Afinal, o que há além do jardim?

Gina
7 min readJul 14, 2020

O Segredo Além do Jardim (Over the Garden Wall, em inglês) é um desenho de dez episódios que estreou em novembro de 2014, no canal do Cartoon Network; tendo como criador Patrick McHale (responsável por parte da produção de “As Aventuras de Flapjack” e “Hora de Aventura”).

O desenho não possui uma longa duração e pode ser assistido em por volta de uma hora e meia - já que seus dez episódios possuem, em média, onze minutos (existe também disponível o episódio piloto, que possui nove minutos e tem intuito de nos apresentar os protagonistas da trama); mas o que chama atenção e faz com que os telespectadores fiquem encantados com o meio animação, assim como eu, se apegarem e se lembrarem do desenho, mesmo seis anos depois, é o fato de que ele possui uma atmosfera voltada à nostalgia e ao conforto - mesmo que, em muitos de seus episódios, nos são apresentados momentos estranhos que podem nos causar uma sensação desconfortante.

A paleta de cores, a fluidez da animação e o carisma dos personagens também tornam a obra algo único. A trama gira em volta de dois irmãos que ficam perdidos em um lugar conhecido como Desconhecido e que só querem voltar para casa, além de uma pássara azul chamada de Beatrice, que possui o objetivo de quebrar a maldição que assolou ela e sua família.

A história começa sem explicações, apenas colocando o telespectador ao mesmo passo de Wirt e Gregory: eles estão perdidos e não sabem como chegaram ali, apenas seus objetivos ficam claros; ambos querem ir para casa.

Beatrice se junta à trupe a partir do segundo episódio, quando Greg a ‘salva’ de um arbusto e ela diz ao rapaz que, segundo as promessas dos pássaros azuis, precisa o ajudar a se manter salvo - mais tarde, descobrimos que esse fato é apenas uma mentira que Beatrice inventa para poder levá-los até a Boa Bruxa do Pasto, Adelaide.

Além dos três protagonistas, ainda há a presença do sapo de Greg - que muda de nome todos episódios, algumas vezes até durante o próprio episódio; seu primeiro nome acaba sendo Kitty, enquanto o último é Jason Funderberker.

A progressão do desenho se dá pelas aventuras dos trio pelo Desconhecido, sendo até o sexto episódio a odisseia de ir até a casa de Adelaide - e após isso, a procura pela saída do Desconhecido por ‘conta própria’.

Uma das maiores premissas do desenho é a presença do antagonista denominado ‘A Fera’; sendo este uma figura sombria que se apodera de almas perdidas e vazias, as quais estão longe de casa. Esse antagonista nos é apresentado ainda no primeiro episódio, quando o Senhor da Floresta - um lenhador - conta aos meninos dos perigos que a floresta oferta.

Para mim, O Segredo Além do Jardim é algo mais do que apenas a trajetória de dois rapazes que estão perdidos em um lugar hostil: eles também estão perdidos quanto a si próprios. Wirt, o irmão mais velho, não consegue aceitar Greg, que é seu meio-irmão, e o culpa por tudo de ruim que aconteceu até o momento - desde quando estavam perto de casa, quanto ao estarem perdidos (“Wirt sempre está certo sobre ele, mas tão errado sobre o mundo ao seu redor”). Greg lida com a culpa de ter roubado uma pedra de uma das senhoras de vizinhança - e muito provavelmente, com as palavras hostis que seu irmão lhe conduz. Beatrice também está perdida, foi por causa de um erro da menina que sua família toda foi condenada.

Para a Fera, aquelas três pessoas seriam o alvo perfeito: perdidas, empurradas pela angústia, pela culpa e por, até mesmo, a solidão - mesmo que andem sempre acompanhados. Mas ela não os ataca até os últimos episódios, quando Wirt desiste de lutar e se entrega para o cansaço - MESMO assim, a Fera não vai atrás dele, mas sim de Greg - um rapaz que estava determinado a tirá-los dali, por meio das promessas (falsas) de Estrelinha, que é um dos disfarces da Fera.

A Fera, no fim, não vai atrás das pessoas de almas fracas e perdidas; ela procura pessoas que estão dispostas a darem tudo de si - seja carregando um farolete pela eternidade ou tentando colocar o sol dentro de uma xícara.

Toda sua atmosfera tenta dar alguma lição, tanto aos personagens quanto aos telespectadores, quanto no sentido de assumir a responsabilidade e as consequências que seus atos trazem - seja no momento que o Senhor da Floresta chama a atenção de Wirt pelas ações de seu irmão; quando Beatrice é transformada em pássaro por uma ação errada que fez; ou quando nos é apresentada toda a história de como os rapazes chegaram ao Desconhecido. Tudo ali possui uma ação e uma reação, que muitas vezes os personagens não tem como contornar sem fazerem sacrifícios - o Senhor da Floresta tendo que carregar o farolete por toda sua vida, Beatrice tendo que trair seus amigos para poder possivelmente voltar a ser humana, Greg quase se transformando em parte da Floresta por ter confiado na Fera.

Seria estranho chamá-lo de infantil, já que o desenho consegue ser mais maduro do que muitos outros do mesmo ramo. Mesmo que possua músicas bobas - como Batatas e Melado -, ele também traz reflexões relacionadas ao aspecto onírico e ilusório: seja pelos absurdos que o desenho traz - como pássaros, sapos e cavalos falantes; quanto ao fato de que a narrativa, vez ou outra, faz com que os telespectadores duvidem da credibilidade dos personagens apresentados.

A sensibilidade que o desenho traz ao telespectador também é algo que deve ser exaltado; seja por meio de sua animação 2D, com traços esteticamente bonitos - voltados, principalmente, para o período vitoriano; ou até mesmo pela sua trilha sonora: tudo neste desenho te faz se sentir imerso; te faz sentir nos conflitos morais que atormentam os personagens, te faz sentir apegado a eles. A maioria, senão todos os personagens conseguem sair de rasos para redondos em onze minutos de episódio - como personagens que aparecem apenas uma vez na série, como o Prefeito de Pottsfield e Quincy, o ‘tio’ falso de Greg e Wirt; eles conseguem sair de side-characters para algo mais profundo, que deixará memórias na mente de quem assiste.

Além dessa sensibilidade e criação de roteiros afiados, existem vários pontos que podem ser ligados - mesmo que ainda não confirmados totalmente - com a obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia.

Quando levamos essa teoria adiante, realmente é possível ver similaridades; como: os nove círculos do inferno (além de uma área anterior a este, que seria parte do purgatório) e como eles interagem com a história. No vídeo do Meteoro BR, é mostrado, por exemplo, a similaridade entre o quarto círculo, que é relacionado à Gula, e o quarto episódio - que se passa em uma taverna; outros aspectos em comum seriam voltados para um dos demônios que acaba fazendo com que o personagem de Dante fique cada vez mais perdido dentro do inferno (no caso de O Segredo Além do Jardim, seria o papel de Greg); além da presença de Beatrices nas duas obras (em A Divina Comédia sendo a musa do personagem principal, enquanto no segundo, se refere a side-kick que de início possui uma relação conturbada com o protagonista, mas que em seu final acaba o acolhendo como seu amigo).

Também existem cenas, no próprio desenho, em que são mostrados os túmulos de alguns personagens - como o de Quincy, o senhor do chá; sendo estas localizadas no cemitério denominado o ‘Eterno Jardim’

Sua narrativa acaba sendo sobre o que há além dali, além do jardim, além da morte. Afirmo que a parte do segredo continua intrínseca, já que algumas perguntas se mantêm sem respostas óbvias. Boa parte do Desconhecido, da possível metáfora sobre a pós-vida e a morte, se mantém como o nome diz: desconhecidas. Quem é a Fera? Por que sua alma fica presa em uma lamparina? E como o uso de almas perdidas para alimentar a chama faz com que a alma do antagonista continue viva ao passar dos anos? Seria a continuação da vida Além do Jardim mais um elemento onírico e ilusório, de um desejo profundo de Wirt de ver todas as pessoas com que cruzou bem e felizes após ele ter ido embora?

É um desenho que faz falta. Que encanta em tão pouco tempo e ao mesmo tempo nos é tirado tão rápido, sua uma hora e meia parece voar e quando acaba, o que resta é um vazio imenso.

Seu final é feliz, mas, ao mesmo tempo, machuca. A delicadeza e a doçura do desfecho de nossos heróis é algo tão precioso que faz com que eu mareje de lágrimas todas as vezes que eu assista - mesmo que seja depois de absorver tudo e escutar sua OST por, no mínimo, três vezes.

Patrick McHale, com essa obra, se tornou um dos meus diretores/produtores preferidos. O tanto de amor que tenho por esses personagens, essas músicas, esse mundo, é incontável. É o desenho que indicaria para todas e quaisquer pessoas. Além da série, é possível encontrar uma gama de mercadorias referentes a obra, como por exemplo: histórias em quadrinhos e a venda da própria OST do desenho.

Eu já vaguei perdida e quase me entreguei para minha própria Fera mil vezes; mas assim como Wirt, eu decidi negar carregar o farolete em que ela vive e tentar viver - e encontrar as respostas que procuro - por mim mesma.

--

--

Gina

Estudante do primeiro período de Jornalismo — Unesp; 18 anos, LGBT(Q+); provavelmente eu só vou postar minhas crônica uma vez a cada lua azul, então…