(memória libertária) A história do «A» anarquista


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O «A» anarquista: nascido em Paris e potenciado em Milão, milhares de mãos criaram-no nas ruas de todo o mundo.

Tomás IBÁÑEZ

Passaram já muito anos desde que Michel Foucault nos fez ver a quanta facilidade que temos em acreditar que muitas das coisas que configuram hoje a nossa sensibilidade, ou seja, os conceitos, as crenças, as vivências, os símbolos, etc., que nos são mais familiares, existem praticamente desde sempre e, mais ainda, não podiam ter deixado de existir… uma vez que, simplesmente… existem. Contudo, apesar dos esforços de Foucault, continuamos a cair no mesmo erro com incorrigível frequência, e o caso do «A» é um bom exemplo.

De facto, o vínculo através do qual o «A» simboliza hoje o anarquismo é tão intenso e está tão profundamente sedimentado no imaginário político contemporâneo que quase adquiriu um caracter de naturalidade. O anarquismo e o «A» evocam-se mutuamente com tal naturalidade, e de maneira tão universal, que parecem ter nascido com origem no mesmo processo e terem caminhado juntos desde então. Mas, sabemos bem que isto não é assim, e que, como disse Foucault a propósito do homem, trata-se de uma invenção bem recente, só que no caso do «A» é tão recente que a memória individual ainda consegue recordar com facilidade como é que aconteceu.

Na verdade não estava nas minhas intenções falar deste assunto, mas como já se publicaram vários textos sobre a história do «A», e como o meu nome veio à baila nalguns deles, pensei que, mais tarde ou mais cedo, teria que dizer alguma coisa e assim porque não dizê-lo precisamente num mês de Abril, já que foi nesse mês que se criou o «A».

Mas, entendamo-nos, ninguém pode colocar uma data e dizer que foi aqui a primeira vez que se desenhou um círculo em torno dum A. Sem dúvida que milhares de crianças fizeram-no, aprendendo a brincar com as letras e pode ser que algum criador de gado tenha marcado as suas cabeças com um «A», porque essa era uma inicial do seu apelido. Do que se trata aqui é, precisamente, da construção de um símbolo, não da originalidade de um desenho e, para ser mais precisos, da construção totalmente deliberada de um símbolo que pudesse servir como sinal de identidade especificamente anarquista e isto, sim, tem uma data precisa, um determinado lugar e umas circunstâncias bem concretas.

aTão pouco foi uma ideia brilhante surgida de repente e porque sim, a partir da imaginação de uma mente individual, mas foi o produto de circunstâncias bem definidas, fruto de um contexto particular e o resultado de um determinado processo. Portanto, convém relatar com um detalhe suficiente estas condicionantes se queremos perceber o como, o quando e o porquê daquilo que aqui nos ocupa.

Por isso, sigamos adiante com a história vivida do nascimento do «A», ainda que isso nos obrigue a recuar o olhar e a retrocedermos umas quatro décadas.

De Marselha, onde militava no grupo dos Jovens Libertários (Jeunes Libertaires), mudei-me para Paris em Setembro de 1963, para me matricular na Universidade da Sorbonne. Quando cheguei à capital gaulesa integrei-me num grupo local dos Jeunes Libertaires, ssim como num dos grupos da Federação Anarquista e comecei a colaborar, mais intensamente do que fazia em Marselha, com a Federação Ibérica de Juventudes Libertárias (FIJL), que acabava de ser ilegalizada em França.

Uma das coisas que me surpreendeu de imediato foi a extraordinária fragmentação do movimento anarquista parisiense e o pronunciado sectarismo que existia no seu seio. Na verdade, ainda que o movimento fosse bastante reduzido numericamente estava dividido num mosaico de organizações e grupos isolados uns dos outros, quando não directamente em confronto entre si, imerso naquilo que, mais tarde e ironicamente, chamaríamos de “guerra de capelinhas”. Esta particularidade parisiense tornava-se ainda mais evidente para um recém-chegado da “província” já que, fora de Paris, era costume um qualquer grupo libertário difundir, com toda a naturalidade, a imprensa e as revistas editadas pelas diferentes correntes anarquistas. Frente a esta fragmentação e a este ostracismo, a minha reacção foi, por um lado, filiar-me e militar simultaneamente numa pluralidade de grupos libertários e, por outro lado, impulsionar a criação de espaços de confluência e de colaboração entre os jovens anarquistas radicados nos distintos grupos acratas.

Como, ao chegar a Paris, um dos meus projectos consistia em desenvolver actividade libertária no seio da universidade, comecei a procurar estudantes anarquistas, mas para minha surpresa, só consegui por-me em contacto com «outro» estudante, «o outro estudante anarquista», como diziam ironicamente os nossos amigos trotskistas. Esse companheiro fazia parte do grupo que editava a revista “Noir et Rouge” e com ele decidimos criar em Outubro de 1963 a Ligação dos Estudantes Anarquistas (LEA). Essa agrupação, esquelética nos seus inícios, iria crescer paulatinamente até desempenhar, poucos anos mais tarde, um papel significativo na emergência do Maio de 68, através da constituição do Movimento de 22 de Março na Universidade de Nanterre. Mas essa é outra história e o único que é preciso realçar aqui é que a LEA foi aglutinando a pouco e pouco jovens que pertenciam a distintos grupos, propiciando que se fossem esfumando divergências graças ao labor conjunto que desenvolvíamos no meio unsiversitário.

Nesse mesmo mês de Outubro de 1963, com alguns poucos companheiros, lançámos o Comité de Ligação dos Jovens Anarquistas (CLJA), cuja finalidade explícita consistia em pôr em contacto e impulsionar actividades conjuntas dos jovens anarquistas que militavam nos distintos grupos e organizações da região parisiense.

O êxito desta iniciativa foi apelativo. Na assembleia de Dezembro de 1963 juntaram-se cerca de 40 jovens, representando praticamente tood o arco do anarquismo parisiense. Ainda que algumas assembleias tenham sido bastante menos concorridas, noutras ultrapassaram-se os sessenta participantes, o que considerando os efectivos numéricos do anarquismo em Paris nessa época, era mais do que uma esperança. A direcção de contacto do CLJA era M. Marc. 24 rue Ste. Marthe, o local da Federação Local da CNT-E de Paris, exactamente a mesma que para Action Libertaire, o jornal elaborado conjuntamente pela ilegalizada FIJL, que o financiava, e pelo CLJA.

Na sua curta vida (o CLJA extinguir-se-á de facto em 1968) esta instância de coordenação dos jovens anarquistas desenvolveu uma intensa actividade ajudando a quebrar a incomunicação e o ostracismo que existiam entre os grupos anarquistas. Depois do êxito alcançado em Paris, o CLJA procurou estender o seu raio de acção a todo o território francês, e não tardou em galvanizar-se, em conjunto com a FIJL e com os jovens libertários de Milão, na criação de um espaço que permitisse aglutinar a juventude anarquista a nível europeu, assumindo a organização do Primeiro Encontro Europeu de Jovens Anarquistas, que se realizou em Paris, nos dias 16 e 17 de Abril de 1966 e que contou com a participação de jovens provenientes de sete países.

A forte dinâmica iniciada em Outubro de 1963 para aglutinar as diferentes componentes do arco anarquista parisiense, através da criação de espaços de confluência, tais como a LEA e o CLJA, pretendia fazer aflorar o que partilhavam e o que tinham em comum as distintas variantes do movimento anarquista, por cima de diferença que, por vezes, eram substanciais, mas em muitos casos apenas tinham a ver com personalismos ou conflitos antigos que, com o passar do tempo, se tinham enquistado.

Foi essa mesma dinâmica que abriu directamente as portas a uma sugestão que fiz no seio do grupo de Jovens Libertários de  Paris, em finais de 1963 ou princípios de 1964.

A ideia era simples e tratava de se encontrar um sinal distintivo, um logotipo se se quiser, que todos os grupos anarquistas pudessem usar nas suas manifestações de propaganda, de maneira a que, sem alterar a identidade e a especificidade de cada grupo, fosse uma referência comum, susceptível de multiplicar, ainda que fosse apenas pela simples repetição de um mesmo estímulo visual, o impacto da propaganda anarquista. As exigências era que esse símbolo fosse simples e rápido de pintar nas paredes e que não estivesse associado a nenhuma organização ou grupo em concreto.

A sugestão foi bem acolhida e depois de lhe dedicarmos bastantes horas de discussão no exíguo apartamento de Clignancourt, onde nos reuníamos habitualmente, ocorreu-nos a ideia de um A dentro dum círculo. René Darras, um companheiro do grupo, conhecedor de desenho gráfico, encarregou-se do desenho, e eu redigi grande parte do texto que qme se explicavam os objectivos da nossa proposta e pubicámo-lo na primeira página do número 48 (Abril de 1964), do Boletim dos Jovens Libertários, com o título: Porquê A?, na qual o desenho do «A» ocupava toda  o primeiro plano.

A apresentação dizia literalmente o seguinte:

“Porquê esta sigla que propomos ao conjunto do movimento anarquista…? Guiaram-nos duas motivações principais: primeiro, facilitar e tornar mais eficazes as actividades práticas de inscrição nas paredes… e em segundo lugar assegurar uma maior presença do movimento anarquista… mediante um elemento comum que acompanhe todas as expressões do anarquismo nas suas manifestações públicas… Trata-se para nós de escolher um símbolo suficientemente geral para poder ser adoptado por todos os anarquistas… Associando constantemente […este símbolo…] à palavra anarquista acabará por evocar, só por si, a ideia do anarquismo na cabeça das pessoas.”

Isto foi exactamente o que aconteceu, mas ainda tivemosque esperar alguns anos para que o efeito que queríamos se concretizasse.

Com efeito, durante as semanas seguintes levámos a nossa proposta aos distintos fóruns do movimento juvenil libertário, especialmente ao CLJA. A sugestão não foi recusada, mas tão pouco conseguiu despertar algum entusiasmo especial, provavelmente porque a proposta provinha de um grupo em concreto e não da própria assembleia do CLJA. Pelo que, durante algum tempo, o pequeno grupo parisiense dos Jovens Libertários foi praticamente o único que utilizou o «A», o que, verdade seja dita, não lhe conferia uma grande visibilidade.

Poucos meses mais tarde, Salvador Gurucharri tomou a iniciativa de fazer que figurasse no título de um dos meus artigos («Perspectivas Anarquistas»), publicado no Action Libertaire (número 4, dezembro de 1964), o logotipo que tínhamos lançado, mas sem reproduzir, desta vez, nem o seu significado, nem os objectivos que se pretendiam. O facto de que a FIJL e o CLJA difundiam massivamente Action Libertaire poderia ter propiciado a difusão do símbolo, mas não foi isto que sucedeu, provavelmente porque desligada do seu contexto argumentativo o «A» ficava, para os leitores, como uma simples originalidade tipográfica.

Não foi senão a partir do Primeiro Encontro Europeu de Jovens Anarquistas, em Abril de 1966, quando os jovens anarquistas do grupo de Milão retomaram por sua conta a proposta e começaram a utilizar sistematicamente o «A» em toda a sua propaganda, dando-lhe, desta vez sim, o impulso que lhe faltava para se generalizar.

O resto fá-lo-iam as milhares de mãos anónimas que literalmente se apropriaram, e felizmente, da autoria do «A» e que foram transformando em realidade o que o nosso texto de Abril de 1964 só colocava como um objectivo. O «A» nunca teria conseguido adquirir o significado que hoje tem se tivesse ficado associado a um grupo em particular. Mas, sobretudo, fica claro, ou pelo menos assim o espero que, pela sua origem, a história do «A» inscreve-se muito directamente na vontade de pôr fim aos sectarismos e aos dogmatismo que afligem endemicamente o movimento anarquista. E é muito precisamente esta vertente do «A» que me parece importante fazer ressaltar através destas linhas.

Publicado en Polémica, n.º 85, julio 2005

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2 comments

    1. Consideremos, pois, que houve (pelos menos) dois momentos no aparecimento do A como simbolo do anarquismo. Um, apenas gráfico, num simbolo da AIT (Espanha) por volta de 1860. E um posterior, cem anos depois, mais identitário, protagonizado primeiro pelos estudantes franceses, espanhóis e italianos que se estendeu a todo o mundo e está hoje nas paredes de quase todas as cidades. Desta riqueza também é feito o anarquismo.

      r,

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