Frieren e a Jornada para o Além — depois do fim...

Frieren e a Jornada para o Além (Sousou no Frieren, no original em japonês) é talvez o anime mais interessante dos lançamentos de outono no Japão. Diferente de muitos épicos de fantasia inspirados em RPGs medievais, esta série começa após o fim da grande aventura dos heróis, para contar uma história sobre o que vem depois de salvar o mundo.

• Minhas Aventuras com o Superman — o amigo voltou, ainda bem
• Star Wars: Visions — uma visão anime da galáxia muito, muito distante

A narrativa é centrada na maga do grupo e sua jornada de aprendizado a dar valor à vida e àqueles ao seu redor, enquanto ainda é possível, visto que por ser uma elfa, Frieren viverá muito mais do que os humanos com quem convive.

Vamos discutir o enredo-base da première de Frieren e a Jornada para o Além, originalmente um especial de duas horas, dividido em quatro episódios para exibição no serviço de streaming Crunchyroll, com SPOILERS. Esteja avisado.

O que deixamos para trás

A história do anime começa no ponto mais improvável para uma nova série, após a derrota do Rei Demônio pelo grupo de heróis, o fim de uma jornada de aventuras e perigos que durou 10 anos. O herói Himmel, o clérigo Heiter, o guerreiro anão Eisen e a maga elfa Frieren, voltam para a vila de onde partiram há tanto tempo, onde todos, os aventureiros e o povo, comemoram o início de uma era de paz.

Entre copos e felicitações, ao anúncio do rei de que estátuas serão erguidas em honra aos heróis, o grupo começa a discutir sobre o que farão dali em diante, incluindo arranjar empregos normais. Frieren, no entanto, diz que deverá passar o próximo século coletando magias pelo continente. Em verdade, ela já tinha mais de mil anos de idade quando começou a viajar com Himmel e cia., e viverá ainda muito mais que isso.

Embora poderosa e confiável, Frieren é desconexa e distante. Ela demonstra pouco interesse pelo cotidiano humano, e diz que mesmo a aventura para derrotar o Rei Demônio "ocupou cerca de 1%" do seu tempo de vida. No entanto, quando os aventureiros contemplam uma chuva de meteoros, que só acontece uma vez a cada 50 anos, ela reclama que a visão de dentro da cidade não é boa, e promete, dali a meio século, se encontrar com seus amigos para levá-los a um ponto de observação ideal.

Os anos passam e Frieren ocupa seu tempo exatamente com aquilo que ela disse que faria, vagando pelas terras em buscas de novos encantamentos. Quando ela se dá conta de que precisa de um item específico, que ela deixou aos cuidados de Himmel, a elfa percebe, quase que casualmente, que já se passaram quase 5 décadas. Logo, é hora de cumprir a promessa feita tanto tempo atrás.

E é desse ponto em diante que Frieren e a Jornada para o Além o atinge com o impacto de um caminhão de tijolos desgovernado.

Frieren e a culpa do sobrevivente

Ao voltar para a mesma cidade do início do episódio, Frieren encontra um Himmel bem diferente daquele que se lembrava - o jovem de cabelos azuis deu lugar a um senhor de idade baixo, careca e com uma longa barba, fraco demais para brandir sua espada longa, agora guardada em um armário com seu traje de herói, uma dolorosa lembrança de um tempo de glória que não volta mais.

Logo chegam Heiter, agora um bispo (mas ainda beberrão) e igualmente idoso, e Eisen, que por ser um anão, também possui uma longevidade maior que a dos humanos, mas não tanto quanto a de Frieren, que não envelheceu um dia sequer. Não parece, mas o tempo também o alcançou, e o outrora valoroso guerreiro é incapaz de empunhar um machado em batalha.

A elfa leva seus amigos a uma última jornada, para um ponto na floresta onde eles contemplam a chuva de meteoros em todo o seu esplendor, longe das luzes da cidade. Himmel, maravilhado com o espetáculo, agradece Frieren por conceder a ele "uma última aventura" antes do fim. Pouco tempo depois, ele morre.

Só então Frieren se dá conta de que, apesar do grupo de aventureiros ter viajado juntos por uma década inteira, para ela, foi somente isso que significou. Ela não conhecia nada sobre Himmel, Heiter ou Eisen, suas histórias, suas preferências, o que gostavam de fazer... eles eram estranhos para ela, que nunca se interessou por nada da vida humana, para ela, frágil e curta demais para ter algum significado.

E ela desaba de chorar, pela primeira vez.

Frieren decide, então, iniciar uma nova jornada pessoal, para entender o significado da vida humana, e valorizá-la, exatamente por sua brevidade, e o quão importante é para eles deixar um legado ao partirem. Posteriormente, ela volta a se encontrar com Heiter, que acolheu uma jovem chamada Fern, uma órfã da guerra de uma região vizinha.

Curiosamente, Fern não demonstra a culpa da sobrevivente que atormentou Frieren, mas ela quer dar significado à sua vida para retribuir a gentileza do "padre degenerado" (o carinhoso apelido que Frieren deu ao sacerdote beberrão), que pede à velha amiga que acolha a garota como sua discípula, pouco antes de sua própria passagem.

Fern percebe que a viagem de Frieren é um tanto egoísta e a princípio, desprovida de sentido. Qual o ponto em coletar magias para azedar uvas, ou limpar ferrugem? Com o tempo, você descobre que a curiosa iguaria era a favorita de Eisen, e a elfa se ressente pelo estado precário que as estátuas erguidas aos heróis foram deixadas com o passar do tempo.

De certa forma, Frieren está recriando a jornada original que fez há tanto tempo com seus amigos, mas aprendendo a apreciar a aventura em si e as pequenas coisas, como recuperar uma espécie de flor há muito perdida, oriunda da cidade-natal de Himmel, e a favorita dele.

A narrativa de Frieren e a Jornada para o Além vai à contramão das obras modernas de fantasia em animes, hoje assoladas pelo subgênero isekai, quando o protagonista é puxado do seu mundo para outro. Embora essa vertente tenha rendido algumas pérolas, como a impagável e subversiva O Tio de Outro Mundo, o gênero está hoje se autofagocitando e reciclando constantemente.

Ao mesmo tempo, não espere por uma obra de aventura capa e espada inspirada em JRPGs, como o remake recente Dragon Quest: A Aventura de Dai. A pegada de Frieren é reflexiva e pessoal, uma jornada íntima de um indivíduo que viverá por milênios aprendendo a apreciar coisas mundanas, como um nascer do Sol.

A produção do anime, baseado no mangá de Kanehito Yamada (roteiro) e Tsukasa Abe (arte), ficou a cargo do estúdio Madhouse, responsável por várias séries famosas, como Death Note, One-Punch Man e Black Lagoon, além de ser a casa da obra de vida do aclamado diretor Satoshi Kon (1963—2010).

Seu trabalho seminal nos filmes Perfect Blue, Millenium Actress, Tokyo Godfathers e Paprika, e na série Paranoia Agent, inspirou diretores e roteiristas em todo mundo, de Christopher Nolan (A Origem) a Darren Aronofsky (Réquiem para um Sonho, embora deste o diretor japonês não era um fã). Em alguns aspectos, Frieren alude a como Satoshi Kon buscava retratar o mundano em suas obras.

Conclusão

Frieren e a Jornada para o Além é um bem-vindo, e necessário, respiro de originalidade dentro do gênero fantasia nos animes, que revolvem entre jornadas épicas e personagens saltando entre mundos. Ao focar no desenvolvimento psicológico da protagonista, buscando formar laços e entender melhor os humanos, ao ponto de tomar uma como aluna, a série é um deleite para quem procura uma história com significado, e um ritmo mais lento.

Há, sim, alguns momentos de ação e comédia, como a batalha contra um mago selado décadas atrás pelos aventureiros, e a gag recorrente de Frieren presa em mímicos (aqueles baús que mordem aventureiros incautos), mas o foco aqui está na viagem e tudo o que pode ser aprendido no caminho, por menor que seja.

É bem possível que Frieren e a Jornada para o Além não se torne o campeão de audiência da temporada, mas dada a competência do estúdio Madhouse, uma narrativa sólida e personagens carismáticos, esta série já é um dos grandes destaques do fim de 2023, que merece ser apreciada com tranquilidade.

E ocasionais lenços de papel à mão.

Onde assistir e ler:

O anime Frieren e a Jornada para o Além está disponível na Crunchyroll; já o mangá é publicado no Brasil pela Editora Panini.

Nota:

5/5 ervas da lua azul.