Edinam Amavi, responsável pela segurança e qualidade das vacinas no escritório da Organização Mundial da Saúde (OMS) na África, o fornecimento dos antígenos já não é o maior problema. O desafio agora é reduzir o abismo entre os países africanos e o resto do mundo. A meta era vacinar pelo menos 10% da população da região com duas doses até setembro, e 40% até dezembro.

— Na média geral, a região segue abaixo dos 10%. Com a vacina em mãos, agora é preciso distribuir e fazer as pessoas aceitarem os imunizantes— disse Amavi ao GLOBO.

A executiva destacou que a OMS continua trabalhando junto aos países ricos e plataformas criadas para garantir a igualdade de acesso a vacinas para que acelerem o apoio às nações mais pobres. Hoje, a África tem acesso a vacinas a partir do consórcio Covax, liderado pela OMS, da União Africana e de acordos bilaterais firmados entre os países.

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O surgimento da nova variante Ômicron na África do Sul, lembra Amavi, deve a um só tempo estimular as nações desenvolvidas a agirem mais depressa e convencer as comunidades a tomar a vacina.

— É sempre assim. O importante é saber que as variantes vão seguir aparecendo até que a gente consiga parar a pandemia, ou vacine 70% da população global — afirma Amavi.

Além disso, as campanhas de imunização africanas não deslancharam por várias razões , segundo especialistas ouvidos pelo GLOBO. Sem saber quando terão acesso a vacinas, alguns governos demoraram a convocar as pessoas para a imunização. E aqueles que o fizeram com antecedência, despertaram a desconfiança dos cidadãos, que não viram o antígeno ser aplicado em pessoas próximas.

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Teorias conspiratórias

Outro fator é que, historicamente, os africanos se veem alvo de experiências de laboratórios com novos fármacos, cujos efeitos colaterais são desconhecidos. Acredita-se que essas empresas se valeriam da falta de regulação em vários países para testar medicamentos. Por essa razão, muitos têm o pé atrás com as novidades.

— Alguns países só sabem que os carregamentos de imunizante estão chegando com uma semana de antecedência. Assim é impossível fazer o planejamento — disse o especialista em desenvolvimento Michael Jennings.

A demora para o início das campanhas de vacinação abriu espaço para todos os tipos de medos e teorias conspiratórias disseminadas pela internet contra os imunizantes. Isso aconteceu na República Democrática do Congo, um dos países que menos vacinaram até agora em todo o mundo (0,06%). A população não é totalmente avessa à vacina. Mas, como a Covid-19 não afetou tanto este país de 90 milhões de habitantes, que vive às voltas com malária, ebola, pólio e sarampo, sem falar na pobreza e desnutrição endêmicas, é difícil convencer as pessoas da importância de se imunizar.

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Para um diplomata europeu na Tanzânia, há uma situação de atraso na campanha de vacinação. Porém nem tanto desespero na parte de tratamento de saúde, porque, além de a África ter uma população muito jovem, vários problemas passam despercebidos. Segundo ele, “há uma postura geral de fazer pouco da doença, por causa da precariedade do sistema de saúde e da pobreza”, e ressalta que “morre muito mais gente de malária na Tanzânia do que de Covid”.

O surgimento de da nova cepa Ômicron na África assustou as nações ricas, que achavam ter a situação razoavelmente sob controle.

— Alguns países, a Pfizer e a Moderna parecem que só descobriram a África agora — disse ao GLOBO a chefe do departamento de África da coalizão The People’s Vaccine, Mogha Kamal Yanni.

Suspensão de patentes

Na última sexta-feira, os EUA anunciaram o envio de 9 milhões de doses de vacinas a países africanos.

— No começo, o problema era só a falta de vacina. Agora, é o planejamento, que não pode ser feito sem que as autoridades saibam quando vão receber os antígenos. Não há capacidade de distribuição de uma hora para outra — destaca Yanni.

Jennings faz um contraponto, alegando que não se deve menosprezar a capacidade logística da África, que há décadas implementa imensas campanhas de vacinação. Em Ruanda, segundo ele, o governo tem usado drones para combater a Covid-19. A rede comunitária de combate ao ebola também é ágil, lembra.

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A questão é que os países pobres podem ser o calcanhar de Aquiles da luta contra a Covid: a Delta nasceu na Índia, que tem 31% da população totalmente vacinados; a África do Sul já tinha tido outra variante no ano passado, a Beta.

— Muitos países acharam que vacinar as populações com duas doses e, agora, um reforço, poderia resolver. Até que: boom! Uma nova variante afetou as pessoas, os mercados e as economias. Enquanto não vacinarmos todo mundo, o perigo vai continuar — disse Yanni.

Não por acaso cresce a pressão sobre os países ricos para que aprovem no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC) a suspensão das patentes das vacinas da Covid-19. A proposta defendida por Índia e África do Sul há mais de um ano tem por objetivo garantir que estes imunizantes possam ser produzidos em maiores quantidades e distribuídos para todos. Hoje, as vacinas são produzidas por um punhado laboratórios estabelecidos em um grupo restrito de nações desenvolvidas.