Terra da Gente

Por Luciano Lima*, Terra da Gente


Quantas expressões do nosso dia a dia têm origem em algo que acontece na natureza? Sem dúvida, muitas! E hoje a coluna "Histórias Naturais" te apresenta a surpreendente explicação de uma delas.

Cavalo foi registrado nas Colinas de Golã, a Síria — Foto: Jack Guez/AFP

Você certamente já ouviu a expressão "cavalo dado não olha os dentes". Uma recomendação para não reclamarmos ou sermos muito exigentes quando ganhamos algo ou recebemos um favor. O provérbio é antigo, uma tradução direta de uma expressão que já existia em latim e que já é mencionada nos escritos de São Jerônimo por volta do ano 400. Mas se a origem linguística do "cavalo dado não se olha os dentes" tem mais de 1600 anos, sua origem biológica é uma história ainda mais antiga.

Imagine um bando de cavalos correndo. Mesmo sem eu ter mencionado a palavra "campo", você provavelmente imaginou os cavalos cavalgando por um enorme gramado. Isso não é por acaso, as gramíneas, grupo de plantas do qual fazem parte as "gramas" e outros vegetais, geralmente com caule oco e pouco desenvolvido e folhas "esticadas", como o trigo, o bambu e o milho, forjaram boa parte da morfologia dos cavalos e outras espécies de mamíferos herbívoros.

As gramíneas (família Poaceae) são um dos grupos vegetais mais bem sucedidos. Com cerca de 12 mil espécies, número maior que total de aves conhecidas, elas estão entre as cinco famílias vegetais com maior número de espécies. Entre as diversas características incríveis dessas plantas, gostaria de destacar uma aqui, sua capacidade de ocupar ambientes geralmente extremos para outras plantas, com pouca água e grande quantidade de sol.

Histórias Naturais é a coluna semanal do biólogo Luciano Lima no Terra da Gente — Foto: Arte/TG

Vou poupar a nobre leitora ou leitor de um mergulho nas células das plantas para entender a fotossíntese, mas o que importa aqui é que as gramíneas formam um dos grupos de plantas que inventou um jeito de fazer fotossíntese com maior economia de água (se você quiser se aprofundar no assunto procure por "plantas c4"). Isso, somado a outras características como alta taxa de reprodução, permitiu não apenas que elas ocupassem com sucesso ambientes hostis para a maioria das plantas, mas que criassem novos biomas, como campos e savanas.

Savanas são ecossistemas caracterizados pela presença predominante de plantas de porte herbáceo e arbustivo, a grande maioria delas gramíneas. Se, como exemplo e por associação, você lembrou das savanas africanas, você está corretíssimo. Mas existem savanas em vários outros lugares incluindo aqui, no país que é "gigante pela própria natureza". O Cerrado não apenas é uma das maiores savanas do mundo, mas a savana mais rica em biodiversidade.

Savanas localizadas em Alter do Chão, no oeste do Pará — Foto: Divulgação/Ufopa

Mas depois desse breve passeio pelas savanas e campos, voltemos aos animais que as habitam, ou, primeiro, aos que não as habitaram. Embora existam registros fósseis de gramíneas desde o final do Cretáceo, cerca de 100 milhões de anos atrás, período que os dinossauros ainda reinavam na Terra , foi apenas há cerca 30 milhões de anos - bem depois que os dinossauros saíram de cena - que as gramíneas se tornaram abundantes e "inventaram" os campos e savanas. Ou seja, se você já viu alguma ilustração de dinossauros herbívoros pastando em algo que pareça uma savana, faça a gentileza de avisar o autor que está errado.

Se os dinossauros não tiveram a chance de conhecer as savanas, muito mamíferos, que ocuparam o papel de grandes herbívoros após a extinção da maioria dos dinossauros (lembrando que as aves são dinossauros e não estão extintas), se adaptaram para explorar essa fonte de alimento praticamente inesgotável. Cavalos e outros grandes mamíferos herbívoros que habitam ambientes cobertos por gramíneas vivem literalmente em cima da comida, tal qual um youtuber que para chamar atenção mergulha em uma banheira de chocolate ou algum outro tipo de comida suculenta.

Dentes alongados de cavalo são resultado da evolução dos mamíferos — Foto: Wagner Souza e Silva / Museum of Veterinary Anatomy FMVZ USP

Mas nem sempre foi assim. Apesar da abundância, as gramíneas são uma comida difícil de comer. Diferentes de frutas e flores, as folhas das gramíneas são muito abrasivas. Além de serem extremamente fibrosas, elas possuem estruturas de sílica microscópicas, como se fosse pequeninos grãos de areia que auxiliam na estruturação da planta. Se não bastasse isso, geralmente as gramíneas estão bem próximas do solo o que faz com que, ao ingeri-las, animais herbívoros acabem consumindo grandes quantidades de detritos.

Os "grãos de areia" internos das folhas das gramíneas e os detritos do solo acabam desgastando muito os dentes dos animais conforme eles se alimentam. Em média os mamíferos herbívoros perdem 3 mm de dente por ano. Parece pouco? Nossos molares tem cerca de 10 mm acima das nossas gengivas. Ou seja, se nós nos alimentássemos apenas gramíneas com, pouco mais de três anos de idade estaríamos banguelas, simples assim.

Para entender como muitos mamíferos herbívoros lidaram com o contraste de um alimento farto, mas difícil de comer, basta olharmos os dentes dos cavalos. Ao longo de sua evolução, os cavalos e outros grupos de mamíferos como veados e vacas, inventaram independentemente a hipsodontia. Não se assuste com o termo técnico, esse é apenas nome pomposo para descrever algo muito simples: dentes muito altos.

Ao longo de sua evolução, os cavalos e outros grupos de mamíferos desenvolveram dentes 'altos' — Foto: TV TEM

A invenção de dentes altos, que acabam resistindo muito tempo mesmo sofrendo abrasão contínua, é algo aparentemente simples, mas que abriu um novo mundo de possibilidade para diversos grupos de mamíferos herbívoros. No caso dos cavalos, a capacidade de se alimentar de gramíneas fez com que eles passassem mais tempo em ambientes abertos, permitindo que eles aumentassem de tamanho e perdessem a maior parte dos seus dedos. Aliás, você sabia que os cavalos caminham em cima de um só dedo? Mas essa história fica para outro "Histórias Naturais".

Seja um presente ou não, se você ver um cavalo por aí, ignore o provérbio! Olhe bem para os dentes dele e admire uma invenção simples, mas muito elegante, da evolução dos mamíferos.

*Luciano Lima é biólogo e faz parte da equipe do Terra da Gente

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