Excerto Sobre a Morte

André Rodrigues Soares
4 min readMar 8, 2023

“Foi guarida até na mais colérica tempestade”. Foi isso que mandaram entalhar na minha lápide. Porra de guarida, parceiro! Sai fora! Pra ser bem sincero, eu nem lembro o que diabos é uma guarida. Minha família nunca teve uma gota de senso de humor. Passei minha vida toda dizendo que se eu tivesse que ter um epitáfio, seria algo bem tosco, tipo “morreu, mas passa bem” ou “foi comprar cigarro e não voltou mais”.

É meio irônico que eles sempre tenham me levado tão à sério, apesar da minha insistente fanfarronice. Bom, agora isso pouco importa, já que eu morri e meu cadáver está sendo gentilmente decomposto por larvas e outros bichos num buraco qualquer. Infelizmente minha morte foi um tanto repentina e não deu tempo de avisar que, na real, eu queria ser cremado e que jogassem as minhas cinzas na casa do Timothée Chalamet. A pegadinha final, minha obra-prima contra o pior ator da história. Teria sido apoteótico.

Não tenho muito o que fazer quanto a isso, já que eu tô morto, então me resta a resignação. E olha, como eu tenho tempo pra ficar resignado. À título de curiosidade, não existe nem Paraíso e nem Inferno, só uma espécie de Purgatório que a galera por aqui chama de Cantinho. Caiu aqui, pimba, reset total em bondade ou maldade, tudo isso perde completamente o sentido.

É quase como aquelas vilas pra aposentados que aparecem em filmes estadunidenses, com o adendo de que o tempo não existe e absolutamente qualquer tipo de entretenimento voltado pra idosos ou crianças fica disponível pra uso. Conceito interessante, especialmente se considerar que idosos e crianças são basicamente a mesma coisa, mas com motivos diferentes pra chorar.

Como aqui o tempo não existe, em toda casa tem um modo dia e noite. Não tá afim de ficar vagando pra encontrar alguma atividade diferente? Tudo bem, entra na sua casa, ativa o modo noite e é isso, noite artificial. Aliás, uma coisa que não posso deixar de dizer sobre estar morto: artificial é uma palavra que passa constantemente pela cabeça de quem já tá nessa há mais tempo.

No começo essa disponibilidade infinita de vaudevilleandades deslumbra, e você quer provar tudo que a morte tem pra oferecer. O problema é que, se não existe tempo, você acaba descobrindo uma infinitude de não-tempo pra perceber o quanto a perfeição construída pra entreter os espíritos é estéril. É nesse ponto que eu me encontro. Entendeu agora porquê o Cantinho tá mais pra Purgatório?

Digo mais, não tô desmerecendo o trabalho que Deus e os outros funcionários tem e tiveram pra criar e manter tudo isso aqui rodando constantemente. A grande questão é que a vida é divertida exatamente pelo senso de finitude. Se você sabe que as coisas vão acabar, só resta aproveitar da melhor forma possível. Quando tudo é eterno, tudo também é limitadamente divertível. Uma dicotomia um tanto quanto irônica.

Por falar em Deus, o dito cujo é um tiozinho magrelo que, por falta de um termo melhor, eu chamo de bon vivant. Não, é isso mesmo, esse é o termo exato. O cara passa os dias dele andando de um lado pro outro, jogando conversa fora com as pessoas, tomando um vinhozinho, orientando os funcionários, uma incrível mistura de concierge, maître, gerente e hóspede.

Outro “dia” ele me pegou no meio da rua pra bater um papo, perguntar como ia a morte. Falei da ligeira angustia que vinha me acometendo. Quando terminei, ele começou a contar a história resumida dele e do Universo. Contou de como ele e a Morte surgiram do nada no meio do Universo e demoraram um tempão pra conseguir entender o que diabos estava acontecendo. Falou de “dar um start na Entropia” e deixar rolar, e sobre uma porta do lado de onde eles surgiram. Confesso que nessa hora já não entendia muito bem, mas a empolgação dele falando sobre a coisa toda era fascinante.

Depois duma história sobre o quanto era divertido observar a ação da Entropia, começou a falar das coisas que fazia e faz pra interagir com as formas de vida espalhadas pelo Universo. Quando os primeiros seres inteligentes começaram a surgir, ainda com formas de comunicação rudimentares, resolveu pregar uma grande pegadinha em todo mundo. O resultado foi a invenção de todos os outros deuses de todas as formas de vida do Universo só pra ver como a galera ia reagir, e saiu por aí distribuindo religiões cada vez mais aleatórias pela Existência. Um incrível golpe de fanfarronice.

Contou também que ele e a Morte, em certo ponto da Existência, iam começar a fazer visitas pra todo mundo no Universo, só de curtição, e inclusive “hoje” tinham combinado de encontrar um carinha que ia comemorar o próprio aniversário num boteco meia boca. Pareceu divertido. Deus me deu um tapão nas costas, se despediu e disse que, se precisasse de qualquer coisa, podia falar diretamente com ele. No fim das contas percebi que ele não tinha prestado atenção em uma única palavra que eu disse no início do nosso encontro, e minhas angústias e resignação permaneceram. Bom, quem mandou morrer, né? Acho que vou jogar mahjong.

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André Rodrigues Soares

Cozinheiro em recuperação, especializado em História da Alimentação, Cozinha Brasileira e Docência, pseudo-escritor e apresentador do podcast Cinemasso.