Reificação e linguagem em Guy Debord

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Reificação e linguagem em Guy Debord
João Emiliano Fortaleza de Aquino


EdUECE/Unifor, Fortaleza - Ceará (Brazil), 2006.



Este livro discute as reflexões de Guy Debord sobre a experiência histórico-social da linguagem, reflexões nas quais estética e crítica social são inseparáveis. Assumindo e buscando ultrapassar prática e teoricamente a expressão modernista e de vanguarda, Debord critica a pseudocomunicação da sociedade existente e estabelece a relação entre a práxis comunicativa e o programa, já apresentado pelos dadaístas e pelos surrealistas, de transformação da vida cotidiana. Ele pretende, assim, desenvolver uma reflexão sobre a experiência histórica da arte moderna e das vanguardas do início do século, reflexão ao mesmo tempo centrada na questão da linguagem e baseada na crítica marxiana do valor, e da qual, em proximidade e ruptura com aquela experiência, resulta uma teoria crítica do capitalismo desenvolvido, exposta em A sociedade do espetáculo. A tese deste livro é que a reflexão sobre a linguagem e a crítica do fetichismo mercantil são em Debord aspectos inseparáveis de um
único e mesmo ponto de partida da crítica da sociabilidade tardocapitalista, centrado na crítica da linguagem e da forma-mercadoria. O conceito central desta reflexão é o de linguagem comum como referência normativa da crítica do presente. Deste modo, Debord se posiciona por uma transição, no que diz a respeito ao horizonte da reflexão estética e social sobre a linguagem, do conceito de expressão ao de communicação ou diálogo. Ele busca recolher e manter, ultrapassando-a, a natureza crítica da expressão não-comunicativa (e, por isso, refratária à pseudocomunicação da sociedade burguesa), tal como concebida e experienciada pela arte moderna e as vanguardas do início do século 20, formulando a perspectiva social crítica da comunicação. A práxis comunicativa se apresenta como o fundamento negativo e, por isso mesmo, a perspectiva positiva em favor da qual é feita a crítica da sociedade fundada na produção fetichista de valor;  neste gesto, à “ultrapassagem da arte” e à “realização da poesia” perseguidas pelo surrealismo e pelas vanguardas do início do século passado se acrescenta um novo conteúdo: se a expressão poética moderna foi uma denúncia da linguagem reificada, pseudocomunicativa e até mesmo anticomunicativa é porque, segundo Debord, esta denúncia aspirou a uma nova, autêntica e livre comunicação.

Notas sobre o profeta do espetáculo
Livro do pesquisador cearense Emiliano Aquino ajuda a desvendar o complexo pensamento do francês Guy Debord
    Cineasta e ideólogo do movimento político-cultural situacionista, o francês Guy Debord (1932-1994) foi imortalizado por um estranho livro: A sociedade do espetáculo. Híbrido complexo, aqui e lá se assemelha a uma obra de filosofia, sociologia e até, sem exageros, de profecias. O cada vez mais ilusório mundo multimidiático ganhou uma profunda e, ao mesmo tempo, enigmática descrição.
    Lançada em 1967, a obra de Debord antecipou o colapso social que tomou corpo no ano seguinte, em todo o mundo. A introdução acima tem apenas uma motivação: fazer sentir o vespeiro em que se meteu Emiliano Aquino. Doutor em filosofia (PUC-SP) e professor da Unifor e da Uece, ele é o autor do recém-lançado Reificação e linguagem em Guy Debord.
    Nele, o pesquisador procura lançar luzes sobre a compreensão de Debord da linguagem e de fenômenos sociais como a pseudo-comunicação (ou a falta de entendimento generalizada na contemporaneidade), a estética da negação das vanguardas européias do século XX e as estratégias comunicativas e estéticas dos movimentos sociais de contestação do capitalismo.
    Breton e a militância
    O livro traz parte da tese de doutorado de Emiliano Aquino. No texto integral da pesquisa, Debord divide espaço com o poeta e militante da arte André Breton. Figura ímpar no cenário das vanguardas estéticas da primeira metade do século XX, Breton fez parte do grupo Dada, para, em seguida, subvertê-lo - transformação que acabou parindo o Surrealismo. À frente desta última vanguarda, o francês fez seu nome como escritor e autor de manifestos.
    No livro, Breton ganha menos espaço, mas surge como figura chave para compreender a importância da herança dadaísta e surrealista no pensamento de Debord.
    Segundo Emiliano, o filósofo francês via na tentativa deliberada de dificultar o entendimento das obras (típico das vanguardas citadas) uma espécie de denúncia da falta de sentido do mundo. Esta perda de sentido está ligada ao pessimismo que dominou o meio intelectual europeu após a infeliz experiência da I Guerra Mundial.
    Mas se Emiliano Aquino apresenta este Guy Debord herdeiro das artes e outras experiências estéticas, o Debord militante também tem espaço garantido no livro. É aqui que, talvez, o volume tenha uma importância especial para os brasileiros. Pensador e ativista político, o autor de A sociedade do espetáculo também foi bem recebido pelos movimentos políticos locais. Entretanto, quase sempre Debord é reduzido como “pensador de uma obra só”, que ainda assim costuma ser mal interpretada.
    É por isso que a leitura deste político Reificação e linguagem… ganha uma importância extra. Afinal, apesar de interessar a muitos, a obra de Guy Debord não chegou a ganhar muitos estudos por aqui. Não bastasse o certo pioneirismo em que se reveste sua obra, Emiliano ainda se sobressai pelo rigor da análise, pelo levantamento agudo de fontes e a escrita que facilita a leitura de não-especialistas.
DELLANO RIOS, Repórter

História de um diagnóstico

A sociedade do espetáculo foi publicado em 1967. O livro trazia 221 teses (cada uma de um parágrafo apenas) de Guy Debord. Nos meios intelectuais e políticos franceses, Debord já era conhecido por seu trabalho como cineasta e sua atuação política junto aos Situacionistas.
    Ele já havia apresentado parte das idéias de seu livro, em forma embrionária, nos artigos das publicações da Internacional Situacionista. Se o livro fez algum barulho quando de seu lançamento, o impacto no ano seguinte pode ser considerado simplesmente sob o adjetivo de devastador.
    Nas ebulições sociais do famoso maio de 1968, quando os estudantes parisienses ergueram barricadas nas universidades, numa atitude que se espalharia ao redor do mundo , a obra de Debord circulou com ares de profético. As denúncias do mundo espetacularizado, da falta de comunicação verdadeira e da crise do sentido encontraram (aparentemente) sua confirmação no caos que varreu a Europa e refletiu nos EUA e na América do Sul.
    Obra espetacular
    A efervescência do movimento de 68, arraigado até hoje na memória européia, e o radicalismo do autor garantiram ao livro status de obra clássica. Em 1974, traduziu suas idéias para um filme homônimo. Oito anos depois, não sem uma ponta de orgulho, o próprio Debord escreveu que o livro não precisava de correções.
    No Brasil, seguindo uma infeliz tendência de preguiça tradutória, o livro só ganhou edição em 1997, pela editora contraponto. Acompanhada de Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo (1988), a versão brasileira veio limpa, sem quaisquer notas explicativas ou uma boa introdução para esclarecer ao público leigo quem era o tal autor.

    Nos anos seguintes, honrando a tradição contestatória de Guy Debord, o livro tornou-se -forçosamente uma espécie de copyleft (direitos autorais livres). Assim, A sociedade do espetáculo vem ganhando uma infinidade de versões eletrônicas de acesso gratuito. Em 2003, os mineiros do Coletivo Acrático Proposta lançaram uma edição pirata da tradução portuguesa, felizmente, elogiada por Debord.

Reificação e Linguagem em Guy Debord, de EMILIANO AQUINO. Uece/Unifor 2006. 201 páginas. R$ 30

O que o levou a colocar, frente a frente, Guy Debord e o surrealista André Breton?
Foi Breton quem fez a transição entre o Dadaísmo e o Surrealismo, conduzindo o movimento de vanguarda artística a uma politização. Na verdade, esta ligação entre a arte e a política já estava presente em Baudelaire, em Rimbaud, Mallarmé, que militaram ou pensaram idéias libertárias. A poesia moderna francesa é marcada pela contestação social, político e moral. No entreguerras, Breton restabeleceu essa relação entre a tradição poética modernista francesa e o movimento de contestação social. Para Debord, a experiência situacionista era um terceiro momento de uma experiência que tinha começado com o Dadaísmo e passado pelo surrealismo. Os primeiros anos da Internacional Situacionista foram dedicados à reflexão sobre as idéias deste último grupo.

Quando ouvimos falar nas vanguardas artísticas do século passado, esta ligação política não aparece com tanta clareza. É possível pensar no apagamento desta relação?
Sim. Quando os inimigos da ordem são derrotados, é normal que depois eles sejam recuperados na sua esterilidade. O que aconteceu na arte moderna inteira é que eles procuraram dialogar com os movimentos operários. Hoje, a arte moderna é toda institucionalizada, sob os auspícios de bancos e grandes fundações, e se apresenta como eunucos, incapazes de fazer mal à casa de seus senhores. Debord tentou retomar a idéia de que arte moderna e movimentos sociais de contestação são inseparáveis, desde Baudelaire e Wagner.

No campo da arte hoje, encontramos seguidores das idéias debordianas?
Se olharmos para as instituições oficiais de cultura, não. À chamada arte contemporânea, falta completamente a consciência e a memória de onde ela surgiu. Faz-se performances, instalações, tudo, sem saber a origem contestatória dessas manifestações. Tudo isso se transforma simplesmente em arte. Quando Duchamp mandou seu urinol para uma exposição, ele queria questionar a instituição do museu. Hoje, manda-se coisas semelhantes para legitimar esta instituição. No movimento antiglobalização, surgiram experiências estéticas não-hierárquicas, comunicativas, mas que acabaram sumindo por conta da violenta repressão pós 11 de setembro. Creio que esta seja a chave do problema: sempre que houver movimentos sociais comunicativos, horizontais, não-hierárquicos, também surgirão experiências estéticas com as mesmas características.

Guy Debord foi um pensador arredio ao meio acadêmico que, para alguns, tem engessado a filosofia. Como foi trabalhar com seu pensamento neste meio?
Primeiro, tive cuidado de não tornar Debord um autor e um pensamento dócil. Ele tinha um profundo desprezo pelo trabalho da academia francesa da década de 60 - que ainda hoje é considerado exemplar. Naturalmente, encontrei um grande apoio junto a minha orientadora, (a filósofa) Jeanne-Marie Gagnebin, que relaciona filosofia e literatura, e se distancia desta tendência mais fixadora e esterilizadora do meio universitário. Outro fator importante é que minha relação com Debord, antes de ser acadêmica, é sobretudo política. Para mim, ele é um autor que nos ajuda a pensar a transformação do mundo de uma forma radical e renovadora em relação à tradição hierárquica e autoritária da esquerda tradicional. Junta a tradição anti-hierárquica do socialismo libertário e a crítica da economia política de Marx, passando pela tradição poética modernista. Como a academia, em geral, é mais pobre que isso, ela se vê obrigada a se dobrar à força do pensamento de autores como Debord.

Diário do Nordeste, 16 de Janeiro de 2007.

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