SAN SEBASTIÁN (Espanha) – Há 45 anos, o detetive Philip Marlowe não dava as caras no cinema. Com “Sombras de um Crime”, Neil Jordan é o primeiro diretor a retomar nas telas as aventuras do investigador particular saído da imaginação de Raymond Chandler (1888-1959), desde o filme “A Arte de Matar” (1978), de Michael Winner.

Em cartaz no Brasil a partir do dia 30, exclusivamente nos cinemas, o thriller policial faz parte de um “revival” promovido pelos administradores do espólio do mestre da literatura noir. Como a última obra literária de Chandler com Marlowe foi a novela inacabada “Amor & Morte em Poodle Springs” (1962), publicada postumamente, vários autores foram autorizados a dar continuidade ao legado do detetive.

“Como há muito interesse em manter o personagem vivo, os responsáveis pelo espólio contratam, de tempos em tempos, escritores afinados com o estilo de Chandler para a tarefa”, disse o cineasta irlandês Neil Jordan ao NeoFeed, em San Sebástian, na Espanha. Foi na 70ª edição do festival de cinema da cidade basca que “Sombras de um Crime” fez a sua première mundial.

Um desses autores é um amigo de Jordan, o conterrâneo John Banville, que usa o pseudônimo de Benjamin Black em suas obras. É dele o livro “A Loura de Olhos Negros” (2014), em que Marlowe é ressuscitado em trama ambientada na Los Angeles da década de 1950.

O livro foi a inspiração para “Sombras de um Crime”, estrelado por Liam Neeson. O ator nascido na Irlanda do Norte e mais conhecido por filmes de ação foi o escolhido para encarnar o detetive durão, de língua afiada e com uma queda por mulheres misteriosas, bebidas e bares mal frequentados.

O fato de Marlowe ter o coração mole, apesar do jeito canastrão, sempre deixou o personagem nascido no livro “O Sono Eterno” (1939) ainda mais irresistível. A ponto de os sete livros que Chandler escreveu sobre o detetive terem vendido, até a época da morte do autor, 5 milhões de cópias, com tradução para 25 idiomas.

Na nova versão cinematográfica, o detetive particular é contratado por uma “femme fatale”, figura recorrente na filmografia noir, para investigar o desaparecimento de seu amante. Interpretada por Diane Kruger, a cliente acredita que o homem, que partiu “sem dizer adeus”, tenha morrido ao ser atropelado, enquanto estava bêbado.

Diane Kruger interpreta a "femme fatale" que contrata o detetive

“Tanto o livro quanto o filme jogam com as características esperadas nas tramas de Marlowe. Como o fato de o investigador sempre acabar seduzido por uma loira”, afirmou Jordan, rindo. “O que mais me interessou aqui foi explorar essas pressuposições no mundo do detetive, abordando-as com a mesma ironia tão característica de Marlowe”, completou ele.

Ainda que o investigador tenha inspirado dez filmes, entre 1942 e 1978, o diretor não se sentiu intimidado em revisitá-lo. “Apesar de icônico, o personagem ganhou poucas adaptações realmente boas para o cinema até hoje”, afirmou Jordan, vencedor de um Oscar de melhor roteiro original por “Traídos pelo Desejo” (1992), indicado a seis prêmios da Academia.

Jordan citou “À Beira do Abismo”, dirigido em 1946 por Howard Hawks, e “O Perigoso Adeus”, assinado por Robert Altman em 1973, como as melhores transposições. Considerada uma obra-prima do cinema noir, a primeira é a mais celebrada até hoje, em parte por trazer o lendário Humphrey Bogart como Marlowe, um papel que o ator, um ás do cinismo, nasceu para fazer.

A produção ainda tem uma aura mítica por apresentar uma química explosiva entre Bogart e a coestrela Lauren Bacall, o primeiro filme da dupla como marido e mulher. Foi a partir dali que eles se tornaram um casal emblemático da Hollywood clássica.

“Justamente para não repetir a abordagem noir mais convencional de Howard Hawks, que rodou o seu filme em preto e branco, escolhi um universo de cores vibrantes”, contou Jordan, ao explicar a sua opção por uma produção colorida. “É até mais difícil construir aquela atmosfera do ‘nada é o que parece ser’ usando cores”, acrescentou.

Jordan recriou o clima noir mesmo num filme colorido

Para o diretor, o desafio em resgatar Marlowe está sobretudo no fato de o público atual ser bombardeado de enredos policiais, principalmente com o boom de séries do gênero nas plataformas de streaming. “Como está cada vez mais difícil enganar a plateia, quando se trata de manter o suspense quanto ao ‘quem matou quem’, os enredos ficaram cada vez mais mirabolantes, o que nunca foi o caso das histórias com Marlowe.”

É por isso que “Sombras de um Crime” se prende aos detalhes da investigação, incluindo desvendar as reais intenções da cliente. Assim, a trama caminha lentamente, em uma referência à própria narrativa de Chandler. A graça para os fãs de Marlowe nunca foi ver o caso solucionado, mas sim mergulhar no mundo do detetive. “O melhor sempre foi ver os lugares, as pessoas e a situações com os olhos do personagem”, resumiu Jordan.