Galeto
Mário Gonçalves trabalha no Galeto há 40 anos, quase todos passados no turno da noite, das oito às três e meia. Enciclopédia vida do restaurante e snack-bar e da Lisboa em que nasceu e cresceu, há quem espere só para se sentar no balcão 2, onde ele está todas as noites, com folga ao sábado. Foto: Carlos Menezes

Marcelo Rebelo de Sousa costuma sentar-se no balcão do fundo. Mário Soares ficava sempre no balcão mais perto da entrada. O antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Krus Abecassis, acabava muitas noites aqui, a despacho com o chefe de gabinete, na década de 1980, quando governava a cidade. A ele ficou a dever-se o alargamento do horário do snack-bar até às três e meia da manhã. Quando dirigia O Independente, depois do fecho de manchetes bombásticas, Paulo Portas vinha às vezes ao Galeto para uma última ceia.

O Bife à Galeto, as batatas fritas e o esparregados são alguns dos best-sellers da casa. Foto: Rita Ansone.

De políticos, advogados, jornalistas, artistas (e agora cada vez mais turistas), a prostitutas, proxenetas, dealers, boémios e notívagos em geral, são muitos os lisboetas que começam ou acabam a noite neste snack bar da Avenida da República, desde tempos que parecem imemoriais, mas completaram apenas 57 anos no dia 29 de julho.

Onde mais em Lisboa se pode comer uma Canja de Galinha com miúdos (3,25), uma sopa quente (entre 3,10 e 5,30), um prego (entre 5,50 e 11,20), um Bife à Galeto (17,90) ou até uma Língua de Vaca com Puré (14,50) até às três e meia da manhã?

Já para não falar dos famosos Combinados (entre 6,30 e 9,50), dos Hambúrgueres em Pão Brioche (entre 6,25 e 7,95), do Bife Tártaro (19,90) ou do mítico Banana Split (7,50)? (A carta é extensa e está toda disponível até à hora de fecho, com agravamento de preços a partir das dez da noite). Arriscamos: em mais lugar nenhum.

A noite acaba às três e meia, mas também pode acabar às sete e meia, quando o Galeto volta a abrir portas e o dia está a começar para mortais menos dados à boémia. Durante as quatro horas em que a casa fecha as portas, a laboração não pára. Depois da ceia dos funcionários da noite, entra a limpeza e a preparação do dia seguinte.

Todos os dias do ano, à exceção do 1º de Maio, uma conquista de Abril que se mantém até hoje.

Uma lufada de ar fresco

29 de julho de 1966. Três dias depois da derrota de Portugal frente a Inglaterra, no estádio de Wembley, nas meias-finais do campeonato do mundo de futebol de que o vencedor era anfitrião, e uma semana antes da inauguração da Ponte 25 de Abril, o Galeto abria portas no número 14 da Avenida da República, vizinho da elitista pastelaria Colombo e em frente à reverencial Versailles, que desde os anos 1920 era sinónimo de chique e ponto de encontro da elite lisboeta endinheirada que habitava as Avenidas Novas de então.

Galeto

“Foi inaugurado um restaurante de luxo na Avenida da República. O estabelecimento dispõe de snack-bar, com capacidade para 125 pessoas”, noticiava a 31 de julho de 1966 o Diário de Lisboa, que se congratulava com a abertura do espaço de “linhas moderníssimas”, numa “das artérias mais movimentadas da cidade”, que seria um “contributo notável para o desenvolvimento turístico do país”.

Não poupando nos superlativos, o jornal revelava que as “belíssimas instalações”, “servidas por pessoal competentíssimo”, “importaram numa quantia de cerca de dez mil contos”.

O dobro do que tinha custado construir o prédio todo em que está instalado, conta, de ouvir dizer, Francisco Oliveira, atual proprietário do Galeto. É filho de António Oliveira, um dos seis sócios fundadores, todos emigrantes no Brasil que queriam trazer para Lisboa a Europa e o mundo modernos.

Quase a completar 70 anos, Francisco tinha 13 quando o espaço abriu e estava na festa de inauguração. “Estou ali numa das fotografias do evento, já lhe mostro”, diz ele, que assumiu os destinos da casa em 2016, mas prefere ficar na retaguarda.

“Os seis sócios, entre os quais estava o meu pai, abalançaram-se num projeto bastante ambicioso”, diz. “E foi uma lufada de ar fresco na Lisboa da altura. Teve um impacto enorme na vida da cidade”, acrescenta, com indisfarçável orgulho.

Não é para menos. O pai, de Água Longa, uma aldeia próxima de Santo Tirso, ficou órfão de pai aos 11 anos, idade com que começou a trabalhar nas obras para sustentar mãe e irmã. Aos 24, casado há cinco e já com três filhos, rumou ao Brasil, em busca de melhor vida. A família seguiu dois anos depois.

A vida correu de feição, a solidariedade entre patrícios era outra e do ramo dos transportes evoluiu para o da restauração. “Criaram uma rede de pequenos restaurantes no Rio de Janeiro que correu bem e decidiram expandir para a terra”, conta Francisco Oliveira.

A terra era Portugal, que na altura era Lisboa, o resto era paisagem.

Os arquitetos Vitor Palla e Joaquim Bento d’Almeida, (primeiro e terceiro a contar da esquerda) com os seis sócios, Arlindo Gonçalo, Isidro Moreira, Arlindo de Castro, António Ferreira, Manuel Gaspar e António de Oliveira (o quarto a contar da esquerda), pai de Francisco Oliveira. Arlindo Gonçalo e António de Oliveira foram os dois sócios que se mantiveram mais tempo, acabando este último por se tornar proprietário único do Galeto. Foto: Arquivo pessoal de Francisco Oliveira

Do Brasil trouxeram a ideia do Galeto – que é nome de uma receita italiana de pequenos frangos na brasa, muito popular por lá. E a ambição de abrir a conservadora capital portuguesa à modernidade, elevando a fasquia do emergente snack-bar, ao estilo europeu e norte-americano, à categoria de luxo, evidente na decoração e no design, intocados até hoje, da autoria da dupla de arquitetos Vitor Palla e Joaquim Bento D’Almeida. Mas também no serviço, cuja organização, ao jeito de uma linha de montagem, mantém os mesmos procedimentos e regras desde que abriu.

Um anúncio do Galeto, “bem pertinho do Saldanha”, “com porta em frente à saída do Metro”. Quarenta anos depois, a vantagem tranformou-se temporariamente em problema devido às obras do metropolitano de Lisboa.

O franguinho de churrasco não caiu bem na elite lisboeta, primeira frequentadora do novo spot das Avenidas Novas, mas manteve-se no nome. “De resto, o layout é o mesmo há 57 anos. No restaurante lá em baixo, com capacidade para 78 pessoas, tentou-se criar um ambiente que correspondesse à plaquinha luxo, até com talheres de prata, mas depois foi-se democratizando naturalmente”, diz Francisco.

Com a pandemia, que teve enorme impacto no Galeto, a sala de restaurante deixou de estar aberta todos os dias, servindo apenas para eventos e reservas que justifiquem a sua abertura, mas mantém-se operacional e é possível que venha a reabrir, se o negócio justificar e os recursos humanos permitirem.

O labirinto eficiente

A luz quente, as paredes num preto e dourado acolhedores, os balcões de madeira envernizada que formam uma espécie de labirinto onde se perde apenas quem quer, já que os empregados são os fios de Ariadne que fazem chegar o comensal a bom porto. Os suportes para as quatro cartas, o sal e a pimenta e os molhos, lugar sim, lugar não, e as cadeiras de balcão giratórias.

Tudo desenhado pela mesma dupla de arquitetos que projetou o espaço. São a identidade do Galeto, assim como alguns funcionários, numa casa que tem perto de 130 trabalhadores, mas já teve cerca de 150.

Com um diretor geral, um chefe de operações, chefes de sala, chefes de balcão, empregados de primeira, estagiários, aprendizes, cozinheiros e ajudantes de cozinha, que asseguram a esplanada, o balcão de pastelaria, o bar, a mesa fria e de gelados, o grill, a ilha de cafetaria e a cozinha lá em baixo de onde vêm, de elevador, os pratos quentes, tudo distribuído pela roda e servido nos cinco balcões, o Galeto é uma máquina oleada para que o serviço seja o mais eficiente possível.

“O chefe e os empregados de balcão não precisam de sair do seu posto. Têm tudo ali, pratos, talheres, copos, pão. A comida vai lá ter. A loiça suja é recolhida. A loiça limpa é reposta. O sistema foi todo muito bem pensado”, diz Filipe Ferreira, chefe de operações, na casa há apenas nove meses.

“Os recursos humanos são neste momento o nosso maior desafio. Um estabelecimento como este, com a estrutura e o horário que tem, exige muito pessoal. Com os turnos, cada posição precisa de três pessoas. É uma operação muito complexa”, diz Francisco Oliveira. Como o pai – que até morrer, há 16 anos, com 78, estava todos os dias no Galeto, de manhã à noite – ele sente o peso da “responsabilidade de ter mais de cem famílias que dependem do trabalho aqui”.

O tal “pessoal competentíssimo” de que falava o Diário de Lisboa é uma tradição do Galeto, que ainda tem trabalhadores com 40 anos de casa.

“Temos uma senhora que era empregada no Monte Carlo, um café que havia no antigo Monumental e fechou nos anos 1990. Está cá desde essa altura. O senhor Mário está no Galeto há 40 anos. As pessoas esperam para se sentar no balcão dele”, diz Francisco Oliveira. “Há figuras que são centrais e que fazem parte da identidade da casa. Pergunta-me ‘e quando se reformarem?’ Não faço ideia, espero que apareçam outros que os possam substituir, mas as novas gerações não param muito tempo no mesmo sítio.”

Quem é Mário, aquele que todos procuram?

Quando lhe perguntam há quanto tempo trabalha no Galeto diz que entrou a semana passada, por causa do Passos Coelho, que dizia que não havia empregos para a vida. E se alguém que não é cliente habitual lhe pergunta o nome, responde Zé Carlos, título dos primeiros programas dos Gato Fedorento.

A história de Mário Jorge Gonçalves, 55 anos, chefe de balcão, sportinguista ferrenho e lisboeta de gema, nascido na rua de São Mamede ao Caldas e criado na Calçada de Santana, onde ainda vive, confunde-se com a do Galeto.

O pai era cozinheiro lá e Mário lembra-se de a mãe lhe dar 25 tostões para apanhar o elétrico e ir ter com o pai à saída do trabalho. Às vezes ia comer um bolo e um sumo na Colombo, ali ao lado, que em 1991 deu lugar ao primeiro McDonald’s de Lisboa.

“Quando o McDonald’s abriu em Lisboa, a notícia não foi que tinha aberto, foi que tinha aberto ao lado do Galeto”, lembra-se Mário, que nove anos antes, aos 15, depois de um verão fantástico de música e futebol, em que passou os dias vidrado no Campeonato do Mundo de Espanha, começou a trabalhar no Galeto, tornando-se colega do pai. Era setembro de 1982.

“Era bom porque tinha horário de escola, uma hora de almoço e ganhava 12 contos, o meu primeiro ordenado. A minha tarefa era recolher e repor a loiça”, diz Mário, que dobrou o tempo do pai na casa e por volta dos 20 anos começou a trabalhar de noite, das oito às três e meia.

“No inverno é bom, mas no verão sinto-me roubado, quando me deito já é dia, mas o show must go on, foi esta a vida que eu escolhi, como diz o Tony Carreira (é Tony Carreira, não é?)”.

O Mário fala depressa e faz jus àquele ditado que estipula que as conversas são como as cerejas. Não é fácil acompanhar-lhe o ritmo e cada frase é uma pérola, o que explicará o facto de muitos habitués do Galeto deixarem passar outros à frente para esperar por lugar no balcão 2.

Desporto, política, atualidade, enquanto recolhe pedidos e entrega pratos e bebidas, na azáfama que numa noite o faz percorrer quilómetros de um lado ao outro do balcão, discorre sobre o assunto do momento.

“Não gosto que o mundo me passe ao lado e vou falando com os clientes, sobretudo os já conhecidos. Por exemplo, em noite de eleições é engraçado ver a cara dos derrotados e a dos vencedores, vê-se-lhes nos olhos aquela sede – chegou a nossa vez –, para o bem e para o mal”, diz.

Nestes 40 anos, viu clientes desaparecerem, sobretudo depois da pandemia, “a pandemia foi terrível”. E viu muitos, que vinham crianças, com os pais, crescerem. Essa é uma característica interessante do Galeto, as gerações renovam-se, diz Mário, que acha graça àquelas pessoas que, ainda o restaurante não tinha 40 anos e já diziam que vinham cá há 50.

“O Galeto é um mundo incrível”, diz Mário, fumador de charuto, apreciador de vinhos e enciclopédia viva do restaurante onde trabalha desde que trabalha. Embora tenha feito incursões por outros ramos da restauração e da hotelaria, a servir pequenos-almoços em hotéis e banquetes de casamentos, como o de uma das filhas de Américo Amorim, um dos mais memoráveis.

The show must go on

Mário lembra-se do telefone público, alto e vermelho, que ficava onde está hoje a máquina de tabaco e que foi concorridíssimo até aparecerem os telemóveis. Lembra-se das montras onde hoje estão expostas fotografias comemorativas dos 50 anos do Galeto, que eram alugadas para publicidade a lojas e marcas e para as quais havia listas de espera.

E lembra-se de Krus Abecassis, que chegava sempre quando o restaurante estava quase a fechar, às duas da manhã e comia uma coisa que agora toda a gente come, mas na altura quase ninguém comia, que eram os croquetes.

Francisco Oliveira conta como foi graças a Krus Abecassis, presidente da Câmara Municipal de Lisboa entre 1980 e 1989, que o Galeto alargou o horário até às 3h30. Foto: Rita Ansone.

Foi por influência do antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa que o horário do Galeto foi estendido até às 3h30, confirmam Mário Gonçalves e Francisco Oliveira.

“Na altura, havia muitos restaurantes e cafés abertos até às duas e ali pelos anos 1980, graças a Krus Abecassis, que vinha sempre muito tarde, conseguimos alargar o horário. De facto, havia muita procura. O Galeto tornou-se então também uma referência da noite lisboeta”, conta o proprietário.

“Era o ponto de encontro”, lembra o chefe de balcão. “As pessoas vinham cá antes de ir para o Whispers, no Imaviz, para o Porão da Nau, na Pinheiro Chagas, ou para o Archote, no Arco do Cego. E depois havia o cinema, o Monumental e o Quarteto. Muita gente vinha cá jantar depois do cinema”.

O início da noite é calmo, mas à medida que as horas avançam, os balcões do Galeto vão enchendo. Mário diz que uma casa que serve refeições 20 horas por dia merecia o estatuto de utilidade pública. “Você está menos bem, está sozinha na cidade, quer comer uma sopa e pode vir cá, até às 3h30. Isto é ou não é utilidade pública?” Foto: Carlos Menezes.

Noites de tourada no Campo Pequeno também significavam enchente, como hoje, quando há concertos, jogos de futebol, festivais de música ou comemorações da vitória do campeão nacional de futebol no Marquês de Pombal.

Nessas noites, Mário já sabe que vai haver romaria e o movimento vai ser “bárbaro”.

“O Galeto é um caso sui generis na restauração, em Lisboa e no país. É uma autêntica fábrica de comida e tem uma capacidade de resposta extraordinária. Temos 20 horas de serviço. Eu sou do tempo (é pá, eu sou do tempo não se diz, pois não?) em que não se falava de brunchs e nós já tínhamos pequenos-almoços bárbaros”, diz Mário.

O espaço é “muito à frente desde o início, com os combinados – o mais famoso é o 8, que é o que sai mais – e os hambúrgueres. Lembro-me de o pai do senhor Francisco ficar pior que estragado quando abriu o McDonald’s aqui ao lado, porque os nossos hambúrgueres eram míticos”, conta Mário, que acha que o Galeto devia ter estatuto de utilidade pública.

“Estou a brincar, mas o que nós fazemos é mesmo de utilidade pública, você está menos bem, está sozinha na cidade, quer comer uma sopa e pode vir cá, até às 3h30. Já ninguém arrisca estar aberto até tão tarde”, diz Mário.

Há outra “clientela”: “Os que deixavam a mulher na maternidade Alfredo da Costa e vinham para o Galeto à espera que o bebé nascesse, quando não havia telemóveis. Era engraçado de ver. Mas diga lá, garantir que as pessoas a qualquer hora tenham onde comer é ou não é utilidade pública?”.

Claro que é. O próprio Mário poderia reclamar para si esse estatuto. Há pessoas que só se sentam no balcão dele. Perdão, no balcão 2.

“Eu não tenho balcão, o balcão é do senhor Francisco. Detesto que me digam o teu balcão. Sou igual aos outros. A casa a mim nada me deve, mas deve muito a figuras como o senhor Pedro Lousada ou o senhor Pinto, dois diretores marcantes. O Galeto tinha excelentes profissionais e as pessoas tinham o seu empregado preferido. Aprendi muito com alguns, no tempo em que tinha de se aprender com os olhos, porque quem sabia não tinha paciência nem tempo para ensinar”, diz Mário, com saudades e a noção de que é difícil hoje encontrar pessoal nesta área, sobretudo para o horário noturno.

“Isto não é fácil. O balcão tem 19 lugares e eu costumo dizer que parece que eles estão todos a combinar lá fora para chegarem ao mesmo tempo. Às vezes, há situações complicadas, gerir egos é complicado e eu também tenho o meu, que não é pequeno. Assim como há clientes com quem dá pica falar e servir, há personagens que eu pagava para não atender”, diz Mário, que aproveita a pausa do jantar para ir “apanhar ar na tromba”, beber um copo, ver as notícias e espairecer para depois voltar ao ritmo desenfreado das noites. “Chega-me a doer tudo, parece que me estão a tirar o escalpe”.

Os clientes que “chegam à queima”, mesmo antes de as portas fecharem, “alguns parece que têm de picar o ponto àquela hora”, estão entre as coisas que enervam Mário. Também detesta que lhe chamem moço, que não fechem os talheres, que lhe digam que estão ali há meia hora quando se sentaram há cinco minutos, que continuem agarrados ao telemóvel quando dá o seu proverbial “Viva, boa noite!” e que a primeira coisa que lhe perguntem seja “Qual é a senha do wi-fi?”.

Mas isso desaparece tudo no caminho que faz a pé para casa, por volta das quatro, quatro e meia da manhã, com passagem pelo Campo Mártires da Pátria.

“Antes ia de elétrico e agora também podia usar a rede da madrugada, mas gosto muito de andar a pé e passo sempre pela estátua do Dr. Sousa Martins, de quem sou devoto e peço pela minha mãe”.

A mãe e o pai, que vivem agora em Ponte da Barca, o céu aonde Mário vai sempre que pode, são omnipresentes nas histórias que conta da Lisboa em que cresceu.

Histórias não faltam a Mário, que as partilha em catadupa. Lembra-se que foi no Galeto que se negociou, às escondidas, em 1984, para grande tristeza sua, a transferência de Paulo Futre do Sporting para o Porto e lembra-se, de histórias que ouviu ao pai, que, antes do 25 de Abril, não era bem visto duas senhoras lá entrarem sozinhas à noite. Já os homens, para serem admitidos, tinham de usar gravata.

“Tinham cá gravatas em stock, para emprestar a quem não trouxesse. Mas isto foi antes da revolução”, conta.

Erros corrigidos e um legado para honrar

Depois da revolução começou outra história. Passada a agitação do PREC, que provocou alguma perturbação interna e valeu aos trabalhadores o único dia em que o restaurante e snack-bar fecha – o 1º de Maio –, os anos 1980 são recordados por Francisco Oliveira como o auge da casa que foi a vida do pai dele.

“A sociedade abriu-se por completo e o Galeto tornou-se uma centralidade muito grande da vida lisboeta da altura, tanto durante dia, em que tudo se passava nas e pelas Avenidas Novas, como à noite”, diz o empresário.

À frente do Galeto desde 2016, ano em que este recebeu a distinção de Loja com Históeia, Francisco Oliveira temeu pelo negócio, quando em 2017, a Câmara Municipal levou a cabo a intervenção no Eixo Central de Lisboa. “Foi um erro de visão meu. Hoje, concordo com o que o Medina dizia de tornar isto um boulevard emblemático da Europa”. Foto: Rita Ansone.

O virar do século, pelo contrário, trouxe desafios e alguma estagnação ao estabelecimento. As obras do Metro de Lisboa, que duraram anos e, segundo o empresário, levaram à falência de muitos negócios ali à volta, depois a crise do subprime e a troika, e mais recentemente a pandemia, que foi um balde de água fria na recuperação que o Galeto começava a sentir, foram momentos complicados na história do restaurante e snack-bar, cuja gestão, após a morte de António Oliveira, passou para a filha Romilda.

“Quando a minha irmã agarrou isto em 2007, vínhamos de um período difícil aqui na Avenida da República devido às obras do Metro, que tem uma saída mesmo aqui à porta. A situação financeira já era periclitante e depois veio a crise e a minha irmã teve o mérito brutal de ter aguentado isto”, diz Francisco Oliveira, que se dedicava então ao setor da aeronáutica.

A mãe decidiu fazer partilhas e, em 2016, a batata quente passou para Francisco, que teve de dividir-se entre a sua empresa e o Galeto, onde hoje passa quase tanto tempo como o pai. “Criticava-o por estar aqui de manhã à noite, sem folgas, e agora vou pelo mesmo caminho”, diz o empresário.

Temeu pelo negócio, agraciado em 2016 com a distinção de Loja com História, quando em 2017, a Câmara Municipal levou a cabo a intervenção no Eixo Central de Lisboa, no âmbito do programa “Uma praça em cada bairro”, que mudou a configuração da Praça do Saldanha e da Avenida da República, mas reconhece hoje que foi um erro de visão.

“Tenho muitos erros desses. O Galeto vive muito da noite, as pessoas vêm de carro e a intervenção implicava a redução do estacionamento para metade. Naturalmente, receei, mas hoje reconheço que a avenida evoluiu para muito melhor”, diz Francisco Oliveira, que admite que o Galeto “está a trabalhar bastante bem, com uma procura muito boa”, tanto durante o dia, como à noite.

“Hoje, concordo com o que o Medina dizia de tornar isto um boulevard emblemático da Europa, salvo a ambição, que acho que é exagerada, mas a verdade é que se criou aqui um cluster tanto em termos de hotelaria como de restauração, que revitalizou totalmente esta zona.”

A esplanada foi alargada, à clientela habitual foram-se juntando cada vez mais turistas e a casa teria entrado em velocidade cruzeiro se, pelo meio, não tivesse acontecido a pandemia, particularmente penalizadora para o Galeto, que tem no período noturno a maior fonte de receita. Os confinamentos, o encerramento e as restrições de horário foram um revés.

“Entrei em 2022 com receio – tenho um feitio um bocadinho pessimista –, mas as coisas felizmente evoluíram de uma forma que eu não esperava e a casa rapidamente recuperou a dinâmica”, diz o empresário.

Filipe Ferreira, chefe de operações, é testemunha dessa recuperação. A trabalhar no Galeto há apenas nove meses, conhece a casa desde miúdo, quando vinha cá com a mãe, que trabalhava na RTP, quando esta se situava na 5 de Outubro.

Filipe Ferreira é o gestor de operações. Na casa há apenas nove meses, vem cá desde que era miúdo. Trabalha no turno da noite e concorda com Mário Gonçalves: “o Galeto é um mundo”. Foto: Rita Ansone.

Como chefe de operações, a trabalhar no turno da noite, cabe-lhe a tarefa, que antes não existia, mas que Filipe assume como fundamental, de, quando há fila de espera, distribuir os clientes pelos lugares ao balcão. A simpatia e urbanidade com que o faz minimiza confusões e ninguém passa à frente de ninguém, à excepção do Presidente da República e talvez do Papa, se viesse ao Galeto.

Cabe-lhe também a ele supervisionar toda a operação de organização do serviço e do pessoal. “É muita gente, são mais de 100 funcionários, e é preciso organizar quem é que vai para onde, fazer o quê, quando é que tem pausas, quando é que não tem”.

Formado na Escola Superior de Turismo do Estoril, já foi diretor de hotel, teve três restaurantes, trabalhou no Turismo de Portugal e deu aulas no Instituto Politécnico de Tomar e na Universidade Lusófona. Bagagem que conjugada com um sorriso aberto e uma constituição física, digamos, robusta, lhe facilita a complexa tarefa de gerir o por vezes frenético movimento das noites do icónico restaurante da Avenida da República.

Um trabalho que para ele é uma honra. “Sempre adorei o Galeto, isto é um mundo, vê-se aqui de tudo, do presidente da república ao primeiro-ministro a pessoas que, enfim… mas é um mundo. De dia, muito mais calmo, o que os colegas do almoço acham cheio é o meu início de noite”, diz Filipe, que destaca a cada vez maior procura por parte de turistas.

“Há um fenómeno curioso com os estrangeiros. Além dos que vêm porque são aconselhados ou viram nos guias, há alguns que, quando chegam em voos tardios, o Galeto é o único restaurante onde podem comer alguma coisa. Vêm porque é tarde e não há mais sítio nenhum e depois acabam por vir cá todos os dias jantar”.

Os pequenos-almoços ao jeito de hotel, que o Galeto tem há décadas, também são um chamariz para os que escolhem Lisboa como destino turístico, refere Francisco Oliveira que quando assumiu os destinos da casa, quis atualizar e diversificar a oferta. Rebatizou uns pratos, acrescentou outros e eliminou ainda outros. “Em algumas coisas terei acertado, mas noutras claramente não e corrigi. Por exemplo, tirei as iscas e a língua de vaca e depois tive que voltar atrás. São os pratos que saem mais? Não, mas são uma tradição da casa e os clientes procuram. O Avillez [chef de cozinha] outro dia veio aí e o que é que pediu? Iscas com elas”.

Outras tradições da casa, essas sim, campeãs de vendas, são o prego e o bife à Galeto. Os gelados são outra história e entram na categoria de lenda. “Os gelados do Galeto fazem parte do imaginário dos lisboetas e não é por acaso. Foram criados por um especialista italiano que os sócios trouxeram na altura. É tudo feito cá”.

Francisco Oliveira sabe que, acima de tudo, é na qualidade da comida que está alicerçado o legado de 57 anos que lhe foi deixado e faz por honrar.

“É a qualidade que faz a diferença e fica na memória. Dou-lhe um exemplo, em 2019, fui a Paris e quando vinha no comboio, falando com a mulher que ia ao meu lado, emigrante em França, com muitas saudades de Lisboa, quando percebeu que eu era dono do Galeto, disse: ‘tem o melhor prego que conheço. Quando vou a Lisboa, vou ao Galeto comer um prego”.

Lisboa não é o Galeto, mas o Galeto é Lisboa. Uma encruzilhada de balcões, onde se pode ir sempre pelo mesmo caminho ou ir descobrindo caminhos novos. Há 57 anos. Desde sempre.


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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6 Comentários

  1. Parabéns Catarina!
    Excelente reportagem sobre o Galeto!
    Li tudo até ao fim com interesse, quase que parecia um livro tantas as histórias e relatos que escreveu por quem as viveu e contou! Sucesso na sua carreira! E que o Galeto, continue a ser uma referência na restauração Lisboeta e de Portugal!

  2. Bons tempos em que ao fim de semana ia ao cinema Monumental à noite e depois ia ao Galeto comer um bife com ovo, batata frita e uma imperial sempre bem tirada
    Isto em fins dos anos sessenta

  3. Estou impressionado com o v/percurso!
    Eu trabalhei na ideal das avenidas pastelaria salão de chá e mercearia nos anos 50 onde ainda tenho saudades dessa zona maravilhosa.
    Desejo-lhe boa continuação

  4. Gostei muito de ficar a “conhecer” o Galeto, autêntica instituição gastronómica, quiçá, montra do melhor que se faz na cozinha portuguesa.
    Tendo desempenhado funções profissionais bem perto da sede do CDS, no campo Grande e me cruzado amiúde com o Senhor Kruz Abecassis, desconhecia essa sua faceta. Muito obrigado pela atenção.

  5. Parabens! o galeto e o melhor tantos anos passaram e un dia é que me encontrei por azar na avenida face ao galeto e teve que ir ver o que era o galeto !onde um primo trabalhou como cozinheiro muitos anos ate a reforma,elogiava <>para mim adolescente na altura pensava que era un restaurante banal ,nao tinha ideia o que era,mas quando entrei tantos anos mais tarde nao tinha palavras e a emoçao foi grande, agora quando passo por lisboa vou la,é um prazer entrar num restaurante com tanta historia,e tudo é delicioso.

  6. Vim da Rússia e estou impressionado com os padrões de qualidade do atendimento nos estabelecimentos portugueses, particularmente nesta lanchonete. Uma vez, vim a este café para jantar às 2 da manhã. Para minha surpresa, havia bastante gente no Galeto a essa hora, e a lotação estava bastante cheia. Além disso, os assentos neste café estão dispostos muito próximos uns dos outros, então você fica literalmente sentado bem ao lado de outras pessoas. Eu especificamente dei a volta por todo o café e encontrei três lugares livres consecutivos, então sentei-me no meio desses lugares, deixando um lugar livre de cada lado. No entanto, o garçom não me atendeu imediatamente, mas chamou o gerente, Filipe Ferreira, que insistentemente pediu para eu me mover para a esquerda ou para a direita. Pelo que entendi, ele estava preocupado que, se outras duas pessoas chegassem e quisessem sentar juntas, não conseguiriam porque eu estava sentado no meio dos três lugares livres. Francamente, estou chocado com esse tipo de atendimento. Em nenhum outro país (e já estive em mais de 30 países) vi tamanha grosseria. Filipe tentou me explicar que, se eu respeito o pessoal deste café, eu deveria me mudar. Estou em completo choque. Parece que este Filipe saiu diretamente do século 19 e de um mundo de capitalismo selvagem, onde um indivíduo não significa nada e uma corporação está disposta a fazer qualquer coisa em busca de lucro. Eu exijo fortemente que os proprietários deste café mudem sua política de atendimento ao cliente, colocando o conforto dos clientes em primeiro lugar, e não o lucro do café.

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