Jorge Palma é uma estrela do rock, calções, chinelos, casaco de ganga, cabelo desalinhado, cigarro ao canto da boca. Um puto de 73 anos que já aprendeu a ser homem, mas continua um puto, a sorrir à vida e a todos os que passam por ele e o cumprimentam. Uma estrela do rock que não se porta como uma estrela do rock. Tem a simplicidade e a generosidade dos grandes.

No dia em que nos encontramos com ele, no Jardim das Amoreiras, em Lisboa, para a entrevista, os The Rolling Stones lançavam em Londres o novo álbum. “Hoje sou eu e os Stones”, diz ele a certa altura. “18 anos depois lançaram um novo álbum. Demoraram mais tempo que eu.”

Demoraram. Vida, de Jorge Palma, foi lançado este ano, depois de um intervalo de 12 anos. Antes e depois a estrada, sempre a estrada, com concertos de norte a sul do país, mas sempre com regresso marcado a Lisboa, cidade mãe.

A 19 e 20 de outubro volta a tocar em casa, no Teatro Tivoli BBVA e em novembro regressa à estrada: Casa da Música Francisco Alves Gato, em Mafra, dia 8; Theatro Circo de Braga, a 17; e Fórum Cultural de Ermesinde, a 18.

Antes disso, desafiámo-lo para uma entrevista sobre Lisboa. Jorge Palma respondeu com a vida e as canções. Está tudo ligado.

O Jardim das Amoreiras é um dos lugares de Jorge Palma, que vive ali perto. Foto: Inês Leote

És um rapaz de Lisboa?

Nascido e criado, na freguesia da Penha de França, rua Sebastião Saraiva Lima, número 7. Nessa rua quase não havia automóveis. Nasci em 1950. Jogava-se à bola na rua, se bem que a minha mãe não gostava muito que eu me desse com os meninos da rua, como ela lhes chamava. Mas cresci com vizinhos excelentes, grandes amigos, com a minha madrinha, que era a melhor amiga da minha mãe, a morar em frente. A rua era estreita, eu morava no terceiro andar, ela morava no primeiro, dizíamos muito adeus à janela.

Foi uma infância bonita, feliz. Solitária, porque eu não tenho irmãos, mas com boas recordações.

Tinha um piano.

Quais eram os teus lugares?

Primeiro, é preciso contextualizar a minha existência.

Quando nasci, os meus pais já estavam separados. Feitios completamente incompatíveis. Aprendi muito com ambos. A minha mãe tinha sido criada como as meninas antigas de bem, mas era uma mulher para a frente. Os meus avós tinham uma casa na Costa ou na Trafaria, não sei, e a minha mãe fazia remo e vela, andava de bicicleta, usava calças. Mas as mulheres não eram educadas para trabalhar. Quando eu nasci, o meu pai já não estava no dia a dia e a minha mãe teve de arranjar um emprego, como secretária, depois contabilista e passava muito tempo fora de casa. Eu ficava com a minha madrinha e os meus vizinhos de baixo, muito católicos, que eram como família. Ele era catequista na igreja de Arroios, grande amigo, gajo porreiro, e eu ia com ele.

Tu, na igreja?

Batizado, catequese, primeira comunhão, crisma. Mas isto a propósito dos lugares. A minha madrinha, os meus vizinhos e a família do lado da minha mãe, tios e primos, que não moravam longe, ajudaram a minha mãe a cuidar de mim. A tia Geni, tia da minha mãe, também. Toda essa gente me levava a passear.

Fonte Luminosa, piqueniques aos fins de semana, eu sei lá. Na altura, ainda não havia os Jardins da Gulbenkian. E depois o Lisboa Ginásio, na Penha de França, porque a minha mãe fez questão que eu andasse na ginástica e no piano, quando era miúdo. E teve a ajuda dessas pessoas que me levavam e traziam do ginásio e das lições de piano.

Começaste a tocar piano aos quatro anos, não foi?

Tinha um piano desde que nasci, era o meu brinquedo. Tinha bom ouvido e as coisas que ouvia na rádio e no gira-discos reproduzia no piano. Tinha jeito para aquilo e as pessoas repararam, a começar pela minha mãe, que também tinha estudado piano. Daí ter-me posto a estudar aos seis anos.

Tive uma excelente professora, a professora Fernanda Chichorro, na 5 de Outubro. Deu-me aulas até eu começar a indisciplinar, aos 14, e a virar-me para o rock. Mas tinha eu 33 anos, já depois de andar a tocar pela Europa, a pedir quelque chose por la musique, e a ganhar muito calo – isso foi uma experiência muito boa, tocar na rua -, ela voltou a receber-me e foi ela que me preparou depois para entrar para o Conservatório.

Isso foi muito depois. Antes, andaste no liceu Camões. Como era naquela época?

Fui muito atinadinho e bom aluno até ir para o liceu. Vinha com boa classificação da primária e por isso fui para a turma A. No segundo ano, já me puseram na turma F. Mas na turma A tive como professor o Vergílio Ferreira. O gajo sempre com um ar muita chateado de dar aulas de português a putos de 10 anos. Para nós, o gajo era um chato.

E em vez de apreciares o Vergílio Ferreira, foi no Camões que te juntaste aos bad boys.

Comecei a dar-me com os mais velhos, os mais malandros, os maus da fita, que fumavam e bebiam as suas cervejolas e essa convivência despertou em mim o desejo de, com 12, 13 anos, também experimentar fumar e beber para ser como os adultos. Era de homem.

E quando é que começaste a sair à noite?

Aos 14, comecei a dar umas escapadelas, sobretudo para um café que existia na Almirante Reis, que era o Café Império, que tinha bilhar e snooker. Mas de dia, na esquina do liceu Camões, havia uma tasca que tinha uma jukebox com singles dos Beatles e dos Stones e mais alguns e eu comecei a ouvir aquilo e pensei: “é isto que eu quero”.

Fugi dos salões de veludo do Chopin, mandei tudo às urtigas, a música clássica, as aulas de piano, a ginástica e chumbei no quarto ano do liceu. Comecei a ser tão indisciplinado que a minha mãe já não tinha mão em mim e mandou-me para um colégio interno, severo, nas Mouriscas, ao pé de Abrantes, com o professor Santana Maia, onde fiz o quinto ano da altura e ainda frequentei o sétimo – mas depois também me baldei ao colégio e acabei por fazer a admissão à faculdade um ano depois.

Foto: Inês Leote

Aos 17 “fugiste” para o Algarve para tocar em bares até o teu pai te ir lá buscar.

Aos 17 anos, fui viver com o meu pai, finalmente. Foi um pai ausente. Portanto, quando entrei para a faculdade estava a viver com o meu pai e com a minha madrasta, que é uma querida, um amor. Vive no Brasil.

O teu pai também vivia em Lisboa?

O meu pai era um cavaleiro andante, um boémio, um grande jogador de poker. Vinha buscar-me irregularmente. Não havia aquela coisa semanal ou quinzenal. Quando estava em Lisboa e estava nessa, telefonava-me e ia-me buscar. Sempre a guiar e a cantar, o gajo cantava muito bem. Foi com ele que aprendi os boleros e os tangos e as canções do Tony de Matos. Era um companheiro divertidíssimo. A minha mãe tinha de ser severa e disciplinada. Era o oposto. Quando o meu pai vinha buscar-me, eu ficava nas nuvens. Já sabia: comprava-me os gelados que eu quisesse e, mais tarde, quando eu já tinha 14 anos, uma cerveja ou outra. Eu já fumava. Comecei a fazê-lo à vista da minha mãe e depois do meu pai também.

Sais ao teu pai?

Acho que tenho muito do meu pai, sim, no meu hedonismo, na minha maneira de saborear a vida. A minha mãe também saboreava, mas… de outra maneira. Uma maneira muito mais organizada, não havia muito dinheiro. O meu pai durante a vida toda teve momentos em que tinha mesmo muito dinheiro. Foi ele que me pôs a tirar a carta. Antes de ter a carta, espatifei-me com um carro dele, que fui guiar às escondidas. E o gajo, em vez de me dar uma chapada, disse: “vais tirar a carta”. Nessa altura ele tinha um carro desportivo, lotus qualquer coisa, vermelho. Eu andava quase sempre com esse carro. Menino de 19, 20 anos.

Mas, quando eu fiz o sétimo ano de liceu e entrei para a Faculdade de Ciências, os meus pais, a minha família e toda a gente achavam que eu ia ser engenheiro. Andei dois anos na Faculdade de Ciências e depois, naturalmente, desisti.

E foste fazer o quê?

Isso coincidiu com a fase da minha banda Sindicato, que começou por ser um quinteto de heavy metal e hard rock e depois decidimos virar para o jazz-rock e é aí que entram o Rão Kyao e o Rui Cardoso, que vinham do Hot, e um trompetista e um trombonista, das bandas da marinha e da aviação, que tinham menos swing, mas fizeram um bom trabalho. Tive bandas, fiz parte de bandas e procurei sempre os mais velhos, para aprender com eles. Na guitarra sou autodidata, tenho aprendido com os amigos, mas mesmo quando comecei a escrever canções, procurei sempre a companhia dos mais velhos e dos melhores.

Como o José Carlos Ary dos Santos. Como era a Lisboa boémia dos anos 1970, antes do 25 de Abril?

Não tem nada a ver. Nunca fui saudosista, mas sinto ternura pela Lisboa dos anos 1950, 60, 70. Frequentei sítios muito bonitos.

O café Vavá, um lugar de tertúlia para cineastas, escritores, pintores, músicos. Foi lá que o Fernando Tordo me deu o telefone do José Carlos Ary dos Santos. O Vavá ainda existe, mas não tem nada a ver com o que era. Também parava muito no Botequim, da Natália Correia, já na fase em que andava sempre com o José Carlos Ary dos Santos e outros, o Sttau Monteiro, a própria Natália Correia. Conheci gente muito interessante. Depois veio o Jota Pimenta, as construções…

E a tropa, quando desististe da faculdade.

Quando estava na faculdade, tinha direito a adiamento da tropa, mas já sabia que se chumbasse ou desistisse tinha que ir, o que significava dois anos cá e dois anos na guerra. Em 1973, conheço um encenador dinamarquês e a mulher, grande amiga minha até hoje, que me disseram que tinha uma casa à disposição em Copenhaga. Portanto, 15 dias antes de ter de entrar na tropa, apanhei um avião via Londres, ainda passei uns dias em Londres, para ir ter com estes meus amigos a Copenhaga, onde tive asilo, não propriamente político, porque não era muito politizado na altura (nem sou hoje, quer dizer, sou de esquerda, por natureza).

Portanto, quando se dá o 25 de Abril, estás em Copenhaga.

E percebo que está a acontecer qualquer coisa aqui através da BBC. Não percebi logo o que era. Comecei a telefonar a amigos meus, ao Ary e outros, para saber o que é que se passava e percebi que isto estava a ser uma grande festa.

Mas não vieste logo para a festa.

Não, não voltei a correr, cheguei mais tarde. O José Mário Branco ou o Sérgio Godinho, por exemplo, vieram logo. Eu levei o meu tempo, ainda passei uns dias em Londres e por aí, mas disse “muito obrigado, amigos dinamarqueses, e tchau, vou lá ver como é que é”.

Cheguei em junho, por aí, e foi de facto uma festa. Ver Portugal com manifestações e comícios, sem levar porrada da GNR. Comecei a participar nos cantos livres, na Voz do Operário, com os meus companheiros, o Sérgio, o Fausto, o Zeca Afonso.

Já tinha conhecido o Zeca antes do 25 de Abril, mas mal. Éramos amigos, mas não tivemos muito tempo, porque ele morreu. Ainda chegou a convidar-me para ir a Azeitão, beber um copo de vinho feito por ele, vinho novo. E pronto, depois…

Depois fizeste-te outra vez à estrada e andaste a tocar no metro, em Paris…

Isso é posterior.

Foto: Inês Leote

Mas porque é que nunca fizeste isso cá, em Lisboa?

Mas eu fiz, os meus amigos dizem isso. Com uma guitarra num jardim, às vezes juntava outras pessoas, além dos amigos, mas não ia passar o chapéu para receber dinheiro. Era só pelo gozo. Isso de tocar no metro e na rua foi uma experiência do caraças, mas foi depois.

Quando voltei da Dinamarca, o meu objetivo era gravar um álbum que tinha construído lá e que veio a ser o meu primeiro álbum, em 1975 – Com Uma Viagem na Palma da Mão – muito influenciado pelo rock sinfónico, mas em português. Eu tinha escrito aquilo em inglês para eventualmente gravar na Dinamarca ou em Inglaterra. Sonhos, não é? Mas depois andei por aí a experimentar coisas novas, tipo ácidos.

Anos 70, sexo, drogas e rock&roll…

A partir de 1974, começou a chegar cá, das colónias, erva da boa, mas, entretanto, meti-me nas drogas duras. Felizmente durou só uns meses e precisava me libertar do grupo que consumia, pegar na guitarra e ir por aí. Portanto, lá fui construindo o meu segundo álbum, o ‘Té Já, porque sabia que queria deixar aquele disco que tinha gravado, mas queria ir conhecer mundo, sentia mesmo necessidade de bazar daqui, naquela on the road, já tinha lido o Kerouac e o Ginsberg, e no verão de 1977 fiz-me à estrada. Comecei por Espanha.

E quando é que chegaste a Paris?

Na passagem ano de 1977 para 1978, fui convidado para ir tocar a Paris para acompanhar cantores portugueses numa sala tipo Olympia, já não me lembro qual. O concerto não aconteceu porque houve um boicote, os bancos, que iam pagar ao pessoal, queriam pagar menos, enfim.

Na passagem de ano estava com uma guitarra emprestada pela Marie Myriam, que tinha sido a primeira guitarra dela e que eu a convenci a emprestar-me, perto da meia-noite, à porta da estação de metro de Opéra, e vejo dois gajos, um com uma guitarra, malaico, e um, que não tinha guitarra, mas era quem passava o chapéu no metro, dentro das carruagens.

Eles perguntaram-me: “Hey, you wanna make some money?” e eu disse: “Yes”. E, entre as onze e a meia-noite daquela passagem de ano, a gente fez imenso dinheiro, a dividir pelos três. Eles deram-me indicações de um café que se tornou importantíssimo para mim em Paris, o Mazet, em pleno Quartier Latin, que era onde paravam os músicos de rua. O resto do pessoal voltou para Portugal e eu fiquei em Paris.

Ficaste lá quanto tempo?

Dois anos para aí. Depois já tinha canções para um novo álbum, o terceiro, e vim cá em 79. Depois voltei ainda um ano para a França. Chamava-se Qualquer Coisa Pá Música. Gravei em 1979, mas saiu em 1980 e foi completamente arrasado, esmigalhado, pelo álbum do Rui Veloso, o Ar de Rock. Pronto, ninguém ouviu o meu disco, nem os outros, rock português, com licença.

Os anos 1980 foram uma década de viragem para a cidade de Lisboa e marcaram a tua carreira – Asas e Penas, O Lado Errado da Noite, O Bairro do Amor. Como é que a cidade te inspira?

Sou um bicho urbano, os anos no colégio puseram-me em contacto com a cultura rural, com as aves e os bichos, mas sou, essencialmente, um gajo da cidade. Tenho escrito muito em comboios e até em aviões, mas sobretudo em comboios. E em barcos. Fiz algumas viagens de barco, grandes, com a minha mãe e o meu padrasto, em miúdo, e depois já em idade adulta. Fui à Rússia de barco, no navio Funchal em que eu toquei e viajei milhares de vezes, por todo o lado.

Gosto de escrever em esplanadas. Se estivesse aqui [na esplanada do quiosque do Jardim das Amoreiras] sozinho e estivesse nessa, escrevia. Ando sempre com a mochila, tenho papel e caneta e tenho aqui o dictafone, portanto, qualquer ideia que tenha, qualquer coisa curiosa, qualquer história que me lembre, qualquer coisa que imagine, pode vir de um noticiário, de uma notícia do jornal, de qualquer coisa, e aí, se acho que dá para desenvolver, se me apetece desenvolver, aí trabalho.

Mas nos anos oitenta a noite de Lisboa está muito presente no teu trabalho. O Hot Club, o Frágil.

Nos anos 1980, uma década antes do grande Johnny Guitar [do Zé Pedro e do Kalu, dos Xutos e Pontapés, e do Alex, dos Rádio Macau], a minha noite era no Hot Clube. Foi aí que conheci grandes músicos, não só portugueses e vi grandes sessões. E toquei lá também. O Hot Club fervilhava. O Botequim, ainda a Natália era viva, também.

E o Frágil, que dá o nome a uma das tuas canções mais marcantes?

Estava-me a esquecer do Frágil, pois. Eu saía do Conservatório e encontrava o Manel Reis, no Bairro Alto, claro. Passei muitas noites no Frágil, fartava-me de dançar sozinho. Também havia uma cena em Cascais, o 2001, que frequentei muito, nos anos 70, sobretudo. Dançava para caraças, com uma energia.

O Frágil, na rua da Atalaia, no Bairro Alto, marcou a Lisboa dos anos 1980. Foto do arquivo Frágil/LuxFrágil.

No fim da década de 1980 lanças o Bairro do Amor. Qual é o bairro de Lisboa que dirias que é o bairro do amor?

Já me fizeram essa pergunta não sei quantas vezes. Eu procuro que seja em todo lado. Aquilo nem sequer foi escrito em Lisboa, foi escrito numa casa onde eu vivi, no Guincho. E é uma metáfora. Mas procuro que onde eu estiver seja o Bairro do Amor. Seja aqui, seja no Camboja.

Também tens a Canção de Lisboa. Porque é que é tão triste?

É pesada, pois é. Não sei. Quando fiz esse álbum, que é o Asas e Penas, de 84, já tinha retomado os estudos de piano. Concluí o superior do Conservatório em 1990, já com 40 anos. Portanto, nesse Asas e Penas e na Canção de Lisboa, por exemplo, notam-se já influências clássicas. Eu sempre escrevi as minhas orquestrações. Nota-se essas influências do que eu estava a estudar, Debussy e tal. Na Estrela do Mar, por exemplo, o arranjo que eu fiz é muito impressionista. Do meu repertório, tecnicamente, é das canções mais difíceis de executar ao piano. Mas, pronto, la nave va. Onde é que a gente ia?

Na canção de Lisboa. Mas vamos dar um salto para este teu último álbum de originais, lançado este ano, o Vida. Tens uma canção, que é a Canção de Vida

Que eu escrevi para o Carlos do Carmo, foi escrita para ele. Aí há 20 anos, ele disse-me: “vais escrever-me uma canção, não é um fado, que tu não percebes nada disso, uma canção, à tua maneira, mas para mim”. Eu demorei qualquer coisa como 18 anos. Não sei porquê, por ser para o Carlos do Carmo, talvez. Era uma grande responsabilidade. Até que me sai esta frase – “nascemos tão furiosamente sábios” – e eu digo “espera aí, isto tem pano para mangas”. E rapidamente escrevi o texto e a música.

Combinei com o Carlos e fui a casa dele entregar uma gravação que fiz no estúdio do Rui Veloso, a canção escrita para piano e voz, a partitura, a letra, e tomei um chá com ele, porreiro. Nessa mesma noite, o Carlos ligou-me a dizer “Jorge, isto não é uma letra, isto é um poema”. E pronto, fiquei todo vaidoso. E agora achei que fazia todo o sentido incluir a canção neste álbum.

Mas tu nunca foste muito de fado, pois não?

Até os meus 30 anos, ou seja, até ao final dos anos 1980, não, até um grande amigo meu me levar a ouvir a Aldina Duarte. Fiquei arrasado. Mas, entretanto, já tinha começado a ouvir e a curtir Marceneiro e, na minha infância, gostava muito de um gajo que era o Carlos Ramos, “Não venhas tarde”, com a voz rouca, “Dizes-me tu com carinho/Sem nunca fazer alarde/Do que me pedes, baixinho” [canta]. E da Amália, claro, e do Carlos do Carmo, sempre gostei. Mas não era amante do fado, de facto.

Foto: Inês Leote

Doze anos depois do último álbum de originais, lançaste este Vida. Estás contente?

Sou eu e os Rolling Stones, que hoje [6 de setembro] às duas e meia, em Londres, estavam a transmitir para todo mundo o lançamento do novo álbum de originais, ao fim de 18 anos. Demoraram mais tempo do que eu.

Durante estes anos tenho tido muito trabalho, felizmente, e outras coisas para fazer. Não sentia aquela necessidade de gravar um disco, como senti nos anos 1970 e mesmo nos anos 1980. Tinha concertos quando me apetecia, escrevia, ia escrevendo, de vez em quando, umas coisas, e o André [Sebastião], grande manager e amigo, ajudante de campo e um bocado pai, apesar de ter só 33 anos, é que me andava sempre a dizer que eu tinha que gravar um álbum. “É como se mandasses um postal ao teu público”, dizia ele.

E tu mandaste.

No ano passado, portanto, 2022, no fim da primavera, disse-lhe: “epá, vamos lá fazer isto”. Organizei-me, completei coisas que não estavam completas, modifiquei, trabalhei um bocado, primeiro sozinho, depois com a banda (maravilhosa banda, que me acompanha há uns anitos) e finalmente fomos para estúdio, na Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos – que estão agora semelhantes ao que eram quando eu gravei o primeiro e o segundo álbum.

Jorge Palma gravou “Só” em 1991

O último álbum que gravei lá foi o , piano e voz, em 1991, logo depois de ter terminado o curso de Conservatório, em que estava com os dedos muito ágeis, estava a tocar bem. Não sou a Maria João Pires nem o Mário Laginha, mas houve alturas na vida em que toquei bem e agora não estou a tocar nada mal também.

Também acho que não.

E ando a estudar de vez em quando, quando tenho tempo. A rever coisas do Bach, obviamente, do Liszt, do Beethoven, uma sonata de Beethoven que a minha mãe me disse: “dou-te não sei quanto, quando tocares os três andamentos na sonata”, tinha eu 11 ou 12 anos. E eu para ganhar esse dinheiro, aldrabei a sonata do princípio ao fim.

E ganhaste a massa?

Ganhei a massa, nem sequer tinha dedos para aquilo, mas foi a minha peça de exame, no fim do Curso Geral. E às vezes toco um andamento, por isso é uma peça que anda sempre ali, como o Bach. De vez em quando, gosto de voltar lá, faz bem à cabeça e aos dedos.

Mas, portanto, no ano passado começo a ligar a pessoas e a chamá-las para este disco. É o caso de Júlio Pereira, do Zé Salgueiro, do Rui Reininho, da Manuela Azevedo, velhos companheiros de estrada e de estúdio, como o Mário Delgado, o Carlos Barreto, o Tomás Pimentel. E, quando foi a pandemia, na primeira abertura, fui ver um concerto do Salvador Sobral e ele, no fim do concerto, chamou um gajo para tocar sax. Um puto de 19, 20 anos. Eu ouvi-o e pensei “porra”. É o Tomás Marques, grande músico. Nova geração. Também o chamei.

E, pronto, toda a gente respondeu à chamada e fez-se um disco que é o Vida e que está aí. Eu gosto muito. É o tal postal para o meu público, amigos e família.

Mas, ao contrário do que podia supor-se pelo título, não é nada um álbum de balanço. Dá ideia de alguém que continua a espantar-se com a vida e as plantas na lua.

Ah, sim, Plantas na Lua. Essa é uma daquelas em que o Reininho e a Manuela Azevedo fazem grandes vozes. Vi em rodapé no noticiário qualquer coisa sobre cientistas, solo lunar, micro-nano-plantas e saiu-me o Plantas na Lua. É giro, é uma sátira. Depois há umas canções mais negras, como a Espécie de Altar. E há a que escrevi a pensar nos meus dois filhos, o Vicente e o Francisco, Três Palmas na Mão. Tocam os dois. O Vicente é o mais velho, é o membro mais antigo da minha banda, porque espetei com o gajo em palco há 20 anos. Fez 40 agora. O Francisco tem 28 e também estou a espetar com ele agora em palco. Têm vozes muito fixes, são muito afinados. O Vicente mais piano do que guitarra, o Francisco mais guitarra do que piano. Escrevi o Três Palmas na Mão, que em estúdio fomos nós três a tocar, cada um com a sua guitarra, guitarras e voz. É uma valsinha.

Estás contente, portanto?

Estou muito contente com a Vida. Sou um felizardo. Para já por estar vivo, com as patifarias que tenho feito ao meu corpo. Vamos lá ver se não estrago tudo com o raio do tabaco. O Keith Richards anunciou há uns tempos que tinha largado o tabaco. Se o Keith Richards consegue, eu não hei de conseguir?


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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