Linguagem: teoria, análise e aplicações - Pós-graduação em Letras ...
Linguagem: teoria, análise e aplicações - Pós-graduação em Letras ...
Linguagem: teoria, análise e aplicações - Pós-graduação em Letras ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong><br />
e <strong>aplicações</strong> (6)<br />
Sandra Bernardo<br />
Marina R.A. Augusto<br />
Zinda Vasconcellos<br />
(organizadoras)<br />
Rio de Janeiro<br />
Programa de <strong>Pós</strong>-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong> – UERJ<br />
1
Sandra Bernardo<br />
Marina R.A. Augusto<br />
Zinda Vasconcellos<br />
(organizadoras)<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6)<br />
1ª. edição<br />
Rio de Janeiro<br />
Programa de <strong>Pós</strong>-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong> – UERJ<br />
2011
Apresentação<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
SUMÁRIO<br />
Bernardo, Sandra; Augusto, Marina R.A. & Vasconcellos, Zinda (UERJ) .......... 01<br />
Palestra<br />
La enseñanza de la lecto-comprensión de textos académicos en inglés y su<br />
contexto de apropiación.- Reflexión Didáctica<br />
Zeitune, Irene Josefina Lanzi de (Facultad de Filosofía y <strong>Letras</strong>, UNT) ………….. 07<br />
Estudos linguísticos<br />
Variação fonológica das vogais pretônicas /e/ e /o/ dos verbos na variedade do<br />
interior paulista<br />
Carmo, Márcia Cristina do (UNESP/IBILCE) ................................................ 25<br />
A Organização dos Glides Intervocálicos no PB<br />
Martins, Evilázia Ferreira (UFMG) ............................................................. 36<br />
Ditongação: expediente formal de t<strong>em</strong>po presente<br />
Vivas, Vítor de Moura (UFRJ) ................................................................... 50<br />
Uma abordag<strong>em</strong> morfoss<strong>em</strong>ântica das formações TELE-X no português brasileiro<br />
Ferreira, Rosângela Gomes (UFRJ) ........................................................... 61<br />
Advérbios <strong>em</strong> -mente <strong>em</strong> estruturas parentéticas<br />
Cunha, Filipa & Moita, Mara (ILTEC) ......................................................... 75<br />
Um caso de concordância com tópico: a expressão de plural <strong>em</strong> verbos<br />
meteorológicos no interior de orações relativas<br />
Costa, Igor de Oliveira & Augusto, Marina R. A. (UERJ/PUC-Rio) ................... 84<br />
História das Ideias Linguísticas<br />
Os sentidos da expressão língua materna na Idade Média<br />
Aquino, José Edicarlos de (UNICAMP) ........................................................ 93<br />
A influência de Darwin na <strong>teoria</strong> linguística como um prelúdio às abordagens<br />
“evolucionárias” no século 21<br />
Pickering, William A. (Unicamp) .............................................................. 105<br />
Gramática e <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> nos Estudos Formais<br />
Real, Livy & Andrade, Ricardo (UFPR)(IME-USP) ....................................... 125<br />
Linguística Aplicada ao Ensino<br />
As concepções de leitura na Prova Brasil e no Programa Internacional de<br />
Avaliação de Estudantes – PISA: uma <strong>análise</strong> comparativa<br />
Campos, Talita da Silva (UERJ) ............................................................... 139<br />
i
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O conceito de gênero e a concepção de linguag<strong>em</strong> presente nas Orientações<br />
Curriculares de Língua Portuguesa para o Ensino Médio<br />
Lima, Sandra Mara Moraes (PUC-SP) ....................................................... 151<br />
Reinvenção ou Retrocesso? Refletindo sobre Alfabetização<br />
Nascimento, Raquel Oliveira do (UERJ) .................................................... 159<br />
Concatenações Lexicais Ativadas por Atividades de Brainstorming: Facilitadores<br />
de Leitura <strong>em</strong> Língua Inglesa para Iniciantes<br />
Mulico, Lesliê (IFRJ-Pinheiral) ................................................................. 176<br />
Mais do menas: onde a exposição jamais esteve<br />
Antunes, Thayane Santos & Lima, Ricardo Joseh (UERJ) ............................ 190<br />
Psicolinguística<br />
Propriedades linguístico-textuais de livros acadêmicos introdutórios: subsídios<br />
para identificação de habilidades de leitura requeridas para alunos universitários<br />
Rodrigues, E. & J. Da Silva Neto (PUC-Rio)................................................ 205<br />
O efeito da negação <strong>em</strong> sentenças com predicados factivos: dados da aquisição<br />
Dias, Sammy Cardozo (UERJ) ..................................................................216<br />
Adquirindo as primeiras palavras: categorias abertas e fechadas e as primeiras<br />
combinações<br />
Passos, Ana Paula da Silva; Costa, Igor de Oliveira; Salgado, Odete Firmino<br />
Alhadas & Haddad, Victória Cristin do Nascimento (UERJ) .......................... 228<br />
Análise de aspectos da concordância verbal por crianças falantes do português<br />
brasileiro: produções escritas induzidas<br />
Martins, Queila de Castro & Nascimento, Raquel Oliveira do (UERJ) ............. 239<br />
“Ajudar ou A-ju-dar: o que é melhor para o afásico?”: contribuições de testes de<br />
não-palavras<br />
Haddad, Victória Cristin do Nascimento (UERJ) ......................................... 250<br />
Habilidades de monitoramento <strong>em</strong> um afásico agramático<br />
Silva, Fernanda Soares da (UERJ) ........................................................... 264<br />
Estudos do Léxico e Linguística Cognitiva<br />
O léxico da letra de samba: um estudo baseado <strong>em</strong> corpus<br />
Barbosa, Flávio de Aguiar (UERJ) ............................................................ 275<br />
Léxico e cultura: alguns apontamentos a partir da tradução de “foi assim” de<br />
Natalia Ginzburg<br />
Garcia, Edson Roberto Bogas & Zavaglia, Claudia (UNESP/IBILCE) .............. 290<br />
O discurso midiático acerca dos relacionamentos amorosos juvenis<br />
Ferreira, Ana Paula (UERJ) ..................................................................... 299<br />
“You pulled a Monica”: buscando (um) sentido<br />
Fouquet, Charles; Chagas, Evelyn; Machado, Gabriel; Affonso, Natália & Gomes,<br />
Ulisses (UERJ) ...................................................................................... 309<br />
ii
Considerações acerca do discurso jurídico<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A materialização da subjetividade no discurso jurídico: a linguag<strong>em</strong> do<br />
magistrado<br />
Andrade, Valdeciliana da Silva Ramos (FDV) ............................................. 321<br />
Juridiquês: a quebra do contrato de comunicação<br />
Ribeiro, Juliana Oliveira; Lopes, Natália Camara & Pinheiro, Priscila Tinelli (FDV)<br />
........................................................................................................... 336<br />
A <strong>teoria</strong> da relevância no discurso jurídico<br />
Silva, Géssica de Oliveira; Costa, Isabelle Rangel; Oliveira, Mariana Silva &<br />
Andrade, Valdeciliana da Silva Ramos (FDV) ............................................. 348<br />
A aplicação do ethos discursivo no cenário jurídico trabalhista<br />
Spessimilli, Nayanne Neves; Boldrini, Paola Marcarini & Andrade, Valdeciliana da<br />
Silva Ramos (FDV) ................................................................................ 362<br />
Estudos do Discurso<br />
Poder e supr<strong>em</strong>acia: a venda do ensino de língua inglesa como língua<br />
estrangeira no Brasil<br />
Damiana, Bruna (UERJ) ......................................................................... 380<br />
A Ideologia e suas representações na perspectiva da ACD e da LSF: uma <strong>análise</strong><br />
do discurso do aluno enquanto sujeito curricular<br />
Guimarães, Silvia Adélia Henrique (UERJ) ................................................ 396<br />
Nós e eles: a representação dos atores sociais <strong>em</strong> um texto multimodal<br />
Souza, Carla Cristina de (UERJ) ............................................................. 415<br />
Repetições e perguntas como estratégias de processamento discursivo no<br />
português falado na região de Muriaé, MG<br />
Vieira, Amitza Torres; Custódio, Alessandra Maria & Galvão, Vinícius Martins<br />
(FAFISM) ............................................................................................. 427<br />
A modalização deôntica <strong>em</strong> artigos de opinião<br />
Gonçalves, Tatiana Jardim (UFF) ............................................................. 441<br />
Que Copa é essa? Um breve exame discursivo sobre a imag<strong>em</strong> da África do Sul<br />
construída pela mídia nas vésperas da Copa 2010<br />
Mendanha, Fernando França (UFOP) ........................................................ 453<br />
Um estudo de cartas de leitores de jornal para o trabalho com argumentação na<br />
escola<br />
Silva, Solange Nascimento (UERJ) ........................................................... 467<br />
iii
APRESENTAÇÃO<br />
A série de publicações das Jornadas de Estudos da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> do Programa de <strong>Pós</strong><strong>graduação</strong><br />
<strong>em</strong> Linguística da UERJ traz, neste volume, uma coleção de artigos relativos a<br />
trabalhos apresentados na VI Jornada de Estudos da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong>.<br />
Organizados por t<strong>em</strong>as que constituíram as seções que compuseram o evento, abre o<br />
volume o artigo referente à palestra ministrada pela Profa. Irene Lanzi de Zeitune da<br />
Universidad Nacional de Tucumán, Argentina. Intitulado La enseñanza de la lectocomprensión<br />
de textos académicos en inglés y su contexto de apropiación.- Reflexión<br />
Didáctica, o artigo apresenta uma proposta de trabalho de desenvolvimento da habilidade de<br />
leitura/compreensão de textos no contexto universitário, de um ponto de vista do<br />
interacionismo social de Vygotsky (1965) e da concepção de comunidade linguística de<br />
Swales (1990).<br />
A seção de artigos denominada “Estudos Linguísticos” é composta por seis trabalhos.<br />
No primeiro deles, de Márcia Cristina do Carmo, intitulado Variação fonológica das vogais<br />
pretônicas /e/ e /o/ dos verbos na variedade do interior paulista, é descrito e analisado o<br />
comportamento fonológico das vogais médias pretônicas dos verbos na variedade da região<br />
noroeste do estado de São Paulo. A autora mostra que a presença de uma vogal alta na sílaba<br />
seguinte à da pretônica-alvo favorece o alçamento vocálico nessa variedade. A seguir,<br />
Evilázia Ferreira Martins trata da Organização dos Glides Intervocálicos no PB. Com base<br />
nas propriedades fonológicas e fonéticas dos glides e na forma como interag<strong>em</strong> com os<br />
sist<strong>em</strong>as silábico e acentual, Martins visa a d<strong>em</strong>onstrar, a partir de estudos precedentes, se o<br />
glide poderia atuar no sist<strong>em</strong>a linguístico fonológico como vogal (V) ou consonante (C).Vítor<br />
de Moura Vivas, no artigo Ditongação: expediente formal de t<strong>em</strong>po presente, mostra-nos<br />
como a morfologia flexional portuguesa não se organiza só por concatenação de afixos, e que<br />
diversos expedientes de fusão manifestam conteúdos de t<strong>em</strong>po e de número-pessoa,<br />
examinando isso especificamente com relação ao t<strong>em</strong>po presente.<br />
Rosângela Gomes Ferreira, <strong>em</strong> Uma abordag<strong>em</strong> morfoss<strong>em</strong>ântica das formações Tele-<br />
X no português brasileiro, desenvolve um estudo lexical sobre as formas "tele-X" no<br />
Português do Brasil, comprovando que "tele-" passa de radical a prefixo de larga aplicação <strong>em</strong><br />
formações recentes. Filipa Cunha e Mara Moita, no artigo Advérbios <strong>em</strong> -mente <strong>em</strong> estruturas<br />
parentéticas, traz<strong>em</strong> uma reflexão sobre o comportamento de advérbios modificadores de<br />
predicado. Com o apoio da Linguística de Corpus, a partir de uma versão etiquetada do<br />
CETEMPúblico de dados jornalísticos do português europeu, as autoras d<strong>em</strong>onstram que<br />
estes se comportam como estruturas parentéticas. Por fim, Igor de Oliveira Costa e Marina<br />
R.A. Augusto apresentam, <strong>em</strong> Um caso de concordância com tópico: a expressão de plural<br />
<strong>em</strong> verbos meteorológicos no interior de orações relativas, uma série de dados nos quais se<br />
atesta a expressão de plural <strong>em</strong> verbos meteorológicos no interior de orações relativas.<br />
Partindo da <strong>análise</strong> da relativa gerada a partir de uma posição de tópico, os autores discut<strong>em</strong><br />
como esse tipo de estrutura pode influenciar a marcação do plural no verbo.<br />
Na seção de “História das Ideias Linguísticas”, contam-se três contribuições. José<br />
Edicarlos de Aquino, <strong>em</strong> Os sentidos da expressão língua materna na Idade Média, traça esse<br />
uso <strong>em</strong> textos da época, sugerindo que a expressão língua materna é uma invenção do<br />
Ocidente medieval, forjada diante do termo língua paterna (patrius sermo do latim). William<br />
Pickering trata A influência de Darwin na <strong>teoria</strong> linguística como um prelúdio às abordagens<br />
“evolucionárias” no século 21, mostrando como as <strong>teoria</strong>s de mudança linguística de<br />
Schleicher, Müller, Paul e Jespersen foram todas influenciadas por Darwin. Livy Real e<br />
1
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Ricardo Andrade defend<strong>em</strong>, no artigo Gramática e <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> nos Estudos Formais, a<br />
discussão dos objetos de estudo da Linguística e da Ciência da Computação, b<strong>em</strong> como da<br />
nomenclatura assumida nessas áreas, no que tange aos conceitos de gramática e linguag<strong>em</strong>.<br />
Os próximos cinco artigos são agrupados na seção “Linguística Aplicada ao Ensino”.<br />
A preocupação com o ensino fundamental e médio perpassa os três primeiros deles. Talita da<br />
S. Campos analisa, <strong>em</strong> As concepções de leitura na Prova Brasil e no Programa<br />
Internacional de Avaliação de Estudantes – PISA: uma <strong>análise</strong> comparativa, as concepções<br />
de leitura que <strong>em</strong>basam a formulação da Prova Brasil e do PISA (Programa Internacional de<br />
Avaliação de Estudantes). Tomando como base Marcuschi (2001), Kleiman (2007) e Koch<br />
(2007), entre outros, a autora d<strong>em</strong>onstra que a primeira apresenta uma concepção discursiva<br />
de leitura, enquanto a última traz uma concepção cognitiva de leitura, discutindo as<br />
implicações dessas concepções para o trabalho efetivo de leitura <strong>em</strong> sala de aula. Sandra<br />
M.M. Lima, <strong>em</strong> O conceito de gênero e a concepção de linguag<strong>em</strong> presente nas Orientações<br />
Curriculares de Língua Portuguesa para o Ensino Médio, propõe-se a analisar o texto dessas<br />
orientações do MEC, no que toca à presença de conceitos baktinianos no documento, <strong>em</strong><br />
especial o de gênero discursivo, e à concepção de linguag<strong>em</strong> adotada. A autora conclui pela<br />
existência de incoerências no texto das Orientações.<br />
A questão da alfabetização é probl<strong>em</strong>atizada, <strong>em</strong> Reinvenção ou Retrocesso?<br />
Refletindo sobre Alfabetização, por Raquel O. do Nascimento, ao voltar se para o movimento<br />
que algumas escolas públicas do Brasil, frente ao fracasso constatado, têm feito na direção de<br />
adotar<strong>em</strong> o antigo método fônico de alfabetização. A <strong>análise</strong> do material que t<strong>em</strong> sido<br />
adotado, tomando por base Braggio (1992), Cagliari (1992), Soares (2004) e Maciel (2008),<br />
entre outros, permite à autora questionar a validade de se retomar esse método, uma vez que<br />
sua <strong>análise</strong> aponta que “a proposta não permite que a aprendizag<strong>em</strong> do código ocorra <strong>em</strong> um<br />
contexto de práticas sociais de leitura e escrita, ou seja, que a alfabetização ocorra junto ao<br />
letramento”. Lesliê Mulico dedica-se ao ensino de língua estrangeira <strong>em</strong> Concatenações<br />
Lexicais Ativadas por Atividades de Brainstorming: Facilitadores de Leitura <strong>em</strong> Língua<br />
Inglesa para Iniciantes. Mulico d<strong>em</strong>onstra a importância do contexto, da relevância e da<br />
interação como ferramentas de acomodação de conhecimento de el<strong>em</strong>entos linguísticos, a<br />
partir de um experimento com alunos do primeiro ano do Ensino Médio, cujos resultados<br />
evidenciam um aumento do interesse do aprendiz pelo texto e uma maior predisposição à<br />
inferência lexical.<br />
Por fim, o preconceito linguístico é debatido por Thayane S. Antunes e Ricardo J.<br />
Lima no artigo Mais do menas: onde a exposição jamais esteve, no qual analisam as<br />
instalações apresentadas na Exposição “Menas”, realizada pelo Museu da Língua Portuguesa,<br />
<strong>em</strong> 2010, cujo objetivo seria debater o conceito de erro, atrelando-o à concepção de<br />
inadequação de registros. Os autores avaliam que a exposição foi por d<strong>em</strong>ais tímida e<br />
apresentam uma proposta de instalação “extra”, mais eficaz para o combate ao preconceito<br />
linguístico.<br />
O artigo de Érica Rodrigues e Juliana da Silva Neto, que abre a seção<br />
“Psicolinguística”, Propriedades linguístico-textuais de livros acadêmicos introdutórios:<br />
subsídios para identificação de habilidades de leitura requeridas para alunos universitários,<br />
consiste na investigação da organização estrutural e dos recursos linguísticos de manuais de<br />
ensino universitários, a fim de fornecer subsídios acerca das habilidades linguísticas e<br />
discursivas necessárias à leitura de textos de Linguística, Administração de Empresas, Direito<br />
e Economia, mostrando como a extensão das palavras e a complexidade sintática afetam o<br />
2
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
processamento. Em seguida, <strong>em</strong> O efeito da negação <strong>em</strong> sentenças com predicados factivos:<br />
dados da aquisição, Sammy Cardozo Dias trata da aquisição de compl<strong>em</strong>entos de verbos<br />
factivos no português do Brasil, apresentando os resultados de um experimento realizado com<br />
crianças na faixa etária de 4 a 6;5 de idade. Respaldado pelos dados obtidos, o autor defende<br />
que esse fenômeno envolve vários sub-fenômenos que determinam que a aquisição da<br />
factividade envolva diferentes etapas, determinadas pela maior ou menor complexidade<br />
sintática de determinadas construções.<br />
Voltando-se para uma fase b<strong>em</strong> mais inicial do processo de aquisição, <strong>em</strong> Adquirindo<br />
as primeiras palavras: categorias abertas e fechadas e as primeiras combinações, Ana Paula<br />
Passos, Igor de Oliveira Costa, Odete F.A. Salgado e Victória Haddad apresentam um estudo<br />
de caso, a partir da compilação das primeiras palavras adquiridas por uma criança e<br />
comparação com uma criança seis meses mais velha, no que diz respeito ao rol de categorias<br />
de classes aberta e fechada e sua implicação para as primeiras combinações realizadas, na fase<br />
de duas palavras. A escrita passa a ser o foco do próximo artigo, Análise de aspectos da<br />
concordância verbal por crianças falantes do português brasileiro: produções escritas<br />
induzidas, de Queila de C. Martins e Raquel de O. do Nascimento, no qual se apresentam os<br />
resultados da aplicação de um teste de eliciação sobre aspectos da concordância verbal <strong>em</strong><br />
construções com el<strong>em</strong>entos intervenientes entre o sujeito e o verbo, segundo pesquisa<br />
realizada por Rodrigues (2006) e Negro et al. (2005). Conforme d<strong>em</strong>onstrado na literatura, os<br />
resutados encontrados confirmam a possibilidade de se prever<strong>em</strong> os contextos que pod<strong>em</strong><br />
eliciar maior número de “erros”, sendo estes analisados como interferências pós-sintáticas, no<br />
processamento das estruturas mais complexas.<br />
Os dois artigos que fecham essa seção debruçam-se sobre a perda linguística e tratam<br />
da afasia. Em “Ajudar ou A-ju-dar: o que é melhor para o afásico?”: contribuições de testes<br />
de não-palavras, Victória Haddad questiona a facilidade que a silabação poderia trazer para a<br />
compreensão de afásicos a partir da aplicação de testes de não-palavras, um tipo de teste<br />
relevante para medir a m<strong>em</strong>ória de trabalho verbal e probl<strong>em</strong>as articulatórios na produção da<br />
linguag<strong>em</strong>, realizado <strong>em</strong> português com três afásicos, utilizando as duas condições de<br />
apresentação, discurso silabado ou não-silabado. A produção de sentenças é investigada por<br />
Fernanda S. da Silva, <strong>em</strong> Habilidades de monitoramento <strong>em</strong> um afásico agramático, um<br />
estudo de caso com um afásico de Broca, com especial atenção para o uso do monitoramento<br />
realizado, habilidade que nos permite checar e rechecar o que se pretende dizer<br />
(monitoramento interno) ou acabou de ser dito (monitoramento externo). Considerando-se os<br />
comprometimentos típicos de afásicos de Broca, essa população se mostra altamente relevante<br />
para o estudo dessa habilidade.<br />
A seção “Estudos do Léxico e Linguística Cognitiva” traz quatro artigos. Flávio de<br />
Aguiar Barbosa trata, <strong>em</strong> O léxico da letra de samba: um estudo baseado <strong>em</strong> corpus, das<br />
características lexicais das composições de sambistas pioneiros do Rio de Janeiro, mostrando<br />
que as t<strong>em</strong>áticas principais das composições envolv<strong>em</strong> relações amorosas; metalinguag<strong>em</strong>;<br />
cotidiano; reflexões existenciais; Brasil; natureza; religiosidade. Edson R.B.Garcia e Claudia<br />
Zavaglia abordam, <strong>em</strong> Léxico e cultura: alguns apontamentos a partir da tradução de “Foi<br />
assim” de Natalia Ginzburg, aspectos relacionados à tradução. Os autores constatam que<br />
fatores como a <strong>em</strong>patia tradutor-obra e os conhecimentos léxico-culturais desse profissional<br />
são determinantes para uma tradução de qualidade.<br />
Em O discurso midiático acerca dos relacionamentos amorosos juvenis, Ana Paula<br />
Ferreira analisa as metáforas conceptuais presentes <strong>em</strong> uma seção de revista de grande<br />
3
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
circulação voltada para adolescentes. Com base nessas metáforas subjacentes ao discurso,<br />
Ferreira ressalta a representação do outro com o qual a leitora se relaciona afetivamente como<br />
objeto, alimento, forma de investimento, ou como adversário, revelando uma sociedade<br />
pautada pelas relações de mercado, utilitarista e individualista <strong>em</strong> que os relacionamentos<br />
mostram-se fluidos, imediatistas, com validade até o momento <strong>em</strong> que houver conveniência.<br />
No artigo de Charles Fouquet, Evelyn Chagas, Gabriel Machado, Natália Affonso e Ulisses<br />
Gomes, “You pulled a Monica”: buscando (um) sentido, busca-se explicar o uso da expressão<br />
"You pulled a Monica", usada <strong>em</strong> um episódio da série de televisão Friends, com base <strong>em</strong><br />
três <strong>teoria</strong>s s<strong>em</strong>ânticas, constatando que a S<strong>em</strong>ântica Formal e a S<strong>em</strong>ântica Enunciativa não<br />
teriam como dar conta do significado dessa expressão, mas que a S<strong>em</strong>ântica Cognitiva t<strong>em</strong><br />
recursos para tanto.<br />
O discurso jurídico é o t<strong>em</strong>a da seção “Considerações acerca do discurso jurídico”.<br />
São quatro artigos que tomam esse universo como t<strong>em</strong>a central. Valdeciliana da S. R.<br />
Andrade explora esse t<strong>em</strong>a a partir da linguag<strong>em</strong> do magistrado, <strong>em</strong> A materialização da<br />
subjetividade no discurso jurídico: a linguag<strong>em</strong> do magistrado, buscando verificar as<br />
diferentes formas de manifestação da subjetividade no discurso proferido pelo magistrado<br />
(gênero decisório). Tomando como base os estudos de Benveniste (1989, 1995), Brandão<br />
(1991) e Breton (1999) sobre subjetividade, o estudo permite “perceber que o juiz,<br />
atualmente, assume com mais incidência e deliberadamente, seu discurso, ao <strong>em</strong>pregar a<br />
primeira pessoa (<strong>em</strong> geral, do singular), mas ainda é muito presente a construção da<br />
subjetividade implícita que mascara a real intenção do juiz ao se comunicar”. Juliana O.<br />
Ribeiro, Natália C. Lopes e Priscila T. Pinheiro tratam, <strong>em</strong> Juridiquês: a quebra do contrato<br />
de comunicação, das dificuldades geradas pelo discurso jurídico, a partir da <strong>análise</strong> de dez<br />
sentenças judiciais. Géssica de Oliveira Silva, Isabelle Rangel Costa, Mariana Silva Oliveira e<br />
Valdeciliana da Silva Ramos Andrade, <strong>em</strong> A <strong>teoria</strong> da relevância no discurso jurídico,<br />
apóiam-se nas máximas conversacionais de Grice e na Teoria da Relevância de Sperber &<br />
Wilson (1995, 2005) para analisar<strong>em</strong> a linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong>pregada <strong>em</strong> textos científicos da área do<br />
Direito Penal.<br />
Em A aplicação do ethos discursivo no cenário jurídico trabalhista, Nayanne Neves<br />
Spessimilli, Paola Marcarini Boldrini e Valdeciliana da Silva Ramos Andrade optaram por<br />
examinar a t<strong>em</strong>ática do ethos no discurso jurídico, especificamente a construção do ethos por<br />
magistrados e por advogados no cenário de audiências trabalhistas. As autoras puderam<br />
verificar que uma mesma pessoa, no caso o magistrado, apresenta diferentes manifestações<br />
discursivas, as quais são construídas no decorrer de uma mesma audiência com relação a<br />
sujeitos distintos (advogados das partes, test<strong>em</strong>unhas) e, no decorrer de uma audiência para<br />
outra, <strong>em</strong> virtude dos diferentes atores que figuram no cenário.<br />
Para além do discurso jurídico, a seção final dessa coletânea, “Estudos do Discurso”,<br />
traz contribuições diversas. Bruna Damiana, <strong>em</strong> Poder e supr<strong>em</strong>acia: a venda do ensino de<br />
língua inglesa como língua estrangeira no Brasil, analisa a forma como o ensino da língua<br />
inglesa como língua estrangeira é vendido pelos principais cursos deste idioma na cidade do<br />
Rio de Janeiro, por meio de propagandas que reforçam o caráter dominante da língua e cultura<br />
inglesa/americana. Sílvia Adélia H. Guimarães, <strong>em</strong> A Ideologia e suas representações na<br />
perspectiva da ACD e da LSF: uma <strong>análise</strong> do discurso do aluno enquanto sujeito curricular,<br />
investiga como o discurso do aluno pode ser ferramenta de (re)encaminhamento das ações<br />
metodológicas do professor. Seus resultados suger<strong>em</strong> que o aluno, enquanto sujeito curricular,<br />
t<strong>em</strong> voz, resistindo e reproduzindo as relações de poder, mas que também se cala.<br />
4
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O artigo seguinte, Nós e eles: a representação dos atores sociais <strong>em</strong> um texto<br />
multimodal, de Carla Cristina de Souza, trata da necessidade de se estimular a leitura crítica<br />
<strong>em</strong> lingua inglesa, atentando-se para as imagens, geralmente negligenciadas nas práticas de<br />
sala de aula. Com esse objetivo e pautando-se <strong>em</strong> Van Leeuwen (1997, 2008), a autora<br />
apresenta uma reportag<strong>em</strong> da revista Newsweek, cuja <strong>análise</strong> aponta para uma congruência<br />
entre a linguag<strong>em</strong> verbal e a imag<strong>em</strong> adotadas. Com essa exploração do texto e seu suporte<br />
imagístico, a autora d<strong>em</strong>ontra como essa concepção de leitura pode contribuir para uma<br />
interpretação mais profunda do texto, pois permite apreender como os atores sociais são<br />
retratados. Amitza Torres Vieira, Alessandra Maria Custódio e Vinícius Martins Galvão<br />
adotam as orientações da Análise da Conversação (Marcuschi, 2000; Koch, 2001) e da<br />
Sociolinguística Interacional (Gumperz, 1982), <strong>em</strong> Repetições e perguntas como estratégias<br />
de processamento discursivo no português falado na região de Muriaé, MG, para explicitar as<br />
estratégias utilizadas pelos falantes <strong>em</strong> corpora coletados nos municípios de Muriaé e<br />
Miradouro, no ano de 2010, focalizando particularmente as repetições e as perguntas. São<br />
identificadas heterorrepetições lexicais, de estruturas sintáticas e parafrásticas, que funcionam<br />
especificando ou compl<strong>em</strong>entando o termo parafraseado e os seguintes tipos de perguntas:<br />
pedidos de informação, de confirmação e de esclarecimento, cuja função é a de introduzir, dar<br />
continuidade ou promover a mudança do tópico discursivo.<br />
Tatiana J. Gonçalves, <strong>em</strong> A modalização deôntica <strong>em</strong> artigos de opinião, procurou<br />
verificar como a modalização contribui para a construção do viés argumentativo do gênero<br />
textual analisado. Para tanto, analisaram-se predicados cristalizados do tipo é + adjetivo <strong>em</strong><br />
três artigos de opinião. Foi possível verificar que os modalizadores expressos pelos<br />
predicados cristalizados contribu<strong>em</strong> para o viés argumentativo de um enunciado, para a<br />
expressão do ponto de vista do enunciador; entretanto, pelo fato de não possuír<strong>em</strong> marca de<br />
pessoa, provocam um certo apagamento desse enunciador. O artigo de Fernando França<br />
Mendanha, Que Copa é essa? Um breve exame discursivo sobre a imag<strong>em</strong> da África do Sul<br />
construída pela mídia nas vésperas da Copa 2010, trata da imag<strong>em</strong>, construída<br />
discursivamente, sobre a África do Sul, nas vésperas da Copa do Mundo FIFA 2010, realizada<br />
por edições especiais de revistas brasileiras sobre o t<strong>em</strong>a. Tomando as noções de Charaudeau<br />
(1996) de argumentação e contrato comunicacional, o autor defende que “as revistas lançam<br />
mão de imaginários sócio-discursivos para apresentar, atrair e divertir o leitor, s<strong>em</strong> excluir<br />
suas d<strong>em</strong>andas comunicacional (de informar seu público) e mercadológica (de vender um<br />
produto)”.<br />
No artigo seguinte, de Solange Nascimento Silva, Um estudo de cartas de leitores de<br />
jornal para o trabalho com argumentação na escola, são expostos os fatores que delimitam<br />
as cartas de leitores de jornal como um gênero textual específico de caráter argumentativo e<br />
algumas possibilidades para o estudo desses textos <strong>em</strong> sala de aula do ensino médio. Para a<br />
autora, o trabalho com esse tipo de cartas pode favorecer a formação de alunos leitores mais<br />
reflexivos, na medida <strong>em</strong> que o estudante pode interpretar e discutir diferentes pontos de vista<br />
sobre t<strong>em</strong>as ligados à sua realidade, assim como formar suas próprias opiniões diante dela,<br />
como um exercício de argumentação e cidadania.<br />
Desejamos que a agradável atmosfera que marcou as VI Jornadas de Estudos da<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong> se reflita nessa coletânea que ora apresentamos.<br />
Sandra Bernardo (UERJ)<br />
Marina R.A. Augusto (UERJ)<br />
Zinda Vasconcellos (UERJ)<br />
5
Palestra<br />
6
La enseñanza de la lecto-comprensión de textos académicos en inglés y su<br />
contexto de apropiación. Reflexión Didáctica<br />
Irene Josefina Lanzi de Zeitune<br />
Facultad de Filosofía y <strong>Letras</strong>, UNT<br />
Resumo:El contexto en el que se lleva a cabo la enseñanza y la apropiación de la lecto-comprensión de textos<br />
académicos en inglés ha sido, con el correr de los años, si<strong>em</strong>pre el mismo: el contexto universitario, académico o<br />
de nivel superior. Sin <strong>em</strong>bargo, y de la mano de diferentes enfoques, parcializamos muchas veces la enseñanza<br />
de la lectura en lengua extranjera focalizando en distintos aspectos que hacen a la disciplina. Y es así que, en su<br />
momento, de la mano del estructuralismo, focalizamos en los aspectos gramaticales de la lengua inglesa<br />
descomponiendo los textos en unidades mínimas de sentido y presentamos los mismos siguiendo lo que<br />
creíamos era una gradación de estructuras que facilitaría la apropiación de la lengua. Luego, de la mano del más<br />
ortodoxo cognitivismo, nos centramos en las estrategias individuales de lectura y nos encerramos en el texto<br />
mismo y sus niveles, sin mirar hacia los costados y rescatar la relación de ese texto, de esas estrategias de lectura<br />
y de esa lengua extranjera con el contexto.<br />
El objetivo de esta ponencia será entonces poner de relieve las relaciones antes descriptas, entendiendo que un<br />
curso de lecto-comprensión de textos académicos constituye en sí mismo un contexto histórico-socio-cultural,<br />
siguiendo el interaccionismo social de Vigotsky, en donde el lector construye su relación con el autor a través de<br />
un texto en lengua extranjera. Y en dónde el lector debe constituirse en ciudadano de la comunidad a la cual<br />
aspira pertenecer a través del manejo de un sist<strong>em</strong>a de signos y conceptualizaciones propios de cada disciplina<br />
siguiendo la concepción de comunidad lingüística de Swales. Este contexto será el que enmarcará la actividad<br />
pedagógica de los cursos de lecto-comprensión definiendo características pragmáticas específicas de los mismos<br />
que se reflejarán en la impl<strong>em</strong>entación del enfoque por tareas. Entend<strong>em</strong>os por tarea una unidad de trabajo en el<br />
aula que exige la focalización del sentido por sobre la forma, y que constituye una vía material de incorporar la<br />
realidad a la clase, dado que implica la resolución de actividades relevantes a la función de la lectura en el<br />
contexto universitario<br />
A manera de conclusión, sosten<strong>em</strong>os que la enseñanza de la lecto-comprensión de textos en lengua extranjera en<br />
este contexto situacional no puede disociarse de la función epistémica de la lectura; es decir, la construcción de<br />
los conocimientos disciplinares. Esta construcción de conocimientos disciplinares se dá a través de estrategias de<br />
lectura, que no son otra cosa que estrategias de aprendizaje.<br />
1) Introducción:<br />
El objetivo de esta ponencia será mostrar una manera de trabajo con la lectocomprensión<br />
en el contexto universitario, más precisamente en las Facultad de Filosofía y<br />
<strong>Letras</strong>, perteneciente a la Universidad Nacional de Tucumán, institución publica y gratuita del<br />
Noroeste argentino. Para ello organicé este trabajo de la siguiente manera:<br />
En primer lugar una breve introducción describiendo el contexto de enseñanza, es decir,<br />
los agentes de aprendizaje, los contenidos y objetivos de la materia y algunas variables que<br />
intervienen en este proceso y que son relevantes para esta ponencia. En un segundo momento,<br />
y a partir del análisis del material usado en clases, realizaré un recorrido por distintos<br />
momentos de la enseñanza de la lecto-comprensión en esta facultad, conjuntamente con<br />
reflexiones críticas acerca de la tarea docente, teñida esta última si<strong>em</strong>pre por paradigmas que<br />
focalizaron o más bien parcializaron la enseñanza de la disciplina, a saber: estructuralismo y<br />
cognitivismo. Luego me detendré en la descripción de un enfoque contextual. Para ello<br />
analizaré distintos aspectos propios del diseño del material didáctico a la luz de esta última<br />
visión, desarrollando así el “enfoque por tareas” o “task-based approach”, usado en las clases<br />
actualmente. Finalmente relacionaré este enfoque con la función epistémica de la lectura, es<br />
decir, la construcción de conocimientos.<br />
7
2) Breve descripción del contexto de enseñanza.<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Nuestro contexto se circunscribe al ámbito universitario, Facultad de Filosofía y <strong>Letras</strong>.<br />
La asignatura se denomina Idioma Moderno, Inglés II, con una mayoría de estudiantes (de<br />
2do. año en adelante), cursando los primeros años de sus respectivas carreras: Historia,<br />
Geografía, Ciencias de la Educación, Filosofía, <strong>Letras</strong>, Trabajo Social y Psicología. La<br />
asignatura se dicta dos veces por s<strong>em</strong>ana, 1 hora y media cada vez, con una carga horaria<br />
anual de aproximadamente 75 horas. Estos alumnos lectores son principiantes en sus<br />
conocimientos de la lengua extranjera y también en lo que concierne a los conocimientos<br />
disciplinares de las carreras que cursan y sus modos de transmisión. Esta variable incidirá<br />
sobre decisiones pedagógicas de la cátedra, que serán desarrolladas más adelante, sobre todo<br />
en lo que concierne a los aspectos metodológicos.<br />
El objetivo, según lo explicita el currículum de la asignatura, es guiar al alumno en el<br />
logro de la comprensión lectora del discurso de especialidad en inglés. Este objetivo general<br />
conlleva objetivos específicos tales como el reconocimiento de distintos género del discurso<br />
académico, el desarrollo de estrategias de resolución de probl<strong>em</strong>as propias del contexto<br />
académico en la lectura, el monitoreo de las propias estrategias de lectura y la reflexión<br />
metalinguística acerca de los patrones discursivos propios del género académico. Para definir<br />
lo que significa el género académico tomamos algunos conceptos claves de Swales (1990),<br />
tales como los de evento y propósito comunicativo, y el concepto de comunidad discursiva,<br />
más precisamente comunidad académica. Adherimos a la importancia del género como un<br />
proceso social dinámico aportado por Bajtín quién sostiene que “cada esfera del uso de la<br />
lengua elabora tipos relativamente estables de enunciados” (BAJTIN, M, 1982, p. 248); y que<br />
se contrapone a la noción de lo estático implícito en el concepto de Swales quién caracterizó a<br />
estos enunciados como fuert<strong>em</strong>ente estructurados. Así, “…los géneros reflejan contenidos,<br />
formas, funciones y condiciones que les son propias”.(GAIOTTI, C, 2007, p. 24).<br />
Entend<strong>em</strong>os, entonces, el concepto de género académico como los tipos de enunciados<br />
relativamente estables propios del evento comunicativo durante el proceso de construcción de<br />
conocimiento en una comunidad discursiva dada, en este caso, en el contexto universitario.<br />
3) Un camino recorrido:<br />
Mis primeros años de enseñanza de la lecto-comprensión de textos académicos en<br />
inglés representaron un gran descubrimiento, un aprendizaje acelerado y el desafío de<br />
<strong>em</strong>prender algo para lo cual mis años de aprendizaje en la universidad no me habían<br />
preparado. Durante esos primeros años aprendí lo que representaba la enseñanza de ESP o<br />
Inglés con Propósitos Específicos y más puntualmente, Inglés con Propósitos Académicos o<br />
EAP, enfoques que me r<strong>em</strong>itieron a conceptos básicos para entender que la enseñanza de una<br />
lengua está determinada, fundamentalmente, por los objetivos de aprendizaje; y a partir de allí<br />
cobran significado el resto de las variables de enseñanza, tales como contenidos, material<br />
didáctico, metodología de enseñanza y otros.<br />
3.1) La etapa estructuralista:<br />
Durante mis primeros años de enseñanza, la enseñanza de la disciplina tenía una fuerte<br />
impronta estructuralista que se manifestaba en aspectos tales como: la focalización en los<br />
aspectos gramaticales de la lengua inglesa, la descomposición de los textos en unidades<br />
8
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
mínimas de sentido y la presentación de las unidades lingüísticas siguiendo lo que creíamos<br />
era una gradación de estructuras que facilitaría la apropiación de la lengua. Las clases se<br />
basaban en una descripción estructural del discurso, al que van Dijk caracteriza, siguiendo la<br />
visión de la época, “como una secuencia de oraciones (…) dispuestas en un orden específico”,<br />
(VAN DIJK, T, 2002, p.26) ofreciendo la perspectiva de un cierto orden subyacente en la<br />
apropiación de la lengua. La oración, con su tipología sintáctica, aparece como el principal<br />
marco explicativo de los fenómenos lingüísticos generales. El texto era segmentado en pos de<br />
una gramática de rápida apropiación, de una gramática explicitada por el docente de manera<br />
tal que el alumno adquiriera unidades básicas tales como ti<strong>em</strong>pos verbales, sustantivos,<br />
oraciones subordinadas, etc. Por lo general, el ti<strong>em</strong>po didáctico se dividía en dos: un primer<br />
momento de explicación en donde el docente enuncia los aspectos de la lengua que se<br />
trabajarán en clase y un segundo momento en donde el alumno pasa a la aplicación y<br />
m<strong>em</strong>orización de la información. Esto puede ser observado de manera práctica en el material<br />
didáctico, usado hasta hace unos 8 años atrás. En estos documentos, cada unidad comienza<br />
con la presentación de la estructura a ser estudiada, es decir la primera etapa o la etapa de la<br />
enunciación. Se esperaba que la segunda etapa o etapa de la m<strong>em</strong>orización se produjera a<br />
partir de la reiterada exposición a la estructura objeto de enseñanza, que se repetía en varios<br />
de los textos de la misma unidad dado que, como ya dijimos, estaba graduado siguiendo el<br />
código lingüístico. A diferencia de la enseñanza del inglés general o “General English” el<br />
aspecto conductista del enfoque no está dado por la repetición de una estructura dada por<br />
parte del alumno o “drilling”, sino por la insistente exposición al ít<strong>em</strong> lingüístico objeto de<br />
enseñanza. Cumplen igual función las consignas elaboradas en inglés que siguen un mismo<br />
patrón de construcción a lo largo del texto-manual de enseñanza con el objetivo de que el<br />
alumno, después de enfrentarse a la misma consigna en reiteradas oportunidades, terminara<br />
incorporando la misma como parte del conocimiento de la lengua extranjera.<br />
Los el<strong>em</strong>entos paratextuales tenían poca o ninguna importancia para el proceso de la<br />
lectura, al punto tal que se transcriben los textos disciplinares que serán usados como material<br />
didáctico, sin prestar importancia al formato elegido por el autor, y por ende, al valor<br />
comunicativo del diseño gráfico y a la disposición de la información. Una vez más la<br />
conclusión clara es que, para ese entonces, el único instrumento de comunicación portador de<br />
sentido era el código lingüístico. La manipulación de los textos también respondía a la<br />
gradación antes mencionada dado que se recortaban los textos “a medida”, re<strong>em</strong>plazando los<br />
ít<strong>em</strong>s lingüísticos “inconvenientes” por una reformulación preparada por el docente y<br />
considerada más “sencilla” desde el punto de vista lingüístico, o “t<strong>em</strong>poralmente más<br />
conveniente” desde el punto de vista metodológico. Esto, juzgado generalmente a la luz de la<br />
gradación de los contenidos gramaticales desarrollados en los libros de texto usados para la<br />
enseñanza del Inglés General. No se consideraba que los objetivos de ambos enfoques de<br />
enseñanza, Inglés General e Inglés con Fines Académicos, diferían sustancialmente y por<br />
ende, el resto de las variables que intervienen en la enseñanza. Las actividades se limitaban a<br />
la traducción en primera instancia, ejercicios de apareamiento, preguntas literales en general,<br />
y, en contados casos, preguntas de inferencia. Tanto es así que la asignatura misma era<br />
conocida en general como “Traducción Técnica de Inglés” y aún hoy persiste en las<br />
representaciones sociales de nuestra facultad esa superposición entre la asignatura y la<br />
actividad. Las características anteriormente descriptas pueden claramente observarse en el<br />
Anexo 1, que contiene páginas seleccionadas del material usado en clase consideradas<br />
representativas de dicha etapa.<br />
9
3.1.1) Dificultades generales que se observaron en clase:<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Una importante limitación planteada por la aplicación didáctica de este enfoque es la<br />
falta de flexibilidad docente ante la posibilidad de que distintas interpretaciones de un mismo<br />
texto o consigna dieran como resultado distintas respuestas. Es decir, existe el supuesto de<br />
una única respuesta correcta para cada interrogante, que está, por otra parte, si<strong>em</strong>pre implícita<br />
en la mente del docente. El docente se erige, entonces, como autoridad irrefutable, portador<br />
único del saber. Pod<strong>em</strong>os inferir, a partir de esta situación, cuestiones como la de la<br />
distribución del poder en la clase, detentado, en este caso, por el portador de conocimiento<br />
indiscutido: el docente. Considero válido destacar que esta falta de flexibilidad en su<br />
momento respondía al intento del docente de controlar la actividad de manera tal de lograr<br />
respuestas “objetivas” de parte del alumno; sobre todo si la actividad propuesta se enmarcaba<br />
dentro de un momento destinado explícita o implícitamente a la evaluación del des<strong>em</strong>peño del<br />
alumno.<br />
Y es así que, muy relacionado con el supuesto anterior nos encontramos con el segundo:<br />
el sentido de un texto si<strong>em</strong>pre queda asociado al autor y el lector sólo debe operar<br />
objetivamente tratando de descubrirlo. El lector no participa de la construcción del sentido del<br />
texto, lo desentrama. Bajo esta concepción, no existe interacción entre lector y texto y toda<br />
actividad del aprendiente/lector está fuert<strong>em</strong>ente mediatizada por el docente y por sus propias<br />
creencias acerca del contenido del texto.<br />
Una tercera dificultad observada durante la aplicación didáctica de este paradigma es<br />
que el tipo de conocimiento que se esperaba que el alumno incorporara, siguiendo una<br />
denominación cognitivista, era el conocimiento declarativo del sist<strong>em</strong>a de la lengua. El hecho<br />
de que se convirtieran en contenidos procedurales dependían exclusivamente de las estrategias<br />
usadas por el alumno, aún cuando estas estrategias no estaban explicitadas en el currículo o<br />
programa de la materia como objetivos, ni era posible observarlas en la práctica diaria del<br />
aula. Dicho de otra manera, lo procedural no formaba parte de la preocupación docente dado<br />
que el foco de la enseñanza estaba puesto en el código de la lengua<br />
En clase, los alumnos/ lectores mostraban una tendencia generalizada hacia el uso de<br />
estrategias léxicas y proposicionales en el momento de abordar un texto académico en inglés,<br />
favorecido, evident<strong>em</strong>ente, por la metodología <strong>em</strong>pleada que centraba sus esfuerzos en un<br />
análisis detallado del sist<strong>em</strong>a de la lengua y en una descripción estructural del discurso.<br />
3.2) El amanecer cognitivista. Un intento de superación de las dificultades:<br />
A partir de las dificultades observadas en las producciones escritas de los alumnos en<br />
lengua materna a propósito de la lectura de textos en lengua extranjera, la propuesta de<br />
actividades de la cátedra comienza a tomar un sesgo claramente cognitivista. La dificultad del<br />
alumno de trascender la forma (significante), para llegar al contenido (significado) del texto<br />
se planteó como preocupación central de la cátedra. Esto dio lugar a la necesidad de cambios<br />
que se plasmaron en un trabajo titulado “Propuesta didáctica para la lecto-comprensión de<br />
textos” presentado en el 1er Congreso de Lecturas Múltiples en Paraná en el año 2005,<br />
conjuntamente con la profesora Grodek. Mostramos en ese momento variadas propuestas de<br />
actividades tendientes a la reconstrucción de la macroestructra del texto, que sirviera de<br />
marco de referencia para la activación de procesos cognitivos en el alumno, en un intento por<br />
focalizar la atención del lector en el contenido s<strong>em</strong>ántico del texto y no en la forma. Tanta fue<br />
la atención puesta en el rol de la macroestrutura del texto que elaboramos una clasificación de<br />
10
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
actividades presentes en el trabajo mencionado, en donde proponíamos tres grupos claramente<br />
diferenciados: a) actividades con posibilidades de limitada resolución, b) actividades de<br />
mediana producción, y por último, c) actividades de producción en la re-elaboración o reconstrucción<br />
del sentido del texto. En el primer grupo denominado “actividades con<br />
posibilidades de limitada resolución”, incluíamos:<br />
• actividades de apareamiento entre párrafos de un texto con sus correspondientes<br />
subtítulos,<br />
• actividades de apareamiento entre resúmenes de trabajos de investigación con sus<br />
correspondientes títulos,<br />
• actividades de apareamiento entre resúmenes de trabajos de investigación con sus<br />
correspondientes referencias bibliográficas,<br />
• actividades de apareamiento entre resúmenes de trabajos de investigación con sus<br />
correspondientes palabras claves,<br />
• actividades de selección múltiple de la idea central de un texto y<br />
• actividades de selección múltiple de esqu<strong>em</strong>as o mapas conceptuales en relación a un<br />
texto dado.<br />
Entre las actividades de mediana producción encontrábamos:<br />
• elaboración de un resúmen de un texto a partir de palabras o construcciones claves<br />
provistas por el docente,<br />
• elaboración de un listado de "ventajas y desventajas" o "causas y consecuencias",<br />
según el texto lo permita,<br />
• actividades de completación de información en una línea del ti<strong>em</strong>po de acuerdo a la<br />
información provista por el texto,<br />
• actividades de completación de un cuadro en donde se contraste información<br />
relacionada con dos o más puntos de vista acerca de un mismo t<strong>em</strong>a,<br />
• actividades de completación de un esqu<strong>em</strong>a resuelto en cuanto a la jerarquización de<br />
información, pero parcialmente resuelto e incompleto en cuanto al contenido del<br />
mismo.<br />
• Resolución de actividades en donde se indica si las oraciones que resumen cada<br />
párrafo de un texto son verdaderas o falsas y justificación de la respuesta.<br />
Y por último, entre las actividades de producción en la re-elaboración o re-construcción<br />
del sentido del texto, propusimos:<br />
• Elaboración de subtítulos (en forma de oración unim<strong>em</strong>bre o frase nominal) para cada<br />
párrafo de un texto.<br />
• Resumen de la idea central de un texto que se encuentre en forma implícita en el<br />
mismo y que exija procesos de inferencia.<br />
• Elaboración del resumen de un texto a partir de palabras o construcciones claves que<br />
el alumno debe previamente reconocer.<br />
• Elaboración de un mapa conceptual que refleje las relaciones s<strong>em</strong>ánticas entre las<br />
macroproposiciones del texto.<br />
• Reconocimiento de la intención del autor o macroestructura pragmática.<br />
En el primer grupo de las actividades de reconstrucción de la macroestructura,<br />
denominadas “Actividades con posibilidades de limitada resolución” todavía pod<strong>em</strong>os<br />
observar una fuerte impronta del enfoque estructuralista anterior dadas las características de<br />
búsqueda de “objetividad” en las respuestas. Esto tiene su explicación desde una visión<br />
11
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
retrospectiva de los hechos dado que, todo cambio implica un proceso, y en ese momento, aún<br />
nos encontrábamos en plena etapa de transición.<br />
Otro de los interrogantes que nos planteamos en la cátedra en aquel momento fue el de<br />
la actividad de la traducción como actividad central de la materia, a partir de las conclusiones<br />
de un trabajo de investigación presentado con la prof. Grodek en el marco de las VII Jornadas<br />
del Centro de Traducción y Terminología. Nos cuestionamos que la actividad de la traducción<br />
pudiera poner en funcionamiento en el lector los procesos cognitivos de orden superior.<br />
Probamos entonces que nuestros lectores realizaban en muchos casos una transcripción lineal<br />
del texto sin que ello necesariamente implicara que el lector pudiera establecer relaciones<br />
dentro del texto y entre el texto y sus conocimientos previos. En conclusión, no podíamos<br />
asegurar que la traducción resultante del texto fuera el equivalente a una actividad<br />
interpretativa, según observamos en ese estudio. Esta conclusión reforzó la idea de limitar la<br />
actividad de la traducción en pos de favorecer otras que focalizaran la reconstrucción<br />
s<strong>em</strong>ántica del texto y el tipo de actividad que cada disciplina, por su tipología textual<br />
predominante, favoreciera. Comenzábamos en ese momento a vislumbrar la relación existente<br />
entre el concepto de lectura con el de práctica social que adopta distintas modalidades según<br />
el contexto (en este caso, el académico), sin llegar a entender en su totalidad aún la<br />
profundidad del planteo.<br />
De una manera casi intuitiva, y en el intento por encontrar respuestas a las dificultades<br />
de nuestros alumnos, nos encontramos en ese momento trabajando de lleno dentro de un<br />
marco cognitivo. Al incorporar la noción de conocimiento previo, se asoció el sentido a la<br />
mente de los usuarios del lenguaje, dejando de lado la noción del texto como portador de<br />
sentido “intrínseco” y la negación de la capacidad reconstructiva del lector (VAN DIJK, T,<br />
2002, p.31).<br />
3.2.1) Conceptos básicos del enfoque adoptado:<br />
Este marco cognitivo nos abrió las puertas a nuevos conceptos tales como la<br />
construcción del conocimiento, la representación de la realidad y la dimensión de significados<br />
culturales que connotan una determinada forma de percibir e interpretar el entorno, y el<br />
desarrollo de destrezas (conocimiento procedural vs conocimiento declarativo), entre otros.<br />
Los conocimientos que se buscaban desarrollar eran de tipo procedural y se popularizó la<br />
frase “se aprende a leer, leyendo”. El docente actuaba como guía o andamiaje en este proceso<br />
personal, inferencial del alumno de descubrimiento del sentido del texto. Partíamos de la base<br />
de que el conocimiento previo le permite al lector elaborar hipótesis acerca del contenido del<br />
texto que serían probadas durante el proceso de lectura usando los índices o pistas que el texto<br />
mismo proveía. El lector ocupaba un rol central en el proceso y de sus conocimientos y<br />
destrezas dependía el enriquecimiento del sentido en la reconstrucción del texto y las<br />
relaciones que el mismo pudiera realizar entre el universo descripto por el autor y el del lector<br />
mismo. Es decir, y como lo expresa van Dijk, “…la coherencia es relativa a los hablantes y su<br />
conocimiento” (VAN DIJK, T, 2002, p. 33). Kenneth Goodman lo manifestaba de la siguiente<br />
manera “…Toda lectura es interpretación, y lo que el lector es capaz de comprender y de<br />
aprender a través de la lectura depende fuert<strong>em</strong>ente de lo que el lector conoce y cree antes de<br />
la lectura” (GOODMAN, K, 1982, P. 18). El lector, entonces, es el que repone los implícitos<br />
del texto en un trabajo colaborativo con el autor (ECO, H, 1999).<br />
3.2.2) Consecuencias a nivel metodológico:<br />
12
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Pod<strong>em</strong>os afirmar que bajo el paradigma anterior el objeto de enseñanza era “qué se<br />
enseña” (o código de la lengua), mientras que bajo el actual nos focalizamos en “cómo se<br />
aprende” (o procedimientos). La enseñanza de la lengua pasó de ser una sumatoria de<br />
secuencias a ser considerada un todo con sus distintos niveles de análisis. Las consignas<br />
cobraron importancia como proyecto de lectura, es decir, se lee con un propósito.<br />
Como en el enfoque anterior, la clase se dividía en momentos. En un primer momento se<br />
propiciaban las actividades de lectura, sumergiéndose el lector en un análisis del texto que<br />
avanzaba de lo general a lo particular, o, planteado en otros términos, partía del nivel<br />
macroestructural del texto, fluía a través del microestructural para llegar finalmente al nivel<br />
léxico. En un segundo momento de la clase o aprendizaje, el alumno/lector realizaba una<br />
codificación de regularidades a través de la representación del funcionamiento de la lengua<br />
mediante un proceso inferencial.<br />
En cuanto al diseño de material didáctico, se buscaron textos auténticos que tuvieran<br />
relevancia para el lector y, para lograr este cometido, se buscó que respondieran, no solo a las<br />
disciplinas a las que los alumnos pertenecieran sino que, de ser posible, al contenido de<br />
materias ya cursadas. El acento pasó de estar puesto en la selección de texto según sus<br />
potencialidades pedagógicas en cuanto a la pre<strong>em</strong>inencia de determinadas estructuras<br />
sintácticas o léxicas que se pretendía enseñar, a un texto cuyo contenido respondiera a las<br />
inquietudes de los alumnos, es decir, pasamos de considerar la estructura sintáctica a<br />
considerar la estructura s<strong>em</strong>ántica de los textos. Los textos eran presentados respetando su<br />
formato y se incorporaron los el<strong>em</strong>entos paratextuales como parte del proceso mismo de la<br />
lectura del texto, es decir, dejamos de considerar el código lingüístico como única variable<br />
portadora de sentido. Merece mencionarse una cuestión de índole práctica: la importancia que<br />
cobra el uso de programas de computación que permiten el copiado del texto y su<br />
incorporación como material didáctico al manual de estudio respetando su formato original.<br />
En el anexo 2 pueden observarse ej<strong>em</strong>plos del material aquí descripto.<br />
Sin <strong>em</strong>bargo, y como lo manifestamos con la prof. Grodek en el 1er. Coloquio Nacional<br />
Adquisición y Didáctica de las Lenguas, en el año 2008, en el trabajo de investigación<br />
titulado “Aprender a aprender a través de la lecto-comprensión”:<br />
…aún habiendo trabajado para superar las dificultades observadas, nos<br />
vimos encerradas en un camino sin salida: reflexionar acerca de los procesos<br />
y sus relaciones con los niveles del texto no nos ayudó a descubrir las<br />
maneras de superar las dificultades de comprensión que nuestros alumnos<br />
manifestaban. (LANZI, J; GRODEK, S, en prensa)<br />
3.2.3) Dificultades generales que se observaron en clase durante los años de trabajo descriptos<br />
bajo la impl<strong>em</strong>entación didáctica de este enfoque:<br />
De lo descripto anteriormente se desprenden algunas limitaciones que pudimos observar<br />
en clase. La más importante de ellas, el haber considerado que en el desarrollo de estrategias<br />
de lectura se encontraba la respuesta a las dificultades lectoras en general. Coincidimos así<br />
con Souchon que afirmó que si bien es cierto que<br />
…la reflexión metaprocedural sobre las estrategias y los procesos puestos en<br />
juego para llegar a (re)constituir el sentido, sin ninguna duda ayuda a los<br />
alumnos a abordar un texto en lengua extranjera (…)el manejo del<br />
procedimiento en sí mismo no garantiza un resultado que satisfaga al lector-<br />
13
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
estudiante dándole la sensación de haber logrado una interpretación del<br />
texto…” ( SOUCHON,M, 2006, p.36)<br />
Pudimos concluir que, así como el conocimiento del código de la lengua no garantiza la<br />
comprensión de un texto, tampoco es garantía el conocimiento acerca de los usos de las<br />
estrategias lectoras. Una segunda dificultad se planteó al intentar focalizar la atención del<br />
alumno en las macroestructuras del texto con la intención de alejarnos del paradigma anterior.<br />
Nos desplazamos, en muchos casos, hacia otro extr<strong>em</strong>o que nos llevó a observar una nueva<br />
dificultad: la de un lector que construye un texto en lengua materna con un contenido que<br />
difiere del original en lengua extranjera. Esto como resultado del uso de una estrategia<br />
inadecuada durante el acto de procesamiento de la lectura a partir de un mecanismo<br />
compensatorio del lector ante un déficit en el procesamiento básico de la información. Según<br />
lo expresan Mc Ginitie; Maria y Kimmel “… un mal lector con una sobredependencia en el<br />
proceso descendente, toma desde un principio la decisión sobre el t<strong>em</strong>a general de que trata el<br />
texto e ignora todos aquellos detalles del texto que puedan ir en contra de su hipótesis” (MC<br />
GINITIE, W; MARIA, K; KIMMEL, S ,1986, p. 32).<br />
Con una mirada reflexiva sobre nuestra propia práctica pedagógica, nos replanteamos<br />
los enfoques adoptados frente a lo que consideramos debería ser el objetivo último de la<br />
enseñanza de la lecto-comprensión en lengua extranjera en el contexto universitario: la<br />
formación de un lector crítico, cualidad esta que debiera caracterizar a un lector universitario.<br />
Se abrió, entonces, otro punto de inflexión en nuestra tarea e incorporamos, así, a nuestro<br />
discurso y práctica pedagógica una nueva dimensión: la contextual, representada aquí por el<br />
ámbito académico, más precisamente, el disciplinar.<br />
3.3) El enfoque contextual:<br />
Partimos de la siguiente hipótesis: las prácticas de lectura y escritura en el contexto<br />
universitario son distintas de aquellas desarrolladas en la escuela media. Por lo tanto, una<br />
característica del contexto universitario son sus prácticas de lectura y escritura. De estas<br />
prácticas de lectura y escritura depende en gran medida el éxito o el fracaso del alumno<br />
universitario, puesto que un manejo satisfactorio de las mismas le permitirá acceder a la<br />
comunidad disciplinar o lingüística a la cual aspira pertenecer. Sin <strong>em</strong>bargo son pocos los<br />
docentes de las distintas asignaturas que acompañan a sus alumnos a apropiarse de estas<br />
“…formas de razonamiento instituidas a través de ciertas convenciones del discurso”<br />
(CARLINO, P, 2005, p.14). El desafío planteado es, entonces, ¿de qué manera el docente de<br />
lenguas extranjeras puede favorecer y facilitar esa inclusión? ¿Qué cambios deb<strong>em</strong>os<br />
promover en la didáctica de la lecto-comprensión de lenguas extranjeras para promover la<br />
participación activa de nuestros estudiantes en la cultura escrita del ámbito universitario?<br />
Cre<strong>em</strong>os que la respuesta está en este enfoque contextual que integra aspectos del enfoque<br />
declarativo, otros del procedural y finalmente la dimensión histórico-social del contexto.<br />
Marc Souchon dice al respecto que “muchos docentes han notado que los alumnos ingresantes<br />
(…) pueden encontrar dificultades para comprender textos de su programa de estudio y para<br />
producir escritos satisfactorios…”(SOUCHON, M., 2006, p. 29). Y es que los textos exigen<br />
no solamente de una participación individual del lector (relaciones entre conocimiento previo<br />
y conocimiento nuevo y el procesamiento del texto que el lector realiza), sino también una<br />
cognición sociocultural (conocimiento de género o formato).<br />
Ambas dimensiones, individual y social, son condiciones para comprender los escritos<br />
de una disciplina. Ante esta probl<strong>em</strong>ática, asumimos nosotros, como docentes de lecto-<br />
14
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
comprensión del discurso académico en inglés, el desafío de acompañar a estos alumnos<br />
principiantes en su transición hacia la “cultura académica” que les permita a mediano o largo<br />
plazo incorporarse a la comunidad respectiva. Para esto adherimos al concepto de<br />
alfabetización académica de Paula Carlino quien cuestiona que se aprende a escribir de una<br />
vez y para si<strong>em</strong>pre y que “…aprender a producir e interpretar lenguaje escrito es un asunto<br />
concluido al ingresar a la educación superior” (CARLINO, P., 2005, p. 14). Así asumimos el<br />
desafío de integrar a nuestra enseñanza las características de los escritos universitarios más<br />
representativos, definidos como “textos de transmisión y construcción de conocimientos”<br />
(SOUCHON,M.,2006, p.31). Dentro de este contexto universitario, entend<strong>em</strong>os que la lectura<br />
en lengua extranjera es<br />
“…el proceso de construcción de sentido llevado a cabo por un lector, que<br />
forma parte de una determinada comunidad disciplinar, a partir de un texto<br />
escrito en un idioma que no es el materno, y mediante el diálogo establecido<br />
con el autor, con el propósito de construir conocimiento dentro de un área<br />
específica” .<br />
(DORRONZORO, M; KLETT, E., 2006,<br />
p. 59).<br />
En esta última definición pod<strong>em</strong>os notar la fuerte relación que las autoras establecen<br />
entre comprensión y aprendizaje. Esta relación es la que nos impulsó a seguir profundizando<br />
entre los modos de entender y aprender una disciplina, y que nos llevó a investigar acerca de<br />
una metodología de la comprensión que vaya más allá de la enseñanza del código de la lengua<br />
y de las estrategias de lectura. Focalizamos entonces, nuestros esfuerzos, en el acto de<br />
comunicación en una situación o contexto determinado y para ello <strong>em</strong>prendimos el diseño de<br />
situaciones didácticas que fueran coherentes con los principios teóricos desarrollados.<br />
Presentamos, conjuntamente con la Prof. Grodek, esta nueva manera de trabajo en las 1ras<br />
Jornadas de Actualización y Perfeccionamiento en el Uso de la Lengua Inglesa en el año<br />
2008, en un trabajo titulado “Textos académicos en inglés: su explotación a través de la lectocomprensión<br />
en donde desarrollamos el enfoque por tareas.<br />
3.3.1) El “enfoque por tareas” o “task based approach”. Definición y características:<br />
Entend<strong>em</strong>os por tarea “…una actividad en la que el sentido es lo principal, hay un<br />
probl<strong>em</strong>a a ser resuelto y hay una relación con el mundo real” (SKEHAN, p., 2001, p.12-13).<br />
El enfoque por tareas tiene como ejes generales el aprendizaje centrado esta vez en el<br />
alumno. Se le da mayor importancia al proceso (la manera de llevar a cabo las actividades)<br />
que al resultado. El foco de la enseñanza se encuentra en el sentido más que en la forma, y se<br />
habla de construcción y no de transmisión de conocimiento. Cobra fuerza la perspectiva social<br />
en el proceso de aprendizaje de la lengua. Este enfoque exige, ad<strong>em</strong>ás, un diseño curricular<br />
de naturaleza s<strong>em</strong>ántica regulado desde las necesidades del alumno y desde el contexto de<br />
apropiación. D<strong>em</strong>anda, también, el aprendizaje de estrategias que le posibiliten al aprendiente<br />
resolver situaciones comunicativas nuevas. Este enfoque actúa, asimismo, como mediador<br />
entre los enfoques cognitivos y la interacción social, es decir, entre los procesos individuales<br />
y los procesos sociales.<br />
Consideramos, entonces y como lo manifestamos en las XII Jornadas de Lenguas<br />
Extranjeras en el Nivel Superior, en Paraná en el año 2009, conjuntamente con la Prof.<br />
Grodek en un trabajo titulado “El enfoque por tareas aplicado a la didáctica de la lectocomprensión<br />
de textos de especialidad en inglés” que<br />
15
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
“…las prácticas involucradas en la lectura, que se originan en un marco<br />
contextual particular, deben entenderse como actividades de resolución de<br />
probl<strong>em</strong>as que respondan a la esencia de dicha disciplina promoviendo en<br />
dichos aprendientes experiencias generadoras de capacidades para la<br />
construcción de conocimientos.”<br />
(GRODEK, S.; LANZI, J., 2009)<br />
3.3.2) Consecuencias a nivel metodológico<br />
En el trabajo en clase, y exhibiendo una diferencia significativa con los paradigmas<br />
anteriores, el texto dejó de ser considerado solamente una secuencia de oraciones unidas por<br />
una macroestructura en el que se establecen relaciones de tipo s<strong>em</strong>ántico. Aún cuando en esta<br />
definición la competencia comunicativa estuviera presente en los conceptos de<br />
“macroestructura” y de “relaciones de tipo s<strong>em</strong>ántico”, el conjunto de signos que hasta aquí<br />
caracterizaba al texto estaba en principio dado por su código lingüístico. En esta etapa, y en<br />
consonancia con los objetivos de este trabajo, consideramos texto a cualquier documento<br />
sígnico que tiene una intención comunicativa y que adquiere sentido en determinado contexto,<br />
en virtud de los espacios compartidos entre autor y lector. Y esto se refleja en clase con la<br />
incorporación de tapas, contratapas, índices y referencias bibliográficas con sus<br />
correspondientes sist<strong>em</strong>as de signos, que son incorporados a la práctica pedagógica durante el<br />
proceso de interpretación. La disposición de la información en el escrito cobra un valor<br />
comunicativo, dejando de ser considerado una cuestión accesoria más ligada a lo estético que<br />
a lo funcional.<br />
Las tareas asignadas a los alumnos intentan ser recursos didácticos para el aprendizaje<br />
significativo del sist<strong>em</strong>a de la lengua y de las competencias de lectura, así como el camino<br />
para desentrañar la intención del autor. Responden a un proyecto de lectura que atiende<br />
necesidades concretas, por lo tanto las consignas se formulan en español para poder reflejar la<br />
complejidad de cualquier situación comunicativa que defina, lo más concretamente posible, el<br />
contexto de realización de la tarea. Se intenta que la tarea implique la resolución de un<br />
probl<strong>em</strong>a y se asume el riesgo de que este pueda generar diferentes modos de actuación y<br />
también diferentes resultados.<br />
Se trata de propiciar la reflexión metalingüística como manera de contextualizar la<br />
enseñanza del código lingüístico de manera tal que se asume que la construcción del<br />
conocimiento de este código ocurre mientras se lleva a cabo la actividad propuesta por el<br />
docente. Se intenta también propiciar el desarrollo de un pensamiento crítico a través de la<br />
reflexión acerca de los usos de la lengua. Ej<strong>em</strong>plos de textos y sus actividades pueden<br />
encontrarse en el anexo 3.<br />
4) Conclusiones:<br />
Desde esta perspectiva contextual el proceso de la comprensión lectora puede ser<br />
entendido como una práctica cultural que ocurre dentro de contextos socio-históricos<br />
determinados. Si bien el lector/aprendiente inicia su proceso de alfabetización de manera<br />
formal con la adquisición de unidades básicas de la lengua escrita en la escolaridad primaria,<br />
en el ámbito académico alcanza su real propósito cuando el aprendiente se apropia de los usos<br />
del lenguaje escrito. Así adquiere una dimensión comunicativa que le facilita al lector el<br />
acceso a los saberes ligados a la cultura escrita de su campo disciplinar.<br />
16
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Es importante recalcar que el aprendizaje del código lingüístico per se de la lengua<br />
extranjera que vehiculiza estos nuevos conceptos para el lector no garantiza la comprensión<br />
de los mismos. El desarrollo de la competencia de la comprensión lectora se adquiere como<br />
consecuencia de la participación activa en procesos de lectura y escritura de los<br />
alumnos/lectores en variedades de prácticas discursivas que ocurren en determinados<br />
contextos, en este caso, el académico. Es en esta misma participación activa de los procesos<br />
de lectura que el alumno construye el aprendizaje de un código lingüístico nuevo,<br />
contextualizado por las prácticas de lectura propias de la disciplina de las que el lector aspira<br />
participar.<br />
El concepto de género trasciende el del mero formato o abstracción para convertirse, por<br />
medio de los usos del lenguaje, en un verdadero producto de la actividad social. El contexto,<br />
entonces, enmarca la actividad pedagógica de los cursos de lecto-comprensión definiendo<br />
características pragmáticas específicas de los mismos que se reflejan en la impl<strong>em</strong>entación del<br />
“enfoque por tareas”. Este enfoque constituye una vía para incorporar a la clase situaciones<br />
que simulen la realidad mediante la resolución de actividades relevantes para un lector en el<br />
contexto universitario.<br />
Por otra parte, y como consecuencia de lo ya expresado, la enseñanza de la lectocomprensión<br />
de textos académicos en lengua extranjera en este contexto situacional no puede<br />
disociarse de la función epistémica de la lectura: la construcción de los conocimientos<br />
disciplinares. Esta construcción de conocimientos disciplinares se logra usando el texto<br />
académico y su contenido como vehículo de la lengua a ser aprendida, si<strong>em</strong>pre con el acento<br />
puesto en el contenido s<strong>em</strong>ántico del texto y en la actividad a ser resuelta. La resolución de la<br />
actividad se logra poniendo en juego estrategias de lectura que son, a la vez, estrategias de<br />
aprendizaje propias de las distintas disciplinas del contexto universitario. De esto último se<br />
desprende que no sólo los usos del lenguaje son un el<strong>em</strong>ento que caracteriza una comunidad<br />
discursiva dada, sino también sus modos de apropiación través de sus prácticas de lectura, y<br />
por ende, de escritura.<br />
Referencias:<br />
ANDERSON, B A.; TEALE, W. H. La lecto-escritura como práctica cultural. In: FERREIRO, E.;<br />
GOMEZ PALACIOS, M. (Compiladoras) Nuevas Perspectivas sobre los Procesos de Lectura y<br />
Escritura. 8º edición. Buenos Aires, Argentina: Siglo Veintiuno Editores. 1986. p.271-295<br />
BAJTIN, M. Estética de la creación verbal. Méjico: Siglo XXI Editores, 1990. p. 396<br />
CARLINO, P. Escribir, leer y aprender en la universidad: una introducción a la alfabetización<br />
académica. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2006. p. 200<br />
------ (Coord.), Textos en Contexto 6: Leer y escribir en la Universidad. Buenos Aires: Asociación<br />
Internacional de Lectura. Lectura y Vida, 2004. p. 110<br />
ECO, U. Lector in Fabula: la cooperación interpretativa en el texto narrativo. Barcelona: Lumen,<br />
1999. p. 330.<br />
GAIOTTI, C. (2007) ¿Con qué dialogan los manuales de lengua extranjera? Imaginarios sociales,<br />
ideologías y contexto. En Klett, E. (Dirección) Recorridos en didáctica de las lenguas extranjeras<br />
(p.23-34) (1º edición) Buenos Aires, Argentina: Araucaria Editora.<br />
17
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
GRODEK DE MARENGO, S; LANZI DE ZEITUNE, J. La lectocomprensión de textos académicos<br />
en inglés y la actividad de la traducción. In: PILAN, MARIA DEL CARMEN; CABRERA, LUCILA<br />
M. (Compiladoras). Traducción y Terminología. Perspectivas disciplinares. No prelo<br />
------. El enfoque por tareas aplicado a la didáctica de la lecto-comprensión de textos de especialidad<br />
en inglés. In: JORNADAS DE ENSEÑANZA DE LENGUAS EXTRANJERAS EN EL NIVEL<br />
SUPERIOR, XII, 2009, Paraná, Anais, Paraná: Universidad Nacional de Entre Ríos, 2009. 1 CD<br />
LANZI , JOSEFINA; GRODEK, SILVIA. Aprender a Aprender a través de la Lecto-comprensión. In:<br />
PASTOR, RAQUEL B; BABOT, MARÍA V. (Compiladoras). Enfoques, investigaciones y<br />
proyecciones en didáctica de las lenguas extranjeras. No prelo<br />
------. Textos académicos en inglés: su explotación a través de la lecto-comprensión. In: JORNADAS<br />
DE ACTUALIZACIÓN Y PERFECCIONAMIENTO DE LA LENGUA INGLESA, 1, 2008, San<br />
Miguel de Tucumán. Anais. San Miguel de Tucumán: Universidad Nacional de Tucumán, 2010.1 CD<br />
MC GINITIE, W; MARIA, K; KIMMEL, S. El papel de las estrategias cognitivas no-acomodativas en<br />
ciertas dificultades de comprensión de la lectura. In: FERREIRO, E.; GOMEZ PALACIOS, M.<br />
(Compiladoras) Nuevas Perspectivas sobre los Procesos de Lectura y Escritura. 8º edición. Buenos<br />
Aires, Argentina: Siglo Veintiuno Editores. 1986. p. 31-32<br />
NUNAN, D. Designing Tasks for the Communicative Classrooms. Cambridge University Press, 1989.<br />
p. 224<br />
PARADISO, J.C. Fundamentos y aplicaciones de los diagramas en el aprendizaje. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://paradiso.nireblog.com/post/2006/10/09/diagramas-y-aprendizaje Acesso <strong>em</strong> : 26 de marzo de<br />
2009.<br />
PASTOR, R.; SIBALDI, N.; KLETT, E., (Compiladoras) Lectura en Lengua Extranjera: Una Mirada<br />
desde el Receptor. Centro de Estudios Interculturales UNT-UBA, Tucumán : Facultad de Filosofía y<br />
<strong>Letras</strong>, 2006. p. 240<br />
SANCHEZ, A. The Task-based Approach in Language Teaching, Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://www.um.es/ijes/vol4n1/03-ASanchez.pdf. Acesso <strong>em</strong>: 3 de dici<strong>em</strong>bre de 2008<br />
SKEHAN, P. A cognitive approach to language learning. China: Oxford University Press, 2008 .p.<br />
324<br />
SOUCHON, M. Análisis del discurso de los aprendientes consecutivo a la lecto-comprensión de textos<br />
en lengua extranjera (LE). In: HELMAN, S.; COHEN, E. (Compiladoras). La Didáctica de las<br />
Lenguas. Reflexiones y Propuestas. Tucumán: Facultad de Filosofía y <strong>Letras</strong>. 2004. p. 89-118<br />
------. Los cursos de “lectocomprensión” como espacio de mediación sociocultural. In: PASTOR, R.,<br />
SIBALDI, N.; KLETT, E. (Compiladoras). Lectura en Lengua Extranjera: Una mirada desde el<br />
receptor. Tucumán: Facultad de Filosofía y <strong>Letras</strong>, 2006. p. 25-56<br />
SWALES, J. Genre Analisis: English in Acad<strong>em</strong>ic and Research Settings. Cambridge: Cambridge<br />
University Press, 1990. p. 260<br />
VAN DIJK, T. (Compilador). El discurso como estructura y proceso España: Gedisa, 1997. p. 507<br />
18
------. La ciencia del texto. Buenos Aires: Paidós, 1998. p. 294<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
VIGOTSKY, L.S. Thought and Language. 2º edition. Cambridge, Massachusetts, USA: The M.I.T.<br />
Press. 1965. p. 352<br />
WILLIS, J. A Framework for Task-Based Learning. England: Longman.. 1996. p. 160<br />
ANEXO 1<br />
.<br />
19
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ANEXO 2<br />
Read the following text and:<br />
A) From the alternatives below, choose the stat<strong>em</strong>ent you think represents best the main idea of the text:<br />
1.- The relationship between primitive herding and natural vegetation.<br />
2.- The differences between primitive herding and primitive gathering.<br />
3.- The relationship between natural vegetation and heavy rainfall.<br />
B) Divide the text into paragraphs and choose the stat<strong>em</strong>ent you think describes th<strong>em</strong> best. (There is an<br />
extra sentence).<br />
STATEMENTS<br />
1.- The relationship of vegetation and amount of available moisture.<br />
2. Looking for the heights.<br />
3.- Herding and vegetation.<br />
4.- Vegetation and herding conditioned by precipitations<br />
5.- Primitive herding and gathering. Main Differences<br />
6.- Lowlands are best<br />
C) Complete the following chart (lines 1 to 6):<br />
PARAGRAPH N°<br />
20
D<br />
I<br />
F<br />
F<br />
E<br />
R<br />
E<br />
N<br />
C<br />
E<br />
S<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
PRIMITIVE GATHERING PRIMITIVE HERDING<br />
D) There are two mistakes in this drawing. Can you find th<strong>em</strong>? (lines 7 to 13)<br />
Relationship: moisture supply and vegetation<br />
DRY WET<br />
Steppe Long Grass Short Grass<br />
D) This drawing represents different herding areas. Write on it the name of the animals you may find<br />
according to the information given in paragraph 3 (lines 14 to 17):<br />
…………………….. ……………………. ………………………<br />
Dry regions Moister regions<br />
Regions of shrubs, bunch grass, and short grass<br />
D) What do the following words or expressions refer to in the text?<br />
Line 1: “… a step above…” line 1: “…live by…”<br />
Line 2: “…at least…” line 7: “… a step upward…”<br />
Line 10/11: “…of course…” line 11: “…undisturbed…”<br />
21
ANEXO 3<br />
1<br />
4<br />
A) ¿Qué índices corresponden a las siguientes tapas?<br />
2<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
3<br />
5<br />
22
A B<br />
C<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
D E<br />
23
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Estudos linguísticos<br />
24
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Variação fonológica das vogais pretônicas /e/ e /o/ dos verbos na variedade<br />
do interior paulista<br />
Márcia Cristina do Carmo (UNESP/IBILCE) 1<br />
Resumo: O presente artigo objetiva descrever e analisar o comportamento fonológico das vogais médias<br />
pretônicas dos verbos na variedade do interior paulista, mais precisamente da região noroeste do estado. Em<br />
algumas dessas vogais, há a ocorrência do fenômeno denominado alçamento vocálico, por meio do qual as<br />
vogais /e/ e /o/ são pronunciadas, respectivamente, como [i] e [u], como <strong>em</strong> s[i]guindo e c[u]zinhar. Como<br />
corpus de pesquisa, são utilizados dezesseis inquéritos do Banco de Dados IBORUNA, resultado do Projeto<br />
ALIP (IBILCE/UNESP – FAPESP 03/08058-6). A <strong>análise</strong> dos dados é feita segundo a Teoria da Variação e da<br />
Mudança Linguística (LABOV, 1991), com a utilização do pacote estatístico VARBRUL. Como resultado geral,<br />
t<strong>em</strong>-se que alçam 16% das 2455 ocorrências de vogal pretônica /e/ e 10% das 2147 ocorrências de vogal<br />
pretônica /o/. Observa-se que a maioria das ocorrências de pretônicas alçadas pode ser explicada pelo processo<br />
de harmonização vocálica, por meio do qual há a influência de uma vogal alta presente na sílaba seguinte à da<br />
pretônica-alvo, como <strong>em</strong> acr[i]ditar e t[u]ssindo. Este artigo apresenta os resultados referentes às principais<br />
variáveis relacionadas a esse processo, como a altura da vogal da sílaba subsequente à sílaba da pretônica-alvo,<br />
apontada pelo programa VARB2000 como a variável mais relevante à aplicação do alçamento, tanto no tangente<br />
à vogal pretônica /e/, quanto à vogal pretônica /o/. Para essa variável, por ex<strong>em</strong>plo, verificam-se altos pesos<br />
relativos no que diz respeito às vogais altas, especialmente à anterior /i/, que apresenta pesos relativos de .93<br />
para o alçamento da vogal pretônica /e/ e .90 para a vogal /o/. Em outras palavras, pode-se dizer que a presença<br />
de uma vogal alta – sobretudo /i/ –, na sílaba seguinte à da pretônica-alvo é altamente favorecedora da aplicação<br />
do alçamento na variedade considerada.<br />
1) Introdução<br />
O presente trabalho divulga os principais resultados da pesquisa de Mestrado de<br />
Carmo (2009), que discorre sobre as vogais médias pretônicas dos verbos na variedade do<br />
interior paulista, mais precisamente da região do município de São José do Rio Preto,<br />
localizado no noroeste do estado. Nessas vogais, há o fenômeno variável denominado<br />
alçamento vocálico, por meio do qual as vogais médias /e/ e /o/ são pronunciadas,<br />
respectivamente, como as altas [i] e [u], como <strong>em</strong> pr[i]firo e c[u]mer. Esta pesquisa trata,<br />
mais especificamente, dos casos de alçamento vocálico relacionados ao processo de<br />
harmonização vocálica, por meio do qual há a influência de uma vogal alta presente na sílaba<br />
seguinte à da pretônica-alvo, como <strong>em</strong> s[i]ntindo e p[u]dia.<br />
A escolha pelo estudo das vogais médias pretônicas dos verbos é justificada pelo fato<br />
de haver poucos trabalhos que consideram unicamente essa classe gramatical, como, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, o de Collischonn e Schwindt (2004), que descrev<strong>em</strong> as vogais médias pretônicas<br />
dos verbos das três capitais da região sul do Brasil. De modo geral, os estudos acerca de<br />
vogais médias pretônicas tend<strong>em</strong> a privilegiar a classe gramatical dos nomes, isto é,<br />
substantivos e adjetivos. No entanto, há certas diferenças no que diz respeito ao<br />
comportamento de vogais médias pretônicas presentes <strong>em</strong> nomes e <strong>em</strong> verbos, como mostra<br />
1 Bolsista FAPESP (Proc. 2009/09133-8). Orientadora: Prof a . Dr a . Luciani Ester Tenani (UNESP/IBILCE).<br />
25
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Schwindt (2002), ao afirmar que, entre vogais pretônicas das raízes dos verbos e dos sufixos<br />
verbais, há um processo de harmonização vocálica, como, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> d[i]via, ao passo<br />
que, entre as vogais pretônicas de raízes de nomes e de sufixos nominais, isso não ocorre,<br />
como <strong>em</strong> burgu[e]sia. Tal diferença indicia a importância de se analisar vogais médias<br />
pretônicas presentes não somente <strong>em</strong> nomes, como também <strong>em</strong> verbos.<br />
O presente artigo está estruturado da seguinte forma: na seção 2, é apresentado o<br />
arcabouço teórico que fundamenta este trabalho; <strong>em</strong> 3, são apresentados o corpus e a<br />
metodologia <strong>em</strong>pregada na pesquisa; <strong>em</strong> 4, t<strong>em</strong>-se a <strong>análise</strong> dos dados, seguida pelas<br />
considerações finais (seção 5) e pelas referências.<br />
2) Arcabouço teórico<br />
Como fundamentação teórica, segue-se a Teoria da Variação e da Mudança<br />
Linguística (LABOV, 1991) 2 , também denominada Sociolinguística quantitativa, por operar<br />
com números e tratamento estatístico dos dados. Segundo essa <strong>teoria</strong>, as escolhas entre dois<br />
ou mais sons, palavras ou estruturas obedec<strong>em</strong> a um padrão sist<strong>em</strong>ático regulado pelas regras<br />
variáveis, que expressam a co-variação entre el<strong>em</strong>entos linguísticos e sociais.<br />
Segundo Faraco (2005), é da realidade heterogênea e variável da língua que <strong>em</strong>erge a<br />
mudança. Para que exista mudança, é necessário que tenha havido variação. Nesse caso, a<br />
realização de uma variante se sobrepôs totalmente à da variante com a qual competia. No<br />
entanto, sabe-se que não necessariamente a variação acarreta mudança.<br />
No panorama da variação, encontra-se o processo de alçamento <strong>em</strong> vogais pretônicas,<br />
regra variável que possibilita a co-existência de formas como par[e]cia ~ par[i]cia e<br />
c[o]meça ~ c[u]meça, que ocorr<strong>em</strong> <strong>em</strong> um mesmo contexto fonológico, <strong>em</strong> uma mesma<br />
comunidade de fala e, <strong>em</strong> determinados casos, na fala de um mesmo informante.<br />
Há, de forma geral, dois processos que acarretam a aplicação desse fenômeno: (i)<br />
redução vocálica (ABAURRE-GNERRE, 1981), por meio da qual a vogal sofre a influência<br />
do ponto de articulação da(s) consoante(s) adjacente(s) a ela, como, por ex<strong>em</strong>plo, no vocábulo<br />
alm[u]çar, <strong>em</strong> que a consoante precedente [m], pelo seu traço de labialidade, favorece a<br />
ocorrência da vogal alta /u/, que t<strong>em</strong> uma maior labialização do que /o/, conforme afirma<br />
Bisol (1981); e/ou (ii) harmonização vocálica (SILVEIRA, 1939, apud CAMARA Jr., 2007;<br />
BISOL, 1981) <strong>em</strong> que há a influência de uma vogal alta presente na sílaba seguinte à da<br />
pretônica-alvo, como <strong>em</strong> v[i]stia e c[u]stuma. No tangente especificamente à harmonização<br />
vocálica das vogais pretônicas dos verbos, Bisol (1981) afirma que, <strong>em</strong> verbos de segunda e<br />
de terceira conjugações, há uma abundância de condicionadores na flexão verbal, que cria<br />
vogais altas e as espalha pelo paradigma, como, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> s[i]nti, s[i]ntia, etc.<br />
Passa-se, agora, à apresentação do material e da metodologia <strong>em</strong>pregados nesta<br />
pesquisa.<br />
3) Material e métodos<br />
2 Primeira edição <strong>em</strong> 1972.<br />
26
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Como corpus de pesquisa, foram utilizadas dezesseis entrevistas do banco de dados<br />
IBORUNA 3 , resultado do Projeto Amostra Linguística do Interior Paulista – ALIP (Proc.<br />
FAPESP 03/08058-6), realizado no IBILCE/UNESP, sob a coordenação do professor Dr.<br />
Sebastião Carlos Leite Gonçalves. Esse banco de dados conta com amostras de fala<br />
espontânea de informantes oriundos de São José do Rio Preto e de seis cidades<br />
circunvizinhas, sendo elas: Bady Bassit, Cedral, Guapiaçu, Ipiguá, Mirassol e Onda Verde.<br />
O banco de dados IBORUNA é composto por dois tipos de amostras: (i) censo<br />
linguístico; e (ii) de interação dialógica. Neste trabalho, é considerado apenas o primeiro tipo,<br />
por ser nele que há maior controle das variáveis sociais, o que possibilita a seleção dos<br />
inquéritos utilizados como corpus desta pesquisa. Esses inquéritos correspond<strong>em</strong> a amostras<br />
de fala espontânea de informantes do sexo f<strong>em</strong>inino que apresentam: (i) Ensino Superior<br />
completo ou <strong>em</strong> andamento; e (ii) uma das seguintes faixas etárias: de 16 a 25; de 26 a 35; de<br />
36 a 55; e acima de 55 anos.<br />
Apesar de ter sido considerada a variável faixa etária, no presente trabalho, serão<br />
apresentados apenas os resultados referentes a variáveis linguísticas e, mais precisamente,<br />
àquelas relacionadas ao processo de harmonização vocálica: (i) altura da vogal da sílaba<br />
subsequente à sílaba da pretônica-alvo; (ii) tonicidade da vogal da sílaba subsequente à<br />
sílaba da pretônica-alvo; (iii) tipo de sufixo com vogal alta presente no vocábulo <strong>em</strong> que a<br />
pretônica-alvo ocorre; e (iv) conjugação do verbo <strong>em</strong> que a pretônica-alvo ocorre. A escolha<br />
por essas variáveis se dá por, como será observado na seção 4 deste artigo, (i) a harmonização<br />
vocálica ter sido apontada como o processo mais atuante na aplicação do alçamento das<br />
vogais médias pretônicas dos verbos na variedade do interior paulista; e (ii) as variáveis acima<br />
arroladas ter<strong>em</strong> sido indicadas como as mais relevantes para a aplicação do fenômeno,<br />
especialmente no tangente à vogal pretônica /e/.<br />
Alguns contextos foram desconsiderados da <strong>análise</strong> dos dados, sendo eles os de vogais<br />
médias pretônicas presentes <strong>em</strong>:<br />
início de vocábulo, como <strong>em</strong> [i]studar, pois, segundo Bisol (1981), os princípios regentes do<br />
alçamento de uma vogal inicial não são os mesmos daqueles que elevam uma vogal pretônica<br />
interna, justificando-se um estudo específico para o contexto da vogal inicial;<br />
prefixo, pois o alçamento apresenta comportamento singular a depender do prefixo: é<br />
bloqueado <strong>em</strong> alguns, como <strong>em</strong> pr[e]visto, enquanto, <strong>em</strong> outros, ocorre com grande<br />
frequência, como <strong>em</strong> d[i]sapareceu. Em muitos casos, há, também, a elisão da pretônica /e/<br />
no prefixo /des-/. Tais fatos mostram a complexidade de tal contexto, que, pelos motivos<br />
apresentados, deve ser estudado/analisado à parte;<br />
ditongo, contexto <strong>em</strong> que as vogais médias pretônicas são seguidas por s<strong>em</strong>ivogais, as quais<br />
não t<strong>em</strong> as mesmas propriedades de vogais “plenas”, e, por isso, não pod<strong>em</strong> ser analisadas<br />
como favorecedoras ou não da harmonização vocálica <strong>em</strong> variáveis da mesma forma que as<br />
d<strong>em</strong>ais são investigadas neste trabalho. Destaca-se, também, nesse contexto, a existência de<br />
outro processo fonológico: a monotongação, como <strong>em</strong> d[e]xar e r[o]baram; e<br />
hiato, pois a maioria das vogais presentes nesse contexto sofre o processo de alçamento,<br />
especialmente quando seguidas de /a/ tônico (Câmara Jr., 2007), como <strong>em</strong> rod[i]ando e<br />
sort[i]ava. Opta-se por não considerar vogais pretônicas presentes <strong>em</strong> hiato pelo fato de suas<br />
altas porcentagens de ocorrência de alçamento poder<strong>em</strong> enviesar os resultados quantitativos<br />
3 Disponível <strong>em</strong> www.iboruna.ibilce.unesp.br.<br />
27
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
sobre a aplicação do fenômeno, que tend<strong>em</strong> a constituir pequenas porcentagens, como se<br />
verifica <strong>em</strong> estudos sobre vogais médias pretônicas <strong>em</strong> outras variedades do Português<br />
Brasileiro.<br />
Após esses procedimentos metodológicos, foram feitas as quantificações dos dados<br />
levantados, por meio da utilização de programas do pacote estatístico VARBRUL.<br />
4) Análise dos dados<br />
A partir do levantamento de dados, foram encontradas 2455 ocorrências de vogais<br />
pretônicas /e/ e 2147 de /o/. Deve-se considerar que esses números correspond<strong>em</strong> a cada<br />
ocorrência de vogal média pretônica encontrada. Dessa forma, no vocábulo r[e]c[e]ber, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, t<strong>em</strong>-se duas ocorrências de pretônica /e/, e, como esse it<strong>em</strong> lexical aparece cinco<br />
vezes no corpus, são contabilizadas, então, dez ocorrências diferentes de pretônicas /e/.<br />
Analisando os vocábulos encontrados, verifica-se que há itens lexicais cujas vogais<br />
pretônicas nunca são alçadas, ou seja, o processo é bloqueado <strong>em</strong> tais vocábulos, como<br />
ocorre, por ex<strong>em</strong>plo, nos seis casos de pr[e]star e nas vinte e cinco ocorrências de v[o]ltou.<br />
Observam-se, também, vocábulos <strong>em</strong> que o alçamento da vogal pretônica mostra-se<br />
categórico, como, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> p[u]dia, <strong>em</strong> que houve a realização do processo de<br />
alçamento da pretônica /o/ <strong>em</strong> todas as vinte e sete ocorrências do vocábulo. Há, ainda,<br />
vocábulos cuja(s) pretônica(s) é(são) ora alçada(s), ora não alçada(s), como <strong>em</strong>: pr[e]cisou ~<br />
pr[i]cisou e c[o]nversava ~ c[u]nversava.<br />
Em relação à aplicação ou não do alçamento nas 2455 ocorrências de vogais<br />
pretônicas /e/ e 2147 de /o/, t<strong>em</strong>-se a seguinte tabela:<br />
Tabela 1. Tabela geral da aplicação ou não do alçamento<br />
S<strong>em</strong> alçamento Com alçamento Total<br />
Pretônica /e/ 2065 (84%) 390 (16%) 2455 (100%)<br />
Pretônica /o/ 1928 (90%) 219 (10%) 2147 (100%)<br />
Por meio da tabela 1, verifica-se que os casos <strong>em</strong> que não há alçamento, tanto <strong>em</strong><br />
relação à vogal /e/ (84%), quanto à /o/ (90%), são b<strong>em</strong> mais numerosos do que os casos <strong>em</strong><br />
que o processo ocorre (16% para /e/ e 10% para /o/). Assim, percebe-se que a aplicação do<br />
processo é relativamente baixa para as vogais médias pretônicas na variedade estudada. Além<br />
disso, observa-se, também, que a frequência de alçamento é maior para a vogal /e/ do que para<br />
/o/.<br />
Como variável mais relevante à aplicação do alçamento, tanto para a vogal /e/, quanto<br />
para /o/, o programa estatístico VARB2000 apontou a altura da vogal presente na sílaba<br />
subsequente à sílaba da pretônica-alvo, cujos resultados obtidos pod<strong>em</strong> ser conferidos na<br />
tabela apresentada a seguir.<br />
28
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Tabela 2. Alçamento de /e/ e de /o/ <strong>em</strong> relação à altura da vogal presente na sílaba seguinte à<br />
sílaba da pretônica-alvo<br />
Pretônica /e/ Pretônica /o/<br />
Frequência PR Frequência PR<br />
Alta anterior 55% .93 43% .90<br />
(342/618)<br />
(112/258)<br />
Alta posterior 14% (8/57) .84 21% (24/114) .83<br />
Média 3% (33/1144) .32 7% (68/951) .53<br />
Média-baixa 2% (1/60) .13 4% (7/198) .46<br />
Baixa 1% (6/576) .22 1% (8/626) .21<br />
Total 16% (390/2455) 10% (219/2147)<br />
Input: 0.06 Input: 0.07<br />
Significância: 0.037 Significância: 0.001<br />
É possível observar que, tanto para /e/, quanto para /o/, a presença de uma vogal alta<br />
anterior na sílaba seguinte à da pretônica-alvo, como <strong>em</strong> cons[i]guir e desc[u]brindo, é um<br />
fator altamente favorecedor da realização do processo de alçamento, com pesos relativos de<br />
.93 e .90, respectivamente, para /e/ e /o/.<br />
Também com altos pesos relativos (.84 e .83, respectivamente, para /e/ e para /o/),<br />
t<strong>em</strong>-se o fator presença de uma vogal alta posterior na sílaba seguinte à da pretônica-alvo,<br />
como <strong>em</strong> s[i]gurar e c[u]stumo, apontado como altamente favorecedor da realização do<br />
processo.<br />
Analisa-se, agora, as ocorrências dos dados desta pesquisa relacionadas a esse<br />
resultado, a fim de buscar uma explicação para o fato de a presença de vogal /u/ na sílaba<br />
seguinte à da pretônica-alvo ter sido altamente favorecedora não só da realização do<br />
alçamento de /o/ (PR .83), como também – e com maior peso relativo (.84) – da aplicação do<br />
processo <strong>em</strong> /e/. Esse resultado não era esperado, pois, segundo Bisol (1981), na cavidade<br />
bucal, o espaço para a <strong>em</strong>issão das vogais anteriores é maior do que aquele para a <strong>em</strong>issão das<br />
posteriores e, assim, a vogal /i/ é mais alta do que /u/. Desse modo, a vogal /u/ não deveria<br />
influenciar muito o alçamento da vogal /e/ para /i/, já que “convertê-la <strong>em</strong> /i/ seria provocar<br />
uma articulação mais alta que a própria” (BISOL, 1981, p. 114).<br />
Das 57 ocorrências de pretônica /e/ que apresentavam, na sílaba seguinte, vogal alta<br />
posterior, 8 alçaram, sendo elas: des[i]strutura (1 ocorrência), p[i]ndurar (2 ocorrências),<br />
p[i]ndurava (1 ocorrência), s[i]gurar (2 ocorrências) e s[i]gurei (2 ocorrências). Esses<br />
vocábulos, <strong>em</strong> termos de itens lexicais, pod<strong>em</strong> ser organizados como pertencentes a três<br />
grupos: (i) desestrutura; (ii) pendurar/pendurava; e (iii) segurar/segurei. Vê-se, basicamente,<br />
que a realização do alçamento nesses vocábulos pode resultar da confluência de outros fatores<br />
considerados favoráveis à aplicação do processo: no caso de des[i]strutura, a vogal pode ter<br />
alçado por uma m<strong>em</strong>ória da palavra primitiva estrutura. Sabe-se que o alçamento é bastante<br />
recorrente quando a vogal pretônica /e/ ocorre <strong>em</strong> início de vocábulo. Nos vocábulos dos<br />
paradigmas de pendurar e de segurar, o alçamento pode ter ocorrido pela influência de um<br />
segmento consonantal adjacente à pretônica-alvo: nos casos de p[i]ndurar e p[i]ndurava, há a<br />
consoante oclusiva /p/ e, <strong>em</strong> s[i]gurar e s[i]gurei, a pretônica é antecedida pela fricativa /s/.<br />
29
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Apesar de não ser<strong>em</strong> apresentados no presente trabalho, deve-se ressaltar que esses modos de<br />
articulação das consoantes precedentes às pretônicas foram dados, pelo VARBRUL, como<br />
favorecedores da realização do alçamento.<br />
Comparando /i/ e /u/ como vogais que exerc<strong>em</strong> influência na aplicação do alçamento,<br />
pode-se observar, com os resultados obtidos, que a vogal alta /i/ exerce maior influência para<br />
a realização do alçamento do que a vogal alta /u/, tanto para a vogal /e/, quanto para /o/.<br />
Assim, pode-se dizer que, no caso da vogal /e/, o alçamento se dá, sobretudo, nos contextos<br />
denominados homorgânicos (BISOL, 1981), ou seja, quando a vogal média anterior é seguida<br />
de sílaba que apresenta vogal alta também anterior, como <strong>em</strong> cons[i]guiram e qu[i]riam. Já<br />
para a vogal /o/, o alçamento ocorre, principalmente, <strong>em</strong> contextos não-homorgânicos, <strong>em</strong><br />
que, na sílaba seguinte à da pretônica média posterior, encontra-se uma vogal alta anterior,<br />
como ocorre <strong>em</strong> desc[u]brir e m[u]rri.<br />
No que diz respeito à influência de vogais médias e baixa na realização do alçamento,<br />
t<strong>em</strong>-se que, para /e/, a presença de uma vogal média (PR .32), como <strong>em</strong> ap[e]guei, médiabaixa<br />
(PR .13), como <strong>em</strong> desob[e]dece, ou baixa (PR .22), como <strong>em</strong> l[e]vado, consiste <strong>em</strong><br />
um fator desfavorecedor da realização do alçamento. Para /o/, a presença de uma vogal média<br />
é um fator lev<strong>em</strong>ente favorecedor da realização do processo (PR .53), como <strong>em</strong> p[u]der,<br />
enquanto a presença de uma vogal média-baixa (PR .46), como <strong>em</strong> inc[o]moda, ou de uma<br />
vogal baixa (PR .21), como <strong>em</strong> expl[o]rado, é desfavorecedora da aplicação da regra.<br />
Vale retomar que, tanto para /e/, quanto para /o/, a variável altura da vogal da sílaba<br />
subsequente à sílaba da pretônica-alvo foi selecionada como a mais relevante para a<br />
aplicação da regra. Dado esse resultado e os altos pesos relativos referentes à presença de<br />
vogal alta na sílaba seguinte à da pretônica-alvo, verifica-se, para a realização do alçamento<br />
das vogais pretônicas /e/ e /o/ dos verbos na variedade do interior paulista, a grande relevância<br />
do processo de harmonização vocálica.<br />
Para se observar se a tonicidade dessa vogal alta é relevante ou, até mesmo,<br />
determinante à aplicação do processo, foram cruzadas as variáveis tonicidade e altura da<br />
vogal da sílaba subsequente à sílaba da pretônica-alvo. Os resultados de tal cruzamento<br />
pod<strong>em</strong> ser visualizados a partir da tabela 3.<br />
Tabela 3. Frequências de alçamento de /e/ e de /o/ <strong>em</strong> relação à tonicidade e à posição ânteroposterior<br />
da vogal alta<br />
Pretônica /e/ Pretônica /o/<br />
Alta anterior tônica 62% (307/493) 60% (96/161)<br />
Alta anterior átona 28% (35/125) 16% (16/97)<br />
Alta posterior tônica 0% (0/7) 31% (17/54)<br />
Alta posterior átona 16% (8/50) 12% (7/60)<br />
Pode-se observar que o único contexto <strong>em</strong> que o número de pretônicas alçadas supera<br />
o de não-alçadas é aquele <strong>em</strong> que há uma vogal alta anterior tônica (62% de alçamento para<br />
30
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
/e/ e 60% para /o/), como <strong>em</strong> p[i]dindo e d[u]rmimos. Já no caso da vogal alta anterior átona<br />
na sílaba seguinte à da pretônica, como <strong>em</strong> acr[i]ditar e c[u]zinhou, mesmo tratando-se ainda<br />
de vogal alta, as porcentagens de alçamento foram muito menores (28% e 16%, para /e/ e /o/,<br />
respectivamente).<br />
Dados esses resultados, verifica-se que, ao encontro do que afirma Bisol (1981), para<br />
as vogais pretônicas dos verbos na variedade do interior paulista, a tonicidade da vogal /i/ da<br />
sílaba subsequente é um fator relevante para o alçamento, porém não se trata de um contexto<br />
determinante para a realização do processo, tendo <strong>em</strong> vista que (i) há casos de não-alçamento<br />
nesse contexto, como <strong>em</strong> ad[e]riu e res[o]lvi; e (ii) há casos de alçamento quando há vogal<br />
alta átona na sílaba seguinte, como <strong>em</strong> pr[i]cisavam e c[u]zinhando.<br />
Quando se observa o comportamento da vogal posterior /u/ influenciando a aplicação<br />
ou não do alçamento <strong>em</strong> pretônicas, verifica-se que, independent<strong>em</strong>ente da sua tonicidade, os<br />
casos de alçamento, tanto para /e/ (0% para /u/ tônica e 16% para /u/ átona), quanto para /o/<br />
(31% para /u/ tônica e 12% para /u/ átona), são relativamente baixos. No entanto, cabe<br />
destacar que a maior porcentag<strong>em</strong> de alçamento (31%) se dá quando a vogal alta posterior /u/<br />
é tônica e a pretônica também é posterior (/o/), como <strong>em</strong> pr[u]cura. Portanto, verifica-se, de<br />
modo geral, que, como ocorre <strong>em</strong> pretônicas seguidas de vogal alta anterior, nas seguidas de<br />
vogal alta posterior, a tonicidade da vogal alta também é relevante para a realização do<br />
alçamento 4 . No entanto, como já afirmado para a vogal /i/, observa-se que, <strong>em</strong>bora relevante,<br />
o fato de a vogal /u/ ser tônica não é determinante para a realização do alçamento.<br />
Outra variável analisada que se relaciona ao processo de harmonização vocálica, por –<br />
como o próprio nome aponta – apresentar uma vogal alta, consiste no tipo de sufixo com<br />
vogal alta presente no vocábulo <strong>em</strong> que a pretônica-alvo ocorre. Essa variável se destaca por<br />
ter sido indicada pelo programa estatístico como a segunda mais importante para a aplicação<br />
do alçamento das vogais médias pretônicas dos verbos na variedade considerada.<br />
Antes da apresentação dos resultados obtidos <strong>em</strong> relação a essa variável, deve-se<br />
destacar que sua consideração se dá para que possam ser avaliados os comportamentos dos<br />
sufixos que cont<strong>em</strong> vogal alta como favorecedores ou não do alçamento. Sendo assim, só são<br />
considerados sufixos que apresentam vogal alta, razão pela qual são contabilizadas, no total,<br />
apenas 373 ocorrências de vogal pretônica /e/ e 177 de /o/.<br />
Tabela 4. Alçamento de /e/ e de /o/ <strong>em</strong> relação ao tipo de sufixo com vogal alta presente no<br />
vocábulo <strong>em</strong> que a pretônica-alvo ocorre<br />
Pretônica /e/ Pretônica /o/<br />
Frequência PR Frequência PR<br />
DNP –i 42% (34/81) .59 29% (11/38) .50<br />
DMT –ia (∅, -m, -mos) 63%(135/214) .69 44% (51/116) .51<br />
4 Embora tenha havido 0% de alçamento de /e/ seguido de vogal alta posterior tônica, o que poderia refutar essa<br />
afirmação, cabe destacar que houve apenas sete ocorrências de vogal /e/ presentes nesse contexto.<br />
31
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
DMT –ria (∅, -m, -mos) 3% (2/78) .08 0% (0/23) .00<br />
Total 46% (171/373) 35% (62/177)<br />
Input: 0.06 Input: 0.07<br />
Signific.:0.037 Significância: 0.001<br />
A tabela 4 mostra que a presença de um sufixo modo-t<strong>em</strong>poral de pretérito imperfeito<br />
/-ia/, como <strong>em</strong> d[i]via e p[u]dia, é favorecedora da realização do alçamento, tanto de /e/ (PR<br />
.69), quanto de /o/ (PR .51). Já a presença do sufixo número-pessoal /-i/ no vocábulo, como<br />
<strong>em</strong> p[i]di e esc[u]ndi, é, para /e/, favorecedora da realização do alçamento (PR .59) e, para<br />
/o/, neutra (PR .50).<br />
Sobre os sufixos verbais, Bisol (1981) afirma que t<strong>em</strong> comportamento distinto dos<br />
sufixos nominais <strong>em</strong> relação à harmonização vocálica. No entanto, por não considerar os<br />
diferentes sufixos verbais separadamente, afirma apenas que, de forma geral, tend<strong>em</strong> a<br />
favorecer o processo de harmonização vocálica.<br />
Collischonn e Schwindt (2004) tomam os sufixos verbais separadamente e, com isso,<br />
atestam que há um sufixo verbal que, ao contrário dos d<strong>em</strong>ais, é forte desfavorecedor da<br />
aplicação do processo. Na presente pesquisa, tal resultado também foi encontrado: o sufixo<br />
modo-t<strong>em</strong>poral de futuro do pretérito /-ria/, como <strong>em</strong> d[e]v[e]ria e p[o]d[e]ria, desfavorece<br />
fort<strong>em</strong>ente o alçamento de /e/ (PR .08) e bloqueia o de /o/ (PR .00).<br />
Collischonn e Schwindt (2004) apontam duas possíveis justificativas para esse<br />
resultado. A primeira afirma que a forma verbal de futuro do pretérito t<strong>em</strong> uso reduzido na<br />
língua falada do Português Brasileiro, sendo, muitas vezes, substituída por verbo no pretérito<br />
imperfeito. Além disso, nas vezes <strong>em</strong> que ocorre, costuma estar vinculada à fala cuidada ou à<br />
função de modalizador do discurso. A segunda explicação que os autores apontam é a de que<br />
esses morf<strong>em</strong>as se configuraram como palavras prosódicas independentes. Vigário (2001)<br />
defende a existência de fronteira prosódica entre o radical e o sufixo verbal, com base na<br />
ocorrência de mesóclise, como <strong>em</strong> dever-se-ia e pensar-se-á. Tendo <strong>em</strong> vista o fato de a<br />
harmonização vocálica não atravessar fronteiras de palavras prosódicas, o alçamento tende a<br />
não ocorrer <strong>em</strong> verbos que apresentam o sufixo modo-t<strong>em</strong>poral de futuro do pretérito.<br />
Passa-se, por fim, à consideração da variável conjugação do verbo <strong>em</strong> que a<br />
pretônica-alvo ocorre, apontada pelo programa estatístico como a terceira mais relevante à<br />
aplicação do alçamento de /e/ 5 .<br />
Tabela 5. Alçamento de /e/ <strong>em</strong> relação à conjugação do verbo <strong>em</strong> que a pretônica ocorre<br />
Pretônica /e/<br />
Frequência PR<br />
1ª conjugação 8% (104/1304) .48<br />
5<br />
Essa variável não foi selecionada pelo programa estatístico como relevante à aplicação do alçamento da vogal<br />
pretônica /o/, o que justifica a ausência dos resultados referentes a essa vogal na tabela 5 deste trabalho.<br />
32
Input: 0.06<br />
Significância: 0.037<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
2ª conjugação 15% (143/964) .42<br />
3ª conjugação 76% (143/187) .89<br />
Total 16% (390/2455)<br />
Observa-se, pela tabela 5, que o fato de o verbo ser de terceira conjugação, como <strong>em</strong><br />
s[i]ntir, é altamente favorecedor (PR .89) da realização do alçamento, o que pode ser<br />
explicado por verbos de terceira conjugação apresentar<strong>em</strong> vogal t<strong>em</strong>ática /i/, vogal alta<br />
anterior cuja presença na sílaba seguinte à da pretônica-alvo, como já visto neste artigo,<br />
favorece a realização do alçamento. Já o fato de o verbo <strong>em</strong> que a pretônica-alvo está inserida<br />
ser de segunda conjugação (PR .42), como <strong>em</strong> escr[e]ver, ou de primeira (PR .48), como <strong>em</strong><br />
c[o]rtar, mostra-se desfavorecedor da aplicação do fenômeno.<br />
Quanto à frequência de ocorrência do alçamento, observa-se que as vogais pretônicas<br />
presentes <strong>em</strong> verbos de terceira conjugação apresentam maior porcentag<strong>em</strong> de alçamento do<br />
que pretônicas <strong>em</strong> verbos de segunda conjugação (76% e 15%, respectivamente), mesmo<br />
apesar do fato de, <strong>em</strong> muitos casos, esses verbos compartilhar<strong>em</strong> dos mesmos sufixos com<br />
vogal alta, como /-i/ e /-ia/ (vender/vendi/vendia e pedir/pedi/pedia). Como justificativa a esse<br />
fato, pode-se valer dos apontamentos de Bisol (1981) e de Collischonn e Schwindt (2004),<br />
que afirmam que, <strong>em</strong> muitas ocorrências de verbos de terceira conjugação, a pretônica-alvo é<br />
uma vogal do radical, que, <strong>em</strong> outras formas do paradigma, apresenta-se como<br />
categoricamente alta, como <strong>em</strong> m[i]ntia – minto e d[u]rmir – durmo, como resultado da regra<br />
de harmonia vocálica na raiz verbal.<br />
Após a discussão dos resultados relativos às principais variáveis relacionadas ao<br />
processo de harmonização vocálica, são apresentadas, na próxima seção, as considerações<br />
finais sobre a presente pesquisa.<br />
5) Considerações finais<br />
Como pôde ser observado neste trabalho, de modo geral, a harmonização vocálica é o<br />
processo que mais atua na aplicação do alçamento vocálico das vogais médias pretônicas dos<br />
verbos na variedade do interior paulista. Verificando-se os dados levantados, constata-se que,<br />
na maioria dos casos <strong>em</strong> que há alçamento, seja ele categórico ou variável, há uma vogal alta<br />
na sílaba seguinte à da pretônica alçada. A importante atuação do processo de harmonização<br />
vocálica pode ser observada, também, pelo fato de a variável altura da vogal presente na<br />
sílaba subsequente à sílaba da pretônica-alvo ter sido selecionada pelo programa estatístico<br />
como a mais relevante à aplicação do fenômeno, apresentando altos pesos relativos para o<br />
fator presença de vogal alta na sílaba seguinte à da pretônica-alvo.<br />
Para a vogal pretônica /e/, esse processo mostra-se ainda mais atuante, tendo <strong>em</strong> vista<br />
o fato de as variáveis selecionadas como segunda e terceira mais relevantes à aplicação do<br />
processo – sendo elas, respectivamente, tipo de sufixo com vogal alta presente no vocábulo<br />
<strong>em</strong> que a pretônica-alvo ocorre e conjugação do verbo <strong>em</strong> que a pretônica-alvo ocorre –,<br />
também ser<strong>em</strong> relacionadas ao processo de harmonização vocálica.<br />
33
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Enquanto, para os verbos, verificou-se que o processo mais relevante à aplicação do<br />
alçamento é a harmonização vocálica – especialmente no que diz respeito à pretônica /e/ –, nos<br />
nomes, o processo que mais atua é a redução, conforme atesta Silveira (2008), que descreve o<br />
comportamento das vogais médias pretônicas nos nomes na variedade do interior paulista.<br />
Como possíveis explicações para esse diferente resultado a depender da classe<br />
gramatical, pode-se valer de características morfofonológicas específicas dos verbos, que são,<br />
de diferentes formas, relacionadas à presença de uma vogal alta. T<strong>em</strong>-se, por ex<strong>em</strong>plo, (i) a<br />
existência de harmonia vocálica na raiz verbal de certas formas verbais de terceira conjugação,<br />
como <strong>em</strong> sinto (sentir); (ii) os sufixos verbais com vogal alta /i/ ser<strong>em</strong> – com exceção do<br />
sufixo modo-t<strong>em</strong>poral do futuro do pretérito /-ria/ – favorecedores da aplicação do processo no<br />
que tange à vogal /e/, como apresentado na seção 4 deste trabalho; e (iii) verbos de terceira<br />
conjugação apresentar<strong>em</strong>, como vogal t<strong>em</strong>ática, a vogal alta anterior /i/, cuja presença na sílaba<br />
seguinte à da pretônica-alvo é, como visto na seção 4 deste artigo, altamente favorecedora da<br />
realização do alçamento.<br />
Referências<br />
ABAURRE-GNERRE, M. B. M. Processos fonológicos segmentais como índices de padrões<br />
prosódicos diversos nos estilos formal e casual do português do Brasil. Caderno de Estudos<br />
Lingüísticos, Campinas, v. 2, p. 23-44, 1981.<br />
BISOL, L. Harmonia vocálica: uma regra variável. 1981. Tese (Doutorado <strong>em</strong> Lingüística) –<br />
Faculdade de <strong>Letras</strong>, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1981.<br />
CÂMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa. 40. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. (Primeira<br />
edição <strong>em</strong> 1970).<br />
CARMO, M. C. As vogais médias pretônicas dos verbos na fala culta do interior paulista. 2009. 119<br />
f. Instituto de Biociências, <strong>Letras</strong> e Ciências Exatas. Universidade Estadual Paulista. São José do Rio<br />
Preto, 2009.<br />
COLLISCHONN, G.; SCHWINDT, L. C. Harmonia vocálica no sist<strong>em</strong>a verbal do português do sul<br />
do Brasil. Estudos de Fonologia e de Morfologia. Porto Alegre, v. 18, n. 36, p. 73-82, 2004.<br />
FARACO, C. A. Lingüística histórica: uma introdução ao estudo da história das línguas. São Paulo:<br />
Parábola, 2005, p. 14-90.<br />
GONÇALVES, S. C. L. O português falado na região de São José do Rio Preto: constituição de um<br />
banco de dados anotado para o seu estudo. Relatório científico final apresentado à FAPESP. 2007.<br />
Disponível <strong>em</strong>: http://www.iboruna.ibilce.unesp.br/histórico/relatoriofinal.<br />
______. Banco de dados Iboruna: amostras eletrônicas do português falado no interior paulista.<br />
Disponível <strong>em</strong>: http://www.alip.ibilce.unesp.br/iboruna.<br />
LABOV, W. Sociolinguistic Patterns. 11 th printing. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,<br />
1991. (Primeira edição <strong>em</strong> 1972).<br />
34
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
SCHWINDT, L. C. A regra variável de harmonização vocálica no RS. In: BISOL, L.;<br />
BRESCANCINI, C. R. (Org.) Fonologia e Variação: recortes do Português Brasileiro. Porto Alegre:<br />
EDIPUCRS, 2002, p. 161-182.<br />
SILVEIRA, A. A. M. As vogais pretônicas na fala culta do noroeste paulista. 2008. 143 f. Dissertação<br />
(Mestrado <strong>em</strong> Estudos Lingüísticos) – Instituto de Biociências, <strong>Letras</strong> e Ciências Exatas, Universidade<br />
Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2008.<br />
VIGÁRIO, M. The Prosodic Word in European Portuguese. 2001. 397 f. Tese (Doutorado) –<br />
Universidade de Lisboa, Lisboa, 2001.<br />
35
A Organização dos Glides Intervocálicos no PB<br />
Evilázia Ferreira Martins (UFMG) 1<br />
Resumo: Este artigo objetiva d<strong>em</strong>onstrar, através do estudo dos glides intervocálicos, os vestígios sobre o papel<br />
do glide no sist<strong>em</strong>a lingüístico do PB. Foram observadas suas propriedades fonológicas e fonéticas e como elas<br />
interagiam com o restante do sist<strong>em</strong>a: acento e sílaba. Cogitou-se que o glide poderia atuar no sist<strong>em</strong>a lingüístico<br />
fonológico como vogal (V) ou consonante (C). Como vogal, ele não faz parte da representação subjacente, i.e., é<br />
um alofone vocálico, e não atribui peso a sílaba (Câmara Jr. (1984), Leite (1979), Lopez (1979), Silva, (1992,<br />
1996) e Lee (1999). Como consoante, pode ocupar posições consonantais e pode atribuir peso à sílaba (Câmara<br />
Jr. (1977, 1970), Collischonn (1996) e Wetzels (2000). Diferente destas duas linhagens, Bisol (1989) não afirma<br />
se os glides são C ou V, apenas os identificam como fonológicos ou fonéticos a partir do peso que atribu<strong>em</strong> à<br />
sílaba. Já Mateus (1982) os propõe parcialmente fon<strong>em</strong>as e parcialmente alofones. Dentre essas, a proposta mais<br />
comumente aceita o analisa como uma vogal na parte subjacente do sist<strong>em</strong>a lingüístico. No entanto, os dados da<br />
língua permit<strong>em</strong> que sejam investigadas outras possibilidades. O resultado do estudo mostrou que há fortes<br />
motivações para se aumentar o inventário consonantal do PB com a inclusão dos glides. Essa solução parece<br />
mais apropriada quando se analisa a organização do sist<strong>em</strong>a lingüístico dessa língua, i.e., o acento e a sílaba.<br />
Outro dado utilizado para se chegar a essa conclusão foi a sua realização fonética, que expressa sua relação com<br />
o acento. Para isso, observou-se o glide intervocálico sob a perspectiva de duas <strong>teoria</strong>s acentuais principais:<br />
Bisol (1992), que atribui o acento a sílaba paroxítona, ou a sílaba oxítona com rima ramificada; e Lee (2002,<br />
2005) que acentua a última vogal do radical. Nas duas <strong>teoria</strong>s, a hipótese mais vantajosa era considerar o glide<br />
uma consonante, <strong>em</strong> contraposição a sua interpretação como vogal.<br />
1) Revisão da Literatura<br />
1.1) Os Glides<br />
O termo glide foi inicialmente utilizado pelos foneticistas das três primeiras décadas<br />
do século XX para designar os sons de transição probl<strong>em</strong>áticos à imposição de técnicas de<br />
segmentação dos sons da fala. Segundo Pike 2 (1972, p.48), Jones e Kenyon estabeleciam dois<br />
tipos de sons da fala: os speech sounds, considerados sons estáticos, e os glides, sons<br />
dinâmicos, considerados meras transições. Essa divisão era probl<strong>em</strong>ática porque tentava se<br />
ancorar apenas <strong>em</strong> aspectos fonéticos. Diante disso, Pike (1972) assume, assim como<br />
Bloomfield 3 (1961), que os glides não são designados principalmente pela sua produção<br />
acústica e articulatória, e, sim, devido a sua interpretação fonêmica 4 .<br />
Foneticamente os sons da linguag<strong>em</strong> pod<strong>em</strong> ser divididos, conforme Pike 5 (1968), <strong>em</strong><br />
vocóides e não-vocóides. Os vocóides são os sons produzidos com a soltura do ar através da<br />
região central da língua e não produz<strong>em</strong> fricção forte na boca. Compreend<strong>em</strong> os sons<br />
vocálicos, os glides vocálicos e o [r], enquanto os não-vocóides são sons que inclu<strong>em</strong><br />
qualquer som que a corrente de ar escape: do nariz, mas não da boca; através da lateral da<br />
língua; da boca, mas com fricção localizada <strong>em</strong> algum ponto da boca e sons nos quais a<br />
corrente de ar não escapa.<br />
1 Orientador: Seung Hwa Lee<br />
2 O texto foi divulgado pela primeira vez <strong>em</strong> 1944.<br />
3 O texto foi divulgado pela primeira vez <strong>em</strong> 1933.<br />
4 O termo fonêmica equivale-se, neste texto, ao termo fonologia.<br />
5 O texto foi divulgado pela primeira vez <strong>em</strong> 1947.<br />
36
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Já, fon<strong>em</strong>icamente, as línguas apresentam dois grupos sonoros que são divididos de<br />
acordo com sua função/distribuição na sílaba e de acordo com suas características<br />
articulatórias típicas. São denominados Vogais e Consoantes. Ainda segundo Pike (1968), as<br />
vogais compreend<strong>em</strong> o grupo que é, frequent<strong>em</strong>ente, silábico e, basicamente, estabelecido<br />
como vocóide. As consoantes, mais freqüent<strong>em</strong>ente, mas não exclusivamente, funcionam<br />
como não-silábicas e, sendo, assim, basicamente, mas não exclusivamente, consideradas nãovocóides.<br />
A propriedade [vocóide] identifica o grupo fonético de maior probabilidade para<br />
funcionar fonologicamente no sist<strong>em</strong>a como silábico ou não-silábico. Observando isso, Pike<br />
(1968) propôs que os glides são o pequeno grupo de sons vocóides que são não-silábicos<br />
(sons de [i9], [U9] e [r]). Esses sons pod<strong>em</strong> executar no sist<strong>em</strong>a o papel das consoantes, ou se<br />
apresentar como m<strong>em</strong>bro vocálico não-acentuado de uma sequência. Nesses termos, o<br />
estabelecimento dos glides depende diretamente da constituição silábica e do sist<strong>em</strong>a sonoro<br />
de cada língua.<br />
Na Teoria Gerativa (The Sound Pattern of English, Chomsky e Halle, 1968), os Glides<br />
são uma categoria básica de segmentos, paralela às categorias: Vogais, Líquidas e Nasais<br />
silábicas, Líquidas e Nasais não-silábicas e Obstruintes. Essas são especificadas pelos traços<br />
de classe principal, como pod<strong>em</strong>os ver, abaixo:<br />
Tabela 1<br />
Soante Consonantal Silábico<br />
Vogais + - +<br />
Líquidas e nasais silábicas + + -<br />
Líquidas e nasais não-silábicas + + +<br />
Obstruintes - + -<br />
Glides + - -<br />
(Matzenauer, 2005, p.22)<br />
Neste modelo, observamos que não há mais a dicotomia Vogal versus Consoante.<br />
Apenas há a categoria Vogal, formada por sons s<strong>em</strong> oclusão no trato oral, opondo-se às outras<br />
categorias que executam nas línguas o papel de Consoantes, ocupando as margens silábicas<br />
(Hyman, 1975, p. 44, Cl<strong>em</strong>ents & Keyser, 1983). Já, a categoria consonantal (C) se torna um<br />
traço que caracteriza os sons com algum tipo de oclusão/fricção. O traço vocálico é<br />
substituído pelos traços soante e silábico. Mattoso Câmara Jr. 6 (1977, p. 52), citando o critério<br />
distributivo de Trubetzkoy (1939, p.166), l<strong>em</strong>bra que o PB é uma língua no qual esse critério<br />
se aplica, permitindo somente vogais na posição de núcleo silábico. Neste caso, o conceito de<br />
silábico coincide-se com o conceito de vogal.<br />
Geralmente, nas línguas do mundo, os glides vocálicos correspond<strong>em</strong> às vogais altas<br />
de seu sist<strong>em</strong>a lingüístico. No Inglês, assim como no PB, t<strong>em</strong>os somente dois glides: anterior<br />
e posterior, [+ alto]. Esse fato não se dá por coincidência. Na escala de sonoridade, as vogais<br />
altas são caracterizadas como as menos sonoras e assim menos pro<strong>em</strong>inentes (Crosswhite,<br />
6 O texto foi divulgado pela primeira vez <strong>em</strong> 1953.<br />
37
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
1999). Isso torna possível sua ocupação <strong>em</strong> posições de baixa pro<strong>em</strong>inência, i.e., as margens<br />
silábicas.<br />
Os glides anteced<strong>em</strong> ou suced<strong>em</strong> uma vogal. Quando os glides são alofones vocálicos,<br />
eles formam ditongos. O ditongo é crescente quando o glide antecede a vogal (àg[U9]a,<br />
q[U9]adro). Se o glide sucede à vogal, então, forma-se um ditongo decrescente (ga[I9]ta,<br />
a[U9]rora, le[I9]te).<br />
Os estudos sobre os glides no PB circundam dois tipos de investigação. O primeiro<br />
tipo é a investigação fonológica. Ela analisa o sist<strong>em</strong>a lingüístico do PB e as proposições dos<br />
princípios e parâmetros universais com a finalidade de agrupar argumentos para os<br />
classificar<strong>em</strong> como consoantes ou vogais no PB. A outra é fonética e tenta compreender<br />
porque os glides pod<strong>em</strong>, <strong>em</strong> alguns contextos: estar <strong>em</strong> variação livre com vogais altas ou, <strong>em</strong><br />
alguns dialetos, com consoantes; porque, <strong>em</strong> alguns contextos, eles pod<strong>em</strong> se realizar ou não<br />
(s<strong>em</strong> prejuízo a interpretação s<strong>em</strong>ântica da palavra) e porque, <strong>em</strong> alguns contextos,<br />
simplesmente, eles não permit<strong>em</strong> nada disso, isto é, sua realização é obrigatória. De alguma<br />
forma, a <strong>análise</strong> fonética pode auxiliar na interpretação fonológica e isso será feito neste<br />
trabalho.<br />
A <strong>análise</strong> fonológica pode optar por descrever o glide como fon<strong>em</strong>a (Mattoso Câmara<br />
Jr. (1977) (1970 7 ), Collischonn (1996) e Wetzels (2000)). Com isso, aumenta-se o número de<br />
segmentos no inventário da língua, mas, por outro lado, reduz-se o número de tipos silábicos.<br />
Essa interpretação também é vantajosa para a <strong>análise</strong> acentual, como se verá no<br />
desenvolvimento deste trabalho.<br />
A outra <strong>análise</strong> possível é afirmar que o glide é um alofone vocálico (Mattoso Câmara<br />
Jr. (1984 8 ), Leite (1979), Lopez (1979), Silva, (1992) (1996) e Lee (1999)). A grande maioria<br />
dos estudos sobre o glide admite essa hipótese por duas justificativas: uma particular e a outra<br />
universal. A primeira recorre à ausência de pares mínimos no PB entre os glides e os<br />
segmentos foneticamente s<strong>em</strong>elhantes (ver qual autor fala isso), isto é, as vogais.<br />
Aparent<strong>em</strong>ente, apenas há o par mínimo [kU9a)dU] quando e [kua)dU] coando (Cagliari, 2009).<br />
No entanto, os dois ex<strong>em</strong>plos vêm de formas fonológicas distintas /kU9aNdo/ ou /k U9 aNdo/<br />
quando e /koaNdo/ coando. Logo, mesmo que foneticamente a alternância entre glide e vogal<br />
indique o contraste entre estes dois segmentos, o que, na verdade, o proporciona são as vogais<br />
[o] e [u]. Outra interpretação que exime o glide da forma subjacente é afirmar que a sequência<br />
/k U9 / é um segmento complexo, isto é, ele apresenta apenas um nó de raiz (uma unidade<br />
t<strong>em</strong>poral). A segunda interpretação parte da afirmação de Hyman (1975) de que as línguas<br />
que contrastam vogais altas e glides necessariamente também faz<strong>em</strong> distinção entre vogais<br />
longas e curtas e este não é o caso do PB.<br />
No entanto, as <strong>análise</strong>s que defend<strong>em</strong> o glide como alofone vocálico se deparam com<br />
o probl<strong>em</strong>a de derivar dois tipos de glides. Isso ocorre porque a maioria dos glides prévocálicos<br />
pod<strong>em</strong> se alternar livr<strong>em</strong>ente com vogais altas (t[I9]ara ~ t[i]ara). Diferente disso, os<br />
glides pós-vocálicos não o pod<strong>em</strong>. São, assim, obrigatórios. As <strong>análise</strong>s que obedec<strong>em</strong> à<br />
<strong>teoria</strong> gerativa (a ex<strong>em</strong>plo, Lopez (1979)) precisam derivar um glide no início da derivação e<br />
outro no final da derivação, isto é, o glide fonético.<br />
7 O texto foi divulgado pela primeira vez <strong>em</strong> 1969.<br />
8 O texto foi divulgado pela primeira vez <strong>em</strong> 1970.<br />
38
1.2) Glides Intervocálicos<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
É unânime a afirmação de que os glides consecutivos às vogais [E, e] tônicas quando<br />
pospostos por outra vogal são introduzidos <strong>em</strong> algum nível da derivação, e, deste modo, não<br />
correspond<strong>em</strong> a uma representação no nível subjacente da língua. Citamos por ex<strong>em</strong>plo, a<br />
palavra passeio que, neste sentido, apresenta a representação subjacente /pase+o/ e a<br />
superficial [pa»seI9U]. Também é consenso que o objetivo de se introduzir um glide nesta<br />
posição é motivado para se evitar a ocorrência do hiato. Apenas Couto (1994) afirma que este<br />
processo ocorre para separar duas vogais, sendo o glide, neste caso, além de vocálico, também<br />
consonantal. No entanto, como e <strong>em</strong> qual ponto da derivação isso ocorre varia de acordo com<br />
os autores supracitados. Abaixo, ilustram-se essas idéias.<br />
Conforme Mattoso Câmara Jr. (1977, 1970, 1984), Lopez (1979) e Mateus (1982), os<br />
glides intervocálicos são apenas sons de transição entre vogais, s<strong>em</strong> valor distintivo e<br />
fonêmico. Esse glide surge devido a fatores mecânicos para desfazer os hiatos, sendo,<br />
somente, a realização fonética da vogal simples.<br />
Segundo Mattoso Câmara Jr. (1977, 1970, 1984), estes glides pod<strong>em</strong> ser observados<br />
tanto após as vogais [- rec] quanto [+ rec]. Citamos cheio [SeyU] 9 e tua [tuw´]. Para ele, o<br />
hiato –ea, por ex<strong>em</strong>plo, ‘européia’, apenas se ditonga somente se a vogal /e/ for tônica. Ele<br />
também estabelece como limite de ocorrência do processo a palavra fonológica e d<strong>em</strong>onstra<br />
<strong>em</strong> ‘vê-a’ (forma verbal vê com pronome a enclítico) que a inserção do glide não ocorre.<br />
O posicionamento dos glides intervocálicos na sílaba é um ponto bastante discutido.<br />
Sobre isso, Lopez (1979, p.114), diferent<strong>em</strong>ente dos fonólogos do início da década de 1990,<br />
afirma que o glide epentético une-se à vogal seguinte como um onset silábico, sendo<br />
introduzido após as regras de formação de conversão de vogal-glide (boa [bo9w´] e saia<br />
[[saj´]). Após a inserção deste glide G (consonantal), um glide V9 (vocálico) é inserido após a<br />
vogal da sílaba anterior, para diminuir o impacto na passag<strong>em</strong> da vogal média para o glide G<br />
(boa [boU9w´] e saia [saI9j´]). Ainda de acordo com Lopez (1979, p. 112), essas s<strong>em</strong>ivogais<br />
intervocálicas são menos sonoras que os glides V9 e formando uma juntura menos próxima<br />
com a vogal precedente. Assim, foneticamente, são consideradas mais próximas dos glides G.<br />
Para Mira Mateus (1982), estes glides são inseridos por regras de ditongação. A autora<br />
considera os contextos ‘anterior’ e ‘posterior’ à posição de inserção do glide como<br />
influenciadores e determinantes a sua ocorrência. Um glide [- rec] é inserido após uma vogal<br />
[- alta], [- rec] [+ acento] se esta for seguida por uma vogal que não seja [+ alta]. Isso explica<br />
o fato que os glides não se inser<strong>em</strong> antes de vogais [+ altas]. São ex<strong>em</strong>plos as palavras: judeu<br />
(a representação fonética é [Zu»deU9] e não * 10 [Zu»deI9U]) e céu ([»sEU9]). Palavras como rodeio<br />
[ho»dei9U] e correio [koreI9U] não são consideradas exceções, porque a transformação da vogal<br />
<strong>em</strong> glide ocorre antes do alçamento (neutralização) da vogal [- alta] para [+ alta] <strong>em</strong> final de<br />
palavra.<br />
Silva (1992) (1996) afirma que considerar o glide intervocálico no onset é a hipótese<br />
mais simples. No entanto, ela acredita que ele não está nessa posição porque, no PB, formas<br />
9<br />
Em seu livro, Mattoso Câmara Jr. (1953/1977) utiliza a representação fonética [xeiyu] para a palavra cheiro e<br />
[tuwa] para a palavra tua. Optamos por utilizar a adaptá-las à representação atual.<br />
10<br />
O símbolo (*) significa proibido, assim, *[Zu»deI9U] corresponde a ‘proibido a forma [Zu»deI9U]’.<br />
39
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
como *[»lakaI9U], com glide intervocálico pós-tônico, na qual o acento recai sobre a terceira<br />
posição nuclear, seriam possíveis; todavia, elas não ocorr<strong>em</strong> no português. No entanto,<br />
observamos que o PB é uma língua que tende a acentuar suas palavras s<strong>em</strong>pre na borda direita<br />
da palavra, <strong>em</strong> sua penúltima ou última sílaba, ocorrendo, assim, um número limitado de<br />
palavras proparoxítonas que tend<strong>em</strong> a se reduzir ao formato paroxítono, quando permitido<br />
pelo padrão silábico: ‘xícara’ [»xikR´], ‘fósforo’ [»fosfRU], abóbora [a»bçbR´].<br />
Porém, como já se afirmou acima, as proparoxítonas são tidas como uma exceção.<br />
Logo, a não existência de formas como *[»lakaI9U] pode ser atribuída a uma lacuna natural de<br />
um conjunto defectivo das formas que ainda sobreviv<strong>em</strong> no sist<strong>em</strong>a sincrônico atual. Além<br />
disso, a autora assume que os segmentos [k w , g w , ¯, ¥, S, Z, h], todos consoantes, assim como<br />
os glides, não ocorr<strong>em</strong> na penúltima sílaba da palavra, quando o acento é proparoxítono (<strong>em</strong><br />
Silva (1996), ela apresenta algumas exceções a essa afirmação – frí[Z]ido, Mé[S]ico –, o que<br />
não refuta nossa afirmação), o que faz questionar se, realmente, este é um bom argumento<br />
para excluí-los da posição de onset 11 . Desse modo, baseada na localização da pro<strong>em</strong>inência<br />
acentual, Silva (1992, 1996) propõe que os glides intervocálicos ocupam o núcleo junto a<br />
vogal.<br />
1.3) A Sílaba e o Acento no PB<br />
A estrutura silábica, conforme Selkirk (1982), é formada pelos constituintes: onset (O)<br />
e rima (R), sendo este último formado por núcleo (N) e coda (C). No PB, cada constituinte<br />
silábico pode comportar até no máximo dois el<strong>em</strong>entos. A estrutura silábica é considerada<br />
previsível, e diretamente dependente da proposição dos traços de classe principal. Por isso, se<br />
faz tão importante determinar o funcionamento dos glides, para se prever melhor a formação<br />
silábica. Abaixo, representam-se as duas possibilidades de ocupação silábica pelo glide. Na<br />
figura 2, o glide é alofone de uma vogal e, na figura 3, o glide é um fon<strong>em</strong>a, classificado<br />
como consoante.<br />
Figura 2 12 Figura 3<br />
σ σ<br />
R R<br />
O N C O N C<br />
(C) (C) V(G) ({N, L, R, S}) (C) (C) V ({G, N, L, R, S})<br />
({N, L, R}) (S) ({G, N, L, R}) (S)<br />
11 Silva (1992, p. 111) afirma que diferente dos glides, estas vogais pod<strong>em</strong> ocupar o onset da sílaba consecutiva à<br />
sílaba de acentuação proparoxítona (‘Cânhamo’ [»k‚aNamU] ‘México’ [»mESikU], frígido [»fRiZidU]).<br />
12 O molde silábico a. foi extraído de Lee, 1999.<br />
40
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Observa-se, acima, que o PB permite duas consoantes no onset (claustro, protesto).<br />
Em 1, o glide pós-vocálico se localiza no núcleo (formando um segmento complexo), junto à<br />
vogal (gaita, moita); Em 2, ele se localiza na coda junto as consoantes. Os parênteses indicam<br />
que os segmentos ocorr<strong>em</strong> opcionalmente e cada um significa uma posição na sílaba. Os<br />
colchetes significam que só pode ocorrer um segmento por vez (constante, permito, gaita,<br />
áureo, anzol, país).<br />
1.4) O Peso Silábico<br />
Para a fonologia atual, a funcionalidade do peso silábico no PB ainda é um assunto<br />
discutível. O PB é uma língua que caracteristicamente apresenta uma janela de três sílabas, da<br />
direita para a esquerda, às quais pod<strong>em</strong> ser atribuídas o acento primário. Mesmo sendo<br />
possível o acento à sílaba proparoxítona, os padrões paroxítono e oxítono são mais comuns e<br />
quantitativamente significativos para a língua. Isso possibilita duas propostas de padrão<br />
rítmico. O Troqueu (Bisol, 1992), com base no peso silábico e o Iâmbico (Lee, 2002, 2005),<br />
com referência morfológica. Abaixo, resum<strong>em</strong>-se duas propostas de organização do acento na<br />
fonologia do PB.<br />
1.5) O Acento<br />
Bisol (1992), com base na <strong>teoria</strong> métrica, propõe que o acento primário do PB constrói<br />
pés binários de cabeça à esquerda, sensíveis ao peso inerente da rima ramificada que segu<strong>em</strong><br />
disjuntivamente uma das duas regras no domínio da palavra:<br />
i. Atribua um asterisco (*) à sílaba pesada final, i.e., sílaba de rima ramificada.<br />
ii. Nos d<strong>em</strong>ais casos, forme um constituinte binário (não iterativamente) com pro<strong>em</strong>inência à<br />
esquerda, de tipo (*.), junto à borda direita da palavra (Bisol, 1992, p. 69).<br />
Bisol (1992) apresenta uma <strong>análise</strong> unificada do acento, isto é, suas regras serv<strong>em</strong><br />
tanto para explicar os nomes quanto os verbos. Assim, enquanto o it<strong>em</strong> (i) acima é<br />
responsável pela atribuição do acento <strong>em</strong> nomes, como sabão, cordel, labor, troféu, devido às<br />
rimas ramificadas, o it<strong>em</strong> (ii) acima atribui acento à mesa, bola, cela, ampola, timbre, etc.<br />
Essas regras são cíclicas nos nomes, e se aplicam s<strong>em</strong>pre que um morf<strong>em</strong>a sufixal é<br />
adicionado (»casa, casa»mento, casamen»tinho). Essas mesmas regras nos verbos são não<br />
cíclicas, e se aplicam de uma só vez, quando a palavra está pronta.<br />
A autora utiliza o recurso da Extrametricidade aos itens periféricos à direita, a fim de<br />
regular algumas palavras prosódicas ao domínio das regras de acento, associando novamente<br />
esses el<strong>em</strong>entos pela regra de Adjunção da Sílaba perdida (ASP) ao se formar<strong>em</strong> os pés. A<br />
silabação é previsível e contínua – realiza-se s<strong>em</strong>pre no início de cada ciclo, após a inserção<br />
de um el<strong>em</strong>ento morfológico – ocorre antes da Regra de Formação dos constituintes<br />
prosódicos. As palavras proparoxítonas e as paroxítonas com sílaba final ramificada, já<br />
apresentam no léxico a informação de extrametricidade silábica ou segmental.<br />
Outra <strong>análise</strong> possível para o PB, neste texto, ela será ilustrada pelos trabalhos de Lee<br />
(2002, 2005) considera como domínio do acento do não-verbo, não-marcado, é o radical<br />
derivacional, sendo acentuada a última vogal do radical, mes+a, bol+a, ampol+a, timbr+e. O<br />
41
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
acento s<strong>em</strong>pre cai mais à borda direita da palavra. Logo, as palavras como saci, tricô e café<br />
apresentam acento na última sílaba, porque o domínio do radical derivacional é o mesmo da<br />
palavra fonológica, já que eles são ausentes de marca de gênero/vogal t<strong>em</strong>ática.<br />
Diferente do arguido por Bisol (1992) e Wetzels (1992) que afirmam que o pé do PB é<br />
troqueu moráico, a <strong>análise</strong> de Lee (2002, 2005) prevê que os pés métricos do PB são de<br />
cabeça à direita, i.e., iâmbicos, como ilustramos nos ex<strong>em</strong>plos (2b) e (2d):<br />
Tabela 4<br />
Pés Métricos a.Proparoxítona b.Paroxítona c.Paroxítona com<br />
última sílaba<br />
ramificada<br />
1.Bisol (1992)<br />
e Wetzels<br />
(1992)<br />
2.Lee (2002)<br />
e (2005)<br />
»lampa<br />
( * .)<br />
»lampada<br />
( * .)<br />
»bola<br />
( * .)<br />
»bol+a<br />
( * )<br />
»uti<br />
( * .)<br />
»util<br />
( * .)<br />
d.Oxítona<br />
tri»co/t/<br />
( * )<br />
tri»co<br />
( . *)<br />
Lee (2002) e (2005) consegue analisar o acento do PB s<strong>em</strong> utilizar o recurso da<br />
extrametricidade, exceto aos verbos. No entanto, sua <strong>análise</strong> utiliza a noção de marcação para<br />
explicar ex<strong>em</strong>plos como (2a) e (2c). Isso expõe esses casos como marcados na língua, e, por<br />
isso, formam o pé troqueu. Neste caso, t<strong>em</strong>-se o troqueu silábico (não-iterativo, domínio do<br />
radical), pois o autor assume que o PB não é sensível ao peso silábico. Além destes ex<strong>em</strong>plos,<br />
também os verbos, acentuados no nível da palavra, são troqueus. O resultado disso é uma<br />
atribuição de acento sensível a categoria lexical.<br />
2) Análise: Os glides intervocálicos<br />
Glides intervocálicos são segmentos que se realizam entre segmentos [+ silábicos]<br />
(‘ba[I9]oneta’, ‘ce[I9]a’, ‘Ca[U9]an’). A maioria dos glides intervocálicos não t<strong>em</strong> segmento<br />
correspondente na representação subjacente da palavra (seja ele vocálico, consonantal, ou<br />
mesmo o próprio glide). O principal argumento para essa conclusão é a previsibilidade de sua<br />
realização (Mateus, 1982). Assim, o glide intervocálico é criado e concorda com os traços<br />
[recuado] e [arredondado] da vogal que o precede; esta vogal necessariamente deve ser tônica,<br />
[-alta] (e,E,o,ç) e a vogal que o segue deve ser [- alta].<br />
Outras duas características diferenciam o glide intervocálico previsível do glide<br />
intervocálico não-previsível 13 . A primeira é sua não ocorrência <strong>em</strong> todas as formas de um<br />
paradigma (passe[I9]o-passear, porém cu[I9]a-cu[I9]eira); a segunda é sua ocorrência variável,<br />
dependente de condições extralingüísticas ([a»ReI9a] ~ [a»Rea] ‘areia’, porém [kuI9a] *[kua]).<br />
Vejam abaixo:<br />
13 Este texto trata como glide intervocálico previsível aquele que não t<strong>em</strong> unidade t<strong>em</strong>poral correspondente na<br />
forma subjacente.<br />
42
Glides intervocálicos previsíveis:<br />
»ce[I9]a, porém ce»ar<br />
pas»se[I9]o, porém passe»ar<br />
ca»no[U9]a, porém cano»a<br />
»do[U9]a, porém doa»ção<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Faz<strong>em</strong>-se duas pontuações sobre os ex<strong>em</strong>plos acima. Segundo Chomsky e Halle<br />
(1968), sons bastante s<strong>em</strong>elhantes <strong>em</strong> uma língua pod<strong>em</strong> funcionar como uma classe natural.<br />
Assim, observa-se que [I9] e [U9] formam uma classe natural, porque os dois pod<strong>em</strong> ser<br />
inseridos no contexto descrito acima. Nota-se, também, que a inserção pode ocorrer tanto<br />
entre verbos quanto <strong>em</strong> nomes não sendo sensível a categoria lexical, no entanto, a alteração<br />
do acento é diretamente influente <strong>em</strong> sua ocorrência (isso se deve, provavelmente, à tendência<br />
de as sílabas tônicas apresentar<strong>em</strong> maior duração que as átonas). Quando a vogal que<br />
antecede o glide se torna átona, ou é naturalmente átona (a»mendoa, então *a»mendo[U9]a),<br />
automaticamente o glide perde o contexto para sua realização. Abaixo citamos ex<strong>em</strong>plos de<br />
glides intervocálicos não previsíveis:<br />
»bo[I9]a, então bo[I9]»ar<br />
go[I9]»aba e go[I9]a»bada<br />
Ca[U9]an, então Ca[U9]an»zinho<br />
Nos casos acima, com a alteração do acento, o glide ainda se realiza, não dependendo,<br />
deste modo, do contexto.<br />
Há duas explicações para o fato de os glides intervocálicos apenas anteceder<strong>em</strong>,<br />
fonologicamente, segmentos [- altos]. A primeira, apresentada por Mateus (1982), afirma que<br />
<strong>em</strong> palavras com sequência fonológica de vogal [+/- ATR], [- alta] e vogal [+ alta], o glide<br />
não pode ser inserido, devido a segunda vogal ser [+ alta]: *europeI9U, ‘europeu’, *judeI9U,<br />
‘judeu’.<br />
Ela explica que realizações fonéticas do tipo [paseI9U], com glide anterior a vogal [U]<br />
só é possível porque a neutralização da vogal subjacente /o/ para [U] realiza-se antes da<br />
inserção do glide (consideramos aqui uma <strong>teoria</strong> com base no ordenamento), deste modo, o<br />
glide é inserido antes de vogal [-alta].<br />
A segunda explicação fundamenta-se na aceitação de que os glides faz<strong>em</strong> parte do<br />
inventário subjacente da língua como glides. Assim, a inserção do glide é proibida porque no<br />
PB proíbe-se a realização de dois glides consecutivos na mesma sílaba *eu.ro.peI9U9, ‘europeu’,<br />
*ju.deI9U9, ‘judeu’. Essa explicação é mais simples, porém exige-se que aceite esse segmento<br />
como fonológico <strong>em</strong> uma língua que não há pares mínimos entre glides e seus sons<br />
foneticamente s<strong>em</strong>elhantes, isto é, as vogais altas, como afirmamos anteriormente.<br />
Aceitar que o glide faz parte do inventário fonológico da língua também descomplica<br />
a atuação da acentuação do PB. Vejam os ex<strong>em</strong>plos abaixo:<br />
pas»se[I9]o ~ pas»se[I9]<br />
43
»me[I9]o ~ »me[I9]<br />
»velho ~ »ve[I9]<br />
»me[I9]a (somente)<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O segundo ex<strong>em</strong>plo de cada palavra acima mostra um processo bastante comum do<br />
falar norte-mineiro: o apagamento do marcador de palavra /o/. Este apagamento é sensível à<br />
informação lexical e permite somente a realização de ‘o me[I9]’ mas não de *‘a me[I9]’. O que<br />
sugere que o marcador masculino é uma informação redundante. Fonologicamente 14 , o<br />
apagamento deste marcador implica na reestruturação da palavra que deixa de ser paroxítona<br />
para se tornar oxítona terminada <strong>em</strong> glide.<br />
Uma sílaba é pesada se contiver duas unidades de t<strong>em</strong>po (pod<strong>em</strong> ser representadas por<br />
X; C e V, ou moras). No PB, as sílabas são pesadas se fechadas pelas codas: R, L, N, S. (a<br />
coda /S/ que representa o morf<strong>em</strong>a de plural não adiciona peso a sílaba). Se os glides advêm<br />
de um processo aplicado a uma vogal na forma subjacente e formam ditongos durante a<br />
derivação, não irão atribuir peso à sílaba. No entanto, se são considerados consonantais,<br />
pod<strong>em</strong> atribuir peso. Logo, o dialeto acima é uma evidência de que o glide é interpretado<br />
como um segmento que atribui peso silábico, pois a ausência do marcador masculino não<br />
causa nenhuma violação ao padrão do PB já que o dialeto recorre ao segundo padrão aceito<br />
pela língua, o oxítono, conforme proposto por Bisol (1992). Isso só é possível se<br />
considerarmos que o glide atribui peso à sílaba.<br />
Pode-se pensar na possibilidade de inserir este glide sob a forma de vogal, e depois,<br />
por regra, transformá-lo <strong>em</strong> glide, e obter o padrão paroxítono. Esta não é uma boa solução<br />
porque causaria, primeiramente, um padrão de acento proparoxítono, marcado no PB, para<br />
depois obter o padrão paroxítono, quando a vogal se tornar glide. Além disso, se houver o<br />
processo de apagamento, que supre o marcador de palavra, a forma paroxítona se desfaz para<br />
dar lugar ao acento oxítono. Deste modo, descarta-se essa hipótese.<br />
Novamente, avalia-se o dialeto acima, agora, sob a <strong>teoria</strong> acentual de Lee (2002),<br />
(2005). Lee afirma que o PB acentua a última vogal do radical. A inserção do glide não<br />
prejudica esta <strong>análise</strong> porque ele já se insere glide, isto é, [-silábico], e não pode receber o<br />
acento. Como o dialeto não faz alterações no radical, não há mudança na acentuação. No<br />
entanto, as palavras que apresentam o glide intervocálico imprevisível se tornam<br />
probl<strong>em</strong>áticas, pois esta <strong>teoria</strong> se vê obrigada a marcar estes ex<strong>em</strong>plos (além de outros não<br />
discutidos aqui), que não terá acentuada a última vogal do radical, como <strong>em</strong> ‘cuia’, ‘bóia’ e<br />
‘maior’. Novamente, para a <strong>teoria</strong> acentual, considerar os glides segmentos fonológicos é<br />
mais vantajoso.<br />
Afirmou-se, anteriormente, que glides intervocálicos previsíveis pod<strong>em</strong> realizar-se ou<br />
não. Quando não se realizam, t<strong>em</strong>-se, na palavra, o encontro de duas vogais, isto é, há um<br />
limite silábico b<strong>em</strong> específico. No entanto, se o glide ocorre, t<strong>em</strong>-se um impasse: <strong>em</strong> qual<br />
sílaba localiza-se o glide? A silabificação deve ser feita ‘»me.[I9]o’, com o glide no início da<br />
segunda sílaba, ou ‘»me[I9].o’ com glide no final da primeira?<br />
14 O fenômeno de apagamento no falar norte-mineiro é somente fonético, no entanto, exibe o padrão de acento<br />
fonológico.<br />
44
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
No PB, glides de sequências vogal-glide comportam-se de modo diferente de<br />
sequências glide-vogal. Essa diferença se expressa no comportamento fonético dessas<br />
sequências. Enquanto a primeira não permite variação livre com a sequência vogal-vogal, a<br />
segunda permite. Considerando-se que os glides intervocálicos (considera-se tanto glides<br />
previsíveis e não previsíveis) nunca se realizam como vogais (*me[i]o, *cano[u]a), conclui-se<br />
que eles se comportam como um glide de sequência vogal-glide, localizado, assim, na<br />
primeira sílaba. Neste ponto, pod<strong>em</strong>-se imaginar duas possibilidades: se o glide for analisado<br />
como advindo de uma vogal subjacente, então, ao se tornar glide, ele passa a se localizar no<br />
núcleo da primeira vogal, junto com ela, s<strong>em</strong> adicionar peso à sílaba. No entanto, se ele for<br />
classificado como consoante, ele se localizará na coda (ligado a um nó C ou G) e, ainda, se for<br />
classificado como glide, poderá ocupar estas duas posições. Ex<strong>em</strong>plifica-se abaixo:<br />
Figura 5: Representação silábica do glide obtido por processo de assilabificação da vogal:<br />
a. b. c.<br />
σ σ σ σ σ<br />
N N N N N<br />
V V V V V G<br />
Acima, apresentamos, <strong>em</strong> representação silábica parcial, a formação do glide <strong>em</strong><br />
sequência vogal-glide. No caso do glide intervocálico previsível, o processo já se inicia <strong>em</strong><br />
(c.). Abaixo, ex<strong>em</strong>plifica-se a sílaba com glide classificado como consonantal:<br />
Figura 6: Representação silábica do glide classificado como consoante:<br />
σ<br />
R<br />
N C<br />
V G<br />
Rel<strong>em</strong>bra-se que o glide intervocálico previsível é um fenômeno que ocorre na forma<br />
fonética e não atinge o nível subjacente do sist<strong>em</strong>a fonológico, no entanto, ele nos dá indícios<br />
de como este nível está organizado, além disso, há restrições que são comuns aos dois níveis.<br />
45
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Acima, afirmamos que no nível fonético é proibida a realização dos glides consecutivos na<br />
mesma sílaba, assim também ocorre no nível subjacente, se considerarmos que glides<br />
subjacentes são possíveis.<br />
Propor que os glides são consoantes na forma subjacente, implica <strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as para a<br />
silabificação da forma fonética (este tipo de probl<strong>em</strong>a não é causado se ele for considerado<br />
vocálico). Isso ocorre porque, no PB, são proibidas sequências silábicas do tipo *VC.V. Por<br />
ex<strong>em</strong>plo, palavras como ‘canto’, ‘cama’, ‘sala’ não são silabificadas como *‘cant.o’, *‘cam.a’<br />
ou *‘sal.a’, e, sim, ‘can.to’, ‘ca.ma’ e ‘sa.la’ Nesses casos, a consoante intervocálica está<br />
posicionada no ‘onset’ da sílaba seguinte. Se o glide intervocálico deve ser inserido no final<br />
da primeira sílaba e as consoantes estão no ‘onset’ silábico, como o glide pode ser<br />
considerado, nesta posição uma consoante?<br />
Para se resolver este impasse, dev<strong>em</strong>os considerar que as sequências silábicas do tipo<br />
*VC.V são proibidas na forma fonética. Se a silabificação for previsível, essa restrição não<br />
atuará na forma subjacente, porque não há silabificação neste nível. Porém, se levar-se <strong>em</strong><br />
conta a Fonologia Lexical, na qual a forma lexical, input da forma somente fonológica, já está<br />
silabificada, esta restrição não atua na forma subjacente, input da forma lexical, porque os<br />
glides intervocálicos não previsíveis estão presentes e silabificados no final da primeira<br />
sílaba. Nesse caso, essa sequência somente é proibida na forma fonética.<br />
Para evitar que esse tipo de sequência se realize na forma fonética (output), propõe-se<br />
que, neste nível, ocorra a ambissilabicidade. Isto é, o glide ocorre tanto na coda da primeira<br />
sílaba quanto no ‘onset’ da segunda. Assim, este trabalho está <strong>em</strong> sintonia com a solução de<br />
Couto (1994). No entanto, discorda-se desse autor quanto ao tratamento do glide. Segundo o<br />
autor, o glide é ramificado na primeira sílaba como V. No entanto, o que se vê, no<br />
desenvolvimento desta pesquisa, são razões concretas de que o glide deve ser interpretado<br />
como um segmento consonantal no sist<strong>em</strong>a do PB.<br />
No processo de ambissilabicidade (Kahn, 1976), sabe-se a quantidade de sílabas que a<br />
palavra t<strong>em</strong>, no entanto, não se sabe qual o limite entre as sílabas ambissilábicas. Em alguns<br />
testes informais realizados com falantes do PB, observou-se que a maioria expressa alguma<br />
dificuldade 15 <strong>em</strong> decidir o modo de se dividir as sílabas que contém glides intervocálicos,<br />
dificuldade que não se realiza <strong>em</strong> palavras com consoantes intervocálicas. Outra prova é que<br />
as respostas 16 obtidas eram variáveis: alguns falantes propunham (VG.V), enquanto uma boa<br />
parte propunha (V.GV).<br />
Com papel consonantal, o glide é inserido na coda silábica da primeira sílaba e se<br />
associa ao ‘onset’ da sílaba seguinte, produzindo o padrão VC.CV, permitido no PB. Outro<br />
fenômeno que apresenta razões para a interpretação dos glides como consonantais são o<br />
apagamento do glide [U9] <strong>em</strong> coda, se antecedido por vogal [o].<br />
Há, no PB, a inserção do glide intervocálico que proporciona a realização de variações<br />
como ‘boa’ ~’bo[U9]a’, ‘pessoa’ ~ ‘pesso[U9]a’, mas há, também, o processo inverso, isto é, o<br />
de apagamento do glide [U9], antecedido por [o]:<br />
15<br />
A dificuldade é expressa pelo falante <strong>em</strong> interjeições, expressões faciais e também pelo t<strong>em</strong>po de resposta.<br />
Observa-se que o falante utiliza um t<strong>em</strong>po de resposta maior nestes casos, diferente de palavras que contenham<br />
uma consoante intervocálica.<br />
16<br />
Em algumas dessas respostas os falantes se apóiam no ensino normativo.<br />
46
o[U9]pa ~ ropa<br />
lo[U9]ça ~ loca<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Isso d<strong>em</strong>onstra a diferença sist<strong>em</strong>ática entre estes dois glides: no apagamento, o glide<br />
é apenas associado à coda (C), ou ao núcleo, junto à vogal (V), e sofre dissimilação dos traços<br />
[+ arred], [+ rec] pela vogal [o] que o antecede. Já o glide intervocálico advém da assimilação<br />
dos mesmos traços de [o]. Conforme Couto (1994), “eu creio que isso (o fato do glide ser<br />
inserido) só reforçaria a tese aqui defendida de que ele passa a ter natureza consonantal. Com<br />
efeito, ele é inserido para separar duas vogais; e o que melhor separa duas vogais é uma<br />
consoante” (Couto, 1994, p. 136). Assim, conclui-se que o preenchimento do ‘onset’ pelo<br />
glide intervocálico, formando uma estrutura CV, é responsável pela sua tendência de<br />
realização na forma fonética, diferente do apagamento, visto anteriormente.<br />
3) Conclusão<br />
Conclui-se que, no PB, há dois tipos de glides intervocálicos: aqueles que são<br />
previsíveis pelo contexto, criados por assimilação de traços na forma fonética, e aqueles que<br />
não são previsíveis pelo contexto, ligados a uma unidade t<strong>em</strong>poral C ou V. Neste último caso,<br />
investigou-se se eles eram obtidos por uma regra de assilabificação, que torna a vogal <strong>em</strong><br />
glide, ou se ele é fonêmico, ligado a uma unidade t<strong>em</strong>poral C. As descrições acentuais, a<br />
estrutura silábica e o comportamento fonético favorec<strong>em</strong> a descrição do glide como<br />
consonantal, presente na estrutura subjacente do PB.<br />
Referências<br />
BISOL, L. O Ditongo na Perspectiva da Fonologia Atual. D.E.L.T.A, São Paulo,v.5, n. 2, p. 185-224.<br />
ago. 1989<br />
______. O Acento e o Pé Métrico Binário. Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas, v. 22. p. 69-<br />
80, janeiro./junho, 1992<br />
BLOOMFIELD, L. Language. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1961<br />
CAGLIARI, L. C. El<strong>em</strong>entos de Fonética do Português Brasileiro. São Paulo: Paulistana 2009.<br />
CÂMARA JR, J. M. Para o Estudo da Fonêmica Portuguesa. Petropolis: Vozes, 1977<br />
______. Probl<strong>em</strong>as de Língua Descritiva. 3. ed. Petropolis: Vozes, 1970<br />
______. Estrutura da Língua Portuguesa. 14. ed. Petropolis: Vozes, 1984<br />
CHOMSKY, N.; HALLE, M.The Sound Pattern of English. New York: Harper and Row,1968<br />
CLEMENTS, G. N.; KEYSER, S. J. From CV Phonology: A Generative Theory of the Syllable. In .<br />
Goldsmith. J. A. Phonology Theory: Essential Readings. Malden: Blackwell, 1999<br />
47
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
COLLISCHONN, G. Um Estudo da Epêntese à luz da Teoria da sílaba de Junko Itô. <strong>Letras</strong> de Hoje.<br />
Porto Alegre. v. 31, n.2, p.149-158, junho, 1996.<br />
COUTO, H. Ditongos Crescentes e a ambissilabicidade <strong>em</strong> Português. <strong>Letras</strong> de Hoje. Porto Alegre:<br />
Edipucs. n. 98, p. 113-127, dez<strong>em</strong>bro, 1994<br />
CROSSWHITE, K. M. Vowel Reduction in Optimality Theory. Tese. 1999<br />
HYMAN, L. Phonology Theory and Analysis. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1975<br />
KAHN, D. Syllable Base Generalizations in English. New York: Garland Publishing Company. New<br />
York. 1976<br />
LEE, S. H. Teoria de Otimalidade e Silabificação do PB. In: MENDES, E. A. de M. M., OLIVEIRA,<br />
P. M. BENN-IBLER, V. Revisitações: Edição Com<strong>em</strong>orativa 30 anos da Faculdade de<br />
<strong>Letras</strong>/UFMG. Belo Horizonte.1999.<br />
______. Primary Stress in Portuguese Non-Verbs. In. REIS, C. Estudos <strong>em</strong> Fonética e Fonologia do<br />
Português. Belo Horizonte: Fale-UFMG, 2002<br />
______. O acento primário no português: uma <strong>análise</strong> unificada na Teoria da Otimalidade. In:<br />
ARAÚJO, Gabriel (org.). O Acento <strong>em</strong> Português: abordagens fonológicas. São Paulo: Parábola<br />
Editorial, 2005. p. 120-143.<br />
LEITE, Y. F. Portuguese Stress and Related Rules. 152 f. Tese (Doutorado, PhD) – University of<br />
Texas, Austin, 1974<br />
LOPEZ, B. S. The Sound Pattern of Brazilian Portuguese (Cariocan Dialect). Tese (Doutorado, PhD)<br />
- University of California, Los Angeles, 1979.<br />
MATEUS, M. H. M. Aspectos da Fonologia Portuguesa. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação<br />
Científica, 1982<br />
MATZENAUER, L. C. Introdução à Teoria Fonológica. In: BISOL, L. Introdução a Estudos de<br />
Fonologia do Português Brasileiro. 4. ed. Porto Alegre: Edipucs, 2005<br />
PIKE, K. Phonetics: A Critical Analysis of Phonetic Theory and a Technic for the Practical<br />
Transcription of Sounds. Michigan: Ann Arbor, 1972<br />
SELKIRK, E.O. The Syllable. In. Goldsmith. J. A. Phonology Theory: Essential Readings. Malden:<br />
Blackwell, 1999<br />
SILVA, T. C. Nuclear Phenomena in Brazilian Portuguese. Tese. University de Londres, Londres,<br />
1992.<br />
______. SILVA, T. C. A Interpretação de glides Intervocálicos no português. <strong>Letras</strong> de Hoje. Porto<br />
Alegre: Edipucs. V.31, n.02, p. 169-176, junho, 1996.<br />
TRUBETZKOY, N. S. Principios de Fonologia. Madrid: Cincel, 1939.<br />
WETZELS. L. Mid vowel neutralization in Brazilian Portuguese. Cadernos de Estudos Lingüísticos.<br />
Campinas, v. 23.p. 19-55, julho./dez<strong>em</strong>bro, 1992.<br />
48
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
______. Consoantes palatais como g<strong>em</strong>inadas fonológicas no Português Brasileiro. RELIN. Belo<br />
Horizonte. v. 9, n.2, p. 5 a 16. julho/dez<strong>em</strong>bro, 2000.<br />
49
DITONGAÇÃO: expediente formal de t<strong>em</strong>po presente<br />
Vítor de Moura Vivas (UFRJ) 1<br />
RESUMO: O mecanismo da fusão, apesar de sist<strong>em</strong>ático e produtivo, está à marg<strong>em</strong> dos estudos de morfologia<br />
do português. A fusão é uma operação na qual uma modificação num t<strong>em</strong>a de um vocábulo revela a<br />
manifestação de um conteúdo relevante para a base. Para o enfoque estruturalista, qualquer processo que não<br />
envolva encadeamento estrito de formas constitui um probl<strong>em</strong>a. Em nossa pesquisa, focalizamos fusões que<br />
ocorr<strong>em</strong> <strong>em</strong> verbos; d<strong>em</strong>onstramos que a morfologia flexional portuguesa se organiza não só por concatenação<br />
de afixos, mas também por fusão. Explicitamos diversos expedientes de fusão – ditongação, mudança<br />
consonantal, inserção consonantal, haplologia, alternância vocálica – que manifestam conteúdos de t<strong>em</strong>po e de<br />
número-pessoa 2 . Fundamentando-nos <strong>em</strong> Bybee (1985) e Gonçalves (2005), d<strong>em</strong>onstramos que modificações no<br />
radical do verbo veiculam conteúdos gramaticais na morfologia verbal do português. Neste artigo, pretend<strong>em</strong>os<br />
evidenciar que o presente, ao contrário do que defende a literatura estruturalista, pode ter manifestação formal.<br />
Essa manifestação não se dá por acréscimo de afixos, mas por fusão. Um dos expedientes formais de fusão do<br />
conteúdo de t<strong>em</strong>po presente é a ditongação. Explicitamos, no artigo, uma fundamentação para o mecanismo<br />
fusão, d<strong>em</strong>onstrando que a forma de superfície revela graus de relevância s<strong>em</strong>ântica. Também apresentamos<br />
casos de fusão por ditongação no português, fornecendo evidências da produtividade desse expediente de fusão.<br />
1) Introdução<br />
Ex<strong>em</strong>plos de modificação no radical que informam conteúdos gramaticais são<br />
considerados pela literatura morfológica como casos de exceção, já que a morfologia<br />
portuguesa seria aglutinativa. Pretend<strong>em</strong>os d<strong>em</strong>onstrar que há regularidades nas alterações<br />
que o radical sofre e que tais regularidades precisam ser estudadas e sist<strong>em</strong>atizadas no<br />
português. A ditongação no radical não ocorre por acaso, ela é motivada fonologicamente, já<br />
que ocorre no contexto de sílaba tônica do radical. Além disso, <strong>em</strong> termos s<strong>em</strong>ânticos, veicula<br />
alguma informação gramatical. Explicitamos, neste artigo, casos de ditongação que veiculam<br />
o conteúdo de presente.<br />
Fundamentando-nos <strong>em</strong> uma abordag<strong>em</strong> que acredita na relação motivada entre forma<br />
e conteúdo (Bybee, 1985; Gonçalves, 2005), pretend<strong>em</strong>os d<strong>em</strong>onstrar, neste artigo, que<br />
modificações formais no radical de verbos são ex<strong>em</strong>plos de fusão <strong>em</strong> português. Objetivamos<br />
confirmar, seguindo Gonçalves (2005), que a língua portuguesa não é puramente aglutinativa,<br />
havendo, desse modo, duas possibilidades de indicar informações gramaticais na morfologia<br />
do verbo: por concatenação de formas ou por fusão. Como aponta Bybee (1985, p. 45),<br />
“muitas línguas utilizam uma combinação de aglutinação e fusão”.<br />
Apresentamos, brev<strong>em</strong>ente, na seção 2, a maneira como a modificação no radical é<br />
tratada pela literatura morfológica. Em geral, apresentam-se regularidades formais, mas s<strong>em</strong><br />
analisar o conteúdo expresso por tais regularidades. Na seção 3, apresentamos um aporte<br />
teórico (Bybee, 1985; Gonçalves, 2005) que nos permite afirmar que alterações no radical do<br />
verbo são motivadas s<strong>em</strong>anticamente e estão, na maioria das vezes, a serviço de alguma<br />
1<br />
Orientado por Carlos Alexandre Victorio Gonçalves, é bolsista de Doutorado do Órgão de Fomento CAPES e<br />
Professor Substituto da UFRJ.<br />
2<br />
Em Vivas (2011), d<strong>em</strong>onstramos a produtividade e sist<strong>em</strong>aticidade de vários expedientes formais do<br />
mecanismo fusão na morfologia verbal do português apresentando, inclusive, uma formalização para a fusão por<br />
alternância vocálica.<br />
50
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
informação gramatical. Desse modo, conseguimos apontar as causas para essas modificações<br />
formais, que constitu<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as para a literatura morfológica de inspiração estruturalista.<br />
Para esse tipo de enfoque, de forma geral, afixos informam noções gramaticais, visto que a<br />
morfologia s<strong>em</strong>pre busca alcançar uma relação de univocidade entre unidades formais e<br />
conteúdos s<strong>em</strong>ânticos. Na seção 4, ilustramos modificações na base verbal que veiculam<br />
conteúdo gramatical através de dados de ditongação. D<strong>em</strong>onstramos que a ditongação no<br />
radical do verbo veicula o conteúdo de presente na morfologia verbal do português. Na seção<br />
5, apresentamos algumas considerações a que chegamos com a pesquisa.<br />
2) Revisão da Literatura quanto à modificação no radical do verbo<br />
Na literatura estruturalista, quando se aborda alguma espécie de mudança no radical<br />
dos verbos, trata-se dessa modificação, de um modo geral, apenas através de argumentos<br />
formais. Em algumas obras da literatura morfológica sobre o português (Koch; Souza e Silva,<br />
1989; Zannoto, 2006; Câmara Jr., 1970; Lopes, 2003; Monteiro, 1991), padronizam-se muito<br />
b<strong>em</strong> os verbos chamados de irregulares quanto às s<strong>em</strong>elhanças formais entre os t<strong>em</strong>pos. A<br />
explicação das irregularidades, partindo da observação das formas de que derivam (presente<br />
do indicativo; infinitivo ou pretérito perfeito), é muito criteriosa <strong>em</strong> termos formais.<br />
Não v<strong>em</strong>os, todavia, nessa padronização de grupos de verbos, o que, <strong>em</strong> termos de<br />
significado, liga essas formas verbais. Na minoria dos casos, os autores explicitam uma<br />
relação entre mudança na base e informação expressa. Koch ; Souza e Silva (1989), apesar de<br />
mostrar<strong>em</strong> que Câmara Jr. já observara que irregularidades no verbo traz<strong>em</strong> informação<br />
gramatical, faz<strong>em</strong> uma descrição quase toda baseada <strong>em</strong> aspectos formais. As autoras<br />
afirmam que as alternâncias vocálicas que ocorr<strong>em</strong> nas formas rizotônicas do presente do<br />
indicativo nas segunda e terceira conjugações, ou a ditongação do radical que ocorre nas<br />
formas rizotônicas de certos verbos (‘passear’, ‘odiar’), não dev<strong>em</strong> ser tratadas como<br />
irregularidades no plano morfológico: são “simplesmente alterações fonologicamente<br />
condicionadas” (Koch; Souza e Silva, 1989, p. 60). A única modificação no radical com<br />
contraparte significativa apontada pela grande maioria autores de base estruturalista é a<br />
alternância vocálica. Mesmo assim, são expostos poucos casos, e a alternância é considerada<br />
improdutiva. VIVAS (2011) d<strong>em</strong>onstra que, <strong>em</strong> algumas variedades, o falante realiza a<br />
alternância vocálica produtivamente, veiculando determinados conteúdos: distinção entre P1 e<br />
P3 pela oposição entre vogal alta e vogal média (‘tr[u]xe’ e ‘tr[o]xe’; ‘c[u]be’ e ‘c[o]be’),<br />
informação de presente por abertura de vogal média (est[Ǥ]ro, p[Ǥ]so, r[Ǥ]bo, int[ǫ]ro).<br />
Como afirmam Azuaga (1996) e Gonçalves ; Almeida (2008), a alternância vocálica é<br />
um dos probl<strong>em</strong>as no mapeamento biunívoco entre morfe e morf<strong>em</strong>a. Observa Azuaga (1996)<br />
que as relações apofônicas (ablaut, umlaut e modificações morfologicamente significativas<br />
<strong>em</strong> vogais e consoantes) talvez constituam o caso mais importante na explicitação da<br />
dificuldade de identificação e segmentação de morf<strong>em</strong>as. Os ex<strong>em</strong>plos apontados pela autora<br />
são do inglês: ‘sing’; ‘sang’ (‘cantar’; ‘cantei’) / ‘break’; ‘broke’ (‘partir’; ‘partiu’) / ‘foot’;<br />
‘feet’ (‘pé’; ‘pés’) / ‘man’; ‘men’ (‘hom<strong>em</strong>’; ‘homens’). Segundo a autora, casos de mutação<br />
vocálica e consonantal são ex<strong>em</strong>plos de modificação parcial da base; há, ainda, os casos <strong>em</strong><br />
que o processo envolve mudança total da base, como, <strong>em</strong> português, o verbo ‘ser’ (‘fui’), e,<br />
<strong>em</strong> inglês, o verbo ‘go’ (‘went’).<br />
51
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Defend<strong>em</strong>os a hipótese de que modificações formais no radical dos verbos possu<strong>em</strong>,<br />
frequent<strong>em</strong>ente, uma contraparte s<strong>em</strong>ântica. Mesmo modificações condicionadas<br />
fonologicamente (por ex<strong>em</strong>plo, a ditongação que ocorre na vogal tônica do radical) pod<strong>em</strong><br />
acarretar alguma informação gramatical. Em outras palavras, acreditamos, como Bybee<br />
(1985) e Gonçalves (2005), na correlação entre forma e significado; assim, padrões formais<br />
próximos são também relacionados <strong>em</strong> termos de informação gramatical. Em português, o<br />
processo morfológico que envolve mudança total ou parcial da base, explicitado por Azuaga<br />
(1996), t<strong>em</strong> regularidade e produtividade. Na próxima seção, apresentamos o arcabouço<br />
teórico que nos permite entender a modificação no radical como um fenômeno que veicula<br />
informação gramatical. A literatura morfológica estruturalista percebe mudanças formais<br />
regulares <strong>em</strong> radicais. Todavia, tal literatura não dá conta plenamente da contraparte<br />
s<strong>em</strong>ântica dessas mudanças, que evidenciam que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre os expoentes de informações<br />
gramaticais são afixos.<br />
Fundamentando-nos <strong>em</strong> Bybee (1985) e Gonçalves (2005), d<strong>em</strong>onstramos que<br />
mudanças no radical são, muitas vezes, reflexos de informação gramatical que se funde no<br />
conteúdo lexical de vocábulos. Essa fusão de conteúdos é sist<strong>em</strong>ática nas línguas do mundo e<br />
pode explicar o porquê de haver mudanças formais regulares nos verbos da língua portuguesa.<br />
Para d<strong>em</strong>onstrar a regularidade e a motivação dessas mudanças <strong>em</strong> radicais verbais,<br />
explicitamos, na próxima seção, como a expressão de superfície revela graus de relação<br />
s<strong>em</strong>ântica. Afixos mais próximos do radical são mais importantes s<strong>em</strong>anticamente que afixos<br />
distantes do radical. Mudanças no radical verbal são, muitas vezes, reflexos da fusão de<br />
algum conteúdo flexional relevante ao verbo.<br />
3) Fundamentação do mecanismo fusão<br />
Apresentar<strong>em</strong>os, nesta seção, as bases teóricas que nos levam a defender a hipótese de<br />
que modificações formais no radical veiculam conteúdos gramaticais. Através de Bybee<br />
(1985) e Gonçalves (2005), d<strong>em</strong>onstramos que conteúdos relevantes tend<strong>em</strong> a se fundir <strong>em</strong><br />
bases verbais. Alternância vocálica: ‘f[i]z’ / ‘f[e]z’ (distinção entre 1ª pessoa do singular e 3ª<br />
pessoa do singular), ditongação: ‘present[ei]-’ (radical de ‘presentear’ que veicula a noção de<br />
presente) e mudança consonantal: ‘per[k]-’ (radical de ‘perder’ que veicula o conteúdo de<br />
presente) são algumas das estratégias, no português, que evidenciam que a flexão verbal<br />
portuguesa se organiza também por fusão.<br />
3.1) A relevância s<strong>em</strong>ântica<br />
Bybee (1985) evidencia haver forte correlação entre forma e significado na morfologia<br />
flexional de línguas naturais. Assim, observa que conteúdos gramaticais mais relevantes para<br />
a base tend<strong>em</strong> a ocorrer adjacentes a esse constituinte morfológico. Quando a relevância é<br />
muito alta, é frequente a ocorrência de fusão: um conteúdo mescla-se ao outro numa forma,<br />
muitas vezes, indecomponível <strong>em</strong> partes mínimas significativas. Bybee (1985, p. 4) chega a<br />
afirmar que a principal hipótese de sua pesquisa é a de que o grau de fusão morfofonológica<br />
de um afixo para com o radical se correlaciona diretamente com o grau de relevância<br />
s<strong>em</strong>ântica desse mesmo afixo <strong>em</strong> relação ao radical. Portanto, para entender o que é fusão, é<br />
fundamental entender o princípio de relevância. Para Bybee (1985), quando dois conteúdos<br />
são relevantes entre si, um deles afeta ou modifica diretamente o outro. Se houver um alto<br />
52
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
grau de relevância, a expressão tende a ser morfológica (flexional/derivacional) ou lexical. Já<br />
com conteúdos irrelevantes entre si, é frequente a expressão sintática.<br />
Como aponta Gonçalves (2005), o conteúdo direcionalidade é muito importante para<br />
verbos de movimentos. Para o conteúdo mover, é fundamental saber para onde se move.<br />
Desse modo, é provável que encontr<strong>em</strong>os expressão lexical desses conteúdos: ‘subir’ (andar<br />
para cima); ‘descer’ (andar para baixo); ‘seguir’ (andar para frente); ‘voltar’ (andar para trás);<br />
‘entrar’ (andar para dentro); ‘sair’ (andar para fora). Já o conteúdo companhia (com qu<strong>em</strong> se<br />
move), como d<strong>em</strong>onstra Gonçalves (2005), não é tão fundamental para verbos de<br />
movimentos. Assim, não ocorre fusão dos conteúdos movimento e companhia. Realmente,<br />
quando quer<strong>em</strong>os expressar que nos mov<strong>em</strong>os na companhia de alguém, utilizamos a<br />
expressão sintática: ‘Andamos com Fulano’; ‘Seguimos com Fulano’; ‘Eu e Fulano voltamos<br />
de algum lugar’. Para o conteúdo orientação acadêmica, é importante saber se ela ocorreu <strong>em</strong><br />
conjunto ou não. Por isso, apesar de não haver expressão lexical para os conteúdos orientar +<br />
companhia, verificamos expressão morfológica: ‘coorientar’; ‘coorientação’. Para conteúdos<br />
como organizar, chefiar, participar também é relevante o conteúdo companhia. Verificamos<br />
dados no português que comprovam essa previsão: ‘coparticipação’; ‘coorganizar’;<br />
‘cochefiar’. Isso confirma a hipótese de Bybee (1985), segundo a qual conteúdos relevantes<br />
tend<strong>em</strong> a ser expressos lexical ou morfologicamente. Já conteúdos irrelevantes entre si<br />
tend<strong>em</strong> a ser expressos sintaticamente.<br />
Bybee (1985, p. 13-14) aponta que a relevância depende da saliência cognitiva e<br />
cultural: “dois conteúdos são altamente relevantes, um para o outro, se o resultado da<br />
combinação deles nomeia algo que t<strong>em</strong> alta saliência cultural ou cognitiva”. Gonçalves<br />
(2005) d<strong>em</strong>onstra que, <strong>em</strong> português, o conteúdo ritmo que se dança é relevante para o<br />
conteúdo dança. Assim, muitas vezes, há fusão, no radical, desses dois conteúdos. Em<br />
‘sambar’, há fusão no radical ‘samb-’ dos conteúdos dançar e ritmo. O mesmo ocorre <strong>em</strong><br />
‘pagodear’, ‘valsar’, ‘lambadear’, ‘salsar’, ‘sapatear’. Essa fusão do ritmo que se dança <strong>em</strong><br />
radicais é indício de que ritmos musicais são el<strong>em</strong>entos relevantes culturalmente no Brasil.<br />
Em outras línguas, a combinação entre os conteúdos dança e ritmo se dá por expressão<br />
sintática, “como ocorre <strong>em</strong> inglês (‘to dance a jazz’) e <strong>em</strong> espanhol (‘danzar el merengue’), o<br />
que pode ser indício da baixa proliferação e/ou importância de estilos musicais e dançantes<br />
nessas culturas” (Gonçalves, 2005, p. 132).<br />
Cultura, <strong>em</strong> termos antropológicos, é um conjunto de hábitos de um determinado<br />
grupo social. Sair para dançar é um hábito frequente na cultura brasileira e, desse modo, é<br />
natural que haja fusão dos conteúdos dançar e ritmo no conteúdo lexical (radical). No Brasil,<br />
ninguém sai para dançar rock, mas para ver o show de rock, “curtir” o ritmo. Desse modo, não<br />
v<strong>em</strong>os fusão dos conteúdos dança + ritmo (rock). Não ocorre ‘*roquear’ <strong>em</strong> português; pelo<br />
mesmo motivo, não há mescla dos conteúdos dança + ritmo (música clássica). Caso haja, nos<br />
Estados Unidos ou Inglaterra, algum ritmo musical que leve as pessoas a sair para dançar,<br />
haverá, provavelmente, para esse tipo musical, fusão dos conteúdos dança e ritmo.<br />
É possível medir a relevância de conteúdos gramaticais com relação a conteúdos<br />
lexicais. Bybee (1985) mostra uma distinção feita por Sapir (1921) entre os conteúdos<br />
relacional e material. O conteúdo material é expresso, geralmente, por palavras ou radicais e<br />
indica ações, objetos, qualidades. Já o conteúdo relacional refere-se a significados mais<br />
gramaticais e se manifesta por afixos ou por mudança no radical. Para entender a fusão <strong>em</strong><br />
categorias flexionais, é fundamental medir a relevância do conteúdo relacional com relação ao<br />
conteúdo material. Para Bybee (1985: 15), “uma categoria é relevante para o verbo, na medida<br />
53
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
<strong>em</strong> que o sentido dessa categoria afeta diretamente o conteúdo lexical do verbo”. A autora<br />
aponta graus de relevância para categorias verbais. Ao estudar uma amostra de 50 línguas,<br />
elaborada por Perkins, a autora chega à seguinte ord<strong>em</strong> decrescente de relevância para<br />
conteúdos gramaticais que mais frequent<strong>em</strong>ente se manifestam por flexão <strong>em</strong> verbos:<br />
(1) valência, voz, aspecto, t<strong>em</strong>po, modo e concordância.<br />
A autora percebe, então, que o aspecto é uma categoria mais relevante para o<br />
significado verbal que a concordância. Enquanto o aspecto se refere diretamente à ação<br />
descrita pelo verbo, a concordância faz referência aos participantes da ação. Segundo a autora,<br />
a maior relevância do aspecto sobre a concordância leva a duas previsões: 1) a ocorrência de<br />
mais expressões lexicais de aspecto que de concordância nas línguas do mundo e 2) a<br />
existência de mais línguas com a categoria flexional aspecto do que com a categoria flexional<br />
concordância. Essa última previsão, segundo a autora, foi confirmada por Greenberg (1963),<br />
que d<strong>em</strong>onstrou o seguinte: quando há flexão de número e pessoa nos verbos, há também<br />
flexão de t<strong>em</strong>po, aspecto ou modo. Essa informação reforça a escala de relevância proposta<br />
por Bybee (1985), visto que aponta ser<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po e modo mais relevantes para o verbo que<br />
concordância. No português, há flexão de número e pessoa, mas, como prevê Greenberg<br />
(1963), ocorre também flexão de modo, t<strong>em</strong>po e aspecto.<br />
Das categorias expressas nos verbos do português, modo, t<strong>em</strong>po, aspecto, número e<br />
pessoa, o aspecto é a categoria mais relevante s<strong>em</strong>anticamente. Em português, há muitos<br />
casos de expressão lexical de aspecto, como prevê o princípio de relevância. Como aponta<br />
Gonçalves (2005), fundamentando-se <strong>em</strong> Travaglia (1981) e Borba (1991), <strong>em</strong> ex<strong>em</strong>plos<br />
como ‘progredir’, ‘desenvolver’, ‘crescer’, há a indicação de aspecto incoativo, já que são<br />
colocados <strong>em</strong> evidência o início e o desenvolvimento do evento, mas não o seu término. Com<br />
relação ao significado aspectual reiteração, que expressa repetição, hábito, v<strong>em</strong>os dados como<br />
‘permanecer’, ‘costumar’, ‘fumar’. Outro significado aspectual apontado por Gonçalves<br />
(2005) é o de pontualidade, com o qual se coloca <strong>em</strong> evidência o término de um processo.<br />
Verifica-se tal significado <strong>em</strong> ‘cair’, ‘falecer’, ‘acabar’. Todos esses dados mostram como é<br />
comum a existência de expressão lexical de aspecto <strong>em</strong> português, já que inúmeros radicais<br />
expressam noções aspectuais.<br />
3.2) A fusão de categorias gramaticais<br />
Fundamentando-se <strong>em</strong> Bybee (1985), Gonçalves (2005, p. 143) explicita o seguinte<br />
com relação à fusão:<br />
Por fusão, dev<strong>em</strong>os entender (1) o uso de raízes supletivas, (2) os casos <strong>em</strong><br />
que o radical incorpora noções gramaticais ou, ainda, (3) a escolha do<br />
alomorfe flexional por classes morfológicas. No primeiro caso, formas<br />
inteiramente dess<strong>em</strong>elhantes pod<strong>em</strong> amalgamar dois ou mais conteúdos. No<br />
segundo, radicais pod<strong>em</strong> conter informações gramaticais de natureza<br />
variada. No último, afixos flexionais diferentes pod<strong>em</strong> ser selecionados <strong>em</strong><br />
função de paradigmas morfológicos.<br />
54
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Mostra Gonçalves (2005) que a previsão de Bybee (1985) se confirma <strong>em</strong> português:<br />
afixos mais relevantes tend<strong>em</strong> a ocorrer mais próximos do radical e apresentam mais casos de<br />
fusões que afixos que estão mais longe do radical na expressão de superfície. Assim, com<br />
relação a substantivos, d<strong>em</strong>onstra que há muitos casos de fusão de gênero. Em formas como<br />
‘cadela’, ‘mulher’, ‘nora’ ‘égua’, há fusão no radical dos conteúdos lexicais com o de fêmea;<br />
por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> ‘égua’, fund<strong>em</strong>-se os conteúdos cavalo + fêmea. Já a categoria número<br />
plural, expressa por um afixo terminal, ‘-s’, está mais distante da base que a marca de gênero,<br />
a vogal ‘-a’. Dessa forma, é menos relevante e parece não se caracterizar por fusão: “o léxico<br />
contém grande contingente de formas com fusão s<strong>em</strong>ântica para o gênero e parece não<br />
apresentar amálgamas para o número” (Gonçalves, 2005, p. 144-145). Os casos de fusão de<br />
gênero apresentados são do primeiro tipo evidenciado por Bybee (1985), o qual se atualiza<br />
por meio de formas supletivas. Assim, ‘égua’ expressa o animal equino fêmea e t<strong>em</strong> uma<br />
forma totalmente dess<strong>em</strong>elhante do vocábulo ‘cavalo’.<br />
Com relação ao verbo, Gonçalves (2005) também afirma que modo, t<strong>em</strong>po e aspecto<br />
apresentam mais casos de fusão que número e pessoa, o que também confirma a previsão feita<br />
por Bybee (1985). Para ex<strong>em</strong>plificar a fusão <strong>em</strong> verbos, Gonçalves (2005) d<strong>em</strong>onstra,<br />
inicialmente, o segundo tipo de fusão: o radical incorpora noções gramaticais. A seguir, <strong>em</strong><br />
(01), v<strong>em</strong>os a d<strong>em</strong>onstração feita por Gonçalves (2005, p. 145) para o verbo pôr:<br />
(2) /poN/ ponho, põe, ponha, ponhamos<br />
/puN/ punha, púnhamos, punham<br />
/puS/ puséramos, puséss<strong>em</strong>os, pusesse, puser<br />
/poR/ porei, poríamos, por<strong>em</strong>os, poria<br />
Todas as formas acima apontadas expressam o conteúdo lexical pôr, colocar.<br />
Entretanto, <strong>em</strong> cada uma dessas formas, há fusão desse conteúdo lexical (material) com algum<br />
conteúdo gramatical (relacional) do verbo. Assim, <strong>em</strong> ‘/poN/’, há a indicação de t<strong>em</strong>po<br />
presente (os t<strong>em</strong>pos que expressam essa noção são o presente do indicativo, o presente do<br />
subjuntivo e o imperativo). Em ‘/puN/’, existe a indicação do conteúdo pretérito imperfeito<br />
do indicativo; a forma ‘/poR/’ informa futuro. Já a forma ‘/puS/’ aparece nos seguinte t<strong>em</strong>pos:<br />
pretérito imperfeito do subjuntivo, pretérito perfeito do indicativo, futuro do subjuntivo e<br />
pretérito mais-que-perfeito do indicativo. Em nossa pesquisa, comprovamos que há diversos<br />
expedientes de fusão atuando na morfologia verbal do português. Na próxima seção,<br />
mostrar<strong>em</strong>os casos de fusão por ditongação que veiculam o conteúdo de presente.<br />
4) A ditongação no radical e a informação de presente<br />
O interesse de Bybee (1985) é na <strong>análise</strong> de modificações formais (morfofonológicas)<br />
que não são estritamente condicionadas fonologicamente e indicam informações gramaticais.<br />
Segundo a autora, nesses casos, a mudança no radical do verbo é o principal sinal de que uma<br />
categoria flexional com outro expoente dessa categoria. Em nossos estudos, comprovamos<br />
que mesmo as modificações formais na base que têm condicionamento fonológico pod<strong>em</strong><br />
veicular conteúdos gramaticais. A ditongação, por ex<strong>em</strong>plo, é condicionada fonologicamente,<br />
55
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
já que ocorre <strong>em</strong> contexto de sílaba tônica. Entretanto, veicula conteúdo gramatical, como o<br />
conteúdo de presente, conforme se verifica abaixo.<br />
4.1) Ditongação no radical: informação de presente<br />
Uma estratégia formal que indica presente no português é a ditongação no radical do<br />
verbo. Na 1ª conjugação, por ex<strong>em</strong>plo, verbos terminados <strong>em</strong> ‘-ear’ sofr<strong>em</strong> ditongação por<br />
epêntese de s<strong>em</strong>ivogal [j] no presente do indicativo, presente do subjuntivo, imperativo<br />
negativo e P3 e P6 do imperativo afirmativo no contexto de sílaba tônica. Em outras palavras,<br />
a epêntese de [j] ocorre nos t<strong>em</strong>pos que indicam presente 3 . Desse modo, fica evidente que a<br />
ditongação está a serviço da informação de presente. Alguns ex<strong>em</strong>plos, buscados no Aurélio<br />
Eletrônico, são os seguintes:<br />
(3) alardear, altear, alhear, aperrear, altear, assenhorear, balancear, bambolear, baratear,<br />
barbear, bloquear, bobear, bombardear, bombear, cabecear, cear, cercear, clarear, custear,<br />
delinear, desencadear, despentear, devanear, escanear, estrear, frear, golear, golpear,<br />
homenagear, manusear, mapear, massagear, nocautear, parafrasear, passear, pentear, permear,<br />
presentear, rastrear, rechear, saborear, sapatear, sortear, zonear.<br />
Os verbos ‘odiar’ e ‘incendiar’, terminados <strong>em</strong> ‘–iar’, também sofr<strong>em</strong> ditongação por<br />
epêntese de [j], como ‘ode[j]’ e ‘incende[j]’, <strong>em</strong> formas do presente do indicativo, do presente<br />
do subjuntivo e dos imperativos. A título de ex<strong>em</strong>plificação, observa-se a conjugação de<br />
‘presentear’ no presente do indicativo:<br />
(4) Eu presente[j]o<br />
Você presente[j]a ~ Tu presente[j]as ~ Tu presente[j]a<br />
Ele presente[j]a<br />
Nós presenteamos ~ Nós presente[j]amos 4 ~A gente presente[j]a<br />
Vocês presente[j]am<br />
Eles presente[j]am<br />
A epêntese de [j] nos radicais dos verbos terminados <strong>em</strong> ‘-ear’ informa a noção<br />
gramatical presente, como se vê nos dados <strong>em</strong> (3):<br />
3<br />
Assim como o presente do indicativo e o presente do subjuntivo, o imperativo também indica presente (Rocha<br />
Lima, 1975).<br />
4<br />
Apesar de essa forma estar <strong>em</strong> desacordo com a norma padrão, ela é muito realizada pelos falantes. Segundo a<br />
norma padrão, a ditongação ocorre formalmente nas formas rizotônicas do presente do indicativo. Todavia, o<br />
falante realiza esse processo morfológico com frequência <strong>em</strong> P4 na sílaba pretônica: ‘presente[j]‘amos’;<br />
‘estre[j]‘amos’; ‘ ce[j]‘amos’ indicando, dessa forma, a noção presente. Isso indica que a motivação s<strong>em</strong>ântica<br />
de indicar o t<strong>em</strong>po presente sobrepõe-se ao condicionamento fonológico.<br />
56
(5)<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
alarde[j] cerce[j] mape[j]<br />
alte[j] clare[j] massage[j]<br />
aperre[j] custe[j] nocaute[j]<br />
assenhore[j] deline[j] parafrase[j]<br />
balance[j] desencade[j] passe[j]<br />
bambole[j] despente[j] pente[j]<br />
barate[j] devane[j] perme[j]<br />
barbe[j] escane[j] presente[j]<br />
bloque[j] estre[j] rastre[j]<br />
bobe[j] fre[j] reche[j]<br />
bombarde[j] gole[j] sabore[j]<br />
bombe[j] golpe[j] sapate[j]<br />
cabece[j] homenage[j] sorte[j]<br />
ce[j] manuse[j] zone[j]<br />
Verificamos, então, que radicais com epêntese de [j] expressam t<strong>em</strong>po presente. Como<br />
esse fenômeno é regular e indica uma informação gramatical, o falante, às vezes, realiza-o<br />
mesmo quando seu uso está <strong>em</strong> desacordo com a norma padrão. Desse modo, é comum<br />
realizar ditongação por epêntese de [j] nas formas verbais terminadas <strong>em</strong> ‘–iar’. Esse uso é<br />
atestado por Reis (1982, p. 63): “Pessoas incultas [sic] tend<strong>em</strong> a confundir estes verbos com<br />
os terminados <strong>em</strong> ear, e diz<strong>em</strong>: copeio, vareia, apreceio, etc. Esta pronúncia incorreta chega,<br />
<strong>em</strong> alguns lugares, a contaminar [sic] a própria linguag<strong>em</strong> de algumas pessoas cultas”.<br />
A necessidade de Reis de citar essa epêntese <strong>em</strong> um Breviário de Conjugação Verbal<br />
deve-se à produtividade e à regularidade de sua ocorrência. Defend<strong>em</strong>os a hipótese de que<br />
esse processo é produtivo por estar a serviço de uma informação gramatical: a indicação de<br />
presente. Há uma série de verbos, terminados <strong>em</strong> ‘–iar’, nos quais o falante realiza a<br />
ditongação por epêntese de [j]. Quando realiza esse processo, está indicando o t<strong>em</strong>po presente<br />
através de uma marca formal: a mudança no radical do verbo (fusão), como se verifica<br />
abaixo:<br />
(6)<br />
vare[j]o / vare[j]a contage[j]o / contage[j]a fantase[j]o / fantase[j]a<br />
cope[j]o / cope[j]a desaprece[j]o / desaprece[j]a finace[j]o / finance[j]a<br />
aprece[j]o / aprece[j]a deprece[j]o / deprece[j]a maque[j]o / maque[j]a<br />
abreve[j]o / abreve[j]a diference[j]o / diference[j]a negoce[j]o / negoce[j]a<br />
alume[j]o / alume[j]a distance[j]o / distance[j]a plage[j]o / plage[j]a<br />
57
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
aprope[j]o / aprope[j]a divorce[j]o / divorce[j]a presence[j]o / presence[j]a<br />
benefice[j]o / benefice[j]a esvaze[j]o / esvaze[j]a sace[j]o / sace[j]a<br />
chefe[j]o / chefe[j]a evidence[j]o / evidence[j]a silence[j]o / silence[j]a<br />
O falante, ao realizar ‘vare[j]o’, contage[j]a’, ‘plage[i]a’, ‘chefe[j]a’, ‘distance[j]a’,<br />
está informando a noção de presente através de manifestação formal no radical do verbo; a<br />
indicação de t<strong>em</strong>po presente, nesses dados, não é feita por um zero morfológico. A<br />
ditongação, como um expediente morfológico que expressa o t<strong>em</strong>po presente, reforça a<br />
hipótese de Bybee (1985) de que alterações formais têm, geralmente, contraparte s<strong>em</strong>ântica.<br />
Evidenciamos que essa contraparte s<strong>em</strong>ântica se dá mesmo nos casos <strong>em</strong> que há<br />
condicionamento fonológico, e, além disso, é uma estratégia produtiva: o falante, <strong>em</strong> algumas<br />
variedades, realiza a ditongação mesmo <strong>em</strong> desacordo com a norma padrão, informando,<br />
assim, o conteúdo de presente.<br />
Em verbos como ‘caber’, ‘saber’, ‘querer’ (de 2ª conjugação), também ocorre<br />
ditongação por epêntese de [j] para informar presente: ‘ca[j]b-’ ocorre <strong>em</strong> P1 do presente do<br />
indicativo, no presente do subjuntivo, no imperativo negativo e <strong>em</strong> P3 e P6 do imperativo<br />
afirmativo; já ‘sa[j]b-’ e ‘que[j]r-’ ocorr<strong>em</strong> nas mesmas formas com exceção da P1 do<br />
presente do indicativo. Pod<strong>em</strong>os afirmar que ‘que[j]r-’, ‘sa[j]b-’ e ‘ca[j]b-’ informam presente<br />
através de fusão por ditongação. Na 3ª conjugação, o verbo ‘parir’ é um ex<strong>em</strong>plo <strong>em</strong> que o<br />
radical ‘pa[j]r-’ atualiza a noção de presente.A ditongação, nesses casos, t<strong>em</strong> uma motivação<br />
formal, só acontecendo na P1 do presente do indicativo e nas formas dela originadas: no<br />
presente do subjuntivo, na P3 e na P6 do imperativo afirmativo e no imperativo negativo.<br />
Essas coincidências formais não são fortuitas. As s<strong>em</strong>elhanças formais que ocorr<strong>em</strong> têm uma<br />
contraparte s<strong>em</strong>ântica: estão a serviço da informação de presente.<br />
5) Considerações finais<br />
D<strong>em</strong>onstramos, com o artigo, que a informação gramatical de t<strong>em</strong>po presente possui<br />
manifestação formal <strong>em</strong> português. O expediente para a informação de presente não é por<br />
meio de concatenação de afixos, mas através da modificação no radical do verbo. Em nossa<br />
pesquisa, verificamos que há alguns expedientes formais que veiculam a noção de presente:<br />
alternância vocálica 5 (abertura de vogal média: ‘p[ǫ]go’, de ‘pegar’, ‘j[Ǥ]go’, de ‘jogar’,<br />
‘est[Ǥ]ro’, de ‘estourar’, ‘p[Ǥ]so’, de ‘pousar’, ‘int[ǫ]ro’, de ‘inteirar’ ‘end[Ǥ]ido’, de<br />
‘endoidar’); mudança na consoante final do radical (‘per[k]o’, de ‘perder’, ‘ou[s]o’, de<br />
‘ouvir’) e ditongação (qu[ej]ra, de ‘querer’, balanc[ej]a, de ‘balancear’). Neste artigo,<br />
explicitamos casos de fusão de da indicação de t<strong>em</strong>po presente por ditongação, comprovando<br />
que essa estratégia de fusão, além de sist<strong>em</strong>ática, é produtiva.<br />
Com base <strong>em</strong> Bybee (1985) e Gonçalves (2005), d<strong>em</strong>onstramos como é possível dar<br />
conta do polo s<strong>em</strong>ântico do processo morfológico não-linear: fusão, aqui entendida como<br />
consequência de um alto grau de relevância s<strong>em</strong>ântica – conteúdos como t<strong>em</strong>po e númeropessoa<br />
se fund<strong>em</strong> no radical por ser<strong>em</strong> relevantes para o significado do verbo. Objetivamos,<br />
5 Vivas (2010) d<strong>em</strong>onstra a regularidade e sist<strong>em</strong>aticidade da fusão por alternância vocálica no português,<br />
explicitando casos de informação de t<strong>em</strong>po e de número-pessoa.<br />
58
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
com a nossa pesquisa, evidenciar que a morfologia cria padrões de fusão através da fonologia:<br />
ditongação; esses padrões formais manifestam conteúdos s<strong>em</strong>ânticos: conteúdo de presente, o<br />
que reforça o pressuposto de que morfologia e fonologia não são estanques, podendo ser<br />
descritas a partir de um continuum (Bybee, 1985).<br />
Referências<br />
AZUAGA, L. Morfologia. In: FARIA, I. H.; PEDRO, E. R.; DUARTE, I.; GOUVEIA, C. A. M.<br />
Introdução à linguística geral e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1996.<br />
BORBA, S. C. O aspecto <strong>em</strong> português. São Paulo: Editora Contexto, 1991.<br />
BYBEE, J. L. Morphology: a study of the relation between meaning and form. Amsterdam;<br />
Philadelphia: John Publishing Company, 1985, v. 9, p. 1-98.<br />
CABRAL, L. S. Introdução à linguística. 5. ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1982.<br />
CÂMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.<br />
CARONE, F. de B. Morfossintaxe. 8. ed. São Paulo: Editora Ática, 1999.<br />
FREITAS, H. R. de. Princípios de morfologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Presença, 1991.<br />
GONÇALVES, C. A. V. Flexão e derivação <strong>em</strong> português. Rio de Janeiro: Faculdade de<br />
<strong>Letras</strong>/UFRJ, 2005.<br />
GONÇALVES, C. A. ; ALMEIDA, M. L. L. de. Das relações entre forma e conteúdo nas estruturas<br />
morfológicas do português . In: ______;______. Revista de Estudos Linguísticos e Literários<br />
Diadorim. Rio de Janeiro, UFRJ, 2008, v. 4, p. 27-55.<br />
GREENBERG, J. Some universals of grammar with particular reference to the order of meaningful<br />
el<strong>em</strong>ents. In: GREENBERG, J. Universals of language. Cambridge, MA: MIT Press, 1963.<br />
HENRIQUES, C. C. Morfologia. 2. ed. Rio de Janeiro, Campus, 2007.<br />
KEHDI, V. Morf<strong>em</strong>as do português. São Paulo, Editora Ática, 1990.<br />
KOCH, I. G. V. ; SOUZA E SILVA, M. C. P. de. Linguística aplicada ao português: morfologia. 5.<br />
ed. São Paulo: Cortez, 1989.<br />
LAROCA, M. de N. C. Manual de morfologia do português. Campinas: Pontes; Juiz de Fora: UFJF,<br />
1994.<br />
LOPES, C. A. G. Lições de morfologia de língua portuguesa. Jacobina: Tipô-Carimbos, 2003.<br />
MIRA MATEUS; M. H.; BRITO, A. M; DUARTE, I. et al. Gramática da língua portuguesa.<br />
Coimbra: Almedina, 1983.<br />
59
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
MONTEIRO, J. L. Morfologia portuguesa. 3. ed. São Paulo: Pontes, 1991.<br />
PETTER, M. M. T. Morfologia. In: FIORIN, José Luiz. Introdução à linguística II: princípios de<br />
<strong>análise</strong>. São Paulo: Contexto, 2003.<br />
REIS, O. Breviário de conjugação verbal. 41. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982.<br />
RIO-TORTO, G. M. Morfologia derivacional: <strong>teoria</strong> e aplicação ao português. Porto: Porto, 1998.<br />
ROCHA LIMA, L. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975.<br />
ROCHA, L. C. de A. Estruturas morfológicas do português. 2. ed. São Paulo: Martins fontes, 2008.<br />
SANDALO, M. F. S. Morfologia. In: MUSSALIN, F.; BENTES, A.C. Introdução à linguística:<br />
domínios e fronteiras. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.<br />
SANDMANN, A. J. Morfologia geral. São Paulo: Contexto, 1991.<br />
SAPIR, E. Language. New York: Harcourt, Brace and World, 1921.<br />
TRAVAGLIA, L. C. O aspecto verbal no português. Uberlândia: Universidade Federal de<br />
Uberlândia, 1981.<br />
VILLALVA, A. Estrutura morfológica básica. In: MIRA MATEUS, M. H; BRITO, A. M; DUARTE,<br />
I. et al. Gramática da língua portuguesa. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003.<br />
VIVAS, V. de M. Relendo as categorias verbais. Trabalho apresentado no XIII Congresso Nacional de<br />
Linguística e Filologia, 2009, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos... Disponível <strong>em</strong>:<<br />
http://www.filologia.org.br/xiiicnlf/XIII_CNLF_04/tomo_3/relendo_as_categorias_verbais_VITOR.p<br />
df >. Acesso <strong>em</strong>: 09 jun. 2011.<br />
VIVAS, V. de M. A alternância vocálica no português: regularidade e sist<strong>em</strong>atização. Cadernos do<br />
NEMP, vol. 1, n. 1, p.33-44, 2010.<br />
VIVAS, V. de M. Novos enfoques sobre a flexão verbal <strong>em</strong> português: abordag<strong>em</strong> formal e<br />
s<strong>em</strong>ântica do mecanismo fusão. Dissertação (Mestrado <strong>em</strong> Língua Portuguesa) – Programa de <strong>Pós</strong>-<br />
Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong> Vernáculas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.<br />
ZANNOTO, N. Estrutura mórfica da língua portuguesa. 5. ed. Caxias do sul: Lucerna, Educs,<br />
2006.<br />
60
Uma abordag<strong>em</strong> morfoss<strong>em</strong>ântica das formações TELE-X<br />
no português brasileiro<br />
Rosângela Gomes Ferreira (UFRJ) 1<br />
RESUMO: O presente trabalho visa desenvolver um estudo lexical acerca das formas “tele-X” <strong>em</strong> português do<br />
Brasil, como, por ex<strong>em</strong>plo, telegrama, televisão, tele-mensag<strong>em</strong>. Para tanto, iniciamos nossa pesquisa<br />
apresentando nossas observações primeiras acerca de “tele-”. A seguir, resenhamos as propostas encontradas que<br />
envolv<strong>em</strong> a descrição e o funcionamento da lexia ora <strong>em</strong> voga (Rocha Lima, 2007; Bechara, 2004; Cunha &<br />
Cintra, 2001; Azeredo, 2008). Intencionamos comprovar que esse el<strong>em</strong>ento passa de radical a prefixo e, a partir<br />
dessa mudança, ratificar a produtividade/criatividade lexical que envolve o neo-prefixo "tele-". A mudança do<br />
status morfológico de “tele-”, que supostamente, hoje, atua como um formativo recorrente no processo de<br />
recomposição, apoiar-se-á nos estudos de Gonçalves (2005; 2006) e Bybee (1985), objetivando investigar os<br />
mecanismos derivacionais e composicionais que atuam nessas formações, na tentativa de comprovar que não há<br />
um limite pré-estabelecido entre os dois processos <strong>em</strong> questão. A fim de coletar dados que sustent<strong>em</strong> a <strong>análise</strong><br />
aqui proposta, fiz<strong>em</strong>os buscas no dicionário eletrônico Houaiss e também <strong>em</strong> sites da internet, como<br />
Wikcionário e Google. Distribuímos as formações levantadas <strong>em</strong> grupos de afinidade morfológica, sintática e<br />
s<strong>em</strong>ântica, e, com o objetivo de identificar as motivações cognitivas que subjaz<strong>em</strong> a essas formações,<br />
utilizar<strong>em</strong>os, para a <strong>análise</strong>, o aporte teórico da Linguística Cognitiva (Langacker, 1987 e Fillmore, 1982), mais<br />
especificamente nas noções de categorização, prototipia, poliss<strong>em</strong>ia e ajuste focal. Até o momento da pesquisa,<br />
verificamos que tele é aplicado <strong>em</strong> larga escala <strong>em</strong> formações recentes e faz referência a duas acepções básicas:<br />
“televisão” (telenovela, teleator, telecurso) e “telefone” (tele-gás, tele-van, teleoperador).<br />
1) Palavras iniciais<br />
Analisamos, neste trabalho, as construções morfológicas formadas com o el<strong>em</strong>ento<br />
tele-. Tal el<strong>em</strong>ento é oriundo do advérbio grego têle, que significa 'longe, ao longe, de longe'.<br />
Trata-se, portanto, de um radical que funcionava como forma livre <strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong>, e que<br />
contribuía para a formação de el<strong>em</strong>entos compostos – formação decorrente da junção de dois<br />
ou mais radicais que já funcionaram <strong>em</strong> algum momento como formações independentes com<br />
significação própria, e, ao se adjungir<strong>em</strong>, passam a formar outra palavra com significado<br />
específico e recorrente na língua.<br />
Objetivamos, neste trabalho, apresentar uma proposta inicial de descrição formal para<br />
as construções <strong>em</strong> “tele-”, verificando quais as bases que se encontram ligadas a esse<br />
el<strong>em</strong>ento – se presas ou livres - e também a que classes gramaticais pertenc<strong>em</strong> esses<br />
el<strong>em</strong>entos. No mais, distribuir<strong>em</strong>os os dados <strong>em</strong> grupos de acepções, a fim de que tais<br />
acepções dê<strong>em</strong> conta das especializações formais dessas construções e ainda das extensões de<br />
sentido que propici<strong>em</strong> tais especializações. Para tanto, lançamos mão do arcabouço teórico da<br />
Linguística Cognitiva (doravante LC) – mais especificamente das noções de frame (Fillmore,<br />
1982) ou domínio (Langacker, 1987) e esqu<strong>em</strong>a imagético.<br />
Este artigo se estrutura da seguinte maneira: na próxima seção, apresentar<strong>em</strong>os uma<br />
<strong>análise</strong> prévia a respeito de tele- e os questionamentos que nos levaram a essa pesquisa. A<br />
seguir, far<strong>em</strong>os uma revisão da literatura acerca do fenômeno. Não foi encontrado (através de<br />
busca eletrônica) nenhum trabalho que tratasse desse el<strong>em</strong>ento lexical. Então, a revisão será<br />
baseada apenas no que as gramáticas apresentam sobre o assunto. Na seção seguinte, far<strong>em</strong>os<br />
1<br />
Orientadora: Maria Lucia Leitão de Almeida (UFRJ) e Coorientador: Carlos Alexandre Gonçalves (UFRJ).<br />
Professora do curso de <strong>Letras</strong> de Faculdade Souza Marques, M<strong>em</strong>bro do NEMP e aluna de doutorado do<br />
Programa de <strong>Letras</strong> Vernáculas da UFRJ, área de concentração: Língua Portuguesa.<br />
61
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
a distribuição dos dados a partir de características formais, para, depois, traçarmos as<br />
características s<strong>em</strong>ânticas que envolv<strong>em</strong> as palavras encontradas.<br />
O corpus utilizado neste trabalho constitui-se de formações retiradas dos dicionários<br />
eletrônicos Houaiss da Língua Portuguesa (2009) – 110 dados; e Wikcionário eletrônico –<br />
372 dados. Além dessas fontes, foram recolhidas palavras novas através do site de busca<br />
eletrônica Google – 30 dados, a fim de obter formas mais recentes, ainda não-dicionarizadas.<br />
São, ao todo, 465 dados, levando-se <strong>em</strong> conta que 47 deles aparec<strong>em</strong> <strong>em</strong> duas das fontes.<br />
Vale ressaltar que este ensaio constitui um estudo preliminar do assunto, que será<br />
aprofundado <strong>em</strong> trabalhos posteriores.<br />
2) “Tele-”: <strong>análise</strong> preliminar<br />
Em Língua Portuguesa, segundo o dicionário Houaiss (2009), “tele-” ocorre com as<br />
seguintes acepções: 1) 'longe, a distância', como se pode perceber <strong>em</strong> telégrafo, telegrama,<br />
tel<strong>em</strong>etro, telepatia; 2) 'telegráfico (ou radiotelegráfico)', como, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong><br />
telefotografia, tel<strong>em</strong>ecânica; e 3) 'televisão', <strong>em</strong> formações como teledrama, telenovela,<br />
telerreportag<strong>em</strong>, telespectador.<br />
Atualmente, esse el<strong>em</strong>ento é aplicado <strong>em</strong> larga escala para a formação de novas<br />
palavras. Em uma <strong>análise</strong> superficial dos dados, observamos que faz referência a duas<br />
acepções básicas: “televisão” e “telefone”, o que o torna um el<strong>em</strong>ento de significado cada vez<br />
mais especializado.<br />
Denominamos esse processo de recomposição, conforme estudos de Martinet 2 (1967:<br />
135 apud Cunha & Cintra, 2001, p. 114). Porém, já que este ainda não está b<strong>em</strong> definido na<br />
literatura, propomos, aqui, que seja uma formação resultante de dois processos morfológicos:<br />
primeiramente, o falante reduz uma dada forma linguística, que depois passará a funcionar<br />
“representando” a palavra da qual era parte.<br />
Porém, não se trata de um processo de truncamento. Belchor (2009, p. 3) define o<br />
truncamento como<br />
um processo de encurtamento que se estrutura a partir do mapeamento<br />
melódico de uma forma de base, da seguinte maneira: uma sequência da<br />
palavra-matriz é copiada e passa a funcionar como unidade lexical<br />
autônoma – processo que envolve a supressão de segmentos da palavra<br />
matriz, ao contrário do que acontece na prefixação e na sufixação, por<br />
ex<strong>em</strong>plo.<br />
No caso do truncamento, a palavra formada funciona como uma unidade lexical<br />
autônoma, o que não acontece nos casos de recomposição, <strong>em</strong> que as formas reduzidas só<br />
aparec<strong>em</strong> ligadas a outra unidade lexical. Não é possível usarmos livr<strong>em</strong>ente na língua a<br />
forma “tele-” para falar de telefone ou televisão, por ex<strong>em</strong>plo, sendo, portanto, as sentenças<br />
seguintes agramaticais: *Passei meu tele para a Janete me ligar à noite e *Vou assistir uma<br />
tele para me distrair. Já no caso do truncamento, as formas reduzidas “funcionam” livr<strong>em</strong>ente<br />
na língua como palavras autônomas: Nesse calor, um refri geladinho cai muito b<strong>em</strong> (refri =<br />
refrigerante), Vou ao Maraca assistir ao clássico Fla X Flu (Maraca = Maracanã, Fla =<br />
Flamengo e Flu = Fluminense).<br />
2 Él<strong>em</strong>ents de linguistique générale. Paris: Armand Colin, 1967, p. 135.<br />
62
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Além disso, cabe, ainda, destacar que as formas que contribu<strong>em</strong> para o processo de<br />
recomposição são, na verdade, resultado de uma composição desfeita, pois eram radicais que,<br />
integrados a outro radical, formavam uma palavra composta: telefone (tele + fone), televisão<br />
(tele + visão). Tais el<strong>em</strong>entos, ao ser<strong>em</strong> separados, passam a equivaler s<strong>em</strong>anticamente ao<br />
significado do todo composto.<br />
Vejamos, agora, o que diz<strong>em</strong> acerca desse morf<strong>em</strong>a.<br />
3) Acerca do “tele-”<br />
Apresentar<strong>em</strong>os, nesta seção, uma resenha das propostas encontradas que envolv<strong>em</strong> a<br />
descrição desse el<strong>em</strong>ento morfológico. Conforme exposto anteriormente, nos val<strong>em</strong>os de<br />
gramáticas consagradas e manuais de morfologia para discutir o assunto.<br />
Rocha Lima (2006, p. 215), no capítulo de “Formação de Palavras”, apresenta o “tele-<br />
” na seção “Famílias de Palavras”, e o define como co-radical. “Pertenc<strong>em</strong> à mesma família as<br />
palavras que possu<strong>em</strong> o mesmo radical, que, às vezes, coincide com a raiz. A eles também se<br />
dá o nome de co-radicais”. Esse el<strong>em</strong>ento seria, segundo o autor, oriundo de têle, teria o<br />
significado de “longe”, e estaria presente <strong>em</strong> formações como telefone, telégrafo e telescópio.<br />
A Moderna Gramática Portuguesa, de Bechara (2004), apresenta, no capítulo<br />
intitulado “Formação de Palavras do Ponto de Vista Construcional”, menção ao “tele-” como<br />
um prefixo ou el<strong>em</strong>ento grego, cujo significado é “distância, afastamento, controle feito à<br />
distância”, ex<strong>em</strong>plificando com telégrafo, telepatia, teleguiado.<br />
Aqui, cabe uma crítica no que tange à definição deste el<strong>em</strong>ento. “Tele-” não é um<br />
el<strong>em</strong>ento que possa fazer referência a “controle”. Tal acepção seria decorrente das bases a que<br />
esse el<strong>em</strong>ento se adjunge. O ex<strong>em</strong>plo dado pelo autor aponta para isso: “teleguiado” indica<br />
“controle feito à distância”, pois tele indica “distância” e “guiado”, “controle”. Esse<br />
significado é global, decorrente do todo da formação, ou seja, do produto e não do prefixo.<br />
Ao tratar dos “Radicais gregos mais usados <strong>em</strong> português”, na seção de<br />
“Hibridismos”, Bechara (2004, p. 372-380), apresenta novamente “tele-”, cujo significado,<br />
dessa vez, é descrito como “longe” e os ex<strong>em</strong>plos dados são telégrafo, telefone, telescópio.<br />
Nessa seção, Bechara (op. cit.) define hibridismo como “formação de palavras com<br />
el<strong>em</strong>entos de idiomas diferentes”, defendendo que os casos mais comuns envolv<strong>em</strong> a<br />
combinação de el<strong>em</strong>entos gregos com outro latino ou românico, citando, por ex<strong>em</strong>plo,<br />
televisão (grego e português). E ainda afirma que esses el<strong>em</strong>entos “se acham perfeitamente<br />
assimilados ao idioma, que passam como el<strong>em</strong>entos nativos” e “se juntam a el<strong>em</strong>entos de<br />
qualquer procedência”, como teleguiado. 3<br />
Já <strong>em</strong> Cunha & Cintra (2001, p. 113-114), esse el<strong>em</strong>ento é apresentado como um<br />
“Pseudoprefixo”, na seção de “Recomposição” do capítulo de “Derivação e Composição”. Os<br />
autores defin<strong>em</strong> os “prefixóides” ou “pseudoprefixos” como “radicais que assum<strong>em</strong> o sentido<br />
3<br />
Destacamos que televisão, dada por Bechara como um hibridismo - pois resulta da junção de um radical grego<br />
a um português - é uma formação bastante recorrente nas línguas modernas, como Francês (television) e Inglês<br />
(television), o que, talvez, faz com que não fosse um bom ex<strong>em</strong>plo para mostrar que as formações híbridas “se<br />
acham perfeitamente assimilados ao idioma”. Provavelmente, essa formação, assim como o referente que ela<br />
nomeia, veio importada da cultura <strong>em</strong> que foi criado para as d<strong>em</strong>ais culturas. A motivação para a formação <strong>em</strong><br />
português não parece ser interna.<br />
63
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
global dos vocábulos de que antes eram el<strong>em</strong>entos componentes” e apresentam as seguintes<br />
características:<br />
apresentam um acentuado grau de independência;<br />
possu<strong>em</strong> uma significação mais ou menos delimitada e presente à<br />
consciência dos falantes, de tal modo que o significado do todo a que<br />
pertenc<strong>em</strong> se aproxima de um conceito complexo, e portanto de um<br />
sintagma;<br />
têm, de um modo geral, menor rendimento que os prefixos propriamente<br />
ditos.<br />
Os autores consideram que nesse grupo se inclu<strong>em</strong> alguns radicais gregos que<br />
adquir<strong>em</strong> sentido especial nas línguas modernas, mas que ainda se <strong>em</strong>pregam com o valor<br />
originário <strong>em</strong> numerosos compostos. Assim, teríamos um radical que possui mais de um<br />
significado na língua: um erudito e o outro moderno. Para ex<strong>em</strong>plificar sua proposta, usou-se<br />
o el<strong>em</strong>ento “auto-”, oriundo do grego autós, significando “próprio, de si mesmo”, como <strong>em</strong><br />
autodidata (que estudou por si mesmo) e autógrafo (escrito do próprio autor), mas que<br />
passou, “com a vulgarização de auto, forma abreviada de automóvel” (veículo movido por si<br />
mesmo), a ter essa acepção, como se percebe <strong>em</strong> auto-estrada e autódromo (Cunha & Cintra,<br />
2001, p. 113).<br />
Os autores ainda se preocupam <strong>em</strong> distinguir os “pseudoprefixos” dos radicais<br />
eruditos, já que estes não ganham sentido especializado <strong>em</strong> relação ao etimológico ao<br />
ingressar<strong>em</strong> <strong>em</strong> outras formações. Sendo assim, o que difere os radicais eruditos dos<br />
prefixóides é o fator s<strong>em</strong>ântico. A esse fenômeno, dá-se o nome de recomposição.<br />
A deriva s<strong>em</strong>ântica desses el<strong>em</strong>entos decorre, portanto, de um procedimento especial,<br />
denominado RECOMPOSIÇÃO (grifo do autor) por André Martinet, termo que lhe pareceu<br />
necessário para batizar “uma situação linguística particular que não se identifica n<strong>em</strong> com a<br />
composição propriamente dita, n<strong>em</strong> tampouco, de um modo geral, com a derivação, que<br />
supõe a combinação de el<strong>em</strong>entos de estatuto diferente (Cunha & Cintra, 2001, p. 114).<br />
Nesse grupo encontra-se o “tele-”, <strong>em</strong> formações como teleguiado e televisão.<br />
Não há, nesse caso, descrição a respeito das acepções desse termo.<br />
Em relação à <strong>análise</strong> descrita por Bechara (2004), acreditamos que haja um avanço na<br />
proposta descrita acima. Contudo, discordamos de que os radicais que contribu<strong>em</strong> para a<br />
recomposição apresent<strong>em</strong> acentuado grau de independência, pois, conforme apresentamos na<br />
seção anterior, esses “radicais” não funcionam independent<strong>em</strong>ente na língua. Ainda<br />
discordamos de que se diferenci<strong>em</strong> dos radicais eruditos apenas pela especialização<br />
s<strong>em</strong>ântica. Se levarmos <strong>em</strong> conta a produtividade das formações recompostas, ver<strong>em</strong>os que<br />
“tele-”, assim como outros “pseudoprefixos”, são bastante recorrentes, vide as diversas<br />
formações novas que encontramos, tais como: tele-<strong>em</strong>prego e tele-trabalho (trabalho e<br />
<strong>em</strong>prego à distância, afastados do cotidiano corporativo), tele-cerveja (serviço de encomenda<br />
de cerveja por telefone), telepizza (serviço de encomenda de pizza por telefone).<br />
Esta <strong>análise</strong> questiona também o status de “tele-” como um “prefixóide” ou<br />
“pseudoprefixo”, já que essa classificação se deve ao fato de ter<strong>em</strong> “menor rendimento do que<br />
os prefixos propriamente ditos”. Como observar<strong>em</strong>os, esse el<strong>em</strong>ento t<strong>em</strong> sido aplicado <strong>em</strong><br />
larga escala na formação de novos itens lexicais.<br />
64
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Por fim, consideramos a referência “um conceito complexo” muito vaga, pois não é<br />
possível entender se os autores falam de um referente ou mais de um.<br />
Uma terceira gramática analisada foi a Gramática Houaiss, de José Carlos Azeredo.<br />
Não foi encontrada nenhuma referência a esse el<strong>em</strong>ento ao longo da gramática, <strong>em</strong>bora, a<br />
nosso ver, seria possível encontrá-la na seção de “Produtividade e Criatividade Lexical”, onde<br />
o autor, ao falar da mudança que a língua sofre no seu uso através do t<strong>em</strong>po, apresenta a<br />
proposta de que a criatividade lexical do falante é o que determina a ampliação e a restrição<br />
s<strong>em</strong>ântica tão comuns numa língua, sendo “impossível prever qual palavra terá seu<br />
significado ampliado ou <strong>em</strong> que direção o significado de uma palavra será reorientado”<br />
(Azeredo, 2008, p. 398).<br />
Azeredo (2008, p. 399) ainda afirma que um ato de criatividade pode gerar um modelo<br />
produtivo e observa que isso é o que ocorreu com a palavra sambódromo, “criativamente<br />
formada com a terminação –(ó)dromo (=corrida), que figura <strong>em</strong> hipódromo, autódromo,<br />
cartódromo, formas que designam itens culturais da alta burguesia. Não d<strong>em</strong>oraram a<br />
circular, então, formas populares, então, como rangódromo, beijódromo, camelódromo etc”.<br />
Concordamos com o autor que essa mudança se deve à criatividade do falante e que,<br />
ao propor um novo sentido a uma dada lexia, esse sentido pode se estabilizar na língua e,<br />
posteriormente, tornar-se produtivo, sendo aplicado <strong>em</strong> larga escala pelos falantes na<br />
formação de novos itens lexicais. Acreditamos que esse é o caso do “tele-”. Porém, é<br />
importante destacar que tal criatividade está associada à necessidade que o falante t<strong>em</strong> de<br />
nomear um novo referente - oriundo das ações da vida moderna - e às suas capacidades<br />
cognitivas de identificar, imaginar e integrar. No mundo moderno, as coisas cada vez mais se<br />
viabilizam à distância (globalização, internet, mundo digital...). Sendo assim, “tele-”, que<br />
indica “longe”, ganha uma nova importância para formações novas na língua, tendo <strong>em</strong> vista<br />
as novas invenções humanas.<br />
Porém, não concordamos que seja impossível prever a direção para a qual o sentido de<br />
uma palavra irá, pois, com base nos pressupostos da LC, entend<strong>em</strong>os que praticamente todos<br />
os itens lexicais são potencialmente polissêmicos, e que os significados são frutos de<br />
processos cognitivos, mantendo resquícios, mais ou menos abstratos, do significado básico.<br />
Portanto, “as palavras não carregam significados, mas os ativam a partir de um frame 4<br />
decorrente das diferentes experiências” (Ferreira, 2010, p. 33).<br />
Suas extensões de sentidos são decorrentes da ótica da categorização com base <strong>em</strong><br />
protótipos. Nesse tipo de categorização, são identificadas as propriedades de uma determinada<br />
categoria - entendida aqui como um conceito - e “é estabelecida uma escala entre as mais e as<br />
menos representativas, possibilitando a descrição das propriedades que envolv<strong>em</strong> a categoria,<br />
dos el<strong>em</strong>entos que se enquadram na categoria, uma vez que entend<strong>em</strong>os uma determinada<br />
palavra como polissêmica” (Ferreira, 2010). Essas propriedades dev<strong>em</strong> ser descritas com base<br />
no domínio-matriz 5 (Langacker, 1987) e todas elas poderão tornar-se uma acepção do<br />
conceito <strong>em</strong> questão.<br />
4<br />
Frame é uma esqu<strong>em</strong>atização da experiência (um conhecimento estruturado), representado num nível<br />
conceitual e sustentado por m<strong>em</strong>ória de longo prazo, que relaciona el<strong>em</strong>entos e entidades associados com uma<br />
cena estabelecida culturalmente particular - situação ou evento da experiência humana. (Ferreira, 2010, p. 33).<br />
5<br />
Em LC, entende-se que as palavras estão sob efeito de escopo e, esse escopo é, na verdade, o frame (Fillmore,<br />
1982) ou domínio (Langacker, 1987) a que essa palavra se refere. Um conceito pode pressupor muitos domínios<br />
65
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Quanto aos manuais de Morfologia, foram analisados Henriques (2007), L<strong>em</strong>os<br />
Monteiro (2002), Rocha (2008) e Sandmann (1992).<br />
Nos dois primeiros, não foram encontradas nenhuma referência ao el<strong>em</strong>ento “tele-”.<br />
Já <strong>em</strong> Sandmann (1992, p.79), encontramos a seguinte descrição acerca deste<br />
fenômeno:<br />
Considerando a passag<strong>em</strong> de um modelo menos produtivo a mais produtivo<br />
como de certa forma uma inovação, inclui-se aqui o uso frequente de mega-<br />
como prefixo – observa-se que o Formulário Ortográfico e o Aurélio não<br />
dão a mega- tratamento de prefixo, mas aqui o consideramos como tal,<br />
apenas não ortograficamente, por expressar uma ideia geral:<br />
megainvestigador, megacampanha, megaexposição, megarecessão. Tele-<br />
é outro el<strong>em</strong>ento que, como abreviação de telefone, televisão ou<br />
simplesmente com seu significado tradicional de “longe, distante”, entra <strong>em</strong><br />
muitas formações, s<strong>em</strong> dúvida um test<strong>em</strong>unho da cultura da época: telejogo,<br />
telefilme, teleprocessamento, telecompra, teletintas, telepizza, etc., esses<br />
dois últimos, como muitas outras palavras com tele-, designativos de<br />
serviços de entrega, atendimento, etc.<br />
Com relação a essa <strong>análise</strong>, consideramos coerente que “tele-” seja descrito como um<br />
el<strong>em</strong>ento produtivo e que este se ass<strong>em</strong>elhe a um prefixo, visto que expressa uma ideia<br />
específica e recorrente. Porém, não concordamos com a proposta de que “tele-” seja uma<br />
abreviação, tendo <strong>em</strong> vista o processo de formação do qual “tele-” faz parte, conforme<br />
exposto na seção 1, e porque entend<strong>em</strong>os abreviação como outro processo de formação de<br />
palavras. Também não concordamos exatamente com a ideia de que, <strong>em</strong> formações como<br />
telepizza e teletintas, “tele-” designe “serviços de entrega ou atendimento”.<br />
Em Rocha (2008, p. 149-51), ao falar do “processo de formação de palavras: a<br />
derivação prefixal”, o autor discorre sobre a possibilidade de se entender a prefixação tanto<br />
como um processo derivacional como composicional. Um dos fatores que complicam tal<br />
classificação envolve a dificuldade que se t<strong>em</strong> de estabelecer distinção entre base presa e<br />
prefixo, e decide por considerar o el<strong>em</strong>ento “tele-” uma base, portanto, el<strong>em</strong>ento que forma<br />
palavras compostas:<br />
telejornal tele – base presa adjetiva (relativo a televisão)<br />
jornal – base livre substantiva<br />
O linguista elucida que as bases presas equival<strong>em</strong>, s<strong>em</strong>anticamente, a substantivos, a<br />
adjetivos ou a verbos, de um modo geral.<br />
diferentes. A combinação de domínios simultaneamente pressupostos por um conceito tal é denominado o<br />
domínio-matriz.<br />
66
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Com base nas <strong>análise</strong>s descritas acima, pud<strong>em</strong>os perceber que não há um consenso<br />
sobre o processo de formação de palavras que envolve o el<strong>em</strong>ento “tele-”, assim como o tipo<br />
de el<strong>em</strong>ento morfológico que esse termo é.<br />
Para tentarmos resolver a questão, seguir<strong>em</strong>os com a proposta de <strong>análise</strong><br />
morfossintática desse el<strong>em</strong>ento.<br />
4) Características formais do el<strong>em</strong>ento “tele-”<br />
Como já vimos, originalmente “tele-” era um radical grego, que contribuía para a<br />
formação de palavras compostas, designando “longe, distância” ou significados afins. Quanto<br />
à classe gramatical, tratava-se de um advérbio.<br />
Nada foi encontrado a respeito das bases a que esse termo se adjunge, ou seja, se eram<br />
livres ou presas, e quais as suas classes gramaticais, b<strong>em</strong> como as dos produtos resultantes de<br />
tais formações.<br />
Assim, é que pretend<strong>em</strong>os propor um modelo de formação lexical para esse el<strong>em</strong>ento,<br />
entendendo que se trata de um fenômeno de recomposição, tal como apresentam Cunha e<br />
Cintra (2001), por ex<strong>em</strong>plo. A recomposição é definida por Dubois (2006, p. 502) como<br />
restituição de um el<strong>em</strong>ento de uma palavra composta à forma que ele tinha<br />
como palavra simples. Assim, o latim recludere foi refeito no baixo latim<br />
como reclaudere, a partir do modelo da palavra simples claudere; retinere<br />
foi refeito como retenere a partir do modelo de tenere. No português, há<br />
vários ex<strong>em</strong>plos no registro das camadas incultas, <strong>em</strong> relação à variante i-<br />
do prefixo in-. Por ex<strong>em</strong>plo, inresponsável, inritado.<br />
Embora aceit<strong>em</strong>os que seja um fenômeno de recomposição, entend<strong>em</strong>os que os dados<br />
expostos por Dubois (op. cit.), b<strong>em</strong> como a associação desse fenômeno ao registro “inculto”<br />
da língua, não sejam pertinentes.<br />
Para este ensaio, interessam-nos, principalmente, as novas formações <strong>em</strong> língua<br />
portuguesa. Além disso, este trabalho está longe de ser exaustivo. Para muitas palavras<br />
encontradas ainda não foi possível estabelecer significado, o que dificultou tanto a <strong>análise</strong><br />
s<strong>em</strong>ântica quanto a morfossintática.<br />
No que tange às classes envolvidas no processo, verificamos que as palavras que se<br />
adjung<strong>em</strong> a “tele-” pod<strong>em</strong> pertencer tanto à classe dos substantivos, como dos adjetivos e dos<br />
verbos. A classe do produto resultante dessa formação irá coincidir com a classe da palavra da<br />
palavra a que “tele-” está ligado. Ex<strong>em</strong>plos:<br />
Palavra a que<br />
“tele-” se<br />
adjunge<br />
Classe<br />
gramatical<br />
dessa palavra<br />
Produto<br />
Tele Guiar Verbo Teleguiar Verbo<br />
Tele Comandar Verbo Telecomandar Verbo<br />
Tele Conduzir Verbo Teleconduzir Verbo<br />
Classe<br />
gramatical do<br />
produto<br />
67
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Tele Cinético Adjetivo Telecinético Adjetivo<br />
Tele Dinâmico Adjetivo Teledinâmico Adjetivo<br />
Tele Gráfico Adjetivo Telegráfico Adjetivo<br />
Tele Jornal Substantivo Telejornal Substantivo<br />
Tele Espectador Substantivo Telespectador Substantivo<br />
Tele Comunicação Substantivo Telecomunicação Substantivo<br />
Tabela 1.<br />
Isso nos mostra que “tele-” não altera a classe das palavras, o que reforça seu<br />
comportamento como prefixo, pois, <strong>em</strong> língua portuguesa, sabe-se que el<strong>em</strong>entos prefixais<br />
não alteram a classe da palavra a que se ligam.<br />
No que diz respeito, ainda, aos el<strong>em</strong>entos que se un<strong>em</strong> a “tele-”, o que perceb<strong>em</strong>os até<br />
o momento é que são s<strong>em</strong>pre bases, mas não necessariamente livres, como se observa <strong>em</strong><br />
(a)abaixo. Mas, se levarmos <strong>em</strong> conta apenas as formações recentes, não dicionarizadas,<br />
ver<strong>em</strong>os que todos são bases livres, como se vê <strong>em</strong> (b).<br />
tele + cine = telecine<br />
tele + grafo = telégrafo<br />
tele + pata = telepatia<br />
tele + gás = tele-gás<br />
tele + pizza = tele-pizza<br />
tele + cerveja = tele-cerveja<br />
Com esses dados, confirmamos o que encontramos na literatura <strong>em</strong> morfologia, que<br />
afirma que os prefixos não modificam a categoria lexical da forma a que se adjung<strong>em</strong> e não<br />
funcionam como cabeça lexical da formação resultante (Gonçalves, 2005), sendo esse papel<br />
exercido pela base, que se encontra à direita na formação, caracterizando a construção<br />
resultante como DT-DM (determinante – determinado). Além disso, perceb<strong>em</strong>os que “tele-”,<br />
assim como os prefixos de um modo geral, não apresenta função avaliativa, sendo, portanto,<br />
uma formação neutra do ponto de vista expressivo.<br />
5) Características s<strong>em</strong>ânticas do el<strong>em</strong>ento “tele-”<br />
Vimos até agora que o el<strong>em</strong>ento “tele-”, originalmente, indicava “longe” ou<br />
“distância”. Isso se confirma ao analisarmos formações como telecinesia (movimento de<br />
objetos à distância, s<strong>em</strong> intervenção direta ou contato físico de alguém e supostamente devido<br />
a poder paranormal); telecomandar (<strong>em</strong>itir sinais por linha de comunicação para comandar a<br />
distância (aeronave, navio, míssil, mecanismo, etc.); telecomunicação (designação genérica<br />
das comunicações a longa distância que abrange a transmissão, <strong>em</strong>issão ou recepção de sinais,<br />
sons ou mensagens por fio, rádio, eletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo<br />
eletromagnético); teleconferência (conferência na qual mais de dois interlocutores estão <strong>em</strong><br />
lugares diferentes, ligados por telefonia, televisão ou computador); teleférico (que ou o que<br />
68
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
transporta algo a distância, <strong>em</strong> deslocamento aéreo (diz-se de cabo)); telerobô (robô guiado à<br />
distância), entre outras.<br />
Por estar associado à distância, “tele-” acabou por se vincular a formas que estão<br />
relacionadas aos meios de comunicação, <strong>em</strong> decorrência das novas ações do mundo atual,<br />
pois, o frame de distante mudou. Através desses meios de comunicação, mantém-se contato<br />
mesmo estando-se distante. Assim, “tele-” passou a ser usado fazendo referência a esses<br />
meios, especialmente televisão e telefone.<br />
O falante, por sua vez, acabou por reinterpretar esse el<strong>em</strong>ento como parte de televisão<br />
e/ou de telefone, o que não deixa de ser verdade, já que ambas são formações compostas,<br />
formadas por “tele-” + “visão” e “fone”, respectivamente. Pod<strong>em</strong>os afirmar que se trata de<br />
uma metonímia, já que se mantém a relação de parte para representar o todo, pois, o que<br />
ocorre é que o falante retoma, a partir desse encurtamento que faz das palavras televisão e<br />
telefone, todo(s) o(s) conceito(s) que tais itens abarcam, e não apenas o que seria cabível a<br />
“tele-”, sendo, nesse caso, “comunicação à distância”, como nos ex<strong>em</strong>plos 6 abaixo:<br />
Teleducação – processo de ensino por meio de correspondência postal, rádio, televisão,<br />
internet, etc., que se caracteriza pela não contiguidade do professor; educação a distância,<br />
ensino a distância.<br />
Telealuno – estudante que se serve de qualquer modalidade de teleducação, tais como,<br />
televisão educativa, cursos por correspondência e outros.<br />
Telegrafia – processo de telecomunicações que transmite textos escritos (telegramas) por<br />
meio de um código de sinais (código Morse), através de fios.<br />
Tel<strong>em</strong>ática – ciência que trata da transmissão a longa distância de informação<br />
computadorizada.<br />
Tel<strong>em</strong>arketing – marketing feito à distância.<br />
Teletexto - sist<strong>em</strong>a unidirecional de telecomunicação que, servindo-se da parte redundante de<br />
um sinal de televisão ou de uma linha telefônica, transmite informação <strong>em</strong> forma de texto ou<br />
grafismos para a tela receptora de um televisor especial equipado com decodificador.<br />
Assim é que, com o t<strong>em</strong>po, o falante passa a usar “tele-” designando essas duas<br />
acepções: 1) televisão, como v<strong>em</strong>os <strong>em</strong> (c) e 2) telefone, como apresentamos <strong>em</strong> (d):<br />
(c) (d)<br />
Teleator telefax<br />
Telecinag<strong>em</strong> tele-símile<br />
Telecine tele-amore<br />
Telejornal tele-pizza<br />
Telecurso tele-gás<br />
Teledifusão tele-van<br />
Teledrama tele-<strong>em</strong>prego<br />
Telefilme tel<strong>em</strong>óvel<br />
Telejogo teleoperador<br />
6 As definições foram retiradas do Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (2009).<br />
69
Telenovela tele-sexo<br />
Televizinho tele-vendas.<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Acreditamos que “tele-”, nesses casos, indica s<strong>em</strong>pre o “modo como”, o que aponta<br />
para um resquício desse el<strong>em</strong>ento como adverbial, indicando uma circunstância, como já era<br />
<strong>em</strong> grego - à distância. Assim, o modo como “far<strong>em</strong>os algo” – através da TV ou do telefone –<br />
será determinado pelo el<strong>em</strong>ento a que “tele-” se liga.<br />
Os el<strong>em</strong>entos que se adjung<strong>em</strong> a “tele-” pod<strong>em</strong> ser definidos como “algo a ser visto”,<br />
<strong>em</strong> (c), e “algo a ser consumido, seja este um serviço ou um produto”, <strong>em</strong> (d). Com base nos<br />
estudos de Langacker (1987, 1991) sobre ajuste focal e também de Sweetser (1999), sobre<br />
modificação adjetival, imaginamos que o el<strong>em</strong>ento que se liga a “tele-” ajusta um sentido ou<br />
outro dessa lexia, ativando um dos frames/domínios a ele relacionados. Porém, essa <strong>análise</strong><br />
será apresentada <strong>em</strong> trabalhos futuros.<br />
A Linguística Cognitiva é uma <strong>teoria</strong> s<strong>em</strong>ântica que entende o significado como uma<br />
construção mental <strong>em</strong> contínuo movimento de categorização e recategorização do mundo, a<br />
partir da interação entre estruturas cognitivas e modelos culturais compartilhados. As<br />
estruturas cognitivas de que falamos aqui são as nossas bases de conhecimento, ou seja,<br />
estruturas capazes de capturar a organização do nosso conhecimento. Já expomos aqui o<br />
conceito de frame (Fillmore, 1982), que se ass<strong>em</strong>elha à noção de domínio, traçada por<br />
Langacker (1987). Eles determinam que as palavras estão sob o efeito de escopo e esse<br />
escopo é, na verdade, o domínio a que essa palavra se refere. Um conceito pode pressupor<br />
muitos domínios diferentes.<br />
Um ex<strong>em</strong>plo clássico (Croft & Cruse, 2004, p. 23) é o da noção de sobrinha. Para o<br />
entendimento do conceito de sobrinha dentro do sist<strong>em</strong>a de parentesco ressaltam-se i) o<br />
conceito de eu, ii) o conceito de irmão(ã), e, por isso, iii) o conceito de pais e iv) filho(a) dos<br />
mesmos pais, para que possamos, então, entender a noção de sobrinha – filha do(a) irmão(ã).<br />
As noções, por ex<strong>em</strong>plo, de avô, avó, neto e neta não precisam ser acessadas.<br />
O domínio de “tele-”, pode ser representado pelo esqu<strong>em</strong>a abaixo:<br />
tele<br />
distância<br />
perto longe<br />
posição<br />
estático dinâmico<br />
Gráfico 1<br />
70
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Outra base conceptual fundamental para o entendimento de “tele-” é a noção de<br />
esqu<strong>em</strong>a imagético (EI). Esqu<strong>em</strong>as imagéticos são esqu<strong>em</strong>as pré-conceptuais fundamentais,<br />
padrões dinâmicos que funcionam como uma estrutura abstrata de uma imag<strong>em</strong>, e que,<br />
consequent<strong>em</strong>ente, ligam um leque vasto de diferentes experiências dotadas da mesma<br />
estrutura.<br />
No caso de tele-, t<strong>em</strong>os um esqu<strong>em</strong>a imagético do percurso ou trajetória, pois a nossa<br />
experiência do meio que nos cerca nos transmite que algo longe pressupõe um<br />
posicionamento e um destino final e que para lá chegarmos, ter<strong>em</strong>os que percorrer um<br />
caminho, com todos os seus pontos de intermédio e a(s) sua(s) direção(s) tomada(s). Este é o<br />
esqu<strong>em</strong>a imagético do percurso:<br />
Gráfico 2<br />
A seguir, encontramos o esqu<strong>em</strong>a imagético do el<strong>em</strong>ento “tele-”:<br />
Gráfico 3<br />
tel<strong>em</strong>óvel televisão<br />
Perceb<strong>em</strong>os que tel<strong>em</strong>óvel é um el<strong>em</strong>ento que se locomove no percurso, na medida <strong>em</strong><br />
que acompanha o falante. A mesma posição não seria ocupada por, por ex<strong>em</strong>plo, televisão e<br />
teleator, na medida <strong>em</strong> que esses el<strong>em</strong>entos são estáticos e o falante é que deveria se<br />
transportar até eles.<br />
Cabe-nos observar também que, cognitivamente, há uma motivação para que “tele-”<br />
possa se reduzir e significar “televisão” e “telefone”. Sendo a linguag<strong>em</strong> uma representação<br />
de processos cognitivos, que, por seu turno, diz<strong>em</strong> respeito ao modo como categorizamos as<br />
coisas e como elas se relacionam às nossas experiências concretas, sab<strong>em</strong>os que a experiência<br />
humana nos mostra que tanto a visão como a audição pod<strong>em</strong> ser experienciadas à distância, o<br />
que não ocorreria com o tato, por ex<strong>em</strong>plo. Nesse sentido, “tele-” representa “televisão” e<br />
“telefone” não apenas por uma redução formal da palavra, mas porque, experiencial e, por<br />
conseguinte, cognitivamente, existe uma relação entre o que “tele-” deveria indicar (distância)<br />
e “televisão” ou “telefone”, o que ele indica, de fato, nas novas formações.<br />
Também verificamos que as formações com “tele-” concorr<strong>em</strong> com formações com<br />
“disk-” ou “disque” existentes <strong>em</strong> língua portuguesa, como disque-denúncia, disk-ingressos,<br />
disque-caixa, disque-pis, entre outras. Até o momento, não conseguimos efetuar uma <strong>análise</strong><br />
71
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
eficiente que desse conta de quais “serviços” ou “produtos” a ser<strong>em</strong> consumidos são<br />
recrutados por “tele-” ou por “disque”, mas, ousamos dizer, com base nos dados encontrados,<br />
que serviços do tipo “utilidade pública” não são recrutados por “tele-”, e sim por “disque”.<br />
Com relação ao que pretend<strong>em</strong>os fazer, ainda há muito que se pesquisar. A proposta<br />
aqui está longe de ser exaustiva, que dirá de esgotar a questão, por isso mesmo, dá marg<strong>em</strong> a<br />
outros estudos. Um t<strong>em</strong>a que deve ser revisto é no que consiste, de fato, o processo de<br />
recomposição, e quais são os seus limites entre a derivação e a composição. Acreditamos,<br />
assim como Gonçalves (2005, 2006) e Bybee (1985), que os processos morfológicos não<br />
apresentam uma separação estanque, não são processos distintos e faz<strong>em</strong> parte de um<br />
continuum morfológico.<br />
Outra proposta de trabalho é a possibilidade de verificação (ou não) das motivações<br />
para o frame de “tele-”, a partir da identificação de seu domínio-matriz e de sua rede<br />
polissêmica, tendo como base os pressupostos da LC (Langacker, 1987, 1991; Lakoff, 1987;<br />
Sweetser, 1999).<br />
Por fim, faz-se necessário uma <strong>análise</strong> mais minuciosa dos dados, levantando todos os<br />
seus significados, datações, e separações por grupos de afinidades s<strong>em</strong>ânticas e morfológicas.<br />
6) Palavras finais<br />
Este artigo pretendeu descrever o processo de recomposição no português brasileiro,<br />
especialmente no que diz respeito às formações <strong>em</strong> tele. Ao longo do texto, pode-se perceber<br />
que, pelo menos <strong>em</strong> uma <strong>análise</strong> preliminar dos dados, tal el<strong>em</strong>ento pode ser descrito como<br />
prefixo - diferent<strong>em</strong>ente do que propõ<strong>em</strong> alguns estudiosos – tendo <strong>em</strong> vista a produtividade<br />
que “tele-” apresenta. Além disso, o processo de recomposição ainda carece de uma melhor<br />
definição, que dê conta das distinções que apresenta <strong>em</strong> relação aos d<strong>em</strong>ais processos de<br />
formação de palavras, sobretudo, a derivação e a composição.<br />
As formações encontradas foram analisadas <strong>em</strong> termos morfológicos e s<strong>em</strong>ânticos. No<br />
que diz respeito ao primeiro aspecto, observaram-se regularidades no processo, como a<br />
posição fixa, um único acento tônico nas formações resultantes, as quais reforçam o caráter<br />
prefixal desse el<strong>em</strong>ento, ao lado da produtividade; “tele-” funciona s<strong>em</strong>pre como<br />
determinante e, nas formações recentes, as bases a que se liga são formas que funcionam<br />
livr<strong>em</strong>ente na língua.<br />
Quanto à parte significativa, pode-se dizer que as lexias analisadas apresentam uma<br />
mudança de sentido do el<strong>em</strong>ento estudado, que se especializou, nas formações recentes, <strong>em</strong><br />
“televisão” ou “telefone”, processo que levou <strong>em</strong> conta o esqu<strong>em</strong>a imagético do percurso e a<br />
noção de frame, bases conceptuais analisadas segundo os pressupostos da Linguística<br />
Cognitiva.<br />
Referências<br />
ALMEIDA et alii. Linguística Cognitiva <strong>em</strong> foco: morfologia e s<strong>em</strong>ântica. Rio de Janeiro: Publ!t,<br />
2010.<br />
72
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
AZEREDO, J. C. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008.<br />
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 14. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.<br />
BELCHOR, A. P. Construções de truncamento no português do Brasil: <strong>análise</strong> estrutural à luz da<br />
Teoria da Otimalidade. 2009. Dissertação (Mestrado <strong>em</strong> <strong>Letras</strong> Vernáculas) - Programa de <strong>Pós</strong>-<br />
Graduação <strong>em</strong> Língua Portuguesa. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.<br />
BYBEE, J. L. Morphology: a study of the relation between meaning and form.<br />
Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1985.<br />
CÂMARA Jr., J. M. Dicionário de Linguística e Gramática. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />
CROFT, W. & CRUSE, A. D. Cognitive linguistics. Cambridge: University of Cambridge Press,<br />
2004.<br />
CUNHA, C. & CINTRA, L. Nova gramática do português cont<strong>em</strong>porâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 2001.<br />
DUBOIS, J. et alii. Dicionário de linguística. São Paulo, Cultrix, 2006.<br />
FERREIRA, R. G. A hipótese de corporificação da língua: o caso de cabeça. Dissertação (Mestrado<br />
<strong>em</strong> <strong>Letras</strong> Vernáculas) – Programa de <strong>Pós</strong>-Graduação <strong>em</strong> Língua Portuguesa, Universidade Federal<br />
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.<br />
FILLMORE, C. Frame s<strong>em</strong>antics. In Linguistics in the Morning Calm. Seoul: Hanshin Publishing Co.,<br />
1982, p. 111-137.<br />
GONÇALVES, C. A. Flexão e derivação <strong>em</strong> português. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.<br />
GONÇALVES, C. A; MARINHO, M. A. et alii. Caminhos da mudança morfológica <strong>em</strong> português. In:<br />
GONÇALVES, C. A. Estudos <strong>em</strong> Morfopragmática e Morfologia Diacrônica. Booklink, 2006.<br />
HENRIQUES, C. C. Morfologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.<br />
http://pt.wikipedia.org<br />
LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what cathegories reveal about the mind. Chicago:<br />
University Press, 1987.<br />
LANGACKER, R. W. Foundations of cognitive grammar: theoretical prerequisites. Stanford:<br />
University Press, 1987. v. 1.<br />
LANGACKER, R. W. Foundations of cognitive grammar: descriptive application. Stanford:<br />
University Press, 1991. v. 2.<br />
LEMOS MONTEIRO, J. Morfologia portuguesa. 4. ed. Campinas: Pontes, 2002.<br />
ROCHA, L. C. de A. Estruturas morfológicas do português. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.<br />
SANDMANN, A. J. Morfologia Lexical. São Paulo: Contexto, 1992.<br />
73
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
SWEETSER, E. Compositionality and blending: s<strong>em</strong>antic composition in a cognitively realistic<br />
framework. In: Cognitive Linguistic Research 15. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, 1999, p.<br />
129-162.<br />
74
Advérbios <strong>em</strong> -mente <strong>em</strong> estruturas parentéticas<br />
Filipa Cunha (ILTEC)<br />
Mara Moita (ILTEC)<br />
Resumo: Este trabalho t<strong>em</strong> como objetivo d<strong>em</strong>onstrar que os advérbios <strong>em</strong> -mente pod<strong>em</strong> constituir por si só<br />
constituintes parentéticos. Sabendo que as estruturas parentéticas, quanto à sua mobilidade na frase, pod<strong>em</strong> ser<br />
fixas ou flutuantes (Kavalova 2007), uma vez que as fixas parec<strong>em</strong> estar associadas às relativas apositivas<br />
(Cinque 1981), foram selecionadas para estudo as estruturas flutuantes por se aproximar<strong>em</strong> das características da<br />
classe adverbial, para, assim, alcançar os objetivos por nós pretendidos. A classe adverbial distingue-se das<br />
outras classes gramaticais pela sua flexibilidade posicional numa frase (Gonzaga 1997 e Costa 2008). Tendo <strong>em</strong><br />
conta que consideramos que as parentéticas são estruturas interpoladas, focamo-nos apenas nos advérbios<br />
modificadores de predicado, não cont<strong>em</strong>plando os modificadores de frase. Com base numa pesquisa da versão<br />
etiquetada do CETEMPúblico de dados jornalísticos do português europeu, foram recolhidas 20 ocorrências de<br />
cada 20 advérbios <strong>em</strong> -mente, modificadores de predicado, na sua posição típica, adjacente à direita do verbo<br />
(posição pós-verbal). Em cada uma das 20 ocorrências, foram duplicadas as estruturas, com a modificação da<br />
posição do advérbio para a posição pré-verbal, para que fosse possível uma <strong>análise</strong> sintática e s<strong>em</strong>ântica dos<br />
constituintes enquanto parentéticos. Com a <strong>análise</strong> dos dados, confirmamos que uma subclasse restrita dos<br />
modificadores de predicado gera agramaticalidade <strong>em</strong> posição pré-verbal e observamos, por outro lado, que<br />
todas as restantes subclasses estudadas têm possibilidade de ocorrer nas duas posições adjacentes ao verbo. Uma<br />
vez que é possível restringir, através de características s<strong>em</strong>ânticas, a subclasse que gera agramaticalidade,<br />
acreditamos que o seu valor s<strong>em</strong>ântico pode não ser suficiente para refutar a hipótese por nós colocada. Desta<br />
forma, os dados analisados permit<strong>em</strong>-nos propor que, ao contrário do que é defendido na literatura (Colaço &<br />
Matos 2008), não são as estruturas parentéticas flutuantes que se comportam como os adverbiais, mas sim os<br />
adverbiais, pelo menos os modificadores de predicado, que por si só pod<strong>em</strong> constituir uma estrutura parentética.<br />
1) Introdução<br />
As estruturas parentéticas são definidas na literatura como frases inseridas num<br />
período. Representam uma interrupção na expressão hospedeira e manifestam independência<br />
de conteúdo, <strong>em</strong>bora estabeleçam uma ligação com o significado dessa expressão. Além<br />
disso, são realizadas com uma entoação específica e introduz<strong>em</strong> informação acessória ou<br />
comentários do locutor (Colaço & Matos, 2008). Em relação à sua distribuição e mobilidade<br />
no interior da frase hospedeira, segundo Kavalova (2007), exist<strong>em</strong> dois tipos de construções<br />
parentéticas: as fixas, que se caracterizam por não ter<strong>em</strong> mobilidade na frase, ocorrendo <strong>em</strong><br />
adjacência ao constituinte com o qual estão conceptualmente relacionadas, e as flutuantes que,<br />
pelo contrário, pod<strong>em</strong> ocupar diversas posições na frase hospedeira.<br />
Segundo as gramáticas tradicionais, os advérbios caracterizam-se por ser<strong>em</strong><br />
constituintes que apresentam uma sintaxe flexível (Gonzaga 1997; Costa 2008). De qualquer<br />
forma, esta flexibilidade não é aleatória. Há constituintes adverbiais que apresentam um<br />
comportamento singular, tendo posições preferenciais na estrutura frásica, tais como os<br />
advérbios <strong>em</strong> -mente, por ex<strong>em</strong>plo os modificadores de predicado, que tipicamente ocorr<strong>em</strong><br />
<strong>em</strong> posição pós-verbal.<br />
Se considerarmos estes advérbios como parentéticos, fixos ou flutuantes, poder-se-ia<br />
esperar que os advérbios com restrições sintáticas constituam itens parentéticos fixos, e os<br />
advérbios com flexibilidade total constituam parentéticos flutuantes? Esta poderia ser a<br />
primeira hipótese a ser levantada, dada a descrição na literatura; mas, pensando que as<br />
75
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
parentéticas fixas estão intrinsecamente ligadas às relativas apositivas, resta-nos analisar os<br />
advérbios <strong>em</strong> estruturas parentéticas flutuantes.<br />
O objetivo desta comunicação é, desta forma, defender que os advérbios <strong>em</strong> -mente<br />
pod<strong>em</strong> constituir por si só constituintes parentéticos, decorrendo deste fato que, na posição<br />
parentética, poder<strong>em</strong>os encontrar não apenas estruturas oracionais, na linha de Colaço &<br />
Matos (2008).<br />
A <strong>análise</strong> teve por base o estudo de 20 ocorrências de cada um dos advérbios <strong>em</strong> -<br />
mente, modificadores de predicados, selecionados na sua posição base, recolhidas no corpus<br />
CETEMPúblico.<br />
2) Caracterização Gramatical<br />
Este trabalho analisa o comportamento dos advérbios <strong>em</strong> -mente como estruturas<br />
parentéticas. Diversas têm sido as abordagens feitas a estes dois el<strong>em</strong>entos da gramática, das<br />
quais, <strong>em</strong> seguida, apresentamos duas:<br />
(i) Estruturas Parentéticas<br />
As construções parentéticas são expressões que apesar de estar<strong>em</strong> linearmente<br />
presentes num enunciado e, <strong>em</strong> termos de conteúdo, com ele direta e indiretamente<br />
relacionadas, aparentam ser estrutural e prosodicamente independentes.<br />
Entende-se por parentética uma frase que se intercala num período, mas t<strong>em</strong> um<br />
sentido à parte, constitui uma explicação, uma opinião, e funciona como um supl<strong>em</strong>ento das<br />
ideias expressas no discurso. O objetivo destas construções é esclarecer algo, comportando-se<br />
como um el<strong>em</strong>ento adicional, s<strong>em</strong> nexo sintático, mas que pode estabelecer relações lógicos<strong>em</strong>ânticas<br />
entre o parentético e o enunciado no qual se encaixa.<br />
O constituinte parentético é uma inserção metalinguística (Jubran, 1996), que permite<br />
ao falante comentar o conteúdo da própria locução, saindo do ponto de vista interno ao<br />
enunciado. Não participa na construção textual, mas fornece instruções sobre como o texto<br />
deve ser interpretado. As estruturas parentéticas têm um papel importante, uma vez que<br />
estabelec<strong>em</strong> significação, ao nível informacional, pois introduz<strong>em</strong> esclarecimentos,<br />
avaliações, ressalvas, advertências, atenuações e comentários sobre o que é dito.<br />
As parentéticas pod<strong>em</strong> ser de natureza oracional ou não oracional, e quanto à sua<br />
distribuição e ao seu grau de mobilidade no interior da expressão hospedeira (Kavalova<br />
2007), pod<strong>em</strong> ser de dois tipos: estruturas fixas (a parentética está s<strong>em</strong>anticamente associada<br />
a um constituinte da frase, não podendo ocorrer intercalada senão <strong>em</strong> adjacência a esse<br />
constituinte); estruturas flutuantes (o constituinte parentético pode ocorrer <strong>em</strong> diferentes<br />
posições na frase hospedeira).<br />
Desta forma, a designação de parentética geralmente dada pela literatura (por ex<strong>em</strong>plo<br />
(Colaço & Matos, 2008)), aplica-se a construções que apresentam as seguintes propriedades:<br />
sintaticamente, produz<strong>em</strong> uma ruptura na estrutura da expressão hospedeira;<br />
prosodicamente, apresentam pausas que as delimitam e uma prosódia específica, com<br />
variação de frequência fundamental;<br />
s<strong>em</strong>anticamente, exib<strong>em</strong> autonomia de conteúdo, apesar de estabelecer<strong>em</strong> um elo de<br />
76
significado com a expressão hospedeira;<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
pragmaticamente, têm uma função comunicativa marcada: exprim<strong>em</strong> comentários do locutor,<br />
fornec<strong>em</strong> uma informação adicional ou visam estabelecer contacto entre os interlocutores.<br />
Uma vez que as parentéticas têm uma distribuição s<strong>em</strong>elhante às expressões<br />
adverbiais modificadoras das projeções verbais ou de frase, é com base nestas estruturas que o<br />
comportamento dos advérbios <strong>em</strong> -mente, modificadores de predicado, foi testado.<br />
(ii) Advérbios <strong>em</strong> -mente<br />
A classe adverbial diferencia-se das outras classes por ser heterogénea ao nível da<br />
morfologia, da s<strong>em</strong>ântica e da sintaxe. Segundo os critérios tradicionais, os advérbios são,<br />
assim, definidos nestas três perspetivas: morfológica (advérbio como palavra invariável);<br />
sintática (advérbio como palavra sintaticamente relacionada ao verbo, ao adjetivo ou a outro<br />
advérbio); s<strong>em</strong>ântica (advérbio como palavra que indica circunstância e modificação). O<br />
advérbio é definido como um modificador da ideia expressa pelo verbo ou denotando<br />
circunstâncias <strong>em</strong> que se dá o processo a que se faz referência. A gramática tradicional de<br />
Cunha & Cintra (2000), definiu esta classe como: “... fundamentalmente, um modificador do<br />
verbo” (Cunha, C. & Cintra, L. 2000, p537).<br />
Os advérbios não são uma classe identificável por marcas morfológicas, que sejam<br />
comuns a todos, por ex<strong>em</strong>plo: ont<strong>em</strong>, b<strong>em</strong>, s<strong>em</strong>pre, carinhosamente. Apenas os advérbios <strong>em</strong><br />
-mente apresentam homogeneidade morfológica que permite a sua identificação como<br />
advérbio. Estes advérbios são definidos como advérbios deadjetivais, por ser<strong>em</strong> construídos a<br />
partir de um adjetivo, a que se junta o sufixo -mente. Desta forma, poder-se-á dizer que uma<br />
palavra que contenha este morf<strong>em</strong>a é necessariamente um advérbio, mas não se poderá<br />
afirmar que qualquer advérbio apresente este morf<strong>em</strong>a.<br />
O português é uma língua que, além de uma morfologia complexa, apresenta um<br />
grande número de opções no que respeita à distribuição do advérbio. Em uma primeira<br />
abordag<strong>em</strong> do comportamento posicional dos advérbios, Jackendoff (1972), baseando-se no<br />
inglês, propõe que exist<strong>em</strong> três posições para a sua ocorrência: a posição inicial, a posição<br />
final s<strong>em</strong> pausa, e a posição de auxiliar, entre o sujeito e o verbo principal. No entanto, o<br />
estudo desta classe no português d<strong>em</strong>onstra que existe ocorrência de advérbios na posição<br />
pós-verbal, e que esta é a posição preferencial quando este modifica o predicado (Gonzaga,<br />
1997).<br />
A primeira grande divisão s<strong>em</strong>ântica que a literatura propõe é que os advérbios têm a<br />
capacidade de exercer mais de uma função. De um lado, estão os advérbios que modificam o<br />
predicado (advérbios de predicado), do outro aqueles cuja modificação é externa à predicação<br />
(advérbios de frase) (Torner, 2005).<br />
O presente estudo t<strong>em</strong> por base a <strong>análise</strong> do comportamento dos advérbios<br />
modificadores de predicado. Parte-se da classificação de Costa (2008), que divide, seguindo<br />
critérios s<strong>em</strong>ânticos, estes advérbios <strong>em</strong> três subclasses:<br />
advérbios de localização t<strong>em</strong>poral e espacial – que têm como função fornecer informação<br />
sobre a situação do evento descrito pelo predicado quer <strong>em</strong> termos t<strong>em</strong>porais, quer <strong>em</strong> termos<br />
espaciais, como por ex<strong>em</strong>plo, primeiramente, seguidamente;<br />
advérbios de modo – os que descrev<strong>em</strong> como a ação se desenrola, e que são parafraseáveis<br />
por “de maneira / modo / forma X”, onde X é a base adjetival, como por ex<strong>em</strong>plo,<br />
77
manualmente, casualmente;<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
advérbios de quantidade ou de grau – os que veiculam valores de quantidade ou grau com o<br />
predicado, como por ex<strong>em</strong>plo, terrivelmente, tr<strong>em</strong>endamente.<br />
Uma vez que os advérbios apresentam uma sintaxe flexível, que não é aleatória, a<br />
<strong>análise</strong> deste estudo t<strong>em</strong> como objetivo testar o seu comportamento como estruturas<br />
parentéticas.<br />
3) Metodologia<br />
Este estudo parte da descrição sintática das estruturas parentéticas, por Colaço &<br />
Matos (2008), e da classificação de Costa (2008) para os advérbios modificadores de<br />
predicado, anteriormente descritas.<br />
A seleção dos advérbios para o estudo deste trabalho foi realizada de forma aleatória,<br />
apenas se restringindo no facto de sintaticamente se comportar<strong>em</strong> como modificadores de<br />
predicado. Além da restrição sintática, tiveram-se <strong>em</strong> conta as restrições s<strong>em</strong>ânticas<br />
intrínsecas associadas a advérbios, como: somente, iuclusivamente, particularmente,<br />
unicamente, etc., por estar<strong>em</strong> associadas a estruturas de foco. Segundo Costa (2008), “os<br />
advérbios focalizadores têm como função essencial chamar a atenção do interlocutor para um<br />
determinado constituinte, podendo assim associar-se não só à frase ou ao predicado, mas<br />
também a qualquer outro constituinte de frase.” Por ter<strong>em</strong> esta função, a barreira entoacional<br />
entre as estruturas de foco e as estruturas parentéticas pode ser tênue. Por estas razões, os<br />
advérbios que possam estar associados a este tipo de estruturas, de focalização, não foram<br />
cont<strong>em</strong>plados na nossa <strong>análise</strong>.<br />
Após a seleção dos constituintes, identificaram-se e agruparam-se os 20 advérbios<br />
selecionados no seu grupo s<strong>em</strong>ântico correspondente (Costa, 2008):<br />
Advérbios de localização t<strong>em</strong>poral e espacial: finalmente, primeiramente, frequent<strong>em</strong>ente,<br />
seguidamente, permanent<strong>em</strong>ente, ultimamente e diariamente.<br />
Advérbios de modo: manualmente, simpaticamente, carinhosamente, rapidamente,<br />
pausadamente, possivelmente, inteligent<strong>em</strong>ente, profissionalmente e casualmente.<br />
Advérbios de quantidade ou grau: terrivelmente, novamente, tr<strong>em</strong>endamente, repetidamente.<br />
O facto de a seleção ter sido aleatória, s<strong>em</strong> se ter delimitado o número de advérbios<br />
para cada grupo s<strong>em</strong>ântico, resultou <strong>em</strong> uma diferente distribuição numérica destes<br />
constituintes por cada grupo; contudo, este fato não pareceu ser um obstáculo para o que<br />
quer<strong>em</strong>os testar.<br />
A recolha das ocorrências destes advérbios <strong>em</strong> frases foi feita a partir de uma versão<br />
anotada do CETEMPúblico, um corpus jornalístico do português europeu, disponibilizado<br />
online pela Linguateca. A partir de uma pesquisa individual dos advérbios, recolheram-se,<br />
casualmente, 20 ocorrências de cada um dos 20 advérbios. O único critério de ocorrência tido<br />
<strong>em</strong> conta foi a posição pós-verbal, a preferencial para os modificadores de predicado no<br />
português. Cada uma das 20 ocorrências recolhidas e atestadas no CETEMPúblico foram<br />
duplicadas e alteradas manualmente quanto à adjacência do advérbio ao verbo. Assim, o<br />
el<strong>em</strong>ento adverbial foi movido da sua posição preferencial, a posição pós-verbal, para a<br />
78
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
posição pré-verbal, entre o sujeito e o predicado, uma vez que esta é a posição associada à<br />
entoação parentética, como por ex<strong>em</strong>plo:<br />
1. Frase original: Mário Soares cria seguidamente o Gabinete Coordenador do<br />
Alqueva<br />
Alqueva.<br />
Frase duplicada: Mário Soares seguidamente cria o Gabinete Coordenador do<br />
Esta duplicação t<strong>em</strong> como objetivo verificar se são as estruturas parentéticas que se<br />
comportam como os constituintes adverbiais, ou se se poderá dizer que os adverbiais pod<strong>em</strong><br />
constituir por si só uma estrutura parentética.<br />
4) Análise e Discussão<br />
Assumindo as características intrínsecas das estruturas parentéticas e o comportamento<br />
particular dos advérbios <strong>em</strong> -mente modificadores de predicado foi feita uma <strong>análise</strong> de dados<br />
com o objetivo de testar a possibilidade de constituintes adverbiais modificadores de<br />
predicado poder<strong>em</strong> constituir por si só estruturas parentéticas.<br />
Estes advérbios ocupam preferencialmente a posição pós-verbal, no entanto, a posição<br />
entre o sujeito e o predicado só parece estar disponível para estes constituintes quando<br />
associados a uma entoação parentética.<br />
A <strong>análise</strong> partiu da duplicação das frases e da mudança de posição dos el<strong>em</strong>entos<br />
adverbiais (advérbios <strong>em</strong> -mente, modificadores de predicado), que, segundo a classificação<br />
de Costa (2008), são subagrupados quanto ao seu valor s<strong>em</strong>ântico (advérbios de localização<br />
t<strong>em</strong>poral e espacial, de modo e de quantidade ou grau).<br />
Com a exclusão das estuturas parentéticas fixas, dadas as suas restrições de adjacência<br />
<strong>em</strong> relação ao constituinte com o qual estão nocionalmente relacionadas, resta-nos testar<br />
como se comportam os adverbiais por nós selecionados, <strong>em</strong> possíveis estruturas parentéticas<br />
flutuantes.<br />
Nesta perspetiva, apresentam-se agrupados, de acordo com os valores s<strong>em</strong>ânticos dos<br />
advérbios analisados, os resultados obtidos:<br />
Grupo s<strong>em</strong>ântico com valor de localização t<strong>em</strong>poral e espacial: finalmente, primeiramente,<br />
frequent<strong>em</strong>ente, seguidamente, permanent<strong>em</strong>ente, ultimamente e diariamente.<br />
Ex<strong>em</strong>plos:<br />
O jazz nacional encontrou finalmente a voz capaz de deitar para trás das costas a monotonia<br />
que tomou conta de um dos seus instrumentos clássicos - a trompete.<br />
O jazz nacional, finalmente ,encontrou a voz capaz de deitar para trás das costas a<br />
monotonia que tomou conta de um dos seus instrumentos clássicos - a trompete.<br />
O Cairo mandou seguidamente tropas e conselheiros militares para o território.<br />
O Cairo, seguidamente ,mandou tropas e conselheiros militares para o território.<br />
79
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Observa-se, a partir dos dados, que todos os advérbios desta subclasse pod<strong>em</strong> ocorrer<br />
<strong>em</strong> posição pré-verbal. Esta ocorrência não é aleatória: ela é apenas permitida quando estes<br />
constituintes estão associados a uma entoação parentética. Tal constatação pode ser já um<br />
indício de que estes constituintes adverbiais, nesta posição, sejam uma estrutura parentética.<br />
Verificou-se que, de todos os advérbios analisados, esta subclasse é a que t<strong>em</strong> um<br />
comportamento mais transparente relativamente à sua função de estrutura parentética.<br />
Advérbios que denunciam o valor de modo <strong>em</strong> que a ação acontece: maualmente,<br />
simpaticamente, carinhosamente, rapidamente, pausadamente, possivelmente,<br />
inteligent<strong>em</strong>ente, profissionalmente e casualmente. À s<strong>em</strong>elhança da subclasse anterior,<br />
verifica-se que além da sua ocorrência preferencial à direita do verbo, também ocorr<strong>em</strong> na<br />
posição pré-verbal, por ex<strong>em</strong>plo:<br />
Pelo contrário. muitos jornalistas enriquec<strong>em</strong>-se profissionalmente, depois de exercer<strong>em</strong><br />
este cargo, acrescenta.<br />
Pelo contrário. muitos jornalistas, profissionalmente, enriquec<strong>em</strong>-se, depois de exercer<strong>em</strong><br />
este cargo, acrescenta.<br />
Padre Azevedo dirigiu-se pausadamente à carteira onde eu cabulava e exigiu ver a capa do<br />
ensaio.<br />
Padre Azevedo, pausadamente, dirigiu-se à carteira onde eu cabulava e exigiu ver a capa do<br />
ensaio.<br />
No entanto, dentro desta subclasse, verifica-se, também, um outro comportamento<br />
quando o advérbio está <strong>em</strong> posição pré-verbal. São registados, nesta <strong>análise</strong> e dentro deste<br />
grupo s<strong>em</strong>ântico, dois casos <strong>em</strong> que o advérbio não parece requisitar entoação parentética, são<br />
eles: carinhosamente e simpaticamente. Observ<strong>em</strong>-se os ex<strong>em</strong>plos:<br />
Os que estão no programa dos Narcóticos Anónimos chamam-lhes carinhosamente O<br />
Inimigo.<br />
Os que estão no programa dos Narcóticos Anónimos carinhosamente chamam-lhes O<br />
Inimigo.<br />
Hello Paul, diz-lhe simpaticamente o computador.<br />
Hello Paul, simpaticamente diz-lhe o computador.<br />
Como nos mostram as frases acima, estes dois advérbios parec<strong>em</strong>, assim, ocorrer na<br />
posição entre o sujeito e o predicado s<strong>em</strong> se associar<strong>em</strong> obrigatoriamente à entoação<br />
parentética, ou seja, a entoação não é necessária para que a sua ocorrência à esquerda do<br />
verbo seja gramatical.<br />
Numa tentativa de justificar este comportamento, tentou-se encontrar razões comuns<br />
que motivass<strong>em</strong> esta particularidade. A hipótese comum que relaciona estes dois advérbios –<br />
carinhosamente e simpaticamente – encontrada é de que ambos partilham o traço s<strong>em</strong>ântico<br />
[+afetivo]. Esta é, porém, apenas uma observação com o objetivo de encadear um estudo para<br />
futuras pesquisas relativamente a este comportamento distinto, dada a insuficiência dos dados<br />
atuais.<br />
80
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Também foi identificado que, durante a recolha de dados no CETEMPúblico, estes<br />
dois advérbios foram os únicos que apresentaram uma ocorrência à posição pré-verbal s<strong>em</strong> se<br />
localizar<strong>em</strong> entre vírgulas. Sabendo-se que a escrita procura ser a representação da oralidade,<br />
e que para identificar uma pausa oral na grafia se deve fazê-lo por meio de vírgulas, o facto de<br />
não se verificar, no corpus, a ocorrêcia de vírgulas parece sustentar a hipótese de estes<br />
advérbios não necessitar<strong>em</strong>, à primeira vista, de estar associados a um valor parentético, como<br />
é d<strong>em</strong>onstrado nos seguintes ex<strong>em</strong>plos:<br />
Breve troca de palavras sobre o objecto carinhosamente referido como tradicional, com<br />
Teresa Guilherme a divagar sonhadora.<br />
Ay-Zer, como os amigos carinhosamente o tratavam, é um verdadeiro aristocrata.<br />
Uma disposição verdadeiramente ad homin<strong>em</strong> e que a Madeira, que ainda agora tão<br />
simpaticamente recebeu o Congresso dos Advogados, não merece.<br />
Camille Paglia, a f<strong>em</strong>inista pós-moderna mais <strong>em</strong> voga e simpaticamente acolhida pelas<br />
recensões do Público, chega à mesma conclusão por vias travessas.<br />
Observando que parece não haver restrições à ocorrência destes advérbios na posição<br />
associada à entoação parentética, assume-se que este comportamento não refuta a proposta<br />
central deste estudo, <strong>em</strong> que os advérbios <strong>em</strong> -mente quando ocorr<strong>em</strong> <strong>em</strong> posição pré-verbal<br />
são por si só estruturas parentéticas.<br />
Advérbios que denotam valor de quantidade ou grau à ação que modificam: terrivelmente,<br />
novamente, tr<strong>em</strong>endamente, repetidamente.<br />
Observou-se que este tipo de el<strong>em</strong>entos adverbiais, na fase de duplicação, resultaram<br />
numa agramaticalidade sintática e s<strong>em</strong>ântica quando posicionados à esquerda do verbo, como<br />
por ex<strong>em</strong>plo:<br />
Se o rosto real foi terrivelmente desumano, o capitalismo é o rosto da crueldade à solta.<br />
*Se o rosto real terrivelmente foi desumano, o capitalismo é o rosto da crueldade à solta.<br />
Esta visita trás novamente a debate o acordo ortográfico da língua portuguesa, assinado <strong>em</strong><br />
Lisboa <strong>em</strong> Dez<strong>em</strong>bro de 1990.<br />
*Esta visita novamente trás a debate o acordo ortográfico da língua portuguesa, assinado<br />
<strong>em</strong> Lisboa <strong>em</strong> Dez<strong>em</strong>bro de 1990.<br />
Estes advérbios associados a valores de quantificação ou grau, do grupo dos<br />
modificadores de predicado, parec<strong>em</strong> ser a única subclasse que ocupa exclusivamente a<br />
posição pós-verbal. A sua ocorrência entre o sujeito e o predicado, mesmo associada a uma<br />
entoação parentética, gera frases agramaticais ou leituras s<strong>em</strong>anticamente não aceitáveis. Este<br />
fato não é aqui explorado, mas esta possibilidade pode fazer-nos pensar que n<strong>em</strong> só as<br />
relativas apositivas constitu<strong>em</strong> parentéticas fixas.<br />
81
5) Considerações finais<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O tópico central deste trabalho foi a observação do comportamento de advérbios <strong>em</strong> -<br />
mente, modificadores de predicado, <strong>em</strong> estruturas parentéticas. Por ser<strong>em</strong> estruturas que<br />
apresentam um comportamento s<strong>em</strong>elhante aos adverbiais, para testar o modo como<br />
“flutuam” estes advérbios com restrições posicionais, considerámos, para a nossa <strong>análise</strong>,<br />
apenas as estruturas parentéticas flutuantes que, ao contrário das fixas, não têm<br />
obrigatoriedade de adjacência ao constituinte com o qual estão nocionalmente relacionadas.<br />
O confronto entre as três subclasses estudadas mostra que, na maioria, estes advérbios<br />
ocorr<strong>em</strong> entre o sujeito e o predicado obrigatoriamente associados a uma entoação<br />
parentética. As exceções encontradas eram previsíveis, e neste ponto, referimo-nos aos<br />
advérbios modificadores de predicado associados a um valor s<strong>em</strong>ântico de quantidade ou<br />
grau.<br />
Verificando que a maioria dos dados apresenta o comportamento esperado, poder-se-á<br />
assumir que, ao contrário do que t<strong>em</strong> sido defendido na literatura, não são as parentéticas<br />
flutuantes que se comportam como os adverbiais, mas, provavelmente, os adverbiais que são a<br />
própria estrutura parentética flutuante. É importante sublinhar que a nossa proposta se centra,<br />
até ao momento, apenas nos modificadores de predicado.<br />
No entanto, a maioria não representa o todo e, além das exceções esperadas, foram<br />
encontrados dois casos de advérbios que têm um comportamento particular, carinhosamente e<br />
simpaticamente. Estes advérbios pod<strong>em</strong> ocorrer na posição pré-verbal, aparent<strong>em</strong>ente, s<strong>em</strong> se<br />
associar<strong>em</strong> a uma entoação parentética. Desta forma, o nosso trabalho deixa <strong>em</strong> aberto este<br />
aspeto, por defendermos que para obter conclusões mais específicas seria necessário recorrer<br />
a um estudo prosódico, com base <strong>em</strong> corpora orais ou <strong>em</strong> testes de produção oral. No entanto,<br />
não nos parece que estes advérbios interfiram diretamente com a nossa proposta, dado que a<br />
não obrigatoriedade da entoação parentética, quando numa posição à esquerda do verbo,<br />
também não nos permite dizer que esta não existe de todo.<br />
Referências<br />
BLAKEMORE, D. And- Parentheticals. In Journal of Pragmatics, 37:8, 1165-1181. 2005.<br />
CINQUE, G. On the theory of relative clauses and markedness in The Linguistic Review, 1, 3, pp.<br />
247-294. 1981.<br />
CINQUE, G. Adverbs and fanctional heads: A cross-linguistic perspective. Oxford: Oxford<br />
University Press, 1999.<br />
COLAÇO, M. & G. Matos. Coordenação com orações parentéticas <strong>em</strong> Português. Comunicação<br />
apresentada no I Workshop do SILC, Nov<strong>em</strong>bro, Lisboa, 2008.<br />
COSTA, J. O Advérbio <strong>em</strong> Português Europeu. Edições Colibri, Lisboa, 2008.<br />
CUNHA, C. & L. Cintra. Nova Gramática do Português Cont<strong>em</strong>porâneo. 16ª ed, Edições João Sá da<br />
Costa, Lisboa, 2000.<br />
82
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
FROTA, S. A Prosódia do Advérbio na Frase. Interacção e Convergência, <strong>em</strong> Actas do VIII Encontro<br />
da APL, Lisboa. 1992.<br />
GONZAGA, M. Aspectos da Sintaxe do Advérbio <strong>em</strong> Português. Dissertação de Mestrado. Faculdade<br />
de <strong>Letras</strong>, Universidade de Lisboa. 1997.<br />
HAEGEMEN, L. Parenthetical adverbials: the radical orphanage approach. In Chiba, S. (ed.)<br />
Aspects of Modern Linguistics. Tokyo: Kaitakushi, 232-254. 1998.<br />
JACKENDOFF, R.S. S<strong>em</strong>antic Interpretation in Generative Grammar, The MIT Press, Cambridge.<br />
1972.<br />
JUBRAN, Célia C. A. S. Para uma Descrição Textual-Interativa das Funções de Parentetização. In:<br />
CASTILHO, Ataliba T. (org.). Gramática do Português Falado. Vol. 5. Campinas: Editora da<br />
UNICAMP. 1996.<br />
KAVALOVA, eds., In Déhé, N. & Y. Kavalova, (eds.) Parentheticals. Amsterdam/Philadelphia: John<br />
Benjamins, 203-234. 2007.<br />
LEMLE, M. Análise sintática: Teoria geral e Descrição do português. São Paulo, Ática, 1989.<br />
TORNER CASTELLS, S. De los Adjetivos Calificativos a los en -mente: sémantica y gramática. Diss.<br />
de Doutoramento. Universitat Pompeu Fabra. 2005.<br />
83
Um caso de concordância com tópico:<br />
a expressão de plural <strong>em</strong> verbos meteorológicos no interior de orações<br />
relativas<br />
Igor de Oliveira Costa (PUC-Rio)<br />
Marina R. A. Augusto (UERJ/PUC-Rio)<br />
RESUMO: Este artigo t<strong>em</strong> por finalidade relatar os resultados colhidos <strong>em</strong> um experimento offline de eliciação<br />
de sentenças relativas a partir de preâmbulo e verbo da relativa definidos, com falantes do Português Brasileiro.<br />
Objetivou-se observar o comportamento dos falantes <strong>em</strong> relação à flexão de verbos meteorológicos inseridos nas<br />
relativas. Considerou-se a formação de relativas padrão ou não-padrão. Observou-se que os verbos<br />
meteorológicos aparec<strong>em</strong> equivocadamente flexionados no plural, de maneira estatisticamente significativa,<br />
quando o antecedente da relativa é um DP plural, particularmente se este DP está inserido <strong>em</strong> um PP.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Relativas, Processamento, Verbos Meteorológicos, Concordância.<br />
1) Introdução<br />
O presente trabalho t<strong>em</strong> por finalidade apresentar os resultados obtidos <strong>em</strong> uma<br />
pesquisa preliminar sobre a possível concordância de verbos meteorológicos, quando<br />
inseridos <strong>em</strong> uma oração relativa, com o antecedente do pronome relativo que encabeça tal<br />
estrutura. Como se sabe, é consagrado pela Gramática Tradicional (GT) que os ditos verbos<br />
meteorológicos, chamados também verbos de fenômenos da natureza (chover, nevar, trovejar,<br />
ventar, fazer sol etc.) são verbos impessoais. Assim, de acordo com a Gramática Tradicional,<br />
tais verbos não possuiriam sujeito, constituindo, portanto, orações s<strong>em</strong> sujeito (Cunha &<br />
Cintra, 2001, p.129).<br />
A Gramática Gerativa, no entanto, de acordo com o Princípio de Projeção Estendido,<br />
postula que toda sentença possui uma posição de sujeito. Dessa forma, os ditos verbos<br />
meteorológicos teriam, para manter a coerência da <strong>teoria</strong>, de apresentar tal posição. Assim,<br />
mesmo <strong>em</strong> casos de verbos como os de fenômenos da natureza, o sujeito deveria existir,<br />
expresso fonologicamente ou não. Tais sujeitos, contudo, seriam de caráter puramente<br />
sintático, não recebendo do predicador qualquer papel-θ e não sendo referenciais. Configurarse-iam,<br />
assim, como um sujeito expletivo e, portanto, levariam o verbo à terceira pessoa, tais<br />
como o inglês e o francês, quando apresentam expletivos lexicalizados.<br />
(1) [expl It] is rainning.<br />
(2) [expl Il] pleaut.<br />
(3) [expl Ø] Anoiteceu cedo.<br />
(4) Ont<strong>em</strong> [expl Ø] choveu muito.<br />
É interessante notar, contudo, que há, hoje, uma quantidade de dados espontâneos<br />
nada desprezível <strong>em</strong> que os verbos meteorológicos aparec<strong>em</strong>, <strong>em</strong> sentenças relativas,<br />
flexionados na terceira pessoa do plural. Isso parece ocorrer quando tais verbos se encontram<br />
no interior de orações relativas não preposicionadas, característica típica do Português<br />
84
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Brasileiro, sendo que o antecedente do pronome relativo que encabeça tais orações está no<br />
plural, tal como o ex<strong>em</strong>plo (5), abaixo, colhido <strong>em</strong> um blog na internet 1 :<br />
(5) Ranking das cidadesi [quei mais choveram nos últimos dois meses].<br />
Como se pode ver, há a supressão da preposição que deveria introduzir o pronome<br />
relativo (...cidades <strong>em</strong> que choveu...) e, com isso, o verbo parece tender a flexionar-se <strong>em</strong><br />
concordância com o antecedente. O presente trabalho, portanto, levantará hipóteses sobre as<br />
motivações processuais de tal fenômeno, partindo de um teste psicolinguístico offline de<br />
eliciação.<br />
Na segunda seção, apresentar<strong>em</strong>os uma breve explanação sobre as orações relativas do<br />
Português Brasileiro, suas d<strong>em</strong>andas de processamento e a hipótese de que são geradas a<br />
partir de uma posição de tópico ou Deslocamento à Esquerda. Na terceira seção,<br />
apresentar<strong>em</strong>os o design do teste por nós elaborado e o método de que nos val<strong>em</strong>os. Na seção<br />
seguinte, apresentar<strong>em</strong>os os resultados obtidos e, por fim, levantar<strong>em</strong>os uma breve hipótese<br />
explicativa para dar conta dos dados, levando <strong>em</strong> conta, sobretudo, questões de<br />
processamento de orações relativas.<br />
2) Fundamentação teórica<br />
Há uma vasta bibliografia sobre a estrutura conhecida como oração relativa no<br />
Português Brasileiro (PB), surgida principalmente após a pesquisa s<strong>em</strong>inal de Fernando<br />
Tarallo (apud Kato, 1996). De acordo com esse autor, o que se t<strong>em</strong> no PB é, resumidamente,<br />
a presença de três estruturas relativas: a relativa padrão (ou pied-piping), a relativa copiadora<br />
e a relativa cortadora, conforme os ex<strong>em</strong>plos <strong>em</strong> (6), (7) e (8), abaixo. A primeira caracterizase<br />
pela manutenção da preposição, no ex<strong>em</strong>plo citado mantém-se a preposição de, advinda da<br />
regência do verbo da relativa; a segunda pela ausência da preposição junto ao pronome<br />
relativo <strong>em</strong> favor da sua manutenção na posição de orig<strong>em</strong>, junto a um pronome resumptivo –<br />
ela, <strong>em</strong> dela; e a terceira pelo apagamento da preposição acrescido da presença de um<br />
pronome nulo no lugar do objeto do verbo, termo relativizado.<br />
(6) A menina [de que eu gosto] foi <strong>em</strong>bora.<br />
(7) A menina [que eu gosto dela] foi <strong>em</strong>bora.<br />
(8) A menina [que eu gosto Ø] foi <strong>em</strong>bora. 2<br />
De acordo com Tarallo (apud Kato, op. cit.), a estratégia cortadora é a mais produtiva<br />
no PB, enquanto a copiadora é pouco utilizada. A tese de Correa (1998) confirma essa<br />
hipótese através de uma pesquisa com alunos, mostrando que eles passam a dominar a<br />
estratégia padrão apenas quando estão no Ensino Superior 3 .<br />
1<br />
Acessado <strong>em</strong> no dia<br />
29/03/2011, às 10h38.<br />
2<br />
Para mais detalhes, r<strong>em</strong>et<strong>em</strong>os o leitor para a bibliografia pertinente, principalmente Bagno (2004) e Azeredo<br />
(2008), para os que não têm familiaridade com o método de <strong>análise</strong> da gramática gerativa, e Kato (1996) e Kato<br />
& Nunes (2009), para os que se sent<strong>em</strong> à vontade com esse método.<br />
3<br />
Confronte, nesse sentido, a Tabela 4.1: Distribuição dos tipos de relativa por série do 1.º grau, nãoescolarizados<br />
e falantes universitários <strong>em</strong> narrativas orais e a Tabela 4.4: Tipos de relativa por nível de<br />
escolaridade <strong>em</strong> narrativas escritas, ambas <strong>em</strong> Correa (1998).<br />
85
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A hipótese de Kenedy (2008: 93), por sua vez, v<strong>em</strong> a confirmar esses dados,<br />
mostrando que as relativas pied-piping, ou seja, aquelas <strong>em</strong> que o pronome relativo v<strong>em</strong><br />
precedido de uma preposição, não faz<strong>em</strong> parte da “competência linguística natural dos<br />
indivíduos”, pois elas violam “certas condições de economia do Sist<strong>em</strong>a” 4 . Dessa forma, essa<br />
estrutura seria típica da cultura escrita. Produzi-la seria, na verdade, uma habilidade cultural<br />
dos falantes e não uma habilidade estritamente linguística.<br />
Em acréscimo a isso, é preciso l<strong>em</strong>brar que Kato (id<strong>em</strong>), na contramão de Tarallo –<br />
que afirmava ser o que introdutor da oração relativa apenas um compl<strong>em</strong>entizador, núcleo de<br />
CP –, afirma ser esse termo, na verdade, um pronome relativo, como já vinha sendo visto na<br />
literatura desde há muito, inclusive na Gramática Tradicional (GT). Levantando dados<br />
diacrônicos, a autora apresenta evidências fortes para confirmar a sua hipótese,<br />
principalmente ao mostrar que, no português arcaico, pronomes relativos com marca de caso<br />
clara (qu<strong>em</strong>) poderiam encabeçar sentenças nas quais figura um pronome resumptivo. Ora,<br />
visto que compl<strong>em</strong>entizadores não carregam marcas de caso, tais termos só poderiam ser,<br />
mesmo, pronomes relativos. Aplicando tal evidência às relativas do PB atual, a autora conclui<br />
que o que é, portanto, mesmo <strong>em</strong> relativas copiadoras, um pronome relativo s<strong>em</strong> marca<br />
fonológica de caso.<br />
É interessante notar, também, que Kato (ibid<strong>em</strong>) e Kato & Nunes (2009) afirmam<br />
ser<strong>em</strong> as relativas geradas a partir de uma posição de tópico sentencial. A tendência do PB a<br />
se configurar como um língua de tópico 5 (Pontes, 1987), de acordo com aqueles autores,<br />
possibilita uma estrutura menos custosa para a geração de relativas do que as posições no<br />
interior da sentença, como as posições de objeto e adjunto (ex<strong>em</strong>plo (46) in Kato & Nunes,<br />
2009).<br />
(9) Este é [o [CP [DP livroi [DP que ti]]k [CP C [LD tk [IP você estava precisando prok]]]]<br />
Os trabalhos de Correa et al. (2008 e 2009) só vêm a confirmar tal hipótese, mostrando<br />
que as relativas de adjunto e de genitivo são as que exig<strong>em</strong> maior d<strong>em</strong>anda de processamento.<br />
E é graças a essa possibilidade de preenchimento da periferia esquerda da sentença que o<br />
verbo, ao que parece, tende a concordar com o tópico, conforme é relatado <strong>em</strong> estudo de<br />
Galves (2000). Tal comportamento do verbo pode ser observado na sentença (10), abaixo,<br />
colhido nessa mesma autora.<br />
(10) Os relógios estragaram o ponteiro.<br />
Casos como esse, ao que tudo indica, estão inseridos <strong>em</strong> uma tendência do PB de ter a<br />
primeira posição da sentença s<strong>em</strong>pre preenchida fonologicamente, como já relatava Pontes<br />
(id<strong>em</strong>) <strong>em</strong> seu clássico estudo sobre o tópico no PB. Ora, mas o que ocorreria se o adjunto,<br />
digamos, um locativo, <strong>em</strong> uma sentença com verbo meteorológico, subisse à posição de<br />
4<br />
Não nos deter<strong>em</strong>os aqui nos detalhes teóricos abordados pelo autor, mas indicamos o leitor interessado à<br />
bibliografia pertinente.<br />
5<br />
Topic-Oriented Languages are characterized by the possibility for the subject of the sentence not to be the<br />
external argument of the verb (….) In other words, they are languages in which topics are treated as subjects,<br />
independently of their argumental status (Galves, 2000). [Línguas com Pro<strong>em</strong>inência de Tópico são<br />
caracterizadas pela possibilidade de o sujeito da sentença não ser o argumento externo do verbo (...). Em outras<br />
palavras, são línguas <strong>em</strong> que tópicos são tratados como sujeitos, independent<strong>em</strong>ente de seu status argumental. –<br />
Tradução livre]<br />
86
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
tópico? Ele motivaria a concordância do verbo, mesmo de um verbo que só possui expletivo<br />
nulo, como é o caso dos meteorológicos do PB?<br />
Ao que tudo indica, a resposta a esta pergunta é afirmativa, pois Duarte (2007), ainda citando<br />
Pontes, trata de ex<strong>em</strong>plos <strong>em</strong> que um verbo meteorológico e, portanto, impessoal, flexiona-se<br />
também <strong>em</strong> concordância com um tópico, como na sentença (11), ratificando a posição de que<br />
mesmo <strong>em</strong> casos de verbos impessoais o sujeito tende a vir preenchido.<br />
(11) Essas janelas ventam muito.<br />
A presença de dados como (10) acima, na língua, t<strong>em</strong> levado a <strong>análise</strong>s como a de<br />
Galves (2000), <strong>em</strong> que se defende que o traço de pessoa do tópico ficaria acessível para a<br />
concordância do verbo. A restrição relacionada a essas sentenças, que envolv<strong>em</strong> todo/partes,<br />
não pode ser estendida para os verbos meteorológicos. Compare (10) acima com as sentenças<br />
fornecidas por Galves (2000), retomadas a seguir.<br />
(12) *O relógio estragaram os ponteiros.<br />
(13) O relógio, estragaram os ponteiros dele.<br />
No caso das estruturas relativas com verbos meteorológicos especificamente, parece<br />
haver uma carga de processamento envolvida que poderia justificar que se devesse buscar<br />
uma outra <strong>análise</strong>.<br />
3) Experimento: verbos meteorológicos <strong>em</strong> sentenças relativas<br />
Tendo <strong>em</strong> vista as afirmações contidas na literatura, brev<strong>em</strong>ente resumidas acima, o<br />
presente trabalho buscou verificar, <strong>em</strong> uma investigação apenas preliminar, o que ocorreria<br />
com a concordância se um verbo meteorológico estivesse no interior de uma relativa, gerada<br />
a partir de um tópico, já que, como vimos, Kato (op. cit.) e Kato & Nunes (op. cit.) afirmam<br />
ser<strong>em</strong> as relativas geradas a partir de um tópico sentencial. A concordância iria ocorrer, dada<br />
a possível interpretação do tópico como originado a partir da posição de sujeito, a mais<br />
prontamente acessível durante o processamento da estrutura?<br />
A fim de responder a tal pergunta, optou-se pela elaboração de um teste<br />
psicolinguístico offline de produção. Em tal teste, um grupo de sujeitos deveria preencher<br />
lacunas <strong>em</strong> uma sentença conforme um modelo prévio e indicações de que palavras utilizar<br />
<strong>em</strong> cada sentença. O tipo de oração (com verbo meteorológico ou com outros verbos), a<br />
flexão de número do antecedente do pronome relativo (singular ou plural) e o fato de este<br />
antecedente vir ou não preposicionado tipo de antecedente (DP ou PP) foram tomados como<br />
variáveis independentes. Foram tomadas como respostas-alvo aquelas <strong>em</strong> que a flexão do<br />
verbo estava <strong>em</strong> conformidade com o preconizado pela gramática normativa. No caso dos<br />
verbos meteorológicos, s<strong>em</strong>pre o singular. A presença ou ausência de preposição retomada<br />
junto ao pronome relativo não foi considerada. O número de respostas-alvo constitui a<br />
variável dependente do experimento.<br />
Método<br />
Participantes<br />
Participaram como sujeitos do experimento 27 voluntários adolescentes e adultos, todos com<br />
Ensino Médio completo.<br />
87
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Material<br />
Foram elaboradas oito frases experimentais, sendo duas frases para cada condição, que foram<br />
contrastadas com oito frases controle e oito frases distratoras <strong>em</strong> um questionário. Todas as<br />
frases foram apresentadas com lacunas seguidas de informações entre parênteses, sendo que<br />
havia quatro frases modelos, seguidas de respostas, no início do questionário, a fim de<br />
direcionar a elaboração da atividade. As frases foram, ainda, apresentadas s<strong>em</strong>pre na ord<strong>em</strong><br />
distratora, controle e experimental, conforme ex<strong>em</strong>plos abaixo. Como todas as frases controle<br />
eram relativas de adjunto adverbial e apareciam imediatamente antes das frases<br />
experimentais, esperava-se que isso motivasse o voluntário a valer-se da norma padrão na<br />
frase experimental que vinha logo <strong>em</strong> seguida, evitando-se, portanto, um teste tendencioso.<br />
Frase Distratora: Consegui comprar o carro _____ (a minha mulher querer).<br />
Frase Controle: Ele s<strong>em</strong>pre vai às compras no dia _____ (receber seu salário).<br />
Frase Experimental: Há inúmeros probl<strong>em</strong>as nos verões _____ (chover muito)<br />
Procedimento<br />
O questionário foi apresentado aos sujeitos <strong>em</strong> uma aula de redação, na qual estavam<br />
acostumados a elaborar exercícios de correção gramatical e deviam atentar para a norma culta<br />
da língua. Nada foi dito, antes da elaboração do questionário, sobre a natureza do teste. Pediuse,<br />
apenas, que eles less<strong>em</strong> as instruções e fizess<strong>em</strong> o que era pedido.<br />
4) Resultados e discussão<br />
Após a aplicação dos testes, os dados foram submetidos ao pacote estatístico<br />
ezANOVA, revelando efeito principal para os fatores manipulados (tipo de oração (F(1,208)<br />
= 92.2 p
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Gráfico 1: Médias de respostas alvo <strong>em</strong> função de número e presença de preposição no antecedente<br />
Como se pode ver, a média de respostas alvo quando o antecedente é singular é<br />
máxima nos dois casos, com antecedente preposicionado ou não. Em outras palavras, s<strong>em</strong>pre<br />
que o antecedente vinha no singular, o verbo no interior da relativa permanecia no singular, o<br />
que ocorreu, conforme o esperado, <strong>em</strong> todos os casos.<br />
No entanto, a média de respostas alvo quando o antecedente é não preposicionado e<br />
está no plural é apenas 0,59, muito menor do que quando o antecedente, mesmo estando no<br />
plural, é preposicionado (1,33). As médias parec<strong>em</strong> indicar, portanto, que o status do<br />
antecedente (preposicionado ou não preposicionado) influencia na concordância do verbo no<br />
interior da oração relativa. Em outras palavras, quando o antecedente não vinha<br />
preposicionado e estava no plural, o verbo no interior da relativa teve uma maior tendência a<br />
se flexionar no plural, <strong>em</strong> aparente concordância com esse antecedente. A preposição no<br />
antecedente, contudo, parece limitar tal concordância, fazendo com que o falante mantenha o<br />
verbo no singular, mesmo sendo o antecedente plural.<br />
Para uma melhor visualização da distinção encontrada, apresenta-se, na Tabela 1, a<br />
distribuição percentual derivada da <strong>análise</strong> por tipos de itens, a qual indica a tendência do<br />
falante <strong>em</strong> flexionar os verbos meteorológicos no plural no interior de orações relativas,<br />
sobretudo quando esse antecedente não v<strong>em</strong> preposicionado.<br />
Tabela 1: Flexão de plural <strong>em</strong> verbos meteorológicos no interior de orações relativas nas frases experimentais<br />
Status do<br />
Antecedente<br />
Verbos no Interior de Relativas<br />
Flexionados no Plural<br />
- Prep./+Plural 68,52%<br />
+ Prep./+Plural 33,33%<br />
+ ou – Prep./+Singular 0%<br />
89
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Nas sentenças <strong>em</strong> que os antecedentes vinham no plural e preposicionados (Há<br />
inúmeros probl<strong>em</strong>as nos verões que chove muito), menos de metade dos casos apresentou<br />
flexão plural (33,3%); por outro lado, nas sentenças <strong>em</strong> que os antecedentes vinham no plural,<br />
mas não eram preposicionados (...são incomuns os dias que nevam de verdade), a maioria<br />
apresentou flexão plural (68,52%).<br />
5) Breve hipótese explicativa<br />
A leitura da bibliografia sobre o assunto e os dados colhidos nessa investigação<br />
preliminar nos levam a crer, portanto, que haveria uma tendência no PB de o tópico estar<br />
disparando a concordância do verbo, mesmo <strong>em</strong> verbos que normalmente não apresentariam<br />
essa concordância. Em outras palavras, há uma tendência a se reinterpretar o tópico como<br />
sujeito, o que fica evidente quando se t<strong>em</strong> um tópico no plural, sobretudo quando esse tópico<br />
motiva a flexão de um verbo meteorológico.<br />
Ao que parece, esses dados vêm a corroborar a hipótese de que o processamento de<br />
relativas de genitivo e de relativas padrão preposicionadas exige uma maior d<strong>em</strong>anda<br />
processual, ao que tudo indica, pelo fato de o PB não permitir o movimento apenas do<br />
sintagma nominal (preposition stranding), movendo todo o sintagma preposicionado, como<br />
mostram os trabalhos de Correa et al (2008 e 2009).<br />
Em outros termos, parece que o falante do PB, diante de relativas de adjunto, mais<br />
custosas para o processamento, tende a buscar estratégias mais econômicas, ou seja, relativas<br />
de sujeito. Essa escolha, porém, fará com que o verbo concorde com o pronome relativo.<br />
Então, quando este está se referindo a um antecedente plural, o verbo tenderá a ir para o<br />
plural. Essa concordância, no entanto, é limitada caso tal antecedente venha preposicionado.<br />
De qualquer forma, não ficou claro, ainda, qual o papel da preposição na limitação dessa<br />
concordância, algo que deverá ser investigado <strong>em</strong> pesquisas futuras.<br />
6) Considerações Finais<br />
O presente trabalho buscou verificar se verbos meteorológicos, ditos impessoais pela<br />
Gramática Tradicional, e portanto não possuindo sujeito, se flexionariam no plural, <strong>em</strong><br />
concordância com um pronome relativo, supostamente reinterpretado como sujeito,<br />
correferente a um el<strong>em</strong>ento plural. Conforme tentamos mostrar, essa flexão parece realmente<br />
ocorrer, corroborando o Princípio de Projeção Estendido e a hipótese de que a d<strong>em</strong>anda de<br />
processamento das relativas de sujeito é menos custosa. Perceb<strong>em</strong>os, também, que o status do<br />
antecedente do pronome relativo, se preposicionado ou não, influi de maneira significativa<br />
nessa flexão do verbo no interior da relativa. Os motivos dessa interferência, no entanto, ainda<br />
serão avaliados futuramente.<br />
Referências<br />
AZEREDO, J. C. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008.<br />
BAGNO, M. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.<br />
90
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
CARRILHO, E. Sobre o expletivo “ele” nos dialectos do português europeu. In: GONÇALVES, M. F.<br />
Actas do Congresso Internacional: “500 Anos da Língua Portuguesa no Brasil”. Évora: Edições<br />
Cosmos, 2000.<br />
_____. Sobre o expletivo “ele” no português europeu. Estudos de Lingüística Galega. Vol. 1. Servizo<br />
de Publicacións e Intercambio Científico: Universidade de Santigao de Compostela, 2009.<br />
CORREA, L. M. S.; AUGUSTO, M. R. A.; MARCILESE, M. Resumptive pronouns and passives in<br />
the production of object relative clauses: circumventing computational cost. In: 22nd Annual CUNY<br />
Conference on Human Sentence Processing, 2009, Davis, CA. Abstracts of the 22nd Annual CUNY<br />
Conference on Human Sentence Processing, 2009. p. 148.<br />
_____; AUGUSTO, M. R. A.; MIRANDA, F.V.; MARCILESE, M. Avoiding processing cost:<br />
differential strategies in the production of restrictive relative clauses. In: AMLaP - 2008 Architectures<br />
and Mechanisms for Language Processing, 2008, Cambridge. AMLaP 2008 - Abstracts, 2008. p. 100.<br />
CORREA, V. Oração relativa: o que se fala e o que se aprende no português do Brasil. Tese de<br />
Doutorado. UNICAMP, 2008.<br />
CUNHA, C. & CINTRA, L. F. L. Nova gramática do português cont<strong>em</strong>porâneo. Rio de Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 2001.<br />
DERWIN, B. L. & ALMEIDA, R. G. Métodos experimentais <strong>em</strong> linguística. In: MAIA, M. &<br />
FINGER, I. (Eds). Processamento da linguag<strong>em</strong>. Pelotas: Educat, 2005.<br />
DUARTE, M. E. L. Termos da Oração. In: Brandão, Sílvia F. & Vieira Sílvia R.. (Org.). Ensino de<br />
Gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007. pp. 185-204.<br />
_____. Do pronome nulo ao pronome pleno: a trajetória do sujeito no português do Brasil. In:<br />
ROBERTS, I. & KATO, M. Português Brasileiro: uma viag<strong>em</strong> diacrônica. Campinas: Editora da<br />
Unicamp, 1996.<br />
GALVES, C. Agre<strong>em</strong>ent, Predication, and Pronouns in the History of Portuguese. In: COSTA, J.<br />
(Org.). Portuguese Syntax: New Comparative Studies. OXFORD, 143-168, 2000.<br />
KATO, M. Recontando a história das relativas <strong>em</strong> uma perspectiva paramétrica. In: ROBERTS, I. &<br />
KATO, M. Português Brasileiro: uma viag<strong>em</strong> diacrônica. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.<br />
_____. & NUNES, J. A uniform raising analysis for standard and nonstandard relative clauses in<br />
Brazilian Portuguese. In: NUNES, Jairo. Minimalist Essays on Brazilian Portuguese Syntax. John<br />
Benjamins Publishing Company. Amsterdam/Philadelphia: 2009.<br />
KEENAN, E. L. & COMRIE, B. Noun phrase accessibility and universal grammar. Linguistic Inquiry<br />
8, 63-99, 1977.<br />
KENEDY, E. As orações relativas preposicionadas e a hipótese da antinaturalidade de pied-piping.<br />
Revista de Estudos linguísticos Veredas. Vol. 2, 2008.<br />
PONTES, E. O tópico no português do Brasil. Campinas: Pontes, 1987.<br />
91
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
História das Ideias Linguísticas<br />
92
Os sentidos da expressão língua materna na Idade Média<br />
José Edicarlos de Aquino 1 (UNICAMP)<br />
Resumo: Este trabalho objetiva analisar os sentidos da expressão língua materna na Idade Média. O referencial<br />
teórico-metodológico é o da História das Ideias Linguísticas. Nosso corpus é constituído pelos primeiros<br />
registros conhecidos da expressão língua materna. Ao longo dos séculos X e XI, período <strong>em</strong> que o latim era uma<br />
língua que se devia aprender, os vernáculos eram chamados lingua rusticana ou rustica, sermo rusticus, rustice,<br />
pagensis lingua, lingua rusticorum, romana lingua, romane e, finalmente <strong>em</strong> 1119, materna lingua. Todos esses<br />
registros são encontrados <strong>em</strong> textos escritos <strong>em</strong> latim, nos quais expressão língua materna aparece <strong>em</strong> oposição<br />
justamente ao latim. A partir de Dante Alighieri, a expressão língua materna passou a ser escrita <strong>em</strong> língua<br />
materna, possibilitando uma nova rede de sentidos. Dessa forma, t<strong>em</strong>-se parlar materno na Divina Comédia<br />
(1304-1321); langage commun et maternel no prólogo da tradução das Éticas, de Aristóteles, feita por Nicolau<br />
de Oresme (1361); langue naturelle et maternelle na obra Gargantua e Pantagruel, de Rabelais (1532); langage<br />
François ou maternel na Ordonnance de Moulins (1490); langage maternel françois et non autr<strong>em</strong>ent na<br />
Ordonnance de Villers-Coterêts (1539). Adiantamos como resultado do nosso trabalho que a língua materna é<br />
uma invenção do Ocidente medieval, forjada diante da língua paterna (patrius sermo, o latim) <strong>em</strong> um duplo<br />
movimento: da língua paterna, pensada enquanto estrutura, surge a língua materna, outra estrutura, pois do<br />
latim nasc<strong>em</strong> os vernáculos, e, da língua paterna, pensada enquanto discurso(s) sobre a língua, surge a língua<br />
materna, outro(s) discurso(s) sobre a língua.<br />
1) Apresentação<br />
Este trabalho t<strong>em</strong> como objeto os sentidos da expressão língua materna na Idade Média.<br />
Somos sensíveis ao fato de que a expressão língua materna mobiliza sentidos muito<br />
diferentes. Por outro lado, ela nunca deixa de produzir efeitos de reconhecimento ao ser<br />
enunciada. Acreditamos que esses efeitos são dados – talvez não exclusivamente – pela forma<br />
como ela é nomeada. Dito isso, esclarec<strong>em</strong>os que nossa pergunta recai sobre o nome da<br />
língua. Inquieta-nos saber por que língua materna – e não simplesmente língua.<br />
Nosso referencial teórico-metodológico é o da História das Ideias Linguísticas. Com<br />
isso, quer<strong>em</strong>os dizer que, ao percorrer e analisar os sentidos da expressão no período<br />
indicado, procurar<strong>em</strong>os articular língua e metalinguag<strong>em</strong>, ou melhor, língua e discurso sobre<br />
a língua, colocando como el<strong>em</strong>entos fundamentais de <strong>análise</strong> aquilo que Auroux (1992)<br />
chama de horizonte de projeção e horizonte de retrospecção, isto é, a constituição simultânea<br />
de um passado e um futuro do momento histórico que nos interessa a partir dos próprios<br />
textos analisados.<br />
Trazendo Auroux (1992), Chevalier e Delesalle (1986), Guimarães (2004, p. 11) nos<br />
adverte que “é preciso que uma história das ideias considere uma <strong>análise</strong> das obras específicas<br />
pertinentes, as instituições <strong>em</strong> que este saber se constitui e os acontecimentos que, nestas<br />
instituições, catalisam aspectos específicos da produção deste saber”.<br />
1<br />
Este artigo apresenta resultados parciais do Projeto de Pesquisa: “O QUE HÁ DE MATERNO NA LÍNGUA?<br />
Considerações sobre os sentidos de língua materna no processo de gramatização brasileira nos séculos XIX e<br />
XX”, com financiamento FAPESP, processo n. 2009/13489-2, sob orientação da Profª. Drª. Carolina María<br />
Rodríguez Zuccolillo.<br />
93
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Considerando que uma história das ideias linguísticas envolve – de forma não somatória<br />
– as instituições, os acontecimentos e as obras, admitimos que, <strong>em</strong> nosso trabalho,<br />
atentar<strong>em</strong>os as obras, especificamente, no nosso caso, escritos da Idade Média <strong>em</strong> que<br />
figuram os primeiros registros conhecidos da expressão língua materna.<br />
Atribuir à primeira língua que se aprende o nome de língua materna, caracterizando<br />
essa língua como aquela que se tira da mãe, pode parecer um gesto banal, até mesmo<br />
esperado. No entanto, para questionar essa evidência, é necessário atentar-se a dois fatos. Em<br />
primeiro lugar, não se encontram, no Ocidente, registros da expressão língua materna antes<br />
do século XII. Em segundo lugar, mesmo que a expressão esteja ligada a sentidos como<br />
primeira língua, língua da terra-mãe, língua das origens, esses sentidos foram constituídos<br />
<strong>em</strong> certas condições de produção e <strong>em</strong> certos espaços, que se transfiguram, se tornam outros<br />
e, por isso mesmo, depõ<strong>em</strong> contra qualquer sentido literal ou natural que se queira atribuir à<br />
expressão.<br />
Consideramos plausível, <strong>em</strong>bora limitante, a associação entre língua materna e mãe, e<br />
por extensão, mulher. Essa associação está posta no termo materno, isto é, o próprio<br />
significante materno permitiria estabelecer essa relação. Segundo Tombeur (2005),<br />
maternidade, da qual se deriva o adjetivo materna, só b<strong>em</strong> recent<strong>em</strong>ente passou a ser<br />
associada à figura da mulher. O primeiro registro do substantivo maternitas (“maternidade”) é<br />
<strong>em</strong> uma tradução feita a partir do grego por Jean Scot, por volta do ano de 858 da era cristã. O<br />
termo original grego mètris,-idos, encontrado nas obras de Platão e Plutarco, tinha o sentido<br />
de terra natal, estando <strong>em</strong> paralelo com patris,-idos, dos ancestrais, terra dos ancestrais,<br />
pátria. Desconhecida sob a forma latina até o século VII, e, nesse momento, com o sentido de<br />
terra natal, maternitas, raramente <strong>em</strong>pregado, reaparece no século XII, com o sentido de<br />
qualidade de uma igreja catedral, maternidade espiritual da Igreja. É para evocar a<br />
maternidade de Maria que maternitas vai aparecer nas obras de Jean de Würzburg, Tomás de<br />
Aquino e Raimundo Lúlio, grandes pensadores medievais.<br />
Com efeito, por meio da atribuição do significante mãe ou maternal ao significante<br />
língua, reverberam muitos sentidos: fala infantil, linhag<strong>em</strong> sanguínea, clã, oralidade,<br />
território, comunidade, povo, línguas regionais e nacionais, nação. A expressão língua<br />
materna se espalha por toda Europa medieval a partir do século XII d.C. Antes desse período,<br />
há apenas um único registro de tal denominação, nas Metamorfoses, de Ovídio, onde se lê:<br />
illic inmeritam maternae pendere linguae, Andromedan poenas iniustus iusserat Ammon,<br />
tratando-se, nesse caso, não de língua, mas de fala, pois, na Antiguidade Clássica, eram os<br />
significantes lingua propria, lingua nativa, lingua sua ou nativa lingua que se <strong>em</strong>pregavam<br />
para nomear a primeira língua, sentido hoje atribuído à língua materna. Da mesma forma,<br />
quando se queria nomear a língua da tradição, das origens, outro sentido atribuído à língua<br />
materna, o termo <strong>em</strong>pregado era sermo patrius (língua do pai). Esta era a língua falada <strong>em</strong><br />
Roma: o sermo patrius (ou lingua patria), o latim, língua na qual eram feitas a liturgia, as<br />
gramáticas, os tratados de lógica e retórica, b<strong>em</strong> como as diversas atividades intelectuais e<br />
científicas.<br />
2) Os primeiros registros da expressão língua materna<br />
Exist<strong>em</strong> duas hipóteses sobre o surgimento da expressão língua materna na Idade<br />
Média: a de Batany (1982) e a de Grondeux (2008). Para os dois autores, lingua materna é<br />
94
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
formada a partir de sermo patrius. Eles discordam, no entanto, justamente na orig<strong>em</strong> de sermo<br />
patrius.<br />
Grondeux (2008) afirma que Guiberto de Nogent foi leitor de Ovídio, e nesse último<br />
pode ter encontrado a expressão maternae linguae, a partir da qual cria a expressão sermo<br />
maternus, locução mais próxima do antigo sermo patrius. Dessa forma, sermo maternus<br />
estaria ligada à expressão latina sermo patrius tal como <strong>em</strong>pregada nos textos antigos.<br />
Para Batany (1982), os cleros medievais recuperam o léxico clássico patrius sermo, sob<br />
a forma patria voce 2 , do livro de Macabeus, já que escritores como Lucrécio e Propércio<br />
seriam pouco lidos na Idade Média. Há cinco registros da expressão patria voce no segundo<br />
livro de Macabeus (VII, 8, 21, 27; XII, 37; XV, 29) e nenhum registro no primeiro livro.<br />
Reproduzimos abaixo os trechos 3 :<br />
at ille respondens patria voce dixit non faciam propter quod et iste sequenti<br />
loco primi tormenta suscepit (Mc2 VII, 8)<br />
“Ele, porém, na língua de seus pais, respondeu: “não!” Por isso, foi<br />
também submetido aos mesmos tormentos que o primeiro.”<br />
singulos illorum hortabatur patria voce fortiter repleta sapientia et<br />
f<strong>em</strong>ineae cogitationi masculinum animum inserens (Mc2 VII, 21)<br />
“A cada um deles exortava na língua de seus pais, cheia de nobres<br />
sentimentos, animado com ardor viril o seu raciocínio de mulher. E lhes<br />
dizia:.”<br />
itaque inclinata ad illum inridens crudel<strong>em</strong> tyrannum ait patria voce fili mi<br />
miserere mei quae te in útero dec<strong>em</strong> menses portavi et lac triennio dedi et<br />
alui et in aetat<strong>em</strong> istam perduxi (Mc2 VII, 27)<br />
“Inclinou-se para este e, ludibriando o cruel tirano, assim falou na língua de<br />
seus pais: “Filho, t<strong>em</strong> compaixão de mim, que por nove meses te trouxe <strong>em</strong><br />
meu seio e por três anos te amamentei, alimentei-te e te eduquei até esta<br />
idade, provendo s<strong>em</strong>pre ao teu sustento.”<br />
Incipiens voce patria et cum hymnis clamor<strong>em</strong> extollens fugam Gorgiae<br />
militibus incussit (Mc2 XII, 37)<br />
“A Seguir, entoando o grito de guerra com hinos na língua paterna,<br />
arr<strong>em</strong>essou de surpresa contra os homens de Górgias, constrangendo-os à<br />
retirada.”<br />
facto itaque clamore et perturbatione suscita patria voce omnipotent<strong>em</strong><br />
Dominum benedicebant (Mc2 XV, 29)<br />
“Seguiu-se um clamor confuso, enquanto, na língua de seus pais,<br />
bendiziam o Soberano.”<br />
Para os leitores da Idade Média e do século XVII, patria voce significava “<strong>em</strong> hebraico”<br />
(Batany, 1982). Em duas dessas passagens (Mc2 VII, 21 e Mc2 VII, 27), o portador da patria<br />
voce é uma mulher, uma mãe que encoraja seus sete filhos durante seu martírio. Com “o seu<br />
2 O que, segundo Batany (1982), situaria o probl<strong>em</strong>a no nível da fala e não da língua.<br />
3 As traduções são da Bíblia de Jerusalém.<br />
95
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
raciocínio de mulher”, essa mãe judia exorta cada um dos seus filhos “na língua dos seus<br />
pais”, muito <strong>em</strong>bora, as mães judias, no t<strong>em</strong>po de Antíoco, falass<strong>em</strong> à sua prole mais <strong>em</strong><br />
aramaico do que <strong>em</strong> hebraico (Batany, 1982). Gritos de guerra também eram entoados <strong>em</strong><br />
“língua paterna” (Mc2 XII, 37). Embora de guerra, os hinos entoados tinham caráter litúrgico<br />
e, por isso mesmo, deviam ser pronunciados <strong>em</strong> hebraico. Em Macabeus, portanto, patria<br />
voce é a maneira de nomear a língua sagrada, o hebraico.<br />
No século II d.C, confome nos diz Lespchy (2001), o hebraico já havia sido substituído<br />
pelo aramaico como língua falada. Na modalidade de língua escrita, o hebraico permanece<br />
como língua escrita, b<strong>em</strong> como língua sagrada da Bíblia (Lespchy, 2001) – mas não durante<br />
muito t<strong>em</strong>po, pois, na Idade Média, os ocidentais não conheciam outro veículo para a Bíblia<br />
além do latim (Lobrichon, 2006). Lespchy (2001) compara o uso do hebraico ao do latim, no<br />
sentido de que ele não era uma língua morta, sendo <strong>em</strong>pregado como língua literária, mas não<br />
como língua materna.<br />
Macabeus, escrito originalmente <strong>em</strong> grego por volta de 160 a.C. por certo Jasão de<br />
Cirene, comportaria, segundo Batany (1982), um modelo moral inspirado <strong>em</strong> Esparta e Roma,<br />
aliado àquele dos judeus. Dessa forma, patria voce, a ex<strong>em</strong>plo do sermo patrius para o latim<br />
dos romanos, nomearia o hebraico como língua da tradição patriótica (Batany, 1982). No<br />
entanto, na situação cultural da Alta Idade Média, a noção de pátria se conservou apenas nas<br />
marchas da cristandade (Batany, 1982). Assim, o mesmo clero que recupera patria voce do<br />
texto bíblico não deixa de dar ao vocábulo patrius um sentido religioso: o Pai celeste, a<br />
comunidade do Pai Celeste. Da maneira s<strong>em</strong>elhante, também não deixam de dar à expressão<br />
sermo patrius um sentido religioso: a língua do Pai celeste, a língua da Igreja, a língua das<br />
escrituras.<br />
Apesar das diferenças apontadas, Batany (1982) e Grondeux (2008) concordam que, na<br />
Idade Média, a expressão língua materna é forjada a partir de sermo patrius, forma de nomear<br />
o latim. No período medieval, esse sermo patrius será a língua da Igreja e, dado o lugar que<br />
ela ocupa na sociedade, também da cultura e da ciência. O sermo patrius é assim a língua de<br />
uma comunidade universal organizada <strong>em</strong> torno do papado. Descrev<strong>em</strong>os abaixo o caminho<br />
da Igreja a esse lugar de destaque na Idade Média.<br />
Le Goff (2006) afirma que, na Idade Média, a noção de centro e a oposição<br />
centro/periferia são menos decisivas do que o sist<strong>em</strong>a de orientação espacial que opõe o baixo<br />
ao alto, isto é, a terra dos homens pecadores, e o Céu, morada de Deus: Deus não está no<br />
centro, mas acima dele, assim, “o movimento mais proveitoso para o hom<strong>em</strong> não é aquele que<br />
lhe permite chegar ao centro, mas aquele que, especialmente por meio da prece, eleva-o <strong>em</strong><br />
direção a Deus e o faz atingir sua salvação, que se situa no Paraíso celeste” (p. 203). Deus não<br />
é o centro, mas o norte, para o qual a humanidade deve caminhar. Se Deus é o norte, a Igreja é<br />
a bússola. É ela qu<strong>em</strong>, na qualidade de administradora da fé, conduz a humanidade à salvação,<br />
é ela qu<strong>em</strong> aponta o Norte.<br />
No século V, o papa Gilásio I efetua a divisão entre a auctoritas sacrata pontificum<br />
(“autoridade santa dos pontífices”) e a regalis potestas (“pode real”). À Igreja reserva-se o<br />
lugar de depositário da fé. Em matéria de religião, ninguém está acima dela. Mesmo o<br />
imperador, cujo poder era de orig<strong>em</strong> divina, devia se submeter ao bispo de Roma:<br />
Para os sacerdotes (“padres”), <strong>em</strong> geral, e para o bispo de Roma, <strong>em</strong><br />
particular, Gelásio I contentou-se <strong>em</strong> reivindicar um campo de ação<br />
claramente determinado no qual o prelado supr<strong>em</strong>o pudesse colocar-se<br />
96
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
como guardião do que, segundo uma expressão paulina retomada no século<br />
XVI, seria definida como o depositum fidei (“depósito da fé”). Mesmo o<br />
imperador não tinha o direito invadir as atribuições nesse domínio<br />
reservado. (Arnaldi, 2006, p. 569)<br />
Se a religião devia ser matéria exclusiva da Igreja, a “organização da disciplina pública”<br />
(cf. Arnaldi, 2006) cabia ao imperador. A princípio, mesmo os mais altos m<strong>em</strong>bros do clero<br />
deviam se submeter às leis do Império. Todavia, ao longo dos séculos IV e V, foram<br />
atribuídos aos bispos numerosos poderes t<strong>em</strong>porais. O episcopado católico integra-se à<br />
organização burocrática do Império e, como mostra a falsa Doação de Constantino, passa a<br />
reivindicar o legado desse Império. A Doação de Constantino foi um documento falso<br />
redigido <strong>em</strong> Roma no pontificado de Paulo I (757-767). Segundo esse documento,<br />
Constantino (306-337) havia cedido ao papa Silvestre I e a seus sucessores o Palácio de<br />
Latrão, a cidade de Roma e todas as províncias, regiões e cidades da Itália e de todo o<br />
Ocidente, b<strong>em</strong> como os el<strong>em</strong>entos constitutivos do cerimonial imperial, a fim de promover o<br />
primado do papa, permitindo, assim, a construção de uma “monarquia papal” (Arnaldi, 2006).<br />
O estabelecimento da doutrina dos dois poderes e a falsa Doação de Constantino são<br />
dois episódios que d<strong>em</strong>onstram b<strong>em</strong> o lugar que a Igreja pretendia ocupar “no mundo<br />
imperfeito e marcado pelo Pecado Original” (cf. LE GOFF, 2006). Pod<strong>em</strong>os acrescentar a<br />
eles o sermão dirigido a Roma pelo papa Leão I (440-461) às vésperas da queda do Império<br />
Romano do Ocidente:<br />
Foram eles [o apóstolo Pedro e o apóstolo Paulo, este também martirizado e<br />
sepultado <strong>em</strong> Roma] que o elevaram a essa glória, de modo que [...], tornada<br />
capital do mundo na qualidade de sede do b<strong>em</strong>-aventurado Pedro, pudesses,<br />
apoiando-se na religião divina, governar um espaço muito mais amplo do<br />
que o apoiasse na dominação terrestre. Na verdade, ainda que [...] tenha<br />
estendido sobre a terra e sobre o mar a lei do seu império, o que você<br />
submeteu pelo esforço guerreiro é menor do que o que foi submetido pela<br />
paz de Cristo. (apud Arnaldi, 2006, p. 570-571)<br />
O desejo se cumpriu: A Igreja consegue chegar à Idade Média como a força mais<br />
poderosa da história. Segundo Barlett (2010), dizer que a Idade Média foi época religiosa não<br />
reflete b<strong>em</strong> a realidade: a Igreja não era uma associação de indivíduos com interesse comum,<br />
juntos por escolha. Ela era o próprio arcabouço da sociedade. Como intermediários de Deus,<br />
os padres ministravam os sacramentos, marcando as fases mais importantes na jornada do<br />
nascimento à morte. Apesar dos casos de corrupção e fraude, a influência da Igreja sobre a<br />
mente medieval permaneceu forte. A palavra da Igreja era a palavra de Deus. Ela podia<br />
absolver os pecados, proteger contra Satanás e enviar alguém para a guerra contra o Islã, cujos<br />
ensinamentos se tinham espalhado por locais como a China e a Espanha, e cujos exércitos<br />
sitiaram a cidade de Jerusalém<br />
Na crônica das guerras santas, encontramos o primeiro registro da expressão língua<br />
materna na Idade Média. Guiberto de Nogent, no seu relato da primeira cruzada, Gesta Dei<br />
per Francos (1104-1108), opõe materno sermone a litterali eloquentiae e latinae locutionis,<br />
afirmando a respeito do papa Urbano II:<br />
eius enim scientiae litterali eloquentiae cooperabatur agilitas, non enim<br />
minor ei videbatur in Latinae prosecutione locutionis ubertas quam forensi<br />
cuilibet potest esse in materno sermone pernicitas.<br />
97
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
“O domínio que ele tinha de sua cultura des<strong>em</strong>penhou um papel importante<br />
na sua capacidade de falar a eloquência literária. Parecia realmente que<br />
nenhum leigo poderia ter, <strong>em</strong> sua língua materna, tanta facilidade, como o<br />
Papa tinha na prática da locução latina. 4 ”<br />
Guibert de Nogent foi leitor de Ovídio e nesse último pode ter encontrado a expressão<br />
maternae linguae, a partir da qual cria a expressão sermo maternus, locução mais próxima do<br />
antigo sermo patrius (Grondeux, 2008). No texto de Nogent, há uma associação entre litterali<br />
eloquentiae (“eloquência literária”) e latinae locutiones (“locução latina”), e uma oposição<br />
entre essa série e o materno sermone (“língua materna”). Assim, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a<br />
locução latina é a eloquência literária¸ a locução latina e a eloquência literária não são a<br />
língua materna. O sermo maternus, segundo Nogent, é praticado pelos leigos, que, na divisão<br />
da sociedade medieval, não faziam parte do corpo da Igreja, ao passo que é justamente o papa<br />
Urbano II, líder da Igreja, qu<strong>em</strong> pratica a litterali eloquentiae, a latinae locutionis. A<br />
distinção entre clero e leigos está na base da sociedade medieval. Segundo Jean-Claude<br />
Schmitt:<br />
De natureza inicialmente religiosa, já que ela se refere aos diferentes<br />
estatutos e funções no interior da ecclesia entendida como a reunião de<br />
todos os cristãos, esta distinção atinge na realidade todo o funcionamento da<br />
sociedade: ela concerne estatutos jurídicos, formas de cultura, modos de<br />
vida distintos. Ela é ainda mais fundamental na medida <strong>em</strong> que tende a<br />
aplicar aos homens uma divisão b<strong>em</strong> mais geral que caracteriza todas as<br />
representações do mundo cristão: entre o espiritual e t<strong>em</strong>poral, sagrado e<br />
profano e, <strong>em</strong> suma, entre Deus e os homens. (2006, p. 237)<br />
O sermo maternus marca uma diferença não apenas entre leigos e clero, mas,<br />
principalmente, entre homens e Deus. Na verdade, a criação do termo sermo maternus já é<br />
uma manifestação dessa diferença. Explicamos: são aqueles que <strong>em</strong>pregam a latinae<br />
locutionis que cunham a expressão sermo maternus, são aqueles que <strong>em</strong>pregam o latim que<br />
traçam uma distinção entre essa língua e aquela chamada materna. A expressão aparece <strong>em</strong><br />
latim, nos textos de m<strong>em</strong>bros da Igreja, para nomear tudo aquilo que não é latim. Como não<br />
existe, no pensamente medieval, o “fora da Igreja”, a distinção entre latim e língua materna<br />
marca uma diferença entre modos de vida, proximidade com Deus, instrução, acesso à escrita,<br />
entre outros.<br />
Ao falarmos <strong>em</strong> “proximidade com Deus”, estamos pensando <strong>em</strong> questões como leitura<br />
e interpretação das Escrituras, administração da Igreja e de um espaço universal criado <strong>em</strong><br />
torno do poder papal. Assim, seriam, nesses termos, mais próximos de Deus aqueles que<br />
pod<strong>em</strong> ler a palavra de Deus, de explicar a palavra de Deus, de falar – pela Igreja – por Deus.<br />
Poder ler e explicar a palavra de Deus, e assim falar por Ele, está diretamente ligado à<br />
intimidade com a escrita. Lê-se e explica-se, cada vez menos, a palavra de Deus <strong>em</strong> latim.<br />
Perdido enquanto fala natural, o acesso ao latim se dá pelo aprendizado nos bancos das<br />
escolas medievais. Nessas escolas, os instrumentos pedagógicos por excelência, conforme<br />
Lusignan (1987), são o livro e a gramática latina. Destarte, a proximidade com Deus de que<br />
falamos se dá pela familiaridade com a escrita.<br />
4 A partir de agora, todas as traduções são nossas.<br />
98
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
No Gesta Dei per Francos de Guibert de Nogent, o sermone materno seria mais fácil do<br />
que a latinae locutiones, afinal, ele afirma que “nenhum leigo poderia ter, <strong>em</strong> sua língua<br />
materna, tanta facilidade, como o papa tinha na prática da locução latina”, ou seja, o papa<br />
tinha mais facilidade na prática da locução latina do que o leigo tinha facilidade na prática da<br />
sua língua materna, mas não porque a locução latina fosse mais fácil do que a linguag<strong>em</strong><br />
materna. Pelo contrário, é que Urbano II seria tão sapiente, que, mesmo no <strong>em</strong>prego da<br />
locução latina, ainda que mais difícil – afinal é ela a eloquência literária, aprendida através<br />
do domínio de uma cultura pautada na escrita –, ele teria mais facilidade de se expressar do<br />
que o leigo quando <strong>em</strong>prega sua língua materna. Para Guibert de Nogent, seria esperado o<br />
contrário, isto é, que o leigo tivesse mais facilidade de se expressar, afinal o leigo fala a<br />
língua materna, mais fácil, aprendida s<strong>em</strong> o intermédio da escrita e tudo aquilo que v<strong>em</strong> junto<br />
com ela.<br />
Em Nogent, t<strong>em</strong>os, de um lado, a facilidade da língua materna, língua dos leigos; de<br />
outro, a laboriosa língua do papa, por conseguinte da Igreja, a eloquência literária, a língua<br />
latina, enfim, o latim, ao qual a escrita era associada, estando, por sua vez, as práticas da<br />
escrita – e da leitura –sob o controle da Igreja. Levamos aqui <strong>em</strong> consideração a afirmação de<br />
Auroux (1992), segundo a qual não haveria oposição, mas circulação entre o latim e os<br />
vernáculos. Dessarte, a narrativa de Guibert de Nogent nos mostra que latim e vernáculos são<br />
enxergados e avaliados de maneiras b<strong>em</strong> diferentes.<br />
Ainda que a fragmentação do Império Romano tenha provocado “o desaparecimento do<br />
papel vernacular do latim e o aparecimento das línguas neolatinas”, (Auroux, 1992, p. 41), ele<br />
permanece por séculos como língua da administração, da cultura intelectual e da vida<br />
religiosa. Por toda a Idade Média, “vai subsistir um equilíbrio entre um latim – cada vez mais<br />
abstrato, objeto de uma gramática teórica – língua conceptualmente sofisticada do saber<br />
letrado, do poder e da religião, e vernáculos que se aprend<strong>em</strong> na prática da vida” (Auroux,<br />
1992, p. 46).<br />
A Igreja, ciente do desaparecimento do papel vernacular do latim, intervém para que a<br />
pregação não se restringisse a essa língua. Sermon<strong>em</strong> facit materna lingua ad intelligendum<br />
omnibus (“Que o sermão se faça <strong>em</strong> língua materna para ser entendido por todos”), consta no<br />
Coutumier de Springierbach-Rolduc (1123-1128). Para ser entendido por todos, o sermão<br />
deve ser feito, não <strong>em</strong> latim, mas <strong>em</strong> materna lingua, <strong>em</strong> língua materna, no vernáculo.<br />
Estamos diante de uma tensão: enquanto o latim é a língua da comunidade universal<br />
reunida <strong>em</strong> volta do papado, a língua materna é cada vez mais usada para pregar a palavra de<br />
Deus. Todavia, a língua materna não substituirá o latim como veículo para a pregação. O Pai<br />
celeste fala através da Igreja <strong>em</strong> latim, mas sua mensag<strong>em</strong> é traduzida <strong>em</strong> língua materna por<br />
essa mesma Igreja. Fala-se <strong>em</strong> latim, traduz-se <strong>em</strong> língua materna.<br />
No relato de Hesso sobre Concílio de Reims (1119), durante muito t<strong>em</strong>po considerado o<br />
registro mais antigo da expressão língua materna, encontramos novamente uma polarização:<br />
de um lado a língua materna, de outro o latim. Mais uma vez, a necessidade de traduzir a<br />
palavra de Deus:<br />
Quod cum prudenter episcopus Ostiensis perorasset, iterum Catalaunensis<br />
episcopus ex praecepto domni papae hoc id<strong>em</strong> clericis et laicis materna<br />
lingua exposuit.<br />
“Depois de o bispo de Ostia ter discursado com prudência, novamente o<br />
99
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
bispo de Catalunha, conforme ordenado pelo papa, repetiu a mesma coisa<br />
aos clérigos e aos leigos na lingua materna”.<br />
Se antes, a língua materna era associada aos leigos enquanto o latim era associado ao<br />
clero, agora, ao lado dos leigos, o clero é caracterizado pelo uso da língua materna e pelo não<br />
uso do latim, de forma que a tradução do latim para a língua materna é também direcionado<br />
ao clero, ou parte dele. A relação entre clero e latim/língua materna é b<strong>em</strong> mais complexa do<br />
que aquela que conseguimos expor no espaço limitado deste artigo.<br />
A língua vernácula ocupou um lugar importante na comunicação no interior do clero.<br />
De forma s<strong>em</strong>elhante, o próprio aprendizado do latim na Idade Média é intermediado pelos<br />
vernáculos (Lusignan, 1987). De qualquer forma, como vimos, a materna lingua era posta <strong>em</strong><br />
oposição ao latim, e a esse último estava associada a escrita, sendo, por sua vez, as práticas da<br />
escrita – e da leitura – controladas pela Igreja.<br />
O latim era língua da cultura letrada de uma diminuta parte da população e, como diz<br />
Auroux (1992, p. 46), ele “estará <strong>em</strong> perigo desde que atividades sociais tom<strong>em</strong> importância,<br />
as quais, reclamando-se escritura e técnicas intelectuais, formarão uma esfera estranha à<br />
Igreja (o comércio)”. Nesse momento, novas redes de sentido são estabelecidas quando se fala<br />
de língua materna.<br />
3) A expressão língua materna nas línguas maternas<br />
Quando o acesso direto aos textos sagrados torna-se uma realidade, pela Reforma, a<br />
palavra de Deus, antes <strong>em</strong> latim, pode ser não apenas ouvida, mas lida <strong>em</strong> língua materna.<br />
Novamente, outra reorganização das redes de sentido, porque a lingua materna também passa<br />
a ser portadora da palavra sagrada. E mais, língua materna passa a ser dita <strong>em</strong> língua materna,<br />
melhor dizendo, a língua materna diz língua materna e não simplesmente é dita <strong>em</strong> latim –<br />
Dante, por ex<strong>em</strong>plo, usará parlar materno na sua obra maior, a Divina Comédia. E mais: a<br />
expressão começa a ser usada pelos leigos, aparecendo <strong>em</strong> textos de intelectuais que não<br />
faziam necessariamente parte do clero.<br />
Em Dante Alighieri, no seu tratado De vulgari eloquentia (1302-1305), aparec<strong>em</strong><br />
materno locutio e materna vulgare, ambos <strong>em</strong> oposição à gramática, considerada artificial, e<br />
por isso menos nobre do que a língua materna, considerada natural. No tratado dantesco, <strong>em</strong><br />
um primeiro momento, língua vulgar aparece <strong>em</strong> oposição à gramática:<br />
I. 2. Sed quia unamquanque doctrinam oportet, non probare, sed suum<br />
aperire subiectum, ut sciatur quid sit super quod illa versatur, dicimus<br />
celeriter attendentes quod vulgar<strong>em</strong> locution<strong>em</strong> appellamus eam quam<br />
infantes adsuefiunt ab adsistentibus, cum primitus distinguere voces<br />
incipiunt; vel quod brevius dici potest, vulgar<strong>em</strong> locution<strong>em</strong> asserimus,<br />
quam sine omni regula, nutric<strong>em</strong> imitantes, accipimus. 3. Est et inde alia<br />
locutio secundaria nobis, quam Romani gramaticam vocaverunt. Hanc<br />
quid<strong>em</strong> secundariam Greci habent et alii, sed non omnes. Ad habitum vero<br />
huius pauci perveniunt, quia non nisi per spatium t<strong>em</strong>poris et studii<br />
assiduitat<strong>em</strong> regulamur et doctrinamur in illa.<br />
I. 2. Porém, não sendo preciso provar cada doutrina, mas esclarecer a sua<br />
ideia, para que todos saibam do que se trata, diz<strong>em</strong>os, de imediato<br />
100
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
reagindo, que chamamos língua vulgar a que as crianças aprend<strong>em</strong> com<br />
seus familiares, tão logo balbuciam as primeiras palavras: ou, abreviando,<br />
chamamos de vulgar a linguag<strong>em</strong> que adquirimos s<strong>em</strong> nenhuma regra,<br />
apenas imitando a ama. 3. Também existe uma outra linguag<strong>em</strong>, para nós<br />
secundária, que os Romanos chamam de "gramática". Também os Gregos e<br />
outros, mas não todos, possu<strong>em</strong> esta linguag<strong>em</strong> secundária; mas poucos<br />
consegu<strong>em</strong> habituar-se a ela, pois somente o t<strong>em</strong>po e a assiduidade no<br />
estudo nos preparam para ela, e desta forma a aprend<strong>em</strong>os.<br />
Logo <strong>em</strong> seguida, língua materna aparece como aposto de língua vulgar, logo, também<br />
<strong>em</strong> oposição à gramática e seu caráter artificial:<br />
VI. 2. In hoc, sicut etiam in multis aliis, Petramala civitas amplissima est, et<br />
patria maiori parti filiorum Adam. Nam, quicunque tam obscene rationis est<br />
ut locum sue nationis delitiosissimum credat esse sub sole, hic etiam pre<br />
cunctis proprium vulgare licetur, idest maternam locution<strong>em</strong>, et per<br />
consequens credit ipsum fuisse illud quod fuit Ade.<br />
VI. 2. Nesta coisa e <strong>em</strong> muitas outras, a mui extensa cidade de Petramala é<br />
a pátria para a maioria dos filhos de Adão. Pois ninguém, mesmo aquele<br />
dotado de uma vil razão, julga haver lugar mais delicioso sob o sol do que<br />
a terra onde nasceu; mesmo a este, entre os d<strong>em</strong>ais, será lícito o uso da<br />
língua vulgar, isto é, a língua materna; e por isso cr<strong>em</strong>os ter sido esta a<br />
que Adão utilizou.<br />
No tratado de Dante, a gramática, que não seria possuída por todos, é caracterizada<br />
como secundária, sendo necessária uma preparação para seu aprendizado. A gramática, assim,<br />
seria aprendida apenas por meio do estudo, ao passo que a língua materna, língua dada por<br />
Deus, seria aquela adquirida s<strong>em</strong> regras, s<strong>em</strong> o intermédio do estudo, por meio de imitação,<br />
no seio da família. De um lado, uma língua dada por Deus, aprendida por imitação no meio<br />
familiar, a língua materna, de outro uma língua aprendida por meio de estudos e, nesse<br />
sentido, artificial, a gramática.<br />
Por fim, língua materna aparece <strong>em</strong> oposição ao vulgar ilustre:<br />
XIV. 7. Inter quos omnes unum audivimus nitent<strong>em</strong> divertire a materno et ad<br />
curiale vulgare intendere, videlicet Ildebrandinum Paduanum.<br />
XIV. 7. Dentre estes, somente um vimos que procurava se afastar da linguag<strong>em</strong><br />
materna e utilizar o vulgar ilustre: Aldobrandino de Padua.<br />
Segundo Dante, a linguag<strong>em</strong> exige homens s<strong>em</strong>elhantes a ela. Dessa forma, o vulgar<br />
ilustre seria a língua falada pelos homens ilustres. Qu<strong>em</strong> são os homens ilustres? Para Dante,<br />
os poderosos e nobres e os poetas excelentes. Para esses, o vulgar ilustre, para todos os outros,<br />
a língua materna.<br />
Como parte do grande <strong>em</strong>preendimento de traduções de obras antigas na corte de Carlos<br />
V, Nicole de Oresme (1361) traduz para o francês as Éticas, de Aristóteles, e <strong>em</strong>prega a<br />
expressão langage commun et maternel, ao falar do latim. Agora, o latim é chamado, <strong>em</strong><br />
língua materna, língua materna.<br />
No manuscrito datado de 1488, posteriormente ao falecimento do tradutor, portanto,<br />
obra de algum copista, no lugar de maternel, aparece naturel, fazendo, como Dante, uma<br />
101
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
aproximação entre língua materna e língua natural, ou seja, o latim é uma língua materna na<br />
qualidade de uma língua natural, ou melhor, na condição de língua natural, o latim é uma<br />
língua materna.<br />
Tanto <strong>em</strong> Dante quanto <strong>em</strong> Nicole de Oresme, os sentidos de língua materna são<br />
atravessados pelos sentidos de natural. Essa relação repete-se de forma mais explícita <strong>em</strong><br />
Rabelais, na sua obra Gargantua e Pantagruel (1532-1552).<br />
Personagens de Rabelais, Pantagruel pergunta a Panurge se, além de dominar tantas<br />
línguas, falaria também o francês. Panurge responde:<br />
Si fais très bien, seigneur. Dieu merci, c'est ma langue naturelle et maternelle, car<br />
je suis né et ai été nourri jeune au jardin de France, c'est Touraine.<br />
Como v<strong>em</strong>os, <strong>em</strong> Rabelais – e a partir dele –, língua materna não está sendo<br />
estabelecida <strong>em</strong> relação ao latim, mas <strong>em</strong> relação a outros vernáculos. Panurge explica que<br />
t<strong>em</strong> o francês como língua materna e língua natural por ter nascido e ter sido nutrido nos<br />
jardins da França. Por oposição ao que é de fora, ao estrangeiro, e pela relação íntima com o<br />
lugar onde se nasce, se constitui a langue naturelle et maternelle de Panurge. Nessas<br />
condições, o francês não apenas é para ele língua materna, mas também língua natural.<br />
Não apenas nos textos dos intelectuais medievais aparece a expressão língua materna.<br />
A partir do século XV, na França, ela também aparecerá nos textos de lei. Na passag<strong>em</strong> de<br />
uma justiça oral e local a uma justiça nacional e escrita, as Ordenanças francesas de Montilles-Tours<br />
(1454), Moulins (1490), Villers-Coterêts (1539) impõ<strong>em</strong> que as operações jurídicas<br />
sejam postas por escrito.<br />
A Ordenança de Moulins abole en tout le pays de Languedoc o <strong>em</strong>prego do latim nas<br />
transcrições, determina que elas sejam redigidas “par escrit en langage François ou<br />
maternel” (“por escrito <strong>em</strong> linguag<strong>em</strong> francesa ou materna”), enquanto que a de Villers-<br />
Coterêts exige que todas as operações jurídicas sejam enregistrés et délivrés aux parties en<br />
langage maternel françois et non autr<strong>em</strong>ent (“registradas e divulgadas às partes <strong>em</strong><br />
linguag<strong>em</strong> materna francesa e não outra”).<br />
V<strong>em</strong>os nesses textos de lei o reconhecimento de que, para ser uma língua do Estado, é<br />
necessário prover a língua materna de escrita. Provida de escrita, a língua materna passa,<br />
evident<strong>em</strong>ente, a se relacionar de uma maneira diferente com o latim, assumindo espaços até<br />
então exclusivos a esse último. Essa virada, que vai se estabelecer no Renascimento, é<br />
justamente o que leva à gramatização dos vernáculos, como afirma Auroux (1992).<br />
4) Construindo uma hipótese<br />
Se na Antiguidade era o patrius sermo que os antigos usavam para exprimir sentidos<br />
como língua geral, língua comum, língua da tradição, é diante de patrius sermo que, <strong>em</strong> um<br />
duplo movimento, se forja a materna lingua: a partir da língua paterna, pensada enquanto<br />
estrutura, surge, a língua materna, um outro todo organizado, pois do latim nasc<strong>em</strong> os<br />
vernáculos. E, na medida <strong>em</strong> que latim e vernáculos são línguas diferentes e que o patrius<br />
sermo é, a um só t<strong>em</strong>po, uma língua e um discurso sobre a língua, da mesma forma, no<br />
confronto com o patrius sermo se ergue a materna lingua como língua e também como um<br />
discurso sobre a língua.<br />
102
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Se a produção de uma língua e a produção de conhecimento sobre essa língua são<br />
processos inseparáveis (Orlandi, 2001), no <strong>em</strong>ergir da expressão língua materna, novos<br />
sentidos – de língua(s) e de falante(s), mas não apenas – são estabelecidos, sentidos que se<br />
projetam sobre outros sentidos, constituindo, segundo Orlandi (2007, p. 54), “outras<br />
possibilidades dos sujeitos se subjetivar<strong>em</strong>”.<br />
A despeito do discurso sobre a língua paterna, o latim muda, e suas novas formas, à<br />
medida que começam a ser percebidas, são taxadas e receb<strong>em</strong> certos nomes, criando-se,<br />
finalmente, a expressão língua materna. Diante da língua do Pai¸ entre aqueles mais<br />
próximos e os mais afastados de Deus, há aqueles que falam por Deus e aqueles que ouv<strong>em</strong> o<br />
que Deus diz através da Igreja. Em suma, a Igreja fala por Deus <strong>em</strong> latim. Na língua materna,<br />
há a tradução da palavra de Deus. No latim, há a própria palavra de Deus, as gramáticas, os<br />
tratados de lógica e retórica, <strong>em</strong> suma, todas as atividades intelectuais e científicas que t<strong>em</strong><br />
como suporte a escrita. O espiritual e o t<strong>em</strong>poral, o que está ligado ao céu e o que está ligado<br />
à terra, o que permanece e o que muda. Deus e humanidade...<br />
Referências<br />
ALIGHIERI, D. Da linguag<strong>em</strong> vulgar. [S.L.]: eBooksBrasil, 1999.<br />
ARNALDI, G. Igreja e papado. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário t<strong>em</strong>ático do<br />
ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2006. V. 1. pp. 567-589<br />
AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.<br />
BARLETT, R. Inside de medieval mind. Londres: BBC, 2010. Programa de TV.<br />
BATANY. J . Oral/escrito. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário t<strong>em</strong>ático do<br />
ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2006. V. 1. pp. 383-395<br />
________. L’amère maternité du français medieval. Langue Française. Vol. 54, N. 1. pp. 29-39, 1982.<br />
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2. ed. São Paulo: Paulus Editora, 2002.<br />
GRONDEUX, A. La notion de langue maternelle et son apparition au Moyen Age. In: Zwischen Babel<br />
und Pfingsten / Entre Babel et Pentecôte, ed. Peter Von Moos, Zurich, Berlin, Lit Verlag, 2008. pp. 339-<br />
356<br />
GUIMARÃES, E. História da s<strong>em</strong>ântica: sujeito, sentido e gramática no Brasil. São Paulo: Pontes, 2004.<br />
HUYGENS, R.B. Guibert de Nogent, Dei gesta per Francos et cinq autres textes. Turnholti Brepols, 1996.<br />
JOURDAN. Récueil général des anciennees lois françaises. Paris: Belin-Leprieur, 1821. 29 v.<br />
LE GOFF, J. Centro/Periferia. In : In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário t<strong>em</strong>ático<br />
do ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2006. V. 1. pp. 201-217<br />
LEPSCGY, G. Mother tongues and literary languages. The Modern Language Review. V. 96. Nº 4 , 2001. p. 33-<br />
49.<br />
103
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
LOBRICHON, G. Bíblia. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Org.). Dicionário t<strong>em</strong>ático de<br />
ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2006. pp. 105-117<br />
LUSIGNAN, S. Parler vulgair<strong>em</strong>ent: les intellectuels et la langue française aux XIIIe et XIVe siécles. 2. ed.<br />
Paris, Librairie philosophique J. Vrin, 1987.<br />
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas, Pontes, 2007<br />
ORLANDI, E. P.; GUIMARÃES, E. Formação de um Espaço de Produção Linguística: a gramática no Brasil.<br />
In. Orlandi, P. Eni História das Idéias linguísticas: construção do saber metalinguístico e constituição da íngua<br />
nacional. Mato Grosso, Pontes, 2001. p. 7-19<br />
RABELAIS, F. Gargantua et Pantagruel. Paris: Bibliotéque Larousse, 1913.<br />
SCHMITT. J. C. Clérigos e leigos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário t<strong>em</strong>ático<br />
do ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2006. V. 1. pp. 237-251<br />
TOMBEUR, P. Maternitas dans la tradition latine. CLIO. Histoire, f<strong>em</strong>mes et sociétés, Toulouse, N. 21.<br />
pp. 1-6, jun. 2005, disponível <strong>em</strong> acesso <strong>em</strong>: 28 de abril de 2010.<br />
104
A influência de Darwin na <strong>teoria</strong> linguística como um prelúdio às<br />
abordagens “evolucionárias” no século 21<br />
William A. Pickering (UNIICAMP) 1<br />
RESUMO: Analogias entre fenômenos biológicos e linguísticos eram comuns no século XIX, mas a lingüística<br />
cont<strong>em</strong>porânea geralmente t<strong>em</strong> rejeitado tais analogias, considerando-as inadequadas. No entanto, nas últimas<br />
décadas, o atual consenso t<strong>em</strong> sido contestado por proponentes de abordagens "evolucionárias" da linguag<strong>em</strong>,<br />
baseadas na biologia cont<strong>em</strong>porânea ou na <strong>teoria</strong> de sist<strong>em</strong>as complexos. Neste contexto, este trabalho se propõe<br />
analisar as analogias biológicas encontradas nos trabalhos de vários lingüistas pro<strong>em</strong>inentes dos séculos XIX e<br />
XX, com o intuito de fornecer uma perspectiva possível para a avaliação de pesquisas atuais. No século XIX,<br />
discutir<strong>em</strong>os como as <strong>teoria</strong>s de mudança lingüística de Schleicher, Müller, Paul e Jespersen foram todas<br />
influenciadas por Darwin. Nas primeiras décadas do século XX, ver<strong>em</strong>os como Boas e Sapir, vigorosos<br />
oponentes do conceito de “línguas primitivas”, <strong>em</strong> diferentes momentos pensaram seriamente na possibilidade<br />
de que a mudança lingüística poderia ser análoga à evolução biológica. Bloomfield, mesmo com reservas,<br />
aceitou a <strong>teoria</strong> de Jespersen sobre o progresso lingüístico. Mais tarde, Jakobson sugeriu analogias entre a<br />
linguag<strong>em</strong> e o código genético. Em contrapartida, desde a Segunda Guerra Mundial, o consenso entre lingüistas<br />
(por ex<strong>em</strong>plo, Greenberg e Labov) t<strong>em</strong> sido o de que a mudança lingüística não seria análoga à seleção natural e<br />
não manifestaria um progresso. Ao cotejar os autores aqui mencionados e suas idéias, conclui-se que a influência<br />
de Darwin sobre a <strong>teoria</strong> da mudança lingüística é mais profunda do que comumente se acredita, e que as<br />
abordagens cont<strong>em</strong>porâneas evolutivas estão reabrindo perguntas que foram importantes <strong>em</strong> toda a história da<br />
Lingüística, especificamente perguntas sobre o papel dos conceitos de seleção natural, progresso e teleologia na<br />
teorização lingüística.<br />
1) Introdução<br />
Embora as analogias entre os fenômenos biológicos e lingüísticos foss<strong>em</strong> comuns no<br />
século XIX, a lingüística cont<strong>em</strong>porânea t<strong>em</strong>, grosso modo, rejeitado tais analogias,<br />
considerando-as inadequadas. Nos últimos quinze anos, no entanto, lingüistas de várias áreas<br />
especializadas têm proposto <strong>teoria</strong>s sobre a mudança lingüística baseadas <strong>em</strong> analogias com a<br />
seleção natural darwiniana, enquanto outros investigadores têm tentado explicar a mudança<br />
lingüística através da <strong>teoria</strong> de sist<strong>em</strong>as complexos (também chamada de <strong>teoria</strong> de<br />
complexidade, <strong>teoria</strong> do caos, ou <strong>teoria</strong> de auto-organização). Entretanto, a aplicação dessas<br />
idéias "evolucionárias" <strong>em</strong> lingüística implica noções de progresso e de adaptação de línguas<br />
que contradiz<strong>em</strong> aquilo que t<strong>em</strong> sido o consenso geral na área desde a década de 1940.<br />
Neste contexto, o presente trabalho examina as idéias de vários lingüistas<br />
pro<strong>em</strong>inentes que, entre a publicação da Orig<strong>em</strong> das Espécies de Charles Darwin, <strong>em</strong> 1859, e<br />
o advento da lingüística Chomskiana, na década de 1960, abordaram as s<strong>em</strong>elhanças entre a<br />
mudança lingüística e a evolução biológica 2 . Do ponto de vista estrutural, este artigo se<br />
organiza <strong>em</strong> três seções. A seção 2 do presente artigo trata do século XIX e traz uma<br />
1<br />
Doutor <strong>em</strong> lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2010.<br />
2<br />
O conteúdo deste artigo foi apresentado <strong>em</strong> forma de pôster no VI Jornada de Estudos de <strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, realizada<br />
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) de 2 a 4 de Dez<strong>em</strong>bro de 2010. Devido às limitações de<br />
espaço, apenas o conteúdo da primeira parte da apresentação do pôster é tratado aqui. A segunda parte, objeto de<br />
artigo futuro, trata das s<strong>em</strong>elhanças entre a mudança lingüística e a evolução biológica e das s<strong>em</strong>elhanças entre<br />
línguas naturais e sist<strong>em</strong>as complexos adaptativos, fazendo referência às abordagens cont<strong>em</strong>porâneas.<br />
105
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
discussão sobre as analogias lingüísticas propostas pelo próprio Darwin. A seção 3 trata do<br />
século XX. E finalmente, na seção 4, argumenta-se que a influência de Darwin sobre a <strong>teoria</strong><br />
da mudança lingüística é mais ampla e profunda do que normalmente é suposto, e, ainda, que<br />
as abordagens evolucionárias 3 cont<strong>em</strong>porâneas são, de fato, uma revitalização de t<strong>em</strong>as que<br />
foram importantes <strong>em</strong> toda a história da ciência de linguag<strong>em</strong>.<br />
2) A influência da <strong>teoria</strong> de Darwin da seleção natural sobre a <strong>teoria</strong> da mudança<br />
lingüística no século XIX<br />
Termos e analogias biológicos foram trazidos para a lingüística, no início do século<br />
XIX, pelos fundadores da lingüística histórico-comparativa (Percival, 1987; Davies, 1987).<br />
Nessa época, as línguas eram, muitas vezes, referidas como organismos que nasc<strong>em</strong>, cresc<strong>em</strong>,<br />
e que acabam morrendo. Dentro desse espírito, os lingüistas compararam então a sua nova<br />
ciência às b<strong>em</strong>-sucedidas e prestigiosas ciências da anatomia e da fisiologia. De modo geral,<br />
os lingüistas do século XIX acreditavam que a morfologia do sânscrito (ou da sua língua mãe)<br />
era mais perfeita ou "orgânica" do que a de outras línguas, e a mudança lingüística nas línguas<br />
indo-européias era geralmente vista como processo de decadência ou declínio de um estado<br />
anterior mais perfeito. No entanto, como Jespersen destaca, muitos lingüistas importantes<br />
tinham opiniões contraditórias sobre este ponto, acreditando, ao mesmo t<strong>em</strong>po, que a<br />
mudança lingüística seria uma manifestação de progresso. Jespersen evoca, como ex<strong>em</strong>plo<br />
destas ideias, alguns autores tais como Rask, Humboldt, Grimm, Whitney, dentre outros<br />
(Jespersen 1922, p. 322-323).<br />
Chegando à década de 1850, os lingüistas obtiveram grande sucesso ao usar o método<br />
comparativo para traçar o desenvolvimento das línguas indo-européias com relação a um<br />
ancestral comum. Além disso, eles estavam acostumados a falar de línguas como organismos<br />
que têm vida própria e já estavam familiarizados com comparações entre a lingüística e as<br />
ciências biológicas. Portanto, não parece nenhuma surpresa que, após a publicação da Orig<strong>em</strong><br />
das Espécies, <strong>em</strong> 1859, as analogias entre a evolução biológica e a mudança lingüística<br />
tenham sido imediatamente percebidas por muitos lingüistas e por outros estudiosos. Oito<br />
anos mais tarde, W.D. Whitney escreveu que o tópico tinha sido discutido tantas vezes que<br />
era desnecessário tratar do t<strong>em</strong>a (Whitney, 1867, p. 46-47). As s<strong>em</strong>elhanças entre as duas<br />
áreas que chamaram a atenção dos pensadores do século XIX são muito b<strong>em</strong> resumidas por<br />
Joseph Greenberg na seguinte passag<strong>em</strong>:<br />
A natureza do paralelo entre a evolução das línguas e a das espécies, que<br />
tanto impressionou lingüistas como Mueller e Schleicher e cientistas<br />
naturais como Darwin e Lyell, refere-se à concepção da evolução como<br />
transformação de tipos. A transmissão de caracteres físicos pelo mecanismo<br />
genético corresponde à transmissão da língua de uma geração para outra, ou<br />
de uma população para outra, pela aprendizag<strong>em</strong>. Em ambos os casos,<br />
variantes surg<strong>em</strong>, das quais algumas são preservadas. Em ambos os casos, o<br />
isolamento geográfico, completo ou imperfeito, traz a perpetuação de<br />
variedades localmente diferentes. Dificuldades <strong>em</strong> determinar onde termina<br />
3<br />
O termo “evolucionário” está sendo usado neste trabalho com o fim de distinguir uma “lingüística<br />
evolucionária” – referente às abordagens cont<strong>em</strong>porâneas – da “lingüística evolutiva”, expressão encontrada na<br />
tradução do Curso de Saussure (2006, p.96) e que Saussure sugere como alternativo equivalente à “lingüística<br />
diacrônica”.<br />
106
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
uma variedade e onde começa uma espécie, dificuldades que foram fatores<br />
importantes na desilusão de Darwin com a <strong>teoria</strong> criacionista, l<strong>em</strong>bram as<br />
dificuldades do lingüista <strong>em</strong> definir língua <strong>em</strong> oposição a dialeto. Após um<br />
t<strong>em</strong>po, essas variedades descendentes tornaram-se suficient<strong>em</strong>ente distintas<br />
para ser classificadas indiscutivelmente como línguas ou espécies distintas.<br />
O paralelismo é indicado ainda mais pela metáfora da árvore ramificada,<br />
comum a ambas as disciplinas (Greenberg, 1971b, p. 112-113). 4<br />
Passar<strong>em</strong>os a tratar separadamente das idéias de vários autores do século XIX.<br />
August Schleicher (1821-1868). Talvez a comparação mais conhecida entre a evolução<br />
darwiniana e a linguag<strong>em</strong> seja uma monografia escrita pelo indo-europeianista August<br />
Schleicher e publicada originalmente <strong>em</strong> 1863 (Schleicher, 1983, tradução <strong>em</strong> inglês). Em<br />
uma passag<strong>em</strong> muito citada, Schleicher afirma que as línguas são organismos naturais<br />
(entendidos por ele como espécies, e não como organismos individuais) e que a lingüística é<br />
uma ciência natural:<br />
As línguas são organismos da natureza; elas nunca foram dirigidas pela<br />
vontade do hom<strong>em</strong>; elas crescer<strong>em</strong> e se desenvolv<strong>em</strong> de acordo com leis<br />
definitivas; elas cresc<strong>em</strong>, envelhec<strong>em</strong>, e morr<strong>em</strong>. Elas também estão<br />
sujeitas àquela série de fenômenos que classificamos sob o nome de "vida".<br />
A ciência da linguag<strong>em</strong> é consequent<strong>em</strong>ente uma ciência natural. O seu<br />
método é, no geral, completamente o mesmo que qualquer outra ciência<br />
natural (Schleicher, 1983, p. 20-21).<br />
Em seguida, Schleicher faz as comparações comuns que, segundo Whitney, eram<br />
recorrentes a muitos outros estudiosos na mesma época. No final do seu ensaio, Schleicher<br />
compara a propagação de certas famílias de línguas por grandes territórios ("o indogermânico,<br />
o finlandês, o malaio e as famílias sul-africanas", por ex<strong>em</strong>plo) e o declínio de<br />
outras (e.g. as línguas das Américas) à ampla distribuição geográfica das espécies<br />
dominantes, descrita por Darwin (Schleicher 1869, p. 60 et seq.; cf. Darwin, 1859, p. 343-<br />
344). Isso, segundo Schleicher, é o que Darwin entende por "luta pela vida" e Schleicher<br />
conclui que, "no atual período de vida do hom<strong>em</strong>, os descendentes da família indo-germânica<br />
são os conquistadores na luta pela existência; eles estão <strong>em</strong>preendidos <strong>em</strong> extensão contínua e<br />
já têm suplantado ou destronado inúmeros idiomas." (Schleicher, 1869, p. 64).<br />
Ao falar da luta de existência simplesmente <strong>em</strong> termos da difusão ou extinção das<br />
línguas, Schleicher não conseguiu apresentar uma analogia lingüística para o mecanismo de<br />
seleção natural como Darwin o havia concebido. De acordo com Darwin, a luta pela<br />
existência é um termo metafórico, usado para descrever a luta de criaturas individuais – e de<br />
não espécies – para sobreviver e reproduzir. Esta luta é uma luta de indivíduos contra o<br />
ambiente, contra os outros m<strong>em</strong>bros da mesma espécie, e contra os m<strong>em</strong>bros de outras<br />
espécies. Não é uma luta de espécie contra espécie (Darwin 1859, p. 62-63). No entanto,<br />
Darwin às vezes fala de espécies dominantes "tomando os locais daqueles grupos de espécies<br />
que são seus inferiores na luta pela existência" (Darwin, 1859, p. 344; Schleicher providencia<br />
uma longa citação desta parte da Orig<strong>em</strong>). É compreensível, portanto, que Schleicher pudesse<br />
4<br />
Todas as traduções de publicações <strong>em</strong> línguas estrangeiras citadas no presente artigo são feitas pelo autor deste.<br />
107
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ter tido a impressão de que a luta pela existência fosse uma competição entre espécies. Na<br />
verdade, isso foi uma má interpretação comum da <strong>teoria</strong> de Darwin (Mayr, 2001, p. 132-133).<br />
As analogias biológicas de Schleicher pressupõ<strong>em</strong> algumas ideias que ele desenvolveu<br />
antes (nas décadas de 1840 e 50), segundo a qual algumas línguas são superiores a outras<br />
(Andersen & Bache, 1976; Jespersen 1922, p. 71-83). Ele propôs um sist<strong>em</strong>a de tipologia<br />
lingüística, muito influente, que classifica as línguas do mundo <strong>em</strong> termos de três tipos<br />
morfológicos básicos (línguas isolantes, aglutinantes e flexionais), alegando que esses tipos<br />
não só representariam as estruturas das línguas existentes, mas também estágios de<br />
desenvolvimento histórico. De acordo com Schleicher, as línguas evolu<strong>em</strong> historicamente do<br />
tipo isolante, ao aglutinante e ao flexional. No entanto,<br />
[...] Schleicher afirma que, como na natureza ainda encontramos organismos<br />
geológicos e vegetais [ou seja, entidades <strong>em</strong> níveis baixos de<br />
desenvolvimento evolucionário], apesar do desenvolvimento natural acima<br />
mencionado, assim exist<strong>em</strong> línguas que nunca chegaram à perfeição, mas<br />
permaneceram, e permanecerão s<strong>em</strong>pre, numa fase aglutinante ou isolante<br />
(Andersen & Bache, 1976, p. 434).<br />
Schleicher morreu <strong>em</strong> 1868 aos 47 anos de idade e nunca elaborou suas comparações<br />
entre lingüística e evolução darwiniana <strong>em</strong> uma <strong>teoria</strong> detalhada da mudança lingüística. O<br />
seu sist<strong>em</strong>a tipológico, b<strong>em</strong> como outros aspectos de suas <strong>teoria</strong>s, foram todos desenvolvidos<br />
sob a influência da filosofia hegeliana antes que a Orig<strong>em</strong> de Darwin tivesse sido publicada.<br />
Assim, Richards (2002) conclui que a influência de Darwin no pensamento de Schleicher foi,<br />
<strong>em</strong> última <strong>análise</strong>, superficial: "Na maior parte, [...] as idéias de Darwin simplesmente<br />
revestiram as características fundamentais do projeto evolutivo inicial de Schleicher, que<br />
derivou do trabalho daqueles indivíduos imersos no romantismo e idealismo al<strong>em</strong>ão –<br />
especialmente Humboldt e Hegel." (Richards 2002, p. 40; conclusão que se encontra também<br />
<strong>em</strong> Maher, 1983, p. xix, xxx).<br />
F. Max Müller (1823-1900) argumentou que a mudança lingüística é um processo de<br />
seleção natural, mas ele também foi, paradoxalmente, um adversário vociferante da<br />
explicação darwiniana das origens humanas. Darwin, ao apresentar o argumento para seleção<br />
natural na Orig<strong>em</strong>, tinha apenas insinuado o que estava implícito <strong>em</strong> sua <strong>teoria</strong>, ou seja, que<br />
os seres humanos evoluíram de uma forma de vida mais simples. Não obstante, logo que o<br />
livro foi publicado, <strong>em</strong> dez<strong>em</strong>bro de 1859, um grande conflito imediatamente irrompeu<br />
justamente <strong>em</strong> torno deste assunto. Em suas conhecidas e populares Lições sobre a ciência da<br />
linguag<strong>em</strong> (primeira série, Müller, 1861; segunda série, Müller, 1864), Müller já pode ser<br />
visto argumentando contra as implicações da <strong>teoria</strong> de Darwin <strong>em</strong> relação à orig<strong>em</strong> da<br />
linguag<strong>em</strong> humana, afirmando que "a única grande barreira entre o animal bruto e o hom<strong>em</strong> é<br />
a linguag<strong>em</strong>" e que "nenhum processo de seleção natural pode destilar palavras significativas<br />
das notas dos pássaros ou os gritos das bestas" (Müller 1861, p. 340).<br />
Na segunda série de palestras, Müller argumenta que o conceito de seleção natural<br />
reconcilia a contradição aparente entre a autonomia do indivíduo e a dominação do indivíduo<br />
por normas sociais (inclusive lingüísticas). Ele também vê a seleção natural como capaz de<br />
conciliar as ciências humanas e as ciências naturais. "Quer<strong>em</strong>os", escreve Müller, "uma idéia<br />
que exclui o capricho, b<strong>em</strong> como a necessidade [...]" (Müller, 1864, p. 309). Para Müller, a<br />
<strong>teoria</strong> de seleção natural, aplicada à cultura e à linguag<strong>em</strong>, mostra como grupos de indivíduos<br />
108
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
autônomos acabam estabelecendo normas sociais que estão fora do controle individual –<br />
fenômenos normalmente considerados assuntos das ciências humanas, porque envolv<strong>em</strong> o<br />
"capricho" (livre-arbítrio) humano. Além disso, a <strong>teoria</strong> de seleção natural, aplicada à<br />
natureza, também explica o crescimento e a mudança no mundo natural – fenômenos<br />
normalmente considerados assuntos das ciências naturais, porque são regidos por leis<br />
"necessárias".<br />
Alguns anos mais tarde, <strong>em</strong> uma resenha da monografia de Schleicher sobre o<br />
darwinismo, Müller reiterou os pontos acima mencionados, e apresentou a seleção natural<br />
como uma maneira de explicar os processos comuns de mudança lingüística. Observando que<br />
fatores não lingüísticos são os principais responsáveis pela extinção das línguas, Müller<br />
critica a idéia de Schleicher de que as línguas concorr<strong>em</strong> entre si <strong>em</strong> uma luta pela vida. Em<br />
vez disso, argumenta,<br />
Uma analogia muito mais marcante, portanto, do que a da luta pela vida<br />
entre línguas separadas, é a luta pela vida entre palavras e formas<br />
gramaticais, que está constant<strong>em</strong>ente acontecendo <strong>em</strong> cada língua. Aqui as<br />
formas melhores, mais curtas e mais fáceis estão constant<strong>em</strong>ente ganhando<br />
vantag<strong>em</strong>, e elas realmente dev<strong>em</strong> o seu sucesso às suas próprias virtudes<br />
inerentes (Müller, 1870, p. 257).<br />
Os argumentos de Müller, no entanto, dev<strong>em</strong> ser entendidos no contexto da sua visão<br />
claramente não-darwiniana da evolução. Ele interpretou a seleção natural de acordo com o<br />
ponto de vista teleológico 5 que herdara da tradição idealista al<strong>em</strong>ã, e entendeu a evolução<br />
como significando que as espécies evolu<strong>em</strong> de acordo com um propósito intrínseco e<br />
preordenado (ver Schr<strong>em</strong>pp, 1983, p. 100; Knoll, 1986, p. 16). Ou seja, aceitou a idéia da<br />
evolução das espécies apenas <strong>em</strong> parte, acreditando, nas palavras de Schr<strong>em</strong>pp, que "houve<br />
evolução, mas que consistia no desenvolvimento interno das próprias espécies, enquanto as<br />
fronteiras entre as diferentes espécies permaneceriam fixas". (Schr<strong>em</strong>pp, 1983, p. 101).<br />
Nas décadas que se seguiram à publicação da <strong>teoria</strong> de seleção natural, sua<br />
incompatibilidade com a idéia de que a história natural, b<strong>em</strong> com a humana, é guiada por uma<br />
finalidade inerente, ou por "leis" de fases previsíveis de crescimento ou de progresso, não era<br />
evidente para muitos no mundo culto. Schleicher e Müller, escrevendo apenas alguns anos<br />
depois da publicação da Orig<strong>em</strong>, não foram diferentes de muitos dos seus cont<strong>em</strong>porâneos <strong>em</strong><br />
não absorver completamente esse aspecto da obra de Darwin. Como muitos estudiosos da<br />
época, eles viram no darwinismo uma confirmação de suas próprias opiniões preexistentes<br />
sobre história e progresso. Não é surpreendente, então, que Schleicher e Müller reagiram às<br />
idéias de Darwin da maneira como o fizeram. De acordo com Bowler, "Apenas poucos<br />
pensadores conseguiram quebrar o molde para lidar com a possibilidade de que a implicação<br />
real do darwinismo tivesse sido a destruição de qualquer visão do mundo baseada no<br />
progresso necessário ao longo de uma hierarquia de complexidade [...]" (Bowler, 1989, p.<br />
237).<br />
5<br />
De acordo com David Hull, a teleologia é "a crença de que as coisas no mundo <strong>em</strong>pírico 'procuram' atingir fins'<br />
". Hull distingue uma teleologia platônica "externa", na qual uma mente divina ordena os eventos, de uma<br />
teleologia aristotélica "imanente", na qual o fim ou o propósito de um objeto é determinado por sua própria<br />
essência interna (Hull, 1983, p. 55 et seq.). Müller parece ter combinado as duas abordagens, acreditando que<br />
uma mente divina criou as entidades com essências internas propositais.<br />
109
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Charles Darwin (1809-1882), propositadamente, evitou toda discussão da evolução<br />
humana na Orig<strong>em</strong> das Espécies, mas ocasionalmente usou analogias lingüísticas nesse livro<br />
para ilustrar alguns dos seus argumentos para a seleção natural (Darwin 1859, p. 40, 310-311,<br />
422-423). Uma década depois, <strong>em</strong> A Descendência do Hom<strong>em</strong> (Darwin, 1871), Darwin<br />
apresentou seus argumentos para a idéia, deixada apenas implícita no trabalho anterior, de que<br />
os seres humanos descenderam do mesmo ramo ancestral que os símios. No capítulo 2 da<br />
Descendência, Darwin dedica dois longos parágrafos às s<strong>em</strong>elhanças entre a evolução das<br />
espécies e das línguas (Darwin 1871, p. 59-62). Tendo discutido anteriormente nesse capítulo<br />
como a capacidade humana para a linguag<strong>em</strong> poderia ter evoluído através da seleção natural,<br />
Darwin, <strong>em</strong> seguida, tenta mostrar que as línguas humanas também poderiam ter vindo a<br />
existir através de causas naturais inteligíveis, <strong>em</strong> oposição à intervenção ou assistência divina.<br />
No primeiro dos dois parágrafos, Darwin compara a evolução histórica das línguas com a<br />
evolução das espécies biológicas, e aí pod<strong>em</strong> ser vistas várias das analogias feitas por<br />
Schleicher e outros. Darwin também se refere à resenha que Max Muller fez do trabalho de -<br />
Schleicher (mencionada acima) para apoiar a idéia de que "A sobrevivência ou a preservação<br />
de certas palavras favorecidas na luta pela existência é a seleção natural." (Darwin 1871, p.<br />
60-61).<br />
No segundo parágrafo, Darwin compara a morfologia lingüística com a fisiologia dos<br />
seres vivos, tentando mostrar que a existência de línguas gramaticalmente complexas, faladas<br />
por "nações bárbaras", não é uma evidência a favor da idéia de que as línguas foram criadas<br />
por alguma divindade. Ele argumenta que a complexidade morfológica não deve ser o padrão<br />
de perfeição pelo qual as línguas seriam julgadas. Segundo ele, um "naturalista" (um biólogo)<br />
não considera um organismo com maior simetria e mais el<strong>em</strong>entos como mais perfeito (isto é,<br />
mais perfeitamente adaptado ao ambiente; cf. Darwin 1859, p. 201-202) do que um outro com<br />
corpo assimétrico e com menos el<strong>em</strong>entos, mas, <strong>em</strong> vez disso:<br />
Ele justamente considera a diferenciação e especialização dos órgãos como<br />
a prova de perfeição. Assim com as línguas, as mais simétricas e complexas<br />
não seriam classificadas como superior às línguas irregulares, abreviadas e<br />
abastardas que tomaram <strong>em</strong>prestadas, das raças conquistadoras,<br />
conquistadas ou imigradas, palavras expressivas e formas úteis de<br />
construção (Darwin 1871, p. 61-62).<br />
Hermann Paul (1846-1921) foi um dos principais representantes do movimento<br />
neogramático, que começou na Al<strong>em</strong>anha por vota de 1870. Em contraste com a maioria dos<br />
seus antecessores, os neogramáticos rejeitaram a noção de que as línguas seriam, <strong>em</strong> algum<br />
sentido, organismos que cresc<strong>em</strong> e entram <strong>em</strong> decadência. Os neogramáticos também<br />
enfatizaram o estudo de línguas vivas e de fonética. Paul faz algumas referências a Darwin e à<br />
evolução biológica <strong>em</strong> seu Princípios fundamentais da historia da língua, originalmente<br />
publicado <strong>em</strong> 1880 e revisado várias vezes nas décadas seguintes 6 . A <strong>teoria</strong> de Paul da<br />
mudança lingüística é s<strong>em</strong>elhante <strong>em</strong> muitos aspectos à <strong>teoria</strong> de Darwin da evolução, e a<br />
influência das idéias darwinianas é evidente nos conceitos de Paul da história, da evolução e<br />
da diversificação lingüística, tanto na sua <strong>teoria</strong> (muito influente) da mudança fonética quanto<br />
6 Paul (1983) é uma tradução portuguesa da 5ª e última edição revisada de 1920.<br />
110
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
na sua abordag<strong>em</strong> não-teleológica da mudança lingüística 7 . O que se segue aqui é apenas uma<br />
breve <strong>análise</strong> da abordag<strong>em</strong> teórica geral que Paul expõe na introdução de seu livro.<br />
Paul não faz nenhuma referência às fontes das idéias refletidas nas suas observações<br />
sobre a evolução biológica, mas fica claro, nas analogias biológicas encontradas na introdução<br />
e nos dois capítulos seguintes, que, quando fala de evolução biológica, faz referência à<br />
seleção natural darwiniana, não-teleológica, ao contrário de estágios fixos de<br />
desenvolvimento (a ex<strong>em</strong>plo de Schleicher) ou do cumprimento de fins divinos preordenados<br />
(a ex<strong>em</strong>plo de Müller). Para Paul, a própria linguag<strong>em</strong> (incluindo a fonologia, a morfologia, a<br />
sintaxe e a s<strong>em</strong>ântica) seria inseparável desse processo evolucionário dinâmico e não poderia<br />
ser corretamente entendida fora do mesmo. É esse contexto que dev<strong>em</strong>os levar <strong>em</strong><br />
consideração quando l<strong>em</strong>os a conhecida frase de Paul “Objectaram-me que há outro método<br />
científico de estudar a língua, além do histórico. Tenho que negar isto.” (Paul, 1983, p. 28).<br />
A tentativa de explicar a mudança lingüística levou Paul, assim como Müller, a<br />
procurar princípios que uniss<strong>em</strong> as ciências naturais e as ciências humanas. Paul imaginou<br />
uma “ciência de princípios”, concebida como <strong>teoria</strong> geral de mudança histórica, que se<br />
aplicaria nos reinos da natureza e também nos da cultura humana. Ele observa que o trabalho<br />
de desenvolvimento de tais princípios é mais avançado na área de “natureza orgânica” e que<br />
“[...] t<strong>em</strong>os de reconhecer que os pensamentos mais férteis para a compreensão de toda a<br />
evolução histórica, incluindo a da raça humana, só aí atingiram uma certa clareza.” (Paul<br />
1983, p. 16).<br />
Infelizmente, Paul não elabora os detalhes de sua proposta de ciência de princípios, e o<br />
tópico não é mencionado novamente no restante do livro. A idéia fundamental por trás de sua<br />
proposta, a saber, a de uma <strong>teoria</strong> geral de mudança dinâmica que pode dar conta da mudança<br />
nos reinos naturais e culturais e que também pode explicar a mudança lingüística e a<br />
<strong>em</strong>ergência histórica de estruturas lingüísticas, não foi aceita pela nova geração de lingüistas.<br />
(O estruturalismo de Jakobson tinha ambições s<strong>em</strong>elhantes, mas, como assinalado abaixo, foi<br />
inspirado por fontes diferentes). É difícil discordar com um cont<strong>em</strong>porâneo de Paul, L.<br />
Tobler, que disse que “Todas estas determinações de conceitos pertenc<strong>em</strong> mais ao domínio<br />
duma revista filosófica, e não têm qualquer influência no resto da exposição” (apud Paul,<br />
1983, p. 29). No entanto, a “ciência de princípios” de Paul é s<strong>em</strong>elhante <strong>em</strong> muitos aspetos à<br />
abordag<strong>em</strong> de sist<strong>em</strong>as complexos defendida por alguns lingüistas cont<strong>em</strong>porâneos (ver seção<br />
4, abaixo), e ele pode ser justamente considerado um precursor dessa abordag<strong>em</strong>.<br />
Otto Jespersen (1860-1943), durante toda a sua longa carreira acadêmica, defendeu a<br />
idéia de que a mudança lingüística progride na direção geral de um aumento de eficiência<br />
7 As idéias básicas da <strong>teoria</strong> neogramática de mudança fonética são: (1) a mudança fonética é regular, ou seja,<br />
presume-se que uma dada mudança fonética histórica afeta todas as instâncias de um el<strong>em</strong>ento fonético de forma<br />
consistente; (2) a mudança fonética é “cega”, isto é, devida somente a fatores fonéticos e, portanto, s<strong>em</strong> que se<br />
refira aos seus efeitos, muitas vezes prejudiciais, sobre estrutura gramatical e a inteligibilidade (como, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, a criação de homônimos ou a perda de sufixos); (3) os danos causados pela mudança fonética são<br />
compensados pelo processo psicológico de analogia, no qual os falantes regularizam as irregularidades que a<br />
mudança fonética cega criou (<strong>em</strong>bora analogia também pudesse ser uma força destrutiva). Esta <strong>teoria</strong>,<br />
juntamente com a interpretação psicológica de Paul, é resumida <strong>em</strong> McMahon, 1994, p. 17-24. As referências de<br />
Paul à biologia são encontradas <strong>em</strong> Paul, 1983, p. 16, 18-19, 40, 47.<br />
111
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
comunicativa (cf. Jespersen, 1993; 1922; [1941?]) 8 . Embora Jespersen não faça com<br />
freqüência menção a Darwin nos seus escritos, o pensamento de Darwin foi uma forte<br />
influência nas suas idéias sobre a mudança lingüística e a orig<strong>em</strong> da linguag<strong>em</strong> (McCawley,<br />
1992; 1993). A opinião de Jespersen sobre a natureza evolutiva de mudança lingüística é<br />
expressa no trecho seguinte, escrito no final de sua vida:<br />
"A sobrevivência do mais forte" – Esta é a engenhosa palavra de ord<strong>em</strong><br />
inventada por Herbert Spencer para explicar o que Darwin entende por<br />
'seleção natural': são preservados os indivíduos de uma espécie que são<br />
melhor adaptados aos seus ambientes. Isso pode ser aplicado à linguag<strong>em</strong>?<br />
Evident<strong>em</strong>ente não às línguas como totalidades: quais são preservadas e<br />
quais são condenadas à extinção é determinado por outras considerações<br />
além da perfeição intrínseca da sua estrutura ou o inverso: aqui guerras e<br />
condições políticas são geralmente decisivas. Mas dentro de uma língua<br />
t<strong>em</strong>os de admitir a verdade disso: aqueles traços particulares de uma língua<br />
que melhor se adaptam à sua finalidade tend<strong>em</strong> a ser preservados à custas de<br />
outros que não respond<strong>em</strong> tão b<strong>em</strong> à finalidade lingüística (Jespersen,<br />
[1941?], p. 382-383).<br />
Jespersen argumentou que o sist<strong>em</strong>a tipológico de Schleicher de estágios de<br />
desenvolvimento das línguas é insuficiente como meio de classificação e que descreve de<br />
forma imprecisa a direção geral de longo prazo de mudança lingüística (Jespersen 1993; 1922,<br />
p. 76-80). Como alternativa, propôs que as línguas progrid<strong>em</strong> a longo prazo somente <strong>em</strong><br />
relação à sua língua mãe, mas não <strong>em</strong> termos de um esqu<strong>em</strong>a universal e previsível. Tentou<br />
d<strong>em</strong>onstrar que as línguas modernas, como o inglês e o francês, são meios mais eficientes de<br />
comunicação do que suas respectivas línguas maternas, o inglês arcaico e o latim. Assim, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, na história do inglês, a perda de marcação de caso, a simplificação do sist<strong>em</strong>a de<br />
pronomes e o uso do sufixo genitivo –s anexado à última palavra de um sintagma nominal<br />
(que substituíram os vários sufixos genitivos anexados a cada el<strong>em</strong>ento da sintagma) são<br />
todos vistos por Jespersen como uma evolução progressiva que faz o inglês moderno mais<br />
eficiente – ou seja, capaz de melhor expressar significados com menos esforço – do que o<br />
inglês antigo.<br />
Embora tendo uma formação neogramática, Jespersen não concordou com a <strong>teoria</strong> de<br />
mudança fonética “cega”. Em vez disso, argumentou que as mudanças fonéticas, e as<br />
mudanças morfológicas que as acompanham, podiam ser explicadas por um conflito contínuo<br />
entre o desejo dos falantes de expressar o significado com êxito (um fator social) e a<br />
inclinação simultânea para usar menos esforço físico e mental na comunicação (um fator<br />
individual). Para Jespersen, a causa principal da mudança lingüística é uma competição<br />
darwiniana entre formas lingüísticas, os sobreviventes sendo os que melhor serv<strong>em</strong> às<br />
necessidades conflitantes da comunicação humana.<br />
A noção de Jespersen de progresso lingüística é muito s<strong>em</strong>elhante ao conceito de<br />
Darwin de progresso na evolução biológica. Para os dois homens, o progresso é o acúmulo de<br />
características que aumentam a eficiência funcional de uma espécie ou idioma; o progresso é<br />
8<br />
O Progresso na <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> de Jespersen (1993) foi originalmente publicado <strong>em</strong> 1894. Por esse motivo,<br />
Jespersen está sendo aqui tratado na seção sobre o século XIX. Suas obras mais importantes, no entanto, foram<br />
publicadas nas quatro décadas após 1900.<br />
112
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
medido <strong>em</strong> relação às formas anteriores de que uma espécie ou uma língua é descendente; e o<br />
progresso é um resultado não necessário e não intencional de um processo de seleção natural.<br />
Darwin rejeitou a idéia de que uma escala unilinear de avanço poderia ser aplicada a todas as<br />
criaturas: “Tentar comparar na escala de superioridade os m<strong>em</strong>bros de tipos distintos parece<br />
impossível: qu<strong>em</strong> vai decidir se um choco é superior do que uma abelha [...]?” (Darwin 1861,<br />
p. 365). Jespersen também afirmou, <strong>em</strong> uma crítica da tipologia de Schleicher, que “as<br />
possibilidades de desenvolvimento são tão múltiplas e há inúmeras maneiras de se chegar a<br />
expressões mais ou menos adequadas para o pensamento humano, que é praticamente<br />
impossível comparar línguas de diferentes famílias” (Jespersen, 1993, p. 126). A isso, pode<br />
ser acrescentado que, mesmo que Jespersen tenha aderido ao que pode ser chamado de um<br />
darwinismo ortodoxo sobre a evolução biológica, no que diz respeito a seu pensamento<br />
lingüístico ele era aberto a considerar <strong>teoria</strong>s evolucionárias alternativas, como a da<br />
ontogênese (Jespersen, 1909), ou ainda a considerar pontos de vista mais abstratos, como a<br />
<strong>teoria</strong> "energética" do químico F.W. Ostwald (Jespersen, 1914).<br />
Apesar de cinqüenta anos de defesa por parte do seu autor, a <strong>teoria</strong> de Jespersen de<br />
evolução lingüística nunca foi aceita pela maioria dos lingüistas (ver, por ex<strong>em</strong>plo, Bloch,<br />
1941) 9 . A maioria dos lingüistas, hoje <strong>em</strong> dia, rejeita a noção de qualquer tipo de progresso<br />
lingüístico cumulativo fora as adições no léxico e os possíveis efeitos da tecnologia da escrita<br />
e da comunicação. Como assinalado na seção final deste trabalho, no entanto, este consenso<br />
está atualmente sendo questionado por estudiosos que têm trabalhado com perspectivas<br />
"evolucionárias" baseadas <strong>em</strong> conceitos <strong>em</strong>prestados da biologia evolutiva ou na <strong>teoria</strong> de<br />
sist<strong>em</strong>as complexos.<br />
3) Analogias entre a evolução biológica e a mudança lingüística no século XX<br />
No final do século XIX, debates sobre a natureza da hereditariedade levaram muitos<br />
cientistas a propor mecanismos diferentes da seleção natural como causa da evolução das<br />
espécies biológicas. Essas alternativas ganharam ampla aceitação por volta de 1900, tanto<br />
assim que as primeiras décadas do século XX têm sido referidas como o "eclipse do<br />
darwinismo" (Bowler, 1989, p. 246 et seq.). Foi nesse período que nasceram a lingüística<br />
estrutural norte-americana e a escola de Praga. Os fundadores da lingüística estrutural nos<br />
Estados Unidos são conhecidos por argumentar<strong>em</strong> contra a opinião de que alguns idiomas<br />
seriam estruturalmente mais primitivos do que outros e também contra a idéia de que existiria<br />
uma correlação entre tipo de estrutura de idioma e tipo de sociedade (Boas, 1966, p. 1-10;<br />
Sapir, 1921, p. 221 et seq.). Por conseguinte, pode-se imaginar que uma visão evolutiva de<br />
mudança lingüística, seja <strong>em</strong> termos de seleção natural ou <strong>em</strong> termos de algum tipo de<br />
"progresso", seria estranha ao pensamento deles. No entanto, este não é o caso de Franz Boas<br />
ou (como foi mencionado acima) de Leonard Bloomfield, e é apenas parcialmente verdadeira<br />
no caso de Edward Sapir.<br />
Franz Boas (1858-1942) foi extr<strong>em</strong>amente influente <strong>em</strong> opor-se ao que t<strong>em</strong> sido<br />
chamado de abordag<strong>em</strong> "evolucionista" ou "progressista" na antropologia. No entanto, no que<br />
diz respeito à evolução biológica, ele aderiu a um darwinismo ortodoxo s<strong>em</strong>elhante ao de<br />
Jespersen (ambos nasceram e morreram quase no mesmo ano). No final do século XIX, a<br />
visão dominante na antropologia era a de que as sociedades teriam passado necessariamente<br />
9 Uma exceção notável é Leonard Bloomfield, que aceitou a idéia de Jespersen a respeito do progresso<br />
lingüístico, <strong>em</strong>bora ao mesmo t<strong>em</strong>po rejeitasse a <strong>teoria</strong> de Jespersen sobre a mudança fonética (Falk, 1992).<br />
113
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
por uma seqüência progressiva de estágios, durante o caminho para se tornar<strong>em</strong> "civilizadas"<br />
– um conceito que t<strong>em</strong> muito <strong>em</strong> comum com o proposto por Schleicher sobre as fases<br />
tipologias para a evolução lingüística. Bowler assinala que as obras de Darwin teriam<br />
contribuído para fundamentar este modo de pensar:<br />
De fato, a grande parte da discussão de Darwin sobre evolução cultural<br />
seguiu o modelo progressista criado por antropólogos e arqueólogos como<br />
Lubbock. Não é surpreendente, então, que a maioria de seus<br />
cont<strong>em</strong>porâneos tenha ignorado a sugestão de um único ponto de virada na<br />
evolução humana e construído esqu<strong>em</strong>as geralmente progressistas de<br />
evolução mental e moral [...] (Bowler, 1989, p.236).<br />
Em oposição a essa atitude, Boas argumentou que explicações baseadas <strong>em</strong> difusão de<br />
traços culturais (ou <strong>em</strong> invenção independente) serv<strong>em</strong>, frequent<strong>em</strong>ente, para refutar, ou pelo<br />
menos para oferecer-se como alternativa igualmente plausível, a explicações com base no<br />
pressuposto de que todas as culturas necessariamente passam pelas mesmas fases progressivas<br />
de desenvolvimento (Harris, 1968, p. 258-259). Boas teve idéias s<strong>em</strong>elhantes sobre a<br />
linguag<strong>em</strong>, tendo observado ainda muitas s<strong>em</strong>elhanças, dentro do que hoje chamamos de<br />
áreas linguísticas, entre línguas indígenas norte-americanas de diversas famílias (Boas, 1938,<br />
p. 136-139)<br />
Para Boas, "leis" que express<strong>em</strong> supostas tendências universais, ou estágios de<br />
desenvolvimento cultural, são de pouco valor na antropologia. Em um artigo sobre a história<br />
da antropologia, escrito <strong>em</strong> 1904, Boas comentou sobre o pensamento que seria subjacente às<br />
interpretações teleológicas que, muitas vezes, foram dadas ao conceito de evolução:<br />
Desde o início, houve uma forte tendência para combinar, com o aspecto<br />
histórico, uma avaliação subjetiva das diversas fases de desenvolvimento, o<br />
presente servindo como um padrão de comparação. A mudança, comumente<br />
observada, das formas simples para as formas mais complexas, e da<br />
uniformidade à diversidade, foi interpretada como uma mudança do que é<br />
menos valioso para o que é mais valioso, e portanto a visão histórica<br />
assumida <strong>em</strong> muitos casos tomou uma coloração teleológica mal escondida<br />
(Boas, 1904, p. 515).<br />
Em um artigo sobre a influência de Darwin <strong>em</strong> Boas, Herbert Lewis mostra que Boas<br />
não somente aceitou a seleção natural como explicação da orig<strong>em</strong> das espécies biológicas,<br />
incluindo a espécie humana, e claramente a entendeu como processo não teleológico, como<br />
também, pelo menos <strong>em</strong> um momento, sugeriu que a <strong>teoria</strong> de Darwin poderia ser utilizada<br />
para explicar o desenvolvimento cultural e lingüístico (Lewis, 2001). Lewis descreve um<br />
manuscrito não publicado de Boas, escrito <strong>em</strong> cerca de 1909 para uma celebração do 50º<br />
aniversário da Orig<strong>em</strong> das Espécies. Nesse manuscrito, Boas argumenta que a explicação<br />
não-teleológica de Darwin para a evolução de organismos biológicos por seleção natural,<br />
segundo a qual "formas que aparent<strong>em</strong>ente estão destinadas a servir a um propósito pod<strong>em</strong> ser<br />
explicadas como resultantes de ação puramente causal", também se aplica para a explicação<br />
de fenômenos culturais e lingüísticos. Mais ainda, Boas lança mão da linguag<strong>em</strong> humana para<br />
ilustrar este ponto:<br />
114
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A mudança de sons – característica tão importante no crescimento de novos<br />
dialetos e na alteração das formas mais antigas – quando não devida a<br />
influências externas, pode ser entendida apenas pela suposição de uma<br />
variabilidade considerável de som e a sobrevivência de grupos selecionados,<br />
ou pela suposição de vários tipos de assimilação de sons (Boas, [1909?]).<br />
Esta sugestão, aliás, nunca foi desenvolvida por Boas <strong>em</strong> uma <strong>teoria</strong> de mudança<br />
lingüística.<br />
Edward Sapir (1884-1939), como os outros estudiosos da escola boasiana ao qual<br />
pertencia, vigorosamente argumentou contra a escola progressista na <strong>teoria</strong> antropológica.<br />
Sapir raramente menciona Darwin ou a evolução biológica nas suas obras, e seu pensamento<br />
geral sobre cultura e linguag<strong>em</strong> não é de forma alguma evolutivo ou darwinista. Escrevendo<br />
durante as décadas do "eclipse do darwinismo," parece ter aceitado opinião então comum na<br />
biologia, especialmente nos Estados Unidos, quando escreveu, <strong>em</strong> 1917, que "Só<br />
recent<strong>em</strong>ente o viés darwinista original <strong>em</strong> direção a uma ênfase exagerada sobre seleção<br />
natural t<strong>em</strong> se rendido à avaliação adequada de outros fatores" (Sapir, 1949, p. 523).<br />
No capítulo 6 de A <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> (Sapir, 1921; trad. port. Sapir, 1971), sobre a tipologia<br />
lingüística, Sapir argumenta que todas as tentativas de classificação das línguas <strong>em</strong> tipos<br />
básicos tinham falhado por falta de firmes critérios de classificação, por se basear<strong>em</strong> <strong>em</strong> uma<br />
amostra inadequada das línguas e por ser<strong>em</strong> simplistas. Acrescenta, <strong>em</strong> seguida, que outro<br />
motivo seria o "preconceito evolucionista que se insinuou nas ciências sociais pelos meados<br />
do século passado e que só agora começa a perder o seu império tirânico <strong>em</strong> nosso espírito"<br />
(Sapir 1971, p. 126; Sapir 1921, p. 130). Na próxima página, argumenta contra a idéia de que<br />
as formas linguísticas pod<strong>em</strong> ser associadas ao "progresso ou retrocesso material do povo que<br />
delas se serve".<br />
O Capítulo 7 de A <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> é constituído por uma discussão sobre a “deriva”. Como<br />
Sapir <strong>em</strong>prega o termo, uma deriva lingüística é essencialmente uma tendência direcional de<br />
longo prazo na mudança histórica de uma língua. Alguns anos antes da publicação de A<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, Sapir escreveu, <strong>em</strong> uma carta ao antropólogo R.H. Lowie, que "os determinantes<br />
da noção de deriva s<strong>em</strong> dúvida envolv<strong>em</strong> intuições mat<strong>em</strong>áticas e quase-estéticas. A<br />
‘Evolução’, como normalmente é compreendida, é provavelmente um processo totalmente<br />
diferente." (apud Silverstein, 1986, p. 96). No entanto, ao tratar da deriva, Sapir utiliza os<br />
termos "variação" e "seleção" e parece fazer, se não uma analogia direta, pelo menos uma<br />
comparação metafórica entre deriva lingüística e evolução biológica. No Capítulo 7 de A<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, por ex<strong>em</strong>plo, diz ele: “A deriva de uma língua consiste na seleção inconsciente,<br />
feita pelos que a falam, das variações individuais que se acumulam numa dada direção<br />
especial.” (Sapir, 1971, p. 155 / Sapir 1921, p. 165-166). ele também usa a terminologia da<br />
variação e da seleção <strong>em</strong> combinação com a metáfora da deriva quando trata das causas de<br />
mudança fonética: “Qual seja a causa primária de desequilíbrio num padrão fonético e qual<br />
seja a força cumulativa que escolhe [ingl. orig. selects] estas ou aquelas variações individuais<br />
para canalizar os reajustamentos do padrão, mal nos é lícito saber.” (Sapir, 1971, p. 183;<br />
Sapir, 1921, p. 195-196). O uso dessa terminologia é provavelmente devido à influência de<br />
Herman Paul (comparar, por ex<strong>em</strong>plo, Sapir, 1971, p. 148-151; Sapir, 1921, p. 157-161 com<br />
Paul, 1983, p. 47-52). Limitações de espaço não permit<strong>em</strong> aqui uma discussão do conceito de<br />
Sapir de progresso, que inclui a idéia de que padrões culturais, inclusive as línguas, passam<br />
115
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
por ciclos de progresso que culminam <strong>em</strong> um período "clássico", seguido por um período de<br />
declínio (Sapir 1999, p. 531-543).<br />
Roman Jakobson (1896-1982) e outros m<strong>em</strong>bros da escola lingüística de Praga<br />
começaram a falar de linguag<strong>em</strong> como um fenômeno "teleológico" durante a década de 1920.<br />
O pensamento de Jakobson sobre esse assunto t<strong>em</strong> sido descrito da seguinte maneira:<br />
O desenvolvimento histórico das línguas prossegue, na visão de Jakobson,<br />
de acordo com leis com vistas a um fim. As línguas só pod<strong>em</strong> desenvolverse<br />
<strong>em</strong> uma direção e uma seqüência que esteja de acordo com as leis do<br />
sist<strong>em</strong>a. O desenvolvimento é chamado de teleológico porque depende da<br />
função que os usuários da língua segu<strong>em</strong>, e porque essas funções estão<br />
sujeitas às leis de auto-regulação que são características de sist<strong>em</strong>as<br />
naturais, s<strong>em</strong> que os usuários estejam conscientes disso (Holenstein, 1987,<br />
p. 19-20).<br />
Jakobson considerou esse ponto de vista teleológico como uma alternativa aos<br />
pressupostos culturais do pensamento europeu ocidental do fim do século XIX, os quais ele<br />
acreditava que seriam ex<strong>em</strong>plificados não só pela lingüística histórica, mas também pelo<br />
darwinismo. Nas conclusões de uma monografia sobre a fonologia histórica do russo,<br />
publicada <strong>em</strong> 1929, Jakobson criticou os neogramáticos, b<strong>em</strong> como Saussure, por ver<strong>em</strong> a<br />
mudança lingüística como "uma aglomeração de alterações de proveniência acidental", e<br />
escreveu:<br />
Uma aglomeração mecânica devida ao jogo de sorte ou de fatores<br />
heterogêneos, eis a imag<strong>em</strong> favorita da ideologia européia predominante na<br />
segunda metade do século XIX. A ideologia cont<strong>em</strong>porânea, <strong>em</strong> suas<br />
manifestações variadas e geneticamente independentes umas das outras, traz<br />
à tona, com uma nitidez cada vez maior, no lugar de uma adição mecânica,<br />
um sist<strong>em</strong>a funcional; no lugar de uma r<strong>em</strong>essa burocrática a um<br />
comportamento vizinho, estruturas imanentes; e no lugar de um acaso cego,<br />
uma evolução que caminha para um objetivo. (Jakobson, 1962, p. 110)<br />
Em seguida, ele contrasta a abordag<strong>em</strong> causal e mecanicista das ciências às novas<br />
abordagens de então na geografia e economia, e também na biologia:<br />
Segundo Darwin, a evolução é a soma das divergências resultantes de<br />
variações acidentais sofridas por indivíduos, que produz mudanças lentas,<br />
perpétuas e quase imperceptíveis; há uma quantidade inúmera de variações<br />
hereditárias, e elas vão <strong>em</strong> todas as direções. A essa doutrina da biologia<br />
cont<strong>em</strong>porânea, particularmente da biologia russa, cada vez mais contrapõese<br />
a da nomogênese: <strong>em</strong> grande medida a evolução é convergente, <strong>em</strong><br />
conseqüência de leis internas que abrang<strong>em</strong> enormes massas de pessoas ao<br />
longo de um vasto território, caracterizado por saltos, por paroxismos, por<br />
mutações bruscas; o número de variações hereditárias é limitado, e elas vão<br />
<strong>em</strong> direções determinadas [...] (Jakobson, 1962, p. 110).<br />
116
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Na passag<strong>em</strong> acima, e <strong>em</strong> várias outras de seus escritos, Jakobson cita o biólogo russo<br />
Leo S. Berg, cuja <strong>teoria</strong> ortogenética da evolução postulava que "a evolução é um<br />
desenvolvimento de rudimentos ou potencialidades preexistentes (como no modelo da<br />
<strong>em</strong>briologia), <strong>em</strong> vez de uma série de respostas adaptáveis das espécies aos seus ambientes<br />
com a formação aleatória de novas características, como é para Darwin." (Seriot, 1999, p. 17).<br />
Jakobson parece ter permanecido cético por toda a vida <strong>em</strong> relação à idéia que a variação<br />
aleatória des<strong>em</strong>penha um papel na evolução orgânica. Em 1974, por ex<strong>em</strong>plo, ele escreveu<br />
que "... os estudantes de evolução lingüística pod<strong>em</strong> se perguntar se a multiplicação de erros<br />
nas mensagens genéticas, que direciona a multiplicação de sist<strong>em</strong>as vivos, acontece por<br />
acaso." (Jakobson, 1974, p. 103).<br />
Em uma discussão sobre as relações entre a biologia e lingüística, publicada <strong>em</strong> 1974,<br />
Jakobson argumenta que explicações teleológicas são apropriadas na lingüística e na biologia<br />
(Jakobson, 1990, p. 481-484). Ele menciona vários biólogos que argumentam que algum tipo<br />
de conceito de fim é necessário para a compreensão científica de organismos vivos. Jakobson<br />
também observa que descobertas na biologia e na área de cibernética teriam permitido aos<br />
cientistas redefinir<strong>em</strong> a noção de teleologia de uma maneira que a distingue das noções<br />
anacrônicas da causa final e força vital. Menciona que nesse caso o termo “teleonomia” t<strong>em</strong><br />
sido sugerido por alguns autores como alternativa, “livre das associações indesejáveis com o<br />
dogma metafísico aristotélico” (Jakobson, 1990, p. 483).<br />
No mesmo artigo, faz uma comparação abrangente entre a codificação química da<br />
informação genética e estrutura lingüística. Escreve:<br />
[...] nós pod<strong>em</strong>os afirmar que entre todos os sist<strong>em</strong>as portadores de<br />
informação, o código genético e o código verbal são os únicos com base na<br />
utilização de componentes discretos que, por si só, são destituídos de<br />
significado inerente, mas serv<strong>em</strong> para constituir as unidades mínimas<br />
significativas, ou seja, entidades dotadas de seu próprio significado<br />
intrínseco no código fornecido. (Jakobson, 1990, p. 475)<br />
Ele encontra ainda mais s<strong>em</strong>elhanças entre os dois "códigos", mas, notavelmente, não<br />
menciona a seleção natural quando faz essas comparações, n<strong>em</strong> no resto do mesmo artigo.<br />
(Outros aspectos das comparações de Jakobson entre a biologia e lingüística são tratados <strong>em</strong><br />
Shintani, 1999.)<br />
Uma síntese coerente da <strong>teoria</strong> genética e da <strong>teoria</strong> de seleção de natural darwiniana<br />
foi desenvolvida por cientistas no fim dos anos 30, e ela t<strong>em</strong> se mantido como consenso<br />
dominante <strong>em</strong> biologia desde então (Bowler, 1989, p.307 et seq.). Durante o mesmo período,<br />
o consenso <strong>em</strong> lingüística e antropologia t<strong>em</strong> sido o de que a mudança lingüística e a<br />
mudança cultural são fenômenos de natureza diferente da evolução biológica, e que analogias<br />
com a seleção natural não são apropriadas nas <strong>teoria</strong>s lingüística ou antropológica.<br />
Representantes desse consenso são as críticas de analogias evolucionárias <strong>em</strong> lingüística<br />
feitas por Joseph Greenberg e William Labov, ambos discutidos abaixo. As opiniões de<br />
Greenberg sobre o t<strong>em</strong>a, <strong>em</strong>bora escritas há mais de cinqüenta anos, ainda pod<strong>em</strong> ser<br />
consideradas representativas do consenso da lingüística atual 10 .<br />
10<br />
Cf., por ex<strong>em</strong>plo, Lightfoot, 2002 e Newmeyer, 2003 e 2004. Lightfoot (1999) contém críticas extensivas da<br />
abordag<strong>em</strong> evolucionária sobre mudança lingüística, feitas a partir do ponto de vista da gramática gerativa,<br />
117
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Joseph Greenberg (1915-2001), <strong>em</strong> dois artigos do final dos anos 50, apresenta dois<br />
argumentos principais contra a idéia de que as línguas evolu<strong>em</strong>. No primeiro artigo,<br />
"<strong>Linguag<strong>em</strong></strong> e <strong>teoria</strong> evolucionária" (Greenberg, 1971a), Greenberg argumenta que as línguas<br />
não evolu<strong>em</strong>, no sentido de que eles não avançam (avanço sendo definido como ajustamento<br />
ao ambiente) n<strong>em</strong> progrid<strong>em</strong> (o que significaria avançar numa direção considerada “boa”).<br />
Segundo ele, as línguas, ao longo de sua história, não se caracterizariam por um aumento da<br />
complexidade morfológica (como <strong>em</strong> Schleicher) ou da eficiência comunicativa (como <strong>em</strong><br />
Jespersen), e não haveria nenhuma correspondência entre avanço cultural e complexidade<br />
morfológica (a <strong>teoria</strong> de Schleicher foi entendida como implicando tal correspondência).<br />
Além disso, de qualquer modo a complexidade morfológica não seria uma base válida para a<br />
comparação do avanço das línguas e não haveria maneira conhecida de comparar línguas <strong>em</strong><br />
termos de sua eficiência como ferramentas comunicativas.Conclui, assim, que as línguas não<br />
avançam, e que não há nenhum argumento conclusivo de que qualquer língua seja mais<br />
eficiente que outra.<br />
No segundo artigo, "<strong>Linguag<strong>em</strong></strong> e evolução" (Greenberg, 1971b), Greenburg aborda a<br />
relevância da <strong>teoria</strong> de Darwin para a lingüística. Apresenta vários argumentos inidcativos de<br />
que as línguas não evolu<strong>em</strong> através de um processo análogo ao da seleção natural: o de que o<br />
aumento ou redução do número de falantes de uma língua, interpretados por alguns autores<br />
como uma luta entre idiomas para sobreviver, na verdade ocorreria por razões não-lingüísticas<br />
(assim como observou Müller); o de que a mudança lingüística, da qual alguns aspectos foram<br />
comparados por Darwin e outros à seleção e à variação biológica, não manifestaria sinais de<br />
avanço; o de que a seleção natural geralmente produz avanço evolutivo, mas a mudança<br />
lingüística não manifestaria avanço, não podendo, portanto, ser devida a um processo de<br />
seleção natural. Nas próprias palavras dele: "Tomando a mudança lingüística como um todo,<br />
não parece haver nenhum movimento perceptível <strong>em</strong> direção à maior eficiência, como haveria<br />
de se esperar se, de fato, tivesse havido uma luta contínua <strong>em</strong> que as inovações lingüísticas<br />
superiores tivess<strong>em</strong> vencido de um modo geral" (Greenberg 1971b:116).<br />
William Labov (1927-) Em Labov 2001 (p. 6-15), Labov trata de analogias entre a<br />
seleção natural e a mudança lingüística. Faz uma exegese cuidadosa das comparações de<br />
Darwin entre línguas e espécies, e reitera vários dos pontos defendidos por Greenberg. Do<br />
ponto de visto de Labov (e também, segundo ele, da maioria dos lingüistas nos últimos 200<br />
anos), a mudança lingüística não é um processo de adaptação gradual dos meios<br />
comunicativos a fins comunicativos (como foi para Jespersen, por ex<strong>em</strong>plo): "A opinião<br />
quase universal dos lingüistas é a contrária: que o maior agente de mudança lingüística – a<br />
mudança fonética – é realmente mal-adaptativa, no sentido que leva à perda das informações<br />
que as formas originais foram projetadas para portar." (Labov, 2001, p.10). Em outra página<br />
ele escreve:<br />
A mudança fonética, a maior e mais penetrante fonte de tais mudanças [i.e.<br />
estruturais], não é o resultado de nenhuma adaptação da língua ao seu<br />
ambiente. Embora a analogia e o <strong>em</strong>préstimo entre dialetos possam<br />
compensar alguns dos danos às estruturas lingüísticas causados por<br />
mudança fonética, suas operações são d<strong>em</strong>asiadamente episódicas e<br />
tratando de vários dos lingüistas mencionados no presente artigo. As implicações das idéias de Chomsky para a<br />
abordag<strong>em</strong> evolucionária são discutidas <strong>em</strong> Keller, 1994, p. 54-57, 126-133.<br />
118
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
imprevisíveis para ser<strong>em</strong> comparadas à operação sist<strong>em</strong>ática de seleção<br />
natural (Labov, 2001, p. 14).<br />
O principal argumento de Labov pode ser resumido assim: a mudança fonética é<br />
“disfuncional” e, portanto, não adaptativa; ela é a principal causa de mudanças estruturais nas<br />
línguas; portanto pod<strong>em</strong>os concluir que a mudança lingüística não é análoga à seleção natural.<br />
Assim, ele conclui que "A evolução das espécies e a evolução das línguas são idênticas <strong>em</strong><br />
forma, <strong>em</strong>bora suas causas fundamentais sejam completamente diferentes", e refere-se a essa<br />
conclusão como "o paradoxo de Darwin" (Labov 2001, p. 14). Ironicamente, é a descoberta<br />
de variação sociolingüística pelas sociolingüistas, dos quais Labov é o mais pre<strong>em</strong>inente, que<br />
contribuiu muito para dar vida nova a analogias evolutivas <strong>em</strong> lingüística, possibilitando<br />
comparações extensivas com a variação <strong>em</strong> seleção natural (cf. Rosenbach, 2008, p. 32 et<br />
seq.).<br />
4) Conclusão<br />
O levantamento feito neste trabalho mostra que a influência de Darwin na lingüística<br />
vai muito além de uma mera contribuição ao estabelecimento do "preconceito evolutivo"<br />
mencionado por Sapir. Schleicher encaixou os conceitos de Darwin dentro de sua própria<br />
<strong>teoria</strong> de linguag<strong>em</strong> e da história das línguas, inspirado por <strong>teoria</strong>s filosóficas. Müller, durante<br />
40 anos, engajou-se nas implicações do darwinismo para a orig<strong>em</strong> da linguag<strong>em</strong> e para a<br />
própria lingüística. Paul e Jespersen propuseram explicações específicas e não teleológicas<br />
para a mudança lingüística, diretamente inspirada na <strong>teoria</strong> de seleção natural. E Bloomfield,<br />
com algumas reservas, aceitou a idéia de Jespersen sobre o progresso lingüístico. A influência<br />
de Paul pode ser vista no conceito de “deriva” de Sapir. E <strong>em</strong>bora Sapir não tivesse a intenção<br />
de desenvolver uma <strong>teoria</strong> de mudança com base <strong>em</strong> analogias biológicas, sua exposição da<br />
deriva fez com que alguns leitores assumiss<strong>em</strong> uma relação entre esse conceito e o de "deriva<br />
genética" <strong>em</strong> biologia (por ex<strong>em</strong>plo, Bichakjian, 2002, p. 53-54). Quanto a Boas, <strong>em</strong>bora<br />
tenha rejeitado a abordag<strong>em</strong> progressista, influenciada pelos escritos de Darwin sobre<br />
hom<strong>em</strong>, na antropologia, sua abordag<strong>em</strong> historicista e anti-progressista sobre linguag<strong>em</strong> e<br />
cultura tiveram fortes afinidades com a abordag<strong>em</strong> de Darwin sobre história natural, cujas<br />
contribuições nessa área ele reconheceu. A rejeição de Greenberg a analogias evolutivas<br />
manteve-se como consenso <strong>em</strong> lingüística até o momento atual. As observações de Darwin<br />
<strong>em</strong> A Descendência do Hom<strong>em</strong> sobre as s<strong>em</strong>elhanças entre a mudança lingüística e a<br />
transformação de espécies têm sido lida por multidões, e s<strong>em</strong> dúvida eram familiares, pelo<br />
menos indiretamente, a todos os escritores mencionados acima. Essas observações foram<br />
citadas e discutidas por lingüistas até os t<strong>em</strong>pos presentes, como pode ser visto, por ex<strong>em</strong>plo,<br />
nas críticas por William Labov discutidas na seção anterior.<br />
Como se pode esperar, todos os estudiosos tratados neste artigo foram influenciados<br />
pelo pensamento biológico da sua época. Schleicher e Müller tentaram adaptar o darwinismo<br />
à filosofia al<strong>em</strong>ã da época do romantismo, também fort<strong>em</strong>ente influenciada pela biologia<br />
(<strong>em</strong>bora pré-darwiniana) que foi um el<strong>em</strong>ento importante na fundação da lingüística histórica.<br />
Os escritos de Paul, Jespersen e Boas ex<strong>em</strong>plificam o darwinismo ortodoxo do fim do século<br />
XIX. As atitudes de Sapir e Jakobson sobre a evolução darwiniana reflet<strong>em</strong> o "eclipse do<br />
119
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
darwinismo" das primeiras décadas do século XX 11 . Os artigos de Greenberg tomam como<br />
base de reflexão o consenso obtido pós-Segunda Guerra Mundial <strong>em</strong> biologia, conhecido<br />
como a "nova síntese". Na verdade, é algo perturbador ver como as idéias dos lingüistas sobre<br />
a biologia segu<strong>em</strong> com uma previsibilidade quase determinística o pensamento biológico de<br />
suas respectivas épocas. (Consulte Bowler, 1989 para uma história da idéia de evolução na<br />
biologia.)<br />
A investigação resumida neste artigo foi <strong>em</strong>preendida com o propósito de fornecer um<br />
contexto para a avaliação das abordagens cont<strong>em</strong>porâneas evolucionárias à mudança<br />
lingüística. Nos autores discutidos acima, três t<strong>em</strong>as pod<strong>em</strong> ser apontados como recorrentes<br />
nas discussões de analogias biológicas <strong>em</strong> lingüística: a seleção natural, o progresso e a<br />
teleologia. Explícita ou implicitamente, esses estudiosos consideraram as seguintes perguntas.<br />
a maneira como certas variantes lingüísticas se tornam a norma <strong>em</strong> uma língua é parecida com<br />
o processo darwiniano de variação e seleção na biologia?; as línguas progrid<strong>em</strong> ao longo do<br />
t<strong>em</strong>po de uma maneira análoga à maneira <strong>em</strong> que pod<strong>em</strong>os dizer que as espécies biológicas<br />
progrid<strong>em</strong> na evolução pelo processo de seleção natural?; os processos de mudança<br />
lingüística manifestam uma direção ou finalidade, direcionada ou causada por fatores internos<br />
ao sist<strong>em</strong>a da própria língua, s<strong>em</strong>elhante à teleonomia que os teóricos de sist<strong>em</strong>as complexos<br />
afirmam estar presente <strong>em</strong> sist<strong>em</strong>as físicos, químicos e biológicos?<br />
Como visto nas seções anteriores, de 1860 até a Segunda Guerra Mundial, muitos<br />
lingüistas ilustres pensaram e escreveram sobre essas perguntas, mas desde então tais noções<br />
têm geralmente sido descartadas como irrelevantes ou não mais dignas de consideração. Só é<br />
possível fazer aqui uma breve referência a alguns dos estudiosos cont<strong>em</strong>porâneos que estão<br />
tentando revitalizar esses t<strong>em</strong>as e torná-los relevantes para a investigação lingüística. Modelos<br />
de mudança lingüística baseadas no conceito de seleção natural foram propostos por várias<br />
lingüistas ao longo dos últimos vinte anos. Encontramos um levantamento destes trabalhos<br />
<strong>em</strong> Rosenbach, 2008. Esses autores argumentam que os avanços ocorridos desde a década de<br />
1960, na biologia evolutiva e na lingüística, permit<strong>em</strong> analogias apropriadas e úteis entre os<br />
dois campos. Uma reconsideração favorável à idéia que as línguas pod<strong>em</strong> variar <strong>em</strong> sua<br />
complexidade relativa e à noção correlacionada de que as línguas pod<strong>em</strong> progredir encontrase<br />
<strong>em</strong> Sampson (2009). O lingüista sueco Östen Dahl (2004), fazendo referência à <strong>teoria</strong> de<br />
sist<strong>em</strong>as complexos, propõe uma <strong>teoria</strong> de "processos de maturação" <strong>em</strong> mudança lingüística<br />
que faz l<strong>em</strong>brar o conceito de Sapir de padrões culturais cíclicas.<br />
A questão da teleologia t<strong>em</strong> reaparecido com as tentativas de aplicar a <strong>teoria</strong> de<br />
sist<strong>em</strong>as complexos para o estudo da linguag<strong>em</strong>. Essa abordag<strong>em</strong> é uma <strong>teoria</strong> geral de<br />
processos dinâmicos, que tenta dar uma explicação unificada para a mudança e a <strong>em</strong>ergência<br />
de estruturas <strong>em</strong> sist<strong>em</strong>as inorgânicos, biológicos e culturais 12 . Como mencionado acima,<br />
Jakobson propôs, na década de 1970, que o conceito de teleologia, aplicado a sist<strong>em</strong>as<br />
lingüísticos, pudesse ser utilmente reinterpretado como teleonomia à luz da <strong>teoria</strong> de sist<strong>em</strong>as<br />
e da cibernética (que são os precursores da <strong>teoria</strong> cont<strong>em</strong>porânea de sist<strong>em</strong>as complexos).<br />
A maioria dos lingüistas cont<strong>em</strong>porâneas que trabalham com a abordag<strong>em</strong><br />
evolucionária pertenc<strong>em</strong> à tendência funcionalista <strong>em</strong> lingüística (<strong>em</strong>bora <strong>aplicações</strong> da <strong>teoria</strong><br />
de sist<strong>em</strong>as complexos dentro da perspectiva gerativa também tenham sido propostas, por<br />
11 Jespersen, 1909, também mostra a influência do pensamento evolucionista não darwinista desse período.<br />
12 Sumários gerais dessa abordag<strong>em</strong> aplicada à lingüística encontram-se <strong>em</strong> Beckner et al. (2009), Larsen-<br />
Fre<strong>em</strong>an e Cameron (2008), e Ke (2004).<br />
120
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ex<strong>em</strong>plo, Lightfoot, 1999, p. 253 et seq.). Por fim, vale dizer que uma questão permanece <strong>em</strong><br />
aberto: saber se essas novas formas de retomar velhas perguntas d<strong>em</strong>onstrarão resultados úteis<br />
para a <strong>teoria</strong> e descrição das línguas naturais e da história delas.<br />
Referências<br />
ANDERSEN, F; BACHE, C. August Schleicher: towards a better understanding of his concept of<br />
language change. Anthropological Linguistics, v. 18, n. 9, p. 428-437, 1976.<br />
BECKNER, C.; BLYTHE, R.; BYBEE, J.; CHRISTIANSEN, M. H.; CROFT, W.; ELLIS, N. C.;<br />
HOLLAND, J.; KE, J.; LARSEN-FREEMAN, D.; SCHOENEMANN, T. Language is a complex<br />
adaptive Syst<strong>em</strong>: Position Paper. Language Learning, New York: Wiley-Blackwell, v. 59, suppl<strong>em</strong>ent<br />
1, p.1-26, 2009.<br />
BICHAKJIAN, B. H. Language in a darwinian perspective. Frankfurt am Main: P. Lang, 2002.<br />
BLOCH, B. Language, v.17, n. 4, p. 350-353, Oct./Dec. 1941. Resenha de: JESPERSEN, Otto.<br />
Efficency in Linguistic Change. Copenhagen: Munksgaard, 1941. 90 p.<br />
BOAS, F. The history of anthropology. Science, New Series, v. 20, n. 512, p. 513-524, Oct. 1904.<br />
______. Language. In: ______ (Org.). General anthropology. Boston: Heath, 1938, p. 124-145.<br />
______. Introduction to the handbook of american indian languages. In: HOLDER, P. (Org.).<br />
Introduction to the handbook of american indian languages by Franz Boas & indian linguistic families<br />
of America North of Mexico by J.W. Powell. Lincoln, Nebraska: Univ. of Nebraska, 1966. Edição facsimilar.<br />
______. The relation of Darwin to anthropology. Boas Papers (B/B61.5), American Philosophical<br />
Society, Philadelphia, PA, [1909?]. [Publicado como apêndice A da versão on line de LEWIS, 2001]<br />
BOWLER, P. J. Evolution: The history of an idea. rev. ed. Berkeley: University of California, 1989.<br />
DAHL, O. The growth and maintenance of linguistic complexity. Amsterdam: Benjamins, 2004.<br />
DARWIN, C. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured<br />
races in the struggle for life. 1st ed. London: Murray, 1859. [versão on line: darwin-online.org.uk]<br />
______. Charles. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of<br />
favoured races in the struggle for life. 3rd ed. London: Murray, 1861. [versão on line: darwinonline.org.uk]<br />
______. The descent of man, and selection in relation to sex. 3rd. ed. v. 1. London: Murray, 1871.<br />
[versão on line: darwin-online.org.uk]<br />
DAVIES, A. M. "Organic" and "organism" in Franz Bopp. In: HOENIGSWALD, H.; WEINER, L. F.<br />
(Orgs.) Biological metaphor and cladistic classification. Philadelphia: U. of Penn., 1987, p. 81-107.<br />
121
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
FALK, J. S. Otto Jespersen, Leonard Bloomfield, and american structural linguistics. Language, v. 68,<br />
n. 3, p. 465-491, sept. 1992.<br />
GREENBERG J. H. Language and evolutionary Theory. In: ______. Language culture and<br />
communication. Stanford: Stanford University, 1971a, p.78-92.<br />
______. Language and evolution. In: ______. Language culture and communication. Stanford:<br />
Stanford University, 1971b, p.106-125.<br />
HARRIS, M. The Rise of anthropological theory. London: Routledge and Kegan Paul, 1968.<br />
HOLENSTEIN, Elmar. Jakobson's and Trubetskoy's Philosophical Background. In: POMORSKA, K.<br />
(Org.). Language, Poetry and Poetics. Berlin: Mouton de Gruyter,1987, p.15-31.<br />
HULL, D. L. Darwin and his critics. Chicago: University of Chicago, 1983.<br />
JAKOBSON, R. R<strong>em</strong>arques sur l'evolution phonologique du russe comparée à celle des autres<br />
langues. In : ______. Selected writings I: phonological studies. s’-Gravenhage: Mouton, 1962, p. 7-<br />
116.<br />
______. Life and language. Linguistics, v. 138, p. 97-103, 1974. Resenha de: JACOB, F. The logic of<br />
life: A history of heredity. New York: Pantheon, 1974. 349 p.<br />
______. Linguistics in relation to other sciences. In: ______. On Language. Cambridge,<br />
Massachusetts: Harvard, 1990, p. 451-488.<br />
JESPERSEN, O. Origin of linguistic species. Revista di Scienza “Scientia”, v. 6, p.111-120, 1909.<br />
[versão on line: http://amshistorica.cib.unibo.it/collection.php?set=rivscienza]<br />
______. Energetik der Sprache. Scientia, v.16, p. 225-235, 1914. [versão on line:<br />
http://amshistorica.cib.unibo.it/collection.php?set=rivscienza]<br />
______. Language: Its nature, development and origin. London: Allen and Unwin, 1922.<br />
______. Efficiency in linguistic change. In: Selected writings of Otto Jespersen. London: Allen and<br />
Unwin, [1941], p.381-466.<br />
______. Progress in language. Amsterdam: Benjamins, 1993. Edição fac-similar.<br />
KE, J. Self-Organization and Language Evolution: Syst<strong>em</strong>, Population and Individual. Hong Kong,<br />
2004. 333 f. Tese de Doutorado. Departamento de Engenharia Elétrica, City University of Hong Kong.<br />
KELLER, R. On language change: the invisible hand in language. London: Routledge, 1994.<br />
KNOLL, E. The science of language and the evolution of mind: Max Müller's quarrel with darwinism.<br />
Journal of the History of the Behavioral Sciences, v.22, p.3-22, Jan. 1986.<br />
LABOV, W. Principles of linguistic change: social factors. Oxford: Blackwell, 2001. v. 2.<br />
LARSEN-FREEMAN, D.; CAMERON, L. Complex syst<strong>em</strong>s and applied lingustics. Oxford: Oxford<br />
University, 2008.<br />
122
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
LEWIS, H. S. Boas, Darwin, science, and anthropology. Current Anthropology, v. 42, n. 3, p. 381-<br />
406, June 2001.<br />
LIGHTFOOT, D. The development of language. Oxford: Blackwell, 1999.<br />
______. Journal of Linguistics, v.38, n. 2, 2002, p. 410-414. Resenha de: CROFT, W. Explaining<br />
language change. London: Longman, 2000. xv + 287 p.<br />
MAHER, J. P. Introduction. In: KOERNER, K. (Org.). Linguistics and evolutionary theory: three<br />
essays. Amsterdam: Benjamins, 1983, p. xvii-xxxii.<br />
MAYR, E. What evolution is. New York: Basic Books, 2001.<br />
MCCAWLEY, J.D.The biological side of Otto Jespersen's linguistic thought. Historiographia<br />
Linguistica. v. 19, n. 11, 1992, p. 97-110.<br />
MCCAWLEY, J.D. Introduction. In: JESPERSEN, O. Progress in language. Amsterdam: Benjamins,<br />
1993, p. 09-17.<br />
MCMAHON, A. S. Understanding language change. Cambridge: Cambridge University;<br />
MÜLLER, M. Lectures on the science of language. London: Longman, Green, Longman, and Roberts,<br />
1861.<br />
MÜLLER, M. Lectures on the science of language, Second Series. Longman, Green, Longman,<br />
Roberts, & Green, 1864.<br />
MÜLLER, F. M. The science of language. Nature, 6 Jan. 1870, p.256-259. Resenha de:<br />
SCHLEICHER, August. Darwinism tested by the Science of Language. London: Hotten, 1869. [versão<br />
on line: http://digital.library.wisc.edu/1711.dl/HistSciTech.Nature18700106]<br />
NEWMEYER, F. J. Language, v. 79, n.3, p. 583–99, 2003. Resenha de: BICHAKJIAN, B. H.<br />
Language in a darwinian perspective. Frankfurt am Main: P. Lang, 2002.<br />
NEWMEYER, F. J. Letters to language. Language, v. 80, n.1. p.3, 2004.<br />
PAUL, H. Princípios fundamentais da história da língua. 2. ed. Trad. Maria Luisa Sch<strong>em</strong>ann. Lisboa:<br />
Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.<br />
PERCIVAL, W. K. Biological analogy in the study of language before the advent of comparative<br />
grammar. In: HOENIGSWALD, H.; WEINER, L. F. (Orgs.) Biological metaphor and cladistic<br />
classification: an interdisciplinary perspective. Philadelphia: Univ. of Penn., 1987, p. 3-38.<br />
RICHARDS, R. J. The linguistic creation of man. In: DOERRIES, M. (org.). Experimenting in<br />
tongues: studies in science and language. Stanford: Stanford University, 2002, p.21-48.<br />
ROSENBACH, A. Language change as cultural evolution. In: ECKARDT, R.; JÄGER, G.;<br />
VEENSTRA, T. (Orgs.). Variation, selection, development. Berlin: Mouton de Gruyter, 2002, p. 23-<br />
72.<br />
SAMPSON, G. A linguistic axiom challenged. In: ______.; GIL, D.; TRUDGILL, P. (Orgs.)<br />
Language complexity as an evolving variable. Oxford: Oxford University Press, 2009, p.1-18.<br />
123
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
SAPIR, E. Language: An introduction to the study of speech. New York: Harcourt, Brace, 1921.<br />
______. Selected writings of Edward Sapir. Berkeley: University of California, 1949.<br />
______. A linguag<strong>em</strong>. 2 ed. Tradução de Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Acad<strong>em</strong>ia, 1971.<br />
______. The psychology of culture (1927-37). In: ______. The collected works of Edward Sapir,<br />
Volume III, Culture. Berlin: Mouton de Gruyter, 1999, p.421-678.<br />
SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2006.<br />
SCHLEICHER, A. Darwinism tested by the science of language. Tradução de V. W. Bikkers. In:<br />
KOERNER, K. (Org.). Linguistics and evolutionary theory: three essays. Amsterdam: Benjamins,<br />
1983. Edição fac-similar. [Reprodução da edição de 1869]<br />
SCHREMPP, G. The re-education of Friedrich Max Muller. Man, New Series, v. 18, n. 1, Mar. 1983,<br />
p. 90-110.<br />
SERIOT, P. The impact of czech and russian biology on the linguistic thought of the prague linguistic<br />
circle. Travaux du cercle linguistique du Prague, nouvelle série, v. 3, p. 15-24, 1999.<br />
SHINTANI, L. Roman Jakobson and biology. S<strong>em</strong>iotica, v. 127, no.1-4, 1999, p.103-113.<br />
SILVERSTEIN, M. The diachrony of Sapir's synchronic linguistic description. In: New perspectives in<br />
language, culture, and personality. Amsterdam: Benjamins, 1986, p.67-110.<br />
WHITNEY, W. D. Language and the study of language. London: Trübner, 1867.<br />
124
Gramática e <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> nos Estudos Formais<br />
Livy Real (UFPR) 1<br />
Ricardo Andrade (IME-USP) 2<br />
Resumo: Considerando a interface entre linguística e ciência da computação, faz-se necessária a discussão de<br />
seus objetos de estudo e da nomenclatura assumida por cada uma destas áreas. Para isso, abordar<strong>em</strong>os as<br />
definições de linguag<strong>em</strong> e gramática geralmente utilizadas pela ciência da computação (CC), a saber pela <strong>teoria</strong><br />
de autômatos e linguagens formais, e pela linguística formal (LF), particularmente a de base montagoviana. Na<br />
CC, linguag<strong>em</strong> pode ser definida como os strings (palavras ou cadeias de símbolos) formados a partir dos<br />
el<strong>em</strong>entos da gramática, que são, basicamente, regras de boa formação e léxico. Já na LF, grosso modo,<br />
linguag<strong>em</strong> é um termo mais abrangente que gramática, sendo a gramática parte da linguag<strong>em</strong>. Geralmente,<br />
entende-se que gramática é o conjunto de regras capaz de originar parte da linguag<strong>em</strong>. No entanto, sob o rótulo<br />
linguag<strong>em</strong>, há ainda el<strong>em</strong>entos de fundamental importância para o linguista, como o léxico e a ontologia da<br />
língua. Comparando gramática e linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> ambas as áreas, percebe-se que enquanto na CC a linguag<strong>em</strong> é<br />
gerada pela aplicação da gramática, na LF, a gramática é um el<strong>em</strong>ento a mais na linguag<strong>em</strong>, sendo esta última o<br />
rótulo pelo qual entend<strong>em</strong>os o objeto mais abrangente que t<strong>em</strong>os. Considerando que as duas áreas entend<strong>em</strong><br />
gramática e linguag<strong>em</strong> de maneira ligeiramente diferente, discutir<strong>em</strong>os (i) que tipo de objeto é criado<br />
considerando os construtos teóricos de cada área, e (ii) <strong>em</strong> que medida é a preocupação com línguas artificiais<br />
ou com línguas naturais que produziu as diferenças que encontramos nestes construtos.<br />
1) Introdução<br />
Este texto é parte de um estudo maior que visa esmiuçar s<strong>em</strong>elhanças, diferenças e<br />
fronteiras entre os estudos formais na linguística e os estudos linguísticos dentro da ciência da<br />
computação. Tal estudo, entend<strong>em</strong>os, faz-se necessário, considerando-se a grande quantidade<br />
que há de trabalhos nestas áreas, ou mesmo na interface delas, que parec<strong>em</strong> fazer uso dos<br />
mesmos conceitos, ainda que sejam trabalhos <strong>em</strong> duas áreas que pod<strong>em</strong> ser consideradas<br />
bastante distantes: o estudo da linguag<strong>em</strong> humana e o estudo da computação. Ao perceb<strong>em</strong>os<br />
que aparent<strong>em</strong>ente conceitos como gramática, linguag<strong>em</strong> e léxico são relevantes para ambas<br />
as áreas, ainda que estas pareçam ter preocupações diferentes - isto é, parec<strong>em</strong> ter objetos de<br />
estudo diferentes - discutimos <strong>em</strong> que medida estes conceitos são os mesmos e, caso não<br />
sejam, <strong>em</strong> que medida uma área pode <strong>em</strong>prestar certo conceito de outra s<strong>em</strong> que haja uma<br />
reformulação de sua significação.<br />
Para iniciar esta discussão, considerar<strong>em</strong>os os conceitos de gramática e linguag<strong>em</strong> nos<br />
estudos formais da linguística e na Teoria de Autômatos e Linguagens Formais, que se insere<br />
dentro da Teoria da Computação. O que entend<strong>em</strong>os aqui por “estudos formais da linguística”<br />
são basicamente as <strong>teoria</strong>s gerativista e montagoviana, que se inser<strong>em</strong> no chamado<br />
formalismo linguístico. Considerar<strong>em</strong>os apenas a visão formalista da linguística por ser esta a<br />
que mais se aproxima e a que mais interfaceia os estudos computacionais, mas de forma<br />
alguma negamos a necessidade dos estudos funcionalistas dentro da linguística. Em um<br />
estudo no qual a principal preocupação fosse comparar estes mesmos conceitos dentro da<br />
própria linguística, consideraríamos, obviamente, as concepções funcionalistas de gramática e<br />
linguag<strong>em</strong>.<br />
Optamos tratar destes dois conceitos, gramática e linguag<strong>em</strong>, por nos parecer<strong>em</strong> muito<br />
básicos e pertinentes às duas áreas. Dev<strong>em</strong>os ainda ressaltar que, para o estudo destes<br />
1 Programa de <strong>Pós</strong>-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong> da Universidade Federal do Paraná/CAPES<br />
2 Programa de <strong>Pós</strong>-Graduação IME-USP/CAPES<br />
125
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
conceitos <strong>em</strong> uma literatura <strong>em</strong> português, é necessário um certo cuidado com a tradução de<br />
determinados termos técnicos, como language do inglês. Adotar<strong>em</strong>os aqui linguag<strong>em</strong> como o<br />
termo que traduz language (inglês) e language (do francês). Não trabalhar<strong>em</strong>os casos nos<br />
quais estes dois termos claramente defin<strong>em</strong> o que <strong>em</strong> português definimos como língua.<br />
Nestas reflexões, o único momento no qual poderíamos traduzir language por língua é na<br />
expressão natural language, que, <strong>em</strong> português, traduzimos normalmente por língua natural.<br />
Como nos pontos <strong>em</strong> que a citamos não é probl<strong>em</strong>ático traduzi-la por linguag<strong>em</strong> natural, já<br />
que não estar<strong>em</strong>os tratando especificamente de uma língua e sim da própria<br />
faculdade/habilidade da linguag<strong>em</strong>, manter<strong>em</strong>os nossa tradução de language por linguag<strong>em</strong>.<br />
Para a discussão que propromos, analisar<strong>em</strong>os as definições de gramática e linguag<strong>em</strong><br />
assumidas por J. Lyon, <strong>em</strong> S<strong>em</strong>antics (primeira edição <strong>em</strong> 1977) e <strong>em</strong> Language and<br />
Liguistics (primeira edição de 1981), e por J. Dubois et alli, <strong>em</strong> Dictionnaire de Linguistique<br />
(primeira edição de 1973), como rótulos comumente assumidos dentro da linguística, <strong>em</strong><br />
contraposição às definições de B. Partee et alli, <strong>em</strong> Math<strong>em</strong>atical Methods in Linguistcs<br />
(primeira edição de 1990), e N. Chomsky, <strong>em</strong> Knowledge of Language (primeira edição de<br />
1986), como concepções largamente assumidas no que chamamos de estudos formais. Para<br />
comparar tais definições à assumida pela ciência da computação, adotar<strong>em</strong>os as definições de<br />
J. Hopcroft et alli (2002) e de Sipser (2006), manuais de grande aceitação por parte dos teóricos<br />
da área.<br />
Desta forma, pretend<strong>em</strong>os, mesmo que de forma resumida, apreender o que estas áreas<br />
assum<strong>em</strong> sob estes dois rótulos tão comuns. Mais uma vez, visamos, com esta comparação,<br />
não só delimitar as possíveis diferenças que há entre estes conceitos <strong>em</strong> cada uma das<br />
subáreas, como também discutir <strong>em</strong> que medida o <strong>em</strong>préstimo destes conceitos se deu<br />
cegamente, isto é, s<strong>em</strong> considerar as diferenças entre as áreas que, <strong>em</strong> última <strong>análise</strong>, têm<br />
distintos objetos de estudo. Pretend<strong>em</strong>os ainda discutir <strong>em</strong> que medida não seria o próprio<br />
objeto de estudo que moldaria o que é entendido sob o mesmo rótulo teórico nas diferentes<br />
áreas.<br />
2) Linguística<br />
2.1) Dubois et alli<br />
Para os autores, no renomado Dicionário de Linguística (1999), linguag<strong>em</strong>:<br />
é a capacidade específica à espécie humana de comunicar por meio de um<br />
sist<strong>em</strong>a de signos vocais (ou língua), que coloca <strong>em</strong> jogo uma técnica<br />
corporal complexa e supõe uma existência de uma função simbólica e de<br />
centro nervosos geneticamente especializados. Esse sist<strong>em</strong>a de signos<br />
vocais utilizado por um grupo social (ou comunidade linguística)<br />
determinado constitui uma língua particular (...) (p.387).<br />
É possível notar que a preocupação do texto é delimitar linguag<strong>em</strong> como algo intrínseco<br />
126
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
à espécie humana, o que exclui a comunicação de animais e as chamadas linguagens formais,<br />
como a lógica e as linguagens de programação. Também é evidente, nesta definição, uma<br />
certa preocupação com a relação entre língua, linguag<strong>em</strong> e a necessidade de uma comunidade<br />
linguística para que uma língua se realize.<br />
Já gramática recebe uma definição mais complexa (p.313-6). Além de possuir entradas<br />
para gramática geral e gramática gerativa, o dicionário aponta ao menos quatro conceitos<br />
que estão sob o rótulo gramática: (i) “descrição completa da língua, isto é, dos princípios de<br />
organização da língua”; (ii) “descrição dos morf<strong>em</strong>as gramaticais e lexicais, o estudo de suas<br />
formas (flexão) e de suas combinações para formar palavras (formação de palavras) ou frases<br />
(sintaxe)”; (iii) “descrição dos morf<strong>em</strong>as gramaticais (artigos, conjunções, preposições, etc),<br />
excluindo-se os morf<strong>em</strong>as lexicais (substantivos, adjetivos, verbos, advérbios de modo, etc), e<br />
a descrição de suas regras”; (iv) “para a linguística gerativa, é o modelo de competência ideal<br />
que estabelece certa relação entre o som (representação fonética) e o sentido (interpretação<br />
s<strong>em</strong>ântica)”.<br />
É interessante notar a relação existente entre as três primeiras definições apontadas por<br />
Dubois et alli: (i) é a descrição geral da língua, (ii) é a descrição lexical e morfosintática de<br />
uma língua, e (iii) é a descrição sintática de uma língua. Por sua vez, a definição (iv) é já uma<br />
referência, ainda que bastante rasa, ao que a gramática gerativa entenderia por gramática: um<br />
modelo que gera pares de som e significado.<br />
2.2) Lyons<br />
Ainda que antiga, o Lingua(g<strong>em</strong>) e Linguística: uma introdução de John Lyons (1981) é<br />
ainda uma importante referência, não só histórica, para muitos cursos de <strong>graduação</strong>. Isto,<br />
acreditamos, por sua clareza e simplicidade discutindo t<strong>em</strong>as, como o que é a linguística, que<br />
parec<strong>em</strong> óbvios, mas são de difícil definição. Por estas duas razões, sua relevância e sua<br />
simplicidade, adotamos também as definições de linguag<strong>em</strong> e gramática de seu manual como<br />
ex<strong>em</strong>plo do que pod<strong>em</strong>os entender sob estes rótulos “linguisticamente” falando.<br />
Boa parte de seu primeiro capítulo é uma discussão sobre como pode ser definido<br />
linguag<strong>em</strong>. Para tal, Lyons revisita importantes teóricos - como Sapir, Bloch & Trager, Hall,<br />
Robins e Chomsky - e discute a visão de linguag<strong>em</strong> de cada um deles e suas diferentes linhas<br />
teóricas. Sua discussão é longa e interessante, partindo do estruturalismo norte-americano e<br />
chegando à gramática gerativa, podendo ser resumida no fato do conceito linguag<strong>em</strong> estar<br />
s<strong>em</strong>pre relacionado à determinada corrente teórica, que definirá como o próprio conceito deve<br />
ser entendido. Teorias de cunho funcionalista verão na linguag<strong>em</strong> “o sist<strong>em</strong>a pelo qual grupos<br />
sociais interag<strong>em</strong>” ou “o método de comunicação humano”, enquanto <strong>teoria</strong>s de cunho<br />
formalista priorizarão a linguag<strong>em</strong> enquanto sist<strong>em</strong>a estrutural.<br />
Em relação ao termo gramática, Lyons o define como o el<strong>em</strong>ento formal da língua que<br />
descreve sua sintaxe e morfologia <strong>em</strong> oposição a outros níveis linguísticos, como a fonologia<br />
e a s<strong>em</strong>ântica (1982, p.101; 1984, p.378). O que pod<strong>em</strong>os notar é que enquanto Lyons<br />
apresenta uma profunda preocupação com o termo linguag<strong>em</strong>, gramática parece ser somente<br />
as regras que defin<strong>em</strong> formação de palavra e de frases.<br />
127
2.3) Linguística Formal<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Nesta seção, ver<strong>em</strong>os as definições de gramática e linguag<strong>em</strong> sob o rótulo que<br />
chamamos anteriormente de linguística formal, isto é, a área da linguística que vê a linguag<strong>em</strong><br />
antes como estrutura do que como uso ou comunicação. Para tal, eleg<strong>em</strong>os duas referências<br />
bibliográficas relevantes para estudiosos da área: Math<strong>em</strong>atical Methods in Linguistics de B.<br />
Partee et alli (1990) e Knowledge of Language, N. Chomsky (1986). Entend<strong>em</strong>os que ao<br />
esmiuçarmos as definições de Chomsky, a maior referência da gramática gerativa, e do<br />
manual de Partee et alli, usado largamente por teóricos formalistas não-gerativistas e<br />
gerativistas, conseguir<strong>em</strong>os desenhar um quadro razoável do que pode ser entendido como<br />
gramática e linguag<strong>em</strong> para linguistas formalistas.<br />
2.3.1) Chomsky<br />
Antes de começarmos a esmiuçar as definições dadas por Chomsky (1986) é relevante<br />
comentarmos que, diferent<strong>em</strong>ente de Dubois et alli (1999) e Lyons (1982, 1984), o autor não<br />
pretende escrever um manual, um livro genérico a ser consultado ou para servir de introdução<br />
à linguística. Seu texto Knowledge of Language insere-se <strong>em</strong> um momento histórico no qual a<br />
gramática gerativa já contava com um certo prestígio, o que permite o autor ser mais direto<br />
<strong>em</strong> asserções que concern<strong>em</strong> especificamente sua <strong>teoria</strong>, isto é, Chomsky já neste livro pode<br />
contar que seus leitores já conheçam as definições de linguag<strong>em</strong> e gramática usadas<br />
normalmente na linguística, e que estes mesmos leitores já saibam que a gramática gerativa<br />
entenderá a linguag<strong>em</strong> mais como forma do que como método de comunicação e iteração.<br />
Graças a este conhecimento prévio do leitor de Chomsky aliado ao fato de ser este o texto que<br />
apresenta uma grande defesa de determinados princípios da <strong>teoria</strong> gerativa (como a<br />
delimitação de seu grande objeto de estudo: a gramática universal), as definições<br />
apresentadas aqui serão consideravelmente mais especializadas do que as presentes <strong>em</strong><br />
Dubois et alli (1999) e Lyons (1982, 1984).<br />
Para Chomsky, gramática só pode ser definido <strong>em</strong> função do que entende-se por<br />
linguag<strong>em</strong>: linguag<strong>em</strong> (language) abrange, na verdade, dois conceitos que, apesar de ser<strong>em</strong><br />
muito próximos, não são exatamente o mesmo. Para diferenciar estes conceitos, o autor<br />
distingue I-Language (linguag<strong>em</strong> internalizada) e E-Language (linguag<strong>em</strong> externalizada). A I-<br />
Language é o objeto de estudo da gramática gerativa: el<strong>em</strong>entos mentais que caracterizam o<br />
saber uma língua (Chomsky, 1986, Cap. 1). A linguag<strong>em</strong> internalizada já não depende da<br />
comunidade linguística, do uso da língua, ou, <strong>em</strong> última instância, da fala saussuriana. Já a Elanguage,<br />
a linguag<strong>em</strong> externalizada, é definida como um “epifenômeno da linguag<strong>em</strong>”, isto<br />
é, a linguag<strong>em</strong> externalizada é a forma como a linguag<strong>em</strong> internalizada se realiza, mas não é a<br />
língua/linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> si.<br />
Nota-se, então, que o conteúdo que autores como Dubois e Lyons entendiam estar sob o<br />
rótulo linguag<strong>em</strong> é dividido por Chomsky (1986) <strong>em</strong> dois e que apenas uma destas partes, a Ilanguage,<br />
é objeto de seu interesse. Isto, obviamente, t<strong>em</strong> também implicações sobre o rótulo<br />
gramática. Enquanto os autores anteriores chamavam de gramática, grosso modo, as regras da<br />
língua, <strong>em</strong> Knowlegde of Language, há pelo menos duas noções relevantes e distintas do que<br />
é gramática <strong>em</strong> relação ao estudo da I-language. A primeira diz respeito à <strong>teoria</strong> que tenta<br />
128
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
explicar o funcionamento da I-language através de abstrações mentais que geram uma língua<br />
específica (p. 22). A segunda, já bastante mais complexa, pressupõe a ideia de que todos os<br />
seres humanos, <strong>em</strong> condições normais, possu<strong>em</strong> algo biológico que possibilita a aquisição da<br />
fala. Tal capacidade seria a gramática universal, um dispositivo inato no ser humano<br />
relacionado à linguag<strong>em</strong> (p.24).<br />
Considerando as noções de gramática e linguag<strong>em</strong> presentes <strong>em</strong> Chomsky (1986),<br />
v<strong>em</strong>os que o objeto de estudo tratado pelo autor é distinto dos objetos tratados anteriormente<br />
e que conceitos básicos como gramática e linguag<strong>em</strong> adquiriram um estatuto bastante mais<br />
teórico.<br />
2.3.2) Partee et alli<br />
Como vimos, as definições apresentadas por Chomsky (1986) são de caráter bastante<br />
mais específico do que aquelas que visitamos anteriormente. Agora, considerar<strong>em</strong>os as<br />
definições bastante precisas dada por Partee et alli (1990), que são também bastante<br />
específicas, <strong>em</strong>bora o texto se trate de um manual. Partee et alli (1990), <strong>em</strong> Math<strong>em</strong>atical<br />
Methods to Linguistics, pretend<strong>em</strong> escrever um manual de conceitos e usos básicos de termos<br />
da mat<strong>em</strong>ática que pod<strong>em</strong> ser utéis a linguistas. Desta forma, ainda que o texto se trate de um<br />
manual, é algo consideravelmente específico, o que refletirá na natureza das definições. Tais<br />
definições serão também mais formais do que as que encontramos anteriormente, incluindo<br />
mesmo as propostas pro Chomsky (1986).<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, então é mat<strong>em</strong>aticamente definida como “um conjunto finito de palavras,<br />
morf<strong>em</strong>as ou alguma sequência finita de caracteres” (Cap. 16), ou seja, linguag<strong>em</strong> é todo o<br />
conjunto de el<strong>em</strong>entos de uma língua. Ao definir linguag<strong>em</strong> como o conjunto completo de<br />
el<strong>em</strong>entos de uma língua, afasta-se radicalmente das d<strong>em</strong>ais definições que encontramos na<br />
linguística, e, como ver<strong>em</strong>os, se aproxima da definição usada na ciência da computação. Vale<br />
a pena notar que, para Partee et alli, n<strong>em</strong> toda sequência de caracteres faz parte da linguag<strong>em</strong>,<br />
isto é, há sequências formadas por caracteres válidos que não faz<strong>em</strong> parte da linguag<strong>em</strong>. É<br />
justamente neste ponto que o conceito de gramática é relevante: é a gramática que vai ditar<br />
quais são as sequências gramaticais e que faz<strong>em</strong> parte da linguag<strong>em</strong> e quais não são.<br />
Assim, defin<strong>em</strong> gramática como sendo:<br />
um sist<strong>em</strong>a dedutivo de axiomas e regras de inferência que geram as<br />
sentenças de uma linguag<strong>em</strong> e seus teor<strong>em</strong>as. Pelas definições usuais, uma<br />
gramática contém apenas um axioma, o símbolo inicial e um número finito<br />
de regras na forma:<br />
ip → w,<br />
onde ip e w são cadeias de caracteres. (cf. Partee et alli, 1990, Sec. 16.2)<br />
O que a definição dos autores nos diz é que uma gramática é um axioma adicionado às<br />
regras que geram uma linguag<strong>em</strong>. Vale a pena notar que <strong>em</strong>bora a definição de gramática<br />
defina sentenças como o produto final que fará parte da linguag<strong>em</strong>, estas sentenças não são<br />
necessariamente sentenças complexas como as que v<strong>em</strong>os <strong>em</strong> sintaxe, sentenças (também<br />
129
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
chamadas de cadeias ou expressões) são o resultado da aplicação da regra. Assim, se estamos<br />
tratando de uma gramática de formação de palavras, as sentenças, ou seja, os objetos<br />
formados pelas regras, serão palavras e os el<strong>em</strong>entos formadores sons/letras/morf<strong>em</strong>as.<br />
Na definição dos autores há também outros el<strong>em</strong>entos n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre conhecidos dos<br />
linguistas: o símbolo inicial e as cadeias.<br />
Cadeias são o resultado da aplicação das regras, <strong>em</strong> nosso ex<strong>em</strong>plo acima, no qual<br />
tratamos de uma gramática de formação de palavras, as cadeias (ou sentenças) serão palavras.<br />
Em uma gramática para o nível sintático, as cadeias serão sintagmas ou frases.<br />
O símbolo inicial é a variável primeira da geração de uma linguag<strong>em</strong>, <strong>em</strong> geral,<br />
S(entença).<br />
É possível ainda notar que Partee et alli já na própria definição de gramática explicitam<br />
qual será o formato possível para uma regra, nesta caso, a regra de reescritura, muito similar<br />
às regras de reescritura da gramática gerativa da década de oitenta.<br />
Apresentar<strong>em</strong>os agora um pequeno ex<strong>em</strong>plo de uma gramática e de uma linguag<strong>em</strong> nos<br />
moldes “mat<strong>em</strong>áticos”:<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong> X:<br />
Maria ama Pedro.<br />
Pedro ama Maria.<br />
Maria odeia Pedro.<br />
Pedro odeia Maria.<br />
Maria vê Pedro.<br />
Pedro vê Maria.<br />
Gramática da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> X:<br />
Caracteres:<br />
maria, ama, pedro, odeia, vê<br />
símbolo inicial:<br />
S<br />
Regras de inferência:<br />
S → NP + VP<br />
VP → V + NP<br />
130
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
NP → maria<br />
NP → pedro<br />
V → odeia<br />
V → ama<br />
V → vê<br />
Como pod<strong>em</strong>os ver, a gramática da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> X é o que define quais as cadeias que<br />
estão ou não na <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> X e ao mesmo t<strong>em</strong>po a gramática da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> X é construída a<br />
partir da própria <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> X. É notável, então, uma relação intrínseca e necessária entre<br />
gramática e linguag<strong>em</strong> dentro dos estudos formais.<br />
3) Ciência da Computação<br />
Para a Ciência da Computação, os termos linguag<strong>em</strong> e gramática são precisamente<br />
definidos e aparec<strong>em</strong> inicialmente associados à <strong>teoria</strong> de autômatos, um ramo da <strong>teoria</strong> da<br />
computação que lida com definições e propriedades de modelos mat<strong>em</strong>áticos de computação,<br />
também chamados de máquinas abstratas, e que lida também com os probl<strong>em</strong>as que pod<strong>em</strong><br />
ser resolvidos por tais máquinas.<br />
Nesta seção, apresentar<strong>em</strong>os as definições de linguag<strong>em</strong> e gramática dentro da <strong>teoria</strong> de<br />
autômatos, e, para isto, apresentar<strong>em</strong>os também noções anteriores a estas, como alfabeto e<br />
string, necessárias à compreensão destes termos. Pretend<strong>em</strong>os também esclarecer a relação<br />
dos mencionados termos com a <strong>teoria</strong> de autômatos, seus objetos de estudo e suas <strong>aplicações</strong>,<br />
b<strong>em</strong> como discorrer sobre a importância desses conceitos para a ciência da computação.<br />
Utilizamos como referências para esta seção os livros de Hopcroft et alli (2002) e de Sipser<br />
(2006), considerados textos base de cursos introdutórios à <strong>teoria</strong> da computação.<br />
3.1) Alfabetos<br />
“Um alfabeto é um conjunto de símbolos finito e não vazio” (cf. Hopcroft et alli, 2002,<br />
Sec. 1.5.1). Comumente são utilizadas as letras maiúsculas gregas Σ e Г para denotar<br />
alfabetos, por ex<strong>em</strong>plo:<br />
a) Σ = {0,1}<br />
b) Σ = {a,b,c,...,z}<br />
3.2) Strings (Cadeias)<br />
“Um string (ou às vezes palavra ou também cadeia) é uma sequência finita de símbolos<br />
131
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
escolhidos de um alfabeto” (cf. Hopcroft et alli, 2002, Sec. 1.5.2). Por ex<strong>em</strong>plo, a palavra<br />
linguag<strong>em</strong> é uma cadeia do alfabeto Σ = {a,b,c,...,z}.<br />
Se w é uma cadeia sobre um alfabeto Σ, |w| é o comprimento ou número de símbolos de<br />
w. Existe uma cadeia especial chamada de cadeia vazia, comumente denotada pela letra<br />
grega ε, que possui comprimento nulo.<br />
Outro conceito relevante é o de potências de um alfabeto. Se Σ é um alfabeto, Σ n<br />
é o<br />
conjunto de cadeias com comprimento n obtidas a partir de Σ. O conjunto de todas as cadeias<br />
escolhidas a partir de um alfabeto Σ é convencionalmente denotado por Σ *<br />
.<br />
3.3) Linguagens<br />
“Uma linguag<strong>em</strong> é um conjunto de cadeias” (cf. Sipser, 2006, p.14). Mais formalmente,<br />
se Σ é um alfabeto e L ⊆Σ *<br />
, então L é uma linguag<strong>em</strong> sobre Σ. Uma forma comum de<br />
descrever uma linguag<strong>em</strong> é utilizando formadores de conjuntos, por ex<strong>em</strong>plo, pod<strong>em</strong>os<br />
descrever a linguag<strong>em</strong> LPr, uma linguag<strong>em</strong> formada apenas por números primos, da seguinte<br />
forma: LPr ={w | w é primo}. Note que não há qualquer obrigatoriedade <strong>em</strong> utilizar uma<br />
gramática para descrever uma linguag<strong>em</strong>.<br />
Na <strong>teoria</strong> de autômatos, existe o interesse de estudar os probl<strong>em</strong>as que os computadores,<br />
ou mais precisamente os modelos mat<strong>em</strong>áticos dos computadores, pod<strong>em</strong> ou não resolver. O<br />
interesse pelo estudo de linguagens nasceu do fato de que alguns tipos de probl<strong>em</strong>as,<br />
chamados de probl<strong>em</strong>as de decisão, são equivalentes a verificar a pertinência de uma cadeia w<br />
a uma linguag<strong>em</strong> L. Essencialmente, um probl<strong>em</strong>a de decisão pode ser visto como uma<br />
pergunta descrita <strong>em</strong> algum sist<strong>em</strong>a formal que aceita uma resposta do tipo sim ou não.<br />
Pod<strong>em</strong>os formalizar o conceito de probl<strong>em</strong>a de decisão como um probl<strong>em</strong>a de pertinência a<br />
uma linguag<strong>em</strong> da seguinte forma:<br />
3.4) Gramática<br />
Se Σ é um alfabeto e L é uma linguag<strong>em</strong> sobre Σ, então o probl<strong>em</strong>a L<br />
consiste <strong>em</strong>, dado um string w <strong>em</strong> Σ *<br />
, decidir se w está ou não <strong>em</strong> L (cf.<br />
Hopcroft et alli, 2002, Sec. 1.5.4).<br />
Para a <strong>teoria</strong> da computação, uma gramática é um modelo ou uma técnica utilizada para<br />
gerar uma linguag<strong>em</strong>. Em particular, estuda-se a gramática livre de contexto (context-free<br />
grammars), também chamada de gramática de tipo 2, considerando-se a hierarquia de<br />
Chomsky (cf. Chomsky, 1959), responsável por gerar uma classe de linguagens chamada de<br />
linguag<strong>em</strong> livre de contexto.<br />
De acordo com Sipser (2006, p.102), as gramáticas livres de contexto foram<br />
inicialmente utilizadas no estudo de linguagens humanas como uma forma de compreender o<br />
relacionamento entre nomes, verbos e preposições, b<strong>em</strong> como seus correspondentes<br />
sintagmáticos.<br />
Uma gramática livre de contexto é formalmente definida (cf. Sipser, 2006, p.102) como<br />
132
uma 4-tupla 3 (V, T, R, S) onde:<br />
a) V é um conjunto finito chamado de as variáveis;<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
b) T é um conjunto finito, disjunto de V, chamado de os terminais;<br />
c) R é um conjunto finito de regras (também chamadas de produções), onde cada regra<br />
consiste <strong>em</strong> uma variável e uma cadeia de variáveis e terminais;<br />
d) S é a variável inicial, ou símbolo de início.<br />
Um ex<strong>em</strong>plo de gramática livre de contexto é (cf. Sipser, 2006, p.103):<br />
G=({S},{a,b},R,S), onde o conjunto de regras R é definido como:<br />
S → aSb<br />
S → SS<br />
S → ε .<br />
Esta gramática gera cadeias como “ab”, “aabb”, “aababb”. Uma forma de entender a<br />
linguag<strong>em</strong> gerada por esta gramática é entender “a” como um parênteses esquerdo “(“ e “b”<br />
como um parênteses direito “)”. Vista dessa forma, L(G) é a linguag<strong>em</strong> de todas as cadeias de<br />
parênteses adequadamente aninhados.<br />
Um outro conceito, relacionado ao conceito de gramáticas, são os reconhecedores<br />
gramaticais, que são máquinas formais capazes de reconhecer se uma dada cadeia w pertence<br />
ou não a uma linguag<strong>em</strong> L. Por ex<strong>em</strong>plo, um reconhecedor para uma linguag<strong>em</strong> livre de<br />
contexto é um autômato de pilha. Não prolongar<strong>em</strong>os tal discussão a respeito de<br />
reconhecedores de linguagens por se tratar de um aspecto mais computacional e fugir do<br />
escopo deste texto, mais informações sobre o t<strong>em</strong>a pod<strong>em</strong> ser encontradas nos livros de<br />
Hopcroft et alli (2002) e de Sipser (2006).<br />
Uma importante aplicação de gramáticas livres de contexto dentro da ciência da<br />
computação é a especificação e compilação (tradução de um programa escrito <strong>em</strong> uma<br />
linguag<strong>em</strong> de programação para uma outra linguag<strong>em</strong>, chamada de linguag<strong>em</strong> objeto) de<br />
linguagens de programação, <strong>em</strong>bora pesquisadores da área de inteligência artificial (e da área<br />
de linguística computacional) também utiliz<strong>em</strong> gramáticas livres de contexto, b<strong>em</strong> como<br />
gramáticas sensíveis ao contexto, para modelar a linguag<strong>em</strong> natural a partir de uma<br />
perspectiva computacional. Na construção de compiladores, muitas vezes, é necessário extrair<br />
aspectos s<strong>em</strong>ânticos do programa para, por ex<strong>em</strong>plo, poder realizar a tradução para uma<br />
linguag<strong>em</strong> de máquina, que de fato dirá ao computador como realizar uma determinada tarefa.<br />
Knuth <strong>em</strong> S<strong>em</strong>antics of Context-Free Languages (1968) examina uma forma de se fazer<br />
isso através do uso de atributos associados às produções de uma gramática livre de contexto,<br />
construindo uma gramática chamada de gramática de atributos. Apesar de existir<strong>em</strong> outras<br />
técnicas formais para capturar informação s<strong>em</strong>ântica de um programa, a gramática de<br />
atributos t<strong>em</strong> a vantag<strong>em</strong> de ser independente de qualquer forma de <strong>análise</strong> sintática.<br />
Assim, apesar de gramáticas ser<strong>em</strong> vistas apenas como uma forma de gerar uma<br />
linguag<strong>em</strong>, exist<strong>em</strong> extensões formais capazes de agregar algum conhecimento s<strong>em</strong>ântico às<br />
3<br />
Isto é, uma lista finita de quatro el<strong>em</strong>entos <strong>em</strong> uma ord<strong>em</strong> previamente estabelecida (cf. Spiser, 2006, p.06).<br />
133
mesmas.<br />
3.5) Reconhecedores Gramaticais<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Quando se deseja identificar se uma determinada cadeia w faz parte de uma linguag<strong>em</strong><br />
L, os cientistas da computação utilizam ferramentas formais conhecidas como<br />
reconhecedores. Um reconhecedor pode ser visto como um programa que recebe uma<br />
gramática G e uma cadeia w e verifica se w pode ser gerada por G. Resumidamente pod<strong>em</strong>os<br />
estabelecer a seguinte relação entre reconhecedores e tipos de gramáticas:<br />
Gramática Reconhecedor<br />
Com estrutura de frase Máquina de Turing<br />
Sensíveis ao contexto Máquina de Turing com m<strong>em</strong>ória limitada<br />
Livres de contexto Autômatos a pilha<br />
Regulares Autômatos finitos<br />
Tabela 1<br />
Grosso modo, o que faz<strong>em</strong> os reconhecedores é identificar se determinada cadeia é<br />
gramatical.<br />
4) Comparação<br />
Considerando, então, a <strong>teoria</strong> da computação, é possível notar que o termo linguag<strong>em</strong> é<br />
anterior à gramática, isto é, o interesse do pesquisador recai sobre a linguag<strong>em</strong> que se<br />
pretende examinar e a gramática é a ferramenta usada para isto. Na linguística, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é<br />
assim: se pensarmos <strong>em</strong> uma linha gerativista da linguística formal, pod<strong>em</strong>os perceber uma<br />
certa inversão de prioridades: para os gerativistas, o que se pretende examinar é a própria<br />
gramática, e a linguag<strong>em</strong>, ou ainda a E-language, isto é, o epifenômeno da linguag<strong>em</strong><br />
internalizada, é a ferramenta que t<strong>em</strong>os para se atingir a gramática, inacessível consciente e<br />
diretamente tanto ao falante quanto ao linguista.<br />
Ainda <strong>em</strong> relação aos gerativistas, é interessante notar que para outros linguistas<br />
formalistas e para cientistas da computação, uma gramática não é a única forma de gerar uma<br />
linguag<strong>em</strong> e sim uma possibilidade, possivelmente entre muitas outras. Tal diferença é<br />
proveniente do objeto de estudo das áreas: adeptos da gramática gerativista estão interessados,<br />
sobretudo, <strong>em</strong> descobrir a gramática universal, o componente biológico e inato da linguag<strong>em</strong>,<br />
e cientistas da computação e outros linguistas formalistas estão interessados <strong>em</strong> gramáticas<br />
possíveis, como proposto por Quine (1972). Para Quine, se duas gramáticas geram a mesma<br />
linguag<strong>em</strong>, elas são equivalentes e não há porque assumir uma e não outra como correta. No<br />
134
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
entanto, para gerativistas, haveria razões biológicas para se assumir uma gramática e não<br />
outra. Neste sentido, <strong>teoria</strong> da computação e a parte não-gerativista da linguística se<br />
aproximam, cf. Chomsky (1986, p. 20), na medida <strong>em</strong> que encontrar uma e somente uma<br />
gramática para dada linguag<strong>em</strong> não faz sentido e que qualquer gramática que gere/descreva<br />
adequadamente uma linguag<strong>em</strong> pode ser adotada.<br />
É <strong>em</strong> relação ao proposto por Partee et alli (1990) que as definições da <strong>teoria</strong> de<br />
autômatos mais se ass<strong>em</strong>elham: entend<strong>em</strong> a linguag<strong>em</strong> como um conjunto finito de objetos e<br />
gramática como um sist<strong>em</strong>a inferencial com um axioma que gera determinada linguag<strong>em</strong>. O<br />
que é interessante notar é que, ainda que o objeto mat<strong>em</strong>ático gramática da ciência da<br />
computação e de linguistas formalistas seja muito próximo, a função de uma gramática dentro<br />
do sist<strong>em</strong>a muda a depender da área de investigação: para linguistas, a gramática nos diria que<br />
sequências são ou não gramaticais, enquanto na <strong>teoria</strong> de autômatos, este é papel dos<br />
reconhecedores gramaticais. A gramática per se na ciência da computação, gera a linguag<strong>em</strong>,<br />
mas se há a necessidade de testar se determinada sequência está ou não dentro desta<br />
linguag<strong>em</strong>, estudiosos da computação utilizam reconhecedores de linguag<strong>em</strong> 4 . Grosso modo,<br />
para linguistas a gramática serviria para gerar a linguag<strong>em</strong>, mas também para avaliá-la, e para<br />
cientistas da computação, não.<br />
Considerando agora as definições da linguística geral, de Dubois et alli (1999) e Lyons<br />
(1982, 1984), é também perceptível a distância existente entre o que a “linguística geral” e a<br />
<strong>teoria</strong> da computação entend<strong>em</strong> ser<strong>em</strong> gramáticas ou linguagens. Dificilmente, a ciência da<br />
computação se interessa pela linguag<strong>em</strong> natural; inversamente, o mesmo acontece para os<br />
linguistas, que dificilmente se interessam por outros objetos que não a linguag<strong>em</strong> natural. Isto<br />
é dizer que os objetos de estudo, as perguntas que os teóricos de diferentes áreas se colocam<br />
são de natureza distinta e, obviamente, isto gerará conceitos distintos, ainda que sob o mesmo<br />
rótulo. Desta forma, seria difícil achar <strong>em</strong> um âmbito não-linguista uma preocupação social<br />
ou funcional com a linguag<strong>em</strong>, por ex<strong>em</strong>plo. 5<br />
Vale comentar também a relação necessária entre linguag<strong>em</strong> e gramática nos diversos<br />
casos que visitamos. Ainda que estejamos tratando de objetos diferentes sob o mesmo rótulo,<br />
s<strong>em</strong>pre haverá uma relação necessária entre o que se entende por gramática e o que se<br />
entende por linguag<strong>em</strong>. Aparent<strong>em</strong>ente, apenas a gramática gerativa 6 , dentro as áreas que<br />
visitamos, se interessa primordialmente pelo que chamam de gramática, enquanto estudiosos<br />
da ciência da computação vêm uma gramática como uma ferramenta para categorizar uma<br />
dada linguag<strong>em</strong> e outros linguistas entend<strong>em</strong> a gramática como um conjunto de regras que<br />
formalizam a linguag<strong>em</strong>, mas não vêm necessariamente este conjunto de regras como seu<br />
objeto <strong>em</strong> si.<br />
4<br />
Para esta tarefa, é possível também utilizar um analisador gramatical (parser), que é um programa capaz de<br />
reconhecer a gramaticalidade de uma sequência através de sua <strong>análise</strong> sintática.<br />
5<br />
Não estamos afirmando que não existam estudos na área da ciência da computação que consider<strong>em</strong> a<br />
linguag<strong>em</strong> natural e tampouco assumindo que todo linguista trabalha com linguag<strong>em</strong> natural, mas sim,<br />
assumindo que tais estudos são encontrados mais raramente entre as duas áreas.<br />
6<br />
Pretend<strong>em</strong>os, <strong>em</strong> trabalho futuro, aprofundar a discussão sobre o objeto de estudo dos linguistas formalistas<br />
não-chomskyanos. Ao nosso ver, tais estudiosos têm uma postura que se afasta da visão chomskyana de<br />
gramática e linguag<strong>em</strong> e se aproxima das outras áreas que visitamos. No entanto, para que esta afirmação seja<br />
realmente contundente, precisaríamos de uma <strong>análise</strong> mais cuidadosa.<br />
135
5) Conclusão<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Apresentamos, ao longo destas páginas, diferentes definições dos conceitos gramática e<br />
linguag<strong>em</strong> para a ciência da computação e para distintas áreas da linguística, tendo a<br />
linguística formal, chomskyana e não-chomskyana, como foco. Utilizamos, para isto,<br />
referências bibliográficas de grande relevância para as áreas e esmiuçamos as definições<br />
apresentadas por cada um dos autores. Por fim, comparamos pontos de contato entre os<br />
conceitos utilizados pelas áreas – como, por ex<strong>em</strong>plo, a relação intrínseca existente entre o<br />
que se entende por gramática e o que se entende por linguag<strong>em</strong> – e ressaltamos algumas<br />
diferenças entre as áreas: para que serve uma gramática, a possibilidade de termos mais de<br />
uma gramática gerando a mesma linguag<strong>em</strong>, a precedência teórica do conceito gramática<br />
sobre linguag<strong>em</strong> ou vice-versa.<br />
Considerando todos os pontos citados na seção acima, parece-nos possível concluir não<br />
só que cada área reinventou os conceitos gramática e linguag<strong>em</strong> à medida que os incorporou,<br />
mas também que estas reinvenções são de caráter teórico, isto é, aconteceram considerando os<br />
objetos teóricos de cada uma das áreas. A ciência da computação, por ex<strong>em</strong>plo, apropriou-se<br />
destes conceitos surgidos na linguística, mas os reformulou de maneira que a preocupação<br />
com a linguag<strong>em</strong> humana perdesse a relevância e que fosse a formalização mat<strong>em</strong>ática o<br />
carro chefe destes conceitos. Já a gramática gerativa reformulou estes conceitos, adaptando-os<br />
às suas concepções biológicas e inatistas, o que gerou objetos sob o rótulo gramática e<br />
linguag<strong>em</strong> bastante diferentes do que v<strong>em</strong>os na linguística como um todo.<br />
Como diss<strong>em</strong>os, este trabalho é uma pequena parte de um estudo maior que t<strong>em</strong> como<br />
objetivo examinar s<strong>em</strong>elhanças, diferenças e fronteiras entre os estudos formais na linguística<br />
e os estudos linguísticos dentro da ciência da computação. Partimos destes conceitos por<br />
entendermos que são muito básicos a ambas as áreas e já pud<strong>em</strong>os perceber que, quando há<br />
diferenças – e quase s<strong>em</strong>pre há – estas diferenças são fruto do fato de que as duas áreas têm<br />
objetos de estudos diferentes, que necessitam olhares e recortes de natureza distinta, o que<br />
força determinada nomenclatura nomear conceitos similares porém distintos.<br />
Referências<br />
PARTEE, B.; ter MEULEN, A.; WALL, R. Math<strong>em</strong>atical Methods in Linguistics. Kluwer, 1990.<br />
CHOMSKY, N. Knowledge of Language. Praeger, 1986.<br />
CHOMSKY, N. On certain formal properties of grammars in Information and Control, n.2, v.<br />
2, 1959.<br />
DUBOIS, J. et alli. Dicionário de Linguística. Cultrix, 1999.<br />
HOPCROFT, J.; ULLMAN, J.; MOTWANI, R. Introdução à Teoria de Autômatos, Linguagens e<br />
Computação. Rio de Janeiro: Campus, 2002.<br />
KNUTH, D. S<strong>em</strong>antics of Context-Free Languages in Math<strong>em</strong>atical Syst<strong>em</strong>s Theory, 1968, v. 2, n. 2,<br />
p.127-145.<br />
136
LYONS, J. Lingua(g<strong>em</strong>) e Linguística. Zahar, 1982 .<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
LYONS, J. S<strong>em</strong>ántica Linguística: Una Introducción. Cambridge, 1997. (1ed. 1984)<br />
QUINE, W. Methodological reflections on current linguistic theory. Reidel, 1972.<br />
SIPSER, M. Introduction to the Theory of Computation. Thomsom Course Technology, 2006.<br />
137
Linguística aplicada ao Ensino<br />
138
AS CONCEPÇÕES DE LEITURA NA PROVA BRASIL E NO<br />
PROGRAMA INTERNACIONAL DE AVALIAÇÃO DE ESTUDANTES –<br />
PISA: UMA ANÁLISE COMPARATIVA<br />
Talita da Silva Campos (UERJ)<br />
RESUMO: A leitura é um processo reflexivo <strong>em</strong> que as idéias se ligam <strong>em</strong> unidades de pensamento cada vez<br />
maiores, ou seja, requer a compreensão, interpretação e avaliação dessas ideias. Dentro dessa perspectiva, a<br />
simples capacidade de reconhecer sinais gráficos distancia-se do que se considera ato de leitura. Esta pesquisa<br />
investiga quais perspectivas teóricas subsidiam a Prova Brasil (aplicada no 9º ano de escolaridade) e o PISA<br />
(avaliação <strong>em</strong> que o Brasil participa como país convidado e que é aplicada <strong>em</strong> turmas de jovens com idades entre<br />
15 e 16 anos) com o objetivo de contribuir para a formação de leitores nas escolas. O referencial teórico sobre as<br />
concepções de leitura fundamenta-se nas <strong>teoria</strong>s elaboradas por: Marcuschi (2001), Kleiman (2007), Koch<br />
(2007), Fuza; Menegassi (2009) entre outros. Para identificar que concepções de leitura estão presentes nessas<br />
avaliações, utilizei como corpus as Matrizes de Referência de cada avaliação e as questões das provas aplicadas<br />
<strong>em</strong> anos anteriores. Após levantamento dos aspectos teóricos que orientam a elaboração dos itens das avaliações,<br />
identificou-se a utilização dos seguintes mecanismos: i) recorrências a informações implícitas; ii) inferências; iii)<br />
pista textual e iv) estabelecimento de relações entre dois textos etc. Os resultados apontam os aspectos<br />
conceituais essenciais ao processo de leitura e que precisam ser desenvolvidos <strong>em</strong> sala de aula pelos professores,<br />
dentre os quais se destacam: estratégias de localização de informação explícita, paráfrase, pistas textuais,<br />
inferências, linguag<strong>em</strong> verbal e não-verbal, identificação dos gêneros textuais e suas funções, contexto de<br />
produção dos gêneros textuais, coesão e coerência entre outras.<br />
1) A avaliação sistêmica do ensino<br />
Iniciou-se, na década de 1980, no Brasil, uma discussão sobre os processos de avaliação<br />
e suas finalidades, e quais os possíveis mecanismos que poderiam ser adotados <strong>em</strong> políticas<br />
públicas educacionais para a correção do fluxo escolar. A partir dessa discussão, a avaliação<br />
passa a ser vista como um instrumento capaz de auxiliar o ensino, orientar a aprendizag<strong>em</strong>,<br />
fornecer informações sobre o aluno, o professor, a instituição de ensino e as políticas<br />
educacionais, além de servir de instrumento para certificar a capacidade do aluno.<br />
Em larga escala, a avaliação é entendida como possibilitadora de uma investigação tanto<br />
quantitativa quanto qualitativa. Na avaliação quantitativa, a preocupação do avaliador é<br />
julgar, baseando-se <strong>em</strong> um número limitado de parâmetros, os quais são antecipadamente<br />
identificados e descritos <strong>em</strong> termos numéricos (que deverão ser conhecidos por todos os<br />
atores). Na avaliação qualitativa, enfatiza-se a coleta de informações detalhadas de um<br />
número reduzido de atores. A avaliação não fica restrita ao escopo dos parâmetros prédeterminados,<br />
busca-se identificar t<strong>em</strong>as que surg<strong>em</strong> das discussões entre os atores.<br />
2) As avaliações da educação básica<br />
O debate <strong>em</strong> torno das funções da avaliação também pode ter sido fort<strong>em</strong>ente motivado<br />
por órgãos internacionais que realizam pesquisa sobre o des<strong>em</strong>penho dos alunos com objetivo<br />
de oferecer suportes e incentivos aos países <strong>em</strong> desenvolvimento. Em decorrência desses<br />
debates, introduziu-se no Brasil um conceito de avaliação já amplamente divulgado <strong>em</strong><br />
diversos países, a avaliação <strong>em</strong> larga escala, que se configura como um retrato dos sist<strong>em</strong>as<br />
de ensino, possibilitando uma melhor interpretação dos contextos que levam ao sucesso e/ou<br />
fracasso escolar.<br />
139
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Pod<strong>em</strong>os afirmar que, inicialmente, essa “cultura de avaliação” foi implantada de forma<br />
incipiente. Já que o sist<strong>em</strong>a educacional brasileiro não contava com especialistas na área, foi<br />
preciso, então, estabelecer as diretrizes desse tipo de avaliação, baseando-se quase<br />
exclusivamente <strong>em</strong> parâmetros administrativos e classificatórios <strong>em</strong> vez de diagnósticos e<br />
pedagógicos. As discussões sobre a validade e a confiabilidade deste tipo de avaliação<br />
continuam <strong>em</strong> questão, porém é fato que as metodologias têm passado por revisão criteriosa<br />
ao longo da realização das provas.<br />
O sist<strong>em</strong>a de avaliação <strong>em</strong> larga escala no Brasil é recente, a primeira realização do<br />
Sist<strong>em</strong>a de Avaliação da Educação Básica – SAEB foi realizada <strong>em</strong> todas as escolas<br />
brasileiras no ano de 2005, apesar de as discussões sobre um instrumento que pudesse avaliar<br />
a educação brasileira ter<strong>em</strong> tido início <strong>em</strong> 1980.<br />
Com a consolidação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.<br />
394/96, a avaliação dos sist<strong>em</strong>as educacionais foi implantada e, a partir de então, surge uma<br />
espécie de “ranking” dos estados, cujos alunos apresentam melhor aproveitamento ao fim de<br />
determinadas etapas da educação básica. Esse novo paradigma, impl<strong>em</strong>entado pelo SAEB<br />
desde 1995, permitiu um maior reconhecimento das características e peculiaridades das<br />
escolas brasileiras, permitindo que o Ministério de Educação pudesse, então, realizar um<br />
melhor acompanhamento das unidades que apresentass<strong>em</strong> resultados abaixo das metas<br />
estipuladas.<br />
Destacamos algumas avaliações implantadas pelo SAEB:<br />
Provinha Brasil - É uma avaliação diagnóstica do nível de alfabetização. T<strong>em</strong> como<br />
objetivo fazer com que o professor conheça melhor a sua turma. Por se configurar como<br />
avaliação diagnóstica, seus resultados não são interpretados dentro de uma escala de<br />
rendimento e também não são computados para o Índice de Desenvolvimento da Educação<br />
Básica- IDEB. Ela é realizada <strong>em</strong> duas etapas: no início e no fim do período letivo e os<br />
resultados individuais dos alunos são comparados pelo professor que poderá determinar os<br />
avanços obtidos.<br />
Segundo o MEC, a partir das informações obtidas pela avaliação, os gestores e<br />
professores têm condição de intervir de forma eficaz no processo de alfabetização,<br />
aumentando as chances de que todas as crianças, até os oito anos de idade, saibam ler e<br />
escrever.<br />
Prova Brasil - Apesar do nome de prova, ela é na realidade, um teste composto apenas<br />
de itens calibrados e pertencentes a uma escala previamente definida, que avalia os níveis de<br />
competência leitora dos alunos.<br />
A Prova Brasil é uma avaliação feita pelo SAEB, que t<strong>em</strong> por objetivo obter dados que<br />
subsidi<strong>em</strong> as políticas públicas sobre a educação básica do país. A média nacional obtida<br />
serve como um dos parâmetros para a formulação do Índice de Desenvolvimento da Educação<br />
Básica- IDEB.<br />
Trata-se de uma avaliação que destaca a importância da leitura para a construção do<br />
processo de letramento.<br />
A Prova Brasil é aplicada nas séries conclusivas dos ciclos escolares: 5º e 9º anos de<br />
escolaridade e 3º ano do ensino médio.<br />
140
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
PISA - É um programa de avaliação internacional padronizado, desenvolvido pelos<br />
países participantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico -<br />
OCDE, aplicado a alunos de 15 anos. T<strong>em</strong> como um de seus objetivos centrais investigar<br />
questões como: “Até que ponto os alunos próximos do término da educação básica adquiriram<br />
conhecimentos e habilidades essenciais à participação efetiva na sociedade? ”<br />
Analisar<strong>em</strong>os agora as duas avaliações: a Prova Brasil (realizada no 9º ano de<br />
escolaridade) e o PISA. Tal opção baseia-se na necessidade de compatibilização entre os<br />
resultados das avaliações, pois elas não estão na mesma escala de proficiência e não possu<strong>em</strong><br />
itens <strong>em</strong> comum, além do fato de, no PISA, só participar<strong>em</strong> alunos com 15 anos,<br />
independent<strong>em</strong>ente da série que cursam. Diante disso, optamos por refletir sobre o<br />
des<strong>em</strong>penho dos alunos da 8ª série.<br />
Outra distinção que precisa ser feita é que no SAEB são avaliados os conhecimentos <strong>em</strong><br />
Língua Portuguesa, com foco <strong>em</strong> leitura e, no PISA, é avaliada a capacidade de leitura, pois<br />
essa avaliação é realizada <strong>em</strong> diversos países.<br />
2.1) Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – PISA<br />
É uma avaliação trianual e a cada avaliação o foco recai sobre uma área: Leitura e<br />
escrita, Mat<strong>em</strong>ática ou Ciências.<br />
O PISA parte do conceito de letramento, que prevê o uso interativo de recursos para<br />
engajar o aluno no mundo <strong>em</strong> que vive a fim de agir de maneira autônoma. De acordo com<br />
essa perspectiva, o letramento pode ser traduzido pelo acesso, gerenciamento, interação e<br />
avaliação das competências do sujeito. O aluno deve ter instrumentos suficientes para aplicar<br />
competências <strong>em</strong> situações reais e ser capaz de comunicar efetivamente idéias e pensamentos.<br />
O Brasil, apesar de não ser um m<strong>em</strong>bro da OCDE, foi convidado a participar da<br />
avaliação no ano 2000, sendo que o des<strong>em</strong>penho dos alunos colocou o nosso país nas últimas<br />
posições do ranking. A participação brasileira na avaliação tinha como objetivo obter<br />
informações, situar o des<strong>em</strong>penho dos alunos no contexto da realidade educacional nacional e<br />
internacional e discutir quais seriam os indicadores de resultados educacionais adequados à<br />
nossa realidade.<br />
O PISA parte do conceito de literacia, ou letramento, como foi traduzido no Brasil. A<br />
partir desse conceito, o aluno passa por três fases: a primeira, que prevê a compreensão do<br />
mundo que o cerca, a segunda, que supõe a apropriação daqueles conhecimentos e saberes aos<br />
quais foi apresentado e, por fim, a interação e transformação do que lhe foi apresentado. No<br />
PISA, a leitura e a escrita representam as formas pelas quais o sujeito compreende o mundo.<br />
2.2) Prova Brasil<br />
É uma avaliação realizada a cada dois anos, avalia as habilidades <strong>em</strong> Língua Portuguesa<br />
(foco na leitura) e <strong>em</strong> Mat<strong>em</strong>ática (foco na resolução de probl<strong>em</strong>as). É aplicada no 5º e 9º<br />
anos de escolaridade e na 3ª série do ensino médio.<br />
T<strong>em</strong> como objetivos:<br />
• Contribuir para a melhoria da qualidade do ensino, redução de desigualdades e<br />
d<strong>em</strong>ocratização da gestão do ensino público;<br />
141
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
• Buscar o desenvolvimento de uma cultura avaliativa que estimule o controle<br />
social sobre os processos e resultados do ensino.<br />
Sua elaboração é feita com base <strong>em</strong> Matrizes de Referência, que correspond<strong>em</strong> aos<br />
referenciais curriculares mínimos a ser<strong>em</strong> avaliados <strong>em</strong> cada disciplina e série, informando as<br />
competências e habilidades esperadas dos alunos.<br />
Estas são as Matrizes de Referência da Prova Brasil- 1 Tópicos e Descritores para o 5º<br />
ano de escolaridade:<br />
Tópico I. Procedimentos de Leitura<br />
D1 – Localizar informações explícitas <strong>em</strong> um texto.<br />
D3 – Inferir o sentido de uma palavra ou expressão.<br />
D4 – Inferir uma informação implícita <strong>em</strong> um texto.<br />
D6 – Identificar o t<strong>em</strong>a de um texto.<br />
D11 – Distinguir um fato da opinião relativa a esse fato.<br />
Tópico II. Implicações do Suporte, do Gênero e /ou do Enunciador<br />
na Compreensão do Texto<br />
D5 – Interpretar texto com auxílio de material gráfico diverso<br />
(propagandas, quadrinhos, foto, etc.).<br />
D9 – Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros.<br />
Tópico III. Relação entre Textos<br />
D15 – Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na<br />
comparação de textos que tratam do mesmo t<strong>em</strong>a, <strong>em</strong> função das<br />
condições <strong>em</strong> que ele foi produzido e daquelas <strong>em</strong> que será recebido.<br />
Tópico IV. Coerência e Coesão no Processamento do Texto<br />
D2 – Estabelecer relações entre partes de um texto, identificando<br />
repetições ou substituições que contribu<strong>em</strong> para a continuidade de um<br />
texto.<br />
D7 – Identificar o conflito gerador do enredo e os el<strong>em</strong>entos que<br />
constro<strong>em</strong> a narrativa.<br />
D8 – Estabelecer relação causa /conseqüência entre partes e el<strong>em</strong>entos<br />
do texto.<br />
D12 – Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto,<br />
marcadas por conjunções, advérbios, etc.<br />
Tópico V. Relações entre Recursos Expressivos e Efeitos de<br />
Sentido<br />
D13 – Identificar efeitos de ironia ou humor <strong>em</strong> textos variados.<br />
D14 - Identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e<br />
de outras notações.<br />
Tópico VI. Variação Lingüística<br />
D10 – Identificar as marcas lingüísticas que evidenciam o locutor e o<br />
interlocutor de um texto.<br />
Para formulação dessas Matrizes foi realizada uma ampla consulta nacional aos<br />
conteúdos e currículos praticados nas escolas brasileiras de Ensino Fundamental e Médio<br />
além de ter<strong>em</strong> sido seguidas as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais e o<br />
disposto na Lei 9394/96, <strong>em</strong> seu artigo 9º alínea VI, que diz que a União incumbir-se-á de<br />
assegurar o processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental,<br />
1 BRASIL. Ministério da educação e cultura. Saeb 2001: novas perspectivas. Brasília: Inep, 2002, p.19-20<br />
142
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
médio e superior, <strong>em</strong> colaboração com os sist<strong>em</strong>as de ensino, objetivando a definição de<br />
prioridades e a melhoria da qualidade do ensino.<br />
As Matrizes de Referência associam os conceitos de competências aos conceitos de<br />
habilidades. Segundo Phillipe Perrenoud, “competência é capacidade de agir eficazmente <strong>em</strong><br />
um determinado tipo de situação, apoiando-se <strong>em</strong> conhecimentos, mas s<strong>em</strong> se limitar a eles”<br />
2 , ou seja, na resolução de uma situação qualquer <strong>em</strong> nossa vida entram <strong>em</strong> ação<br />
conhecimentos e vários recursos cognitivos que se compl<strong>em</strong>entam e se organizam na busca da<br />
solução do probl<strong>em</strong>a.<br />
A formulação da Prova Brasil t<strong>em</strong> como foco o texto, mais especificamente os gêneros<br />
textuais como objeto de ensino, já que eles são caracterizados por funções específicas, de<br />
acordo com os contextos nos quais são utilizados. Portanto, foram situados <strong>em</strong> dois eixos, tal<br />
como é proposto nos PCNs: usos de linguag<strong>em</strong> e reflexão sobre a língua e a linguag<strong>em</strong>.<br />
O trabalho com os gêneros textuais t<strong>em</strong> como objetivo principal fazer com que o aluno<br />
conheça o maior número possível de gêneros, suas finalidades e condições sociais de uso e,<br />
assim, possa se apropriar deles como ferramenta fundamental de socialização e de inserção<br />
prática nas atividades comunicativas humanas.<br />
3) Letramento e leitura<br />
O ensino de Língua Portuguesa, de acordo com os PCNs, deve estar voltado para a<br />
função social da língua. Este é um requisito básico para que o aluno ingresse no mundo<br />
letrado, para que possa construir seu processo de cidadania e, ainda, para que consiga se<br />
integrar à sociedade de forma ativa e autônoma.<br />
Nesse aspecto, para ser considerado proficiente <strong>em</strong> Língua Portuguesa, o aluno precisa<br />
dominar habilidades que o capacit<strong>em</strong> a viver <strong>em</strong> sociedade, atuando de maneira adequada nas<br />
mais diversas situações de comunicação.<br />
Diante disso, ressalta-se a importância de promover o desenvolvimento do aluno no que<br />
se refere às capacidades de produzir e compreender textos dos mais diversos gêneros e, <strong>em</strong><br />
diferentes situações comunicativas, tanto na modalidade escrita quanto na modalidade oral.<br />
Para que a proposta de Letramento realmente se efetive é preciso que nosso aluno seja<br />
sujeito das transformações, tendo condições de responder como ser social e participativo.<br />
No Brasil, a discussão sobre Letramento geralmente está ligada à Alfabetização, o que<br />
gera uma fusão equivocada dos processos. No Letramento, postula-se que a escrita é o<br />
resultado de uma prática social e não apenas fruto de um aprendizado individual, ou seja, a<br />
prática de escrita só faz sentido <strong>em</strong> função de um universo de interação.<br />
O letramento divide-se <strong>em</strong>: Letramento Não-escolar ou Letramento Social (é aquele que<br />
ocorre <strong>em</strong> situações do cotidiano, fora da escola) e Letramento Escolar (o que ocorre de forma<br />
sist<strong>em</strong>ática na escola e é parte integrante do contexto social).<br />
Os eventos de Letramento são as situações de interação, nas quais os participantes<br />
atuam <strong>em</strong> processos de significação e interpretação. Os processos de Letramento Escolar e de<br />
Letramento Social, apesar de situados <strong>em</strong> ambientes diferentes e <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos determinados,<br />
2 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Saeb 2001: novas perspectivas. Brasília: Inep, 2002<br />
143
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
faz<strong>em</strong> parte de um processo social mais amplo, sendo que as experiências sociais e culturais<br />
do uso da leitura e da escrita, adquiridas no processo de alfabetização, contribu<strong>em</strong> para<br />
habilitar os indivíduos a utilizá-las <strong>em</strong> situações extra-escolares, convertendo-as <strong>em</strong> práticas<br />
sociais.<br />
3.1) O PISA e o letramento<br />
Letramento <strong>em</strong> Leitura<br />
Os alunos dev<strong>em</strong> realizar uma ampla gama de tarefas com diferentes tipos de textos. As<br />
tarefas abrang<strong>em</strong> desde a recuperação de informações específicas até a d<strong>em</strong>onstração de<br />
compreensão geral, interpretação de texto e reflexão sobre seu conteúdo e suas características.<br />
O Letramento <strong>em</strong> Leitura é avaliado <strong>em</strong> três dimensões:<br />
1. A forma do material de leitura. Os textos utilizados inclu<strong>em</strong> não somente passagens<br />
<strong>em</strong> prosa, mas também vários tipos de documentos como listas, formulários, gráficos e<br />
diagramas. Essa variedade baseia-se no princípio de que os indivíduos encontrarão uma série<br />
de formas de escrita na vida adulta e, desse modo, não é suficiente ser capaz de ler um<br />
número limitado de tipos de textos tipicamente encontrados na escola.<br />
2. O tipo de tarefa de leitura, o que corresponde às várias habilidades cognitivas<br />
próprias de um leitor efetivo. Avalia-se a habilidade <strong>em</strong> identificar e recuperar informações,<br />
<strong>em</strong> desenvolver uma compreensão geral do texto, interpretando-o, refletindo sobre o conteúdo<br />
e a forma do texto e construindo argumentações para defender um ponto de vista.<br />
3. O uso para o qual o texto foi construído. Por ex<strong>em</strong>plo, um romance, uma carta<br />
pessoal ou uma biografia são escritos para uso “pessoal”; enquanto documentos oficiais ou<br />
pronunciamentos são para uso “público” e um manual ou relatório, para uso “operacional”.<br />
Alguns alunos apresentam melhor des<strong>em</strong>penho <strong>em</strong> uma situação de leitura do que <strong>em</strong> outra, o<br />
que justifica a inclusão de diversos tipos de leitura nos itens de avaliação.<br />
3.1.1) Concepção de leitura no PISA<br />
O PISA t<strong>em</strong> uma concepção cognitiva de leitura como extração de informação e relação<br />
entre informações extraídas de textos <strong>em</strong> diferentes gêneros e linguagens, os quais constitu<strong>em</strong><br />
práticas de leitura escolares e não-escolares.<br />
Na avaliação, foram selecionadas três capacidades básicas: localização, identificação e<br />
recuperação de informação, interpretação e reflexão. Essas capacidades foram subdivididas<br />
<strong>em</strong> cinco níveis, exigidas na leitura e compreensão de uma diversidade de gêneros.<br />
3.1.1.1) A elaboração de itens no PISA<br />
O PISA t<strong>em</strong> uma proposta metodológica diferente da que é utilizada nas avaliações<br />
nacionais.<br />
Primeiro, são previamente definidos os níveis de letramento. Após esse momento<br />
inicial, os instrumentos são organizados a partir da definição desses itens. Os itens são pré-<br />
144
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
testados, analisados e organizados. Os testes são aplicados e é realizada a <strong>análise</strong> de<br />
proficiência. A partir da <strong>análise</strong> de proficiência, a matriz de referência é reavaliada.<br />
Ex<strong>em</strong>plo de questão do PISA:<br />
LAGO CHADE QUESTÃO 1<br />
Em que época a profundidade do Lago Chade foi maior?<br />
_______________________________<br />
LAGO CHADE QUESTÃO 2<br />
Qual é a profundidade do Lago Chade hoje?<br />
A) Cerca de dois metros.<br />
B) Cerca de quinze metros.<br />
C) Cerca de cinqüenta metros.<br />
D) Ele desapareceu completamente.<br />
145
E) Essa informação não foi fornecida.<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
LAGO CHADE QUESTÃO 3A<br />
Qual é a data inicial do gráfico na figura 1? _______________________________<br />
LAGO CHADE QUESTÃO 3B<br />
Por que essa data foi escolhida como a data inicial do gráfico?<br />
LAGO CHADE QUESTÃO 4 A figura 2 é baseada na suposição de que :<br />
A) os animais representados na pintura rupestre estavam presentes na região na época <strong>em</strong> que<br />
foram desenhados.<br />
B) os artistas que desenharam os animais eram muito habilidosos.<br />
C) os artistas que desenharam os animais podiam viajar longe.<br />
D) não houve nenhuma tentativa de domesticar os animais que foram representados na pintura<br />
rupestre.<br />
LAGO CHADE QUESTÃO 5<br />
Uma equipe de arqueólogos descobriu algumas pinturas rupestres na região do Lago Chade,<br />
que incluía representações de elefantes, cachorros e cavalos. Se todos os animais tiver<strong>em</strong> sido<br />
desenhados na mesma época, os arqueólogos ficariam surpresos se essa amostra de arte<br />
rupestre também incluísse<br />
A) gado.<br />
B) gazelas.<br />
C) avestruzes.<br />
D) hipopótamos.<br />
LAGO CHADE QUESTÃO 6<br />
Para essa questão você precisa combinar informações da figura 1 e da figura 2. O<br />
desaparecimento dos rinocerontes, hipopótamos e auroques das pinturas rupestres do Saara<br />
ocorreram:<br />
A) no começo do Período Glacial mais recente.<br />
B) no meio do período <strong>em</strong> que o Lago Chade estava no seu nível mais alto.<br />
C) depois que o nível do Lago Chade tinha baixado por mais de mil anos.<br />
D) no começo de um período de seca ininterrupto.<br />
LAGO CHADE QUESTÃO 7<br />
Para essa questão você precisa combinar informações da figura 1 e da figura 2. O período<br />
durante o qual cavalos eram representados <strong>em</strong> pinturas nas rochas do Saara corresponde a<br />
A) a maior profundidade atingida no Lago Chade.<br />
B) um declínio ininterrupto no nível da água no Lago Chade.<br />
C) um período com somente uma quantidade moderada de água no Lago Chade.<br />
D) um período com uma quantidade relativamente grande de água no Lago Chade.<br />
146
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Pod<strong>em</strong>os observar a partir da <strong>análise</strong> deste ex<strong>em</strong>plo de questão do PISA, que <strong>em</strong> um<br />
mesmo it<strong>em</strong> da avaliação pod<strong>em</strong> ser verificados os diferentes níveis de letramento,<br />
diferent<strong>em</strong>ente do que ocorre na Prova Brasil.<br />
3.2) A Prova Brasil e o letramento<br />
Foco <strong>em</strong> leitura<br />
Os testes de Língua Portuguesa da Prova Brasil têm como foco a leitura. Seu objetivo é<br />
verificar se os alunos são capazes de apreender o texto como construção de conhecimento <strong>em</strong><br />
diferentes níveis de compreensão, <strong>análise</strong> e interpretação.<br />
A alternativa por esse foco parte da proposição de que ser competente no uso da língua<br />
significa saber interagir, por meio de textos, <strong>em</strong> qualquer situação de comunicação. Ler não é<br />
apenas decodificar, mas entender. É uma atividade complexa que exige do leitor d<strong>em</strong>onstrar<br />
habilidades como reconhecer, identificar, agrupar, associar, relacionar, generalizar, abstrair,<br />
comparar etc.<br />
O SAEB – Prova Brasil avalia o que os alunos sab<strong>em</strong> e o que dev<strong>em</strong> ser capazes de<br />
fazer ao longo de sua trajetória na escola, levando <strong>em</strong> consideração as condições <strong>em</strong> que esse<br />
aprendizado ocorre nas escolas brasileiras e, como tal, constitui-se uma ferramenta importante<br />
para todos que trabalham com educação no Brasil.<br />
3.2.1) Concepção de leitura na Prova Brasil<br />
A Prova Brasil t<strong>em</strong> uma concepção discursiva de leitura, na medida <strong>em</strong> que os<br />
descritores ou habilidades e competências diz<strong>em</strong> respeito não somente ao conteúdo e à<br />
materialidade linguística dos textos, mas também à sua situação de produção.<br />
É necessário ressaltar que as formas de se trabalhar a leitura não se esgotam <strong>em</strong> apenas<br />
um it<strong>em</strong> ou no desenvolvimento de uma habilidade. Devido às limitações operacionais e à<br />
metodologia utilizada, esta avaliação permite verificar apenas uma habilidade (nível de<br />
letramento) por it<strong>em</strong>.<br />
3.2.1.1) A elaboração de itens na Prova Brasil<br />
Elabora-se, <strong>em</strong> consenso de professores e especialistas, a Matriz de Referência para o<br />
teste, que abrange os conteúdos e habilidades básicos previstos para cada área de<br />
conhecimento, hierarquizados por nível de dificuldade. São produzidos os itens da avaliação,<br />
os quais são pré-testados. A Prova Brasil utiliza, <strong>em</strong> sua maioria, textos reais, ou seja, textos<br />
que circulam <strong>em</strong> sociedade, diferent<strong>em</strong>ente do PISA, cujos textos são elaborados<br />
especificamente para a avaliação.<br />
Aplicam-se os testes e faz-se a <strong>análise</strong> estatística dos itens. Fixam-se os níveis de<br />
proficiência (ou Letramento) e identificam-se os itens âncora. Esses itens são utilizados para<br />
ranquear o des<strong>em</strong>penho dos alunos através da previsibilidade de erros e acertos que será<br />
obtida pelos alunos.<br />
A Prova Brasil conta com um banco de itens que são verificados <strong>em</strong> diversas<br />
realizações da avaliação.<br />
Ex<strong>em</strong>plo de questão da Prova Brasil:<br />
147
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Como afirmado anteriormente, por questões metodológicas, a Prova Brasil só verifica<br />
uma habilidade por it<strong>em</strong>, <strong>em</strong>bora haja, <strong>em</strong> um número reduzido de itens, a solicitação ao<br />
aluno de que estabeleça comparações entre dois textos que trat<strong>em</strong> de uma mesma t<strong>em</strong>ática.<br />
4) Considerações Finais<br />
Se um de nossos objetivos é contribuir para a formação de indivíduos capazes de atuar<br />
no mundo <strong>em</strong> que estão inseridos, utilizando-se das ferramentas comunicativas disponíveis,<br />
os resultados obtidos nessas avaliações apontam para a necessidade urgente de uma reflexão<br />
sobre a formulação dos currículos educacionais.<br />
Um currículo coerente com as novas d<strong>em</strong>andas sociais de uso da leitura e da escrita e<br />
comprometido com o desenvolvimento da competência discursiva deve cont<strong>em</strong>plar, nas<br />
atividades de planejamento e de ensino, o trabalho com a diversidade de tipos e gêneros<br />
textuais, reavaliando o ensino de gramática normativa e do ensino como metalinguag<strong>em</strong>.<br />
Os conteúdos de Língua Portuguesa deverão estar articulados <strong>em</strong> torno do uso da língua<br />
oral e escrita e da reflexão sobre a língua e a linguag<strong>em</strong>. O professor de Língua Portuguesa<br />
precisa reorientar sua prática no intuito de reconhecer a variedade lingüística como<br />
possibilidade e não como estigma, precisa abrir a sala de aula para a infinidade de discursos e<br />
gêneros que circulam na sociedade, precisa estimular a prática de leitura e de produção textual<br />
como forma de desenvolvimento de habilidades discursivas e como fonte de prazer e não mais<br />
como atividades descontextualizadas, utilizadas para preencher o t<strong>em</strong>po das aulas etc.<br />
É chegada a hora da mudança na elaboração dos currículos, na seleção dos objetivos e<br />
formas de avaliação. A formação de nossos professores precisa ser mais consistente e<br />
concentrada na práxis e menos teórica, assim, leitura e escrita efetivamente se converteriam<br />
<strong>em</strong> compromisso de todas as áreas, pois estão presentes <strong>em</strong> todas as disciplinas do currículo e,<br />
mais que isso, são práticas da vida social que inser<strong>em</strong> o indivíduo no mundo e o caracterizam.<br />
A escola e a sala de aula de Língua Portuguesa precisam estar abertas aos gêneros textuais<br />
que circulam <strong>em</strong> nossa sociedade, tornando-se espaço de <strong>análise</strong> e produção desses mesmos<br />
gêneros e tipos <strong>em</strong> que se convert<strong>em</strong> segundo as necessidades comunicativas expressas pelos<br />
contextos interacionais.<br />
148
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O SAEB juntamente com o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais - INEP e<br />
outros órgãos do Ministério da Educação precisam reavaliar a elaboração da Prova Brasil,<br />
pois, tal como v<strong>em</strong> sendo formulada, não cont<strong>em</strong>pla o desenvolvimento da habilidade<br />
expressiva (que pode ser verificada na <strong>análise</strong> da produção textual do aluno, ou seja, no uso<br />
que ele faz da modalidade escrita da Língua). Com esse redirecionamento, ela poderá se<br />
tornar um instrumento de avaliação do processo de letramento de nossos alunos e fornecer<br />
dados reais que colabor<strong>em</strong> para a melhoria da qualidade do ensino <strong>em</strong> nosso país, para que<br />
assim, possamos alcançar as tão sonhadas mudanças sociais pelas quais t<strong>em</strong>os lutado e não<br />
estejamos, tão somente, apresentando resultados aos países desenvolvidos.<br />
Referências<br />
BELINTANE, C. Leitura e alfabetização no Brasil: uma busca para além da polarização. Educação e<br />
Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p.261-277, maio/ago. 2006.<br />
BONAMINO, A.; COSCARELLI, C.; FRANCO, C. Avaliação e letramento: concepções de aluno<br />
letrado subjacentes ao SAEB e ao PISA. Educação e Sociedade, Campinas, v.23, n.81, p.91-113, dez.<br />
2002.<br />
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto<br />
ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.<br />
______. Saeb 2001: novas perspectivas. Brasília: Inep, 2002.<br />
______. PISA 2000 relatório nacional. Brasília: Inep, 2001<br />
______. Ministério da Educação e Cultura. Matrizes curriculares de referência para o Saeb-1997.<br />
Brasília: Inep, 2000.<br />
BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São<br />
Paulo: Parábola, 2008.<br />
FUZA, Â. F.; MENEGASSI, R. J. Concepções de linguag<strong>em</strong> e leitura na Prova Brasil. Línguas &<br />
<strong>Letras</strong>. v.10, n.18, 1. S<strong>em</strong>. 2009.<br />
GOMES, E. M. L. Avaliação de Língua Portuguesa do Saeb: da leitura ao letramento. Brasília:<br />
MEC/INEP, 2006.<br />
KLEIMAN, A. Texto e leitor. Aspectos cognitivos da Leitura. São Paulo: Pontes, 2007.<br />
KOCH, I. V. O texto e a construção de sentidos. São Paulo: Contexto, 2007.<br />
MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.<br />
REIGELUTH, C.M.; FRICK, T.W. Formative research: a methodology for creating and improving<br />
design theories. In: REIGELUTH, C.M. (Org.). Instructional-design theories and models: a new<br />
paradigm of instructional theory. New Jersey: Lawrence Erbaum Associates, 1999. p. 633-651. v.2.<br />
ROJO, R. Letramentos múltiplos: escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editora, 2010.<br />
149
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
RUTMAN, L. Introduction aux méthodes de recherce evaluative. Otawa: Universidade de Carleton,<br />
1982.<br />
150
O CONCEITO DE GÊNERO E A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM<br />
PRESENTE NAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES DE LÍNGUA<br />
PORTUGUESA PARA O ENSINO MÉDIO<br />
Sandra Mara Moraes Lima (PUC-SP) 1<br />
RESUMO: O trabalho se propõe a analisar o texto das Orientações Curriculares de Língua Portuguesa para o<br />
Ensino Médio, propostas pelo MEC <strong>em</strong> 2006, no que diz respeito à presença e à pertinência de conceitos<br />
bakhtinianos presentes no texto. O objetivo da <strong>análise</strong> é apresentar qual a concepção de linguag<strong>em</strong> adotada,<br />
d<strong>em</strong>onstrando incoerências no caminho epist<strong>em</strong>ológico apontado. Objetiva, ainda, verificar o conceito de gênero<br />
que permeia o texto, d<strong>em</strong>onstrando que há uma imprecisão na abordag<strong>em</strong> desse conceito, que ora aponta para<br />
gêneros discursivos, ora para gêneros textuais. A fundamentação teórica que <strong>em</strong>basa a pesquisa é respaldada na<br />
perspectiva de Bakhtin e do Círculo Bahktiniano. A <strong>análise</strong> <strong>em</strong>preendida pretende d<strong>em</strong>onstrar que o conceito de<br />
gênero concebido pelo Círculo Bakhtiniano abarca a essência da língua, a discursividade, considerando<br />
primordialmente a construção dos sentidos, tratando-se, dessa maneira, de gênero discursivo, o que vai além do<br />
gênero textual. O texto das Orientações Curriculares, <strong>em</strong>bora <strong>em</strong> alguns momentos aponte para o gênero<br />
discursivo, traz, predominant<strong>em</strong>ente, a concepção de gênero textual, uma vez que a proposta dimensiona as<br />
instâncias lingüísticas, textual e pragmática, com níveis separados de <strong>análise</strong>. Nosso intento é d<strong>em</strong>onstrar que o<br />
texto das Orientações Curriculares apresenta incoerências no que diz respeito à concepção de linguag<strong>em</strong> e o<br />
conceito de gênero veiculado, trazendo pouca contribuição para os professores no sentido de esclarecer acerca de<br />
uma metodologia mais significativa e profícua no ensino da língua materna e, ainda, d<strong>em</strong>onstrar como a visão,<br />
trazida pelo Círculo de Bakhtin, parece ser mais fecunda no que diz respeito ao ensino de língua materna.<br />
Palavras-chave: Orientações curriculares – Gênero discursivo – Gênero textual – <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> – metodologia de<br />
ensino de língua.<br />
1) O que preconizam as Orientações Curriculares<br />
Com o objetivo de analisar o texto das Orientações Curriculares de Língua Portuguesa<br />
para o Ensino Médio, propostas pelo MEC <strong>em</strong> 2006, no que diz respeito à presença e à<br />
pertinência de conceitos bakhtinianos presentes no texto, primeiro apresentar<strong>em</strong>os <strong>em</strong> linhas<br />
gerais o documento, enfocando a concepção de linguag<strong>em</strong> adotada e d<strong>em</strong>onstrando<br />
incoerências no caminho epist<strong>em</strong>ológico apontado. Nessa direção, abordar<strong>em</strong>os o conceito de<br />
gênero que permeia o texto, d<strong>em</strong>onstrando que há uma imprecisão na abordag<strong>em</strong> desse<br />
conceito, que ora aponta para gêneros discursivos, ora para gêneros textuais.<br />
Assim, apresentamos um resumo breve da proposta curricular do MEC (2006),<br />
comparando com os pressupostos teóricos bakhtinianos, uma vez que o texto traz esse autor<br />
na bibliografia, e <strong>em</strong> alguns pontos deixa entrever parte da <strong>teoria</strong> bakhtiniana. A <strong>análise</strong><br />
<strong>em</strong>preendida pretende d<strong>em</strong>onstrar que o conceito de gênero concebido pelo Círculo<br />
Bakhtiniano abarca a essência da língua, a discursividade, considerando primordialmente a<br />
construção dos sentidos, tratando-se, dessa maneira, de gênero discursivo, o qual vai além do<br />
gênero textual, ao passo que o texto das Orientações Curriculares, <strong>em</strong>bora <strong>em</strong> alguns<br />
momentos aponte para o gênero discursivo, traz predominant<strong>em</strong>ente a concepção de gênero<br />
textual, uma vez que a proposta dimensiona as instâncias lingüística, textual e pragmática<br />
como níveis separados de <strong>análise</strong>. Na perspectiva bakhtiniana, o estudo da língua não prioriza<br />
nenhuma instância, e a <strong>análise</strong> deve se efetuar tendo <strong>em</strong> vista os níveis lingüísticoenunciativo-discursivo<br />
que comportam de forma indissociável o enunciado concreto. A noção<br />
1 Doutoranda <strong>em</strong> Linguística Aplicada.<br />
151
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
de gênero, <strong>em</strong> Bakhtin, pressupõe uma arquitetônica do enunciado concreto que inclui<br />
conteúdo t<strong>em</strong>ático, unidade t<strong>em</strong>ática, forma composicional, estilo, entonação expressiva,<br />
autor e destinatário, e aponta necessariamente para uma dimensão extra-verbal que inclui os<br />
modos de produção e circulação, os fatores sócio-históricos, b<strong>em</strong> como os valores<br />
constituídos socialmente. No que diz respeito à concepção de linguag<strong>em</strong>, ainda que o texto<br />
das Orientações apresente conceitos bakhtinianos, ele veicula a concepção de língua enquanto<br />
instrumento, propondo uma ação pedagógica que tenha a finalidade de instrumentalizar o<br />
educando, no intuito de levá-lo a conviver de forma lúdica, e ao mesmo t<strong>em</strong>po crítica, com<br />
situações de produção e leitura de textos, como forma de inserção e <strong>em</strong>poderamento social. Já<br />
a concepção de linguag<strong>em</strong> proposta pelo Círculo Bakhtiniano inviabiliza uma visão da língua<br />
como instrumento, uma vez que vê a língua(g<strong>em</strong>) como constitutiva, não podendo, portanto,<br />
ser exterior ao sujeito. Amparados, assim, na <strong>teoria</strong> do Círculo Bakhtiniano, nosso intento é<br />
d<strong>em</strong>onstrar que o texto das Orientações Curriculares apresenta incoerências no que diz<br />
respeito à concepção de linguag<strong>em</strong> e ao conceito de gênero veiculados, trazendo pouca<br />
contribuição para os professores no sentido de esclarecer acerca de uma metodologia mais<br />
significativa e profícua no ensino da língua materna. Pretend<strong>em</strong>os, ainda, d<strong>em</strong>onstrar como a<br />
visão trazida pelo Círculo de Bakhtin é mais fecunda no que diz respeito a esse ensino.<br />
Também <strong>em</strong> relação à metodologia, parece-nos que as concepções do Círculo direcionam para<br />
a realidade primordial da língua(g<strong>em</strong>), a interação discursiva, considerando todas as<br />
implicações do enunciado concreto, todo o contexto sócio-histórico-ideológico <strong>em</strong> que foi<br />
engendrado, e o vínculo irrevogável entre sujeito e linguag<strong>em</strong>.<br />
2) O que preconizam as Orientações Curriculares<br />
Segundo as consultoras que elaboraram as Orientações, não há receitas ou soluções a<br />
ser<strong>em</strong> seguidas. Elas defend<strong>em</strong> uma concepção de ensino orientadora no que diz respeito ao<br />
objeto de ensino/estudo e às abordagens a ser<strong>em</strong> adotadas nesse ensino, s<strong>em</strong> a pretensão de<br />
esgotar a tarefa e o objetivo das ações realizadas na disciplina de Língua Portuguesa, que, no<br />
ensino médio, dev<strong>em</strong> propiciar ao aluno o refinamento de habilidades de leitura e de escrita,<br />
de fala e de escuta.<br />
Nessa proposta, o documento discorre acerca da identidade da disciplina Língua<br />
Portuguesa, no que diz respeito a seu papel ante as d<strong>em</strong>ais disciplinas do Ensino Médio, aos<br />
princípios fundamentais que sustentam a concepção de língua/linguag<strong>em</strong> e de seu<br />
ensino/aprendizag<strong>em</strong>, e aos parâmetros orientadores da ação pedagógica que decorr<strong>em</strong> do<br />
ponto de vista adotado.<br />
O caminho epist<strong>em</strong>ológico escolhido para a discussão dá ênfase aos estudos levados a<br />
efeito no âmbito da Linguística Aplicada. Nesse contexto, as Orientações mostram a<br />
importância de que as situações de interação sejam abordadas considerando-se as formas<br />
pelas quais se dão a produção, a recepção e a circulação de sentidos.<br />
Em relação à identidade da disciplina de Língua Portuguesa, o texto faz uma pequena<br />
historiografia, abordando os t<strong>em</strong>as dos debates sobre ensino de língua nos anos 70 e 80. Na<br />
década de 70, o debate centrou-se <strong>em</strong> torno dos conteúdos de ensino, levando <strong>em</strong> conta<br />
fatores como a classe social, espaço regional, faixa etária, gênero sexual. Esses fatores<br />
deveriam ser considerados <strong>em</strong> relação às situações de uso da língua. Nesse sentido, passou-se<br />
152
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
a considerar a língua como um fenômeno social histórico que varia no espaço e ao longo do<br />
t<strong>em</strong>po, e a defender que o processo ensino/aprendizag<strong>em</strong> não poderia deixar de considerar<br />
esse fenômeno. No entanto, afirma o texto das Orientações, o objeto de ensino não sofreu<br />
grandes modificações; houve uma abertura da escola para outras variedades, mas não foi dada<br />
real importância ao fato de que a perspectiva de ensino a ser adotada deveria considerar que a<br />
variação e a mudança lingüística são fatos intrínsecos aos processos sociais, e que isso deveria<br />
contribuir para que a escola entendesse as dificuldades dos alunos e atuasse mais<br />
pontualmente para que eles compreendam quando e onde determinados usos têm mais<br />
legitimidade. Após alcançar isso, a escola deveria atuar de forma mais adequada e eficaz nas<br />
interações sociais, sejam elas orais ou escritas. Ou seja, o conhecimento de que a língua é um<br />
conjunto de variedades e que não há variedade mais eficiente não pode ser mote para um<br />
ensino que aceita tudo e desconsidera os acordos e conflitos sociais no que diz respeito à<br />
aceitabilidade de determinados usos <strong>em</strong> certas situações. Entretanto, nos estudos da década de<br />
70, o estruturalismo ainda vigorava, valorizando somente os aspectos formais da língua. A<br />
convicção quanto à importância das questões relativas à variação e às mudanças lingüísticas<br />
era ainda insuficiente para fornecer uma sustentação teórica e metodológica que indicasse aos<br />
professores caminhos seguros para uma prática de ensino/aprendizag<strong>em</strong> de língua materna<br />
mais coerente e profícua.<br />
Na década posterior, tiveram lugar os estudos que tinham como foco o texto, que passa<br />
a ser visto como uma totalidade que só alcança esse estatuto por um trabalho conjunto de<br />
construção dos sentidos. Ganharam força os estudos da lingüística textual, a sociolingüística,<br />
a <strong>análise</strong> do discurso. Isso produziu mudança de paradigmas. Segundo o texto das<br />
Orientações, essa nova perspectiva passa a ser essencial para o amplo desenvolvimento dos<br />
estudos dos gêneros no momento atual, <strong>em</strong>bora naquele momento não foss<strong>em</strong> ainda<br />
compreendidas de forma plena as múltiplas dimensões do processo de produção/recepção dos<br />
textos: lingüística (aspectos formais), textual (configuração do texto <strong>em</strong> gêneros discursivos<br />
ou sequências textuais), socio-pragmática e discursiva (contexto sócio-histórico).<br />
O texto das Orientações Curriculares aponta com precisão o que t<strong>em</strong> ocorrido <strong>em</strong><br />
relação à pesquisa acadêmica e à apropriação desses estudos de forma apressada e<br />
descontextualizada, promovendo uma metodologia de ensino que continua repetindo um<br />
ensino prescritivo, mudando apenas a nomeclatura ensinada:<br />
O risco <strong>em</strong> relação à apropriação dos estudos que desde então têm sido<br />
desenvolvidos é o de que sua abordag<strong>em</strong> <strong>em</strong> sala de aula se limite à mera<br />
identificação e classificação dos fenômenos lingüísticos num dado texto.<br />
Isso porque o que se t<strong>em</strong> nessa forma de abordag<strong>em</strong> dos fenômenos é a<br />
duplicação de práticas classificatórias e prescritivas vinculadas às<br />
gramáticas pedagógicas tradicionais, adotando-se apenas uma nova<br />
nomenclatura, agora vinculada à Lingüística Textual, às Teorias da<br />
Enunciação e/ou à Análise do Discurso (p. 22).<br />
3) Concepção de língua/linguag<strong>em</strong> e práticas de ensino<br />
A abordag<strong>em</strong> ressaltada pelo documento é a proposta que chamam de interacionismo.<br />
Em uma nota explicativa (p. 23), ela é identificada com estudos desenvolvidos, na<br />
Lingüística, por Hymes; na Filosofia da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, por Bakhtin; na Etnometodologia e<br />
153
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Sociologia, por Goffman; na Psicologia, por Bronckart; na educação, por Schneuwly; e na<br />
Psicologia do Desenvolvimento, por Vygotsky e seus seguidores. As Orientações afirmam<br />
que esse interacionismo, apesar de envolver tantos autores, assume alguns princípios comuns<br />
no que diz respeito à concepção das relações dos homens entre si e com a linguag<strong>em</strong> e o<br />
mundo, tendo como princípio geral o de que pela linguag<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong> se constitui sujeito.<br />
“Ao estudar o processo de desenvolvimento e o próprio funcionamento da língua e da<br />
linguag<strong>em</strong>, tais estudos consideram as relações entre os processos cognitivos, ou<br />
intrapsicológicos, e os processos sociais, ou interpsicológicos” (p. 23).<br />
O documento aponta, <strong>em</strong> alguns momentos, uma concepção de linguag<strong>em</strong> compatível<br />
com a concepção bakhtiniana, linguag<strong>em</strong> como el<strong>em</strong>ento constitutivo do sujeito: “[...] é pelas<br />
atividades de linguag<strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> se constitui sujeito, só por intermédio delas é que t<strong>em</strong><br />
condições de refletir sobre si mesmo.” (p. 24). No entanto, ao tratar do gênero, na página 26,<br />
analisando um texto humorístico, uma piada, a perspectiva será textual. O gênero é visto<br />
como mais um el<strong>em</strong>ento do texto, e não como ponto de partida, como preconiza Bakhtin, o<br />
qual considera toda uma arquitetônica envolvendo o gênero como a possibilidade de lançar<br />
luz sobre a realidade e ao mesmo t<strong>em</strong>po atuar sobre ela.<br />
Assim, para as Orientações o gênero não é visto como ponto de partida para o ensino, é<br />
mais um el<strong>em</strong>ento dentro da perspectiva textual, <strong>em</strong>bora o termo usado no documento seja o<br />
de gênero discursivo. Na proposta para a aula de língua materna, afirma-se que:<br />
A lógica de uma proposta de ensino e de aprendizag<strong>em</strong> que busque<br />
promover letramentos múltiplos pressupõe conceber a leitura e a escrita<br />
como ferramentas de <strong>em</strong>poderamento e inclusão social. Some se a isso que<br />
as práticas de linguag<strong>em</strong> a ser<strong>em</strong> tomadas no espaço da escola não se<br />
restring<strong>em</strong> à palavra escrita n<strong>em</strong> se filiam apenas aos padrões socioculturais<br />
heg<strong>em</strong>ônicos. Isso significa que o professor deve procurar, também, resgatar<br />
do contexto das comunidades <strong>em</strong> que a escola está inserida as práticas de<br />
linguag<strong>em</strong> e os respectivos textos que melhor representam sua realidade (p.<br />
28).<br />
Nessa citação, pod<strong>em</strong>os observar que o foco é no aspecto textual e não discursivo, uma<br />
vez que considera o texto como foco do ensino s<strong>em</strong> apontar necessariamente o discurso.<br />
Outro agravante da visão contida na citação acima é o de que, incoerent<strong>em</strong>ente com o que foi<br />
ventilado anteriormente acerca da concepção de linguag<strong>em</strong> como constitutiva do sujeito, traz<br />
agora uma definição de leitura e escrita como ferramenta de <strong>em</strong>poderamento, algo exterior<br />
que os indivíduos adquir<strong>em</strong> instrumentalizando-se. Isso inviabiliza uma visão de linguag<strong>em</strong> e<br />
sujeito irrevogavelmente vinculados, como é a concepção bakhtiniana.<br />
Já <strong>em</strong> outro trecho do documento, afirma-se:<br />
Levado a efeito esse raciocínio, cria-se um terreno de trabalho com a língua<br />
no qual não cab<strong>em</strong> atitudes e avaliações que a concebam como algo<br />
completamente exterior ao sujeito que a usa, com uma configuração formal<br />
estável e fechada, e apartada dele ou de quaisquer outros fatores de ord<strong>em</strong><br />
socio-histórica (p. 30).<br />
Esse trecho contradiz totalmente a citação anterior que apresenta a língua(g<strong>em</strong>) numa<br />
perspectiva constitutiva, o que impossibilitaria tratar leitura e escrita como ferramentas<br />
154
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(instrumento) de <strong>em</strong>poderamento e inclusão social. De acordo com a concepção bakhtiniana,<br />
a linguag<strong>em</strong> não pode ser considerada ferramenta, não é exterior ao sujeito, e ainda é<br />
possibilidade única de socialização. A inclusão social a que o texto r<strong>em</strong>ete, portanto, deve ser<br />
inclusão econômica, pois estar na linguag<strong>em</strong> implica estar no social, seja ele qual for.<br />
No que tange ao conceito de gênero o texto das Orientações, <strong>em</strong>bora cite Bakhtin, adota<br />
uma perspectiva diferente da concepção de gênero discursivo do Círculo Bakhtiniano. A<br />
noção de gênero <strong>em</strong> Bakhtin comporta uma arquitetônica que inclui conteúdo t<strong>em</strong>ático,<br />
unidade t<strong>em</strong>ática, forma composicional, estilo, entonação expressiva, autor e destinatário, e<br />
aponta para uma dimensão extra-verbal, na medida <strong>em</strong> que inclui os modos de produção e<br />
circulação e fatores sócio-históricos, b<strong>em</strong> como os valores constituídos socialmente. Já no<br />
documento, o gênero é visto como mais um el<strong>em</strong>ento textual, e não como ponto de partida<br />
para a <strong>análise</strong> do texto, como preconiza Bakhtin.<br />
Há uma totalidade no gênero que transcende o lingüístico. Ele engloba, além dos sist<strong>em</strong>as<br />
sintático, morfológico, s<strong>em</strong>ântico e fonológico, os fatores sócio-histórico-ideológicos, b<strong>em</strong><br />
como o tom volitivo <strong>em</strong>ocional, ou seja, o lugar de onde o sujeito do discurso fala,<br />
caracterizando uma autoria, o qual está vinculado necessariamente e irrevogavelmente a todas<br />
as d<strong>em</strong>ais instâncias.<br />
4) Definições de gênero que o documento traz:<br />
Ao longo do texto das Orientaçãoes Curriculares, aparec<strong>em</strong> várias definições de<br />
gêneros que os defin<strong>em</strong> a partir de diferentes perspectivas. Passar<strong>em</strong>os a citar algumas.<br />
Em primeiro lugar, v<strong>em</strong>os gêneros vistos como formas pelas quais se dão a produção,<br />
a recepção e a circulação dos sentidos:<br />
“[...] será apontada a importância de se abordar<strong>em</strong> as situações de interação,<br />
considerando-se as formas pelas quais se dão a produção, a recepção e a circulação de<br />
sentidos.” (p. 19).<br />
Também são vistos como configurações textuais:<br />
Pode-se ainda compl<strong>em</strong>entar dizendo que, como somos sujeitos cujas<br />
experiências se constro<strong>em</strong> num espaço social e num t<strong>em</strong>po histórico, as<br />
nossas atividades de uso da língua e da linguag<strong>em</strong>, que assum<strong>em</strong> propósitos<br />
distintos e, conseqüent<strong>em</strong>ente, diferentes configurações, são s<strong>em</strong>pre<br />
marcadas pelo contexto social e histórico (p.24).<br />
Como maneira de materializar o texto:<br />
[...] o que se propõe é que, na delimitação dos conteúdos, as escolas<br />
procur<strong>em</strong> organizar suas práticas de ensino por meio de agrupamentos de<br />
textos, segundo recortes variados, <strong>em</strong> razão das d<strong>em</strong>andas locais,<br />
fundamentando-se no princípio de que o objeto de ensino privilegiado são<br />
os processos de produção de sentido para os textos, como materialidade de<br />
gêneros discursivos, à luz das diferentes dimensões pelas quais eles se<br />
constitu<strong>em</strong> (p. 36).<br />
E ainda como formas de atualização da língua nos eventos de interação:<br />
155
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Na acepção <strong>em</strong> foco, é pertinente conferir à noção de conteúdo<br />
programático um sentido ligado diretamente à idéia de que os conteúdos da<br />
área de Língua Portuguesa pod<strong>em</strong> figurar como el<strong>em</strong>entos organizadores de<br />
eixos t<strong>em</strong>áticos <strong>em</strong> torno dos quais serão definidos, pela escola, os projetos<br />
de intervenção didática que tomarão como objeto de ensino e de<br />
aprendizag<strong>em</strong> tanto as questões relativas aos usos da língua e suas formas<br />
de atualização nos eventos de interação (os gêneros do discurso) como as<br />
questões relativas ao trabalho de <strong>análise</strong> lingüística (os el<strong>em</strong>entos formais<br />
da língua) e à <strong>análise</strong> do funcionamento sociopragmático dos textos (tanto<br />
os produzidos pelo aluno como os utilizados <strong>em</strong> situação de leitura ou<br />
práticas afins) (p. 36).<br />
O texto apresenta o termo gênero do discurso, no entanto a abordag<strong>em</strong> não é discursiva.<br />
O gênero não é o ponto de partida para o ensino, é mais um el<strong>em</strong>ento dentro da perspectiva<br />
textual. A <strong>análise</strong> do enunciado concreto, na visão bakhtiniana, não pode fragmentá-lo para<br />
estudar suas partes (crítica de Bakhtin ao Formalismo- Objetivismo abstrato), pois há uma<br />
arquitetônica de el<strong>em</strong>entos indissociáveis no enunciado/gênero. Na perspectiva bakhtiniana, o<br />
enunciado concreto/gênero deve ser analisado tomando-se o aspecto lingüístico-enunciativodiscursivo<br />
de maneira indissociável.<br />
Para a <strong>teoria</strong> bakhtiniana, o que importará no estudo da linguag<strong>em</strong> não é o aspecto<br />
formal da língua, mas seu caráter interacional, enunciativo, discursivo, ou seja, a língua para<br />
Bakhtin está s<strong>em</strong>pre a serviço de um locutor que a usa numa determinada condição de<br />
enunciação <strong>em</strong> que a palavra, o signo, está de acordo com a situação social estabelecida<br />
concretamente. Isso significa que o estudo da linguag<strong>em</strong>, nessa perspectiva, deve considerar<br />
s<strong>em</strong>pre a produção de sentido num dado contexto <strong>em</strong> que sujeito e linguag<strong>em</strong> estão<br />
irrevogavelmente atrelados. Para Bakhtin (Volochinov) “[...] o locutor serve-se da língua para<br />
suas necessidades enunciativas concretas. [...] Para ele, o centro de gravidade da língua não<br />
reside na conformidade à norma da forma utilizada, mas na nova significação que essa forma<br />
adquire no contexto.” (Bakhtin, 1988, p. 92). E afirma ainda que o mesmo processo se dá <strong>em</strong><br />
relação ao receptor, pois “[...] o essencial na tarefa de descodificação não consiste <strong>em</strong><br />
reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso,<br />
compreender sua significação numa enunciação particular.”(Bakhtin, 1988, p. 93). Assim,<br />
reiteramos que, nessa ótica, o objeto de pesquisa da linguista não serão as formas da língua, a<br />
sua “sinalidade”, mas seu caráter s<strong>em</strong>iótico/ideológico/axiológico, <strong>em</strong> que os sentidos são<br />
construídos na interação verbal, processo <strong>em</strong> que não há como considerar a linguag<strong>em</strong> fora do<br />
sujeito e vice-versa.<br />
Para Bakhtin (2010), os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados e<br />
possu<strong>em</strong> infinitas variedades, tanto quanto são inesgotáveis as atividades humanas. Assim, a<br />
variedade dos gêneros do discurso pressupõe a variedade de escopos intencionais daquele que<br />
fala e escreve. O querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do<br />
discurso. Essa escolha é determinada <strong>em</strong> função da especificidade de uma dada esfera da<br />
comunicação verbal, necessidades de uma t<strong>em</strong>ática, do conjunto constituído de parceiros, etc.<br />
Dessa maneira, não é o texto que se encaixa no gênero, mas o gênero é o ponto de<br />
partida, está na base do projeto discursivo.<br />
156
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Qualquer enunciado fatalmente fará parte de um gênero. Mas não de uma<br />
forma pura e simplesmente determinista. Se vou me expressar <strong>em</strong> um<br />
determinado gênero, meu enunciado, meu discurso, meu texto será s<strong>em</strong>pre<br />
uma resposta ao que veio antes e suscitará respostas futuras, o que<br />
estabelece a profunda diferença entre intertextualidade (diálogo entre textos)<br />
e interdiscursividade (diálogo entre discursos) (Brait, 2000, p. 19).<br />
Ao tratar a questão do gênero, um dos m<strong>em</strong>bros do Circulo Bakhtiniano, Medvedev 2<br />
afirma que é idéia corrente que o desenvolvimento da consciência do hom<strong>em</strong> se faz através da<br />
linguag<strong>em</strong>, acrescentando então que esse desenvolvimento não se dá apenas com el<strong>em</strong>entos<br />
lingüísticos: “Son las formas del enunciado, y no las formas de la lengua las que des<strong>em</strong>peñan<br />
um papel importantísimo en el conocimiento y la concepción de la realidad” (1994). Em<br />
outras palavras, pensamos e compreend<strong>em</strong>os o mundo não <strong>em</strong> palavras, mas <strong>em</strong> formas<br />
complexas que são os tipos relativamente estáveis de enunciados, os gêneros discursivos.<br />
Dessa maneira, o enunciado não pode ser compreendido como uma unidade do sist<strong>em</strong>a da<br />
língua. Há uma totalidade nele que transcende o lingüístico, e portanto seu sist<strong>em</strong>a engloba,<br />
além dos sist<strong>em</strong>as sintático, morfológico, s<strong>em</strong>ântico e fonológico, os fatores sócio-históricoideológicos,<br />
b<strong>em</strong> como o tom volitivo <strong>em</strong>ocional, ou seja, o lugar de onde o sujeito do<br />
discurso fala, caracterizando uma autoria, o qual está vinculado necessariamente e<br />
irrevogavelmente a todas as d<strong>em</strong>ais instâncias.<br />
Assim, considerar o gênero discursivo implica considerar linguag<strong>em</strong> e sujeito<br />
necessariamente vinculados, e considerar, ainda, as esferas de atividades <strong>em</strong> que os gêneros se<br />
constro<strong>em</strong> e atuam de acordo com as condições de produção, circulação e recepção.<br />
5) Considerações finais<br />
O documento Orientações Curriculares para o Ensino Médio de Lingua Portuguesa<br />
declara usar a <strong>teoria</strong> bakhtiniana, entre outras. No entanto o faz de maneira equivocada, uma<br />
vez que diz abordar a corrente interacionista. E <strong>em</strong>bora afirme, <strong>em</strong> determinado ponto do<br />
texto, que toma a linguag<strong>em</strong> como constitutiva do sujeito, apresenta a leitura e escrita como<br />
ferramenta de <strong>em</strong>poderamento. Isso torna o texto bastante incoerente, uma vez que a<br />
concepção constitutiva de linguag<strong>em</strong> não comporta a idéia de língua(g<strong>em</strong>) como ferramenta a<br />
ser dada pela escola.<br />
Em relação ao gênero, o documento usa a expressão gênero discursivo, no entanto a<br />
abordag<strong>em</strong> sobre os gêneros se atém à perspectiva de gêneros textuais. Nas atividades<br />
ex<strong>em</strong>plificadas, o gênero é considerado como mais um el<strong>em</strong>ento a ser analisado, e não como<br />
o ponto de partida. Essa não é a perspectiva discursiva bakhtiniana. O documento traz alguns<br />
trechos <strong>em</strong> que se pode perceber conceitos e abordagens de Bakhtin, mas o faz associando-os<br />
com outras <strong>teoria</strong>s, como a lingüística textual, a sócio-pragmática, etc., e o que predomina<br />
como sugestão de trabalho com a língua é a perspectiva textual, e não a discursiva.<br />
Cumpre assinalar que, <strong>em</strong> relação ao ensino de língua portuguesa no Brasil, não é raro<br />
ouvirmos alunos, falantes nativos da língua portuguesa <strong>em</strong> geral, proclamando não saber falar<br />
português e que português é uma língua muito difícil. Isso se dá muito provavelmente, entre<br />
2 Essa obra é assinada por Bakhtin e Medvedev, no entanto os pesquisadores bakhtinianos atuais acreditam ser a<br />
autoria apenas de Medvedeve.<br />
157
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
outros fatores, porque "[...] a compreensão que o indivíduo t<strong>em</strong> de sua língua não está<br />
orientada para a identificação de el<strong>em</strong>entos normativos do discurso, mas para a apreciação de<br />
sua nova qualidade contextual.” (Bakhtin, 1988, p. 103). Nessa direção, do nosso ponto de<br />
vista, no que diz respeito ao ensino de língua materna, a concepção de linguag<strong>em</strong> e o método<br />
para seu estudo defendidos pelo Círculo Bakhtiniano apontam para uma metodologia de<br />
ensino/aprendizag<strong>em</strong> pautada na realidade primordial da língua(g<strong>em</strong>), a interação discursiva,<br />
considerando todas as implicações do enunciado concreto, todo o contexto sócio-históricoideológico<br />
<strong>em</strong> que foi engendrado, tendo <strong>em</strong> vista sujeito e linguag<strong>em</strong> irrevogavelmente<br />
vinculados; e isso resulta num ensino/aprendizag<strong>em</strong> mais profícuo e fecundo, uma vez que<br />
não perde de vista a construção dos sentido e as condições de produção do enunciado<br />
concreto que estão necessariamente atrelados à vida.<br />
Referências<br />
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra.<br />
São Paulo: Martins Fontes, 2010.<br />
______. (Volochinov) Marxismo e filosofia da linguag<strong>em</strong>. Tradução de Michel Lahud e Yara<br />
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1988.<br />
BAJTIN, M.; MEDVEDEV, P. N. El método formal en los stúdios literários. Introdución crítica a<br />
una poética sociológica. Tradução de Tatiana Bubinova. Madri: Alianza Editorial, 1994.<br />
BRAIT, B. PCNs, gêneros e ensino de língua: faces discursivas da textualidade. In: ROJO, Roxane.<br />
(Org.). A prática de linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> sala de aula. São Paulo: Educ; Campinas, SP: Mercado das<br />
<strong>Letras</strong>, 2000.<br />
BRASIL. Orientações curriculares nacionais para o ensino médio. Linguagens, códigos e suas<br />
tecnologias. Ministério da Educação. Brasília: MEC/SEB, 2006. Disponível <strong>em</strong>: <<br />
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>.maio de 2010.<br />
158
REINVENÇÃO OU RETROCESSO?<br />
REFLETINDO SOBRE ALFABETIZAÇÃO<br />
Raquel Oliveira do Nascimento (UERJ) 1<br />
RESUMO: A alfabetização no Brasil s<strong>em</strong>pre foi cercada de polêmicas, primeiramente representadas por<br />
disputas entre métodos (Braslavsky, apud Carvalho, 2007, p.18). Mais recent<strong>em</strong>ente, após a mudança de<br />
paradigma que passou a questionar os métodos tradicionais de alfabetização (Ferreiro e Teberosky, 1991),<br />
vivenciamos um apagamento dos métodos, a desinvenção da alfabetização (Soares, 2004). Atualmente, surge<br />
um discurso que, culpando os PCN e todas as <strong>teoria</strong>s surgidas a partir de 1980 pelo “fracasso” na educação,<br />
defende a volta ao ensino tradicional, especificamente do método fônico, sob a argumentação de que esse é o<br />
único método cuja eficácia é cientificamente comprovada, como consta no relatório de 2003, encomendado pela<br />
Câmara dos Deputados (Cardoso Martins et al, 2003). Vasconcelos (2010), incomodada com esse discurso,<br />
propôs uma reflexão <strong>em</strong> que condenou o relatório. L<strong>em</strong>brando que o “fracasso” denunciado não é recente,<br />
defende que dev<strong>em</strong>os ser cautelosos com as intervenções autoritárias sobre as orientações das escolas e sobre os<br />
professores, para não corrermos o risco de retroceder <strong>em</strong> conquistas já alcançadas. Também alerta que não se<br />
pod<strong>em</strong> culpar <strong>teoria</strong>s que, de fato, nunca foram plenamente transpostas para a prática. Por compartilhar desse<br />
pensamento e por ter tomado conhecimento de que algumas escolas públicas do Brasil estão começando a<br />
“experimentar” o método fônico através da contratação de projetos de órgãos privados com a mesma orientação<br />
do Relatório, interessei-me por desenvolver uma <strong>análise</strong> crítica de sua proposta. Para tanto, primeiro analisei os<br />
pressupostos que orientam o método, <strong>em</strong>basando-me <strong>em</strong> diversos Estudos de <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> que tratam dos t<strong>em</strong>as<br />
letramento e alfabetização – Braggio (1992), Cagliari (1992), Soares (2004) e Maciel (2008), entre outros. Em<br />
seguida, também analisei um dos textos presentes na cartilha do Instituto Alfa e Beto, de Brasília, do mesmo<br />
método, à luz da Linguística Textual (Beugrande e Dressler, 1981, apud Koch, 2008). Minhas <strong>análise</strong>s suger<strong>em</strong><br />
que, apesar do desenvolvimento da consciência fonológica ser um ponto positivo da proposta, a preocupação<br />
com o sentido do que é lido é posta <strong>em</strong> segundo plano, sendo a decodificação o foco quase que exclusivo nessa<br />
fase. Por ser fechada e inflexível, a proposta não leva <strong>em</strong> conta aspectos individuais dos alunos e parte do<br />
princípio de que todos aprenderão ao mesmo t<strong>em</strong>po, as mesmas coisas, e pelo mesmo caminho. O erro deve ser<br />
evitado e não há espaço para uma reflexão sobre as hipóteses construídas pelas crianças ao longo do processo.<br />
Por último, a proposta não permite que a aprendizag<strong>em</strong> do código ocorra <strong>em</strong> um contexto de práticas sociais de<br />
leitura e escrita, ou seja, que a alfabetização ocorra junto ao letramento, uma vez que são utilizados<br />
pseudotextos, que não ajudam na formação integral do leitor, apenas na decodificação. Com o presente estudo,<br />
procurei d<strong>em</strong>onstrar que simplesmente negar as inovações e voltar ao passado não é o mais sensato. Para a busca<br />
de melhores resultados no âmbito <strong>em</strong> questão, a opção mais adequada parece ser procurar o equilíbrio entre o<br />
ensino do código de escrita e a vivência de práticas sociais de leitura e escrita <strong>em</strong> sala de aula – a reinvenção da<br />
alfabetização (Soares , 2004).<br />
Palavras-chave: Alfabetização; letramento; método fônico; formação de leitor; práticas de ensino de leitura e<br />
escrita.<br />
1) Introdução<br />
O presente trabalho é uma reação a uma iniciativa recente, que busca encontrar culpados<br />
para o fracasso escolar, especificamente na área da alfabetização, através de uma<br />
desqualificação dos docentes, das <strong>teoria</strong>s surgidas a partir dos anos de 1980 e dos PCN<br />
(Parâmetros Curriculares Nacionais). Tomando por pretexto os resultados alcançados pelo<br />
Brasil <strong>em</strong> leitura no Programa Internacional de Avaliação de Alunos – PISA –, esse<br />
movimento v<strong>em</strong> aos poucos tomando espaço, principalmente, depois da publicação do<br />
relatório encomendado pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara de Deputados a<br />
alguns especialistas (Cardoso Martins et al, 2003). O documento, baseado <strong>em</strong> relatórios<br />
1 Mestranda <strong>em</strong> Linguística pelo Programa de <strong>Pós</strong> Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong> da Universidade Estadual do<br />
Rio de Janeiro, sob orientação da Profª Dr.ª Zinda Vasconcellos e bolsista FAPERJ.<br />
159
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
internacionais 2 (França, 1998 e Estados Unidos, 2000), que reconheceram como faceta<br />
fundamental da alfabetização o conhecimento do código grafo-fônico e como fatores<br />
essenciais do processo, a consciência fonêmica, a fluência de leitura, o vocabulário e a<br />
compreensão, defende que seja institucionalizado o método fônico para a alfabetização de<br />
crianças, a ex<strong>em</strong>plo de países desenvolvidos, alegando ser este o único método de eficácia<br />
cientificamente comprovada. Em fevereiro de 2006, por ocasião de uma proposta do Ministro<br />
da Educação Fernando Haddad de que fosse feita uma revisão dos Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais da Educação Básica, os defensores do método fônico viram uma oportunidade de<br />
garantir a oficialização do método, o que causou reações acaloradas por parte dos defensores<br />
dos métodos globais. “Percebendo que o debate estava a gerar mais calor do que luz, dois<br />
meses depois, <strong>em</strong> abril, Haddad anunciou que o ministério desistira de recomendar um<br />
método oficial” (Folha de São Paulo, 27/10/2009).<br />
Sab<strong>em</strong>os que ainda estamos longe de atingir os resultados ideais <strong>em</strong> educação, até<br />
porque, os probl<strong>em</strong>as que a cercam no Brasil não são apenas de ord<strong>em</strong> pedagógica. Muitas<br />
outras questões estão envolvidas. Porém, a total desqualificação das práticas e <strong>teoria</strong>s vigentes<br />
<strong>em</strong> favor da instituição de um “novo” milagroso – que no caso atual, é representado, na<br />
verdade, pelo “antigo” – é, no mínimo, uma injustiça, já que, além de o fracasso denunciado<br />
não ser recente, mas uma realidade constante na história da educação brasileira, não se pode<br />
dizer que as <strong>teoria</strong>s <strong>em</strong> questão tenham realmente sido plenamente aplicadas na prática. Como<br />
é possível ler-se no próprio texto de introdução do capítulo de Língua Portuguesa dos<br />
Parâmetros Curriculares Nacionais para os primeiros anos do Ensino Fundamental (1997),<br />
“mudanças <strong>em</strong> pedagogia são difíceis, pois não passam pela substituição de um discurso por<br />
outro, mas por uma real transformação da compreensão e da ação.” Transformação esta que<br />
ainda não ocorreu de fato.<br />
Partindo do contexto aqui explicitado, meu objetivo com este trabalho é desenvolver<br />
uma reflexão crítica sobre o discurso <strong>em</strong> voga. Embora concorde que, tanto o<br />
desenvolvimento da consciência fonológica, como a explicitação da relação entre fon<strong>em</strong>as e<br />
graf<strong>em</strong>as – idéias defendidas pelos proponentes do método fônico – são essenciais para o<br />
processo de alfabetização, procurarei d<strong>em</strong>onstrar que a proposta do método fônico, como<br />
programa fechado e inflexível que é, orienta-se por pressupostos que contradiz<strong>em</strong> importantes<br />
estudos linguísticos, não se configurando <strong>em</strong> uma opção de qualidade para a busca dos<br />
resultados que quer<strong>em</strong>os no âmbito da alfabetização. Além disso, não creio que a promoção<br />
do desenvolvimento das habilidades mencionadas necessariamente pressuponha a adoção do<br />
método <strong>em</strong> questão.<br />
Antes de iniciar a <strong>análise</strong> crítica <strong>em</strong> si, traçarei um breve histórico da alfabetização no<br />
Brasil, com o intuito de possibilitar uma melhor compreensão do contexto e da possível raiz<br />
das críticas atuais. Em seguida, apresentarei algumas características do “novo” discurso e<br />
realizarei uma <strong>análise</strong> crítica dos pressupostos que a orientam, fundamentada <strong>em</strong> literatura<br />
disponível e <strong>em</strong> estudos nas áreas de lingüística e alfabetização. Também farei uma <strong>análise</strong>, à<br />
luz da Linguística textual, de um dos textos presentes numa cartilha do método fônico<br />
(Aprender a Ler, Instituto Alfa e Beto). Por último, como alternativa para a busca de melhores<br />
resultados <strong>em</strong> alfabetização, apontarei a importância de haver uma reinvenção da<br />
2 Documento Apprendre à lire au cycle des apprentissages fondamentaux - Observatoire National de la<br />
Lecture, da França (1998) e Relatório do National Institute of Child Health and Human Development<br />
(NICHD) para o Congresso Nacional dos Estados Unidos (2000).<br />
160
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
alfabetização, como defende Soares (2004), por acreditar que este seja o caminho mais<br />
adequado para uma melhora nos resultados <strong>em</strong> educação, ao contrário daquele proposto pelos<br />
defensores do método fônico, que pode, na verdade, vir a representar um grande retrocesso<br />
<strong>em</strong> importantes conquistas já alcançadas.<br />
2) A alfabetização no Brasil: um breve histórico<br />
Ao traçarmos um histórico do ensino da leitura e da escrita de crianças no Brasil é<br />
possível percebermos que esse s<strong>em</strong>pre foi um t<strong>em</strong>a cercado de polêmicas, mais<br />
especificamente representadas pelas disputas engendradas entre os diferentes tipos de<br />
métodos, desde o final do século XIX, <strong>em</strong> busca de heg<strong>em</strong>onia – a chamada querela dos<br />
métodos (Braslavsky, apud, 2007, p.18), ocorrida, basicamente, entre métodos analíticos e<br />
sintéticos 3 . Em vários períodos históricos, observamos o “discurso de mudança” vigente, b<strong>em</strong><br />
como uma tensão entre modernos e antigos, marcados por uma postura constante de<br />
desqualificação do passado para viabilização das mudanças:<br />
Decorridos mais de c<strong>em</strong> anos desde a implantação, <strong>em</strong> nosso país, do<br />
modelo republicano de escola, [...] observam-se repetidos esforços de<br />
mudança, a partir da necessidade de superação daquilo que, <strong>em</strong> cada<br />
momento histórico, considerava-se tradicional nesse ensino e fator<br />
responsável pelo seu fracasso. Por quase um século, esses esforços se<br />
concentraram, sist<strong>em</strong>ática e oficialmente, na questão dos métodos de ensino<br />
da leitura e escrita, e muitas foram as disputas entre os que se consideravam<br />
portadores de um novo e revolucionário método de alfabetização e aqueles<br />
que continuavam a defender os métodos considerados antigos e tradicionais<br />
(Mortatti, 2006, p.3).<br />
A partir dos anos de 1980, com os estudos da Psicogênese da Língua Escrita (Ferreiro e<br />
Teberosky, 1991), uma nova tensão se instalou: passou-se a questionar os métodos como<br />
incompatíveis com a forma como as crianças aprendiam. Com o deslocamento do foco de<br />
atenção do método para o processo realizado pelo aprendiz durante a aquisição da leitura e da<br />
escrita, tais estudos apresentam-se como uma revolução no conceito de alfabetização,<br />
questionando o uso das cartilhas e apontando inadequações nos métodos tradicionais, por<br />
prescrever<strong>em</strong> um “passo a passo, do ‘simples ao complexo’, segundo uma definição própria<br />
que s<strong>em</strong>pre é imposta por ele (o método)”, s<strong>em</strong> considerar os probl<strong>em</strong>as que o próprio<br />
aprendiz, sujeito ativo que é, define e n<strong>em</strong> mesmo os mecanismos que constrói para resolvêlos<br />
(Ferreiro e Teberosky, 1991, p.276).<br />
É inegável a importância dessa mudança de paradigma e da forma como os estudos de<br />
Ferreiro e Teberosky (1991) contribuíram para uma melhor compreensão de como as crianças<br />
constro<strong>em</strong> os conhecimentos acerca da leitura e da escrita. Porém, ao mesmo t<strong>em</strong>po, a <strong>teoria</strong><br />
da Psicogênese da Língua Escrita não trouxe exatamente uma metodologia alternativa, o que<br />
levou a dúvidas sobre como usá-la na prática. Interpretações equivocadas atribuíram ao<br />
método uma conotação negativa, gerando o que Soares chama de desinvenção da<br />
3 Em síntese, os métodos analíticos são aqueles que part<strong>em</strong> da parte para o todo (das letras e sílabas<br />
para as palavras, frases e textos) enquanto que os sintéticos part<strong>em</strong> do todo para as partes (do texto,<br />
frase ou palavra para os constituintes menores, sílabas e letras).<br />
161
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
alfabetização. 4 É importante esclarecer que a interpretação equivocada, que resultou num<br />
apagamento do ensino explícito do código de escrita, foi fruto de uma associação direta do<br />
conceito de método aos métodos tradicionais, fechados e inflexíveis, como é definido por<br />
Braggio (1992, p. 02):<br />
[...] ‘pacotes’ de alfabetização que se impõ<strong>em</strong> ao sujeito, entendido aqui<br />
como professor e aluno, como algo dado, acabado. Algo que é não só<br />
prévio, mas anterior e exterior ao sujeito, que dele não t<strong>em</strong> controle, mas<br />
que, pelo contrário a ele se sujeita. Na realidade, trata-se de um conjunto de<br />
regras preestabelecidas, consideradas como condições sine qua non para a<br />
ocorrência do conhecimento. Aqui, os sujeitos são reduzidos a ‘coisas’, a<br />
meros repassadores/receptores do conhecimento julgado a priori<br />
‘cientificamente’ verdadeiro.<br />
Outro engano, acarretado pela má compreensão desses estudos, foi o que levou à falsa<br />
crença de que, sendo agora o aprendiz sujeito de sua própria aprendizag<strong>em</strong>, bastava<br />
proporcionar-lhe um convívio intenso com a cultura escrita <strong>em</strong> um ambiente alfabetizador<br />
para que ele se alfabetizasse. Nesse ponto, o surgimento do conceito de letramento contribuiu<br />
ainda mais para um apagamento do conceito de alfabetização: letrar e alfabetizar passaram a<br />
ser vistos como processos incompatíveis, sendo o primeiro substituto do segundo e<br />
representativo do novo, enquanto o segundo passou a estar associado ao antigo e tradicional.<br />
Qualquer prática que visasse o ensino do código de escrita era associada ao termo<br />
alfabetização, agora tido como “antigo”. Letrar, ao contrário, seria entendido como o<br />
aprendizado da língua <strong>em</strong> situações de uso, <strong>em</strong> práticas sociais de leitura e escrita, através do<br />
contato direto com uma grande diversidade de gêneros, s<strong>em</strong> a necessidade de haver o ensino<br />
explícito do código. Hoje, começa-se a perceber que os dois processos são independentes,<br />
mas também indispensáveis e compl<strong>em</strong>entares, não se tratando de um ser alternativo ao outro.<br />
Essa é a idéia de Soares (2004), que levanta a necessidade de reinventarmos a alfabetização,<br />
recuperando sua especificidade relativa ao ensino do código escrito, s<strong>em</strong>, no entanto,<br />
abandonarmos as especificidades relativas ao desenvolvimento do letramento, devendo um<br />
processo ocorrer paralelamente ao outro, já que um não existe plenamente s<strong>em</strong> o outro.<br />
Ainda hoje, o termo letramento é usado <strong>em</strong> detrimento do termo alfabetização,<br />
enquanto persist<strong>em</strong> muitas dúvidas e incertezas entre os professores, dificultando a plena<br />
articulação entre discurso pedagógico e prática docente (Maciel e Lúcio, 2008).<br />
O que acontece é que, a partir da mudança de paradigma na alfabetização, ocorrida nas<br />
últimas décadas, autoridades e acad<strong>em</strong>ia vêm <strong>em</strong>penhando um grande esforço <strong>em</strong> garantir a<br />
institucionalização das novas <strong>teoria</strong>s na rede pública, através de diferentes documentos<br />
oficiais. Por outro lado, esse esforço coincide com um quadro de desvalorização do docente,<br />
cuja formação, geralmente inadequada, não o permite compreender plenamente tais<br />
documentos, que são <strong>em</strong>basados <strong>em</strong> <strong>teoria</strong>s da linguag<strong>em</strong> com as quais ele não está<br />
familiarizado. Ocorre, portanto, um descompasso entre a <strong>teoria</strong> e a prática docente efetiva<br />
(Kleiman, 2008).<br />
Partindo desse quadro, fica difícil aceitar o argumento que culpa as novas <strong>teoria</strong>s pelo<br />
fracasso escolar <strong>em</strong> alfabetização, já que elas não foram plenamente postas <strong>em</strong> prática até<br />
4 Soares (2004) denomina “desinvenção da alfabetização” o processo de perda de especificidade do<br />
processo de alfabetização, como o de aquisição do sist<strong>em</strong>a convencional de uma escrita alfabética e<br />
ortográfica.<br />
162
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
hoje. Em um estudo feito com professores de uma escola pública de Santa Catarina, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, Justina (2004) constatou que o nível de letramento dos docentes não os permitia<br />
compreender um trecho importante do capítulo referente à Língua Portuguesa do documento<br />
oficial do estado (a Proposta Curricular de Santa Catarina), que orientava o trabalho a partir<br />
de diferentes gêneros textuais <strong>em</strong> sala de aula. Constatou-se, por ex<strong>em</strong>plo, que os docentes<br />
não diferenciavam tipo de gênero textual, o que os impedia de transpor para a prática aquilo<br />
que lhes era proposto pelo documento.<br />
É bom l<strong>em</strong>brar que esse estudo foi feito com professores de Língua Portuguesa, logo<br />
(espera-se!), professores que tiveram uma formação acadêmica <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>. Embora saibamos<br />
que, na realidade brasileira, ainda existam muitos professores leigos, atuando nas salas de<br />
aula, principalmente, no interior do Brasil. Não acredito que esse seja o caso dos professores<br />
de Santa Catarina. Se pensarmos que dos professores alfabetizadores não é exigida<br />
necessariamente essa formação especializada, ver<strong>em</strong>os que esse choque entre <strong>teoria</strong> e prática<br />
pode ser ainda maior. Na verdade esse é outro ponto muito relevante: o professor<br />
alfabetizador é, na verdade, antes de tudo, um professor de Língua Portuguesa e, dada a<br />
complexidade e a importância do seu trabalho, deveria ser especializado e valorizado como<br />
tal. Cagliari (1992, p. 34) trata desse assunto de maneira muito clara:<br />
[...] A metodologia de ensino e avaliação de uma disciplina qualquer, e<br />
nisso o português não é exceção, deve necessariamente <strong>em</strong>ergir da própria<br />
natureza da disciplina a ser ensinada. No ensino do português, não há<br />
Pedagogia, Metodologia, Fonoaudiologia etc. que substituam o<br />
conhecimento linguístico que o professor deve ter. S<strong>em</strong> uma base lingüística<br />
verdadeira, as pessoas envolvidas <strong>em</strong> questões de ensino de português<br />
acabam ou acatando velhas e erradas tradições de ensino ou se apoiando<br />
explícita ou implicitamente <strong>em</strong> concepções inadequadas de linguag<strong>em</strong>.<br />
Se tivermos professores alfabetizadores realmente especializados e, acima de tudo, que<br />
pens<strong>em</strong> o fazer pedagógico, propostas como a do método fônico, dificilmente, serão levadas a<br />
sério. Mas isso já é um sonho um pouco mais distante...<br />
3) O “novo” discurso: um clamor ao retrocesso<br />
Tive conhecimento da existência do discurso <strong>em</strong> questão, pela primeira vez, ao ler o<br />
artigo de Vasconcellos (2010) <strong>em</strong> que a autora externa seu desconforto com o texto do<br />
Relatório encomendado pela Câmara dos Deputados (Cardoso Martins et al, 2003), alertando<br />
para a possibilidade de haver um retrocesso nas conquistas já obtidas até o momento. Entre as<br />
críticas que tece, Vasconcellos cita: as restrições que o relatório faz ao uso da escrita<br />
espontânea das crianças; a defesa da distinção entre leitura para aprender a ler e a leitura para<br />
compreender; a defesa dos textos artificiais para aprender a ler e, principalmente, a ênfase<br />
d<strong>em</strong>asiada dada à decodificação nessa fase inicial. Além disso, destaca o caráter autoritário<br />
do documento, que defende um controle rígido da autonomia do professor, censurando os<br />
PCN por sua flexibilidade nesse sentido. Vejamos apenas o 1º parágrafo da apresentação<br />
desse documento, para que tenhamos um ex<strong>em</strong>plo do tom com que ele é redigido. O grifo é<br />
meu:<br />
Nos últimos 30 anos, houve um gigantesco progresso nos conhecimentos<br />
científicos sobre o processo de aprendizag<strong>em</strong> da leitura e escrita, b<strong>em</strong> como<br />
163
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
sobre os métodos de alfabetização. Os estudos sobre alfabetização saíram<br />
do campo da intuição, amadorismo e <strong>em</strong>pirismo e da especulação teórica<br />
para adquirir foros de ciência experimental. Hoje existe uma “ciência da<br />
leitura”, que possui rigor e status acadêmico similar ao de outras ciências.<br />
Governos da maioria dos países industrializados vêm se beneficiando do<br />
resultado dessas pesquisas e promovendo importantes reformas <strong>em</strong> suas<br />
políticas, programas e práticas de alfabetização. Diversas razões têm<br />
impedido que o Brasil acesse esses conhecimentos e incorpore a experiência<br />
de países mais b<strong>em</strong> sucedidos (Cardoso Martins et al, 2003, p. 8).<br />
É interessante destacar que estão entre os m<strong>em</strong>bros do Grupo de Trabalho responsável<br />
pela elaboração desse relatório o Sr. Fernando Capovilla e o Sr. João Batista Araújo e<br />
Oliveira, ambos envolvidos com o mercado editorial, sendo o primeiro, autor, juntamente com<br />
a esposa, de um livro de alfabetização pelo método fônico (Capovilla e Capovilla, 2004) e o<br />
segundo, presidente do Instituto Alfa e Beto, de Brasília – doravante IAB –, que oferece<br />
programas completos de alfabetização pelo método fônico às secretarias de estados e<br />
municípios brasileiros.<br />
À primeira vista, cheguei a pensar que a proposta de institucionalização do método<br />
fônico apresentada pelo relatório não poderia atingir grandes repercussões, porém, para minha<br />
surpresa, descobri <strong>em</strong> minhas pesquisas que a proposta v<strong>em</strong> sendo, sim, implantada no ensino<br />
público, a partir de parcerias com o próprio IAB, <strong>em</strong> estados como Ceará e Bahia – o que<br />
pode ser facilmente constatado, acessando site do instituto, na Internet. Além disso, no início<br />
deste ano, o programa começou a ser “testado” pela Secretaria Municipal do Rio de Janeiro,<br />
<strong>em</strong> algumas escolas da prefeitura com baixo des<strong>em</strong>penho. Como professora da Rede<br />
Municipal do Rio de Janeiro há nove anos, fiquei muito surpresa com essa informação, uma<br />
vez que os pressupostos do programa de alfabetização do IAB são totalmente contraditórios à<br />
política educacional <strong>em</strong> vigor no município.<br />
Apesar de fazer parte da rede, tomei conhecimento da adoção do método <strong>em</strong> algumas<br />
escolas através de um blog da Internet. Revoltada com a orientação do material, uma<br />
professora colocou à disposição dos leitores do blog dois ex<strong>em</strong>plos de textos presentes no<br />
programa do Instituto. Como pude constatar, acessando o site do IAB, tais textos faz<strong>em</strong> parte<br />
de um conjunto de 110 pseudolivros que acompanham a cartilha do método. Um deles, todo<br />
redigido com palavras contendo o dígrafo CH, rendeu grande polêmica no Rio de Janeiro por<br />
apresentar uma expressão que, para os cariocas, possui conotação chula. Essa polêmica,<br />
porém, acabou desviando o foco do que realmente deveria ser discutido: a qualidade dos<br />
textos apresentados para a alfabetização de crianças. Num contexto <strong>em</strong> que tanto se fala da<br />
importância do letramento e da vivência de práticas sociais de leitura e escrita, o uso de textos<br />
artificiais é que deveria ser alvo de questionamentos. Por isso, optei por colocar aqui apenas o<br />
outro texto vinculado, que, <strong>em</strong>bora não tenha sido alvo de polêmica, considerei ainda mais<br />
espantoso:<br />
Zé e Zuza<br />
" Zé amola seu mano Zuza.<br />
- Ei, Zuza zonzo!<br />
- Não amola, Zé!<br />
164
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Uma manhã, uma luz iluminou Zuza.<br />
- O Zé não me amola mais!<br />
Zuza assou uma massa de sal numa noz.<br />
- Uma noz, mano Zuza! Eu amo noz! Ulalá!<br />
E zás!<br />
Ai, ai, ai!<br />
Noz com sal?<br />
Zuza amolou o Zé, ou não?<br />
O Zuza não amolou.<br />
- Amo noz! amo sal! Noz e sal, uau! Amei!<br />
Ué, n<strong>em</strong> o sal na noz amola o Zé!<br />
- Ô, mano Zé lelé!<br />
- Ê, miolo mole!"<br />
Movida por certa indignação, iniciei uma pesquisa e tive acesso a alguns textos de<br />
autoria do presidente do IAB, senhor João Batista Araújo e Oliveira. Todos os textos têm <strong>em</strong><br />
comum, além da total desqualificação das <strong>teoria</strong>s alternativas, as quais ele se refere por<br />
“pressupostos equivocados”, a afirmação de que existe uma evidência científica de que o<br />
método fônico é o método mais eficaz para a alfabetização de crianças. Isso também pode ser<br />
lido no texto de apresentação do programa de alfabetização no site do Instituto:<br />
[...] As revisões das evidências científicas coletadas nos últimos 30 anos<br />
d<strong>em</strong>onstram, de maneira inequívoca, a superioridade dos métodos fônicos<br />
sobre os d<strong>em</strong>ais (Adms, 1990, National Reading Panel, 2000, Snow, Burns<br />
e Griffin, 1998, McGuinness, 2004). A maioria dos países do mundo - e<br />
todos os países desenvolvidos que usam linguag<strong>em</strong> alfabética - preconizam<br />
o uso desses métodos <strong>em</strong> suas diretrizes curriculares nacionais (disponível<br />
<strong>em</strong>: < http://www.alfaebeto.org.br/AreaDetalhe.aspx?Id=39> ).<br />
Em um artigo publicado no Estadão online, <strong>em</strong> 15 de junho de 2010, o Sr. João, <strong>em</strong> tom<br />
agressivo, avalia alguns livros didáticos de alfabetização aprovados pelo MEC,<br />
desqualificando a proposta de letramento presente nesses materiais:<br />
Cartilhas elaboradas com base <strong>em</strong> pressupostos equivocados não ajudam as<br />
crianças a aprender a ler e escrever. Mas qual é, de fato, o objetivo das<br />
cartilhas aprovadas? De acordo com seus autores, o importante é promover<br />
o letramento, os usos sociais da língua, a intertextualidade, as múltiplas<br />
linguagens, a produção textual e outros pomposos desideratos. O domínio<br />
do código alfabético que se dane! Ou que se dan<strong>em</strong> os alunos, como atestam<br />
os resultados do Sist<strong>em</strong>a de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e as<br />
pesquisas sobre a capacidade de leitura dos brasileiros.<br />
A crítica presente nesse trecho é claramente motivada por uma característica visível dos<br />
atuais livros didáticos de alfabetização, que é a ausência de uma metodologia fechada de<br />
ensino do código de escrita alfabética, de um passo a passo que possa servir de guia ao<br />
165
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
trabalho de alfabetizar. Esses materiais, na verdade, exig<strong>em</strong> do professor um conhecimento<br />
suficiente para que ele compreenda os objetivos das poucas atividades que são propostas e<br />
ainda seja capaz de desenvolver outras atividades de ensino do código de escrita, s<strong>em</strong> que seu<br />
trabalho dependa do material. Na maioria das vezes, isso não acontece, seja por falta de<br />
t<strong>em</strong>po, já que a maioria dos professores t<strong>em</strong> jornada dupla, ou até tripla, seja por falhas <strong>em</strong><br />
sua formação. Nesse caso, essa “desmetodização” dos livros, a desinvenção da alfabetização<br />
de que fala Soares, pode, sim, ter sua parcela de culpa nos atuais resultados, mas não total.<br />
Até porque, muitos professores simplesmente optam por não utilizar os livros, que<br />
consideram inadequados aos seus alunos pela complexidade dos textos, como já<br />
d<strong>em</strong>onstraram estudos de Brito et al (2007). Nesse caso, eles acabam lançando mão de<br />
materiais próprios, muitas vezes, reproduzidos de antigas cartilhas. Esse quadro acaba nos<br />
levando a outra hipótese: a de que, na verdade, o chamado “ensino tradicional” nunca deixou<br />
de ser praticado totalmente, logo, não pode ser apresentado agora como uma solução mágica<br />
e, muito menos, alternativa.<br />
4) A proposta do método fônico: inadequações<br />
No site do Instituto Alfa e Beto, na Internet, tive acesso ao currículo e ao programa do<br />
material produzido por eles. A seguir, apresento a ilustração que define, de acordo com o<br />
National Reading Panel, quais são as competências básicas da alfabetização (fig.1):<br />
Figura 1<br />
Como indicado na fig.1, há uma diferenciação clara da leitura para aprender a ler<br />
(aquela realizada no primeiro ano da alfabetização com o intuito exclusivo de aprender o<br />
código de escrita alfabética) e a leitura para aprender, aquela que será realizada pelo aluno<br />
nos anos posteriores à sua alfabetização. Essa diferenciação retoma uma concepção<br />
behaviorista de hom<strong>em</strong>: passivo, idealizado e abstratamente concebido, isolado do contexto<br />
166
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
social e acrítico. O aprendiz é visto como tabula rasa e nada que ele traz de conhecimento<br />
anterior é valorizado.<br />
Ainda sobre essa questão da diferenciação entre a leitura pra aprender a ler e leitura<br />
para aprender, <strong>em</strong> outro artigo de autoria do Sr. João Batista Araújo e Oliveira, <strong>em</strong> conjunto<br />
com o professor Luiz Carlos Faria da Silva, da Universidade Estadual de Maringá,<br />
apresentado <strong>em</strong> um S<strong>em</strong>inário sobre Educação e Equidade, <strong>em</strong> outubro de 2006, os autores<br />
defend<strong>em</strong>, entre outras coisas, a importância de haver um controle rígido da complexidade do<br />
material escrito com o qual o aprendiz interage - mais uma vez sob o discurso das evidências<br />
científicas. A questão é que qualquer classificação “simples/complexo” parte, na verdade, da<br />
perspectiva do adulto e não se configura <strong>em</strong> um critério da criança, como poder<strong>em</strong>os ver no<br />
ex<strong>em</strong>plo a seguir, retirado de Sampaio (2008). Tendo sido solicitado ao aluno que escrevesse<br />
sobre o seu fim de s<strong>em</strong>ana, ele utiliza soluções para a sua escrita que vão de encontro à lógica<br />
de complexidade do adulto:<br />
(meu primo Michel foi na minha casa)<br />
Figura 2<br />
A sala de aula, espaço polifônico (Bakhtin, 1997a,b) e plural, onde múltiplas e variadas<br />
formas de pensar, perceber, dizer, sentir, aprender, ensinar, criar se articulam, se (auto)<br />
organizam e se realimentam, no movimento incessante do conhecer, mostra-nos, se quisermos<br />
e pudermos compreender /ver, que as crianças aprend<strong>em</strong> a ler e a escrever por caminhos,<br />
muitas vezes, contrários à forma como nos ensinaram a ensinar (Sampaio, 2008, p. 79).<br />
Contra essa “lógica científica”, que prega o uso de textos como o de “Zé e Zuza”, já<br />
apresentado aqui, sob a justificativa de que têm “maior eficácia no aprendizado da leitura”,<br />
apresento o trecho a seguir, <strong>em</strong> que Cagliari (1992), brilhant<strong>em</strong>ente, contesta essa tese:<br />
Qualquer criança que ingressa na escola aprendeu a falar e a entender a linguag<strong>em</strong> s<strong>em</strong><br />
necessitar de treinamentos específicos ou de prontidão para isso. Ninguém precisou arranjar a<br />
linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> de dificuldades crescentes para facilitar o aprendizado da criança.<br />
Ninguém disse que ela devia fazer exercícios de discriminação auditiva para aprender a<br />
reconhecer a fala ou para falar. Ela simplesmente se encontrou no meio de pessoas que<br />
falavam e aprendeu.<br />
A criança, evident<strong>em</strong>ente, não entrou para o mundo da linguag<strong>em</strong> da mesma forma que um<br />
adulto se inicia no aprendizado de uma língua estrangeira. Ela foi exposta ao mundo<br />
linguístico que a rodeia e nele foi, ela própria, traçando o seu caminho, criando o que lhe era<br />
permitido fazer com a linguag<strong>em</strong>. Nesse seu processo se percebe uma evolução, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre<br />
simples, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre lógica, mas s<strong>em</strong>pre condizente com seu modo de ser e de estar no<br />
mundo (Cagliari, 1992, p. 17).<br />
167
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Na verdade, os pressupostos da proposta do método fônico levam <strong>em</strong> conta que existe<br />
um aluno ideal, pertencente a uma realidade homogênea. Sob essa perspectiva, acredita-se que<br />
é possível que se tenha total controle do aprendizado da criança, quando na verdade, isso é<br />
impossível. Arbitrariamente, decide-se o quê e quando o aluno deverá aprender. E todos os<br />
alunos deverão aprender os mesmos conteúdos, da mesma forma e no mesmo espaço de<br />
t<strong>em</strong>po. Acontece que, na prática, o processo de descoberta da escrita pela criança é ativo e<br />
criativo, de perspectivas ilimitadas e, muitas vezes, surpreendentes, as quais n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é<br />
possível prever, quanto mais prevenir. Qu<strong>em</strong> acredita no contrário se ilude e se frustra. Ou,<br />
pior, está limitando a criança, que acaba se adaptando ao molde que a escola lhe impõe, s<strong>em</strong><br />
que haja espaço para que suas habilidades sejam conhecidas.<br />
Programas de alfabetização, como o que é questionado aqui, determinam um ponto de<br />
partida arbitrário para o trabalho, já que a decisão sobre o quê ensinar não parte de um<br />
diagnóstico prévio das necessidades dos alunos. S<strong>em</strong> diagnóstico, corre-se o risco de que a<br />
escola não cumpra seu papel fundamental de garantir ou, pelo menos, fazer de tudo para<br />
garantir o crescimento contínuo de todos os alunos.<br />
Como d<strong>em</strong>onstram Cardoso e Ednir (2002), um aluno pode tornar-se invisível para a<br />
escola quando não é feita uma avaliação correta de suas necessidades. As autoras relatam o<br />
caso de um aluno, oriundo de uma creche que lhe ofereceu boas oportunidades de<br />
desenvolvimento das expressões oral e escrita, que chega ao Ciclo Básico <strong>em</strong> outra escola. A<br />
nova instituição, então, lhe propõe, <strong>em</strong> dias consecutivos, as seguintes atividades, mostradas<br />
nas figuras 3 e 4:<br />
Figura 3 -(Cardoso e Edinir, 2002, p. 35) Figura 4-(Cardoso e Edinir, 2002, p.136)<br />
Paralelamente, <strong>em</strong> casa, durante à tarde, o aluno produz, s<strong>em</strong> auxílio, os seguintes<br />
textos, apresentados nas figuras 5 e 6:<br />
168
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 5-(Cardoso e Edinir, 2002, p. 135) Figura 6-(Cardoso e Edinir, 2002, p. 137)<br />
T<strong>em</strong>os aí a prova viva de como programas fechados de ensino são ineficazes, por não<br />
permitir<strong>em</strong> uma interação maior entre professor e aluno. Além disso, não há espaço para a<br />
escrita espontânea dos aprendizes, apenas para os exercícios que reproduz<strong>em</strong> modelos préapresentados.<br />
Na verdade, de acordo com a orientação do método fônico, o erro não é visto<br />
como parte importante do processo de desenvolvimento, mas como algo que deve ser evitado,<br />
negativo. Produções como as desse menino e do outro que contou sobre o fim de s<strong>em</strong>ana com<br />
o primo são absolutamente inexistentes dentro de programas como esses. A pergunta que fica<br />
é: qual é o papel que uma escola que age sob essa orientação exerce na vida de seu aluno<br />
invisível?<br />
Voltando a observar o currículo do programa de alfabetização pelo método fônico<br />
(fig.1), notamos que a compreensão não é fator de importância no ano de alfabetização – ano<br />
da “leitura para aprender a ler” – uma vez que o foco é posto na decodificação e a fluência<br />
mencionada diz respeito ao fluxo da leitura oral, aspectos relativos à entonação e à velocidade<br />
de leitura e não exatamente ao entendimento do que é lido. Acredita-se que apenas nos anos<br />
posteriores, quando o aluno já estiver alfabetizado e irá “ler para aprender”, a compreensão é<br />
possível. Nessa fase, apenas a compreensão de textos lidos por um adulto é levada <strong>em</strong> conta.<br />
Sob o prisma do método, a língua é tratada como sist<strong>em</strong>a autônomo, fechado <strong>em</strong> si<br />
mesmo, passível de ser estudado fora de seu contexto de uso. É tratada de maneira<br />
fragmentada, de forma homogênea e s<strong>em</strong> espaço para variações dialetais ou lingüísticas. Os<br />
textos desprovidos de significado e s<strong>em</strong> qualquer aspecto social – característica primordial da<br />
linguag<strong>em</strong> - são um desestímulo à formação do cidadão e do leitor que quer<strong>em</strong>os.<br />
A abordag<strong>em</strong> artificialista do método fônico vai de encontro ao caráter funcional da<br />
linguag<strong>em</strong> destacado por Halliday (Lyons, 1976, apud Braggio, 1992, p. 33): “Não t<strong>em</strong>os<br />
necessidade de traçar uma distinção entre um conhecimento idealizado de uma língua e seu<br />
uso atualizado: entre o ‘código’ e o ‘uso do código’ ou entre competência e performance. Tal<br />
dicotomia corre o risco de ser desnecessária ou ilusória”<br />
Ainda segundo o autor, “a criança sabe o que é linguag<strong>em</strong> porque ela sabe o que a<br />
linguag<strong>em</strong> faz”. Halliday explica que, antes mesmo de a criança aprender totalmente as<br />
169
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
formas da língua, ela já faz uso da linguag<strong>em</strong> a partir de suas funções, que aprende antes<br />
mesmo do ingresso na escola (id<strong>em</strong>). Partindo dessa perspectiva, a alfabetização que ocorre<br />
dissociada de uma preocupação com as práticas sociais de leitura e de escrita, do letramento,<br />
representa uma contradição a esse conhecimento prévio que a criança traz sobre a linguag<strong>em</strong>.<br />
Cria-se, primeiro, a falsa idéia de que a linguag<strong>em</strong> escrita possui apenas propósitos escolares<br />
– cumprir tarefas, avaliações, etc. – e somente depois, nos anos seguintes, <strong>em</strong>penha-se <strong>em</strong><br />
desfazer o engano. Essa forma de pensar a alfabetização me parece, no mínimo, levar a uma<br />
grande perda de t<strong>em</strong>po, além de <strong>em</strong>pobrecer a vivência escolar. O ensino do código – de<br />
incontestável importância – de maneira nenhuma é impedimento para uma prática rica com<br />
textos reais e de qualidade <strong>em</strong> sala de aula:<br />
Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções<br />
psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e<br />
também do adulto analfabeto) no mundo da escrita se dá simultaneamente por esses dois<br />
processos: pela aquisição do sist<strong>em</strong>a convencional de escrita – a alfabetização, e pelo<br />
desenvolvimento de habilidades de uso desse sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong> atividades de leitura e escrita, nas<br />
práticas sociais que envolv<strong>em</strong> a língua escrita – o letramento. Não são processos<br />
independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a alfabetização se desenvolve no<br />
contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades<br />
de letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da e por meio da<br />
aprendizag<strong>em</strong> das relações fon<strong>em</strong>a-graf<strong>em</strong>a, isto é, <strong>em</strong> dependência da alfabetização (Soares,<br />
2004, p.15).<br />
Considerando a importância do uso adequado de textos na alfabetização, recorrerei, a<br />
seguir, à Linguística Textual, para realizar uma <strong>análise</strong> mais detalhada dos aspectos que<br />
tornam inadequados para a alfabetização os textos de cartilha, artificiais e controlados.<br />
5) O texto na alfabetização: padrões de textualidade<br />
Para realizar a <strong>análise</strong> a seguir, adotarei a definição de texto presente <strong>em</strong> Koch e<br />
Travaglia (2009), segundo os quais o termo é entendido:<br />
[...] como uma unidade lingüística concreta (perceptível pela visão ou audição), que é tomada<br />
pelos usuários da língua (falante, escritor/ouvinte, leitor), <strong>em</strong> uma situação de interação<br />
comunicativa, como atividade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa<br />
reconhecível e reconhecida, independent<strong>em</strong>ente da sua extensão (Koch e Travaglia, 2009,<br />
p.8).<br />
Também tomarei por base os estudos de Beaugrande e Dressler (1981, apud Koch,<br />
2008), que, dedicando-se aos estudos de critérios e padrões de textualidade, b<strong>em</strong> como do<br />
processamento cognitivo do texto, apontam os seguintes padrões que contribu<strong>em</strong> para que um<br />
texto seja unificado:<br />
• Coesão – fenômeno resultante de mecanismos que garant<strong>em</strong> os elos internos do texto,<br />
promovendo a sua tecitura através de dependências gramaticais. Os principais fatores de<br />
coesão são, de acordo com Halliday e Hasan (1976, apud Koch, 2008), a referência, a<br />
substituição, a elipse, a conjunção e a coesão lexical.<br />
170
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
• Coerência – relações explícitas e não explícitas de conceitos que dão sentido ao texto.<br />
Muitas vezes, a coerência é possibilitada por inferências do leitor com base <strong>em</strong> seu<br />
conhecimento de mundo, não explícito no texto.<br />
• Intencionalidade – diz respeito ao escritor, ao seu objetivo ao escrever o texto<br />
(compartilhar algum conhecimento, divertir, <strong>em</strong>ocionar, instruir, persuadir, etc.).<br />
• Aceitabilidade – diz respeito ao papel do leitor de assumir que um determinado texto<br />
é relevante para ele.<br />
• Informatividade – medida pela quantidade de informações novas dadas ao leitor. Um<br />
texto, cuja informatividade é baixa, torna-se desinteressante para qu<strong>em</strong> o lê.<br />
• Situacionalidade – o padrão que torna o texto adequado do ponto de vista social.<br />
• Intertextualidade – refere-se à dependência que alguns conhecimentos de um dado<br />
texto pode ter de conhecimentos presentes <strong>em</strong> outros textos.<br />
Para efeito de <strong>análise</strong> dos padrões de textualidade aqui descritos, utilizarei o texto<br />
“Mamãe Luma”, presente na lição 4 da cartilha Aprender a Ler, do Programa Alfa Beto e<br />
replicarei parte da <strong>análise</strong> feita por Braggio (1992), com outro texto da Cartilha da Mônica.<br />
Informo que toda a lição 4 do livro está disponível para visualização no site do IAB <strong>em</strong><br />
arquivo PDF.<br />
MAMÃE LUMA<br />
LUMA É A MÃE. ELA É MÃE DA MILA E DA MALU.<br />
LUMA AMA MILA E MALU.<br />
MALU MAMA.<br />
MILA NÃO MAMA. MILA JÁ LÊ.<br />
- ELA JÁ LÊ?<br />
- SIM. ELA LÊ.<br />
MALU MAMA E MILA LÊ.<br />
E LUMA MIMA MILA E MALU.<br />
Iniciando a <strong>análise</strong> sob o aspecto da coesão, v<strong>em</strong>os que o referido texto apresenta<br />
pouquíssimos elos coesivos (destacados <strong>em</strong> itálico), que se resum<strong>em</strong> ao uso do pronome ela,<br />
primeiro relativo à mãe e depois relativo à personag<strong>em</strong> Mila, e da conjunção e, evitando<br />
algumas repetições, mas não impedindo que o texto continue sendo bastante repetitivo. Na<br />
primeira frase, o uso do determinante A (destacado <strong>em</strong> negrito) também não é adequado, uma<br />
vez que não apresenta informação conhecida, mas uma informação nova. A quase total<br />
ausência de coesão, nesse caso, também compromete a coerência <strong>em</strong> alguns pontos do texto,<br />
já que as frases parec<strong>em</strong> estanques e não necessariamente possu<strong>em</strong> uma relação s<strong>em</strong>ântica<br />
explícita entre si. Por ex<strong>em</strong>plo, no trecho “MILA NÃO MAMA. MILA JÁ LÊ”, a leitura que<br />
se pretende dar é a de que “Mila já t<strong>em</strong> idade para ler, logo já não t<strong>em</strong> mais idade para<br />
mamar”, mas a construção não favorece esse entendimento de pronto, dando a impressão de<br />
171
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
que esta está apenas relatando uma sequência de eventos s<strong>em</strong> relação, informações soltas,<br />
desconexas. Outro probl<strong>em</strong>a, a meu ver, é a inclusão das falas “- ELA JÁ LÊ? / - SIM. ELA<br />
LÊ”. Além de promover<strong>em</strong> mais repetição e nenhuma informação nova, a ausência de<br />
referência aos interlocutores também deve causar estranheza ao pequeno leitor.<br />
Quanto à intencionalidade, percebe-se que o propósito exclusivo do escritor é promover<br />
a leitura de palavras cujos graf<strong>em</strong>as já foram ensinados ao aluno, não havendo compromisso<br />
com a motivação da leitura por prazer, n<strong>em</strong> com o compartilhamento de conhecimentos, por<br />
ex<strong>em</strong>plo. Nota-se que as consoantes surgidas são basicamente L e M e na ocorrência de<br />
outros casos, como DA e JÁ e SIM, essas palavras aparec<strong>em</strong> sublinhadas no texto do livro,<br />
provavelmente com o intuito de chamar a atenção do professor para a necessidade de ajudar<br />
os alunos com esses itens ainda não “ensinados”.<br />
Passando à <strong>análise</strong> da aceitabilidade, essa “historinha” não se apresenta como um texto<br />
relevante para o aluno, já que, se não fosse uma exigência escolar, uma criança dificilmente se<br />
interessaria <strong>em</strong> lê-lo. Sua informatividade também é nula e no que se refere à<br />
situacionalidade, já que esse tipo de texto não t<strong>em</strong> uma função social reconhecível e<br />
historinhas como essa não são encontradas no mundo extra-escolar, o que também deixa a<br />
desejar.<br />
Por último, no que diz respeito ao padrão de intertextualidade, o texto apresentado não<br />
suscita no leitor a busca de outros que possam ampliar o seu entendimento do que foi lido,<br />
n<strong>em</strong> permite um diálogo com textos já conhecidos (contos de fadas, cantigas, etc.). Além<br />
disso, não favorece o interesse pela leitura de outras histórias.<br />
A partir dessa <strong>análise</strong>, pod<strong>em</strong>os dizer que o texto apresentado trata-se, na verdade, de<br />
um pseudotexto, não apresentando os padrões mínimos de textualidade e, portanto, não sendo<br />
uma opção de qualidade para a alfabetização de crianças.<br />
Defendo a importância do desenvolvimento da consciência fonológica, foco maior do<br />
método fônico, para uma alfabetização eficiente, mas acredito que ela pode ser realizada <strong>em</strong><br />
um contexto muito mais rico, criativo, lúdico, livre e d<strong>em</strong>ocrático, <strong>em</strong> que professor e aluno<br />
são agentes do fazer pedagógico e vivenciam juntos o desvendar do mundo escrito pela<br />
criança. Através da exploração de textos significativos para o aluno, como cantigas,<br />
parlendas, letras de músicas e até poesias, é possível, por ex<strong>em</strong>plo, trabalhar as<br />
correspondências grafo-fônicas a partir de rimas e aliterações, de forma prazerosa e<br />
motivadora, o que torna o trabalho muito mais produtivo.<br />
O trabalho com textos de qualidade, não artificiais e não controlados, além de favorecer<br />
o letramento, amplia as possibilidades do aluno mais adiantado <strong>em</strong> seu desenvolvimento da<br />
leitura e da escrita, não o limitando ao contato com textos muito fáceis, que pod<strong>em</strong> gerar o<br />
desinteresse da criança pela escola (como no ex<strong>em</strong>plo dado aqui). Sab<strong>em</strong>os que o aprendizado<br />
ocorre através de desafios possíveis, logo, uma dificuldade moderada é necessária. A ausência<br />
do desafio estaciona o desenvolvimento da criança, o que é tão ruim quanto atropelá-lo. Por<br />
outro lado, com um trabalho diversificado, onde se levam <strong>em</strong> conta as especificidades dos<br />
indivíduos e onde a competição dá lugar ao trabalho cooperativo e solidário, não se terá<br />
probl<strong>em</strong>as <strong>em</strong> incluir os alunos que, por qualquer motivo, necessit<strong>em</strong> de um t<strong>em</strong>po maior para<br />
se alfabetizar<strong>em</strong>.<br />
O que defendo é um trabalho que ambiciona ser mais libertador e mais igualitário. Pode<br />
parecer utópico, se considerarmos algumas realidades com as quais nos deparamos, mas ele é<br />
172
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
possível e praticado por muitos professores (entre os quais me enquadro), <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> grande<br />
notoriedade. É trabalhoso, requer formação contínua, estudo, e isso nos leva a constatar que<br />
seria essencial que os professores tivess<strong>em</strong> uma carga menor de trabalho, além de<br />
r<strong>em</strong>uneração e valorização condizentes com a de um profissional dessa importância. Mas<br />
também nos r<strong>em</strong>ete à necessidade de que, ainda na falta disso, haja compromisso e<br />
responsabilidade com as pequenas vidas humanas que nos são confiadas <strong>em</strong> um período tão<br />
importante de suas vidas.<br />
6) Considerações Finais<br />
Conforme procurei d<strong>em</strong>onstrar através de um breve histórico da alfabetização no Brasil,<br />
as críticas feitas pelos defensores do método fônico às novas <strong>teoria</strong>s, como tentativa de<br />
argumentação a favor de sua proposta para a alfabetização, encontram apoio <strong>em</strong> enganos<br />
gerados pela má compreensão de pressupostos e de um descompasso existente entre <strong>teoria</strong> e<br />
prática docente. Como ex<strong>em</strong>plo dessas idéias equivocadas, pod<strong>em</strong>os citar a de que método<br />
necessariamente pressupõe um ensino tradicional e a de que somente proporcionando o<br />
contato com textos diversos, s<strong>em</strong> o ensino explícito do código, é possível atingir os objetivos<br />
de alfabetizar e letrar as crianças. Tais pensamentos levaram a uma desinvenção da<br />
alfabetização, que, segundo Soares, se caracteriza pela confusão entre os conceitos de<br />
alfabetizar e letrar e pela perda da especificidade de cada um desses processos. Com isso, o<br />
discurso que começa a surgir, é radicalmente oposto, como explica a autora:<br />
É preciso, a esta altura, deixar claro que defender a especificidade do processo de<br />
alfabetização não significa dissociá-lo do processo de letramento [...] Entretanto, o que<br />
lamentavelmente parece estar ocorrendo atualmente é que a percepção, que se começa a ter,<br />
de que, se as crianças estão sendo, de certa forma, letradas na escola, não estão sendo<br />
alfabetizadas, parece estar conduzindo à solução de um retorno à alfabetização como processo<br />
autônomo, independente do letramento e anterior a ele (Soares, 2004, p.11).<br />
E ela ainda acrescenta:<br />
O que é preciso reconhecer é que o antagonismo, que gera radicalismos, é<br />
mais político que propriamente conceitual, pois é óbvio que tanto a whole<br />
language, nos Estados Unidos, quanto o chamado construtivismo, no Brasil,<br />
consideram a aprendizag<strong>em</strong> das relações grafo-fônicas como parte<br />
integrante da aprendizag<strong>em</strong> da língua escrita (Soares, 2004, p.12).<br />
Como alternativa à proposta aqui questionada, que se configura <strong>em</strong> um verdadeiro<br />
atraso e na perda de conquistas importantes já alcançados no âmbito da alfabetização, defendo<br />
o equilíbrio harmonioso entre o ensino do sist<strong>em</strong>a da escrita e a vivência das práticas sociais<br />
de leitura e escrita. Trata-se de recuperarmos a especificidade da alfabetização, que diz<br />
respeito ao desenvolvimento das consciências fonológica e fonêmica, ao ensino da relação<br />
fon<strong>em</strong>a-graf<strong>em</strong>a, ao desenvolvimento das habilidades de codificação e decodificação da<br />
língua escrita, b<strong>em</strong> como ao reconhecimento de que a escrita é uma representação dos sons da<br />
fala, s<strong>em</strong> que para isso seja necessário haver um retorno a paradigmas anteriores, como ocorre<br />
com a proposta do método fônico. A reinvenção da alfabetização pressupõe a necessidade de<br />
reconhecermos as especificidades de cada um dos processos – alfabetização e letramento –<br />
não sobrepondo um ao outro, mas fazendo com que os dois ocorram simultaneamente.<br />
173
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Como afirmam Maciel e Lúcio, “Independent<strong>em</strong>ente das didáticas e metodologias a<br />
ser<strong>em</strong> utilizadas ou defendidas por professores, pesquisadores ou autores de livros de<br />
alfabetização, o que não pod<strong>em</strong>os relegar a um segundo plano é que a alfabetização, na<br />
perspectiva do letramento, não é um mito, é uma realidade” (Maciel e Lúcio, 2008, p.31).<br />
Em busca desse equilíbrio entre alfabetização e letramento, acredito ser de vital<br />
importância o investimento na formação continuada de professores alfabetizadores e,<br />
principalmente, que haja uma preocupação maior <strong>em</strong> conjugar o enfoque teórico com o<br />
prático, numa tentativa de que as mudanças possam efetivamente chegar às salas de aula.<br />
Muitas transformações ainda são necessárias na educação se quisermos atingir os resultados<br />
sonhados, porém, é essencial que tais transformações realmente represent<strong>em</strong> avanços. Entre<br />
reinventar e retroceder, fico, então, com a primeira opção. Fico com Soares. Fico com as<br />
crianças.<br />
REFERÊNCIAS<br />
DENÚNCIA: escolas municipais do Rio de Janeiro, Blog da Jaqueline, 23 de março de 2010.<br />
Disponível <strong>em</strong>:< http://jaquesouza.zip.net/. Acesso <strong>em</strong>: 22 de jun. de 2010.<br />
BRAGGIO, Silvia Lucia Bingojal. Leitura e Alfabetização - da concepção mecanicista à<br />
sociopsicolinguística. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.<br />
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa, Ministério da Educação. Brasília,<br />
1997. Disponível <strong>em</strong>:<br />
ttp://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=263&It<strong>em</strong>id=<br />
253>. Acesso <strong>em</strong>: 22 de jun. de 2010.<br />
BRITO, Andréa Ferreira et al. Livros de alfabetização: como as mudanças aparec<strong>em</strong> In:<br />
REUNIÃO ANUAL DA ANPED - ANPED: 30 anos de pesquisa e compromisso social,<br />
Anais. Caxambu: ANPEd, 2007.1 CD-ROM) Disponível <strong>em</strong>:<br />
. Acesso <strong>em</strong>: 8 abr.<br />
2010.<br />
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e linguística. 5. ed. São Paulo: Scipione, 1992.<br />
CARDOSO, Beatriz; EDNIR, Madza. Ler e escrever, muito prazer! 2. ed. São Paulo: Editora Ática,<br />
2002.<br />
CARDOSO MARTINS et al. Relatório final do grupo de trabalho Alfabetização Infantil, 2003.<br />
Disponível <strong>em</strong>:< http://www2.camara.gov.br/comissoes/cec/relatorios/Relat_Final.pdf>. Acesso <strong>em</strong>:<br />
22 de jun. de 2010.<br />
CARVALHO, Marlene. Alfabetizar e letrar: um diálogo entre a <strong>teoria</strong> e a prática. Petrópolis: Vozes,<br />
2007<br />
FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. 4 ed. Porto Alegre: Artes<br />
Médicas Sul, 1991.<br />
174
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
JUSTINA, Eliege Wernke Niehues Dela. Nível de letramento do professor: implicações para o<br />
trabalho com o gênero textual na sala de aula. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong> (Dis)curso, Tubarão, SC: Programa de<br />
<strong>Pós</strong> Graduação <strong>em</strong> Ciência da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, v.4, n. 2, p.349-370, 2004.<br />
KLEIMAN, Ângela B. Os estudos de letramento e a formação do professor de língua materna.<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong> (Dis)curso, Tubarão, SC: Programa de <strong>Pós</strong>-Graduação <strong>em</strong> Ciência da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, v.8,<br />
n. 3, p.487-517, 2008.<br />
KOCH, Ingedore Villaça. A coesão textual. 21. ed. São Paulo: Contexto, 2008.<br />
______; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A Coerência Textual. 17. ed. São Paulo: Contexto, 2009.<br />
MACIEL, Francisca Izabel Pereira; LÚCIO, Iara Silva. Os conceitos de alfabetização e letramento e<br />
os desafios da articulação entre <strong>teoria</strong> e prática. In: CASTANHEIRA et al (Ogs.) Alfabetização e<br />
letramento na sala de aula. Belo horizonte: Autêntica Editora: Ceale, 2008<br />
MORTATTI, Maria R. Longo. História dos métodos de alfabetização no Brasil. Portal Mec<br />
S<strong>em</strong>inário Alfabetização e Letramento Em Debate, Brasília, v.1, p.1-16, 2006. Disponível <strong>em</strong>:<<br />
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/alf_mortattihisttextalfbbr.pdf>. Acesso <strong>em</strong>: 8 abr.<br />
2010.<br />
OLIVEIRA, João Batista Araújo. Por que Joãozinho não aprende a ler. O Estadão online, São Paulo:<br />
15 de junho de 2010. Disponível <strong>em</strong>:<<br />
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100615/not_imp566700,0.php> Acesso <strong>em</strong>: 22 de jun.<br />
de 2010.<br />
______ e SILVA, Luiz Carlos Faria da. O impacto das séries iniciais: educação infantil, analfabetismo<br />
funcional e equidade. S<strong>em</strong>inário sobre Educação e Equidade, IETS, 2006. Disponível<br />
<strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 22 jun. 2010.<br />
SAMPAIO, Carm<strong>em</strong> Sanches. Alfabetização e formação de professores: aprendi a ler [...] quando<br />
misturei todas aquelas letras ali... Rio de Janeiro:WAK Editora, 2008.<br />
SCHUARTSMAN, Hélio. Método fônico avança na alfabetização, Folha de São Paulo. São Paulo: 26<br />
de outubro de 2009. Disponível <strong>em</strong>:< http://www.alfaebeto.org.br/PublicacoesReferencias/Artigos/9>.<br />
Acesso <strong>em</strong>: 22 jun. 2010.<br />
SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de Educação.<br />
Campinas, vol.23, n. 25, jan./ fev./ mar./ abr. 2004, p.5-17. Disponível <strong>em</strong>:<br />
. Acesso <strong>em</strong>: 8 de abril de 2010.<br />
VASCONCELLOS, Zinda. Alfabetização hoje: um mal-estar generalizado? Disponível <strong>em</strong><br />
. Acesso <strong>em</strong>: 8 abr. 2010.<br />
175
Concatenações Lexicais Ativadas por Atividades de Brainstorming:<br />
Facilitadores de Leitura <strong>em</strong> Língua Inglesa para Iniciantes<br />
Lesliê Mulico (IFRJ-Pinheiral)<br />
Resumo: Quando se trata de leitura instrumental de textos <strong>em</strong> inglês, o conhecimento de vocabulário torna-se<br />
primordial. O reconhecimento de cognatos auxilia na compreensão global do conteúdo; entretanto, um texto<br />
também contém palavras que não são transparentes, o que pode influenciar negativamente o ritmo de leitura na<br />
fase de skimming, caso o aprendiz as desconheçam ou não consiga deduzi-las a partir do contexto. Tal fato<br />
suscitou as seguintes perguntas: a partir de um conjunto de pressupostos teóricos presentes na linguística<br />
pedagógica, que metodologia de ensino facilita a aquisição do vocabulário de alunos iniciantes na leitura<br />
instrumental <strong>em</strong> língua inglesa? Como promover o novo léxico de forma que este estimule o fluxo de leitura<br />
necessário para compreensão geral na fase de skimming? O presente trabalho sugere que o brainstorming se<br />
configura como atividade eficaz de pré-leitura, já que induz a ativação do conhecimento esqu<strong>em</strong>ático<br />
(Widdowson, 1983), a contextualização do assunto abordado (Lewis, 1993) e a socialização da linguag<strong>em</strong> entre<br />
participantes (Ochs & Schieffelin, 1997), promovendo – de acordo com os pressupostos conexionistas (Plunkett,<br />
1997) – a saliência dos el<strong>em</strong>entos lexicais alvo. Tal evento favorece a indexação do novo léxico ao meio e <strong>em</strong>ula<br />
o fortalecimento de redes neurais, além de proporcionar um ensino participativo de vocabulário. Pesquisas <strong>em</strong><br />
aquisição da linguag<strong>em</strong> (Webb, 2007; Hulstijin, 2001; Givón, 1995) v<strong>em</strong> d<strong>em</strong>onstrando a importância do<br />
contexto, da relevância e da interação como ferramentas de acomodação de conhecimento de el<strong>em</strong>entos<br />
linguísticos, pois promov<strong>em</strong> aprendizag<strong>em</strong> significativa, o uso e a saliência cognitiva das palavras-chave.<br />
Baseado nessas questões, o brainstorming, seguido de algumas atividades interacionais, foi aplicado <strong>em</strong> 2010,<br />
<strong>em</strong> quatro turmas do primeiro ano do ensino médio, para verificar suas influências nas atividades de leitura. Com<br />
isso, observou-se um aumento do interesse do aprendiz pelo texto e uma maior predisposição à inferência<br />
lexical, além de minimizar interrupções para perguntas durante a fase de skimming.<br />
Palavras-chave: leitura instrumental; aquisição de vocabulário; iniciantes; brainstorming<br />
1) Introdução<br />
Talvez seja natural que o aprendiz de língua inglesa de nível iniciante recorra à sua<br />
língua materna para resolver probl<strong>em</strong>as encontrados durante o processo de leitura de um texto<br />
<strong>em</strong> língua estrangeira. Contudo, mesmo que ele faça uso de estratégias de leitura como<br />
skimming, scanning e reconhecimento de cognatos, b<strong>em</strong> como dos processos conhecidos<br />
como top-down e bottom-up, haverá momentos <strong>em</strong> que ele encontrará palavras que não são<br />
cognatos ou outras de importância mais gramatical do que s<strong>em</strong>ântica. Caso essas palavras se<br />
torn<strong>em</strong> salientes para o aprendiz-leitor, dependendo de quão b<strong>em</strong> sucedida for a decodificação<br />
do texto durante o processo, isso pode acarretar mudanças na estratégia de leitura <strong>em</strong>pregada<br />
naquele momento, ocasionando desde pausas desnecessárias no decorrer da atividade até a<br />
perda de interesse.<br />
Com base nessa realidade, este trabalho apresenta um relato de uma intervenção<br />
pedagógica b<strong>em</strong> sucedida no âmbito da leitura instrumental <strong>em</strong> língua inglesa com alunos do<br />
primeiro ano do ensino médio/técnico do Instituto Federal do Rio de Janeiro, campus Nilo<br />
Peçanha-Pinheiral, <strong>em</strong> 2010. Os referidos alunos eram, na sua maioria, aprendizes iniciantes -<br />
de nível A1 ou abaixo - de acordo com a classificação da Comunidade Europeia (Common<br />
European Framework), e realizavam várias interrupções na leitura na fase de skimming para<br />
176
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
perguntas sobre palavras, na maioria das vezes, gramaticais (to, for, from, etc.) que não<br />
deveriam causar grandes impedimentos para a compreensão global do texto.<br />
Na tentativa de minimizar as interrupções na leitura de textos <strong>em</strong> inglês, o presente<br />
trabalho se pautou no desafio de fazer com que o aprendiz investisse mais t<strong>em</strong>po no processo<br />
de leitura aplicando as estratégias ensinadas ao longo do ano. Para tanto, foi necessário<br />
elaborar uma sequência de atividades pedagógicas fundamentadas <strong>em</strong> <strong>teoria</strong>s nas quais o<br />
léxico des<strong>em</strong>penhasse papel-chave na aquisição da linguag<strong>em</strong>. Com isso, procurou-se<br />
responder sobre que metodologia de ensino facilitaria a aquisição do vocabulário de alunos<br />
iniciantes na leitura instrumental <strong>em</strong> língua inglesa, e sobre como promover o novo léxico de<br />
forma a estimular o fluxo de leitura necessário para compreensão geral do texto na fase de<br />
skimming. Observou-se que o brainstorming foi uma eficiente ferramenta de ensino prévio de<br />
vocabulário e um potente gerador de atividades estimuladoras da retenção do léxico na<br />
m<strong>em</strong>ória de trabalho.<br />
2) O Instituto e o aluno<br />
A pesquisa contou com a participação de 120 alunos do Instituto Federal, campus Nilo<br />
Peçanha, localizado no município de Pinheiral, na região sul-fluminense do Rio de Janeiro.<br />
Os referidos alunos, na ocasião, cursavam o primeiro ano do ensino médio concomitante com<br />
os cursos técnicos <strong>em</strong> Meio Ambiente (65 alunos) e Agropecuária (55 alunos). Tais cursos<br />
estão <strong>em</strong> funcionamento desde que o IFRJ era o então “Colégio Agrícola Nilo Peçanha”,<br />
dirigido pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Trata-se de cursos técnicos<br />
tradicionais da região, dado que o de Meio Ambiente (CTMA) existe desde 2002 e o de<br />
Agropecuária (CTA), há 101 anos. Hoje, o ensino da língua inglesa no campus caminha de<br />
braços dados com as perspectivas pedagógicas modernas concernentes à leitura instrumental,<br />
ao ensino da língua para fins específicos (Dudley-Evans & John, 1998; Hutchinson & Waters,<br />
1987) e às questões sobre letramento (Kern, 2000; Edwards & Mercer, 1994).<br />
O alunado que chega ao instituto constitui um público adolescente, entre 14 e 17 anos, e<br />
é majoritariamente oriundo de escolas estaduais e/ou municipais da região e arredores. Dentre<br />
os envolvidos na pesquisa, menos de 30% havia frequentado cursos livres de inglês fora do<br />
instituto, e todos tiveram acesso à língua <strong>em</strong> suas escolas de orig<strong>em</strong> por meio de aulas que,<br />
segundo eles, eram extr<strong>em</strong>amente voltadas ao ensino da gramática, cujo conteúdo se<br />
restringia aos verbos ser (to be) e ter (to have). Portanto, as quatro turmas do Ensino Médio<br />
eram formadas por alunos de diferentes níveis de inglês, a maioria deles enquadrada <strong>em</strong> nível<br />
abaixo do A1 (iniciante), de acordo com o Quadro Europeu Comum de Referência para<br />
Línguas (CEFR – Common European Framework), documento que descreve a competência<br />
linguística do aprendiz de língua inglesa pela Europa. No que tange à competência de leitura,<br />
o aprendiz de nível A1 possui o seguinte perfil:<br />
A1<br />
Tabela 1: Classificação de competência de leitura pelo CEFR<br />
Leitura para Compreensão Geral<br />
Consegue entender textos muito curtos, simples, uma frase por vez, entendendo<br />
nomes familiares, palavras e frases básicas, e relendo quando necessário<br />
177
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Leitura de Correspondências<br />
A1 Consegue entender mensagens simples e curtas <strong>em</strong> cartões postais<br />
A1<br />
A1<br />
Leitura para Orientação<br />
Consegue reconhecer nomes familiares, palavras e frases muito básicas <strong>em</strong><br />
notificações simples <strong>em</strong> situações mais comuns do cotidiano<br />
Leitura para Informação e Argumento<br />
Consegue apreender uma ideia do conteúdo de material informativo<br />
simplificado e descrições curtas e simples, especialmente se houver suporte<br />
visual<br />
Leitura de Instruções<br />
A1 Consegue acompanhar instruções escritas curtas e simples (ex. vá de X até Y)<br />
3) O probl<strong>em</strong>a<br />
(obs.: traduções de minha inteira responsabilidade)<br />
Levando-se <strong>em</strong> conta o nível de inglês desses alunos, e após entrar <strong>em</strong> contato com suas<br />
experiências negativas de aprendizag<strong>em</strong> da língua durante o Ensino Fundamental, foi possível<br />
entender o alto grau de ansiedade que se instaurou quando eles começaram a trabalhar dentro<br />
da metodologia de ensino apresentada. Basicamente, os alunos foram conduzidos a romper<br />
com a tradição ditada pelo foco na gramática, para observar<strong>em</strong> o papel que a s<strong>em</strong>ântica da<br />
palavra e el<strong>em</strong>entos supra-segmentais exerc<strong>em</strong> no texto. Para tanto, foram utilizados gêneros<br />
textuais de alta frequência na sociedade, tais como artigos e panfletos que veiculavam t<strong>em</strong>as<br />
de interesse comum, como a gripe H1N1 e a erosão dos solos.<br />
Como o apego pela gramática era tamanho, os aprendizes tendiam a ler os textos <strong>em</strong><br />
inglês da seguinte maneira:<br />
Figura 1: Como os alunos liam os textos <strong>em</strong> inglês<br />
Ao ler os textos dessa maneira, evidenciam-se mais uma vez a grande preocupação de<br />
se dar conta de aspectos gramaticais e a importância que os alunos davam à arquitetura<br />
178
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
estrutural da língua, pois deixavam o léxico <strong>em</strong> segundo plano. Foi possível perceber tais<br />
fatos ao observar as insistentes pausas na leitura para perguntas sobre o significado de<br />
palavras tais como as da figura acima, b<strong>em</strong> como as frequentes relutâncias de se dar<br />
continuidade ao processo, mesmo que eles não soubess<strong>em</strong> o significado de uma palavra ou<br />
outra, ainda que essa palavra não des<strong>em</strong>penhasse papel-chave para a compreensão global do<br />
texto. Portanto, ao adotar tal atitude frente a um texto <strong>em</strong> língua inglesa, os alunos<br />
comprometiam qualquer passo adiante na aquisição da língua para fins de leitura, já que não<br />
conseguiam realizar uma satisfatória compreensão global do texto na fase de skimming –<br />
porta de entrada para se aprender a língua de forma contextualizada –, provocando um<br />
negativo efeito dominó na sequência de atividades.<br />
O desafio, então, passou a ser fazê-los entender e acreditar que o domínio da leitura <strong>em</strong><br />
língua estrangeira passa principalmente pelo reconhecimento de cognatos, pelo uso de<br />
estratégias de leitura tais como as mencionadas acima, e que era possível deduzir as palavras<br />
gramaticais descritas acima a partir de palavras investidas de maior carga s<strong>em</strong>ântica, tais<br />
como symptoms, swine flu, feel ill, stay home etc. Com isso, era necessário que os alunos<br />
começass<strong>em</strong> a ver o texto da seguinte forma:<br />
Figura 2: Como os alunos deveriam ler o texto<br />
Observando a figura 2 acima, não é difícil notar uma mudança radical na perspectiva de<br />
leitura a qual se objetivava alcançar. Ao fazer com que palavras providas de alta carga<br />
s<strong>em</strong>ântica começass<strong>em</strong> a exercer papel primário na leitura, seria possível uma melhor<br />
compreensão do texto na fase de skimming por parte dos alunos, o que aumentaria a sensação<br />
de aprendizag<strong>em</strong> e facilitaria a transição para atividades didáticas mais avançadas.<br />
Com isso foi preciso elaborar uma sequência de atividades que acelerasse a prontidão<br />
(MacWhinney, 1987) para uma leitura focada nas palavras de relevância s<strong>em</strong>ântica, e os<br />
estimulass<strong>em</strong> a deixar as palavras gramaticais <strong>em</strong> segundo plano. Qualquer que fosse a<br />
sequência escolhida, já era sabido que provocaria o rompimento com uma tradição de<br />
aprendizag<strong>em</strong> de pelo menos quatro anos - o que não seria fácil -, e que seria preciso um<br />
<strong>em</strong>basamento teórico que trabalhasse questões internas e externas ao indivíduo/aprendiz. Em<br />
outras palavras, era preciso fazer uso de <strong>teoria</strong>s que enfatizass<strong>em</strong> a importância do léxico na<br />
aquisição de uma segunda língua, que incluíss<strong>em</strong> o uso do conhecimento de mundo dos<br />
envolvidos, que versass<strong>em</strong> sobre a organização do novo conhecimento no cérebro, que<br />
estabelecess<strong>em</strong> o papel da cognição na aquisição do novo léxico, que sublinhass<strong>em</strong> a<br />
importância de se conduzir uma aprendizag<strong>em</strong> significativa, que <strong>em</strong>ulass<strong>em</strong> a necessidade da<br />
179
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> uso, e que considerass<strong>em</strong> a socialização como meio fundamental para a<br />
aprendizag<strong>em</strong>. Tais ideias encontram-se materializadas nos pensamentos dos pesquisadores<br />
elencados na seção seguinte.<br />
4) Fundamentação Teórica<br />
Ao se fazer uso do brainstorming para ativar concatenações lexicais <strong>em</strong> prol de uma<br />
leitura mais fluida na fase de skimming, foi possível promover um ensino/aprendizag<strong>em</strong> de<br />
vocabulário colaborativo e contextualizado, provocando a troca de conhecimento e a interação<br />
entre os alunos. Para que houvesse uma mudança de atitude do aprendiz frente ao texto,<br />
mudança que implicava o rompimento com a dependência da gramática, que perdurara até<br />
aquele momento, era preciso recorrer a <strong>teoria</strong>s de abordag<strong>em</strong> de ensino voltadas ao léxico.<br />
Assim, a Abordag<strong>em</strong> Lexical de Michael Lewis (1993) encaixou-se perfeitamente nessa<br />
proposta, já que nela o léxico se torna personag<strong>em</strong> principal na aquisição de uma segunda<br />
língua e a gramática, coadjuvante. Pensar na aprendizag<strong>em</strong> de uma língua a partir da palavra e<br />
de grupos lexicais significativos representa o rompimento com regras gramaticais imanentes,<br />
dando lugar ao funcionamento da língua de forma contextualizada e através do <strong>em</strong>bate entre o<br />
indivíduo e a situação comunicativa real. Tal confronto com a realidade comunicativa da<br />
língua-alvo tornou-se extr<strong>em</strong>amente proveitoso para o aprendiz, já que, ao voltar sua atenção<br />
para o conteúdo da mensag<strong>em</strong> e não para sua forma, as regras da língua deixaram de ser sua<br />
preocupação primária, e passaram a exercer uma função dentro do contexto, amenizando a<br />
ameaça que elas representavam para o aprendiz, reduzindo-se, pois, o seu grau de ansiedade<br />
durante a leitura.<br />
Já que o objetivo era trazer à tona o foco no léxico, e não na gramática, pode-se pensar,<br />
<strong>em</strong> uma reflexão mais aprofundada, que cada palavra possui traços s<strong>em</strong>ânticos inerentes, e<br />
que cada traço pode suscitar o surgimento de outro it<strong>em</strong> lexical dentro do mesmo campo<br />
s<strong>em</strong>ântico. Koch (1990), ao falar sobre os modelos cognitivos que organizam o conhecimento<br />
de mundo, sugere, dentre outras, a organização <strong>em</strong> frames, que pode ser interpretada pelo viés<br />
do conhecimento lexical. Segundo a autora, frames são “conjuntos de conhecimentos<br />
armazenados na m<strong>em</strong>ória sob um certo ‘rótulo’, s<strong>em</strong> que haja qualquer ordenação entre eles;<br />
ex.: Carnaval (confete, serpentina, desfile de escola de samba, fantasia, bailes, mulatas, etc.)”<br />
(Koch, 1990).<br />
Em contrapartida, para o pesquisador gerativista Pustejovsky (1995), as interrelações<br />
lexicais são ordenadas pelos chamados qualia aristotélicos, <strong>em</strong> que cada palavra apresenta<br />
quatro traços inerentes de significado: formal, constitutivo, télico e agentivo. O formal diz<br />
respeito à forma que constitui o objeto; o constitutivo corresponde à como tal objeto é<br />
formado; o télico se refere à sua finalidade; e o agentivo, aos fatos que envolv<strong>em</strong> o seu<br />
surgimento. Portanto, do ponto de vista desses conhecimentos teóricos, foi possível notar que<br />
a utilização do brainstorming para o ensino prévio do vocabulário de um determinado frame<br />
permitiu que o contexto e os traços inerentes de cada palavra corroborass<strong>em</strong> a co-construção<br />
do repertório lexical de um determinado t<strong>em</strong>a, pois uma palavra pode servir de gatilho para o<br />
surgimento de outras pertencentes ao mesmo campo s<strong>em</strong>ântico.<br />
Os t<strong>em</strong>as foram escolhidos de acordo com a realidade do aprendiz, a fim de estimular<br />
sua curiosidade e interesse, aproximá-lo do conteúdo ensinado e, principalmente, fazê-lo<br />
utilizar seu conhecimento esqu<strong>em</strong>ático (Widdowson, 1983; Carrel, 1983) como mais um<br />
instrumento de decodificação da linguag<strong>em</strong> durante o processo de leitura. Segundo<br />
Widdowson (1983), o conhecimento esqu<strong>em</strong>ático (conhecimento prévio de mundo) é<br />
responsável pelas expectativas do leitor sobre um determinado texto. Ao se pensar no papel<br />
180
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
do conhecimento esqu<strong>em</strong>ático, foi possível justificar a opção por t<strong>em</strong>as de domínio comum,<br />
já que o brainstorming se torna mais eficiente quando há a participação efetiva do aluno.<br />
Durante a atividade, foi interessante notar que as expectativas de leitura eram criadas ao passo<br />
que os itens lexicais <strong>em</strong>ergiam, o que também contribuiu com uma fluidez de leitura na fase<br />
de skimming.<br />
Pode-se afirmar que tal fluidez pode ter sido facilitada por uma rede lexical formada ao<br />
fim da atividade. Pode-se dizer também que a mesma estava à disposição do aluno, de forma<br />
que facilitasse a inteligibilidade, já que as palavras estavam conectadas a um t<strong>em</strong>a central<br />
responsável pelo alinhave contextual. Com isso, acredita-se que o resultado visual do<br />
brainstorming parece uma boa representação do frame a que Koch (1990) se refere, já que<br />
existe um “rótulo”, posicionado no centro, e as palavras do campo s<strong>em</strong>ântico, ao seu redor,<br />
como pod<strong>em</strong>os observar na figura abaixo.<br />
Figura 3: Resultado visual de um brainstorming<br />
O frame é uma tentativa de explicar como a m<strong>em</strong>ória organiza informações. Além dele,<br />
exist<strong>em</strong> outras <strong>teoria</strong>s linguísticas que procuram dar conta do mesmo fato de forma mais<br />
minuciosa, como é o caso da Teoria Conexionista de Kim Plunkett (1997), no tocante às<br />
redes neurais. De acordo com essa <strong>teoria</strong>, o aprendizado se dá <strong>em</strong> meio a complexas redes<br />
neurais que possu<strong>em</strong> nódulos fortalecidos ou enfraquecidos de acordo com a natureza e a<br />
frequência do input, o que o torna mais ou menos saliente cognitivamente (Givón, 2001), caso<br />
seu valor informativo seja mais ou menos relevante para o indivíduo.<br />
A aprendizag<strong>em</strong> estaria então vinculada a mudanças nas conexões neurais que<br />
interfer<strong>em</strong> na força entre conexões de rede através de inferências estatísticas que o indivíduo<br />
realiza, a partir da avaliação do input, do output e do feedback que ele recebe do meio. Ao<br />
observarmos novamente a figura acima com um olhar conexionista, pod<strong>em</strong>os interpretá-la<br />
como sendo uma rede neural <strong>em</strong> que o nódulo central expõe o t<strong>em</strong>a e que ele é formado de<br />
ramificações léxico-s<strong>em</strong>ânticas que contribu<strong>em</strong> para seu fortalecimento. Durante o<br />
181
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
brainstorming, os aprendizes, ao receber<strong>em</strong> o t<strong>em</strong>a central “global warming” (aquecimento<br />
global) como input, foram provocados a enunciar as palavras pertencentes ao seu campo<br />
s<strong>em</strong>ântico, e esse output resultou <strong>em</strong> feedback do meio, no caso, dos participantes do evento<br />
comunicativo.<br />
Já que a atividade estimulou a participação e a contribuição dos alunos, é possível<br />
afirmar que ela promoveu a interação, fazendo <strong>em</strong>ergir um conhecimento construído<br />
coletivamente. No que tange à aquisição da linguag<strong>em</strong>, as interações possu<strong>em</strong> papel essencial<br />
na aprendizag<strong>em</strong> para os que acreditam que o conhecimento deve ser co-construído através<br />
das trocas intersubjetivas entre os sujeitos dos discursos, como é o caso do trabalho aqui<br />
apresentado. Dentro de uma linha sociointeracionista, iniciada por Vygotsky (1939), a<br />
interação entre indivíduos dá à língua status de meio e não de fim, o que é extr<strong>em</strong>amente<br />
interessante para o processo de aquisição da linguag<strong>em</strong> por meio da leitura, já que o aprendiz<br />
entra <strong>em</strong> contato com a língua <strong>em</strong> uso real (Hulstijin & Laufer, 2001). A língua como meio<br />
implica a visão de que a linguag<strong>em</strong> é também um produto social organizado <strong>em</strong> categorias.<br />
Portanto, adquirir linguag<strong>em</strong> significa indexar sentidos/formas de acordo com situações de<br />
uso culturalmente organizadas (Ochs & Schieffelin, 1997).<br />
Em última <strong>análise</strong>, com base na fluidez na leitura alcançada pelos alunos na fase de<br />
skimming, pode-se afirmar que o brainstorming se tornou uma escolha pedagógica<br />
importante. Tal escolha possibilitou articular saberes provenientes de diversas <strong>teoria</strong>s<br />
linguísticas, tornando a prática de sala de aula uma intervenção pedagógica teoricamente<br />
fundamentada e com base nas necessidades do aprendiz (Hutchinson & Waters, 1987), e não<br />
um exercício amador de tentativa e erro. Portanto, o presente trabalho v<strong>em</strong> reforçar a ideia de<br />
que são necessárias <strong>teoria</strong>s pedagógicas que <strong>em</strong>irjam das práticas de sala de aula, e não<br />
práticas pedagógicas que se restrinjam a aplicação de <strong>teoria</strong>s (Brown, 2002; Kumaradivelu,<br />
1994).<br />
5) Metodologia<br />
O trabalho contou com a observação de alunos ingressantes do primeiro ano do Ensino<br />
Médio, 120 (cento e vinte) no total, na maioria de nível iniciante (A1 do CEFR) ou abaixo,<br />
que tiveram aulas de inglês apenas nos seus colégios de orig<strong>em</strong>, cuja metodologia de ensino<br />
era baseada, segundo eles, na assimilação de regras gramaticais da língua, que era apresentada<br />
de forma descontextualizada. Os sujeitos da pesquisa eram adolescentes entre 14 e 17 anos,<br />
distribuídos <strong>em</strong> quatro turmas: duas de Agropecuária: T. 101, com 25 alunos, e T. 102, com<br />
30; e duas turmas de Meio Ambiente: T. 103, com 30 alunos, e T. 104, com 35 alunos.<br />
Criada por Alex Osborn (1941), um executivo na área de propaganda, a atividade de<br />
brainstorming foi originalmente concebida para resolver probl<strong>em</strong>as de inibição da<br />
criatividade e para dar maior liberdade de pensamento a pessoas envolvidas <strong>em</strong> projetos de<br />
diversas naturezas, tais como campanhas, métodos e estratégias de marketing, serviços,<br />
decisões de investimento, novas indústrias, dentre outras. Para o sucesso da atividade, era<br />
necessário seguir quatro regras básicas de funcionamento: a) s<strong>em</strong> críticas a ideias; b)<br />
produção de grandes quantidades de ideias; c) construção de ideias a partir de outras ideias; e<br />
d) estímulo a ideias selvagens exageradas.<br />
Ao adaptar a atividade para a sala de aula de língua inglesa, procurou-se conservar as<br />
quatro regras desde que as ideias estivess<strong>em</strong> dentro do t<strong>em</strong>a proposto que ficava posicionado<br />
no centro do quadro. A partir disso, os alunos eram estimulados a proferir qualquer palavra<br />
que viesse à mente, tanto <strong>em</strong> inglês quanto <strong>em</strong> português. Quando surgia alguma palavra <strong>em</strong><br />
português, ela era devolvida ao meio para checar se algum aluno sabia qual era seu<br />
182
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
equivalente <strong>em</strong> inglês, d<strong>em</strong>ocratizando-se assim as oportunidades de ensinar e aprender uns<br />
com os outros, evitando-se repetidas intervenções do professor. Como o objetivo final era que<br />
os alunos minimizass<strong>em</strong> as interrupções na leitura na sua fase de skimming, isto é, leitura para<br />
compreensão geral, essa atividade serviu como um ponto de partida responsável por abrir as<br />
portas de forma eficiente para as atividades que surgiriam na sequência.<br />
Após se esgotar<strong>em</strong> todas as palavras para o t<strong>em</strong>a proposto, os alunos foram levados a<br />
trabalhar a pronúncia de cada uma disposta no quadro, a fim de se familiarizar<strong>em</strong> com o<br />
sist<strong>em</strong>a fonológico da língua alvo e de se reduzir o grau de inibição, já que precisariam<br />
proferir as referidas palavras no decorrer das atividades. Além disso, a repetição foi também<br />
utilizada como ferramenta de retenção do léxico na m<strong>em</strong>ória de trabalho, especialmente nos<br />
momentos <strong>em</strong> que os alunos perguntavam novamente pelo significado de algumas palavras ou<br />
<strong>em</strong> que o professor perguntava <strong>em</strong> português pelos seus equivalentes.<br />
Como os alunos já tinham entrado <strong>em</strong> contato tanto com o vocabulário relevante ao<br />
t<strong>em</strong>a quanto com a pronúncia de cada palavra, o próximo passo foi tentar fazer com que o<br />
léxico permanecesse por mais t<strong>em</strong>po na m<strong>em</strong>ória de trabalho, s<strong>em</strong> que o aprendiz necessitasse<br />
recorrer à lista todas as vezes que precisasse recuperar o significado de uma palavra durante a<br />
leitura. Para tanto, concedeu-se um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> torno de dois minutos para que se m<strong>em</strong>orizasse<br />
o maior número de palavras possível. O t<strong>em</strong>po destinado a essa atividade foi útil também<br />
como momento de organizar mentalmente o conteúdo trabalhado até então.<br />
Posteriormente, o professor checava o que os alunos conseguiram m<strong>em</strong>orizar,<br />
proferindo palavras <strong>em</strong> português e elicitando seus equivalentes <strong>em</strong> inglês e/ou vice-versa.<br />
Esse estágio serviu como ex<strong>em</strong>plificação para a atividade que os alunos iriam des<strong>em</strong>penhar<br />
<strong>em</strong> grupos menores (pares ou trios), que consistia <strong>em</strong> testar a m<strong>em</strong>ória uns dos outros pelo<br />
uso da tradução e/ou versão. Com isso, foi possível promover uma atividade lúdica, baseada<br />
<strong>em</strong> jogo de pergunta/resposta, responsável não só por ajudar a consolidar o léxico do t<strong>em</strong>a<br />
proposto, como também a reduzir o nível de ansiedade dos participantes, a fim de que a<br />
atividade de leitura fosse a mais fluida e ininterrupta possível na fase de skimming.<br />
Com o contexto e vocabulário estabelecidos e consolidados na m<strong>em</strong>ória de trabalho, foi<br />
então necessária uma atividade que fizesse com que o aprendiz visualizasse o texto tal como<br />
d<strong>em</strong>onstrado na Figura 2 acima, ou seja, de forma que as palavras com maior peso s<strong>em</strong>ântico<br />
se sobressaíss<strong>em</strong> das outras com funções mais gramaticais durante a leitura. Portanto, era<br />
preciso d<strong>em</strong>onstrar e fazer com que eles percebess<strong>em</strong> que a gramática pode <strong>em</strong>ergir da<br />
aproximação entre um it<strong>em</strong> lexical e outro. Com isso, foram selecionadas aleatoriamente<br />
palavras para que os alunos fizess<strong>em</strong> correlações s<strong>em</strong>ânticas. Essas correlações começaram<br />
com duas palavras, depois três e finalmente quatro. O professor então apresentava as palavras<br />
para que os alunos, com elas, formass<strong>em</strong> frases coerentes. Tomando como ex<strong>em</strong>plo as<br />
palavras da Figura 3 acima, as seguintes palavras foram sugeridas para ser<strong>em</strong> concatenadas.<br />
183
Carbon Dioxide – Forest Fire<br />
Aerosol Gas – Greenhouse Effect<br />
Cars – Industries – Carbon Dioxide<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 4: Ex<strong>em</strong>plo de concatenações sugeridas<br />
Rise in T<strong>em</strong>peratures – Atmosphere – Melting Poles<br />
Human Destruction – Heat from the Sun – Holes in the Ozone Layer<br />
Carbon Dioxide - Greenhouse Effect – Atmosphere - Rise in T<strong>em</strong>peratures<br />
Melting Poles – Industries - Forest Fire - Holes in the Ozone Layer<br />
A partir desse momento, cabia à turma decidir se as frases tinham ou não coerência com<br />
o t<strong>em</strong>a central. Ou seja, se algum aluno surgisse com a frase: “o carbon dioxide provoca<br />
forest fire”, esta era imediatamente rejeitada e corrigida pelos d<strong>em</strong>ais, ora alterando-se a<br />
posição dos itens lexicais, ora sugerindo-se uma nova concatenação. O benefício dessa<br />
atividade encontra-se no fato de ela permitir a criatividade linguística do aprendiz norteada<br />
pelo contexto, que, por sua vez, funciona como regulador da coerência textual, antes mesmo<br />
da leitura do texto proposto. Pode-se também afirmar que houve um intenso trabalho de se<br />
trazer à tona o conhecimento esqu<strong>em</strong>ático do aluno, extr<strong>em</strong>amente necessário para a leitura de<br />
um texto <strong>em</strong> qualquer língua.<br />
Após as atividades de pré-leitura e ensino prévio do léxico, os alunos tiveram<br />
aproximadamente um minuto para ler e depreender informações gerais do texto. Optou-se por<br />
um t<strong>em</strong>po curto para a realização da leitura por diversos motivos: era um texto curto, como<br />
pod<strong>em</strong>os observar na Figura 5, abaixo; os alunos poderiam engajar-se <strong>em</strong> leitura detalhada<br />
caso mais t<strong>em</strong>po fosse dado, o que não era o objetivo da atividade naquele momento; mais<br />
t<strong>em</strong>po poderia comprometer a dinâmica da atividade, já que os alunos de nível mais avançado<br />
terminavam de ler mais rapidamente; e a percepção do t<strong>em</strong>po reduzido como desafio,<br />
tornando a atividade mais interessante para o público <strong>em</strong> questão, adolescentes entre 14 e 17<br />
anos.<br />
184
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 5: Texto da aula sobre global warming<br />
Terminada a leitura, os alunos foram estimulados a compartilhar o que entenderam com<br />
seus colegas, <strong>em</strong> pares ou trios, e posteriormente com o restante do grupo. Assim, eles<br />
puderam comparar o que entenderam e reconstruir <strong>em</strong> conjunto o discurso do texto.<br />
6) Discussão dos resultados<br />
Global Warming<br />
Scientists say the t<strong>em</strong>perature of the earth<br />
could rise by 3ºC over the next 50 years. This<br />
may cause drought in some parts of the<br />
world, and floods in others, as ice at the<br />
North and South poles begins to melt and<br />
sea levels rise.<br />
Global warming is caused by the greenhouse<br />
effect. Normally, heat from the sun warms<br />
the earth and then escapes back into space.<br />
But carbon dioxide and other gases in the<br />
atmosphere trap the sun’s heat, and this is<br />
slowly making the earth warmer.<br />
(Available at teachingenglish.org.uk. Access on 6 th August, 2010)<br />
Após a aplicação da metodologia detalhada acima nas quatro turmas, verificou-se uma<br />
redução significativa das pausas na leitura para perguntas sobre vocabulário na fase de<br />
skimming, e aumentou-se a propensão à inferência de el<strong>em</strong>entos lexicais e gramaticais dos<br />
textos, reduzindo-se o grau de ameaça que textos <strong>em</strong> inglês impunham aos alunos, tornandoos<br />
mais motivados a decodificar os textos a partir de então. Pod<strong>em</strong>os então, a partir desses<br />
resultados, refletir sobre a contribuição de cada atividade no alcance desses objetivos.<br />
Primeiramente, ao sugerir um t<strong>em</strong>a central e fazer com que o aprendiz enuncie palavras<br />
relacionadas a ele, pod<strong>em</strong>os notar, além da <strong>em</strong>ergência de el<strong>em</strong>entos que consolidarão o<br />
contexto de leitura, uma integração entre a abordag<strong>em</strong> lexical de Michael Lewis (1993), a<br />
organização do léxico <strong>em</strong> frames no sist<strong>em</strong>a cognitivo do indivíduo (Koch, 1990), a<br />
construção de redes neurais cujos nódulos se fortalecerão na promoção da relevância pelo<br />
input, output e feedback (Plunkett, 1997), a influência do conhecimento esqu<strong>em</strong>ático como<br />
facilitador da atividade final, e a aprendizag<strong>em</strong> de categorias lexicais indexadas ao meio<br />
através da interação entre indivíduos <strong>em</strong> diferentes níveis (Vygotsky, 1939; Ochs &<br />
Shieffelin, 1997).<br />
Verificando-se como o brainstorming se configura na sala de aula de língua inglesa, é<br />
fácil notar sua imediata conexão com a abordag<strong>em</strong> lexical (Lewis, 1993): el<strong>em</strong>entos léxicos<strong>em</strong>ânticos<br />
orientados por um t<strong>em</strong>a comum que corrobora com o estabelecimento do<br />
185
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
contexto. Percebe-se, com isso, que o léxico encontra-se no centro da atividade e que tudo,<br />
inclusive a gramática, <strong>em</strong>erge a partir dele.<br />
Entretanto, algo menos óbvio surge na enunciação dos alunos: o fato deles não se<br />
limitar<strong>em</strong> a expressar apenas itens lexicais simples, formados por apenas uma palavra, mas<br />
grupos lexicais inteiros compostos por substantivos, adjetivos, preposições, artigos etc., como<br />
pod<strong>em</strong>os observar na seguinte expressão retirada do ex<strong>em</strong>plo na Figura 3: holes in the ozone<br />
layer (substantivo + preposição + artigo + substantivo + substantivo). O mais interessante foi<br />
perceber que não houve qualquer interrupção durante a atividade para perguntas sobre o<br />
significado de in ou the, o que sugere que as palavras gramaticais começaram a ser<br />
reconsideradas como el<strong>em</strong>entos chave desde os primeiros momentos da intervenção<br />
pedagógica, não somente durante leitura propriamente dita.<br />
Novas palavras surgiam conforme outras palavras eram enunciadas durante o<br />
brainstorming. Isso pode levantar os seguintes questionamentos: será que uma nova palavra<br />
surgia por causa da correlação que ela tinha com o t<strong>em</strong>a central apenas, com as outras<br />
palavras que surgiram antes dela, ou por causa da correlação entre o t<strong>em</strong>a central e as palavras<br />
enunciadas previamente? Será que pod<strong>em</strong>os prever uma ord<strong>em</strong> das enunciações que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong><br />
durante o brainstorming a partir da perspectiva dos qualia Aristotétlicos (Pustejovsky, 1995),<br />
ou tal ord<strong>em</strong> são genuinamente aleatórias (Koch, 1990; Plunkett, 1997)?<br />
Tais perguntas requer<strong>em</strong> investigações mais aprofundadas que não pod<strong>em</strong> ser<br />
cont<strong>em</strong>pladas no presente trabalho. O que se pode afirmar, a partir da observação dos<br />
resultados, é que a organização do léxico <strong>em</strong> torno de um t<strong>em</strong>a central é uma importante<br />
ferramenta de retenção de vocabulário na m<strong>em</strong>ória de trabalho, suficiente para uma b<strong>em</strong><br />
sucedida compreensão textual na fase de skimming. Além disso, a materialização gráfica da<br />
atividade sugere uma organização cognitiva através do que Ingedore Koch (1990) chamaria<br />
de frames, do que Kim Plunkett (1997) chamaria de redes neurais interligadas, e do que<br />
Widdowson (1990) e Carrel (1983) chamariam de manifestação do conhecimento<br />
esqu<strong>em</strong>ático.<br />
No que tange ao conhecimento esqu<strong>em</strong>ático, tanto as atividades de enunciação a partir<br />
de um t<strong>em</strong>a quanto as concatenações lexicais realizadas pelos alunos no final da sequência<br />
são importantes el<strong>em</strong>entos que informam ao professor sobre o que se sabe sobre o assunto<br />
abordado, o que pode indicar antecipadamente o sucesso ou o fracasso da leitura do t<strong>em</strong>a<br />
escolhido, já que quanto maior for o conhecimento prévio do aluno sobre um determinado<br />
t<strong>em</strong>a, maiores serão suas chances de compreendê-lo <strong>em</strong> uma outra língua. Felizmente foram<br />
selecionados t<strong>em</strong>as que não causaram probl<strong>em</strong>as de compreensão por partes dos alunos, pois<br />
se tratavam de assuntos amplamente veiculados na mídia <strong>em</strong> 2010, ou eram t<strong>em</strong>as de<br />
interesse dos respectivos cursos técnico, a saber: gripe H1N1, erosão dos solos e aquecimento<br />
global. Portanto, como esses contextos eram familiares aos alunos <strong>em</strong> questão, isso suscitou a<br />
curiosidade de saber como as informações a que eles já tinham <strong>em</strong> sua língua mãe se<br />
articulavam <strong>em</strong> uma outra língua, no caso, o inglês.<br />
Finalmente, foi preciso fazer com que o conhecimento adquirido pelo grupo se tornasse<br />
algo inerente ao meio, isto é, algo compartilhado pelos m<strong>em</strong>bros da comunidade de prática.<br />
Ao invés de simplesmente fazer os alunos copiar<strong>em</strong> uma lista de palavras e aumentar as<br />
chances delas caír<strong>em</strong> no esquecimento pouco t<strong>em</strong>po depois, a manipulação dessa lista entre os<br />
alunos ajudou a prolongar a retenção do novo léxico na m<strong>em</strong>ória, o suficiente para uma boa<br />
fluidez na leitura. Tal manipulação ocorreu por meio da interação verbal, já que se acredita<br />
186
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
que o conhecimento é co-construído através da troca intersubjetiva entre indivíduos na<br />
interação (Vygotsky, 1939; Ochs & Schieffelin, 1997). Portanto, pode-se dizer que as<br />
atividades interativas permitiram uma maior intimidade do aprendiz com as palavras do<br />
contexto co-construídas no início da atividade de brainstorming, e essa integração pode<br />
explicar como o aprendiz consegue se apropriar do léxico mais eficient<strong>em</strong>ente.<br />
7) Conclusão<br />
Ao longo desse trabalho, foi possível perceber o papel do léxico na decodificação de<br />
textos <strong>em</strong> língua estrangeira, <strong>em</strong> particular <strong>em</strong> língua inglesa. Percebeu-se que levar o<br />
aprendiz a observar manifestações linguísticas de textos nos el<strong>em</strong>entos léxico-s<strong>em</strong>ânticos é<br />
um eficiente instrumento de ensino da língua <strong>em</strong> que o foco gramatical dá lugar à<br />
concatenação de sentidos, fazendo com que o texto se torne veículo de comunicação e não um<br />
conjunto de frases sist<strong>em</strong>aticamente estruturadas.<br />
Foi também possível notar que todo conhecimento compartilhado provém dos<br />
aprendizes da comunidade de prática, e que cabe ao professor organizá-lo de forma que<br />
facilite sua retenção na m<strong>em</strong>ória de forma integrativa, participativa e d<strong>em</strong>ocratizando as<br />
oportunidades de participação. Com base nessas considerações, é possível sugerir algumas<br />
respostas às perguntas elaboradas no início deste trabalho: que metodologia de ensino facilita<br />
a aquisição do vocabulário de alunos iniciantes na leitura instrumental <strong>em</strong> língua inglesa?<br />
Como promover o novo léxico de forma que este estimule o fluxo de leitura necessário para<br />
compreensão geral na fase de skimming?<br />
Diante do probl<strong>em</strong>a de fluidez na leitura na fase de skimming, que muitos dos 120<br />
alunos encontravam durante a atividade, percebeu-se que a conjugação das crenças e práticas<br />
oriundas da abordag<strong>em</strong> lexical de Lewis (1993) com pressupostos conexionistas concernentes<br />
a organização do léxico <strong>em</strong> redes neurais (Plunkett, 1997) ou frames (Koch, 1990), aliados a<br />
práticas sociointeracionistas (Vygotsky, 1939) para a indexação do novo conhecimento ao<br />
meio (Ochs & Schieffelin, 1997), permitiu que o aprendiz voltasse seu olhar para o léxico no<br />
momento da leitura e começasse a inferir as palavras gramaticais do texto. Isso, como foi<br />
visto, não somente minimizou as interrupções inoportunas durante a leitura para compreensão<br />
geral, como também aumentou a motivação do aprendiz-leitor, já que o texto <strong>em</strong> inglês<br />
passou a não mais representar uma ameaça.<br />
Portanto, sugere-se que o novo léxico é promovido eficient<strong>em</strong>ente quando o professor<br />
articula o conhecimento esqu<strong>em</strong>ático do aprendiz de forma participativa, levando os m<strong>em</strong>bros<br />
da comunidade de prática a contribuir com a aprendizag<strong>em</strong> uns dos outros através da coconstrução<br />
do conhecimento nas interações. Este pode ter sido o principal favorecedor da<br />
fluidez na leitura dos alunos na fase de skimming.<br />
REFERÊNCIAS<br />
BROWN, H.D. “English language teaching in the “post-method era: toward better diagnosis,<br />
treatment, and assessment” In: Richards, J.C. & Renandya, W.A. (Eds). Methodology in language<br />
teaching. Cambridge: CUP. 2002.<br />
187
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
CARREL, P. L. Some issues in studying the role of sch<strong>em</strong>ata, or background knowledge, in second<br />
language comprehension. In : Reading in a Foreign Language, vol.1, 1983.<br />
COMMON EUROPEAN FRAMEWORK. Common European framework of reference for languages.<br />
Disponível <strong>em</strong> http://www.coe.int/t/dg4/Linguistic/Source/Framework_EN.pdf. Acesso <strong>em</strong>: 25<br />
fevereiro. 2011.<br />
DUDLEY-EVANS, T. & JOHN, M.J.S. Developments in English for specific purposes: a<br />
multidisciplinary approach. CUP: 1998.<br />
EDWARDS & MERCER. Communication and control. In: B. Stierer & J. Maybin (Eds.), Language,<br />
Literacy and Learning in Educational Practice, p. 189-201. Clevedon: Multilingual Matters: 1994.<br />
GIVÓN, T. Syntax. Amsterdam: John Benjamins, 2001.<br />
HULSTIJN, J.H. & B. Laufer. Some <strong>em</strong>pirical evidence for the Involv<strong>em</strong>ent Load Hypothesis in<br />
vocabulary acquisition. Language Learning, 2001.<br />
HUTCHINSON, T. & WATERS, A. English for specific purposes. CUP: 1987.<br />
INFINITE INNOVATIONS LTD. History and use of brainstorming. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://www.brainstorming.co.uk/tutorials/historyofbrainstorming.html. Acesso <strong>em</strong>: 4 março. 2011.<br />
KERN, R. Literacy and language teaching. Oxford Applied Linguistics Series. OUP: 2000.<br />
KOCH, I. V. A coerência textual. São Paulo: Editora Contexto, 1990, p. 72.<br />
KUMARADIVELU, B. The postmethod condition: (E)merging strategies for second/foreign language<br />
teaching. TESOL Quarterly, 28 (1), 27-47, 1994.<br />
LEWIS, M. The lexical approach. Hove, LTP, 1993.<br />
MacWHINNEY, B. Mechanisms of language acquisition. In: MacWHINNEY, B.: The 20 th Annual<br />
Carnegie Symposium on Cognition. N.J.: Routledge, 1987.<br />
OCHS, E. e SCHIEFFELIN, B. O impacto da socialização da linguag<strong>em</strong> no desenvolvimento<br />
gramatical. In FLETCHER, P.; MacWHINNEY, B.: Compêndio da linguag<strong>em</strong> da criança. Tradução<br />
Marcos A. G. Domingues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.<br />
PLUNKETT, K. Abordagens conexionistas da aquisição da linguag<strong>em</strong>. In: FLETCHER, P.;<br />
MacWHINNEY, B. Compêndio da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> da Criança. Tradução Marcos A. G. Domingues. Porto<br />
Alegre: Artes Médicas, 1997.<br />
PUSTEJOVSKY, J. The generative lexicon. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1995.<br />
VYGOTSKY, L. Thought and speech. Psychiatry, II, 1, 1939.<br />
WEBB, S. The effects of repetition on vocabulary knowledge. OUP, 2007. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://applij.oxfordjournals.org. Acesso <strong>em</strong>: 2 jun. 2010.<br />
WIDDOWSON, H. G. Aspects of Language Teaching. Oxford: OUP, 1990.<br />
188
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
WIDDOWSON, H. G. Teaching Language as Communication. Oxford: OUP, 1983.<br />
189
MAIS DO MENAS: ONDE A EXPOSIÇÃO JAMAIS ESTEVE<br />
Thayane Santos Antunes (UERJ) 1<br />
Ricardo Joseh Lima (UERJ)<br />
RESUMO: Este trabalho t<strong>em</strong> dois objetivos centrais. O primeiro é a apresentação de uma discussão sobre a<br />
exposição “Menas, o certo do errado e o errado do certo”, realizada pelo Museu da Língua Portuguesa, no<br />
primeiro s<strong>em</strong>estre de 2010. São descritas as instalações que faz<strong>em</strong> parte dessa exposição e <strong>em</strong> seguida <strong>análise</strong>s<br />
críticas dessas instalações são levantadas. Essas <strong>análise</strong>s se centram nas dificuldades que os curadores tiveram de<br />
concretizar o objetivo de transmitir informações sobre o conceito de erro, que seria considerado como relativo e<br />
atrelado à inadequação de registros. As falhas apontadas são de várias ordens: informações incompletas,<br />
contraditórias e ambíguas. O segundo objetivo é a apresentação de uma proposta de instalação “extra” para a<br />
exposição Menas, que procura solucionar as dificuldades que essa exposição enfrentou para transmitir suas<br />
informações. Utilizando muito menos estrutura e materiais, essa instalação “extra” pretende agir diretamente na<br />
questão do conceito de erro, o que leva também a focalizar o t<strong>em</strong>a do Preconceito Linguístico, que permaneceu<br />
ausente da exposição Menas. A instalação “extra” também pode ser pensada de modo autônomo <strong>em</strong> relação ao<br />
Menas, podendo constituir um instrumento de divulgação de combate ao Preconceito Linguístico.<br />
1) Introdução (ou: O que é e para que serve uma exposição?)<br />
Entre os meses de março e julho de 2010, o Museu da Língua Portuguesa realizou a<br />
exposição t<strong>em</strong>porária “Menas: o certo do errado e o errado do certo”, a primeira do Museu,<br />
focalizando um assunto linguístico e não literário. O título da exposição não é apenas<br />
chamativo, mas também é provocador: coloca <strong>em</strong> destaque uma palavra estigmatizada e<br />
propõe um jogo de inversão de valores a respeito dos conceitos de “certo” e “errado” (ver<br />
Bagno 1999 e Leite 2008). Nesta Introdução, vamos fazer alguns comentários sobre o<br />
conceito de exposição e suas relações com o t<strong>em</strong>a da divulgação científica, especificamente,<br />
da divulgação linguística.<br />
Pod<strong>em</strong>os, inicialmente, definir exposição como sendo a utilização de um espaço por<br />
um determinado período de t<strong>em</strong>po para apresentar informações, por diversos meios, a um<br />
público. Uma exposição pode ser a reunião de obras que tenham algum ponto <strong>em</strong> comum, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, quadros do mesmo período ou tratando de um mesmo t<strong>em</strong>a, com a finalidade de<br />
despertar no público uma consciência a respeito de seus objetivos. Para tanto, pode-se<br />
conceber uma espécie de roteiro, fruto de um planejamento <strong>em</strong> que as partes de uma<br />
exposição dialogam entre si, fazendo conexões que vão, fatalmente, levar à finalização de um<br />
conjunto de ideias que seja apropriado para uma reflexão consciente. Deve ficar claro que<br />
estamos apontando para uma possibilidade de direcionamento de uma exposição, deixando<br />
com isso <strong>em</strong> aberto a existência de outros modelos, uma vez que o t<strong>em</strong>a do nosso trabalho é<br />
uma exposição voltada para um assunto que t<strong>em</strong> mais proximidade com a ciência do que com<br />
a arte. Se a pretensão é divulgar informações a respeito do trabalho e das descobertas de uma<br />
ciência, no caso, a Linguística, a concepção de exposição descrita acima pode, ou até deve,<br />
ser tomada como parâmetro para o sucesso dessa tarefa.<br />
Em se tratando da Linguística, a discussão sobre a concepção de exposição e a questão<br />
da divulgação científica se torna mais complexa. Isso porque não se t<strong>em</strong> notícia de um evento<br />
de tal extensão e alcance midiático que tenha focalizado um t<strong>em</strong>a linguístico e, além disso,<br />
esse é um tipo de t<strong>em</strong>a que desperta paixões e polêmicas, quase s<strong>em</strong>pre mal compreendidas.<br />
Portanto, o desafio de comunicar com o público conceitos de “certo” e “errado” <strong>em</strong> língua<br />
1 Aluna de <strong>graduação</strong> <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>, orientada pelo Prof. Dr. Ricardo Joseh Lima (UERJ).<br />
190
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
requer que os construtores dessa comunicação tom<strong>em</strong> uma série de cuidados que, <strong>em</strong> outra<br />
ocasião, não seriam necessários (ver os casos discutidos por Possenti 2009a,b) . Assim, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, o subtítulo da exposição deve ser assimilado de igual maneira por esse público: o<br />
destaque dado ao “certo do errado” precisa também ser dado ao “errado do certo”; e, a ambos,<br />
partes da exposição necessitam fazer menção, de tal maneira que o jogo de palavras não seja<br />
visto de modo confuso pelo público. Ao final... O que se pretende com o final? Dado o caráter<br />
polêmico do t<strong>em</strong>a, pode-se, no máximo, convidar o público a fazer uma reflexão sobre ele? É<br />
possível, desejável, que esse final seja mais do que um convite, podendo assim, expressar uma<br />
ideia a ser defendida pelos expositores?<br />
As questões apresentadas nos parágrafos acima constituíram o foco da nossa <strong>análise</strong> a<br />
respeito da exposição “Menas”. Na seção seguinte, detalhar<strong>em</strong>os a estrutura dessa exposição,<br />
com destaque para seus objetivos. Depois, apresentar<strong>em</strong>os uma visão crítica a respeito desses<br />
objetivos, investigando <strong>em</strong> que grau eles foram (des)cumpridos. Por fim, retomamos as ideias<br />
principais dessa Introdução, apresentando um roteiro de exposição que conjuga os ideais que<br />
formaram o “Menas”, concretizando-os de um modo simples, original, divertido e,<br />
crucialmente, radical.<br />
2) Descrição da exposição Menas<br />
A exposição “Menas: o certo do errado e o errado do certo” foi composta por sete<br />
instalações. Todas as instalações, exceto a primeira, possuíam um texto explicativo sobre seus<br />
objetivos e motivações, e, inclusive, havia um texto explicativo sobre a própria exposição, o<br />
qual explicava que “MENAS, a exposição, defende a ideia de que há mais maneiras de<br />
analisar a linguag<strong>em</strong> do que a velha dicotomia do certo ou errado.” e que “Entre brincadeiras,<br />
reflexões, frases de todo tipo e arte literária, MENAS propõe uma discussão que desafia<br />
nossas certezas, diluindo parte das fronteiras entre o culto e o popular”.<br />
A primeira instalação acontecia na entrada dos visitantes no Museu. Eram cartazes<br />
espalhados perto da bilheteria e do elevador que levava ao andar da exposição. Alguns<br />
continham “erros de português” e outros continham perguntas provocativas. O fato de não<br />
haver nenhum texto explicativo, ao contrário das d<strong>em</strong>ais instalações, e de não haver nenhum<br />
elo entre os cartazes fez com que poucos visitantes dess<strong>em</strong> atenção a essa instalação. Em<br />
vídeos de apresentação da exposição, um dos curadores apresenta instalação por instalação,<br />
mas não começa por essa, o que pode ser explicado pelos probl<strong>em</strong>as levantados.<br />
Na segunda instalação, denominada “Óculos”, havia diversos quadros transparentes<br />
com palavras soltas e, <strong>em</strong> frente a cada um, um local por onde o visitante deveria posicionar<br />
os olhos <strong>em</strong> posição frontal para o quadro, através de um pequeno buraco, como é possível<br />
ver na Figura 1. O texto explicativo dessa instalação aborda o fato de, muitas vezes, vermos<br />
as coisas de modo diferente do que são, ou seja, de uma maneira distorcida, devido à<br />
perspectiva que adotamos ao observá-las. Essa instalação propõe que olh<strong>em</strong>os a nossa língua<br />
de um novo ângulo, utilizando novas lentes, para que, durante a exposição, possamos abrir<br />
nossos olhos a novas possibilidades de pensar a Língua Portuguesa e a questão do certo e do<br />
errado.<br />
191
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 1. A estrutura da instalação “Óculos”<br />
Ao posicionar os olhos na direção indicada, o visitante via formada uma frase. O<br />
objetivo desta instalação era mostrar que n<strong>em</strong> tudo fica claro se visto apenas de um ponto de<br />
vista. É necessário que se observ<strong>em</strong> todos os lados de uma situação, no caso, o “erro”, e<br />
somente dessa forma, será possível perceber que n<strong>em</strong> tudo é o que parece.<br />
As frases “escondidas” nessa instalação tratavam de t<strong>em</strong>as diferentes acerca da Língua<br />
Portuguesa, todas defendendo um ponto de vista supostamente discriminado. Em cada frase<br />
havia um aspecto diferente relativo à Língua Portuguesa, ou seja, não havia um padrão n<strong>em</strong><br />
uma ord<strong>em</strong> acerca dos quais as frases discorriam. As frases são as seguintes:<br />
- Todos têm sotaque. Ainda b<strong>em</strong>.<br />
- Se alguém usou uma palavra, ela existe.<br />
- O erro de hoje pode ser o acerto de amanhã.<br />
- Saber falar e escrever é fazer-se compreender.<br />
- Não exist<strong>em</strong> erros absolutos <strong>em</strong> língua.<br />
- Língua é uso.<br />
- A língua varia no t<strong>em</strong>po e no espaço.<br />
- As crianças dão à língua a lógica que ela não t<strong>em</strong>.<br />
- As gramáticas têm mais dúvidas do que certezas.<br />
- Quero ser um poliglota na minha própria língua.<br />
A terceira instalação, “Erros Nossos de Cada Dia”, era composta de uma grande<br />
parede dividida <strong>em</strong> vários quadros, no total 100, como se vê na Figura 2. Em cada quadro<br />
havia um ex<strong>em</strong>plo de erro cometido por nós brasileiros no uso da Língua Portuguesa e, abaixo<br />
do ex<strong>em</strong>plo, a explicação do erro ou do modo correto de uso da expressão ou palavra,<br />
segundo os gramáticos. Os erros mostrados nessa instalação não possuíam padrão, ou seja,<br />
foram inclusos erros de ortografia, concordância, registro, entre outros.<br />
192
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 2. Parede com ex<strong>em</strong>plos de erros cometidos na Língua Portuguesa<br />
Nessa instalação, o texto explicativo diz que “é tênue a linha que separa o certo do<br />
errado” e “Não há certo absoluto. Não há erro absoluto”, além de fazer uma comparação entre<br />
a variedade aprendida na escola – norma padrão da língua – e a aprendida no ambiente<br />
familiar – norma não padrão. Mas o ponto mais importante se encontra <strong>em</strong> uma das últimas<br />
frases do texto, que diz o seguinte: “É b<strong>em</strong> provável que, no futuro, muitos desses ‘nossos<br />
erros’ se torn<strong>em</strong> acertos.”<br />
Alguns ex<strong>em</strong>plos apresentados na parede da instalação, com suas respectivas<br />
explicações:<br />
(1) - “Há menas pessoas aqui do que ont<strong>em</strong>.”<br />
No padrão culto da língua, a palavra “menos”, quando funciona como pronome indefinido,<br />
permanece invariável, mesmo quando se refere a um substantivo f<strong>em</strong>inino.<br />
(2) - “Ele tinha chego atrasado.”<br />
O português dispõe de alguns verbos que admit<strong>em</strong> duas formas de particípio passado: aceitar<br />
(aceitado e aceito), imprimir (imprimido e impresso), eleger (elegido e eleito) etc.<br />
Estendendo essa possibilidade morfológica, obtêm-se formas como chego, ainda não<br />
acolhidas pela norma culta.<br />
(3) - “Espero que seje bom pra você.”<br />
O verbo <strong>em</strong> negrito está no presente do subjuntivo, por estar subordinado a espero que. Nos<br />
verbos regulares terminados <strong>em</strong> –er e –ir, esse t<strong>em</strong>po verbal se forma com a vogal a (como<br />
<strong>em</strong> espero que beba, espero que parta) e nos verbos terminados <strong>em</strong> –ar, com a vogal e (como<br />
<strong>em</strong> espero que fale). Portanto, o presente do subjuntivo do verbo irregular ser é seja. A forma<br />
seje não é aceita pela norma culta.<br />
Na quarta instalação, o visitante se depara com “computadores” compostos de uma<br />
tela e alguns botões abaixo, nos quais aparec<strong>em</strong> perguntas sobre o uso da Língua Portuguesa,<br />
193
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
cada uma com três ou quatro opções distintas (<strong>em</strong> algumas questões, havia quatro opções,<br />
enquanto <strong>em</strong> outras, apenas três). O visitante deverá escolher uma delas. Esta instalação<br />
chama-se “Jogo do Certo e do Errado” e, de acordo com o texto explicativo da mesma,<br />
aborda, principalmente, as questões “estritamente gramaticais”. No texto, entretanto, há ainda<br />
explicações sobre “erros de linguag<strong>em</strong>”, que ocorr<strong>em</strong> “porque escolh<strong>em</strong>os um registro<br />
linguístico incompatível com a situação de comunicação”, além de erros de outra natureza,<br />
como s<strong>em</strong>ânticos, lexicais e de construção do texto.<br />
O “Jogo do Certo e do Errado” funciona de modo b<strong>em</strong> simples: o visitante vê a sua<br />
frente, na tela, uma pergunta sobre um uso de certa palavra ou expressão na Língua<br />
Portuguesa, e deve, após ler as opções, escolher uma delas. A questão principal, é que, neste<br />
jogo, todas as respostas são consideradas corretas (ou incorretas, dependendo da pergunta),<br />
isto é, independent<strong>em</strong>ente da escolha do visitante, o computador lhe dirá que está correto. Na<br />
mesma tela <strong>em</strong> que a resposta é dita como correta, aparece ainda uma explicação breve sobre<br />
o uso da opção escolhida, uma porcentag<strong>em</strong> de quantos visitantes escolheram aquela mesma<br />
opção e a explicação de por que todas as alternativas eram corretas. Abaixo, nas Figuras 3 e 4,<br />
ex<strong>em</strong>plo de uma das questões e da mensag<strong>em</strong> seguinte à resposta:<br />
Figura 3. Ex<strong>em</strong>plo de uma das questões do “Jogo do Certo e do Errado”<br />
194
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 4. Mensag<strong>em</strong> seguinte à resposta: Todas as alternativas s<strong>em</strong>pre estão corretas.<br />
No total, o “Jogo do Certo e do Errado” possuía 15 questões neste mesmo estilo. Ao<br />
final do jogo, uma tela aparecia com a seguinte mensag<strong>em</strong>, convidando o visitante a iniciar o<br />
jogo novamente:<br />
“Parabéns! Você chegou ao fim do Jogo do Certo e do Errado. Mas o desafio continua. No dia<br />
a dia você vai encontrar um monte de situações <strong>em</strong> que algo parece estar certo (mas não está)<br />
e descobrir outras palavras ou expressões que você t<strong>em</strong> certeza de que são erros (e, na<br />
verdade, não são). A língua é assim mesmo, parece complicada, mas é ótima para jogar.<br />
Vamos começar novamente?”.<br />
“Biblioteca de Babel” é o nome da quinta instalação da exposição Menas. O nome,<br />
propositalmente contraditório, é explicado da seguinte forma no texto explicativo da<br />
instalação: “Biblioteca de Babel é uma expressão poderosa, que capta a língua portuguesa no<br />
que ela t<strong>em</strong> de estruturado, ordenado, previsível, convivendo com o imprevisível, o criativo, o<br />
poético.”<br />
Essa instalação, por sua vez, era composta de diversos materiais: livros, móveis,<br />
instrumentos musicais, estantes, quadros, entre diversos outros. Dentro dessa “organização<br />
desorganizada”, encontram-se trechos de obras literárias, músicas, po<strong>em</strong>as, textos de grandes<br />
autores, todos com “erros”, variedades diferentes da norma culta ou frases que r<strong>em</strong>etiam ao<br />
objetivo da exposição, como se observa nas Figuras 5 e 6.<br />
195
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 5. Trecho de música com “erros” Figura 6. Trecho de música com “erros”<br />
Chegando à penúltima instalação, o visitante encontra uma grande tela dividida <strong>em</strong><br />
quatro partes, como v<strong>em</strong>os na Figura 7, nas quais é reproduzido um vídeo sobre quatro<br />
mulheres que se encontram no banheiro da própria exposição. “Norma, a Camaleoa” é o nome<br />
do vídeo e também o nome da instalação. São quatro mulheres com o mesmo nome –<br />
“Norma” – que discut<strong>em</strong> sobre a nossa língua. Cada uma das personagens t<strong>em</strong> seu ponto de<br />
vista <strong>em</strong> relação à Língua Portuguesa: Norma Helena, a norma gramatical; Norma Lígia, a<br />
norma s<strong>em</strong>ântica; Norma Brigite, a norma lexical; e Norma Maria, a norma discursiva. O<br />
vídeo dura cerca de dez minutos e o texto explicativo desta instalação expõe que “Elas (as<br />
Normas) são quatro <strong>em</strong> uma, quando uma mesma expressão apresenta probl<strong>em</strong>as oriundos<br />
dos quatro sist<strong>em</strong>as. Elas são uma <strong>em</strong> quatro, quando o erro proveio de um sist<strong>em</strong>a só”.<br />
Figura 7. Vídeo das Normas.<br />
A última instalação da exposição “Menas: o certo do errado, o errado do certo”<br />
recebeu o nome de “Janelas Abertas”, e trata-se realmente disto. As janelas do Museu da<br />
Língua Portuguesa, geralmente fechadas, encontram-se abertas, com ampla visão para o lado<br />
196
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
de fora. Na instalação, montada no corredor final da exposição, que leva o visitante<br />
diretamente à saída, como mostra a Figura 8, há diversos ex<strong>em</strong>plos de “erros” e frases<br />
populares localizadas nas paredes, dois destes apresentados na Figura 9. Há ainda, <strong>em</strong> áudio,<br />
os comentários de Nuno Ramos, Paulo Lins, Suzana Salles e Manuel da Costa sobre o t<strong>em</strong>a<br />
da exposição e uma discussão entre eles sobre as frases e expressões apresentadas na<br />
instalação “Janelas Abertas”. A última frase do último texto explicativo da última instalação é<br />
a seguinte: “É hora de voltar à rua, para arejar a língua e fazer circular palavras”.<br />
Figura 8. A 7ª instalação, no corredor Figura 9. Placas com erros na 7ª instalação.<br />
3) Objetivos da exposição<br />
Não é uma tarefa fácil realizar uma <strong>análise</strong> crítica dos objetivos da exposição Menas.<br />
Isso se deve ao fato de não existir um documento ou material disponível <strong>em</strong> que se apresente<br />
um tópico chamado de “Objetivos”. O que t<strong>em</strong>os como material são os textos que descrev<strong>em</strong><br />
as instalações e entrevistas concedidas pelos curadores da exposição. Ainda assim, a lista de<br />
objetivos obtida é d<strong>em</strong>asiado grande para que seja realizada uma <strong>análise</strong> individual. Portanto,<br />
tiv<strong>em</strong>os que adotar alguns critérios para obter uma lista que, mesmo reduzida, fosse capaz de<br />
englobar as principais ideias que motivaram o Menas. Além da <strong>análise</strong> dos objetivos da<br />
exposição, cabe nesta seção uma retomada das considerações feitas na Introdução a respeito<br />
de t<strong>em</strong>as como Divulgação Científica e Linguística, entre outros.<br />
Pod<strong>em</strong>os, esqu<strong>em</strong>aticamente, apresentar os principais objetivos da exposição Menas:<br />
(a) Fazer um convite ao visitante para refletir sobre os conceitos de “certo” e de “errado” para<br />
que ele possa mudar sua percepção desses conceitos;<br />
(b) Apresentar uma nova definição de “erro”, que passa a ser concebido como o uso<br />
inadequado de uma forma (ou seja, o uso de um registro informal <strong>em</strong> um ambiente formal e<br />
vice-versa);<br />
(c) Desmistificar o conceito de “erro”, relativizando-o e apresentando justificativas para o uso<br />
de uma forma inadequada.<br />
197
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O objetivo (a) é abordado de imediato pela exposição na instalação “Óculos”, que traz<br />
frases como “O erro de hoje pode ser o acerto de amanhã” e “Não exist<strong>em</strong> erros absolutos <strong>em</strong><br />
língua”, que tratam diretamente dos conceitos de “certo” e “errado”. Embora o texto que<br />
acompanha a instalação apresente informações sobre as ideias contidas nessas frases, a<br />
instalação <strong>em</strong> si não traz nenhum outro material a respeito do t<strong>em</strong>a. O visitante deve, então, ir<br />
para a instalação seguinte, “Erros nossos de cada dia”, para formar uma opinião mais segura.<br />
Essa instalação será analisada quando da exploração do it<strong>em</strong> (c). Por enquanto, fica um<br />
registro marcante a respeito dela: quando perguntada sobre os tipos de erro que apareciam no<br />
imenso mural da instalação, uma monitora da exposição respondeu literalmente “tudo o que<br />
está aí nesse painel <strong>em</strong> frente está errado mesmo”.<br />
Essa resposta está <strong>em</strong> confronto direto com o objetivo (a), uma vez que apenas<br />
reproduz um pensamento conservador e retrógrado a respeito do conceito de erro. No entanto,<br />
não caberia julgar o sucesso de (a) apenas por essa resposta. Por isso, analisamos diversos<br />
vídeos realizados acerca da exposição. Em vários deles, há entrevistas com visitantes, e<br />
decidimos classificar as falas desses visitantes <strong>em</strong> relação ao objetivo (a), como “opostas”,<br />
“neutras” e “coerentes” com esse objetivo. Um total de 15 comentários foi analisado. Quatro<br />
foram considerados como “coerentes”, três como “neutros” e oito como “opostos”.<br />
Considerando que dos quatro comentários coerentes, dois foram feitos por professores, t<strong>em</strong>os<br />
uma proporção de comentários “opostos” bastante significativa e probl<strong>em</strong>ática para os<br />
idealizadores da exposição.<br />
Dentre os comentários coerentes, destacamos: “abriu meu olhar pra língua... t<strong>em</strong><br />
muitos jeitos diferentes de falar...”; “todos os erros que nós comet<strong>em</strong>os, que a gente pode<br />
cometer, não é pecado”. Dentre os opostos ao objetivo (a), destacamos: “Deixa eu estudar...<br />
mas quase todo mundo fala “para mim”, qu<strong>em</strong> fala “para mim” é índio”; “quando eu vou<br />
falar, às vezes uso menas (a repórter pergunta: “agora não vai falar mais?”), espero que não”.<br />
Os comentários opostos deixam transparecer uma visão preconceituosa (“qu<strong>em</strong> fala pra mim é<br />
índio”) e estigmatizada (a pessoa não vai mais falar menas). Desse modo, pod<strong>em</strong>os concluir<br />
que o objetivo de mudar os conceitos dos visitantes a respeito do certo e do errado não se<br />
concretizou como os idealizadores da exposição imaginaram.<br />
O objetivo (b) enfatizava a “metáfora da roupa”: assim como não se vai de bermuda a<br />
um casamento, não se vai de terno à praia; do mesmo modo, não se deve usar um registro<br />
informal <strong>em</strong> um ambiente formal e não se deve usar um registro formal <strong>em</strong> um ambiente<br />
informal. Essa metáfora fez parte várias vezes das falas dos idealizadores da exposição. A<br />
instalação “Norma, a camaleoa” era a parte da exposição <strong>em</strong> que se veiculava a ideia de que a<br />
língua possui várias normas e de que não haveria uma superior a outra. Um dos personagens<br />
do vídeo, no entanto, encarnava a “Norma Gramatical”, que não aceita outras normas,<br />
corrigindo-as. Durante todo o vídeo, as d<strong>em</strong>ais “Normas” argumentam e rebat<strong>em</strong> as críticas<br />
feitas pela “Norma Gramatical”. O final, porém, é surpreendente para o enredo da metáfora da<br />
roupa: uma das “Normas” diz “Vamos marcar de se ver” e é corrigida pela “Norma<br />
Gramatical”, “Vamos marcar de nos ver”; a correção é aceita pelas d<strong>em</strong>ais “Normas” e o<br />
vídeo termina. O detalhe crucial é que a ação do vídeo se passa no banheiro do Museu da<br />
Língua Portuguesa. A pergunta que não quer calar é: ora, o banheiro é um ambiente informal,<br />
portanto, nada haveria de mais <strong>em</strong> usar um registro informal (“vamos marcar de se ver”).<br />
Mesmo assim, o registro informal não apenas é corrigido, como essa correção é aceita. No<br />
final das contas, o “certo” venceu o “errado” e a ideia de que o erro é apenas um uso<br />
inadequado não vingou, pois n<strong>em</strong> esse uso inadequado teve chance, tendo vencido a (velha)<br />
ideia de que o “errado” não deve ser pronunciado.<br />
198
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O objetivo (c) está diretamente relacionado à instalação “Erros nossos de cada dia”,<br />
uma vez que o imenso painel montado não trazia apenas os 100 erros mais comuns, mas,<br />
abaixo de cada um, um comentário. De acordo com os idealizadores da exposição, esses<br />
comentários seriam explicações, que justificariam os “erros”. Assim, o visitante passaria a<br />
entender a existência dos erros como suportada por uma lógica e, com isso, mudaria seu<br />
conceito sobre “erro”. Embora alguns comentários sejam explicações tal como descrito acima,<br />
a maioria não cumpriu esse papel e, muito pelo contrário, <strong>em</strong> muitos casos descrevia o erro de<br />
tal forma que se tornava praticamente impossível aceitá-lo. No primeiro grupo, t<strong>em</strong>os para<br />
“Ele tinha chego atrasado”, o seguinte comentário: “como há verbos que admit<strong>em</strong> duas<br />
possibilidades de particípio (eleger – elegido e eleito), estendeu-se isso ao verbo chegar”. Para<br />
o segundo grupo, há casos como o de “Espero que seje bom para você: Verbos de 2ª<br />
conjugação no subjuntivo terminam <strong>em</strong> –a (comer-coma, beber-beba) e o mesmo acontece<br />
com o verbo ser (ser-seja)” e “O carro dele deu perca total”: “No padrão culto da língua, a<br />
palavra “perda” é que costuma ser usada, mesmo que alguns dicionários (como o Houaiss) já<br />
registr<strong>em</strong> a forma “perca””. No primeiro caso, t<strong>em</strong>-se uma explicação de como se conjuga o<br />
verbo “ser”, mas não de por que a forma “seje” existe. A situação é probl<strong>em</strong>ática porque o<br />
comentário apresenta a lógica da norma padrão, o que pode fazer o visitante pensar que “seje”<br />
não possui nenhuma lógica. No segundo caso, <strong>em</strong>bora se destaque que a forma “perca” já é<br />
até registrada, não se apresenta uma justificativa para seu uso. Dev<strong>em</strong>os notar que a forma<br />
“perca” é bastante estigmatizada e, portanto, não se encontra <strong>em</strong> situação de variação com<br />
“perda”. A ausência de explicação deixa, mais uma vez, o visitante s<strong>em</strong> ter noção do porquê<br />
de os “erros” existir<strong>em</strong>.<br />
As <strong>análise</strong>s acima mostram um quadro preocupante: não se pode dizer que os<br />
principais objetivos da exposição Menas foram atingidos. O “certo do errado” (ou seja, a<br />
lógica do erro) pouco apareceu e não foi colocado <strong>em</strong> destaque; O “errado do certo” (ou seja,<br />
a postura preconceituosa) também não foi abordado de modo direto; além do mais, quando<br />
apareceu, no vídeo das “Normas”, não foi criticado. Cabe-nos, agora, perguntar por que os<br />
objetivos não foram atingidos. Há várias possibilidades. Uma delas é que, por causa da<br />
amplitude dos objetivos, os idealizadores acabaram não conseguindo focalizá-los como<br />
deveriam. Outra possível explicação é que os idealizadores não quiseram tratar de t<strong>em</strong>a tão<br />
espinhoso (a revisão dos conceitos de “certo” e “errado”) de modo direto e claro. Ainda,<br />
pod<strong>em</strong>os pensar <strong>em</strong> uma terceira possibilidade: mesmo com o uso de vídeos, apoio visual,<br />
computadores, etc. a pr<strong>em</strong>ência do que deve ser um evento de Divulgação Científica para a<br />
Linguística não foi incorporada pelos idealizadores. A revisão dos conceitos de “certo” e<br />
“errado” e a consequente luta contra o preconceito linguístico são t<strong>em</strong>as que dev<strong>em</strong> guiar o<br />
formato de um evento como esse de tal modo que o evento seja visível e compreensível de<br />
modo direto e claro. Talvez as três possibilidades de explicação juntas de<strong>em</strong> conta do que<br />
aconteceu na exposição Menas. A seguir, apresentamos uma atividade que visa superar esses<br />
obstáculos e atingir plenamente os objetivos traçados.<br />
4) Uma outra “exposição”<br />
A proposta da exposição “Menas: o certo do errado, o errado do certo” é interessante e<br />
promissora. Porém, seus curadores pecaram <strong>em</strong> não respeitá-la durante a elaboração do<br />
evento.<br />
199
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
De acordo com os próprios organizadores, seus objetivos eram “defender a ideia de<br />
que há mais maneiras de analisar a linguag<strong>em</strong> do que a velha dicotomia do certo ou errado” e<br />
propor “uma discussão que desafia nossas certezas, diluindo parte das fronteiras entre o culto<br />
e o popular”. Entretanto, ao analisarmos a exposição, seus detalhes, seus el<strong>em</strong>entos e,<br />
principalmente, o que é aprendido por seus visitantes, perceb<strong>em</strong>os claramente que tudo que<br />
foi dito como objetivo nunca chegou a se concretizar. Ao contrário, esses objetivos pod<strong>em</strong> ser<br />
encarados somente como estratégia de marketing para atrair a atenção do público – assim<br />
como o próprio nome polêmico da exposição: “Menas”. Esse nome, aliás, desperta o interesse<br />
das pessoas por ser diferente, considerado anormal e, <strong>em</strong> outras palavras, errado. A exposição,<br />
que deveria mudar esse pensamento estereotipado, explicando as regras deste chamado<br />
“desvio” e desmistificando o velho conceito de errado, faz com que o visitante saia do local<br />
tendo a certeza de que, nas palavras de um dos monitores do Museu, “tudo que está aí, está<br />
errado mesmo.”<br />
Nossa proposta alternativa para solucionar este probl<strong>em</strong>a na concepção da exposição é<br />
um pouco radical, porém justa e fiel aos verdadeiros objetivos declarados pelos idealizadores<br />
da exposição. Uma nova instalação com outra abordag<strong>em</strong>, mais clara e explicativa.<br />
Essa instalação seria a última da exposição, como o compl<strong>em</strong>ento final para garantir<br />
que as pessoas que a visitaram tenham assimilado o verdadeiro espírito de todo esse evento: o<br />
combate ao preconceito linguístico, a prova de que todos os usos da Língua Portuguesa estão<br />
corretos e são igualmente importantes, de que todos os considerados erros não são erros e<br />
possu<strong>em</strong> lógica e explicação. A estrutura da instalação encontra-se na Figura 10:<br />
Figura 10. Estrutura da 8ª instalação<br />
A 8ª instalação – uma vez que a exposição original já contava com sete – começaria<br />
com um ex<strong>em</strong>plo explícito de preconceito linguístico, especificamente <strong>em</strong> relação à pronúncia<br />
da palavra menas. O visitante encontraria logo à sua frente, ao entrar na instalação, um vídeo<br />
da série “Orto&Grafia” da TV Escola. Neste vídeo, claramente voltado para o público<br />
infantil, dois fantoches conversam de modo gramaticalmente correto, explicitando a maneira<br />
certa de se falar e usar as palavras. No caso do vídeo sobre o menas, duas crianças e um<br />
adulto são apresentados conversando, falando frases como ‘menos laranja’, ‘menos maçã’ e<br />
‘menos chatice’, buscando mostrar como se deve falar, ou seja, utilizando a palavra menos<br />
antes de qualquer substantivo. Ao final, <strong>em</strong> uma parte chamada “Dor de Ouvido”, o uso do<br />
menas é condenado e o vídeo termina da pior maneira possível, com a frase: “Menas não<br />
existe”.<br />
200
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Logo após esse vídeo, uma voz diria o seguinte: “No vídeo que você acabou de ver, o<br />
personag<strong>em</strong> diz que ‘menas não existe’. Mas sab<strong>em</strong>os que as pessoas falam menas! Como<br />
pode algo não existir – especificamente uma palavra – se é usado (no caso, falada) pelas<br />
pessoas? Não haveria uma explicação para esse uso? Sim, há. Vamos analisar essa palavra,<br />
comparando-a com outras de mesma classe gramatical. Veja a tabela a seguir”. O visitante<br />
seria então, guiado à próxima etapa de nossa instalação: uma tabela explicativa sobre o uso da<br />
palavra menas, na forma da Figura 11.<br />
Figura 11 – Tabela comparativa entre “pouco”, “muito” e “menos”<br />
Acompanhando a tabela, haverá novamente uma voz que explicará a mesma para o<br />
visitante: “Pouco, Muito e Menos são advérbios de quantidade, como <strong>em</strong> “pouco magro”,<br />
“muito magro” e “menos magro”. Quando o adjetivo muda para o f<strong>em</strong>inino, não há mudança<br />
no advérbio: “pouco magra”, “muito magra” e “menos magra”. Esses advérbios pod<strong>em</strong> fazer<br />
o papel de pronomes. Acompanhe na tabela: <strong>em</strong> ‘pouco requeijão’, o advérbio faz papel de<br />
pronome e está no gênero masculino, concordando com o substantivo. Em ‘muito requeijão’,<br />
o mesmo ocorre. Quando o substantivo é modificado para ‘manteiga’, ‘pouco’ e ‘muito’<br />
viram ‘pouca manteiga’ e ‘muita manteiga’, novamente concordando com o substantivo<br />
f<strong>em</strong>inino. Se isso ocorre com estes advérbios atuando como pronomes, por que não pode<br />
ocorrer com o ‘menos’? Veja: ‘menos requeijão’, concordância correta; ‘menas manteiga’,<br />
concordância correta do mesmo modo. T<strong>em</strong>os então a prova de que o uso da palavra ‘menas’<br />
quando concordando com o substantivo f<strong>em</strong>inino que a acompanha, é perfeitamente lógico e<br />
justificado.”<br />
Continuando o caminho pela instalação, chegando agora <strong>em</strong> sua terceira etapa,<br />
novamente t<strong>em</strong>os a voz que guia o visitante: “Agora que você já viu a explicação do uso do<br />
menas e ainda, que esse uso é lógico, vamos acompanhar um vídeo de resposta ao primeiro<br />
apresentado, também com t<strong>em</strong>ática infantil e divertido, buscando desmistificar a noção de<br />
erro que t<strong>em</strong>os do uso do menas e de outras palavras e expressões consideradas incorretas”.<br />
Este vídeo, realizado por alunas da Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong> da UERJ, t<strong>em</strong> um modelo<br />
similar ao do vídeo do Orto&Grafia: são dois fantoches, também conversando<br />
espontaneamente, porém, com uma diferença: neste vídeo, chamado Sô&Ci (pronúncia do<br />
sobrenome do pai da Linguística, Ferdinand de Saussure), os personagens utilizam expressões<br />
e palavras consideradas incorretas, explicando depois que as mesmas têm lógica e não estão<br />
erradas. A ord<strong>em</strong> do vídeo é a seguinte:<br />
Primeiramente, há uma abertura com a imag<strong>em</strong> de Sô&Ci, como mostrada na Figura<br />
12.<br />
201
Primeira parte do vídeo (Diálogo):<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 12. Imag<strong>em</strong> dos fantoches Sô&Ci<br />
- Sô, nós vai no jogo de futebol hoje?<br />
- Ai, Ci, eu não sei... T<strong>em</strong> tanta coisa pra mim fazer.<br />
- Puxa! Não dá pra deixar pra amanhã? Ia ser mais bom...<br />
- Ah, acho que dá pra ir no jogo sim. É só eu fazer menas coisas hoje e o resto<br />
amanhã!<br />
- Então! Eu se l<strong>em</strong>bro que o jogo só começa à noite, então dá t<strong>em</strong>po!<br />
- É né? Então a gente vamos!<br />
Segunda parte do vídeo (chamada de: Dor de Cotovelo):<br />
- Você sabia que tudo que foi falado aqui t<strong>em</strong> uma lógica e não é errado?<br />
- Não vá sair por aí corrigindo as pessoas, é muito feio!<br />
- Corrigir uma coisa que você acha que é errado, s<strong>em</strong> saber que pode estar certa, é<br />
preconceito.<br />
- Tchau pessoal!<br />
O vídeo é finalizado com os devidos créditos.<br />
Após a apresentação deste último vídeo, t<strong>em</strong>os novamente a voz que diz: “E então, o<br />
que você aprendeu hoje? Vimos que algo que é estigmatizado por ser errado, estranho ou<br />
anormal, na verdade, é natural. Foi provado que o uso do menas e de outras palavras e<br />
expressões que a maioria pensa ser incorreta é perfeitamente normal e certo. Moral da<br />
história: Menas existe.”<br />
Essa conclusão finalizaria a instalação e a exposição, deixando claro o que o visitante,<br />
provavelmente, deve saber ao final de tudo que foi visto.<br />
A proposta desta 8ª instalação surgiu depois de ficar claro a nós que somente as sete<br />
instalações apresentadas na exposição original não cumpriam o que deveriam, ou seja,<br />
defender e proporcionar uma reflexão sobre a norma não-padrão brasileira. Entretanto, a<br />
nossa instalação, mesmo apresentada de forma independente, pode perfeitamente explicitar o<br />
202
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
conteúdo que desejamos, s<strong>em</strong> a necessidade da exposição vista no Museu da Língua<br />
Portuguesa. Além disso, toda a nossa proposta pode ser realizada <strong>em</strong> modo de vídeo, o que<br />
proporciona uma facilidade de divulgação, não somente por nós, mas por qualquer pessoa que<br />
deseja fazê-la.<br />
A descrição da instalação feita anteriormente pode ser gravada <strong>em</strong> um único vídeo,<br />
podendo assim ser disponibilizado a escolas, eventos, professores, entre outros. Com apenas<br />
um computador ou um data show, é possível apresentar esta “nova exposição” a um grande<br />
número de pessoas, s<strong>em</strong> custos e s<strong>em</strong> grandes dificuldades. Para comprovar esta<br />
possibilidade, há um projeto <strong>em</strong> andamento de uma pequena “exposição” a ser realizada<br />
utilizando este vídeo, entre outros materiais como: vídeos cotidianos e televisivos que<br />
mostr<strong>em</strong> o uso da palavra menas e de outras expressões e palavras consideradas erradas,<br />
matérias de jornal, fotos, entre diversos outros.<br />
Nossa pequena exposição, provavelmente, dará frutos muito mais próximos dos ideais<br />
explicados pelos curadores da Menas. Com esse projeto, pretend<strong>em</strong>os mostrar que, apesar de<br />
uma grande exposição ter sido realizada <strong>em</strong> um grande museu com um grande objetivo,<br />
infelizmente, o comprometimento e a corag<strong>em</strong> foram pequenos diante da opinião<br />
preconceituosa e majoritária da sociedade.<br />
Referências<br />
Bagno, M. (1999). Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. Loyola : São Paulo.<br />
Leite, M. (2008). Preconceito e intolerância na linguag<strong>em</strong>. Contexto : São Paulo.<br />
Possenti, S. (2009a). Língua na mídia. São Paulo : Parábola.<br />
Possenti, S. (2009b). Malcomportadas línguas. São Paulo : Parábola.<br />
203
Psicolinguística<br />
204
Propriedades linguístico-textuais de livros acadêmicos introdutórios:<br />
subsídios para identificação de habilidades de leitura requeridas para alunos<br />
universitários<br />
Erica dos Santos Rodrigues (PUC-Rio)<br />
Juliana da Silva Neto (PUC-Rio) 1<br />
Resumo: Este trabalho t<strong>em</strong> por objetivo investigar a organização estrutural e os recursos linguísticos de manuais<br />
de ensino universitários, com vistas a prover subsídios para o estabelecimento de uma matriz de habilidades<br />
linguísticas e discursivas necessárias à leitura desse tipo de texto. A pesquisa é guiada por uma abordag<strong>em</strong><br />
psicolingüística da compreensão leitora [1,2] e incorpora resultados de estudos na área de gêneros textuais [3, 4].<br />
Foram analisados capítulos de livros introdutórios de Linguística, Administração de Empresas, Direito e<br />
Economia. Verificou-se que os capítulos de Linguística e de Direito apresentam estrutura similar <strong>em</strong> termos de<br />
processos retóricos e de organização gráfica. Já os de Administração e Economia caracterizam-se pela presença<br />
de textos secundários, que sintetizam ou compl<strong>em</strong>entam informações do texto central, marcado por sequências<br />
tipológicas expositivas. Para <strong>análise</strong> dos recursos lingüísticos, <strong>em</strong>pregou-se a ferramenta computacional Coh-<br />
Metrix-Port [5], que analisa textos a partir de métricas lexicais, sintáticas e discursivas. Destacamos, para fins<br />
deste resumo, o resultado do índice Flesch, que procura estabelecer uma correlação entre tamanhos médios de<br />
palavras e sentenças e facilidade de leitura. Segundo esse parâmetro, os capítulos de Administração e de<br />
Lingüística seriam enquadrados como textos muito difíceis (índice entre 0 - 25) e os capítulos de Direito e<br />
Economia, como textos difíceis (índice entre 25 - 50), adequados para alunos do ensino médio ou universitário.<br />
Questões associadas à complexidade sintática e custo de processamento também foram consideradas na pesquisa<br />
e serão discutidas com vistas à identificação de habilidades de leitura requeridas para alunos universitários <strong>em</strong><br />
cursos introdutórios.<br />
1) Introdução<br />
Este trabalho t<strong>em</strong> por objetivo geral investigar a organização estrutural e os recursos<br />
linguísticos de manuais de ensino universitários, com vistas a prover subsídios para o<br />
estabelecimento de uma matriz de habilidades linguísticas e discursivas necessárias à leitura<br />
desse tipo de texto. O estudo está sendo desenvolvido no âmbito do projeto de iniciação<br />
científica “Gêneros científicos e o processamento da leitura por alunos universitários”, que<br />
integra o projeto de pesquisa “A leitura e a produção escrita numa abordag<strong>em</strong><br />
psicolinguística: d<strong>em</strong>andas cognitivas e especificidades de processamento” (Rodrigues,<br />
2009).<br />
Reportam-se, neste artigo, resultados da <strong>análise</strong> de uma primeira amostra de capítulos<br />
de livros introdutórios, representativos das seguintes áreas de conhecimento: Linguística,<br />
Administração de Empresas, Direito e Economia. Buscou-se identificar<br />
diferenças/s<strong>em</strong>elhanças entre os textos dessas diferentes áreas de conhecimento de modo a<br />
poder avaliar <strong>em</strong> que medida pod<strong>em</strong> ser tomados como configurando um gênero acadêmico<br />
específico. Também foi objetivo da pesquisa analisar a complexidade sintática dos textos.<br />
Para este fim, fez-se uso da ferramenta computacional Coh-Metrix-Port (Scarton, Almeida &<br />
Aluísio, 2010), que analisa textos a partir de um conjunto de métricas léxico-gramaticais, e<br />
compl<strong>em</strong>entou-se a <strong>análise</strong> com um levantamento manual de estruturas sintáticas não<br />
1<br />
Aluna bolsista de Iniciação Científica pela FAPERJ (E-26/100.680/2010), orientanda da professora do<br />
Departamento de <strong>Letras</strong> da PUC-Rio Erica dos Santos Rodrigues.<br />
205
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
incluídas entre as métricas da ferramenta, mas que pod<strong>em</strong> prover informações relevantes<br />
acerca da legibilidade textual dos textos investigados.<br />
O trabalho está organizado da seguinte maneira: nas seções iniciais, faz-se uma breve<br />
exposição acerca do processamento da leitura e das habilidades requeridas para a<br />
compreensão de textos. São também feitas considerações acerca da possibilidade de se tratar<br />
os livros acadêmicos introdutórios como suporte de gêneros. Nas seções seguintes, são<br />
apresentados o corpus, a metodologia e os resultados da <strong>análise</strong> realizada. Encerra-se com<br />
algumas observações de caráter geral sobre os fatores que determinam o grau de legibilidade<br />
dos textos analisados e a delimitação de habilidades de leitura de livros acadêmicos<br />
introdutórios.<br />
2) O processamento da leitura<br />
Numa abordag<strong>em</strong> psicolinguística da leitura, a compreensão do discurso escrito envolve<br />
um conjunto de habilidades linguísticas e cognitivas, que vão desde a decodificação do<br />
material escrito e <strong>análise</strong> estrutural das sentenças a processos que implicam a integração de<br />
informações novas e a construção do sentido global do texto (Matlin, 2004; Rodrigues, 2009).<br />
Nesta visão, a leitura passa por processos e subprocessos que, <strong>em</strong>bora sejam<br />
simultâneos e interdependentes, pod<strong>em</strong> ter suas etapas explicadas separadamente (Perfetti,<br />
1994; Gernsbacher, 2002). Segundo Coscarelli (2002), o processamento da leitura pode ser<br />
dividido <strong>em</strong> dois processos básicos, que, por sua vez, subdivid<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> subprocessos. Os<br />
dois processos básicos seriam o processamento da forma linguística, que se subdivide <strong>em</strong><br />
processamento lexical e processamento sintático; e o processamento do significado, que se<br />
subdivide <strong>em</strong> construção da coerência local, da coerência t<strong>em</strong>ática e da coerência externa.<br />
O processamento lexical é o momento <strong>em</strong> que os caracteres escritos são reconhecidos<br />
como palavras da língua do leitor. Para tanto, são ativadas, no léxico mental, informações<br />
fonológicas, fonéticas, morfológicas, sintáticas e s<strong>em</strong>ânticas relativas às palavras. Quanto<br />
maior a proficiência do leitor, mais esse processo é involuntário e inconsciente. O<br />
processamento sintático também é involuntário e inconsciente e consiste na construção de<br />
representações sintáticas das sentenças. Essa construção servirá de base para o processamento<br />
do significado do texto.<br />
Após o processamento da forma linguística, o processamento da leitura passa para o<br />
domínio do significado, <strong>em</strong> que a coerência textual local e a coerência global são construídas.<br />
Nesta parte do processo, o leitor constrói o sentido das orações e das suas relações, o que<br />
resulta <strong>em</strong> proposições que servirão para a posterior construção da estrutura s<strong>em</strong>ântica do<br />
texto. Construída a coerência local, o leitor passará à coerência t<strong>em</strong>ática, relação que ele<br />
constrói entre as sentenças e que permitirá a ele estabelecer a representação s<strong>em</strong>ântica ou a<br />
macroestrutura proposicional de partes maiores do texto ou do texto inteiro. A construção da<br />
coerência externa é a parte <strong>em</strong> que o leitor fará as inferências, integrando seu conhecimento<br />
prévio para interpretar as informações do texto e avaliar a pertinência das mesmas.<br />
É importante, ainda, considerar que, durante a leitura, <strong>em</strong> especial no caso de gêneros<br />
textuais <strong>em</strong> que material visual (ilustrações, gráficos, tabelas etc.) dialoga fort<strong>em</strong>ente com o<br />
material verbal, como ocorre nos textos científicos, a delimitação do sentido global do texto<br />
se dá a partir da combinação de modalidades s<strong>em</strong>ióticas distintas (L<strong>em</strong>ke, 1998).<br />
206
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Na próxima seção, serão discutidos alguns fatores referentes às habilidades do próprio<br />
leitor que influenciam o processo de compreensão.<br />
2.1) Habilidades requeridas para a compreensão de textos<br />
Um conjunto de hipóteses v<strong>em</strong> sendo considerado na tentativa de explicar diferenças<br />
individuais no que tange a grau de proficiência <strong>em</strong> leitura (McNamara & O’Reilly, 2010;<br />
McNamara, Ozuru & D<strong>em</strong>psey, 2009). Há pesquisadores que afirmam que leitores com maior<br />
capacidade de m<strong>em</strong>ória de trabalho teriam mais facilidade de manter e processar as<br />
informações do texto, o que é crucial no estabelecimento de determinados tipos de<br />
inferências. Outros afirmam que o leitor proficiente t<strong>em</strong> a capacidade de suprimir informações<br />
irrelevantes <strong>em</strong> um dado contexto. Outra linha de investigação considera que conhecimento<br />
de mundo é fator crucial para diferenciar os leitores: os mais proficientes possuiriam maior<br />
conhecimento sobre o tópico do texto e seriam capazes de usá-lo durante a leitura. Há, ainda,<br />
uma quarta proposta, que se apóia no <strong>em</strong>prego de estratégias de leitura: leitores proficientes<br />
teriam mais conhecimento sobre estratégias de leitura, o que lhes permitiria usar<br />
eficient<strong>em</strong>ente seus conhecimentos.<br />
A literatura na área de leitura busca também investigar a interação entre fatores<br />
individuais, como os destacados acima, e propriedades textuais, <strong>em</strong> especial a questão da<br />
coesão textual. Os trabalhos consultados indicam que (i) textos com alto grau de coesão<br />
facilitam a compreensão textual; (ii) a compreensão global está nitidamente relacionada ao<br />
conhecimento prévio dos leitores e (iii) o grau <strong>em</strong> que os participantes se beneficiam de textos<br />
coesos depende das habilidades de leitura dos participantes. Leitores com conhecimento sobre<br />
o tópico do texto, mas que possu<strong>em</strong> dificuldades de processar pistas coesivas tend<strong>em</strong> a<br />
confiar mais <strong>em</strong> seu conhecimento de mundo e processar superficialmente o texto, o que t<strong>em</strong><br />
sido caracterizado como “expertise reversal effect”, segundo McNamara, Ozuru & D<strong>em</strong>psey<br />
(2009).<br />
3) Livro acadêmico introdutório<br />
Conforme indicado na introdução, nesta pesquisa investigam-se as propriedades<br />
linguístico-textuais de livros usados por alunos universitários iniciantes. Partindo da<br />
abordag<strong>em</strong> de gêneros discursivos (Bhatia, 2001; Marchuschi, 2003; Meurer, Bonini &<br />
Motta-Roth, 2005), buscou-se inicialmente caracterizar se esses livros pod<strong>em</strong> ser<br />
considerados um gênero específico.<br />
Marcuschi (2003) discute se livros didáticos constituiriam um gênero ou deveriam ser<br />
analisados como suporte de gêneros. O autor argumenta que “a incorporação dos gêneros<br />
textuais pelo LD não muda esses gêneros <strong>em</strong> suas identidades, <strong>em</strong>bora lhes dê outra<br />
funcionalidade”, ou seja, a natureza dos gêneros não se modifica, <strong>em</strong>bora tenham outros<br />
destinatários e apresent<strong>em</strong> objetivos didáticos específicos. Por isso, o livro didático, visto por<br />
muitos como um gênero textual, deve ser analisado como um suporte de diversos gêneros.<br />
Bezerra (2006) transpõe essa discussão para os gêneros textuais introdutórios <strong>em</strong> livros<br />
acadêmicos <strong>em</strong>pregado <strong>em</strong> três disciplinas (Linguística, Teologia e Biologia). Esse autor<br />
considera que, assim como o livro didático, o livro acadêmico também deve ser visto como<br />
suporte de gêneros. Neste trabalho, subscrev<strong>em</strong>os essa visão, procurando identificar, entre<br />
207
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
outros aspectos, os gêneros que compõ<strong>em</strong> os livros acadêmicos de cada área do<br />
conhecimento.<br />
4) Corpus<br />
O corpus selecionado para a pesquisa consiste no primeiro capítulo de livros de<br />
disciplinas introdutórias dos cursos de <strong>Letras</strong>, Administração de Empresas, Economia e<br />
Direito, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O primeiro capítulo é<br />
“<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, língua e linguística”, de Margarida Petter (2006); o segundo, “A administração e<br />
suas perspectivas: delineando o papel da administração”, de Idalberto Chievenato (2004); o<br />
terceiro, “Os dez princípios da economia”, de Paul Krugman e Robin Wells (2007), e o<br />
quarto, “A universalidade do fenômeno jurídico”, de Tercio Sampaio Junior (2008). O critério<br />
de seleção para os textos foi o de ser<strong>em</strong> os das primeiras disciplinas dos referidos cursos e por<br />
introduzir<strong>em</strong> conceitos básicos das respectivas áreas.<br />
5) Metodologia<br />
A metodologia seguida nesta pesquisa é orientada por uma abordag<strong>em</strong> psicolinguística<br />
da compreensão leitora (Perfetti, 1994; McNamara & O’Reilly, 2009) e envolve a <strong>análise</strong> de<br />
características referentes aos gêneros textuais presentes nos capítulos referidos acima, assim<br />
como o estudo do grau de legibilidade dos textos e da complexidade de estruturas léxicosintáticas<br />
específicas.<br />
Para caracterizar os gêneros textuais presentes nos capítulos, foram observadas, <strong>em</strong><br />
especial, a organização textual e as sequências tipológicas dos capítulos selecionados.<br />
Para investigar a complexidade de estruturas linguísticas específicas, <strong>em</strong>pregou-se a<br />
ferramenta computacional Coh-Metrix Port (Almeida & Aluísio, 2009). Essa ferramenta foi<br />
desenvolvida a partir das métricas da ferramenta Coh-Metrix, criada na Universidade de<br />
M<strong>em</strong>phis. A versão 1.0 do Coh-Metrix Port utiliza 34 das 60 métricas disponíveis na versão<br />
livre da ferramenta Coh-Metrix. Essas métricas levam <strong>em</strong> consideração vários níveis de<br />
<strong>análise</strong> linguística: léxico, sintático e discursivo. A ferramenta disponibiliza também o índice<br />
Flesch, uma fórmula que se baseia <strong>em</strong> aspectos mais materiais do texto – como número de<br />
palavras <strong>em</strong> sentenças e número de letras ou sílabas por palavras. O índice é obtido com as<br />
métricas Flesch Reading Ease e Flesch-Kincaid Grade Level, e permite, como se verá<br />
adiante, uma indicação da adequação do texto a nível de escolaridade.<br />
Junto ao <strong>em</strong>prego dessa ferramenta computacional, foi feita uma <strong>análise</strong> manual de<br />
estruturas léxico-sintáticas, à luz de literatura psicolinguística (Perfetti, 1994), com o objetivo<br />
de verificar quais dos textos apresentariam maior quantidade dessas estruturas linguísticas que<br />
d<strong>em</strong>andam custo de processamento. Para tanto, foram classificadas e quantificadas as<br />
seguintes estruturas: orações relativas, orações intercaladas, orações na voz passiva, orações<br />
reduzidas de gerúndio e negativas. Além dessas, foram contabilizadas as retomadas anafóricas<br />
entre orações adjacentes e períodos.<br />
Quanto à seleção e classificação dessas estruturas, cumpre esclarecer algumas<br />
especificidades. No que tange às orações relativas, foram selecionadas orações relativas de<br />
sujeito e objeto, ambas encaixadas ao centro ou à direita. Quanto às orações na voz passiva,<br />
foram selecionadas apenas orações na voz passiva analítica, com ou s<strong>em</strong> agente, e as<br />
208
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
reversíveis e irreversíveis. Quanto às negativas, foram selecionadas apenas as com o advérbio<br />
não. As retomadas anafóricas foram identificadas pelos pronomes d<strong>em</strong>onstrativos e<br />
respectivas variações.<br />
Os resultados das <strong>análise</strong>s apresentadas acima serão reportados na próxima seção.<br />
6) Resultados das <strong>análise</strong>s<br />
6.1) Análise da organização textual e sequências tipológicas dos capítulos de livros<br />
introdutórios<br />
Uma <strong>análise</strong> preliminar dos capítulos apontou a existência de gêneros textuais<br />
principais, por nós denominados nucleares, e de textos secundários, denominados satélites.<br />
Posteriormente, verificou-se a necessidade de precisar essa <strong>análise</strong>, buscando el<strong>em</strong>entos que<br />
caracterizass<strong>em</strong> esses diferentes gêneros. Assim, três características foram observadas nesta<br />
<strong>análise</strong> posterior: a composição textual, a disposição gráfica da informação e as sequências<br />
tipológicas predominantes no texto nuclear. A partir daí, observou-se que há s<strong>em</strong>elhanças<br />
entre os capítulos da área de Linguística e Direito e entre os da área de Administração e<br />
Economia. Os capítulos de Linguística e Direito apresentam composição textual s<strong>em</strong>elhante.<br />
O texto nuclear de Linguística é estruturado <strong>em</strong> seções, epígrafes na abertura do capítulo,<br />
bibliografia e sugestões de leitura comentadas. O texto nuclear de Direito é estruturado <strong>em</strong><br />
seções e representações esqu<strong>em</strong>áticas integradas ao texto. A disposição gráfica da informação<br />
nesses dois capítulos é sequencial. As sequências tipológicas predominantes nesses dois<br />
capítulos são expositivo-argumentativas. Destaca-se a retórica própria do discurso jurídico,<br />
que favorece esse tipo de sequência.<br />
Seguindo os resultados da <strong>análise</strong>, o capítulo de Administração apresenta, quanto à<br />
composição textual, textos nucleares e textos satélites, assim como o de Economia, sendo que<br />
o de Administração apresenta conteúdos e objetivos; estudos de caso; reflexões; resumo;<br />
glossário, e o de Economia apresenta conteúdos e objetivos; glossário e conceitos-chave.<br />
Ambos apresentam textos verbo-visuais. O de Administração traz tabelas, figuras e quadros, e<br />
o de Economia, tabela e charges. Ambos contêm exercícios, que consist<strong>em</strong> <strong>em</strong> estudos de<br />
caso, questões para revisão; probl<strong>em</strong>as e <strong>aplicações</strong>. A disposição gráfica das informações no<br />
texto de Administração é paralela, com quebra da estrutura sequencial do texto nuclear para<br />
inclusão de textos satélites, material verbo-visual e exercícios. O capítulo de Economia<br />
apresenta também disposição gráfica paralela, mas com pouca quebra na estrutura sequencial<br />
do texto nuclear e conta com textos satélites e material verbo-visual nas margens laterais. As<br />
sequências tipológicas predominantes nesses dois últimos capítulos também são expositivoargumentativas.<br />
6.2) Análise das estruturas linguísticas pela ferramenta Coh-Metrix Port<br />
Nesta seção, serão reportados os resultados referentes a algumas métricas fornecidas<br />
pela ferramenta Coh-Metrix Port para o processamento dos capítulos de Linguística,<br />
Administração, Economia e Direito<br />
Os textos “<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, língua e linguística” e “A universalidade do fenômeno jurídico”,<br />
foram submetidos integralmente, <strong>em</strong> apenas um processamento. Para os textos “A<br />
209
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
administração e suas perspectivas” e “Os dez princípios da Economia”, foi necessário realizar<br />
dois processamentos: o primeiro apenas com o texto nuclear, e o segundo, com os textos<br />
satélites.<br />
Em relação ao resultado do processamento desses capítulos pela ferramenta Coh-Metrix<br />
Port, foi realizada uma <strong>análise</strong> preliminar destacando-se as seguintes métricas: índice Flesch;<br />
número de palavras por sentenças; sentenças por parágrafos; palavras antes de verbos<br />
principais e incidência de conectivos causais.<br />
O índice Flesch busca uma correlação entre tamanhos médios de palavras e sentenças e<br />
a facilidade de leitura, sendo possível identificar 5 faixas de dificuldades de leitura para a<br />
Língua Portuguesa, que vão de textos muito fáceis (índice entre 75 - 100), adequados para<br />
leitores com escolaridade até a quarta série do ensino fundamental a textos muito difíceis<br />
(índice entre 0 - 25), voltados para áreas acadêmicas específicas. Dos textos examinados,<br />
apenas os capítulos de Administração (16,1) e de Linguística (23,5) pertenc<strong>em</strong> a essa faixa,<br />
sendo o valor do último bastante próximo ao valor do limite inferior da faixa dos textos<br />
considerados difíceis (índice entre 25 - 50), adequados para alunos do ensino médio ou<br />
universitário. Os textos de Direito e Economia, apresentaram, respectivamente, índice 28,5 e<br />
44,9, sendo o último o mais simples do conjunto examinado.<br />
É importante observar que o índice Flesch mede apenas a legibilidade com base <strong>em</strong><br />
fatores como tamanho de palavras e de sentenças e, nesse sentido, não pode ser tomado<br />
isoladamente como um parâmetro de avaliação da compreensibilidade textual.<br />
O parâmetro “número de palavras por sentença” mostra o resultado da relação entre o<br />
número de palavras do texto e o número de sentenças. Quanto ao conceito de sentença<br />
adotado na ferramenta, é importante observar que equivale ao de período. O texto de<br />
Economia foi o que apresentou valor menor, sugerindo a existência de períodos curtos.<br />
O parâmetro “número de sentenças por parágrafo” apresenta a relação entre o número<br />
de sentenças (=períodos) e o número de parágrafos. Administração e Direito foram os textos<br />
com valores mais altos. O capítulo de Economia ocupou uma posição intermediária e o de<br />
Linguística apresentou parágrafos com menor número de sentenças.<br />
A métrica “palavras antes de verbos principais” informa a média de palavras antes de<br />
verbos principais na cláusula principal da sentença (=períodos). Quanto a esta métrica, não há<br />
diferenças relevantes entre os textos examinados.<br />
A métrica “incidência de conectivos causais” mostra o índice de todos os conectivos<br />
causais positivos e negativos que aparec<strong>em</strong> no texto. Para esta métrica, destaca-se o número<br />
de ocorrências de conectivos causais e de operadores lógicos nos capítulos de Economia e de<br />
Direito.<br />
A tabela 1, a seguir, registra os resultados do processamento dos textos para as métricas<br />
utilizadas na <strong>análise</strong> preliminar.<br />
210
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>,<br />
língua e<br />
linguística<br />
A<br />
administração e<br />
suas<br />
perspectivas<br />
(Texto nuclear)<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A administração<br />
e suas<br />
perspectivas<br />
(Texto<br />
nuclear e<br />
textos<br />
satélites)<br />
Os dez<br />
princípios<br />
da<br />
economia<br />
(Texto<br />
nuclear)<br />
Os dez<br />
princípios<br />
da<br />
economia<br />
(Texto<br />
nuclear e<br />
textos<br />
satélites)<br />
A<br />
universalida<br />
de do<br />
fenômeno<br />
jurídico<br />
Índice Flesch 23.59 16.13 20.92 44.97 46.05 28.56<br />
Palavras por<br />
Sentenças<br />
(=Períodos)<br />
Sentenças por<br />
Parágrafos<br />
Palavras antes de<br />
verbos principais<br />
Incidência de<br />
Conectivos Causais<br />
(no de<br />
conectivos/(no de<br />
palavras/1000))<br />
25.91 20.39 18.40 17.99 16.45 24.78<br />
2.410 4.553 3.09 3.54 2.48 4.34<br />
5.16 6.45 5.02 5.55 5.71 4.98<br />
36.74 35.15 34.79 42.61 40.19 47.53<br />
Tabela 1: Resultados relativos ao processamento dos textos pela ferramenta Coh-Metrix-Port.<br />
6.3) Análise de estruturas léxico-sintáticas complexas<br />
Conforme explicado na seção sobre Metodologia, foi realizada uma <strong>análise</strong> manual de<br />
estruturas léxico-sintáticas complexas presentes nos capítulos do corpus. Abaixo, apresentamse<br />
três quadros, sendo os dois primeiros referentes ao percentual das estruturas léxicosintáticas<br />
complexas <strong>em</strong> relação ao total de orações de cada texto e, o último, uma tabela com<br />
um ranking dos textos segundo o grau de complexidade estabelecido com base nas estruturas<br />
examinadas.<br />
Neste primeiro gráfico, apresenta-se, para cada capítulo, o percentual das estruturas<br />
analisadas <strong>em</strong> relação ao total de orações.<br />
211
14,00<br />
12,00<br />
10,00<br />
8,00<br />
6,00<br />
4,00<br />
2,00<br />
0,00<br />
Ling Adm<br />
(nuclear)<br />
Adm<br />
(nuclear<br />
e satélite)<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Econ<br />
(nuclear)<br />
Econ<br />
(nuclear<br />
e satélite)<br />
Dir<br />
Red de gerúndio<br />
Passivas (analíticas)<br />
Intercaladas<br />
Negativas<br />
Relativas<br />
Retomada anafórica (d<strong>em</strong>.)<br />
Gráfico 1: Tipos de sentenças e retomada anafórica - percentual <strong>em</strong> relação ao total de orações<br />
do texto<br />
O primeiro conjunto de barras do gráfico refere-se ao capítulo de Linguística; o segundo<br />
e o terceiro, ao capítulo de Administração, nas duas versões analisadas; o quarto e o quinto,<br />
ao capítulo de Economia (também nas duas versões analisadas), e, por fim, o último conjunto<br />
refere-se ao capítulo de Direito. Neste gráfico, destacam-se os resultados do capítulo de<br />
Direito, para o qual os percentuais de orações reduzidas de gerúndio, intercaladas, negativas e<br />
relativas são os maiores, a saber: 5,9%, 3,4%, 7,7% e 12,1%, respectivamente. Ressalta-se<br />
também o alto percentual de passivas analíticas do capítulo de Linguística (6,6%) e o de<br />
retomadas anafóricas no texto nuclear do capítulo de Administração (10,3%).<br />
Em relação especificamente às orações relativas, t<strong>em</strong>-se atribuído maior complexidade<br />
de processamento às orações relativas de objeto. Por esse motivo, na <strong>análise</strong> das orações<br />
relativas, separaram-se as de sujeito e as de objeto. O segundo gráfico mostra a distribuição,<br />
<strong>em</strong> percentual, de orações relativas de sujeito e de objeto <strong>em</strong> relação ao total de orações de<br />
cada texto.<br />
212
9,00<br />
8,00<br />
7,00<br />
6,00<br />
5,00<br />
4,00<br />
3,00<br />
2,00<br />
1,00<br />
0,00<br />
Ling Adm<br />
(nuclear)<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Adm<br />
(nuclear e<br />
satélite)<br />
Econ<br />
(nuclear)<br />
Econ<br />
(nuclear e<br />
satélite)<br />
Dir<br />
Relativas de sujeito<br />
Relativas de objeto<br />
Gráfico 2: Distribuição de orações relativas <strong>em</strong> relação ao total de orações de cada texto.<br />
Nesse gráfico, destaca-se o capítulo de Direito como o que apresenta o maior percentual<br />
de orações relativas (sujeito + objeto) <strong>em</strong> relação ao total de orações (12,1 %). Em relação ao<br />
percentual de relativas de objeto (consideradas mais complexas), o capítulo de Economia<br />
merece destaque (2,98 – Econ (nuclear); 2,73 – Econ (nuclear e satélite).<br />
Com o fim de classificar quais dos capítulos apresentavam maior complexidade<br />
sintática, foi feita uma <strong>análise</strong> <strong>em</strong> que se estabeleceu uma escala de complexidade <strong>em</strong> que o<br />
número 1 corresponde ao texto mais complexo e o número 6, ao menos complexo. Na tabela<br />
abaixo, os textos foram classificados de 1 a 6 com base nos valores do índice Flesch e ao<br />
percentual de orações reduzidas de gerúndio, orações passivas, intercaladas, negativas,<br />
relativas e retomadas anáforas. Os valores referentes a esses parâmetros foram somados e<br />
divididos pelo número de parâmetros. Esse é um cálculo preliminar, no qual todos os índices<br />
têm o mesmo peso.<br />
Índice<br />
Flesch<br />
Reduzi<br />
das de<br />
ger.<br />
Passivas <br />
Intercaladas <br />
Negativas<br />
Relati-<br />
vas<br />
Anáfora<br />
Soma<br />
Div p/<br />
métrica<br />
Class.<br />
Final<br />
Lingüística 3 2 1 4 2 2 5 19 2,7 2<br />
Adm (nuclear) 1 5 5 2 5 4 1 23 3,3 3<br />
Adm (nuclear e satélite) 2 3 4 3 6 3 4 25 3,6 4<br />
Econ (nuclear) 5 6 6 6 3 6 2 34 4,9 5<br />
Econ (nuclear e satélite) 6 4 3 5 4 5 3 30 4,3 6<br />
Direito 4 1 2 1 1 1 6 16 2,3 1<br />
Tabela 2: Ranking dos capítulos segundo grau de complexidade (1= mais complexo; 6= menos<br />
complexo)<br />
213
7) Considerações finais<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Os resultados preliminares da pesquisa indicam que, para a delimitação de habilidades<br />
de leitura necessárias para a compreensão de livros acadêmicos introdutórios, faz-se<br />
necessário <strong>em</strong>preender uma <strong>análise</strong> integrada de diferentes fatores que contribu<strong>em</strong> para a<br />
legibilidade desses textos. Além das propriedades léxico-gramaticais, é preciso considerar<br />
aspectos de sua composição estrutural, as sequencias tipológicas mais recorrentes, os recursos<br />
multimodais <strong>em</strong>pregados e como estes fatores se articulam para a construção do sentido<br />
global dos textos. Isso porque, conforme verificado a partir da comparação dos capítulos<br />
quanto a seu grau de legibilidade, um texto pode se apresentar como menos complexo <strong>em</strong><br />
termos sintáticos, mas possuir uma complexa composição estrutural e probl<strong>em</strong>ática integração<br />
entre os gêneros verbo-visuais <strong>em</strong>pregados e o texto nuclear <strong>em</strong> torno do qual o capítulo se<br />
organiza.<br />
Além disso, a pesquisa aponta para a necessidade de se considerar a atribuição de pesos<br />
distintos às métricas usadas para identificar o grau de complexidade sintática das estruturas<br />
específicas dos capítulos. Isso possibilitará uma <strong>análise</strong> mais fina da legibilidade dos textos.<br />
O trabalho sinaliza, ainda, que a delimitação de habilidades de leitura necessárias à<br />
compreensão de livros acadêmicos introdutórios requer que sejam consideradas as<br />
especificidades de cada área do conhecimento no que diz respeito aos traços linguísticos e<br />
características de organização textual dos gêneros (verbais e visuais) mais comumente<br />
encontrados nesses livros.<br />
Referências<br />
ALMEIDA, Daniel Machado de; ALUÍSIO, Sandra Maria. Manual de uso do Coh-Metrix Port 1.0.<br />
Technical Report NILC-TR-09-05, 13 p. Agosto 2009, São Carlos-SP.<br />
BEZERRA, Benedito Gomes. Gêneros introdutórios <strong>em</strong> livros acadêmicos. 2006. 256 p. Tese de<br />
Doutorado – Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.<br />
BHATIA, Vijay K. Análise de gêneros hoje. Revista de <strong>Letras</strong>, Fortaleza, v. 1/2, n. 23, p. 102-115,<br />
jan./dez. 2001 [Tradução do artigo Genre analysis today. Revue Belge de Philologie et d’Histoire, v.<br />
75, n. 3, p. 629-652, 1997, por Benedito Gomes Bezerra].<br />
CHIAVENATO, Idalberto. A administração e suas perspectivas: delineando o papel da administração.<br />
In: ______. Introdução à <strong>teoria</strong> geral da administração. 7ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. pp. 9-<br />
25.<br />
GERNSBACHER, M. Language comprehension. In: L. Nadel (Ed.). Encyclopedia of Cognitive<br />
Sciences. London, UK: Nature Publishing Group, 2002.<br />
JUNIOR, T. S. F. Introdução ao Estudo do Direito. In: ______. A universalidade do fenômeno<br />
jurídico. São Paulo: Atlas, 2008. pp. 31-47.<br />
KRUGMAN, Paul R.; WELLS, Robin. Introdução à economia. In: ______. Os dez princípios da<br />
economia. Rio de Janeiro: Campus, Elsevier, 2007. pp. 3-18.<br />
214
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
LEMKE, Fay. Multiplying meaning: visual and verbal s<strong>em</strong>iotcs in scientific text. In: MARTIN, J.R.;<br />
VEEL, Robert (Ed.). Reading Science: critical and functional perspectives on discourses of science.<br />
London: Routledge, 1998. PP. 87-113.<br />
MARCUSCHI, Luiz Antônio. A questão do suporte dos gêneros textuais. A questão do suporte dos<br />
gêneros textuais. DLCV: Língua, linguística e literatura. João Pessoa, v. I, n. 1, p. 9-40, out. 2003.<br />
MATLIN, Margaret W. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> I: Introdução à linguag<strong>em</strong> e à compreensão da linguag<strong>em</strong>. In:<br />
_____. Psicologia cognitiva. Rio de Janeiro: LTC, 2004, cap. 8, p.186 – 213.<br />
MCNAMARA, Danielle S. The importance of teaching reading strategies. Perspectives on language<br />
and literacy, p. 34-40, Spring 2009.<br />
MCNAMARA, Danielle S.; O’REILLY, T. Theories of comprehension skill: knowledge and<br />
strategies versus capacity and suppression. In: A. M. F. Columbus (Ed.). Advances in Psychology<br />
Research, v.62, Hauppauge, NY: Nova Science Publishers, 2010, p. 113-136.<br />
MEURER, J. L; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. Gêneros – Teorias, Métodos e Debates. São<br />
Paulo: Parábola, 2005<br />
OZURU, Yasuhiro; DEMPSEY, Kyle; MCNAMARA, Danielle S. Prior knowledge, reading skill, and<br />
text cohesion in the comprehension of science texts. Learning and instruction, v.19, n. 3, p.228-242,<br />
jun. 2009.<br />
PERFETTI, C. A. Psycholinguistics and reading ability. In: GernsbacheR, M. A. (Ed.). Handbook of<br />
psycholinguistics. San Diego: Acad<strong>em</strong>ic Press, 1994, p. 849-894.<br />
PETTER, Margarida. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, língua e linguística. In: FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à<br />
linguística I: objetos teóricos. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2006. pp. 11-25.<br />
RODRIGUES, E. dos S. A leitura e a produção escrita numa abordag<strong>em</strong> psicolinguística:<br />
d<strong>em</strong>andas cognitivas e especificidades de processamento. Projeto de Pesquisa, Departamento de<br />
<strong>Letras</strong>, PUC-Rio, 2009.<br />
SCARTON, C. E., ALMEIDA, D. M. E ALUÍSIO, S. M. Análise da Inteligibilidade de textos via<br />
ferramentas de Processamento de Língua Natural: adaptando as métricas do Coh-Metrix para o<br />
Português. Linguamática, v. 2, n. 1, p. 45-62, Abril 2010.<br />
215
O EFEITO DA NEGAÇÃO EM SENTENÇAS COM PREDICADOS<br />
FACTIVOS: DADOS DA AQUISIÇÃO<br />
Sammy Cardozo Dias (UERJ)<br />
Resumo: Este trabalho t<strong>em</strong> por objetivo abordar o fenômeno da factividade verbal no tocante ao<br />
desenvolvimento da compreensão do efeito da negação no processo de aquisição do português brasileiro. Para<br />
tanto, fez-se uso de uma metodologia experimental de viés psicolinguístico, através da técnica de escolha forçada<br />
(forced-choice designer). Levando <strong>em</strong> consideração o que a literatura sobre factividade defende, experimentos<br />
foram aplicados <strong>em</strong> crianças de 3;6 a 6;0 (divididas <strong>em</strong> dois grupos etários: 3;6-4;6 e 5;0-6;0), de ambos os<br />
sexos, da pré-escola. Nos testes, fez-se uso de um material composto de sentenças complexas afirmativas e<br />
negativas com predicados factivos e não-factivos. O objetivo do teste consistiu <strong>em</strong> verificar se crianças de<br />
determinadas faixas etárias (i) perceb<strong>em</strong> o valor de verdade <strong>em</strong> sentenças completivas de acordo com a<br />
pressuposição do verbo da sentença matriz e (ii) compreend<strong>em</strong> o efeito da negação <strong>em</strong> verbos/ predicados<br />
factivos, <strong>em</strong> duas condições estruturais e sintáticas distintas: ora com a sentença matriz sendo afirmativa, ora<br />
com a sentença matriz sendo negativa. Foram criadas quatro sentenças <strong>em</strong> suas versões afirmativa e negativa,<br />
duas delas factivas (com o verbo saber e o predicado ser surpresa) e outras duas não-factivas (com o verbo<br />
achar e o predicado ser possível). Como procedimento, foi apresentado às crianças um determinado cenário<br />
formado por figuras e pedido a elas que apontass<strong>em</strong> para a figura que melhor combinasse com o dito pelo<br />
experimentador. Computou-se o número de vezes que a figura compatível com o evento narrado na sentença<br />
completiva era escolhida. Os resultados foram submetidos ao pacote de <strong>análise</strong> estatística ezANOVA e<br />
d<strong>em</strong>onstram que as crianças mais novas ainda não são capazes de diferenciar verbos factivos e não-factivos <strong>em</strong><br />
relação ao escopo da negação. Para esse grupo, há uma distinção na interpretação de sentenças afirmativas e<br />
negativas com predicados factivos, assim como entre sentenças afirmativas e negativas com predicados nãofactivos.<br />
Os achados também evidenciam que as crianças mais velhas e os adultos apresentam tal distinção para<br />
o segundo grupo, mas não para as sentenças factivas, confirmando que o escopo da negação não atinge a<br />
sentença completiva.<br />
1) Introdução<br />
O fenômeno da factividade, no âmbito da linguística, <strong>em</strong> sentido amplo, está<br />
relacionado à propriedade que certos itens lexicais ou estruturas gramaticais específicas<br />
possu<strong>em</strong> de pressupor 1 um valor de verdade para a proposição expressa pela estrutura a que<br />
pertenc<strong>em</strong>. Em termos específicos, no entanto, o termo factivo, oriundo do fenômeno da<br />
factividade, consolidou-se, a partir do trabalho pioneiro de Kiparsky e Kiparsky (1971) com<br />
dados do inglês, como a designação de um conjunto de verbos, os quais admit<strong>em</strong> uma<br />
sentença como seu compl<strong>em</strong>ento e cujo uso pressupõe a veracidade da proposição expressa<br />
por essa sentença.<br />
Uma outra questão igualmente relevante acerca da factividade, também presente no<br />
português, diz respeito ao fato de a compreensão do escopo da negação <strong>em</strong> sentenças<br />
complexas com verbos factivos e não-factivos ser distinta. Com predicados não-factivos, o<br />
1<br />
Referimo-nos aqui à relação estabelecida entre a factividade e a pressuposição linguística por Kirspark &<br />
Kirspark (1971). Vista separadamente da factividade, a pressuposição lingüística pode ser definida como um<br />
el<strong>em</strong>ento que integra o sentido implícito de certos enunciados. É s<strong>em</strong>pre introduzida por itens lexicais ou<br />
estruturas gramaticais específicas, como certos advérbios (como novamente, lamentavelmente) e adjetivos (igual<br />
surpreso, triste) e construções sintáticas (como parou de) (SOUZA, 2000). Algumas palavras denotativas (até,<br />
só, ainda e também) igualmente introduz<strong>em</strong> uma pressuposição. No caso da factividade verbal, todavia, trata-se<br />
de uma pressuposição disparada por uma determinada construção sintática, que são certos verbos, <strong>em</strong> algumas<br />
condições sintático-s<strong>em</strong>ânticas.<br />
216
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
escopo da negação atinge a sentença completiva, diferent<strong>em</strong>ente do que ocorre com<br />
predicados factivos, cuja sentença compl<strong>em</strong>ento é imune ao escopo da negação (HOPMANN<br />
& MARATSOS, 1977; SCOVILLE & GORDON, 1979; PHINNEY, 1981; ROORYCK,<br />
1992; GAJEWSKI, 2005). Se compararmos, por ex<strong>em</strong>plo, a compreensão que a criança faz<br />
do escopo da negação na sentença complexa não-factiva “Não é possível que a piscina tenha<br />
esvaziado” com a da sentença complexa factiva “Não é surpresa que a piscina tenha<br />
esvaziado”, ver<strong>em</strong>os que essa distinção não é reconhecida prontamente por elas no período de<br />
aquisição de linguag<strong>em</strong>, conforme d<strong>em</strong>onstram resultados obtidos, com dados do inglês, por<br />
Hopmann e Maratsos (1977) e por Abbeduto e Rosenberg (1984). Os primeiros autores,<br />
inclusive, suger<strong>em</strong> que apenas após os 6 anos de idade a factividade é dominada pelas<br />
crianças a ponto de permitir que o escopo da negação seja adequadamente interpretado. Já os<br />
segundos autores indicam que já a partir dos 4 anos a criança estaria apta a distinguir o caráter<br />
peculiar dos verbos factivos. Há outros autores, todavia, que chegam a afirmar que as<br />
sentenças factivas que contém negação são um probl<strong>em</strong>a para as crianças (barreira da<br />
negação), sendo reconhecida por elas apenas <strong>em</strong> torno dos 8 anos (BASSANO, 1985;<br />
BASSANO & CHAMPAUD, 1983; PHINNEY, 1981).<br />
Além do aspecto de pressuposição dos verbos factivos e da compreensão do escopo da<br />
negação, foco do nosso estudo, o fenômeno da factividade pode ser visto ainda sob outro<br />
ponto de vista. Em termos sintáticos, os verbos factivos subcategorizam uma sentença<br />
encaixada, cujo domínio pelas crianças costuma ocorrer por volta dos 3 anos de idade.<br />
Adicionalmente, sentenças factivas são consideradas ilhas fracas, isto é, admit<strong>em</strong> a extração<br />
de argumentos e adjuntos referenciais a partir da sentença subordinada, mas não de adjuntos<br />
não – referenciais (CINQUE, 1990; AUGUSTO, 2003):<br />
(1) Qu<strong>em</strong> o Pedro sabe que vai chegar tarde? O Pedro sabe qu<strong>em</strong> que vai chegar tarde?<br />
(2) Por que o Pedro sabe que a Maria vai chegar tarde? O Pedro sabe por que que a<br />
Maria vai chegar tarde.<br />
Assim, v<strong>em</strong>os que a sentença (2) não admite a interpretação de por que com a<br />
sentença encaixada – o motivo pelo qual a Maria vai chegar tarde. Tratando esta questão <strong>em</strong><br />
termos de aquisição, há autores como Roeper & De Villiers (1992) e De Villies, Curran, De<br />
Munn & Phillip (1997) que defend<strong>em</strong> que as crianças tratam o movimento sintático como<br />
uma barreira (barreira do movimento) e somente por volta dos 7 anos elas conseguiriam<br />
interpretar corretamente este movimento.<br />
Seja a indicação da sensibilidade de crianças a diferenças existentes entre sentenças<br />
completivas factivas e não-factivas (ABBEDUTO & ROSENBERG, 1984), a defesa de uma<br />
distinção no modo pelo qual as crianças interpretam as sentenças completivas factivas<br />
(FALMAGE et al, 1994); LYON & FLAVELL, 1994; SCHULZ, 2002; 2003), ou a idéia de<br />
que a negação não influi nos predicados factivos negativos, possibilitando a mesma leitura<br />
s<strong>em</strong>pre (GAJEWSKI, 2005) e que, <strong>em</strong> função disso, sentenças que contém negação são um<br />
probl<strong>em</strong>a para a aquisição <strong>em</strong> período de aquisição (BASSANO, 1985; BASSANO &<br />
CHAMPAUD, 1983; PHINNEY, 1981), todos esses postulados foram propostos com base no<br />
estabelecimento de uma distinção entre os verbos ditos factivos e os não-factivos. Uma breve<br />
exposição a esse respeito está na seção abaixo.<br />
217
2) O fenômeno da Factividade Verbal<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A consolidação do termo factivo deu-se a partir do trabalho pioneiro de Kiparsky &<br />
Kiparsky (1971), que o <strong>em</strong>pregaram para se referir a uma determinada classe de verbos,<br />
quando estes eram <strong>em</strong>pregados <strong>em</strong> sentenças complexas. A partir do valor de verdade<br />
expresso pela proposição da sentença completiva e nas propriedades s<strong>em</strong>ântico-sintáticas<br />
desses verbos, os autores relacionaram-nos a um caso particular de pressuposição lingüística,<br />
<strong>em</strong> que uma estrutura sintática própria é capaz de garantir que o que é expresso pela sentença<br />
completiva corresponda a uma proposição verdadeira.<br />
Assim, a factividade passou a ser relacionada à designação de um conjunto de verbos<br />
(que descrev<strong>em</strong>, normalmente, estados cognitivos, como saber e esquecer, por ex<strong>em</strong>plo) os<br />
quais admit<strong>em</strong> uma sentença como seu compl<strong>em</strong>ento e cujo uso pressupõe a veracidade da<br />
proposição expressa por essa sentença. Desse modo, considera-se que os factivos <strong>em</strong>pregados<br />
na sentença matriz introduz<strong>em</strong> a pressuposição de que a proposição expressa pela oração<br />
encaixada é verdadeira.<br />
Não obstante o seu conceito estar ligado, normalmente, a verbos, a factividade pode,<br />
igualmente, aplicar-se a advérbios 2 e adjetivos 3 . Na sentença (1), por ex<strong>em</strong>plo, o <strong>em</strong>prego do<br />
adjetivo “surpreso”, que compõe a sentença matriz “João está surpreso”, só se justifica a partir<br />
da confirmação do valor de verdade da proposição expressa pela sentença compl<strong>em</strong>ento “que<br />
o seu time tenha perdido o jogo”. O que corresponde a dizer que a “surpresa de João” só é<br />
compreensível caso o time dele tenha, de fato, perdido o jogo.<br />
(3) João está surpreso que o seu time tenha perdido o jogo.<br />
Como já mencionado, Kiparsky & Kiparsky (1971) foram os pioneiros a relacionar a<br />
factividade à pressuposição, ao investigar uma certa classe de verbos, como “saber”,<br />
“esquecer” e “l<strong>em</strong>brar”, correlacionando as suas características sintáticas e s<strong>em</strong>ânticas. Para<br />
tanto, os autores, após nomear<strong>em</strong> tais verbos como factivos, atribuíram-lhes, como<br />
característica s<strong>em</strong>ântica, a propriedade de introduzir<strong>em</strong> a pressuposição de que a sentença<br />
compl<strong>em</strong>ento expressa uma proposição verdadeira. Segundo os próprios (1971: 348): “O<br />
falante pressupõe que a sentença completiva expressa uma proposição verdadeira, e faz<br />
alguma afirmação sobre aquela proposição”.<br />
De acordo com a literatura, o teste tradicional usado para verificar se a proposição da<br />
oração encaixada é pressuposta como verdadeira consiste <strong>em</strong> negar o que foi expresso na<br />
sentença matriz, como d<strong>em</strong>onstram (4) e (5):<br />
(4) Letícia esqueceu que os livros tinham chegado.<br />
2 Como lamentavelmente, deploravelmente, lastimavelmente e compreensivelmente (AUGUSTO, 2003).<br />
3 Igual a (estar/ ser) surpreso, (estar/ ser) feliz e (estar/ ser) triste (HOPMANN & MARATSOS, 1977).<br />
218
(pressuposto: os livros tinham chegado)<br />
(5) Letícia não esqueceu que os livros tinham chegado.<br />
(pressuposto: os livros tinham chegado)<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A <strong>análise</strong> dessas sentenças serve para ilustrar o que ficou conhecido como<br />
pressuposição factual 4 . Há nelas a pressuposição, disparada pelo verbo factivo esquecer, de<br />
que “os livros tinham chegado”, realmente. A negação, explicitada <strong>em</strong> (5), não incide sobre o<br />
pressuposto, que continua com o seu valor de verdade preservado, mas sobre o evento<br />
realizado a respeito do fato pressuposto. Embora pareça redundância afirmar, o pressuposto<br />
permanece sendo tomado como um fato.<br />
Já a característica sintática, tradicionalmente associada aos verbos factivos e apontada<br />
por Kiparsky & Kiparsky (1971), consiste na possibilidade de esses verbos ser<strong>em</strong> seguidos<br />
pelo sintagma o fato, conforme ilustra o caso a seguir:<br />
(6) Joana sabia o fato (de) que a aula tinha sido cancelada.<br />
Em (7) e (8) pod<strong>em</strong>os perceber que os verbos não-factivos resist<strong>em</strong> à sua presença 5 :<br />
(7) * Camila disse o fato de que o professor aplicará a prova.<br />
(8) * Fernanda acha o fato de que a escola era distante.<br />
Uma outra questão observada por Kiparsky & Kiparsky (1971) acerca da presença do<br />
sintagma o fato, acompanhando os verbos factivos, é a obrigatoriedade do seu caráter<br />
definido, específico, que explica a agramaticalidade da sentença (9), que segue abaixo:<br />
(9) * Carlos esqueceu um fato de que o ônibus não atrasava.<br />
Tal situação permite que se defenda uma provável aproximação entre a característica<br />
s<strong>em</strong>ântica deflagrada pela presença de verbos factivos – que é a de pressupor a verdade da<br />
sentença compl<strong>em</strong>ento - e a obrigatoriedade de definitude do sintagma o fato, s<strong>em</strong>pre que este<br />
estiver presente numa construção factiva (AUGUSTO, 2003). As sentenças seguintes (10) e<br />
(11) pod<strong>em</strong> ilustrar essa questão:<br />
4<br />
Augusto (2003) traça um paralelo entre a pressuposição factual e a pressuposição existencial (FREGE, 1892).<br />
Segundo ela, o valor de verdade de uma sentença, ligada à pressuposição factual, seria a sua referência, el<strong>em</strong>ento<br />
próprio da pressuposição existencial.<br />
5<br />
Convém destacar, porém, que há verbos não-factivos que aceitam a presença deste sintagma, como o verbo<br />
“alegar” (FIGUEIRA, 1974) e verbos de crença, como “acreditar” (PIRES DE OLIVEIRA, SILVÉRIO,<br />
FIGUEIREDO SILVA, 1999).<br />
219
(10) * Paulo l<strong>em</strong>brou uma situação qualquer.<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(11) Paulo l<strong>em</strong>brou uma situação que tinha ocorrido conosco.<br />
No apêndice do artigo, os Kiparsky & Kiparsky (1971: 366), inclusive, faz<strong>em</strong> questão<br />
de mencionar a sua visão acerca da correspondência existente entre verdade e especificidade:<br />
“Há uma correspondência sintática e s<strong>em</strong>ântica entre valor de verdade e<br />
especificidade. Os verbos factivos de uma sentença matriz, os quais pressupõ<strong>em</strong> que uma<br />
sentença completiva expressa uma proposição verdadeira, não admit<strong>em</strong> como seu<br />
compl<strong>em</strong>ento uma sentença que não esteja relacionada a um evento específico. (…) Talvez<br />
isto indique que, <strong>em</strong> algum nível suficient<strong>em</strong>ente abstrato da s<strong>em</strong>ântica, verdade e<br />
especificidade sejam redutíveis ao mesmo conceito”.<br />
Uma vez definidos os aspectos s<strong>em</strong>ântico-sintáticos dos verbos factivos, diversos<br />
trabalhos surgiram desde o fim da década de 70 do século passado com o intuito de investigar<br />
a factividade verbal sob a perspectiva da aquisição de linguag<strong>em</strong>, isto é, considerando-a como<br />
um conhecimento lingüístico que se desenvolve na criança. Uma breve menção a alguns<br />
desses estudos será vista a seguir.<br />
3) A Factividade Verbal no âmbito da Aquisição de <strong>Linguag<strong>em</strong></strong><br />
A questão do domínio dos verbos factivos há muito t<strong>em</strong>po t<strong>em</strong> ganhado um espaço<br />
amplo na literatura de aquisição. Assim, <strong>em</strong> diversos trabalhos, o desenvolvimento da<br />
compreensão da factividade t<strong>em</strong> sido investigado. Nesses estudos, avalia-se se as crianças<br />
perceb<strong>em</strong> o valor de verdade contido na proposição de uma sentença completiva factiva, a<br />
partir da leitura que elas faz<strong>em</strong> de uma dada estrutura completiva de sentenças matrizes com<br />
verbos factivos e não-factivos, durante o processo de aquisição de linguag<strong>em</strong>.<br />
É observado também nesses trabalhos se as crianças são capazes de fazer<br />
interpretações corretas acerca do escopo da negação <strong>em</strong> sentenças com verbos ou predicados<br />
negativos. Com o foco voltado para esses dois propósitos, busca-se, então, responder uma<br />
questão central da pesquisa com verbos factivos no âmbito da aquisição de linguag<strong>em</strong>: com<br />
qual idade a criança seria capaz de dominar a factividade ?<br />
Muitos pesquisadores têm se dedicado a responder a essa questão. O que se vê, no<br />
entanto, é uma falta de consenso nesse sentido. Hopmann & Maratsos (1977), por ex<strong>em</strong>plo,<br />
num dos primeiros estudos que trata da factividade como um conhecimento linguístico<br />
adquirido pela criança, ao observar<strong>em</strong> a compreensão das crianças diante da pressuposição<br />
factiva, a partir de sentenças complexas afirmativas e negativas compostas por verbos factivos<br />
e não-factivos, propuseram que o domínio da factividade se daria a partir dos 6 anos. Para<br />
Abbeduto & Rosenberg (1984), que investigaram o desenvolvimento da pressuposição do<br />
verbo “saber” e de outros verbos factivos, o domínio da factividade ocorreria mais cedo, após<br />
aos 4 anos de idade. Já Schulz (2002; 2003), ao testar se crianças eram sensíveis ao tipo de<br />
sentença matriz factiva e ao tipo de sentença completiva, e se elas reconheceriam o valor de<br />
verdade de sentenças completivas baseadas <strong>em</strong> propriedades discursivo-s<strong>em</strong>ânticas, defendeu<br />
que apenas entre 3;7 e 7;0 domina-se a factividade. Por outro lado, num estudo <strong>em</strong> que se<br />
verificaram possíveis diferenças na aquisição de verbos factivos verdadeiros e s<strong>em</strong>i-factivos,<br />
220
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Léger (2007), conclui que o domínio da factividade, especificamente dos s<strong>em</strong>i-factivos, só se<br />
daria após os 11 anos de idade. Considerado o trabalho de Scoville & Gordon (1979), todavia,<br />
o que se vê é, ainda, maior discordância. Ao avaliar<strong>em</strong> a habilidade de crianças <strong>em</strong><br />
reconhecer <strong>em</strong> sentenças factivas o escopo da negação presente na sentença completiva, os<br />
autores afirmam que só por volta dos 14 anos a criança seria capaz de dominar a factividade<br />
<strong>em</strong> todos os seus aspectos.<br />
Como v<strong>em</strong>os, há uma falta de consenso na literatura sobre a idade <strong>em</strong> que a aquisição<br />
da factividade estaria dominada. Além disso, revisando os trabalhos supracitados, percebe-se<br />
que não há também uma unanimidade <strong>em</strong> relação à idade que a criança seria capaz de<br />
dominar outro aspecto fundamental do desenvolvimento do conhecimento acerca da<br />
factividade: a compreensão do escopo da negação <strong>em</strong> verbos factivos. Segu<strong>em</strong>, na seção<br />
abaixo, algumas considerações a esse respeito.<br />
4) A compreensão do efeito da negação sobre sentenças completivas com verbos verbos<br />
factivos e não-factivos<br />
A atribuição a certos verbos e predicados de um caráter factivo está condicionado<br />
diretamente ao seu <strong>em</strong>prego <strong>em</strong> uma sentença complexa, que pode ser ora negativa, ora<br />
afirmativa. Nos dois casos, a idéia da pressuposição de um valor de verdade disparada pelo<br />
verbo da sentença matriz permanece (HOPMANN & MARATSOS, 1977; SCOVILLE &<br />
GORDON, 1979; PHINNEY, 1981; ROORYCK, 1992; GAJEWSKI, 2005), ou seja, a<br />
negação não influi nos predicados negativos, gerando o mesmo sentido, o que não ocorre com<br />
os verbos não-factivos, conforme diss<strong>em</strong>os anteriormente.<br />
Dessa maneira, uma questão importante tratada pela literatura de aquisição de verbos<br />
factivos é a investigação do desenvolvimento da compreensão do escopo da negação presente<br />
<strong>em</strong> uma sentença matriz.<br />
Hopmann & Maratsos (1977), por ex<strong>em</strong>plo, utilizando dados da língua inglesa,<br />
investigaram algo que pudesse dar conta desse desenvolvimento: o conhecimento que as<br />
crianças tinham diante da compreensão do valor de verdade de proposições expressas por<br />
sentenças completivas de sentenças matrizes afirmativas e negativas, com verbos factivos e<br />
não-factivos.<br />
Os resultados encontrados mostram que, <strong>em</strong> geral, as crianças negaram mais<br />
freqüent<strong>em</strong>ente o compl<strong>em</strong>ento nas sentenças negativas factivas do que nas sentenças<br />
afirmativas factivas (P
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Negation Tendency (HOPMANN & MARATSOS, 1977). Em outras palavras, as crianças<br />
faz<strong>em</strong> a leitura de que a partícula negativa contida na sentença matriz nega a proposição<br />
contida na sentença completiva. Isto equivale a dizer que elas não tratam os verbos factivos<br />
negativos da mesma forma que os verbos factivos afirmativos, d<strong>em</strong>onstrando que as crianças<br />
de determinada faixa etária respond<strong>em</strong> diferent<strong>em</strong>ente quanto à pressuposição presente no<br />
compl<strong>em</strong>ento das sentenças complexas, sejam elas afirmativas e negativas. Assim, percebese<br />
que as crianças não têm ainda entendimento completo da factividade. Observ<strong>em</strong>os as<br />
sentenças (12) e (13):<br />
(12) a. O governo ignorou que os juros tenham subido.<br />
b. O governo não ignorou que os juros tenham subido.<br />
(13) O governo não ignorou que os juros tenham subido.<br />
(= os juros não tenham subido)<br />
O que v<strong>em</strong>os <strong>em</strong> (13) corresponde exatamente a essa extensão do limite da negação<br />
proposta por Hopmann & Maratsos (1977). A partícula negativa presente na sentença matriz<br />
“O governo não ignorou” é interpretada como uma negação da proposição contida na<br />
sentença completiva. Assim, o valor de verdade é anulado pela extensão do sentido de<br />
negação da partícula. Logo, o que era para ser tomado como verdadeiro (os juros tenham<br />
subido) é compreendido de forma oposta (os juros não tenham subido).<br />
A compreensão do escopo da negação também foi investigada por Scoville & Gordon<br />
(1979). Buscou-se, assim, verificar se as crianças faz<strong>em</strong> uso de alguma estratégia como<br />
overextended negation tendency (HOPMANN & MARATSOS, 1977) durante o<br />
processamento da factividade <strong>em</strong> contextos de negação. A metodologia do experimento de<br />
Scoville & Gordon (1979) 7 , no entanto, apresentou algumas diferenças quanto ao que foi<br />
aplicado <strong>em</strong> Hopmann & Maratsos (1977) desestimulando possíveis comparações. De<br />
qualquer forma, o uso de um padrão de resposta que d<strong>em</strong>onstrava o <strong>em</strong>prego da estratégia<br />
overextended negation tendency foi visto com freqüência, sobretudo nas respostas das<br />
crianças menores, com 2 e 3 anos, mas apresentou um registro próximo de 0 no caso dos<br />
adultos, o que poderia ser utilizado como um argumento a favor da tese de que as crianças<br />
<strong>em</strong>pregam a tendência overextended negation tendency <strong>em</strong> perguntas de compreensão acerca<br />
do escopo da negação dos verbos factivos.<br />
Outra ilustração da compreensão do escopo da negação pode ser feita com os achados<br />
de Abbeduto & Rosenberg (1984) sobre o t<strong>em</strong>a. Os resultados encontrados pelos<br />
pesquisadores d<strong>em</strong>onstraram um efeito significativo referente à idade (p
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A ausência de consenso sobre a idade de aquisição da factividade e da compreensão do<br />
escopo da negação justificou, primeiramente, a nossa opção por um estudo <strong>em</strong> que se<br />
avaliasse a compreensão do escopo da negação <strong>em</strong> sentenças com verbos/ predicados factivos.<br />
A outra justificativa diz respeito ao fato de que não há trabalhos específicos sobre a aquisição<br />
da factividade no PB. Os primeiros resultados dessa investigação são expostos a seguir.<br />
5) Experimento: compreensão do escopo da negação <strong>em</strong> sentenças com predicados<br />
factivos<br />
A avaliação que apresentamos aqui da compreensão do escopo da negação <strong>em</strong><br />
sentenças com predicados factivos está baseada nos primeiros resultados de um experimento<br />
feito com 22 crianças divididas <strong>em</strong> 2 grupos de faixas etárias distintas. No 1ºgrupo, as<br />
crianças tinham entre 3;6 e 4;6. Já no 2º grupo, a idade delas era entre 5;0 e 6;0. Um grupo<br />
controle formado por 11 adultos também foi utilizado.<br />
Nosso objetivo foi verificar o processamento da factividade no tocante ao escopo da<br />
negação no processo de aquisição do PB.<br />
Norteou a nossa investigação, a hipótese de que a interpretação factiva,<br />
principalmente, <strong>em</strong> contextos de negação implicaria um processamento mais custoso para a<br />
criança, que envolveria tanto d<strong>em</strong>andas lingüísticas, como o domínio da factividade e da<br />
partícula de negação, quanto cognitivas, o que justificaria a aquisição tardia da compreensão<br />
do escopo da negação (HOPMANN & MARATSOS, 1977; SCOVILLE & GORDON, 1979).<br />
Na metodologia, foram incluídos testes psicolinguísticos (aplicados a partir da técnica<br />
de escolha forçada), que consistiram de sentenças-estímulos com predicados factivos e nãofactivos<br />
nas versões afirmativa e negativa (o verbo factivo saber e o predicado factivo ser<br />
surpresa, e o verbo não-factivo achar e o predicado não-factivo ser possível), consoante<br />
ilustram as sentenças seguintes:<br />
14) Papai acha que a menina rasgou a blusa.<br />
15) Não foi surpresa a professora ter faltado.<br />
16) A geladeira ter ficado aberta é possível.<br />
17) Papai sabe que o vovô abriu a janela.<br />
18) Não é possível a bola ter furado.<br />
19) Papai não sabe que a <strong>em</strong>pregada arrumou a cama.<br />
20) Foi surpresa o gato ter dormido.<br />
21) Papai não acha que a mamãe lavou a louça.<br />
Dos procedimentos adotados fez parte a apresentação às crianças de um determinado<br />
cenário formado por figuras e foi pedido a elas que apontass<strong>em</strong> para a figura que melhor<br />
combinasse com o dito pelo experimentador. Foi feito um pré-teste com os sujeitos do<br />
experimento composto de 3 sentenças-teste. Foram eliminados do experimento todos os<br />
223
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
informantes que deram duas ou mais respostas erradas durante o pré-teste ou que fizeram uso<br />
deliberadamente de alguma estratégia ao participar da “tarefa de julgamento”.<br />
6) Resultados e Discussão<br />
Feita a submissão dos dados ao pacote estatístico EzANOVA e aplicado o t-teste<br />
student para as devidas comparações, alguns resultados merec<strong>em</strong> relevo, pois mostram um<br />
efeito significativo para o fator Factividade (F(1,42) = 18,4 p
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Esses dados corroboram, por ex<strong>em</strong>plo, os achados de Hopmann & Maratsos (1977),<br />
para o inglês, os quais indicam que o domínio da facitvidade no contexto da negação se dá por<br />
volta dos 6 anos, mas se opõ<strong>em</strong> aos de Phinney (1981), que defende que somente por volta<br />
dos 8 anos a criança seria capaz de reconhecer o efeito da negação nas sentenças factivas<br />
negativas.<br />
Os resultados encontrados também nos permit<strong>em</strong> apontar para uma diferença de<br />
comportamento das crianças menores e das crianças maiores quando observados<br />
separadamente os verbos e os predicados factivos, isto é, o verbo factivo saber <strong>em</strong> oposição<br />
ao predicado factivo ser surpresa, conforme pod<strong>em</strong>os perceber a partir da tabela abaixo:<br />
TABELA 1<br />
Médias de acerto separadas por grupo<br />
Grupos<br />
Verbos<br />
Afirmativa Negativa<br />
Predicados<br />
Afirmativa Negativa<br />
Crianças<br />
menores<br />
2,2 1,9 2,2 1,6<br />
Crianças<br />
maiores<br />
2,3 2,3 2,5 1,9<br />
Adultos 3,0 2,5 2,9 3,0<br />
Ao analisarmos as médias de respostas de todos os grupos <strong>em</strong> ambas as condições e<br />
separando os verbos dos predicados, pode-se observar que mesmo as crianças maiores<br />
cometeram mais erros com os predicativos factivos negativos do que com os verbos factivos<br />
negativos, o que sugere uma dificuldade maior da parte delas com o processamento deste tipo<br />
específico de estrutura factiva <strong>em</strong> contextos de negação.<br />
7) Considerações finais<br />
Os resultados encontrados parec<strong>em</strong> corroborar a ideia de uma aquisição que envolva a<br />
interação de vários aspectos (SCHULZ, 2002; 2003), como d<strong>em</strong>onstram os achados<br />
relacionados à compreensão do valor de verdade das sentenças completivas factivas, à<br />
diferença de interpretação do efeito da negação seja considerando a oposição verbos factivos e<br />
verbos não-factivos, seja tratando verbos factivos separadamente de predicados factivos, uma<br />
vez que tanto o aspecto s<strong>em</strong>ântico quanto o lexical (ou sintático-lexical) são cont<strong>em</strong>plados.<br />
De qualquer forma, não pod<strong>em</strong>os perder de vista que se tratam de resultados preliminares<br />
oriundos de um estudo que integra uma pesquisa mais ampla que investiga a aquisição da<br />
factividade no português brasileiro. Portanto, somente com a coleta de dados novos, b<strong>em</strong><br />
como com a sua <strong>análise</strong> e discussão, poder<strong>em</strong>os chegar a um resultado conclusivo que nos<br />
permita caracterizar a factividade como um conhecimento que se desenvolve passo a passo na<br />
criança <strong>em</strong> função de um domínio gradual dos aspectos implicados.<br />
225
Referências<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ABBEDUTO, L. e ROSENBERG, S. Children’s knowledge of the presuppositions of know and other<br />
verbs cognitive verbs. Journal of Child Linguage. Vol 12: 62 1-641, 1984.<br />
AUGUSTO, M.R.A. Padrões de extração <strong>em</strong> estruturas factivas. Tese de Doutorado. Universidade<br />
Estadual de Campinas, 2003.<br />
BASSANO, D. “Five year olds” understanding of “savior” and “croire”. Journal of Child Language.<br />
Vol: 12, 417-432, 1985.<br />
BASSANO, D. e C, CHAMPAUD. “L’Interprétation d’Énonces Modaux Assertifs (savoir que..) chez<br />
I’ Enfant de 6 a 11 ans”. L’ Année Psycologique, vol: 93, 53-75, 1983.<br />
CINQUE, G. Types de of A’ Dependencies. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1990.<br />
DE VILLIERS, J., CURRAN, W., PHILIP, W. & DEMUNN, H. (1997) Acquistion of the<br />
quantification properties of mental predicates. Paper presented at the Boston University<br />
Conference on Language Development. Nov<strong>em</strong>ber, 1997.<br />
FALMAGE, R. J., GONSALVES, J. e BENNETT – LAU, S. Children’s Linguistic intuitions about<br />
factive presuppositions. Child development. Vol: 9, 1-22, 1994.<br />
FIGUEIRA, R.A. Verbos introdutores de pressupostos. Dissertação de mestrado, IFCH, Universidade<br />
Estadual de Campinas, 1974.<br />
GAJEWSKI, J.R. Neg-Raising: Polarity and Presuppositions. PhD. Dissertation, MIT, Camdridge,<br />
Massachusetts, 2005.<br />
HOPMANN, M, R. e MARATSOS, M. P. A developmental study of factivity and negation in<br />
complex syntax. Journal of Child Language, Vol: 5, 295-309, 1978.<br />
KIPARSKY, P e KIPARSKY, C, Fact. Em M. Bierwisch. K, Heidolph (Orgs.) Progress in<br />
Linguistics. Vol: 4, 143-173. The Hague: Mouton, 1971.<br />
LÉGER, C. The acquisition of two types of factive compl<strong>em</strong>ents. In A. Gavarro & M. João Freitas<br />
(eds). Language Acquisition and Development: Proceedings of Gala 2007. Cambridge Scholars<br />
Publishing. Cambridge, Massachusetts. Vol: 4, 337-347, 2007.<br />
LYON, T.D. e J. H. FLAVELL. Young children’s understanding of r<strong>em</strong>enber and forget. Child<br />
Development. Vol: 65, 1357-1371, 1994.<br />
PÉREZ-LEROUX, A. & Schulz, P. The role of tense and aspect in the acquisition of factivity:<br />
Children’s interpretation of factive compl<strong>em</strong>ents in English, German and Spanish. First Language,<br />
Vol 19:1, 55, 29–54, 1999.<br />
PHINNEY, M. Children’s interpretation of negation in complex sentences. In: S.L Tavakolin (ed.),<br />
Language Acquistion and Linguistic Theory. Mit Press, Cambridge, Massachusetts, 1981.<br />
226
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
PIRES DE OLIVEIRA, R., S. SILVÉRIO & M.C. FIGUEIREDO SILVA. Notas para uma s<strong>em</strong>ântica<br />
da factividade. Ms. Universidade Federal de Santa Catarina, 1999.<br />
ROEPER, T. & DE VILLIERS , J. Ordered decisions in the acquisition of wh-questions. In H.<br />
Goodluck, J. Weissenborn & T. Roeper (eds). Theoretical Issues In Langauge Development<br />
.Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum, 1992.<br />
ROORYCK, J. Negative and factive islands revisited. Journal of Linguistics. Vol: 28, 343-374, 1992.<br />
SCHULZ, P. The interaction of lexical-s<strong>em</strong>antics, syntax and discourse in the acquisition of factivity.<br />
In B. Skarabela, S. Fish & A. H.-J. Do (Hrsg.), Proceedings of the 26th Annual Boston University<br />
Conference on Language Development. Somerville, MA: Cascadilla Press, Vol 2, 584–595, 2002.<br />
SCHULZ, P. Factivity: Its Nature and Acquisition. Max Ni<strong>em</strong>eyer Verlag, University of Tübingen:<br />
2003.<br />
SCOVILLE, R.P. & GORDON, A.M. Children`s understanding of factive presuppositions: an<br />
experiment and a review. Journal of Children Language. Vol: 7, 381-399, 1979.<br />
SOUZA, H. P. de . A pressuposição lingüística na estrutura da língua portuguesa. Dissertação de<br />
Mestrado, PUC-MG, Belo Horizonte, 2000.<br />
227
Adquirindo as primeiras palavras: categorias abertas e fechadas e as<br />
primeiras combinações 1<br />
Ana Paula da Silva Passos (UERJ – Extensão)<br />
Igor de Oliveira Costa (UERJ - Monitoria)<br />
Odete Firmino Alhadas Salgado (UERJ – Extensão)<br />
Victória Cristin do Nascimento Haddad (UERJ - Extensão)<br />
Resumo: A literatura sobre desenvolvimento lexical inicial observa a velocidade e os fenômenos que<br />
caracterizam a aquisição das palavras pelas crianças (Bloom, 1973; Nelson, 1973; Halliday, 1975; Godfield e<br />
Reznick, 1990). Com enfoque <strong>em</strong> classes de palavras abertas, Barret (1997) observa que parece haver um padrão<br />
de aquisição compl<strong>em</strong>entar durante o período inicial de aquisição da linguag<strong>em</strong>. O presente artigo observa a<br />
aquisição das primeiras palavras pelas crianças, contrapondo a aquisição de palavras de classes abertas e<br />
fechadas e observando a <strong>em</strong>ergência das primeiras combinações de palavras. Utilizou-se como corpus gravações<br />
de fala espontânea, com duração de dez a quinze minutos, de dois bebês: CAS (1,6;28 – 1,7,13 - 1,8;2 , sexo<br />
masculino) e VIT (2;4.13 - 2;6, sexo masculino), transcritas de acordo com o padrão CHILDES<br />
(http://childes.psy.cmu.edu), a partir das quais se procedeu à elaboração de tabelas com a variação da quantidade<br />
de palavras e combinações de palavras <strong>em</strong> cada sessão e entre as sessões. A <strong>análise</strong> dos dados permitiu constatar<br />
que há um padrão compl<strong>em</strong>entar de aquisição das classes de palavras e que o número de combinações aumenta<br />
na mesma proporção que a aquisição de palavras de classe fechada, o que enfatiza a relevância da aquisição<br />
dessas classes, ou seja, de categorias funcionais para o progresso da produção linguística da criança.<br />
1) Introdução<br />
Todos os seres humanos possu<strong>em</strong> um léxico mental, que é acessado toda vez que se faz<br />
necessário representar, por meio de palavras, um objeto, uma ação ou um evento. Aprender as<br />
palavras e saber utilizá-las adequadamente é um aspecto fundamental do desenvolvimento da<br />
linguag<strong>em</strong> e está relacionado à aquisição da sintaxe, da s<strong>em</strong>ântica, da morfologia e da<br />
fonologia.<br />
Os estudos sobre o desenvolvimento lexical inicial têm por objetivo entender como se<br />
dá a aquisição do significado das palavras pelas crianças. Consequent<strong>em</strong>ente, esses estudos<br />
também estão voltados para o entendimento de como as crianças aumentam seu vocabulário,<br />
com que velocidade e, principalmente, quais os fenômenos que caracterizam o uso das<br />
palavras durante o período de desenvolvimento lexical nos anos pré-escolares.<br />
Desde o primeiro choro até a produção das primeiras palavras, a criança apresenta<br />
diferentes padrões de linguag<strong>em</strong>. A aquisição pela criança começa muito cedo, quando, então,<br />
pod<strong>em</strong>os perceber as primeiras manifestações sonoras que são características do período que<br />
antecede a fala. Nos bebês, a partir dos dois meses de idade, já pod<strong>em</strong>os perceber que a<br />
linguag<strong>em</strong> gestual é evidente <strong>em</strong> interação com a linguag<strong>em</strong> expressiva representada pelo<br />
choro e pelas vocalizações. Os primeiros padrões combinatórios de sons aparec<strong>em</strong> por volta<br />
de seis meses de idade, quando as crianças já são capazes de balbuciar e indicam uma base<br />
segura para a aquisição das primeiras palavras. Trata-se de um processo que acontece de<br />
forma natural, pois a criança não necessita de instrução formal e sist<strong>em</strong>ática. Segundo Barrett<br />
(1997), aos dois anos e meio as crianças pod<strong>em</strong> ter adquirido 500 palavras ou mais. Este<br />
1 Este artigo foi orientado pela Prof a . Dr a . Marina Rosa Ana Augusto, do Departamento de Estudos da<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, Instituto de <strong>Letras</strong>, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />
228
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
processo ocorre num espaço de t<strong>em</strong>po muito curto, indicando uma espécie de explosão no<br />
vocabulário, visto que as crianças parec<strong>em</strong> adquirir palavras de categorias diferentes – classes<br />
abertas e fechadas – durante esta fase, permitindo a elas a realização de suas primeiras<br />
combinações de palavras:<br />
1) artigo + substantivo = “a mão” CAS 1,8;2<br />
2) verbo + substantivo = “caiu mamadeia” CAS 1,8;2<br />
Considerando a velocidade com que este processo acontece durante essa fase de<br />
aquisição inicial, pretende-se relatar, neste artigo, as observações realizadas <strong>em</strong> relação à<br />
aquisição das primeiras classes de palavras abertas (substantivos, verbos, advérbios,<br />
adjetivos) e fechadas (artigos, pronomes, preposições) utilizadas na produção espontânea de<br />
duas crianças <strong>em</strong> faixas etárias lev<strong>em</strong>ente distintas. Pretende-se, também, identificar as<br />
possíveis combinações de duas palavras ou mais nas <strong>em</strong>issões infantis dessas crianças. O<br />
corpus utilizado, portanto, constou de gravações de dez a quinze minutos de dois bebês: CAS<br />
(1,6;28 / 1,7;13 / 1,8;2, sexo masculino) e VIT (2;4.13 / 2;6, sexo masculino).<br />
O presente artigo organiza-se da seguinte maneira: na seção seguinte, será apresentada a<br />
fundamentação teórica sobre o desenvolvimento lexical inicial. A seção 3 apresenta a<br />
metodologia utilizada no estudo de caso dessas duas crianças, apresentando as tabelas e os<br />
gráficos com a distribuição dos itens lexicais produzidos por elas. A seção seguinte traz uma<br />
discussão acerca desses dados. Por fim, são oferecidas as conclusões oriundas do trabalho<br />
prático realizado.<br />
2) Fundamentação Teórica: aspectos gerais no desenvolvimento lexical inicial<br />
Muitos pesquisadores tentam relatar a velocidade e a facilidade com que as crianças<br />
adquir<strong>em</strong> novas palavras. Assim, inúmeros estudos foram feitos, a fim de verificar essa<br />
espécie de explosão no vocabulário das crianças <strong>em</strong> uma determinada faixa etária. Ao pedir<br />
que 18 mães registrass<strong>em</strong> novas palavras que seus filhos produziss<strong>em</strong>, Nelson (1973)<br />
concluiu que por volta dos 15 meses, as crianças adquiriam cerca de 10 palavras; aos 20<br />
meses, 50 palavras e que aos 24 meses, as crianças poderiam ter adquirido 186 palavras.<br />
A partir do estudo de Nelson, o interesse na pesquisa do desenvolvimento lexical inicial<br />
confirmou que há um determinado momento <strong>em</strong> que se verifica um aumento na velocidade de<br />
aquisição de palavras (Nelson, 1973; Bloom, 1973; Halliday, 1975). Embora a aquisição das<br />
palavras pareça ser lenta <strong>em</strong> um primeiro momento, quando as crianças estão adquirindo as<br />
primeiras palavras, após cerca de 20-40 palavras ter<strong>em</strong> sido adquiridas, parece haver uma<br />
explosão no vocabulário, que faz esse número aumentar de maneira drástica. Salienta-se,<br />
contudo, que este fenômeno apresenta grande variabilidade individual, ou seja, apresenta<br />
características específicas para cada criança, tanto na velocidade de aquisição, quanto no tipo<br />
de palavras adquiridas <strong>em</strong> cada etapa.<br />
Halliday (1975), por ex<strong>em</strong>plo, observou, a partir de registros de fala espontânea de seu<br />
filho, que este usava determinadas vocalizações para expressar algum tipo de sentimento, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, o som /uæyi/ para expressar prazer. Percebe-se, então, que determinadas<br />
229
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
vocalizações produzidas pelas crianças parec<strong>em</strong> estar presas a um determinado contexto,<br />
sendo esta vocalização repetida toda vez que determinado evento ocorre, por ex<strong>em</strong>plo, uma<br />
criança que produz a palavra “carro” toda vez que olha pela janela da sala, observando os<br />
carros passar<strong>em</strong> na rua abaixo (Bloom, 1973).<br />
Estudos também evidenciam que as crianças não adquir<strong>em</strong> somente palavras presas ao<br />
contexto, como citadas acima, mas também adquir<strong>em</strong> palavras que pod<strong>em</strong> ser usadas de modo<br />
referencial, nomeando objetos, pessoas, animais etc. Além disso, verifica-se, também, a<br />
produção de palavras sociopragmáticas durante a fase de desenvolvimento lexical inicial,<br />
usadas para determinadas funções pragmáticas <strong>em</strong> determinados contextos; a palavras “por<br />
favor” é uma dessas palavras/expressões sociopragmáticas, quando a criança quer pedir<br />
alguma coisa.<br />
Barrett (1997) é um trabalho clássico que se debruça sobre o desenvolvimento lexical<br />
inicial e propõe, com enfoque no tipo de interação <strong>em</strong> que as crianças se engajam, que há dois<br />
tipos predominantes de crianças: “referenciais” e “expressivas”. Tais denominações, no<br />
entanto, refer<strong>em</strong>-se aos aspectos predominantes e não únicos <strong>em</strong> cada fase.<br />
Considerando-se um vocabulário inicial de 50 palavras, as crianças referenciais<br />
apresentam mais de 50% de nomes gerais de “b<strong>em</strong> como alguns nomes de ação, nomes<br />
próprios, nomes de estados, etc.” (Barrett, 1997, p. 303). Já as crianças expressivas<br />
apresentam menos de 50% de nomes de objetos. Esse grupo de crianças “t<strong>em</strong> uma tendência a<br />
adquirir grande número de nomes de pessoas, nomes de ação, nomes de estado e palavras<br />
sociopragmáticas (incluindo sintagmas formulaicos), b<strong>em</strong> como nomes gerais de objetos.”<br />
(Id<strong>em</strong>).<br />
Muitos pesquisadores sugeriram que houvesse uma ord<strong>em</strong> para a aquisição desses tipos<br />
de palavras que pudesse convergir para um padrão geral na fase de desenvolvimento lexical<br />
inicial. Estudos como o de Goldfield e Reznick (1990) afirmam, no entanto, que não há, de<br />
fato, um padrão geral para o desenvolvimento lexical inicial das crianças. Esses estudos<br />
mostram que as crianças adquir<strong>em</strong> as palavras de modo diferente, ou seja, umas pod<strong>em</strong><br />
adquirir primeiramente as palavras referenciais, enquanto outras pod<strong>em</strong> adquirir as palavras<br />
presas ao contexto, salientando, então, que não há uma ord<strong>em</strong> de aquisição nesta fase de<br />
desenvolvimento.<br />
O estudo de Barret (1997), entretanto, traça três principais tendências no<br />
desenvolvimento lexical inicial que vão ser constatadas no presente trabalho:<br />
• A primeira tendência, se representada através de um gráfico, segue os moldes de um<br />
triângulo, i.e., enquanto a criança adquire substantivos, parece que a aquisição de<br />
verbos sofre uma pausa para que a criança possa focar na classe dos substantivos e<br />
vice-versa. As classes de palavras <strong>em</strong> foco são alternadas até atingir determinado nível<br />
e se estabilizar.<br />
230
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
• A segunda tendência indica que a aquisição dos verbos aumenta conforme a aquisição<br />
do vocabulário <strong>em</strong> geral; aumenta até, novamente, se nivelar e estabilizar.<br />
• A terceira tendência segue os padrões da segunda no que se refere a adjetivo, i.e., a<br />
aquisição de adjetivos cresce a partir do momento <strong>em</strong> que o vocabulário <strong>em</strong> geral<br />
também aumenta.<br />
Ao observar essas três tendências, Barrett (1997) conclui que, de maneira geral, na fase<br />
de desenvolvimento lexical inicial, as crianças parec<strong>em</strong> adquirir um grande número de<br />
substantivos, mas que, logo depois, passam, também, a adquirir verbos e adjetivos.<br />
O estudo de Barret (1997) é apresentado a partir de uma perspectiva s<strong>em</strong>ântica,<br />
salientando a aquisição das palavras de classes abertas, enquanto, no presente artigo, o t<strong>em</strong>a<br />
será discutido a partir de uma abordag<strong>em</strong> formal/estrutural, a fim de investigar não só a<br />
produção inicial de palavras de classe aberta, mas também o surgimento das palavras de<br />
classes fechadas, uma vez que as últimas tornam possíveis as primeiras combinações de<br />
palavras. Portanto, o presente trabalho procura verificar a velocidade e a frequência com que<br />
estas classes de palavras começam a surgir no vocabulário inicial das crianças, observando se<br />
existe uma determinada ord<strong>em</strong> de aquisição para que esse processo aconteça, a fim de<br />
verificar se existe, realmente, um padrão de aquisição compl<strong>em</strong>entar na fase de aquisição<br />
inicial por parte das crianças.<br />
3) O desenvolvimento infantil: dois estudos de caso com crianças brasileiras<br />
Para alcançar os objetivos apresentados na seção anterior, foi utilizado o método de<br />
observação de fala espontânea. Vídeos de duas crianças foram gravados no período de dois<br />
meses. Da criança CAS, foram coletados três vídeos de aproximadamente quinze minutos,<br />
com intervalos, respectivamente, de dezesseis e quatorze dias. Já os vídeos de VIT, somente<br />
dois, também têm <strong>em</strong> torno de quinze minutos de duração, com intervalo de quarenta e sete<br />
dias.<br />
Após as gravações, a segunda etapa da pesquisa consistiu na transcrição dos dados<br />
coletados. Para tanto, foi utilizado o padrão CHILDES de transcrição. Na etapa seguinte foi<br />
realizada a contag<strong>em</strong> de palavras. A partir dessa contag<strong>em</strong>, foram elaboradas duas tabelas<br />
para cada vídeo: uma com a contag<strong>em</strong> do número total de palavras pronunciadas, e outra com<br />
231
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
o número de palavras distintas pronunciadas, ou seja, desconsiderando repetição de palavras.<br />
Estas tabelas foram divididas <strong>em</strong> classes gramaticais, como a seguir.<br />
Total de Palavras Pronunciadas<br />
Classe Quantidade %<br />
Substantivos 86 52.76<br />
Verbos 43 26.38<br />
Advérbios 15 9.2<br />
Adjetivos 5 3.07<br />
Artigos 4 2.45<br />
Pronomes 1 0.61<br />
Interjeições 1 0.61<br />
Prep./Conj. 0 0<br />
Expressões<br />
Fixas<br />
0 0<br />
S<strong>em</strong><br />
Classificação<br />
8 4.91<br />
TOTAL 163 100<br />
Tabela 1: Total de palavras pronunciadas no vídeo 1 de CAS<br />
A primeira tabela já nos mostra que a frequência de palavras de classes abertas é<br />
realmente maior do que a presença de palavras de classes fechadas. Isso pode ser visto tanto<br />
nessa tabela quanto na seguinte, <strong>em</strong> que não se consideram as palavras repetidas.<br />
Palavras Distintas Pronunciadas<br />
Classe Quantidade %<br />
Substantivos 42 57.53<br />
Verbos 12 16.44<br />
Advérbios 7 9.59<br />
Adjetivos 4 5.48<br />
Artigos 1 1.37<br />
Pronomes 1 1.37<br />
Interjeições 1 1.37<br />
Prep./Conj. 0 0<br />
Expressões<br />
Fixas<br />
0 0<br />
S<strong>em</strong><br />
Classificação<br />
5 6.85<br />
TOTAL 73 100<br />
Tabela 2: Total de palavras distintas pronunciadas no vídeo 1 de CAS<br />
232
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Em suma, a observação das duas primeiras tabelas evidencia a distribuição das <strong>em</strong>issões<br />
de CAS na primeira observação realizada e permite verificar que essa criança apresenta<br />
principalmente substantivos na sua produção linguística, alguns verbos e poucos advérbios e<br />
adjetivos ou itens de classes fechadas, como pronomes e artigos.<br />
Para a identificação das primeiras combinações, foram elaboradas também para cada<br />
vídeo uma tabela com o total de combinações da produção das crianças. Segue um ex<strong>em</strong>plo:<br />
Total de Combinações<br />
Tipo de Combinação Quantidade %<br />
Artigo + Substantivo 2 50<br />
Verbo + Advérbio 2 50<br />
Total 4 100<br />
Tabela 3: Total de combinações vídeo 1 de CAS<br />
A tabela 3 acima d<strong>em</strong>onstra que o número de combinações de duas palavras de CAS, a<br />
criança mais nova, ainda é bastante incipiente e restrito a dois padrões de combinação apenas:<br />
artigo + substantivo ou verbo + advérbio.<br />
Outra etapa da pesquisa constou da elaboração de uma tabela com a variação da<br />
quantidade de palavras entre os vídeos.<br />
Variação de Quantidade de Palavras – CAS<br />
Classe Vídeo 01 Vídeo 02 Vídeo 03 Média<br />
(%) (%) (%) (%)<br />
Substantivos 57.53 38.32 44.44 46.76<br />
Verbos 16.44 27.1 21.3 21.61<br />
Advérbios 9.59 12.15 6.48 9.41<br />
Adjetivos 5.48 3.74 6.48 5.23<br />
Artigos 1.37 2.8 2.78 2.32<br />
Pronomes 1.37 0 3.7 1.69<br />
Interjeições 1.37 3.74 2.78 2.63<br />
Preposições 0 0.93 2.78 1.24<br />
Conjunções 0 0 0 0.00<br />
Expressões 0 0 0<br />
Fixas<br />
0.00<br />
Numerais 0 0 0 0.00<br />
S<strong>em</strong> classe 6.85 11.2 9.26 9.10<br />
TOTAL 100 100 100 100<br />
Tabela 4: Variação de quantidade de palavras – CAS<br />
A Tabela 4 já nos mostra como há distinções <strong>em</strong> relação ao desenvolvimento lexical<br />
inicial no que diz respeito ao aumento do vocabulário <strong>em</strong> relação às classes abertas e<br />
fechadas. Enquanto substantivos e verbos parec<strong>em</strong> alternar no número de novos el<strong>em</strong>entos<br />
233
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
adquiridos, a aquisição de itens lexicais funcionais parece apresentar um progresso mais<br />
uniforme.<br />
Os gráficos a seguir dão maior nitidez a essa observação. Estes foram divididos <strong>em</strong><br />
dois: o primeiro traz a distribuição das palavras de classe aberta (substantivos, verbos,<br />
advérbios, adjetivos) e o seguinte, as palavras de classe fechada (artigos, pronomes,<br />
preposições, conjunções).<br />
70<br />
60<br />
50<br />
40<br />
30<br />
20<br />
10<br />
0<br />
Variação da Ocorrência de<br />
Classes Abertas<br />
Vídeo 01 (%) Vídeo 02 (%) Vídeo 03 (%)<br />
Substantivos<br />
Verbos<br />
Advérbios<br />
Adjetivos<br />
Gráfico 1: Variação da ocorrência de palavras de classe aberta - CAS<br />
O movimento de alternância entre substantivos e verbos, por um lado, e adjetivos e<br />
advérbios, por outro, é bastante clara no Gráfico 1.<br />
4<br />
3.5<br />
3<br />
2.5<br />
2<br />
1.5<br />
1<br />
0.5<br />
0<br />
Variação da ocorrência de<br />
Artigos, Pronomes e Preposições<br />
Vídeo 01 (%) Vídeo 02 (%) Vídeo 03 (%)<br />
Artigos<br />
Pronomes<br />
Preposições<br />
Gráfico 2: Variação da ocorrência de palavras de classe fechada – CAS<br />
No que diz respeito às classes fechadas, com exceção da ausência de pronomes na<br />
segunda sessão, nota-se uma progressão de caráter mais uniforme para os artigos e as<br />
preposições.<br />
234
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A comparação dos dados das duas crianças separadamente nos mostra que exist<strong>em</strong><br />
determinados padrões para a aquisição da linguag<strong>em</strong> e que, dependendo da idade da criança,<br />
os padrões difer<strong>em</strong>. Mesmo que a diferença entre as idades das duas crianças seja b<strong>em</strong><br />
pequena, parece haver um determinado momento para que ocorra a explosão de vocabulário<br />
durante a fase de desenvolvimento lexical inicial, o que pode ser constatado, <strong>em</strong> nossa<br />
pesquisa, com CAS, a criança mais nova, enquanto VIT d<strong>em</strong>onstrou um padrão de aquisição<br />
mais estável <strong>em</strong> relação à criança mais nova.<br />
30<br />
25<br />
20<br />
(%)<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
Padrão de Desenvolvimento (VIT)<br />
Classes Abertas<br />
2;4.13 2;6<br />
Substantivos<br />
Verbos<br />
Advérbios<br />
Adjetivos<br />
Gráfico 3: Padrão de desenvolvimento de classes abertas – VIT<br />
Além disso, pode-se constatar, conforme salientado por Barrett (1997), que essas<br />
crianças poderiam ser vistas como de tipos distintos, segundo a classificação <strong>em</strong> referenciais e<br />
expressivas. Por meio da <strong>análise</strong> dos vídeos e dados da fala espontânea, é possível perceber<br />
que CAS, por ex<strong>em</strong>plo, é uma criança “referencial”, uma vez que suas primeiras produções<br />
são repletas de substantivos, enquanto VIT, por ser uma criança mais velha, possui um<br />
vocabulário mais extenso, repleto de palavras referenciais, expressivas e sintagmas<br />
formulaicos, também esses definidos segundo Barrett (1997).<br />
(3) CAS [1,6;28]<br />
*CAS: Au au.<br />
*CIT: T<strong>em</strong> cachorrinho, lá?<br />
*CAS: T<strong>em</strong>. T<strong>em</strong>.<br />
*CIT: Pequenininho ou grandão?<br />
*CAS: Dandão.<br />
(4) CAS [1,8;2]<br />
*CIT: Jogou aonde?<br />
*CAS: Tchão.<br />
*CIT: Num pode. Tava aonde a roupinha dela?<br />
*CAS: Chão, no chão.<br />
*CIT: Não. Tava <strong>em</strong> outro lugar.<br />
235
(5) VIT [2, 4; 13]<br />
(6) VIT [2, 4; 13]<br />
(7) VIT [2, 4; 13]<br />
4) Discussão dos Resultados<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
*PAI: Aonde tu viu?<br />
*VIT: Lá. Lá no mato. [%apontando]<br />
*PAI: Aonde?<br />
*VIT: No mato. [%apontando e sussurrando]<br />
*PAI: No mato.<br />
*VIT: É. [%sussurrando]<br />
*ODE: Cê vai pra [>] onde?<br />
*VIT: Sei lá.<br />
*VIT: 0. [%coloca as cenouras na bacia.]<br />
*AVÓ: Brigado. #<br />
*VIT: De nada.<br />
Tendo <strong>em</strong> vista o objetivo desta pesquisa, a saber, o de analisar morfologicamente a<br />
produção espontânea das crianças CAS e VIT, serão apresentadas, agora, algumas breves<br />
conclusões.<br />
Em primeiro lugar, tendo por base o Gráfico 1, verifica-se que realmente há um padrão<br />
compl<strong>em</strong>entar de aquisição das classes de palavras, que se reflete no gráfico nas linhas<br />
“espelhadas”. Observando atentamente, vê-se que, no mesmo instante <strong>em</strong> que a produção de<br />
substantivos está alta, a de verbos está baixa, e quando aquela diminui, esta aumenta. O<br />
mesmo vale para o conjunto advérbios/adjetivos. Nesse sentido, ao que parece, há uma<br />
especialização por parte do mecanismo de aquisição da criança <strong>em</strong> determinada classe,<br />
otimizando, talvez, o processo de aquisição das mesmas. O mesmo pode ser visto no gráfico<br />
das classes fechadas (Veja Gráfico 2, acima) da mesma criança. O gráfico de VIT, no entanto,<br />
não apresenta essa tendência tão claramente, o que talvez ocorra graças ao estágio mais<br />
avançado de aquisição devido à idade, como constatado anteriormente. No de VIT, há, na<br />
verdade, uma certa estabilização, que pode ser percebida pelo aumento gradual e constante<br />
das linhas, quase paralelas (Gráfico 3, acima).<br />
Também é possível perceber, de acordo com a Tabela 4, acima, que o número de classes<br />
fechadas aumenta consideravelmente ao longo do t<strong>em</strong>po; na verdade, <strong>em</strong> apenas duas<br />
s<strong>em</strong>anas. A produção de artigos passa de 1,37% para 2,38% do total de palavras; a de<br />
preposições passa de 0 (zero) para 2,78% do total de palavras; e a de pronomes passa de<br />
1,37% para 3,7%, mais do que o dobro do momento inicial da pesquisa. Estes fatores indicam,<br />
portanto, que há, como assinala Barret (1997), uma tendência inicial para a produção de<br />
classes abertas, as que têm um referente no mundo, se ampliando <strong>em</strong> seguida para a produção<br />
236
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
de classes fechadas, as que têm funções especificamente gramaticais, permitindo à criança<br />
construir a sintaxe da sua língua.<br />
É interessante notar como isso se torna evidente através da comparação desse resultado,<br />
que pode ser melhor visualizado no Gráfico 2, acima, com o resultado do incr<strong>em</strong>ento de<br />
combinações, mostrado no Gráfico 4, abaixo.<br />
35<br />
30<br />
25<br />
20<br />
15<br />
10<br />
5<br />
0<br />
Padrão de Desenvolvimento (CAS)<br />
Combinações<br />
Vídeo 1 Vídeo 2 Vídeo 3<br />
Gráfico 4: Padrão de desenvolvimento de combinações - CAS<br />
A comparação entre os dois gráficos atesta que o número de combinações aumenta na<br />
mesma proporção que a aquisição (pelo menos no que é percebido pela produção espontânea)<br />
de palavras de classe fechada. Na verdade, os sintagmas preposicionados, por ex<strong>em</strong>plo, só<br />
pod<strong>em</strong> mesmo ser produzidos quando a criança já adquiriu as preposições, e os sintagmas<br />
nominais somente quando já se adquiriu os artigos, o que leva à s<strong>em</strong>elhança, inclusive, do<br />
tipo de curva apresentada nos dois gráficos.<br />
Em suma, é possível perceber que depois de atingir um número elevado de aquisição de<br />
substantivos, por ex<strong>em</strong>plo, o mesmo parece sofrer uma desaceleração no processo, e<br />
concomitant<strong>em</strong>ente, o número de verbos adquiridos passa a acelerar. Assim, o mecanismo de<br />
aquisição da criança parece se concentrar, a cada momento específico, <strong>em</strong> determinadas<br />
classes de palavras. Somente quando a aquisição de uma classe se estabiliza, outras classes<br />
ganham pro<strong>em</strong>inência quanto à taxa de novas palavras adquiridas. Vê-se, também, que a<br />
aquisição inicial privilegia as classes abertas <strong>em</strong> detrimento das fechadas. Em relação às<br />
combinações feitas pelas crianças observadas, constatamos que há, realmente, um padrão<br />
compl<strong>em</strong>entar de aquisição das classes de palavras e que o número de combinações aumenta<br />
na mesma proporção que a aquisição de palavras de classe fechada, confirmando dados da<br />
literatura referentes ao desenvolvimento lexical inicial.<br />
Por fim, vale salientar que, mesmo diante do caráter inicial do estudo, uma vez que o<br />
espaço de t<strong>em</strong>po de observação das produções das crianças foi bastante breve, as tendências<br />
apontadas por Barrett (1997) puderam ser confirmadas no trabalho prático aqui relatado.<br />
237
5) Considerações Finais<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Este artigo teve por objetivo apresentar um trabalho prático, baseado na metodologia<br />
de coleta de dados de fala espontânea, realizado com duas crianças brasileiras, a fim de<br />
acompanhar seu desenvolvimento de aquisição da linguag<strong>em</strong>, mais especificamente no que<br />
diz respeito ao desenvolvimento lexical inicial. O corpus analisado constou das gravações<br />
realizadas <strong>em</strong> 5 sessões, com duração entre dez e quinze minutos, os quais foram transcritos<br />
de acordo com o padrão CHILDES (http://childes.psy.cmu.edu) e analisados<br />
morfologicamente, a fim de identificar e distinguir as palavras produzidas pelas crianças<br />
como pertencentes a categorias abertas ou fechadas. Foram identificadas as primeiras<br />
combinações de palavras realizadas pelas crianças e as respectivas estruturas das mesmas.<br />
Verificou-se a variação da quantidade de palavras <strong>em</strong>itidas e combinações de palavras<br />
utilizadas <strong>em</strong> cada sessão e entre as sessões para cada criança. A <strong>análise</strong> dos dados permitiu<br />
constatar algumas das tendências já apresentadas por Barret (1997).<br />
Através deste trabalho, pode-se observar, então, que a aquisição lexical inicial é<br />
realizada através da concentração que a criança parece atribuir a determinadas classes de<br />
palavra <strong>em</strong> determinado momento da aquisição, focando <strong>em</strong> uma classe por vez. Constatouse,<br />
também, que as classes abertas são as privilegiadas na fase de aquisição inicial, sendo<br />
estas adquiridas <strong>em</strong> maior número e velocidade. Há, assim, um padrão compl<strong>em</strong>entar de<br />
aquisição das classes de palavras, particularmente as de classe aberta. Foi possível também<br />
verificar que o número de combinações de palavras aumenta na mesma proporção que a<br />
aquisição de palavras de classes fechadas. A observação da aquisição lexical inicial tanto de<br />
classes abertas como de classes fechadas enfatiza a importância que a presença de palavras<br />
desse último tipo des<strong>em</strong>penha para que a produção linguística da criança aumente <strong>em</strong><br />
complexidade ao possibilitar que as primeiras combinações sejam produzidas.<br />
Referências<br />
BARRETT, M. (1997). Desenvolvimento lexical inicial. In: Fletcher, P. & B. MacWhinney (orgs.)<br />
Compêndio da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> da criança. Porto Alegre: Artes Médicas.<br />
BLOOM, L. (1973). One word at a time: The use of single-word utterances before syntax. The Hague:<br />
Mouton.<br />
GOLDFIELD, B.A, & REZNICK, J.S. (1990). Early lexical aquisition: Rate, content and the<br />
vocabulary spurt. Journal of Child Language, 17, 171 – 183.<br />
HALLIDAY, M.A.K. (1975). Learning how to mean: Explorations in the development of language.<br />
London: Edward Arnold.<br />
NELSON, K. (1973b). Some evidence for the cognitive primacy of categorization and its functional<br />
basis. Merril-Palmer. Quarterly, 19, 21-39.<br />
238
ANÁLISE DE ASPECTOS DA CONCORDÂNCIA VERBAL POR<br />
CRIANÇAS FALANTES DO PORTUGUÊS BRASILEIRO: produções<br />
escritas induzidas<br />
Queila de Castro Martins (UERJ) 1<br />
Raquel Oliveira do Nascimento (UERJ) 2<br />
RESUMO: Muitos estudos vêm sendo realizados sobre concordância verbal (Fayol et al, 1999; Levelt, 1989;<br />
Rodrigues, 2006). Levelt (1989) concebe um modelo de processamento linguístico, aceito também por<br />
Rodrigues (2006), que pressupõe as seguintes etapas: conceitualizador, formulador e articulador,<br />
respectivamente responsáveis por: produção da mensag<strong>em</strong> pré-verbal; produção do plano<br />
fonológico/articulatório; e mensag<strong>em</strong> verbal, isto é, a fala explícita. Falhas de processamento na concordância<br />
verbal aconteceriam durante o fluxo de informação entre etapas do processamento linguístico. Negro et al (2005)<br />
d<strong>em</strong>onstraram a ocorrência de mudança de comportamento mental na produção da concordância verbal, do<br />
processamento serial da codificação gramatical <strong>em</strong> falantes jovens iniciantes (crianças de terceiro/quinto anos)<br />
para o hierárquico <strong>em</strong> jovens e adultos mais experientes. Rodrigues (2006) verificou, <strong>em</strong> relação ao el<strong>em</strong>ento<br />
interveniente e a distância entre sujeito e verbo, qual propriedade (sintagma preposicional ou oração relativa)<br />
faz prever erros e se o valor de traço de número do núcleo do sujeito é um fator que afeta a concordância. Em<br />
nosso trabalho, analisamos a formação da concordância verbal <strong>em</strong> crianças falantes nativos da Língua<br />
Portuguesa. Nossos resultados são compatíveis com os encontrados <strong>em</strong> Negro et al. (2005): as crianças de quinto<br />
ano cometeram mais erros <strong>em</strong> situações com plural e principalmente <strong>em</strong> casos de incongruência de número. Não<br />
houve nenhuma ocorrência de erro <strong>em</strong> situação singular/singular (SS) e alguma ocorrência <strong>em</strong> situação de<br />
singular/plural (SP) e maior incidência de erros <strong>em</strong> situações com algum el<strong>em</strong>ento plural. Em relação ao<br />
el<strong>em</strong>ento interveniente, nosso resultados também são compatíveis com Rodrigues (2006) e Negro et al. (2005).<br />
Futuramente aprofundar<strong>em</strong>os os estudos realizados buscando maior especificidade.<br />
1) Introdução<br />
O presente estudo t<strong>em</strong> como t<strong>em</strong>a a concordância verbal. Erros de concordância entre<br />
sujeito e verbo é fator de estigmatização, principalmente, por parte de instituições escolares.<br />
Consideramos o t<strong>em</strong>a bastante instigante e motivador na medida <strong>em</strong> que se pode tomá-lo<br />
como uma provável d<strong>em</strong>onstração de conhecimento acerca de construções da língua por parte<br />
dos falantes. S<strong>em</strong> nenhuma pretensão de comprovação ou <strong>análise</strong> profunda e exaustiva do<br />
t<strong>em</strong>a, realizamos um estudo piloto com o intuito de investigar a produção de concordância<br />
verbal por crianças falantes do português brasileiro <strong>em</strong> uma tarefa escrita de sentenças<br />
induzidas, com o objetivo de comprovar o que v<strong>em</strong> sendo relatado na literatura sobre o t<strong>em</strong>a,<br />
particularmente, Negro et al. (2005) e Rodrigues (2006), os quais d<strong>em</strong>onstram que fatores de<br />
ord<strong>em</strong> sintática, s<strong>em</strong>ântica e morfofonológica influenciam na ocorrência dos erros de<br />
concordância. Neste estudo, esses erros serão tidos como falhas que ocorr<strong>em</strong> durante o<br />
processamento e serv<strong>em</strong> como pistas para compreensão do próprio processamento da<br />
linguag<strong>em</strong> humana.<br />
Logo ao início, far<strong>em</strong>os uma retomada de alguns fatores levantados por estudiosos<br />
sobre o processamento mental da concordância verbal e a d<strong>em</strong>onstração de dois estudos<br />
realizados com crianças, adultos e universitários. Em seguida, apresentar<strong>em</strong>os a metodologia<br />
deste trabalho <strong>em</strong> seu passo a passo, descrevendo o teste que realizamos, na verdade, como<br />
1 Orientada por Ricardo Joseh Lima e bolsista CAPES/CNPq.<br />
2 Orientada por Zinda Vasconcellos e bolsista FAPERJ.<br />
239
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
uma releitura de Negro et al (2005) e Rodrigues (2006). Finalmente, apresentar<strong>em</strong>os os<br />
resultados encontrados, de forma a possibilitar a comparação com os trabalhos mencionados e<br />
discutir<strong>em</strong>os tais dados, r<strong>em</strong>etendo ao que já se t<strong>em</strong> publicado acerca da concordância verbal.<br />
2) Fundamentação Teórica<br />
Muitos são os estudos que vêm sendo realizados acerca da concordância nominal e<br />
verbal. Para Fayol et al (1999) tanto na linguag<strong>em</strong> oral quanto na escrita, erros de<br />
concordância são raros, com exceção de casos extr<strong>em</strong>os que, de alguma forma, levam o<br />
falante a cometê-los. De acordo com esses pesquisadores, dos 3 a 5 anos de idade as crianças<br />
já adquiriram a língua e são capazes de gerar concordância, já que adquiriram também a<br />
noção de número e flexão.<br />
Segundo Levelt (1989) e Rodrigues (2006), muitos são os fatores a ser<strong>em</strong> investigados<br />
acerca da concordância verbal. Ambos admit<strong>em</strong> a existência de um modelo de processador<br />
linguístico mental que gera as sentenças e constrói ou não a concordância esperada. Segundo<br />
Levelt (1989), os níveis de processamento mental da linguag<strong>em</strong> seriam os seguintes:<br />
conceitualizador, formulador e articulador.<br />
Na primeira etapa, o conceitualizador realizaria a produção de uma mensag<strong>em</strong> préverbal,<br />
ainda não linguística, que serviria como input para a próxima etapa, a do formulador.<br />
O conceitualizador admitiria dois estágios: o macro, que diz respeito à elaboração de um<br />
objetivo comunicativo, e o micro, que seria a forma proposicional a ser dada pelo falante para<br />
cada bloco da informação.<br />
Na etapa seguinte, o formulador receberia a mensag<strong>em</strong> pré-verbal vinda do<br />
conceitualizador como input, produzindo a partir dela um plano fonológico/articulatório, que<br />
seria o input para o articulador. No formulador, haveria a tradução de uma estrutura até então<br />
conceitual <strong>em</strong> estrutura linguística (codificação gramatical da mensag<strong>em</strong> e codificação<br />
fonológica), <strong>em</strong>bora essa etapa não produza ainda uma fala explícita, mas sim, uma<br />
representação interna de como o enunciado planejado será articulado.<br />
Na última etapa, segundo Levelt (1989), surgiria a fala <strong>em</strong> si. O articulador, recebendo<br />
como input o produto final do formulador, executaria, então, o plano fonético, isto é, a fala<br />
explícita.<br />
Rodrigues (2006) segue os passos de Levelt (1989) e reelabora o modelo de<br />
processador. Para ela, os erros ou falhas de processamento na concordância verbal pod<strong>em</strong> ser<br />
percebidos segundo o fluxo de informação durante o processamento linguístico. A<br />
pesquisadora levanta <strong>em</strong> seu trabalho dois tipos de modelos: o interativo e o não-interativo. O<br />
modelo de processamento interativo defenderia que há comunicação entre os níveis de<br />
processamento durante a formulação das sentenças a ser<strong>em</strong> ditas; já o não-interativo, modelo<br />
assumido por Rodrigues, defenderia, contrariamente, que não há comunicação entre esses<br />
níveis, havendo, portanto, autonomia do formulador sintático.<br />
Partindo disso, Rodrigues (2006) propõe um novo modelo baseado <strong>em</strong> produção<br />
monitorada por parsing (PMP). Para ela, o falante é, ao mesmo t<strong>em</strong>po, produtor e ouvinte de<br />
sua mensag<strong>em</strong>. Enquanto fala, t<strong>em</strong> acesso a sua mensag<strong>em</strong>, havendo interferência no<br />
momento de produção. Esse modelo PMP dá conta de fatores sintáticos, distância linear e<br />
efeitos de ord<strong>em</strong> morfofonológica na produção da concordância verbal.<br />
240
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A autora levanta três propriedades para o modelo PMP: incr<strong>em</strong>entalidade moderada (o<br />
processo de articulação da mensag<strong>em</strong> pode ter início antes mesmo de o falante ter concluído o<br />
que pretende falar), computação automática (processo de valoração de traços, <strong>em</strong> que o verbo<br />
t<strong>em</strong> seu traço de número especificado na derivação sintática; seu resultado é encaminhado a<br />
um componente morfofonológico) e monitoração concomitante (monitoramento do que é<br />
falado durante a sua produção).<br />
Para Rodrigues (2006), então, as etapas do processamento, muito s<strong>em</strong>elhantes ao que<br />
foi observado <strong>em</strong> Levelt(1989), são: conceptualizador (idéia da mensag<strong>em</strong> que se deseja<br />
transmitir), seguido por um acesso lexical (concepção s<strong>em</strong>ântica e léxico-sintática), depois<br />
um formulador (<strong>em</strong> que ocorre a codificação gramatical da sentença - organização hierárquica<br />
da sentença e ordenação linear dos constituintes da língua), a codificação morfofonológica,<br />
codificação fonológica e, por fim, a articulação da sentença, a produção da fala <strong>em</strong> si.<br />
Figura 1: Modelo de processamento de Levelt,1989 adaptado por Rodrigues,2006.<br />
O modelo de Rodrigues (2006) fica definido, então, por apresentar quatro conceitos<br />
fundamentais e que tomar<strong>em</strong>os como base neste trabalho de pesquisa: modelo não-interativo<br />
(defendendo a autonomia do formulador sintático), incr<strong>em</strong>entalidade moderada,<br />
computação automática e a monitoração concomitante, já especificados neste trabalho. O<br />
novo modelo PMP de Rodrigues (2006) traz inovação ao campo de estudos da concordância<br />
verbal e permite que haja maior compreensão dos estágios que ocorr<strong>em</strong> durante o<br />
processamento mental.<br />
Tanto os estudos realizados por Negro et al (2005), quanto os de Rodrigues (2006),<br />
abordaram a concordância verbal e d<strong>em</strong>onstraram que fatores como distância linear e<br />
el<strong>em</strong>entos intervenientes no sujeito influenciam na construção da concordância de número.<br />
Alguns dos el<strong>em</strong>entos intervenientes no sujeito observados foram os sintagmas preposicionais<br />
(PP) – adjuntos – e as orações relativas. Os dois estudos d<strong>em</strong>onstram ser relevante a<br />
influência <strong>em</strong> relação à distância longa entre núcleo do sujeito e verbo, <strong>em</strong> sintagmas<br />
241
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
preposicionais. Os erros <strong>em</strong> construções com orações relativas se mostraram mais frequentes<br />
quando <strong>em</strong> sujeitos com N1 plural.<br />
Negro et al (2005) investigaram a relevância da mudança do processamento serial da<br />
codificação gramatical <strong>em</strong> escritores iniciantes para o hierárquico <strong>em</strong> jovens e adultos<br />
experientes. Com isso, visavam d<strong>em</strong>onstrar como se dava ou se daria a mudança de<br />
comportamento mental no momento de produção da concordância verbal por parte de falantes<br />
mais jovens (crianças de terceiro e quinto ano) <strong>em</strong> comparação com os adultos.<br />
Como processamento serial compreende-se aquele <strong>em</strong> que a construção das sentenças<br />
ocorre de forma linear e, nesse caso, um el<strong>em</strong>ento interveniente entre sujeito e verbo pode<br />
gerar influência sobre os el<strong>em</strong>entos que participam do processamento da concordância,<br />
modificando o número do verbo, por ex<strong>em</strong>plo, para singular. Segundo essa concepção, devido<br />
ao el<strong>em</strong>ento interveniente, o falante não é capaz de recuperar na m<strong>em</strong>ória de trabalho a<br />
valoração de número que constava sobre o núcleo do sujeito, realizando a concordância com o<br />
el<strong>em</strong>ento mais próximo a ele. Já no caso do processamento hierárquico, a sentença seria<br />
constituída por blocos sintáticos e o el<strong>em</strong>ento interveniente poderia influenciar todo um<br />
bloco, gerando mudança na marcação, independent<strong>em</strong>ente da distância ou não entre sujeito e<br />
verbo.<br />
Os testes aplicados <strong>em</strong> Negro et al d<strong>em</strong>onstraram que as crianças realizam um<br />
processamento serial durante a formação das sentenças e, com o passar do t<strong>em</strong>po, com<br />
amadurecimento lingüístico, passam a processar de maneira hierárquica. Em Rodrigues<br />
(2006), os objetivos foram verificar, <strong>em</strong> relação ao el<strong>em</strong>ento interveniente e à distância entre<br />
sujeito e verbo, qual propriedade (sintagma preposicional – doravante PP – ou oração<br />
relativa) faz prever erros e se o valor de traço de número do núcleo do sujeito é um fator que<br />
afeta a concordância. Os dados revelaram mais incidência de influência <strong>em</strong> sentenças que<br />
apresentavam el<strong>em</strong>ento interveniente PP, enquanto as falhas de concordância <strong>em</strong> situações<br />
com orações relativas foram vistas apenas <strong>em</strong> orações com el<strong>em</strong>ento interveniente longo, não<br />
tendo havido tantos erros <strong>em</strong> sentenças curtas.<br />
Para estipular um recorte para a nossa pesquisa, uma vez que, conforme já<br />
explicitamos, tratava-se de um estudo piloto, ativ<strong>em</strong>o-nos aos testes realizados <strong>em</strong> crianças do<br />
quinto ano <strong>em</strong> Negro et al (2005) e de distância linear com el<strong>em</strong>ento interveniente – oração<br />
relativa – de Rodrigues (2006). Os resultados encontrados nesses estudos, respectivamente,<br />
foram: crianças do quinto ano cometeram mais erros <strong>em</strong> construções com orações relativas do<br />
tipo PS (N1 3 plural + N2 4 singular) e PP (N1 plural + N2 plural) e houve mais incidência de<br />
erros <strong>em</strong> orações relativas <strong>em</strong> construções longas.<br />
Partindo do exposto, os objetivos centrais de nosso trabalho foram: retomar os testes<br />
dos dois estudos <strong>em</strong> questão, reelaborando-os através de um novo teste de produção de<br />
concordância; analisar a produção da concordância por crianças do quinto ano do Ensino<br />
Fundamental falantes do português brasileiro através de sentenças escritas induzidas;<br />
verificar se os resultados encontrados seriam s<strong>em</strong>elhantes ou não aos encontrados nos<br />
estudos tomados como base <strong>em</strong> relação à produção de sentenças com orações relativas por<br />
crianças do quinto ano.<br />
3 N1 = Substantivo que é o núcleo do sujeito.<br />
4 N2 = Substantivo presente no material interferente (oração relativa).<br />
242
3) Metodologia<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Para realizar o presente estudo, aplicamos um teste a 16 crianças, 8 meninos e 8<br />
meninas, com idade entre 10 e 11 anos, todos alunos do 5º ano do ensino fundamental <strong>em</strong><br />
uma escola pública do Rio de Janeiro. Realizado <strong>em</strong> três grupos, de 6, 6, e 4 alunos, o teste<br />
consistiu <strong>em</strong> uma tarefa escrita na qual os alunos ouviam preâmbulos de sentenças gravados<br />
<strong>em</strong> um CD e, <strong>em</strong> seguida, lhes era mostrado <strong>em</strong> uma ficha, um verbo no modo infinitivo. Os<br />
participantes deviam, então, transcrever cada preâmbulo ouvido <strong>em</strong> uma das folhas do bloco<br />
numerado, completando-o com o verbo mostrado. Os 27 preâmbulos de sentenças foram<br />
previamente gravados <strong>em</strong> um CD, com intervalos de 45 segundos entre eles – t<strong>em</strong>po que foi<br />
considerado suficiente para que o aluno transcrevesse e completasse a sentença ouvida. Entre<br />
os 27 preâmbulos, 12 eram de teste, 12 eram distratores e 3 foram utilizados para treinamento<br />
da tarefa.<br />
A tarefa foi realizada na sala de leitura da escola, silenciosa e tranqüila e, antes que a<br />
tarefa fosse iniciada com cada grupo, um texto de instruções era lido para os participantes.<br />
Nesse momento, eles eram instruídos sobre a importância da atenção na atividade, uma vez<br />
que não poderia haver interrupções ou repetições na gravação. Além disso, eram instruídos de<br />
que deveriam passar a folha do bloco imediatamente após o término da escritura. Essa medida<br />
evitou que as crianças fizess<strong>em</strong> a releitura e revisass<strong>em</strong> o que fora produzido, garantindo a<br />
fidelidade dos resultados. Após a leitura das instruções, o treinamento era feito com três<br />
ex<strong>em</strong>plos de preâmbulos, permitindo que possíveis dúvidas ainda existentes foss<strong>em</strong> sanadas.<br />
As sentenças de teste foram formuladas da seguinte forma: artigo + núcleo do sujeito +<br />
adjetivo + oração relativa + verbo. Além disso, foram elaboradas <strong>em</strong> 4 condições diferentes, a<br />
saber:<br />
1. Condição SS N1 singular + N2 singular<br />
Ex.: A professora bonita que ensina a aluna (canta/cantou).<br />
2. Condição SP N1 singular + N2 plural<br />
Ex.: O hom<strong>em</strong> valente que enfrenta os bandidos (chega/chegou).<br />
3. Condição PS N1 plural + N2 singular<br />
Ex.: As moças bonitas que enganam os clientes (telefonam/telefonaram).<br />
4. Condição PP N1 plural + N2 plural<br />
Ex.: As meninas bondosas que visitam os velhinhos (voltam/voltaram).<br />
Quanto às sentenças distratoras 5 , para garantir que tivess<strong>em</strong> a mesma distância linear<br />
entre núcleo do sujeito e verbo, mantiv<strong>em</strong>os a mesma média de sílabas das sentenças de teste<br />
– 10 sílabas ou 11 sílabas.<br />
Ex.: As pessoas ligeiras, certamente, amanhã<br />
Todos os verbos apresentados eram da primeira conjugação e intransitivos. Além<br />
disso, nas sentenças de teste, nos preocupamos com que os verbos tivess<strong>em</strong> uma relação<br />
5 Sentenças que não são de teste. São inseridas apenas para prevenir uma dedução de regularidade por parte dos<br />
participantes.<br />
243
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
possível tanto com o núcleo do sujeito, quanto com o substantivo presente no material<br />
interveniente – a oração relativa.<br />
Durante a atividade, o CD foi executado ininterruptamente e cada grupo levou cerca<br />
de 40 minutos realizando a tarefa. Cada um dos 16 participantes transcreveu 12 sentenças de<br />
teste, totalizando 192 sentenças. No final, os participantes receberam um brinde por<br />
colaborar<strong>em</strong> com a pesquisa.<br />
Para a <strong>análise</strong> dos dados, transcrev<strong>em</strong>os as 192 sentenças de teste e as separamos <strong>em</strong><br />
três grupos, da seguinte forma:<br />
1) Sentenças que apresentaram Preâmbulos Completos Corretos, doravante PCC:<br />
Ex.: O menino levado que machuca a irmã ...<br />
2) Sentenças que apresentaram Preâmbulos Completos Incorretos, doravante PCI:<br />
Ex.: O hom<strong>em</strong> valente que prend<strong>em</strong> os bandidos...<br />
3) Sentenças que apresentaram Preâmbulos Incompletos, doravante PI:<br />
Ex.: As moças bonitas (...) enganam o cliente...<br />
Analisamos a concordância verbal apenas das sentenças que continham PCC. Como<br />
surgiram casos diferentes dos que eram esperados, separamos novamente as sentenças <strong>em</strong><br />
dois grupos: um das que apresentaram concordância correta ou incorreta <strong>em</strong> relação ao<br />
número do verbo da oração principal e outro das que apresentaram outros tipos de soluções<br />
para a inclusão do verbo 6 . A fim de realizarmos futuras <strong>análise</strong>s mais detalhadas com as<br />
d<strong>em</strong>ais sentenças, quantificamos as sentenças que apresentaram PCC, PCI e PI.<br />
4) Resultados<br />
Das 192 sentenças transcritas, 120 (63%) apresentaram PCC e foram analisadas. Entre<br />
essas 120 sentenças analisadas, 57 (47%) apresentaram concordância correta e 5 (4%)<br />
apresentaram concordância incorreta <strong>em</strong> relação ao número do verbo da oração principal (ver<br />
Tab.1A). As outras 58 sentenças (49%) apresentaram soluções diferentes das esperadas para a<br />
concordância (ver Tab.1B), como pod<strong>em</strong>os observar no Gráfico 1:<br />
6<br />
Em alguns casos, ao incluir o verbo, o aluno ao invés de flexioná-lo utilizou formas nominais do verbo. Ex.: A<br />
professora bonita que ensina a aluna (a cantar/ cantando).<br />
244
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Para investigar uma possível interação entre o tipo de preâmbulo e a sua transcrição<br />
(PCC, PCI ou PI), quantificamos e registramos sua distribuição de acordo com a condição da<br />
sentença (SS, SP, PS, PP) 7 :<br />
7 Condições de número do sujeito/verbo, a saber: SS = Singular/Singular; SP = Singular/Plural; PS =<br />
Plural/Singular e PP = Plural/Plural<br />
Gráfico 1<br />
Tabela 1A<br />
Tabela 1B<br />
245
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Tabela 2<br />
Como já foi relatado, entre as sentenças com preâmbulos reproduzidos de forma<br />
completa e correta (120), apenas 5 apresentaram erro na concordância nº do sujeito /nº do<br />
verbo e 58 apresentaram outro tipo de resposta (<strong>em</strong> geral, nominalizações). Como nosso<br />
interesse centrava-se nos erros de concordância nº do sujeito /nº do verbo, mantiv<strong>em</strong>os o foco<br />
da <strong>análise</strong> nas 62 sentenças que apresentaram concordâncias esperadas (corretas ou incorretas<br />
<strong>em</strong> relação ao número do sujeito e ao número do verbo).<br />
Como se pode observar na tabela 1A, a ocorrência de erros de concordância foi maior<br />
nas situações <strong>em</strong> que N1 era plural, tendo ocorrido 2 erros entre 11 sentenças PS (18%) e 2<br />
erros entre 13 sentenças PP (15%). Já nas situações <strong>em</strong> que N1 era singular, a ocorrência foi<br />
menor, tendo ocorrido apenas 1 erro entre 21 sentenças SP (5%) e nenhum erro entre 17<br />
sentenças SS (0%). Outro ponto que consideramos relevante foi que a proporção de erros <strong>em</strong><br />
situações de incongruência de número entre N1 e N2 (PS, SP) foi maior do que <strong>em</strong> situação<br />
de congruência (SS / PP).<br />
Em relação à Tabela 2, pod<strong>em</strong>os notar que, entre os preâmbulos transcritos pelos<br />
participantes, ocorreram 48 sentenças <strong>em</strong> cada uma das condições (SS, SP, PS, PP). Em cada<br />
condição, foram quantificadas as ocorrências dos 3 tipos de transcrição de preâmbulo (PCC,<br />
PCI ou PI). Para melhor visualização, apresentam-se, a seguir, os resultados <strong>em</strong> forma de<br />
gráficos por tipo de preâmbulo:<br />
Gráfico 2 Gráfico 3<br />
246
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Os dados mostram que <strong>em</strong> preâmbulos iniciados por singular, o número de erros foi<br />
menor. Em condição PS a ocorrência de erros de preâmbulo foi maior.<br />
5) Discussão<br />
Gráfico 4<br />
Após totalizar e fechar os resultados encontrados nesta pesquisa, foi possível realizar<br />
uma <strong>análise</strong> desses dados <strong>em</strong> comparação aos resultados obtidos nas pesquisas de Rodrigues<br />
(2006) e Negro et al (2005).<br />
Como foi visto, as sentenças com preâmbulos reproduzidos de forma completa e<br />
correta totalizaram 120 enunciados, dentre os quais, 58 apresentaram uma solução diferente<br />
da que era esperada, 5 apresentaram a concordância errada <strong>em</strong> relação ao número do verbo e<br />
57, a concordância correta. Estando o nosso foco de interesse voltado para as sentenças que<br />
continham preâmbulos corretos, com ou s<strong>em</strong> concordância <strong>em</strong> plural realizada, analisamos<br />
apenas os 62 enunciados que apresentaram respostas esperadas (57 com concordância correta<br />
e 5 com concordância errada). Os d<strong>em</strong>ais enunciados – os 58 que apresentaram respostas<br />
diferentes das esperadas – <strong>em</strong>bora não analisados, foram contabilizados na tabela 2.<br />
Nossos dados mostraram uma maior ocorrência de erros, como já mostramos na tabela<br />
1a, nas situações <strong>em</strong> que N1 era plural, com 2 erros entre 11 sentenças plural + singular e 2<br />
erros entre 13 sentenças de plural + plural. Nas situações <strong>em</strong> que N1 era singular,<br />
encontramos apenas 1 erro entre 21 sentenças de singular + plural e entre 17 sentenças de<br />
singular + singular, nenhum erro foi encontrado. Notamos também que a proporção de erros<br />
<strong>em</strong> situações de incongruência de número N1/N2 (plural+singular/singular+plural) foi maior<br />
do que <strong>em</strong> situações de congruência (singular+singular/plural+plural).<br />
A Tabela 2 apresenta a quantiifcação de incidências de prêmbulos completos corretos,<br />
completos incorretos e incompletos <strong>em</strong> todos os tipos de - SS, SP, PS, PP. Em situações de<br />
singular+singular, foram observados 41 casos de PCC, 1 PCI e 6 PI. Em situações de<br />
singular+plural, houve 35 PCC, 10 PCI e 3 PI. Nos casos de plural+singular, foram 19 PCC,<br />
16 PCI e 9 PI. Já <strong>em</strong> plural+plural, 25 PCC, 16 PCI e 7 PI. Com isso, seria possível deduzir<br />
que nos preâmbulos iniciados por singular e <strong>em</strong> situações PP a incidência de erros foi menor,<br />
enquanto que o maior número de erros de preâmbulo ocorreu na condição PS, de<br />
incongruência de número (N1 plural e N2 singular).<br />
Ao compararmos nosso trabalho com o de Rodrigues (2006) e Negro et al (2005),<br />
perceb<strong>em</strong>os que há erros de concordância com o el<strong>em</strong>ento interveniente (neste caso, as<br />
orações relativas) e <strong>em</strong> situações de incongruência de número. Observando apenas os dados<br />
relativos às orações relativas e às crianças de quinto ano, como nos trabalhos tomados como<br />
247
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
base, concluímos que é maior a ocorrência de erros com orações relativas intervenientes<br />
quando há distância longa entre núcleo do sujeito e verbo da oração principal. Perceb<strong>em</strong>os,<br />
ainda, que as crianças do quinto ano cometiam mais erros <strong>em</strong> sentenças com orações relativas,<br />
como dito, nas condições PP e PS.<br />
A tabela a seguir d<strong>em</strong>onstra os dados desta pesquisa <strong>em</strong> comparação aos dados de<br />
Negro et al (2005) <strong>em</strong> relação às crianças do quinto ano:<br />
Tabela 3: Comparação entre os resultados encontrados nos trabalhos de Negro et al, 2005 e<br />
esta investigação<br />
Com isso, pod<strong>em</strong>os dizer que o resultado encontrado <strong>em</strong> Negro et al (2005) foi<br />
corroborado: as crianças de quinto ano cometeram mais erros <strong>em</strong> situações com plural e,<br />
principalmente, <strong>em</strong> casos de incongruência de número. Além disso, não houve nenhuma<br />
ocorrência de erro <strong>em</strong> situação SS, tendo havido alguma ocorrência <strong>em</strong> situação de SP e<br />
maior incidência de erros <strong>em</strong> situações PS e PP.<br />
6) Considerações Finais<br />
O presente estudo coloca-se como ponte de contato entre trabalhos já realizados sob o<br />
assunto da concordância verbal. Os objetivos centrais deste trabalho foram alcançados:<br />
retomar os testes dos dois estudos <strong>em</strong> questão (Rodrigues, 2006; Negro et al., 2005) a fim de<br />
analisarmos construções s<strong>em</strong>elhantes <strong>em</strong> um novo teste piloto, associando aspectos<br />
trabalhados por cada estudioso, prevendo-se que os resultados caminhariam ao encontro do<br />
que já havia sido publicado na literatura, o que efetivamente se confirmou. Os próximos<br />
passos serão, então, os de aprofundar esse tipo de estudo realizado <strong>em</strong> função de dar maior<br />
especificidade e maior conhecimento acerca do t<strong>em</strong>a abordado, a partir das questões e<br />
hipóteses levantadas a ser<strong>em</strong> analisadas e revisadas com a continuidade da pesquisa.<br />
248
Referências<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
FAYOL, M.; HUPET, M.; LARGY, P. The acquisition of subject-verb agre<strong>em</strong>ent in written french:<br />
from novices to experts’ errors. Reading and Writing: an interdisciplinary journal, 11 (2). p. 153–<br />
174, 1999.<br />
LEVELT, W. Speaking: from intention to articulation. Cambridge, MA: MIT Press, 1989. cap. 1, p.1-<br />
28; cap. 12, p. 458-499.<br />
NEGRO, I., CHANQUOY, L., FAYOL, M., LOUIS-SIDNEY, M. Subject-verb agre<strong>em</strong>ent in children<br />
and adults: serial or hierarchical processing? Journal of Psycholinguistic Research, v. 34, n. 3, p.<br />
233-258, 2005.<br />
RODRIGUES, É.S. Processamento da concordância de número entre sujeito e verbo na<br />
produção de sentenças. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de <strong>Letras</strong>, 2006.<br />
249
“AJUDAR OU A - JU- DAR: o que é melhor para o afásico?”:<br />
contribuições de testes de não-palavras<br />
Victória Cristin do Nascimento Haddad (UERJ) 1<br />
RESUMO: Com o objetivo de investigar a resposta do afásico (pessoa que sofreu algum dano cerebral, afetando<br />
alguma região responsável pela linguag<strong>em</strong>) diante do modo de apresentação do estímulo linguístico, foi aplicado<br />
o teste de repetição de não-palavras. Sua aplicação é relevante para medir a m<strong>em</strong>ória de trabalho verbal (MTV) e<br />
probl<strong>em</strong>as articulatórios na produção da linguag<strong>em</strong>. No caso desta pesquisa, salienta-se, ainda, a necessidade de<br />
divulgar à população informações importantes para o convívio com afásicos. Para a confecção do teste foi<br />
elaborada uma lista de não-palavras. Em seguida, o aplicamos <strong>em</strong> duas fases: i) não-palavras pronunciadas de<br />
modo fluente; ii) não-palavras pronunciadas de modo silabado (falado pausadamente). Em ambas as fases, o<br />
teste foi aplicado primeiramente <strong>em</strong> controles e, <strong>em</strong> seguida, <strong>em</strong> três afásicos. Resultados da primeira fase<br />
apontaram que todos os afásicos apresentaram probl<strong>em</strong>as com não-palavras mais longas. Na segunda fase,<br />
resultados d<strong>em</strong>onstraram que os afásicos tiveram mais dificuldade para compreender os estímulos pausados. Este<br />
tipo de teste pode subsidiar o tratamento, pois a partir dos resultados se descobr<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as específicos, como<br />
a capacidade de manter informação na MTV e a capacidade de articulação de determinados fon<strong>em</strong>as. Além<br />
disso, se de fato afásicos possu<strong>em</strong> mais dificuldades na repetição de não-palavras silabadas, não haveria<br />
necessidade de mudança na maneira de se dirigir a eles: não adiantaria falar pausadamente, pois isso, <strong>em</strong> vez de<br />
ajudar, atrapalharia na retenção e na compreensão da fala.<br />
1) Introdução<br />
Em dez<strong>em</strong>bro de 2009, o Programa <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong> Condições Diferenciadas (PLCD),<br />
<strong>em</strong> parceria com a Universidade Veiga de Almeida, lançou o livro Pesquisa e Material<br />
Desenvolvidos com Base <strong>em</strong> Critérios Linguísticos para A Prática Fonoaudiológica nas<br />
Afasias. A obra é fruto de pesquisas realizadas pela equipe do Projeto <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong><br />
Circunstâncias Excepcionais, que integra o PLCD e focaliza aspectos linguísticos das afasias.<br />
A proposta do livro é oferecer caminhos a ser<strong>em</strong> seguidos pela Fonoaudiologia para<br />
diagnóstico e tratamento das afasias. Para tanto, testes foram elaborados e aplicados, com<br />
base no arcabouço teórico da Linguística e nos critérios de elaboração de testes da<br />
Psicolinguística.<br />
Entretanto, um teste ainda não havia sido aplicado, a “repetição de não-palavras”. A<br />
sua aplicação é relevante por dois motivos. Primeiro, para medir o des<strong>em</strong>penho da m<strong>em</strong>ória<br />
de trabalho verbal (MTV), que é um componente da mente relacionado com a compreensão<br />
da linguag<strong>em</strong>. Se houver probl<strong>em</strong>as <strong>em</strong> algum dos componentes que constitu<strong>em</strong> a MTV,<br />
pod<strong>em</strong> acontecer distúrbios na compreensão. Em segundo lugar, este teste mede probl<strong>em</strong>as<br />
articulatórios na produção da linguag<strong>em</strong>.<br />
A escolha por um teste de não-palavras foi baseada na necessidade de avaliar o<br />
des<strong>em</strong>penho dos afásicos s<strong>em</strong> a intervenção de outros componentes da MTV, que não fosse o<br />
circuito fonológico. Pode-se dizer que este teste é bastante adequado para medir seu<br />
des<strong>em</strong>penho, pois ao ouvir uma não-palavra não se acessam informações de cunho lexical que<br />
1 Bolsista de Extensão, orientada pelo Prof. Dr. Ricardo Joseh Lima (UERJ).<br />
250
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
passam pela MTV. Assim, assume-se que se o afásico tiver probl<strong>em</strong>as para armazenar a<br />
informação na MTV, devido a uma falha nesse componente, a comunicação será prejudicada.<br />
Para além desta investigação, intencionava-se verificar se a forma de apresentação das<br />
não-palavras para o afásico poderia facilitar sua compreensão. Por isso, o teste de nãopalavras<br />
foi dividido <strong>em</strong> duas fases – a primeira com não-palavras apresentadas de maneira<br />
fluente e a segunda com os itens do teste apresentados de maneira silabada (pausadamente).<br />
É comum as pessoas se dirig<strong>em</strong> a uma criança pausadamente. Por ex<strong>em</strong>plo, uma mãe<br />
pode dizer ao seu filho: “Pedro! Já di-sse pra fa-zer si-lên-cio!”. O mesmo acontece quando o<br />
interlocutor é um estrangeiro. Por ex<strong>em</strong>plo, “ – o metrô fica à direita; di-rei-ta.”. Será que isso<br />
ajudaria o afásico?<br />
Um estudo anterior, realizado com crianças (Lobo; Acrani; Ávila, 2008), revelou que<br />
estas possuíam mais dificuldade <strong>em</strong> repetir as não-palavras mais longas na versão silabada.<br />
Pod<strong>em</strong>os, então, investigar se o mesmo aconteceria com os afásicos.<br />
Se o des<strong>em</strong>penho com não-palavras silabadas for pior para o afásico, assim como foi<br />
com as crianças, não seria aconselhável falar dessa maneira com eles. Então, o principal<br />
objetivo desta pesquisa é investigar se a população de afásicos será prejudicada se as pessoas<br />
se dirigir<strong>em</strong> a eles como às vezes o faz<strong>em</strong> com as crianças, e adicionalmente, fornecer<br />
informações e material para a prática fonoaudiológica, principalmente, no que tange ao<br />
relacionamento do afásico com as pessoas que o rodeiam.<br />
Na primeira seção deste capítulo, são apresentados de maneira detalhada os critérios<br />
envolvidos na elaboração do teste de repetição de não-palavras nas duas fases, b<strong>em</strong> como os<br />
sujeitos que participaram do teste, os procedimentos de aplicação, transcrição e classificação<br />
dos itens. Na segunda seção, são apontados os resultados dos dados encontrados. E, por fim, é<br />
proposta uma discussão acerca desses primeiros resultados analisados.<br />
2) O teste de repetição de não-palavras<br />
Nesta seção encontra-se descrito todo o processo do teste de repetição de não-palavras,<br />
desde sua confecção até a classificação dos resultados. Apesar de o teste ter sido dividido <strong>em</strong><br />
duas fases, não são apresentadas descrições distintas para cada uma delas, porque a segunda<br />
fase foi uma continuação da primeira. Por isso, os acréscimos feitos à segunda fase do teste<br />
serão inseridos à medida que for necessário.<br />
2.1) Procedimentos de elaboração<br />
Para a confecção do teste, foi utilizada como fonte uma lista de 288 não-palavras do<br />
livro Pesquisa e Material Desenvolvidos com Base <strong>em</strong> Critérios Linguísticos para a Prática<br />
Fonoaudiológica nas Afasias (parte III, na seção Material Fonoling). Os itens dessa lista estão<br />
classificados de acordo com o tamanho (monossílabos, dissílabos, trissílabos e polissílabos),<br />
com a tonicidade (oxítonos, paroxítonos e proparoxítonos) e com o fon<strong>em</strong>a inicial (oclusivos<br />
surdos e sonoros, fricativos surdos e sonoros, nasais e laterais). Por se tratar de um número<br />
muito grande de não-palavras para a aplicação <strong>em</strong> um afásico, fez-se necessária a redução e a<br />
subdivisão da lista original <strong>em</strong> quatro listas menores.<br />
251
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Para cada uma dessas listas, foram selecionadas 54 não-palavras subdivididas <strong>em</strong> seis<br />
blocos de fon<strong>em</strong>as iniciais (/p/ /t/ /k/; /b/ /d/ /g/; /f/ /s/ /š/; /v/ /z/ /ž/; /m/ /n/; /l/ /x/). Cada<br />
bloco é composto por 9 não-palavras, sendo: 1 monossílabo; 2 dissílabos (1 paroxítono e 1<br />
oxítono); 3 trissílabos (1 proparoxítono, 1 paroxítono e 1 oxítono); 3 polissílabos (1<br />
proparoxítono, 1 paroxítono e 1 oxítono). Assim, após a subdivisão, as não-palavras ficaram<br />
distribuídas como mostra o quadro da Figura1.<br />
Figura 1 – Ex<strong>em</strong>plo de lista dividida por grupos de fon<strong>em</strong>as iniciais<br />
Lista 1<br />
/ptk/ /bdg/<br />
pu tame paqué dé Bune dopi<br />
tecabe carezá pátaco gapeba Dalená bádaco<br />
t<strong>em</strong>onorá petáguita tacopago d<strong>em</strong>enori Bavázoro gatogaco<br />
/fsš/ /vzž/<br />
sá fapo chofu ji Vosa japi<br />
favosa sinori xáquire jafázi Zoneli vádalo<br />
fosafovi Xatágada samonero jotadani Verámono zacatago<br />
/mn/ /lx/<br />
mó mugue nabi rá Lafo ragá<br />
natago medotá nêdaga rofázu Litaji ráralo<br />
nesagedá navíjoso matotade limenori Ricédovo lamonéri<br />
Sendo assim, as quatro listas foram organizadas de maneira balanceada, levando <strong>em</strong><br />
consideração os três critérios de classificação da lista completa de 288 itens.<br />
Com as não-palavras divididas <strong>em</strong> listas menores, a próxima etapa consistiu na<br />
elaboração de uma ord<strong>em</strong> aleatória para a aplicação do teste. Foi atribuído um número a cada<br />
um dos 54 itens de cada lista, <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> crescente de acordo com o número de sílabas,<br />
tonicidade e fon<strong>em</strong>a inicial. Os números de 1 a 6 eram monossílabos, de 7 a 12 dissílabos<br />
paroxítonos, de 13 a 18 dissílabos oxítonos, de 19 a 24 trissílabos paroxítonos, de 25 a 30<br />
trissílabos oxítonos, de 31 a 36 trissílabos proparoxítonos, de 37 a 42 polissílabos oxítonos, de<br />
43 a 48 polissílabos proparoxítonos e, por fim, de 49 a 54 polissílabos paroxítonos. Seguindo<br />
o ex<strong>em</strong>plo do quadro anterior, os itens ficaram organizados como mostra a Figura 2.<br />
Figura 2 – Ex<strong>em</strong>plo de lista com a atribuição de números às não-palavras<br />
Lista 1<br />
1 Pu 28 zoneli<br />
2 Dé 29 medotá<br />
3 Sá 30 litaji<br />
4 Ji 31 Pátaco<br />
252
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
5 Mó 32 Bádaco<br />
6 Rá 33 Xáquire<br />
7 Tame 34 Vádalo<br />
8 bune 35 Nêdaga<br />
9 fapo 36 Ráralo<br />
10 vosa 37 T<strong>em</strong>onorá<br />
11 mugue 38 D<strong>em</strong>enorí<br />
12 lafo 39 Fosafovi<br />
13 paqué 40 Jotadani<br />
14 dopi 41 Nesagedá<br />
15 chofu 42 Limenori<br />
16 japi 43 Petáguita<br />
17 nabi 44 Bavázoro<br />
18 ragá 45 Xatágada<br />
19 tecabe 46 Verámono<br />
20 gapeba 47 Navijoso<br />
21 favosa 48 Ricédovo<br />
22 jafázi 49 Tacopago<br />
23 natago 50 Gatogaco<br />
24 rofázu 51 Samonero<br />
25 carezá 52 Zacatago<br />
26 dalená 53 Matotade<br />
27 sinori 54 Lamonéri<br />
Feito isso <strong>em</strong> cada lista, esses itens foram distribuídos aleatoriamente. Não foi<br />
utilizado o procedimento padrão para ord<strong>em</strong> de apresentação de não-palavras, que é das<br />
palavras menores para as maiores. Esta escolha pela distribuição aleatória foi baseada <strong>em</strong><br />
outro procedimento padrão utilizado <strong>em</strong> estudos psicolinguísticos. Assume-se que a<br />
apresentação contínua de itens de características s<strong>em</strong>elhantes pode criar algum efeito<br />
facilitador (no caso das palavras menores) no des<strong>em</strong>penho do participante do teste, enquanto<br />
que a aleatoriedade não deve causar nenhuma alteração. Finalmente, as listas estavam<br />
concluídas para a próxima fase de elaboração do teste. A seguir, uma ilustração da Lista 1<br />
após esse procedimento.<br />
Ord<strong>em</strong> de<br />
apresentação<br />
da não-palavra<br />
Número<br />
atribuído à<br />
não-palavra<br />
Figura 3 – Ex<strong>em</strong>plo de lista <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> aleatória<br />
Lista 1<br />
1 44 bavázoro 28 35 Nêdaga<br />
2 38 d<strong>em</strong>enorí 29 41 nesagedá<br />
3 9 fapo 30 6 Rá<br />
4 26 dalená 31 14 dopi<br />
5 47 navijoso 32 33 xáquire<br />
6 49 tacopago 33 29 Medotá<br />
7 43 petáguita 34 8 bune<br />
253
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
8 22 jafázi 35 18 Ragá<br />
9 30 litaji 36 32 Bádaco<br />
10 20 gapeba 37 11 Mugue<br />
11 37 t<strong>em</strong>onorá 38 27 Sinori<br />
12 7 Tame 39 13 Paqué<br />
13 54 lamonéri 40 52 Zacatago<br />
14 40 jotadani 41 48 Ricédovo<br />
15 42 limenori 42 25 Carezá<br />
16 3 Sá 43 31 Pátaco<br />
17 4 ji 44 10 Vosa<br />
18 45 xatágada 45 1 Pu<br />
19 15 chofu 46 46 Verámono<br />
20 28 zoneli 47 50 Gatogaco<br />
21 12 lafo 48 23 Natago<br />
22 36 Ráralo 49 2 Dé<br />
23 53 matotade 50 21 Favosa<br />
24 39 fosafovi 51 17 Nabi<br />
25 16 japi 52 24 Rofázu<br />
26 51 samonero 53 34 Vádalo<br />
27 19 tecabe 54 5 Mó<br />
Apesar de todas as quatro listas ter<strong>em</strong> sido preparadas dessa maneira para a aplicação,<br />
apenas duas delas foram efetivamente utilizadas.<br />
Com a ord<strong>em</strong> de aplicação de cada lista do teste definida, a próxima fase consistiu na<br />
gravação das não-palavras. Elas foram gravadas na voz da autora, com o auxílio de um<br />
software de edição de áudio e um microfone de boa qualidade. Após a gravação, os itens<br />
foram reunidos na ord<strong>em</strong> aleatória estabelecida. Com o intuito de indicar o início das palavras<br />
para a aplicação do teste, foi acrescentado um sinal sonoro antes de cada um dos itens da lista,<br />
com intervalo de um segundo entre o sinal e a não-palavra. Após a não-palavra, havia um<br />
intervalo de seis segundos para sua respectiva repetição. No total, as listas têm quase oito<br />
minutos de duração. Cada uma delas foi dividida <strong>em</strong> duas faixas de áudio: a primeira faixa<br />
contém palavras de 1 a 27, a segunda de 28 a 54. Em seguida, os arquivos foram gravados <strong>em</strong><br />
um CD-ROM.<br />
O mesmo procedimento de gravação foi adotado para as não-palavras silabadas.<br />
Entretanto, entre cada uma das sílabas dos itens havia um intervalo de um segundo, e entre as<br />
não-palavras havia dez segundos, o que aumentou consideravelmente a duração do teste. No<br />
total, as listas dessa fase ficaram com a duração <strong>em</strong> torno de 13min30seg.<br />
2.2) Sujeitos<br />
Nas duas fases, o teste foi aplicado primeiramente <strong>em</strong> controles e, <strong>em</strong> seguida, <strong>em</strong> três<br />
afásicos.<br />
254
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Os controles que participaram voluntariamente da pesquisa eram estudantes<br />
universitários. AP, TA e OS são do sexo f<strong>em</strong>inino, IC é do masculino. Na época da aplicação<br />
do teste, AP tinha 22 anos, TA 20 anos, OS 22 anos e IC 26 anos.<br />
Também, voluntariamente, participaram da pesquisa os afásicos CS, RM e SF. Eles<br />
apresentam diferentes tipos de afasias. CS e RM são agramáticos (fala telegráfica), ou seja, na<br />
sua fala comet<strong>em</strong> violações de ord<strong>em</strong> sintática, principalmente no uso de conectivos e flexão<br />
de t<strong>em</strong>po. O afásico SF é anômico, ou seja, ao contrário dos outros, não apresenta dificuldade<br />
com conectivos, concordâncias e flexões, mas sim um probl<strong>em</strong>a para encontrar palavras para<br />
denominar objetos.<br />
Todos eles estão <strong>em</strong> terapia fonoaudiológica; CS há três anos e seis meses, RM há um<br />
ano e SF há um ano e seis meses. Na Tabela 1, estão os detalhes de cada caso.<br />
Tabela 1 – Caracterização dos afásicos<br />
Dados CS RM SF<br />
Idade * 24 38 61<br />
Local da lesão**<br />
Sintomas<br />
Concomitantes<br />
T<strong>em</strong>po de<br />
lesão*<br />
Área de encefalomácia<br />
acometendo os lobos insular,<br />
frontal, t<strong>em</strong>poral e parietal<br />
esquerdos. Lacunas<br />
isquêmicas na coroa radiada,<br />
cabeça do núcleo caudado e<br />
na substância branca periventricular<br />
adjacente ao<br />
corno frontal do ventrículo<br />
lateral, à esquerda, e no<br />
joelho do corpo caloso.<br />
Lesão anterior no h<strong>em</strong>isfério<br />
esquerdo.<br />
Lesão de aspecto isquêmico<br />
<strong>em</strong> território vascular de<br />
artéria cerebral média<br />
esquerda que acomete os<br />
lobos t<strong>em</strong>poral e parietal e<br />
porção anterior do lobo<br />
occipital.<br />
H<strong>em</strong>iparesia direita Leve dispraxia oral Nenhum<br />
6 anos 11 meses 2 anos<br />
Etiologia Encefalite Acidente Vascular Encefálico Acidente Vascular Encefálico<br />
Características<br />
funcionais<br />
Fala telegráfica Fala telegráfica Anomia<br />
Sexo Masculino Masculino F<strong>em</strong>inino<br />
Lateralidade Destra Destra Destra<br />
Profissão Estudante Vendedor Ambulante Aposentada<br />
Escolaridade Médio <strong>em</strong> curso<br />
*Na época do teste.<br />
**De acordo com o laudo médico anexado à tomografia.<br />
2.3) Procedimentos de aplicação<br />
Ensino Fundamental<br />
completo<br />
Superior <strong>em</strong> Engenharia<br />
Elétrica<br />
Primeiramente, o teste foi aplicado <strong>em</strong> controles. Tal procedimento foi adotado para<br />
identificar possíveis probl<strong>em</strong>as nas gravações. Com a confirmação da eficácia das gravações,<br />
seguiu-se a aplicação nos afásicos.<br />
255
2.3.1) Controles<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A aplicação do teste nos controles foi realizada na sala do PLCD, na UERJ. A<br />
primeira fase aconteceu nos dias 05 e 06 de maio de 2010. Foi utilizado um fone de ouvido<br />
conectado a um computador. A cada controle foi aplicada uma lista distinta. As listas 1, 2, 3 e<br />
4 foram respectivamente aplicadas nos controles AP, TA, IC e OS. A eles foi dito, nas<br />
instruções, que ouviriam palavras inventadas de vários tamanhos, precedidas de um sinal<br />
sonoro e, <strong>em</strong> seguida, deveriam repeti-las. Também foi dito que poderiam interromper e fazer<br />
comentários, se necessário. A duração da aplicação do teste <strong>em</strong> cada controle foi a seguinte:<br />
AP 8min20seg; TA 8min6seg; IC 8min29seg; OS 8min20seg.<br />
A segunda fase foi no dia 30 de agosto de 2010. Nesta fase apenas as listas 1 e 2 foram<br />
aplicadas. Por isso, somente os controles AP e TA participaram, pois as listas <strong>em</strong> questão<br />
foram utilizadas com eles anteriormente. A duração de aplicação do teste nesta fase foi a<br />
seguinte: AP 13min58seg; TA 13min22seg.<br />
O teste foi acompanhado pela autora, que anotava repetições incorretas <strong>em</strong> uma folha<br />
que continha a lista que estava sendo utilizada. Além das anotações, todos foram gravados<br />
com um aparelho digital para posterior transcrição.<br />
2.3.2) Afásicos<br />
Cada afásico foi testado individualmente <strong>em</strong> uma cabine audiológica, com a<br />
colaboração do audiologista e supervisão da autora, no dia 1º de junho de 2010. Em todos os<br />
casos, foi realizada audiometria tonal por profissional audiologista para que fosse descartada<br />
qualquer manifestação negativa quanto à capacidade auditiva, que pudesse influenciar na<br />
aplicação do teste. A avaliação auditiva foi realizada <strong>em</strong> ambiente próprio, com aparelho da<br />
marca Si<strong>em</strong>ens modelo AC 40 aferido, conforme normas técnicas.<br />
Antes da aplicação, como aconteceu com os controles, foram dadas algumas<br />
instruções aos afásicos. Foi dito a eles que fariam uma atividade muito importante de<br />
repetição, pois o resultado dela levaria ao esclarecimento de algumas de suas dificuldades,<br />
tornando possível uma melhora <strong>em</strong> seu tratamento. No detalhamento da atividade, foi<br />
explicado que eles ouviriam 54 palavras inventadas, de tamanhos diferentes, que só iriam ser<br />
reproduzidas uma vez, e que deveriam repeti-las <strong>em</strong> seguida e aguardar a palavra seguinte.<br />
Também foi dito que antes de cada palavra haveria um sinal sonoro, um bipe, para indicar que<br />
a não-palavra iria começar. Ainda, ficou b<strong>em</strong> claro que, apesar de parecer muito alto o<br />
número de palavras, o teste só levaria alguns minutos e que, mesmo havendo uma pausa<br />
programada para a metade do teste, eles poderiam pedir para interromper a qualquer<br />
momento. Assumindo que a dificuldade das listas é a mesma, a lista 1 foi utilizada para os<br />
afásicos CS e RM, e a lista 2 para SF.<br />
Com o objetivo de verificar se houve, de fato, o pleno entendimento das instruções,<br />
antes do inicio do teste <strong>em</strong> si, foi feito um pré-teste com três não-palavras retiradas de uma<br />
das listas que não seria utilizada no teste. A duração da aplicação <strong>em</strong> cada um dos afásicos, na<br />
forma fluente, excluindo o t<strong>em</strong>po de instruções e incluindo as três palavras do pré-teste, foi de<br />
9min47seg para CS, 8min30seg para RM e 11min30seg para SF. Houve três pausas durante a<br />
256
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
aplicação no afásico CS (após os itens 8, 19 e 27), e uma pausa para os afásicos RM e SF<br />
(após o it<strong>em</strong> 27, na metade do teste).<br />
No dia 31 de agosto de 2010, a segunda fase do teste foi aplicada nos afásicos. Nessa<br />
fase, além das instruções dadas anteriormente na primeira fase, foi adicionada a informação<br />
que os instruía a não repetir as não-palavras pausadamente, apesar de as ouvir<strong>em</strong> assim. A<br />
duração da aplicação foi a seguinte: 16min30seg para o afásico CS; 16min50seg para RM;<br />
15min50seg para SF. Houve duas pausas durante a aplicação de CS (após os itens 3 e 27) e<br />
RM (após os itens 16 e 27) e apenas uma para SF (após o it<strong>em</strong> 27). Nesses intervalos, a<br />
instrução para não repetir as não-palavras pausadamente foi reforçada, pois se notou que os<br />
afásicos tendiam a fazê-lo.<br />
Em ambas as fases, eles não d<strong>em</strong>onstraram desconforto no momento da aplicação, fato<br />
este refletido no baixo número de pausas no decorrer do teste e na realização do mesmo até o<br />
fim. Mesmo na fase de não-palavras silabadas, que teve a duração acrescida <strong>em</strong> cerca de<br />
5mim30seg, não houve desistência.<br />
Além do acompanhamento do teste pela autora, a aplicação, no caso dos afásicos, foi<br />
acompanhada na primeira fase por um audiologista, que era responsável pelos equipamentos<br />
da cabine audiológica, por uma fonoaudióloga, e por duas estudantes de <strong>graduação</strong> da<br />
Universidade Veiga de Almeida. Na segunda fase, estavam presentes a autora, o audiologista<br />
e apenas uma das estudantes presentes na fase anterior. Todos os afásicos também foram<br />
gravados com um aparelho digital para posterior transcrição. Apesar disso, assim como feito<br />
com os controles, a autora portava folhas com as listas que estavam sendo aplicadas para<br />
anotar as incorreções de repetição, b<strong>em</strong> como todos os detalhes que foss<strong>em</strong> importantes para<br />
futura <strong>análise</strong> dos resultados.<br />
Na segunda fase, apesar de ter sido dada a instrução de que era necessário esperar o<br />
término da palavra para começar a repeti-la, pelo fato de as não-palavras conter<strong>em</strong> pausas<br />
entre as sílabas, houve momentos <strong>em</strong> que os afásicos começavam a repetir a palavra antes de<br />
terminar de ouvi-la. Por isso, às vezes foi necessário fazer um sinal para o afásico esperar o<br />
término da não-palavra. Além disso, o audiologista apertava o botão de pausa, quando notava<br />
que o t<strong>em</strong>po de dez segundos poderia não ser suficiente para a repetição.<br />
2.4) A transcrição<br />
A transcrição seguiu-se à aplicação do teste. Com o auxílio das gravações, foi possível<br />
confirmar os erros identificados e anotados durante a aplicação do teste. As não-palavras<br />
foram transcritas da maneira que foram pronunciadas, uma a uma, de acordo com a ord<strong>em</strong> de<br />
aplicação de sua respectiva lista. Por ex<strong>em</strong>plo, a não-palavra “dalená”, da lista 1, foi<br />
pronunciada pelo afásico RM da seguinte maneira “marená”. Nas transcrições, foram<br />
desconsideradas as s<strong>em</strong>i-vocalizações <strong>em</strong> final de palavra, como de /o/ para [u].<br />
2.5) A classificação<br />
Utilizou-se a possibilidade de organização e visualização de cruzamentos de dados do<br />
programa Varbrul. Deve-se ressaltar que a parte estatística não foi utilizada. Para a inserção<br />
257
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
dos dados no programa, fez-se necessária uma classificação detalhada da maneira que cada<br />
it<strong>em</strong> das listas foi repetido (ou não) pelos afásicos.<br />
A primeira categoria de classificação distingue as repetições entre corretas e<br />
incorretas. Considerou-se como “repetição correta” aquela s<strong>em</strong> nenhuma alteração <strong>em</strong> relação<br />
à não-palavra alvo. Tendo <strong>em</strong> vista que n<strong>em</strong> todas as não-palavras apresentadas aos afásicos<br />
foram repetidas, a segunda categoria aponta se o afásico repetiu (falou) ou não o it<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />
questão. As três categorias seguintes especificam detalhes da não-palavra. Cada it<strong>em</strong> das<br />
listas foi classificado quanto à extensão (categoria 3), fon<strong>em</strong>a inicial (categoria 4) e<br />
tonicidade (categoria 5), fazendo-se menção às divisões apresentadas no início desta seção.<br />
Tendo sido repetida ou não a não-palavra pelo afásico, estas três categorias estão presentes <strong>em</strong><br />
todos os itens classificados.<br />
Na segunda fase do teste, foi adicionada uma categoria que não foi adotada na<br />
primeira. Trata-se da categoria fluência. Ela foi utilizada para identificar quando o afásico<br />
repetiu a palavra pausadamente ou não. Quando a não-palavra foi classificada como<br />
“incorreta” e “falada”, procedeu-se a uma classificação do tipo de alteração/incorreção. A<br />
seguir, os tipos de classificação das alterações.<br />
a. Alternância: troca de fon<strong>em</strong>as dentro da mesma não-palavra.<br />
Ex.: “rofázu” por “rozáfu” (alternância dos fon<strong>em</strong>as nas duas últimas sílabas)<br />
b. Substituição: troca de um fon<strong>em</strong>a por outro que não consta na não-palavra. No caso<br />
da substituição, houve ainda outra subdivisão, referente ao tipo de alteração fonológica<br />
das consoantes. A alteração pode envolver: (i) sonoridade; (ii) ponto de articulação;<br />
(iii) modo de articulação; (iv) troca de vogal. Ou ainda, as seguintes combinações: (v)<br />
sonoridade e ponto de articulação; (vi) sonoridade e modo de articulação; (vii)<br />
sonoridade e ponto e modo de articulação; (viii) ponto e modo de articulação;<br />
Ex.: “japi” por “zapi” (substituição envolvendo o ponto de articulação)<br />
c. Apagamento: não execução de um fon<strong>em</strong>a ou sílaba na não-palavra.<br />
Ex.: “navijoso” por “navichu-” (apagamento da última sílaba)<br />
d. Acréscimo: adição de um fon<strong>em</strong>a ou sílaba à não-palavra.<br />
Ex.: “rolamaro” por “rolamário” (acréscimo de fon<strong>em</strong>a na última sílaba)<br />
Dentro dessas quatro categorias, todas as alterações contêm o detalhe fonológico dos<br />
fon<strong>em</strong>as trocados, apagados ou acrescentados.<br />
Por fim, foi atribuído um código para cada afásico, a fim de identificar qu<strong>em</strong> executou<br />
cada it<strong>em</strong> classificado. A seguir, um ex<strong>em</strong>plo com os códigos atribuídos à classificação de<br />
não-palavra.<br />
Não-palavra: gapeba<br />
Classificação: (ef3gpPsdgR) gapeba para papeba<br />
Neste ex<strong>em</strong>plo, há dez informações distintas, representadas por cada uma das entradas<br />
(letra ou número). Veja agora o que cada uma significa na classificação desta não-palavra.<br />
258
e → incorreta<br />
f → falada<br />
3 → três sílabas<br />
g → fon<strong>em</strong>a inicial oclusivo sonoro<br />
p → paroxítona<br />
P → execução pausada<br />
s → substituição<br />
d → tipo de substituição – sonoridade e ponto de articulação<br />
g → traço fonológico do fon<strong>em</strong>a substituído (oclusivo sonoro)<br />
R → afásico RM<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Desse modo, é possível realizar <strong>análise</strong>s quantitativas das incorreções, seus tipos e<br />
subdivisões, de acordo com os perfis de cada grupo de não-palavras. Na seção a seguir, estão<br />
os primeiros resultados contabilizados a partir dos dados recolhidos e classificados do teste.<br />
3) Resultados<br />
Na primeira fase, a de não-palavras no modo fluente, CM e RM (os dois afásicos<br />
agramáticos) tiveram um des<strong>em</strong>penho fraco e b<strong>em</strong> inferior ao de SF, como pode ser<br />
observado claramente no gráfico a seguir.<br />
Gráfico 1 – Comparação da porcentag<strong>em</strong> de acertos de acordo com o número de sílabas<br />
Os resultados apontados tanto no Gráfico 1 quanto nos gráficos a seguir revelam o<br />
índice de acertos, considerando o número de sílabas das não-palavras. Pode-se notar, no<br />
Gráfico 1, que quanto maior a não-palavra, mais difícil é para o afásico repeti-la. Em outras<br />
palavras, a maior parte dos erros cometidos está nos itens com três ou quatro sílabas. Estes<br />
dados pod<strong>em</strong> constatar a existência de dificuldades de manter informação na m<strong>em</strong>ória de<br />
trabalho verbal. Nota-se que a dificuldade mostrou-se maior para CS e RM.<br />
259
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Até o momento, os dados de tonicidade e de detalhes com dificuldades com os<br />
fon<strong>em</strong>as ainda não foram analisados na pesquisa. Entretanto, resultados iniciais apontam para<br />
maior dificuldade <strong>em</strong> repetir fon<strong>em</strong>as não-oclusivos. Conforme esperado, uma vez que houve<br />
dificuldades de repetição com palavras acima de três sílabas, também foram encontrados<br />
probl<strong>em</strong>as com palavras proparoxítonas.<br />
(16).<br />
O des<strong>em</strong>penho de CS foi inferior ao de RM devido ao número de itens não repetidos<br />
Na segunda fase, a de não-palavras apresentadas de maneira silabada, o des<strong>em</strong>penho<br />
probl<strong>em</strong>ático se manteve com não-palavras de 3 e 4 sílabas. Houve leve melhora no<br />
des<strong>em</strong>penho de CS, que pode ser atribuída ao aumento no número de itens repetidos por ele.<br />
Isso porque, na primeira fase do teste, o número de palavras que ele não repetiu foi muito alto<br />
<strong>em</strong> relação à segunda.<br />
Gráfico 2 – Comparação do número de não-palavras não repetidas<br />
O Gráfico 2, além de d<strong>em</strong>onstrar a diferença relevante entre número de não-palavras<br />
que não foram repetidas pelo afásico CS <strong>em</strong> cada fase, também expõe a mudança de<br />
comportamento de RM e SF. Apesar de a diferença ser pequena, nota-se que os dois<br />
d<strong>em</strong>onstraram mais dificuldade para repetir os itens nessa fase, ao contrário de CS. Nota-se<br />
ainda que, por ex<strong>em</strong>plo, no caso de RM, houve um salto de 1 para 4 itens não repetidos, o que<br />
equivale à diferença de aproximadamente 1,9% para 9,25%.<br />
Os três gráficos que segu<strong>em</strong> são baseados nos dados de comparação de des<strong>em</strong>penho de<br />
cada um dos afásicos nas duas fases.<br />
Gráfico 3 – Des<strong>em</strong>penho de CS: comparação da porcentag<strong>em</strong> de acertos nas duas fases de acordo com<br />
o número de sílabas<br />
260
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Primeira fase<br />
No Gráfico 3, percebe-se o que foi mencionado anteriormente sobre uma leve melhora<br />
no des<strong>em</strong>penho de CS. Entretanto, mantém-se a dificuldade com não-palavras com mais de<br />
três sílabas.<br />
Gráfico 4 – Des<strong>em</strong>penho de RM: comparação da porcentag<strong>em</strong> de acertos nas duas fases de acordo<br />
com o número de sílabas<br />
Primeira fase<br />
261
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Já o des<strong>em</strong>penho de RM na segunda fase, d<strong>em</strong>onstrado no Gráfico 4, caiu<br />
significativamente mesmo nos itens com menor número de sílabas.<br />
Gráfico 5 – Des<strong>em</strong>penho de SF: comparação da porcentag<strong>em</strong> de acertos nas duas fases de acordo com<br />
o número de sílabas<br />
O gráfico de des<strong>em</strong>penho de SF se difere dos anteriores. No caso de SF, houve 8% de<br />
queda com não-palavras de duas sílabas, mas com não-palavras de três e quatro sílabas houve<br />
aumentos significativos. Contudo, faz-se necessário ressaltar o fato de SF ser afásico anômico<br />
e não d<strong>em</strong>onstrar probl<strong>em</strong>as na m<strong>em</strong>ória de trabalho verbal. Apesar desse aumento, houve<br />
menos de 50% de acertos <strong>em</strong> itens de 4 sílabas.<br />
4) Considerações finais<br />
Primeira fase<br />
Voltando à motivação desta pesquisa, é possível responder se a maneira (velocidade)<br />
com que o estímulo linguístico é apresentado faz diferença para o afásico, com os dados<br />
apresentados na seção anterior? Os gráficos apontam uma resposta positiva. Mas para além de<br />
se confirmar uma dificuldade maior com não-palavras faladas pausadamente, alguns outros<br />
aspectos referentes ao quadro afásico pod<strong>em</strong> ser discutidos.<br />
Primeiramente, as diferenças de resultados na primeira fase apontam probl<strong>em</strong>as na<br />
m<strong>em</strong>ória de trabalho fonológica nos afásicos agramáticos. Além disso, uma <strong>análise</strong> mais<br />
detalhada desses dois afásicos revelou que um d<strong>em</strong>onstrou b<strong>em</strong> mais dificuldades do que o<br />
outro. Já na segunda fase, RM e SF não se beneficiaram com não-palavras silabadas, enquanto<br />
CS apresentou um aumento no número de repetições. Isso aponta a impossibilidade da<br />
262
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
utilização do teste para analisar o des<strong>em</strong>penho de tipos diferentes de afásicos. É necessário<br />
que se considere cada caso. Com isso, pode-se concluir que a prática fonoaudiológica deve ser<br />
individualizada e que o conhecimento de habilidades linguísticas (ou relacionadas) é<br />
extr<strong>em</strong>amente importante para o trabalho do fonoaudiólogo.<br />
Em segundo lugar, observa-se o alinhamento com os resultados do estudo anterior,<br />
feito com crianças, que indicou que silabar palavras não facilita a realização da tarefa (Lobo;<br />
Acrani; Ávila, 2008). Pode-se concluir que a velocidade com que falamos as palavras<br />
influencia na compreensão e repetição. Se, de fato, afásicos possu<strong>em</strong> mais dificuldades na<br />
repetição de não-palavras silabadas, assim como as crianças, não há necessidade de mudar a<br />
maneira com a qual as pessoas falam com eles: não adianta falar as palavras pausadamente,<br />
pois isso, <strong>em</strong> vez de ajudar, atrapalharia na retenção e na compreensão das mesmas. Se isso<br />
acontece com palavras, imagina-se que <strong>em</strong> sentenças inteiras o probl<strong>em</strong>a também estará<br />
presente, causando sérios danos na comunicação. Como mencionado no inicio do capítulo, no<br />
cotidiano, as pessoas tend<strong>em</strong> a falar pausadamente quando se dirig<strong>em</strong> a uma criança, ou<br />
mesmo a um estrangeiro. Por isso, a tendência é fazer o mesmo com o afásico, apesar de não<br />
ser o indicado de acordo com esta pesquisa.<br />
Tais constatações não apontam somente para o trabalho do fonoaudiólogo, mas<br />
também para a necessidade de divulgação dessas informações para as pessoas que conviv<strong>em</strong><br />
com afásicos. Observa-se que esse tipo de pesquisa deve gerar resultados práticos. É possível<br />
identificar probl<strong>em</strong>as específicos sobre a pessoa afásica, possibilitando melhorias <strong>em</strong> seu<br />
tratamento e na convivência com a comunidade que o rodeia.<br />
No PLCD, programa de extensão vinculado à UERJ, desde 2007 pesquisas estão sendo<br />
feitas no sentido de fornecer meios para fonoaudiólogos identificar<strong>em</strong> detalhes de probl<strong>em</strong>as<br />
especificamente linguísticos, b<strong>em</strong> como meios para fazer com que tais informações alcanc<strong>em</strong><br />
outros profissionais envolvidos no tratamento dos pacientes afásicos e a população <strong>em</strong> geral.<br />
Por isso, onde e como divulgar essas informações, b<strong>em</strong> como analisar mais a fundo os dados<br />
são etapas que farão parte da próxima fase desta pesquisa.<br />
Referências<br />
LIMA, R. J.; LIMA, S. I. (Org.). Pesquisa e material desenvolvidos com base <strong>em</strong> critérios linguísticos<br />
para a prática fonoaudiológica nas afasias. Rio de Janeiro: UVA, 2009.<br />
LOBO, F.; ACRANI, I.; ÁVILA, C. Tipo de estímulo e m<strong>em</strong>ória de trabalho fonológica. Revista<br />
CEFAC, São Paulo, v.10, n.4, p. 461-470, 2008.<br />
263
Habilidades de monitoramento <strong>em</strong> um afásico agramático<br />
Fernanda Soares da Silva (UERJ) 1<br />
Resumo: O objetivo desta pesquisa consiste <strong>em</strong> verificar a habilidade de monitoramento interno <strong>em</strong> afásicos de<br />
Broca. Para identificar a presença ou ausência dessa habilidade <strong>em</strong> tais indivíduos, foram realizados<br />
experimentos psicolingüísticos, primeiramente <strong>em</strong> indivíduos não afásicos, posteriormente nos afásicos. Nos<br />
experimentos dos controles, foram usadas 25 redes com cenários dinâmicos, cada uma contendo 8 objetos<br />
diferentes. Neste experimento, obtiveram-se os mesmos resultados de Oomen, Postma e Kolk (2001, 2005), visto<br />
que observou-se que os controles utilizaram o monitoramento interno <strong>em</strong> proporção b<strong>em</strong> menor ao<br />
monitoramento externo. Depois, foi realizado um experimento com o afásico de forma mais simplificada, tendo<br />
<strong>em</strong> vista sua dificuldade <strong>em</strong> produzir sentenças. Foram utilizadas 11 redes com 5 objetos apenas. O resultado<br />
obtido nesta parte do experimento também foi o mesmo encontrado pelos pesquisadores já citados, pois o afásico<br />
utilizou o monitoramento interno <strong>em</strong> proporção b<strong>em</strong> maior do que o externo, o que leva a pensar se o<br />
monitoramento interno é o único disponível para ele. Assim, torna-se necessário ressaltar a segunda etapa da<br />
nossa pesquisa, que consistiu <strong>em</strong> verificar se o afásico possui monitoramento externo, uma vez que usou o<br />
interno de forma considerável - mais de 70%. Nessa etapa, o afásico ouviu a descrição das mesmas redes do teste<br />
anterior e deveria dizer se havia algum erro. O afásico obteve 100% de acertos nesta fase, o que indica que ele<br />
possui monitoramento externo. Conclui-se que, <strong>em</strong>bora o monitoramento externo esteja disponível, o afásico<br />
privilegia o monitoramento interno, tal como propõ<strong>em</strong> os autores citados.<br />
1) O Monitoramento<br />
É natural que as pessoas cometam erros quando falam, contudo não é necessário que<br />
alguém lhes sinalize cada lapso de fala. Em geral, elas mesmas interromp<strong>em</strong> sua fala no meio<br />
ou após um lapso. Isso ocorre porque os seres humanos são capazes de ouvir sua própria fala,<br />
o que permite comparar a sentença que produziram ao que se pretendia dizer. A essa<br />
habilidade é dado o nome de monitoramento.<br />
Tendo <strong>em</strong> vista que, nesta pesquisa, considerou-se uma concepção modular e nãointerativa<br />
para a produção da fala <strong>em</strong> que os níveis de processamento atuam de forma<br />
independente, é possível afirmar que cada "módulo" do cérebro seja responsável por<br />
des<strong>em</strong>penhar uma determinada função e que estes não interajam entre si. Portanto, neste caso,<br />
se está considerando que exista um sist<strong>em</strong>a, responsável pela produção de sentenças, que<br />
passa as informações para o sist<strong>em</strong>a de compreensão <strong>em</strong> dois momentos: na fala interna e na<br />
externa; e esse sist<strong>em</strong>a de compreensão des<strong>em</strong>penha a função de apenas compreender o que<br />
foi produzido. Assim, objetivou-se verificar por qual sist<strong>em</strong>a ocorre o monitoramento, visto<br />
que este não pode resultar de uma interação entre os sist<strong>em</strong>as de produção e compreensão,<br />
segundo LEVELT (1989).<br />
Exist<strong>em</strong> dois tipos de monitoramento: o interno e o externo. Neste o falante planeja o<br />
que vai dizer, produz algo diferente do que planejou, ouve o que disse e corrige. No<br />
monitoramento interno não há, necessariamente a produção de sentenças. O lapso de fala não<br />
aparece, pelo menos não totalmente. Assim, o monitoramento é feito <strong>em</strong> uma etapa anterior à<br />
fala externa, que é chamada de fala interna. Veja na tabela abaixo alguns lapsos de fala que<br />
foram monitoradas internamente ou externamente, sendo, portanto, ex<strong>em</strong>plos de<br />
1 Orientanda do professor Ricardo Joseh Lima e bolsista PIBIC/ CNPQ.<br />
264
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
monitoramento interno e monitoramento externo, respectivamente. Esses ex<strong>em</strong>plos foram<br />
retirados do experimento, sobre o qual se discorrerá no tópico 2, que foi aplicado <strong>em</strong><br />
indivíduos afásicos e não-afásicos:<br />
ela - a bolinha sai<br />
Monitoramento externo<br />
até a tesoura laranja-lilás<br />
para a direita - para a esquerda<br />
rosa éé roxo<br />
veado laranja-lilás<br />
numa curva di _ à direita<br />
<strong>em</strong> direção ao mico-microondas laranja<br />
Monitoramento interno<br />
( A bolinha vai para uma) linha re-uma curva<br />
Até o martelo (...) prateado<br />
(A bolinha) sai do cotonete ma – laranja<br />
(A bolinha) <strong>em</strong> linha ... diagonal pra baixo.<br />
(A bolinha) desce éééé <strong>em</strong> linha reta.<br />
(Em direção a uma) tesoura ro-rosa<br />
vai para a di-esquerda para o fichário<br />
Tabela 1: Lapsos de fala via monitoramento interno e via monitoramento externo 2<br />
Pode-se concluir, então, que o monitoramento externo ocorre via compreensão, visto<br />
que primeiro acontece a audição do que foi produzido para depois haver a correção. Pode-se<br />
perceber no ex<strong>em</strong>plo já citado “para a direita - para a esquerda”, que o falante planejou dizer<br />
“para a esquerda” e enviou tal informação para o sist<strong>em</strong>a de produção, onde se produz uma<br />
série de processos fonéticos, sintáticos, s<strong>em</strong>ânticos e morfológicos, havendo a articulação de<br />
“para a direita”, por conta de alguma falha ocorrida no sist<strong>em</strong>a de produção. O falante ouve o<br />
que disse e as informações ouvidas vão para o sist<strong>em</strong>a de compreensão, onde também<br />
aconteceu uma série de processos fonéticos, sintáticos, s<strong>em</strong>ânticos e morfológicos, e então se<br />
concretiza o monitoramento, que significa comparar o que foi articulado (“para a direita”)<br />
com o que se planejou dizer (“para a esquerda”).<br />
Por outro lado, o monitoramento interno pode parecer que acontece no sist<strong>em</strong>a de<br />
produção, visto que o falante não chega a produzir a sentença, como ocorre <strong>em</strong> “(A bolinha)<br />
2<br />
Segu<strong>em</strong> as significações dos símbolos contidos nesta tabela e nas posteriores: (...) indica pausa; ... refere-se à<br />
alongamento; - indica que o falante percebeu o lapso de fala e o corrigiu logo <strong>em</strong> seguida; _ significa que o<br />
falante deu uma pausa após perceber que cometeu o lapso de fala e “ééé” indica pausa preenchida.<br />
265
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
<strong>em</strong> linha ... diagonal pra baixo”. Neste caso, planejou-se dizer “diagonal”, mas esta palavra<br />
não chegou a ser produzida, por conta disso, o falante alongou a vogal final de “linha”, o que<br />
indica que ele está buscando a palavra que deve dizer. Aqui, a fala interna já havia sido<br />
elaborada e o falante percebeu seu erro antes de produzi-la. Tal situação leva a pensar que o<br />
monitoramento interno ocorre por meio do sist<strong>em</strong>a de produção. Contudo LEVELT (1989)<br />
propõe que, mesmo contra as evidências, o monitoramento interno ocorre via compreensão,<br />
tendo <strong>em</strong> vista que, se assim não fosse, seria utilizado o mesmo caminho do monitoramento<br />
externo.<br />
Assim, esta pesquisa <strong>em</strong> afásicos surge como uma possibilidade de se deter sobre tal<br />
questão. Isso ocorre, pois os indivíduos nos quais aplicaram-se os experimentos<br />
psicolinguísticos, que serão analisados posteriormente, são afásicos de Broca. Esses sujeitos<br />
possu<strong>em</strong> o sist<strong>em</strong>a de compreensão quase intacto, contudo seu sist<strong>em</strong>a de produção é afetado.<br />
Sendo assim, acredita-se que, se estes utilizar<strong>em</strong> o monitoramento interno <strong>em</strong> proporção<br />
maior do que o externo, t<strong>em</strong>-se uma indicação forte de que o sist<strong>em</strong>a de compreensão é o<br />
canal utilizado para a realização do monitoramento, conforme assinala LEVELT (1989). Essa<br />
proposta já foi verificada para o holandês por OOMEN, C., POSTMA, A., KOLK, H. (2001 e<br />
2005), e esta pesquisa visa a certificar se os dados do português brasileiro a corroboram.<br />
2) Experimento I<br />
O experimento psicolinguístico que serviu de base para este estudo foi aplicado<br />
primeiramente <strong>em</strong> um indivíduo não afásico, chamado de pré-controle, visando a verificar se<br />
as condições do teste eram propícias para os afásicos. Esta etapa foi muito importante, visto<br />
que possibilitou uma modificação do que havia sido planejado anteriormente. A intenção<br />
inicial era aplicar os experimentos nos afásicos, utilizando duas situações diferentes, sendo a<br />
primeira com os afásicos ouvindo um barulho, conhecido como ruído branco, e a outra s<strong>em</strong><br />
nenhuma interferência acústica externa. Contudo, percebeu-se que seria mais próprio utilizar<br />
uma música no lugar do ruído branco. Isso ocorreu, basicamente, por dois motivos, estando o<br />
primeiro relacionado ao fato de o pré-controle considerar insuportável fazer um experimento<br />
<strong>em</strong> tal condição. O segundo se deu pela possibilidade de o afásico que participaria da segunda<br />
etapa do teste não se adequar ao contexto do ruído branco. Como informação resultante desta<br />
fase, deve-se citar ainda a percepção de que não seria apropriado realizar o teste com os<br />
afásicos na situação com música, uma vez que indivíduos afásicos pod<strong>em</strong> ser suscetíveis a<br />
alterações do sinal acústico, quando apresentado <strong>em</strong> alto volume.<br />
A fim de preservar a saúde dos afásicos, decidiu-se não utilizar a música. Além disso,<br />
como se verá adiante, os resultados dos controles na condição com música não diferiram dos<br />
resultados na condição s<strong>em</strong> música. Tal experimento foi aplicado posteriormente <strong>em</strong> outros<br />
indivíduos não-afásicos, a que chamamos de controles, para que possíveis alterações<br />
necessárias foss<strong>em</strong> feitas a t<strong>em</strong>po no experimento dos afásicos. Participaram como controles,<br />
doze estudantes de <strong>Letras</strong> da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sendo quatro<br />
participantes homens e oito mulheres, os quais receberam R$ 10,00 pela participação.<br />
Nos experimentos aplicados nos controles, foram usadas 25 redes com cenários<br />
dinâmicos, cada uma contendo 8 objetos diferentes, sendo a primeira uma apresentação de<br />
uma rede s<strong>em</strong> figuras - apenas com os quadrados vazios - para que se explicasse ao controle o<br />
que ele deveria fazer nas redes posteriores. A seguir, havia 24 redes destinadas à realização do<br />
266
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
teste, conforme será explicado a seguir. Havia uma bolinha vermelha que passava de um<br />
objeto a outro. A tarefa dos controles era dizer de qual objeto a bolinha partia, qual era a cor<br />
dele, para qual objeto ele ia e qual era sua respectiva cor, <strong>em</strong> qual tipo de linha a bolinha<br />
seguia e para qual direção ela ia.Vale salientar dois fatos, o primeiro é que havia 6 cores<br />
diferentes: laranja, marrom, azul, verde, cinza e roxo, e o segundo é que a bolinha se movia de<br />
um objeto a outro <strong>em</strong> um intervalo curto de 5,5 segundos. Entre os objetos havia linhas curvas<br />
e linhas retas e umas estavam para direita, outras para a esquerda e ainda existia a<br />
possibilidade de se ter uma diagonal. Veja abaixo um ex<strong>em</strong>plo de rede utilizada:<br />
Figura 1<br />
Antes de aplicar o teste foi mostrada aos controles uma rede como a anterior, mas s<strong>em</strong><br />
linhas e s<strong>em</strong> objetos, como se vê abaixo:<br />
267
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 2<br />
Como se pode notar, na realidade, não havia uma rede e foi dada a seguinte instrução:<br />
"Você deve descrever 24 redes para alguém que esteja vendo apenas esses quadrados para que<br />
seja capaz de reproduzi-las". Assim, cada controle deveria descrever a rede da ilustração 1,<br />
por ex<strong>em</strong>plo, da seguinte forma: "A bolinha sai do violão laranja numa curva à direita <strong>em</strong><br />
direção ao chinelo marrom. Depois segue numa linha reta para a direita <strong>em</strong> direção ao batom<br />
roxo...". Esta rede foi a segunda de treinamento, por isso, as transcrições que encontram-se na<br />
tabela 2 são referentes a outras redes. Será possível perceber que muitos lapsos de fala foram<br />
cometidos.<br />
uma curva (...) ééé pra direita<br />
vai pra direi-esquerda<br />
curva para a di...reita<br />
uma curva à es-direita<br />
agora <strong>em</strong> direção a uma roda...éééé laranja<br />
Tabela 2: Lapsos de fala cometidos pelos controles<br />
A segunda etapa deste experimento foi aplicada <strong>em</strong> apenas um afásico. Vale ressaltar<br />
que a utilização de apenas um indivíduo <strong>em</strong> pesquisas com afásicos é comum, como se pode<br />
verificar nas referências bibliográficas, no trabalho de OOMEN, POSTMA e KOLK (2005).<br />
O afásico que realizou o experimento é do sexo masculino, tinha 21 anos, quando foi<br />
realizado o teste, e possui lesão cerebral focal na área de Broca. Foram utilizadas 10 redes<br />
contendo 5 figuras cada uma. Desta vez não havia linhas, e o afásico deveria falar o nome do<br />
objeto, a sua cor e a direção que aparecia o próximo. Este experimento foi reduzido <strong>em</strong><br />
relação ao anterior, por basicamente dois motivos. O primeiro está relacionado ao fato de<br />
OOMEN, POSTMA e KOLK, autores de trabalhos que <strong>em</strong>basaram esta pesquisa, ter<strong>em</strong><br />
simplificado o experimento que aplicaram nos controles para os afásicos. Além disso, o fato<br />
de os indivíduos afásicos possuír<strong>em</strong> um dano cerebral na área responsável pela linguag<strong>em</strong> faz<br />
com que tal simplificação seja necessária. Veja na figura 3 a rede de treinamento utilizada<br />
nesta etapa:<br />
268
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 3: Rede utilizada no primeiro experimento feito com os afásicos<br />
Como ex<strong>em</strong>plo de lapsos de fala produzidos pelo afásico, vale salientar os seguintes:<br />
ca- cabide azul<br />
televisão(...) coral<br />
uva mar-marrom<br />
direita (...) balde<br />
tesoura ro-rosa<br />
Tabela 3: Ex<strong>em</strong>plos de lapsos de fala produzidos por afásicos<br />
Como já foi salientado, o objetivo deste experimento foi averiguar se os afásicos<br />
agramáticos monitoram sua fala interna <strong>em</strong> proporção maior à externa. Tendo <strong>em</strong> vista que a<br />
fala interna consiste na etapa anterior à articulação da fala, buscou-se verificar se os afásicos<br />
agramáticos utilizam mais o monitoramento interno que o externo, para assim comprovar a<br />
proposta de LEVELT (1989). O resultado foi que os controles utilizaram o monitoramento<br />
interno nas duas condições – com música e s<strong>em</strong> música -, mas <strong>em</strong> proporção b<strong>em</strong> menor ao<br />
do monitoramento externo. Embora isso possa parecer inesperado, porque deveria haver<br />
influência da música, esse resultado foi compatível com o encontrado por OOMEN,<br />
POSTMA e KOLK (2001, 2005), que fizeram esse experimento utilizando o ruído branco. Já<br />
o afásico utilizou os dois tipos de monitoramento, mas o interno foi utilizado <strong>em</strong> proporção<br />
269
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
b<strong>em</strong> maior que o externo. O tipo mais comum de lapso de fala via monitoramento interno foi<br />
o de repetições de parte de palavra, conforme pode ser verificado no Gráfico 1, que encontrase<br />
abaixo.<br />
.<br />
100%<br />
80%<br />
60%<br />
40%<br />
20%<br />
0%<br />
Afásico Controles<br />
Repetição de<br />
palavras<br />
Outros lapsos<br />
de fala<br />
Gráfico 1: Resultados do experimento dos afásicos e controles.<br />
Pode-se citar como ex<strong>em</strong>plos de lapsos de fala por repetição de parte da palavra as<br />
seguintes: “uva mar-marrom ”, “a-apito cinza”, “direi-direita coelho”, “caf-café” e “apontaapontador<br />
cinza” . Estes foram produzidos na execução deste experimento pelo afásico.<br />
O fato de o afásico ter utilizado mais o monitoramento interno indica que, conforme<br />
assinala LEVELT (1989), a detecção de uma inadequação na fala interna é viabilizada pelo<br />
sist<strong>em</strong>a de compreensão. Isso é possível afirmar, pois, como já salientado, os afásicos de<br />
Broca, <strong>em</strong> geral, possu<strong>em</strong> o sist<strong>em</strong>a de produção afetado, devido à lesão cerebral que<br />
sofreram na área de Broca, contudo seu sist<strong>em</strong>a de compreensão é quase intacto. Assim, se o<br />
afásico, na maioria dos casos, opta pelo uso do monitoramento interno, isso indica que o<br />
sist<strong>em</strong>a de compreensão, que não foi afetado pela lesão, é realmente o utilizado.<br />
3) Experimento II<br />
Sabendo-se que o afásico utilizou mais o monitoramento interno que o externo,<br />
tornou-se necessária a realização de um segundo experimento para investigar se ele usa este<br />
último normalmente. Também neste caso aplicou-se o experimento primeiramente nos<br />
controles, para depois se investigar os afásicos. Este consistiu <strong>em</strong> mostrar ao participante uma<br />
gravação de áudio de cada uma das redes que ele havia descrito. Informou-se que havia<br />
algumas redes com erros e outras s<strong>em</strong> erros e o informante deveria dizer se cada rede tinha<br />
um erro e apontar tal desvio. Algumas descrições estavam corretas e outras continham algum<br />
270
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
erro de ord<strong>em</strong> s<strong>em</strong>ântica e/ou fonológica, conforme pode ser verificado nas sentenças que<br />
estão dispostas na tabela 4.<br />
Número da rede Lapso de fala Erro(s) de ord<strong>em</strong>:<br />
REDE 1<br />
REDE 2<br />
REDE 3<br />
REDE 4<br />
REDE 5<br />
REDE 6<br />
REDE 7<br />
REDE 8<br />
REDE 9<br />
REDE 10<br />
avião amarelo no lugar de<br />
violão amarelo<br />
largatixa no lugar de<br />
lagartixa<br />
moto azul <strong>em</strong> vez de<br />
moto roxa<br />
SEM ERRO<br />
segue à esquerda reto prum<br />
sapato laranja (direita) e<br />
macaco verde (marrom)<br />
<strong>em</strong> linha cúrvula (curva) para<br />
o sino verde<br />
da chupeta numa linha reta<br />
pra esquerda (direita)<br />
SEM ERRO<br />
a bolinha sai do patinete e<br />
segue à esquerda (direita) e<br />
tubarão azul (marrom)<br />
do esmalte vai pra esquerda<br />
(direita)<br />
colher roxa (laranja)<br />
S<strong>em</strong>ântica<br />
Fonológica<br />
-<br />
S<strong>em</strong>ântica (ambos)<br />
Fonológica<br />
S<strong>em</strong>ântica<br />
-<br />
S<strong>em</strong>ântica (ambos)<br />
S<strong>em</strong>ântico<br />
S<strong>em</strong>ântica<br />
271
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Tabela 4: Lapsos de fala presentes no experimento.<br />
Os lapsos de fala foram retirados das transcrições do primeiro teste e colocados<br />
proporcionalmente ao número de erros obtidos nos experimentos realizados com os controles<br />
na fase anterior. Este foi realizado pelos mesmos controles, sendo que desta vez apenas sete<br />
dos doze participaram. O interessante desta etapa consiste no fato de os controles acabar<strong>em</strong><br />
encontrando erros <strong>em</strong> frases que estavam corretas e deixar<strong>em</strong> outros erros passar como se<br />
estivess<strong>em</strong> corretos. Vale mencionar a frase “<strong>em</strong> linha cúrvula para o sino verde”, no lugar de<br />
“linha curva para o sino verde” que continha um erro fonológico, visto que nenhum dos<br />
controles percebeu o erro. Ainda na frase “avião amarelo” no lugar de “violão amarelo”, um<br />
controle disse que o erro estava no fato de ser uma reta e não uma curva que ligava o chinelo<br />
ao violão e não era esse o probl<strong>em</strong>a.<br />
O experimento foi feito com o mesmo afásico, e ele obteve 100% dos acertos, o que<br />
significa que ele t<strong>em</strong> o monitoramento externo intacto, só não o utiliza na fala porque prefere<br />
o interno. Conclui-se, portanto, que os dois tipos de monitoramento estão intactos, mas ele<br />
privilegia o monitoramento interno. Isso pode ser explicado por meio da hipótese de LEVELT<br />
(1989), pois se o monitoramento interno acontece via sist<strong>em</strong>a de compreensão, e o afásico<br />
possui esse sist<strong>em</strong>a intacto, enquanto o sist<strong>em</strong>a de produção está afetado, é mais fácil para ele<br />
utilizar o monitoramento interno.<br />
4) Considerações Finais<br />
Vale salientar aqui a contribuição desta pesquisa para a área da psicolingüística, visto<br />
ser inédita no português brasileiro e ter corroborado a hipótese de LEVELT (1989) sobre o<br />
monitoramento interno ser viabilizado pelo sist<strong>em</strong>a de compreensão. O fato de os afásicos de<br />
Broca ter<strong>em</strong> utilizado estratégias de monitoramento interno <strong>em</strong> tarefas que requeriam o uso<br />
do monitoramento externo d<strong>em</strong>onstra que esses indivíduos possu<strong>em</strong> a habilidade de<br />
monitoramento da fala interna intacta. Uma prova de que os experimentos realizados<br />
privilegiavam o uso do monitoramento externo se explica a partir da escolha dos indivíduos<br />
não afásicos, que, conforme pode ser verificado no gráfico 1, utilizaram tal monitoramento.<br />
Esse estudo, ainda, torna-se relevante tendo <strong>em</strong> vista que estudos anteriores revisados<br />
no decorrer desta pesquisa têm como pontos de contato a ausência de evidência robusta para a<br />
hipótese de que o monitoramento da fala interna acontece através da compreensão. Assim,<br />
esta pesquisa se apresenta como mais uma contribuição no sentido de corroborar essa<br />
hipótese.<br />
REFERÊNCIAS<br />
LEVELT W. (1989). Speaking: From Intention to Articulation. Cambridge, MA: MIT Press<br />
OOMEN, C., POSTMA, A., KOLK, H. (2001). Prearticulatory and postarticulatory selfmonitoring<br />
in Broca’s aphasia. Cortex, 37: 627-641.<br />
_____, ______, _____. (2005). Speech monitoring in aphasia: Error detection and repair behavior in a<br />
272
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
patient<br />
with Broca’s aphasia. In: Hartsuiker, R., Bastiaanse, R., Postma, A., Wijnen, F. (2005). Phonological<br />
encoding and monitoring in normal and pathological speech. New York, Psychology Press. (p.209-<br />
225).<br />
273
Estudos do léxico e Linguística Cognitiva<br />
274
O léxico da letra de samba: um estudo baseado <strong>em</strong> corpus<br />
Flávio de Aguiar Barbosa (UERJ)<br />
Resumo: Este é um estudo das características lexicais das composições de sambistas pioneiros do Rio de Janeiro,<br />
a partir de uma perspectiva discursiva alicerçada na constituição de um corpus representativo da sua produção<br />
lítero-musical. Tal corpus contém composições de três artistas nascidos na primeira década do século XX: Paulo<br />
da Portela, de Oswaldo Cruz, Ismael Silva, do Estácio e Cartola, da Mangueira. Meu objetivo no estudo foi<br />
contribuir para o estudo dessa variedade lexical, pela constituição de uma base documental sólida para a<br />
descrição do vocabulário do samba carioca no período delimitado; essa base é fundamental para o<br />
estabelecimento de verbetes, a delimitação de unidades lexicais plurivocabulares, a elaboração de definições<br />
acuradas e não preconceituosas, a observação de peculiaridades, como o vocabulário de especialidade do samba<br />
etc. A pesquisa foi realizada com base nos princípios da Linguística de Corpus (Berber Sardinha e Mike Scott),<br />
da Lexicografia (Biderman e Borba), da Análise do Discurso (Charaudeau) e dos Estudos Culturais sobre o<br />
samba e o Rio de Janeiro (Roberto M. Moura, Carlos Sandroni). Instituições de referência, como o Museu da<br />
Imag<strong>em</strong> e do Som, a Biblioteca Nacional e o Instituto Moreira Salles foram visitadas na recolha das letras, que<br />
foram processadas a partir do software Wordsmith Tools. Depreenderam-se sete áreas t<strong>em</strong>áticas principais das<br />
composições: relações amorosas; metalinguag<strong>em</strong>; cotidiano; reflexões existenciais; Brasil; natureza;<br />
religiosidade. Cada uma dessas áreas foi estudada <strong>em</strong> suas características discursivas, com depreensão dos<br />
campos s<strong>em</strong>ânticos mais recorrentes. O corpus constituído contém aproximadamente 300 letras, cujo<br />
processamento quali-quantitativo resultou <strong>em</strong> 289 verbetes, entre palavras-chave estatisticamente relevantes e<br />
outras unidades lexicais discursivamente importantes.<br />
1) Motivação<br />
Este trabalho, no qual apresento parte do conteúdo da minha tese de doutorado<br />
(Barbosa, 2009), parte da percepção de que os trabalhos lexicográficos sobre o português<br />
popular dev<strong>em</strong> se beneficiar de estudos baseados <strong>em</strong> corpus. Os dicionários elaborados nessa<br />
linha de trabalho são mais consistentes, precisos e úteis do que os que segu<strong>em</strong> métodos<br />
lexicográficos tradicionais. Com base nisso, me propus a compilar de um corpus de referência<br />
do samba carioca, adequado a estudos lexicais (especialmente lexicográficos) sensíveis a<br />
informações discursivas encontráveis nos textos que compõ<strong>em</strong> o corpus. Esse corpus é<br />
significativo para os estudos lexicais, principalmente por ser uma contribuição para a<br />
documentação dos usos populares do português do Brasil.<br />
2) Embasamento teórico<br />
O trabalho d<strong>em</strong>andou referências provenientes de quatro áreas de estudo: os Estudos<br />
Lexicais, a Análise do Discurso de linha s<strong>em</strong>iolinguística, a Linguística de Corpus e os<br />
Estudos culturais sobre o samba e o Rio de Janeiro.<br />
a) Estudos Lexicais — esse <strong>em</strong>basamento é importante, primeiramente, por suscitar o<br />
diagnóstico da necessidade de estudos do léxico popular do português do Brasil aplicáveis à<br />
elaboração de obras lexicográficas. Ele t<strong>em</strong>, ainda, valia por <strong>em</strong>basar a classificação das<br />
ocorrências lexicais a partir de critérios linguísticos ou não, o agrupamento e l<strong>em</strong>atização de<br />
ocorrências, a l<strong>em</strong>atização de unidades lexicais complexas, o tratamento do vocabulário de<br />
especialidade relacionado a esse campo discursivo. Os trabalhos de Biderman (1998),<br />
Sanromán (2000) e Borba (2003) foram considerados no que diz respeito a essa linha teórica.<br />
275
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
b) Análise do Discurso — o <strong>em</strong>basamento nessa disciplina é fundamental para<br />
estabelecer a perspectiva de <strong>análise</strong> segundo a qual a linguag<strong>em</strong> é um objeto não<br />
transparente, ou seja, por um lado o ato de linguag<strong>em</strong> é “produzido por um <strong>em</strong>issor<br />
determinado, <strong>em</strong> um dado contexto sócio-histórico”; por outro, “o processo de comunicação<br />
não é o resultado de uma única intencionalidade, já que é preciso levar <strong>em</strong> consideração não<br />
somente o que poderiam ser as intenções declaradas do <strong>em</strong>issor, mas também o que diz o ato<br />
de linguag<strong>em</strong> a respeito da relação particular que une o <strong>em</strong>issor ao receptor”. Neste trabalho,<br />
adoto a Linha S<strong>em</strong>iolinguística de Análise do Discurso, de Charaudeau (2004 e 2008).<br />
c) Linguística de Corpus — observando os princípios da Linguística de Corpus, efetivei<br />
o processamento computacional dos textos. Usei o software Wordsmith Tools, elaborado por<br />
Mike Scott (2007), para obter cálculos de frequência vocabular, índices de palavras<br />
contextualizadas e de palavras-chave do tipo de texto <strong>em</strong> questão. Outra referência<br />
fundamental nesta área foi Berber Sardinha (2004).<br />
d) Estudos culturais e históricos sobre samba e sobre o Rio de Janeiro do final do século<br />
XIX e do início do século XX — são relevantes para a delimitação cronológica do corpus<br />
estudado e para o levantamento dos compositores; para a compreensão das coerções<br />
situacionais que determinam tanto a construção da significação do material linguístico quanto<br />
as formas de interação presentes nas composições; para a apreciação da representatividade do<br />
corpus. Os estudos de Moura (1995) e Sandroni (2001) foram importantes nesse sentido.<br />
3) Escolha dos autores estudados e obtenção das letras<br />
O corpus projetado neste estudo é constituído de composições de sambistas atuantes no<br />
Rio de Janeiro, representativos de um período inaugural do gênero musical na cidade. Há,<br />
portanto, três variáveis principais que foram consideradas: a musical e de representatividade,<br />
a geográfica e a cronológica.<br />
a) Musical e de representatividade – só foram consideradas letras de composições de<br />
sambistas. A conceituação de sambista que adotei é baseada no seguinte arrazoado de Moura<br />
(2004: 67-8):<br />
Sambista não é só qu<strong>em</strong> faz samba. Aliás, sequer se precisa fazer samba<br />
para ser sambista. O mestre-sala Delegado, da Mangueira, é sambista. A<br />
falecida pastora Paula do Salgueiro era. Em contrapartida, há compositores<br />
de sambas geniais, como Dorival Caymmi ou o já citado Ary Barroso cuja<br />
história não se dá exclusivamente dentro do samba ou das escolas de<br />
samba.<br />
O sambista canta, toca e dança o samba com uma naturalidade de berço,<br />
muito mais, portanto, do que as noções dicionarizadas e incompletas (no<br />
Aurélio, confunde-se sambista com sambeiro, o que é inaceitável numa<br />
roda de samba; a segunda palavra t<strong>em</strong> conotação declaradamente pejorativa<br />
e quase s<strong>em</strong>pre se refere a algum “estrangeiro”; e sambista é apenas o<br />
276
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
“exímio dançarino de samba” e/ou “compositor de samba”; no Houaiss, é<br />
“pessoa que samba”, “componente de escola de samba” e/ou “compositor<br />
de samba”).<br />
Esse conjunto de sentimentos e vivências, enfim, faz do samba uma forma<br />
de expressão que extrapola os limites musicais.<br />
Essas considerações reforçam a percepção, já explicitada anteriormente, da necessidade<br />
de as obras lexicográficas abordar<strong>em</strong> os conceitos relativos ao samba <strong>em</strong> particular, e à<br />
cultura popular <strong>em</strong> geral, mais abalizadamente. Moura (2004: 68) prossegue seu raciocínio:<br />
Mais: mesmo que se possa circunscrevê-lo nos limites estritos do gênero<br />
musical, o samba pode e deve ser inscrito para além do especificamente<br />
musical, na categoria mais abrangente do evento múltiplo.<br />
Por permitir que todos se sintam “<strong>em</strong> casa”, é simultaneamente reunião<br />
social, apresentação coreográfica, exercício lúdico de criação e improviso de<br />
versos, espaço de ouvir e cantar, de comer e beber, de interação, enfim.<br />
Diversos sambas, repito, dão conta dessas funções secundárias da roda de<br />
samba [...]. Embora ligado ao prazer e ao divertimento, o samba forma<br />
valores, estabelece normas de conduta e referências comportamentais.<br />
Neste estudo, portanto, sambistas não são apenas aqueles que compõ<strong>em</strong> ou são<br />
dançarinos de samba. A despeito de a habilidade de composição ser muito relevante no<br />
presente estudo, alia-se a ela a integração íntima com o universo do samba, com um sist<strong>em</strong>a<br />
de vivências e valores que institui um ethos do sambista, como foi esclarecido por Moura.<br />
Adicionalmente, sambista também não é qu<strong>em</strong> compõe obrigatoriamente sambas. Seu<br />
enquadramento na categoria passa prioritariamente pelo desenvolvimento de uma identidade<br />
sociocultural afinada a esse universo, o que costuma determinar que as composições desses<br />
artistas sejam majoritariamente sambas, mas isso não é uma condição sine qua non. Há<br />
diversidade musical no corpus, onde se encontram, além de sambas, algumas marchas de<br />
carnaval, xotes, lundus e outros gêneros.<br />
Os três sambistas estudados aqui atend<strong>em</strong> aos critérios que acabaram de ser propostos:<br />
são pessoas integradas à vida de suas comunidades (ao Estácio, no caso de Ismael; à<br />
Mangueira, no de Cartola; a Oswaldo Cruz, no de Paulo da Portela); são fundadores e líderes<br />
de escolas de samba (qu<strong>em</strong> menos se dedicou a esse tipo de instituição foi Ismael, que, apesar<br />
de ser um dos fundadores da Deixa Falar, via incompatibilidade entre a vida de compositor<br />
profissional e a participação <strong>em</strong> escolas de samba, principalmente como autor de sambas); são<br />
compositores <strong>em</strong> cuja obra encontram-se majoritariamente sambas.<br />
Devo esclarecer que o levantamento dessas composições não foi exaustivo, mas<br />
indispensavelmente representativo da produção de cada autor, pois cont<strong>em</strong>pla os principais<br />
parceiros e t<strong>em</strong>áticas, além das músicas de maior projeção.<br />
b) Geográfica – os sambistas cujas composições integram o corpus não são<br />
necessariamente cariocas, mas as letras registradas foram produzidas depois que passaram a<br />
residir na cidade do Rio de Janeiro.<br />
277
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Ismael Silva nasceu <strong>em</strong> Jurujuba, Niterói. Cartola e Paulo da Portela, apesar de não<br />
ter<strong>em</strong> nascido exatamente na região onde se notabilizaram como compositores, são cariocas.<br />
c) Cronológica – este último critério também ajudou a orientar a escolha dos sambistas<br />
<strong>em</strong> estudo. Tentou-se selecionar compositores nascidos aproximadamente no mesmo período.<br />
A primeira década do século XX foi delimitada como a época de nascimento de sambistas que<br />
tiveram atuação fundamental na institucionalização do samba urbano carioca e participaram<br />
do desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira na década de 30, com composições<br />
que contribuíram para firmar o gênero como produto cultural e, num contexto político<br />
propício, expressão musical profundamente identificada com a cultura brasileira. Essa é a<br />
década de nascimento de Paulo da Portela (1901-1949), Ismael Silva (1905-1978) e Cartola<br />
(1908-1980).<br />
4) Fontes de referência<br />
Partindo da seleção dos compositores, o estudo passou à fase de consulta a acervos de<br />
instituições de referência, biografias dos sambistas estudados e registros fonográficos que<br />
deveriam integrar o corpus de estudo.<br />
As instituições de referência visitadas foram a Biblioteca Nacional, o Museu da Imag<strong>em</strong><br />
e do Som e o Instituto Moreira Salles.<br />
Também foi de fundamental importância a consulta a biografias dos compositores<br />
estudados, elaboradas por Barboza da Silva e Lygia Santos (1989), Barboza da Silva e<br />
Oliveira Filho (2003), Candeia Filho e Araújo (1980), Carvalho (1980). A partir dessas obras,<br />
foi possível obter letras de composições inéditas e também anotar discografias e relações de<br />
composições, para referência sobre a extensão da obra de cada um deles.<br />
Por fim, o acesso pela internet a páginas pessoais de colecionadores que deixam suas<br />
discotecas digitalizadas disponíveis para consulta foi um recurso riquíssimo para<br />
conhecimento de discos esgotados e verdadeiras raridades que, de outro modo, provavelmente<br />
não teriam sido encontrados.<br />
5) O corpus<br />
Os trabalhos de escolha dos compositores, levantamento e transcrição das composições<br />
resultaram na compilação de um corpus de 296 composições, com cerca de 21.000 palavras.<br />
Para todas as letras transcritas, anotaram-se as seguintes informações:<br />
a) Título: o nome da música, apurado a partir das mesmas fontes detalhadas no it<strong>em</strong> (f)<br />
adiante.<br />
Quando se encontrou discrepância nos títulos de algumas canções, registraram-se todas<br />
as variantes, com a mais frequent<strong>em</strong>ente registrada <strong>em</strong> primeiro lugar.<br />
No caso de músicas s<strong>em</strong> título, registrou-se o primeiro verso, ou, dependendo da<br />
extensão, os dois primeiros versos, para identificação da canção.<br />
278
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
b) Autor: o(s) nome(s) daquele(s) que foi(foram) registrado(s) como compositor(es) da<br />
música. Nos casos de discrepâncias, deu-se preferência às informações contidas nas biografias<br />
impressas.<br />
c) Data: delimitação cronológica mais aproximada possível da composição. Na maioria<br />
das vezes, a informação disponível era a data da primeira gravação.<br />
Quando essa data não estava disponível, buscaram-se indicações que pudess<strong>em</strong> trazer<br />
especificações cronológicas, como por ex<strong>em</strong>plo, o t<strong>em</strong>a da música.<br />
Eis um ex<strong>em</strong>plo: a composição Cadeira vazia, de Cartola e Nuno Veloso, feita <strong>em</strong><br />
homenag<strong>em</strong> a Noel Rosa, é registrada por Barboza da Silva e Oliveira Filho (2003, p. 110-<br />
111) s<strong>em</strong> data especificada. A primeira parte foi feita por Cartola, “anos depois da morte de<br />
Noel”; a datação ficou sendo, portanto, “d1937”.<br />
Quando nenhuma referência presente na letra ou esclarecida sobre a concepção da<br />
música ajudava a delimitar uma datação, adotou-se um período delimitado pelo início da vida<br />
artística do compositor e pela sua morte.<br />
Para Paulo da Portela, o período adotado foi 1922-1949 — o momento inicial é a<br />
fundação do bloco Baianinhas de Oswaldo Cruz.<br />
Para Ismael Silva, delimitou-se o período 1922-1978 — o momento inicial é quando,<br />
segundo a sua biógrafa, começou a frequentar o meio dos sambistas.<br />
Para Cartola, o período é 1928-1980 — o marco inicial é a fundação da Mangueira.<br />
d) Suporte: base física na qual as informações consultadas estão registradas. Pode ser,<br />
neste caso, um disco, um livro ou uma partitura.<br />
e) T<strong>em</strong>a: esse rótulo a áreas t<strong>em</strong>áticas amplas delimitadas indutivamente, a partir da<br />
<strong>análise</strong> do conteúdo das letras, e também dedutivamente, a partir da leitura de Lopes (2003),<br />
Vianna (2002), Vargens e Monte (2001), Sandroni (2001), Cabral (1996) e Conforte (2007),<br />
entre outros. Elas são sete ao todo: relações amorosas; metalinguag<strong>em</strong>; reflexões existenciais;<br />
cotidiano; Brasil; natureza; religiosidade. A seguir, aprofundarei um pouco mais a exposição<br />
do conteúdo dessas áreas t<strong>em</strong>áticas.<br />
f) Obra: no caso de livros ou discos, o título correspondente. No caso de partituras,<br />
apenas o registro “partitura”; os títulos das partituras coincid<strong>em</strong> com os das músicas, que são<br />
registrados <strong>em</strong> outro campo.<br />
As seguintes fontes foram usadas para apuração de títulos, principalmente de discos e<br />
canções:<br />
• discografias publicadas nas biografias dos três compositores, já mencionadas<br />
anteriormente;<br />
279
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
• o livro A canção no t<strong>em</strong>po: 85 anos de músicas brasileiras, de Jairo Severiano e<br />
Zuza Hom<strong>em</strong> de Mello, especialmente o vol. 1, dedicado à produção do período 1901-1957;<br />
• o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira (disponível <strong>em</strong><br />
www.dicionariompb.com.br);<br />
• a discografia do site do Instituto de M<strong>em</strong>ória Musical Brasileira<br />
(www.m<strong>em</strong>oriamusical.com.br);<br />
• a discografia do site da pesquisadora Maria Luiza Kfouri<br />
(www.discosdobrasil.com.br);<br />
• a discografia do site da <strong>em</strong>presa CliqueMusic Editora Ltda, especializada <strong>em</strong><br />
música brasileira (www.cliqu<strong>em</strong>usic.com.br);<br />
• as discografias publicadas do site da jornalista Daniella Thompson<br />
(http://daniv.blogspot.com/);<br />
• a discografia de Cartola, publicada no site do Centro Cultural Cartola<br />
(www.cartola.org.br).<br />
g) Editora ou gravadora: a <strong>em</strong>presa responsável pela publicação, seja de um livro, uma<br />
partitura ou um disco; a editora pode, ainda, ser a <strong>em</strong>presa responsável pelo controle da<br />
arrecadação dos direitos autorais de uma canção ou de um livro.<br />
h) Intérprete: qu<strong>em</strong> canta a música registrada no disco. Mais uma vez as fontes que<br />
ajudaram a estabelecer o intérprete das canções são as do it<strong>em</strong> (f), além da própria audição<br />
das gravações.<br />
6) Áreas t<strong>em</strong>áticas<br />
No gráfico a seguir apresenta-se a proporção que cada área t<strong>em</strong>ática ocupa entre as<br />
letras do corpus.<br />
280
Figura 1: Áreas t<strong>em</strong>áticas detectadas no<br />
corpus<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Eis algumas breves informações sobre cada uma dessas áreas t<strong>em</strong>áticas:<br />
• Relações amorosas (52% do corpus): diversos aspectos do amor entre duas pessoas<br />
— o cortejo e o inebriamento amoroso; a convivência conjugal; os ciúmes e conflitos; o<br />
rompimento e as desilusões; o lamento e o desejo de não se apaixonar novamente etc.<br />
• Metalinguag<strong>em</strong> (16% do corpus): homenagens ao samba e a sambistas afamados; a<br />
ambiência da roda de samba e da escola e samba; manifestos artísticos relacionados às<br />
práticas do samba; criações expressivas a partir de recursos de linguag<strong>em</strong>, principalmente<br />
verbal.<br />
Na verdade, os sambas da área t<strong>em</strong>ática “metalinguag<strong>em</strong>” não se restring<strong>em</strong> à<br />
abordag<strong>em</strong> das características lírico-musicais do samba; vão além disso, passando ao<br />
metadiscurso, ou seja, também traz<strong>em</strong> informações sobre os ambientes característicos do<br />
samba, as intenções dos sambistas ao falar do próprio samba <strong>em</strong> uma composição, entre<br />
outros assuntos.<br />
Houve, neste estudo, o intuito de enfatizar o vocabulário característico desta área<br />
t<strong>em</strong>ática. Esse desejo influenciou, por ex<strong>em</strong>plo, na delimitação da nomenclatura para o estudo<br />
léxico-discursivo (ver a seguir o it<strong>em</strong> 10).<br />
• Cotidiano (12% do corpus): crônicas de acontecimentos; perfis de comportamento;<br />
o anseio pela justiça social; crítica de valores.<br />
• Reflexões existenciais (9% do corpus): considerações a respeito da vida, das<br />
experiências pessoais; balanço dos aprendizados e conquistas, assim como das desilusões;<br />
extravasamento de <strong>em</strong>oções relacionadas a episódios da vida.<br />
• Brasil (6% do corpus): nacionalismo; el<strong>em</strong>entos da cultura brasileira; paisag<strong>em</strong><br />
natural brasileira; homenag<strong>em</strong> a cidades, principalmente o Rio de Janeiro.<br />
281
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
• Natureza (4% do corpus): el<strong>em</strong>entos da paisag<strong>em</strong> natural, geralmente numa<br />
abordag<strong>em</strong> poética que se diferencia da nacionalista, pois nesta retrata-se a natureza como<br />
patrimônio nacional. Aqui, a natureza é um el<strong>em</strong>ento capaz de comover e inspirar o<br />
compositor.<br />
• Religiosidade (1% do corpus): perspectiva mística, envolvendo entes de diferentes<br />
culturas. Neste corpus, apenas três letras encaixavam-se nessa área t<strong>em</strong>ática; todas são<br />
composições de Cartola, com el<strong>em</strong>entos de religiosidade cristã.<br />
7) Estabelecimento da nomenclatura<br />
A nomenclatura para <strong>análise</strong> léxico-discursiva foi estabelecida com base nas 97<br />
palavras-chave detectadas por meio do software Wordsmith Tools, que, entre outras<br />
funcionalidades, possibilita a depreensão dessas palavras, listadas a partir da comparação<br />
estatística do corpus de estudo com outro, de referência; este último corpus, segundo Berber<br />
Sardinha (2004, p. 96-105), deve ser composto por textos de um gênero diferente daqueles do<br />
corpus de estudo e ser cinco vezes maior do que o mesmo.<br />
Além dessas palavras-chave, outras unidades foram selecionadas especificamente na<br />
lista de palavras da área t<strong>em</strong>ática “metalinguag<strong>em</strong>”, tendo <strong>em</strong> vista o meu interesse <strong>em</strong><br />
destacar os sambas que falam de samba.<br />
As composições metalinguísticas foram privilegiadas apenas nessa etapa inicial, de<br />
constituição da nomenclatura: o estudo das palavras selecionadas a partir desses<br />
procedimentos cont<strong>em</strong>plou ocorrências encontradas <strong>em</strong> todas as letras do corpus.<br />
A nomenclatura obtida nessa etapa do trabalho totalizou 292 verbetes.<br />
8) Ilustração de verbete<br />
Ilustrarei o trabalho feito na elaboração dos verbetes com o caso de samba. A estrutura<br />
dos verbetes consiste <strong>em</strong> uma linha inicial na qual se registram o l<strong>em</strong>a e uma informação de<br />
frequência (número de ocorrências e número de letras nas quais foram localizadas).<br />
Em seguida, há uma tabela com quatro colunas: na primeira está a numeração das linhas<br />
com os registros das ocorrências; na segunda, registra-se uma datação, exata ou aproximada,<br />
estabelecida segundo os critérios expostos anteriormente; na terceira coluna há a citação <strong>em</strong><br />
que a ocorrência v<strong>em</strong> contextualizada; finalmente, na quarta coluna, há a informação de título<br />
e autoria de cada canção.<br />
A seguir, registro apenas as quinze primeiras ocorrências da palavra.<br />
Tabela 1: Ilustração do verbete samba<br />
SAMBA [33 ocorrências <strong>em</strong> 21 letras do corpus]<br />
1 1931<br />
Também dou a minha bola / Golpe errado<br />
ainda não dei / Eu vou chamar Chico Viola /<br />
que no samba ele é rei / (Dá licença, seu<br />
Mário?) //<br />
O que será de mim; Ismael<br />
Silva, Nilton Bastos e<br />
Francisco Alves<br />
2 1931 Até parece muamba / Eu assim não vi igual / Oleleô; Ismael Silva, Nilton<br />
282
3 1932<br />
4 1933<br />
5 1933<br />
6 1937<br />
7 déc.1930<br />
8 déc.1930<br />
9 1940<br />
10 1940<br />
11 1941<br />
12 1946<br />
13 1946<br />
14 1922-1949<br />
Você não gosta de samba / N<strong>em</strong> baile de<br />
carnaval (vejam vocês) //<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Pudesse um dia / Juro faria / Do samba o maior<br />
herói / Concorrerias / Com as vitórias / Que<br />
existiam entre nós / Seriam páginas de intenso<br />
fulgor / E o passado teria maior valor<br />
Lá v<strong>em</strong> ela, lá v<strong>em</strong> ela / Com o ioiô do seu lado<br />
/ Arrastando a chinela / Dizendo samba raiado<br />
//<br />
E essa bela Iaiá / Não acredita <strong>em</strong> muamba /<br />
Ela t<strong>em</strong> um patuá / Que é todo o nosso samba //<br />
Teste ao samba // Vou começar a aula / Perante<br />
a comissão, muita atenção / Eu quero ver se<br />
diplomá-los posso / Salve o fessor, dá nota a<br />
eles, senhor / Quatorze com mais doze noves<br />
fora tudo é nosso //<br />
Quando trouxer deve pedir ao destino / Que<br />
mande pelo menino recomendação de um<br />
bamba / Mais tarde eu quero que como todo<br />
lero-lero / Ele seja professor de uma Escola de<br />
Samba. //<br />
Chegando eu quero recebê-lo com carinho /<br />
Tratá-lo como reizinho / Enveredarei pelos<br />
caminhos dos bambas / Talvez será herdeiro /<br />
De uma coroa do samba.<br />
T<strong>em</strong> um prêmio para qu<strong>em</strong> / descobrir a nega<br />
bamba / da escola de samba / que compra<br />
barulho / por qualquer dinheiro / faz o dó maior<br />
/ b<strong>em</strong> direitinho / no cavaquinho / toca cuíca /<br />
bate tamborim / enfrenta um pandeiro<br />
─ Jamais tu irás a um samba / E tenho as<br />
minhas razões / Quando entras no batuque /<br />
Esqueces as obrigações. / ─ Pense o caso b<strong>em</strong><br />
direito / Te aconselho a que não faça / Proibirme<br />
do batuque / Tradição de nossa raça.<br />
Todos que pertenc<strong>em</strong> ao samba / No Rio te<br />
mandam um abraço. / Pauliceia, ô / Pauliceia, ô<br />
/ Quer<strong>em</strong>os com este samba / Estreitar os<br />
nossos laços / Esse samba traduz a nossa união.<br />
Como é que vai ser, / se eu tiver de escolher /<br />
Entre o samba e você / Amor / Não é tudo que<br />
se possa desejar / O samba / Também merece<br />
ter o seu lugar / Você não leve a mal / Se eu me<br />
descuidar / E for sambar.<br />
Se eu tiver de escolher / Entre o samba e você /<br />
Vai ser de amargar / S<strong>em</strong> você eu não vivo / E<br />
também s<strong>em</strong> o samba / Não posso passar / Ai<br />
meu Deus!<br />
Vamos deixar correr / A fama suburbana / Por<br />
todo este universo, universo / O samba b<strong>em</strong><br />
Bastos e Francisco Alves<br />
Pudesse meu ideal; Cartola<br />
e Carlos Cachaça<br />
Dona do lugar; Ismael<br />
Silva e Francisco Alves<br />
Dona do lugar; Ismael<br />
Silva e Francisco Alves<br />
Teste ao samba; Paulo da<br />
Portela<br />
Senhora Dona Cegonha;<br />
Paulo da Portela<br />
Senhora Dona Cegonha;<br />
Paulo da Portela<br />
Nega bamba; Paulo da<br />
Portela<br />
Vamos <strong>em</strong>bora, ó, flor;<br />
Paulo da Portela<br />
Pauliceia; Paulo da Portela<br />
e Cartola<br />
Se eu tiver de escolher;<br />
Arlindo Marques Júnior,<br />
Roberto Roberti e Ismael<br />
Silva<br />
Se eu tiver de escolher;<br />
Arlindo Marques Junior,<br />
Roberto Roberti e Ismael<br />
Silva<br />
Avante, mocidade, é<br />
hora...; Paulo da Portela<br />
283
15 1922-1949<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
cantado é lindo / Voltamos na linha de frente /<br />
Para presidente o mano Claudionor<br />
Não é lá muito difícil / acertar a marcação / o<br />
samba nasce com a gente / está dentro do<br />
coração<br />
Não é lá muito difícil;<br />
Paulo da Portela<br />
9) Análise de ocorrências de samba <strong>em</strong> algumas composições do corpus<br />
Nesta seção, apresentarei integralmente três letras nas quais se encontram ocorrências<br />
de samba no corpus; a partir das mesmas, analisarei a construção da significação dessa<br />
palavra nos contextos <strong>em</strong> questão.<br />
Teste ao samba (Paulo da Portela)<br />
Vou começar a aula / Perante a comissão, muita atenção / Eu quero ver se diplomá-los posso /<br />
Salve o fessor, dá nota a eles, senhor / Quatorze com dois doze noves fora tudo é nosso //<br />
C<strong>em</strong> divididos por mil / Cada um com quanto fica / Não pergunte à caixa surda / Não peça<br />
cola à cuíca / Lá no morro vamos vivendo de amor / Estudando com carinho o que nos passa<br />
o professor.<br />
Datação: 1937 T<strong>em</strong>a: metalinguag<strong>em</strong><br />
Livro: Paulo da Portela, traço de união entre duas culturas, p. 152<br />
Editora: Funarte<br />
Nessa composição, samba é a instituição cultural que se desenvolveu a partir do gênero<br />
musical concebido no Rio de Janeiro durante as primeiras décadas do século XX,<br />
principalmente por iniciativa da geração de compositores do Estácio, entre os quais dev<strong>em</strong>os<br />
citar Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Marçal e Brancura.<br />
A construção dessa significação inicia-se no próprio título da música, com a colocação<br />
de samba com teste, palavra que marca a carga abstrata de avaliação dos méritos da<br />
instituição cultural.<br />
Ao longo da letra, constrói-se a encenação discursiva da interação entre professor e<br />
alunos, na qual o mestre faz uma arguição que combina el<strong>em</strong>entos mat<strong>em</strong>áticos com outros<br />
ligados ao samba.<br />
É necessário esclarecer que Teste ao samba foi samba-enredo da Portela no desfile de<br />
1939, ano <strong>em</strong> que a agr<strong>em</strong>iação de Oswaldo Cruz foi campeã do Carnaval. Essa foi uma das<br />
primeiras composições a apresentar as características que defin<strong>em</strong> os sambas-enredo como<br />
composições que serv<strong>em</strong> como base musical para o desfile de escolas de samba, com letra<br />
coerente com o t<strong>em</strong>a abordado e com as fantasias e alegorias apresentadas.<br />
Nesse ano, a Portela desfilou com os integrantes fantasiados como estudantes e Paulo da<br />
Portela, o compositor e líder, apresentou-se vestido como professor. Uma das principais<br />
alegorias era um grande quadro-negro, onde se lia “Prestigiar o samba, música típica e<br />
original do Brasil, e incentivar o povo”. Em determinado momento da apresentação, Paulo<br />
distribuiu diplomas aos componentes da escola; sua atuação nesse desfile rendeu-lhe o título<br />
de “professor de samba”.<br />
284
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
No que diz respeito ao vocabulário, destacam-se dois eixos principais: o da instrução<br />
formal (teste, aula, diplomar, fessor [professor], dar nota, noves fora, pedir cola); o dos<br />
el<strong>em</strong>entos musicais relacionados ao samba (samba, caixa surda, cuíca). É interessante notar<br />
que os instrumentos musicais são apresentados como fontes de conhecimento, personificados<br />
na condição de qu<strong>em</strong> está <strong>em</strong> condições para “dar cola” diante da arguição do professor.<br />
Essa aproximação com a educação formal é outro fator que reforça a significação de<br />
samba mencionada anteriormente: um dos propósitos perceptíveis nesse caso é o de afirmar a<br />
relevância do samba como instituição cultural, o que fica perfeitamente documentado na lexia<br />
escola de samba, denominação que se fixou para as maiores agr<strong>em</strong>iações que se apresentam<br />
no carnaval.<br />
Ninguém t<strong>em</strong> de achar ruim (Ismael Silva)<br />
De mim você não t<strong>em</strong> razão / de se queixar / Assim você faz confusão / No nosso lar / Se eu<br />
sou do samba ninguém t<strong>em</strong> / que achar ruim / Você me conheceu / vivendo assim (tocando<br />
tamborim) //<br />
Não vá pensar / Que dança, música e bebida enfim / apareceram exclusivamente para mim /<br />
Você também se por acaso / Numa farra entrar / Talvez até ocupe o meu lugar (E s<strong>em</strong> se<br />
d<strong>em</strong>orar)<br />
Datação: 1975 T<strong>em</strong>a: relações amorosas<br />
Disco: Claridade Gravadora: Odeon<br />
Intérprete: Clara Nunes<br />
Aqui, samba corresponde à roda de samba, evento festivo de música, canto dança e<br />
confraternização. A expressão ser do samba indica a profunda identificação do enunciador<br />
com esse ambiente.<br />
A encenação discursiva que se encontra na letra envolve um enunciador que se dirige a<br />
uma destinatária a qu<strong>em</strong> está ligado afetivamente. Ela t<strong>em</strong> objeções ao hábito dele, de<br />
frequentar rodas de samba; ele, por sua vez, defende a sua identidade de sambista. Sua<br />
argumentação recorre ao fato de a sua ligação com o samba ser antiga e à sugestão de que, se<br />
ela conhecesse melhor o meio do samba, poderia gostar tanto quanto ele de participar da festa.<br />
A abordag<strong>em</strong> de situações de dil<strong>em</strong>as do sambista com relação à necessidade de<br />
abandonar o samba é frequente nas composições dos sambistas do Estácio mencionados<br />
anteriormente. Conforme se lê <strong>em</strong> Sandroni (2001), essa geração de artistas, diferent<strong>em</strong>ente<br />
de outras anteriores (como a de Pixinguinha, João da Baiana e Donga, por ex<strong>em</strong>plo), assumiu<br />
a identidade de malandros, pessoas intimamente identificadas com a orgia (outro nome da<br />
roda de samba, que à época era corrente no universo dos sambistas). Entretanto, <strong>em</strong> um<br />
período durante o qual essa identificação era fort<strong>em</strong>ente estigmatizada, foi preciso usar<br />
artifícios para amenizar tal posicionamento: assim, o malandro costumava ser apresentado<br />
como alguém que pensa <strong>em</strong> “se regenerar”, ou seja, deixar de frequentar o samba. É o que<br />
acontece nessa composição, assim como, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> Se você jurar e N<strong>em</strong> é bom falar<br />
(ambas de Ismael Silva e Nilton Bastos).<br />
285
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O conflito experimentado pelo malandro na letra <strong>em</strong> estudo apresenta-se a partir de três<br />
eixos lexicais principais: discussão (ter razão, queixar-se, confusão, achar ruim) e samba<br />
(samba, tocar, tamborim, dança, música, bebida, farra).<br />
T<strong>em</strong>pos idos (Cartola e Carlos Cachaça)<br />
Os t<strong>em</strong>pos idos, nunca esquecidos, / Traz<strong>em</strong> saudades ao recordar / É com tristeza que<br />
rel<strong>em</strong>bro / Coisas r<strong>em</strong>otas que não vêm mais / Uma escola na praça Onze, test<strong>em</strong>unha ocular /<br />
E perto dela uma balança onde os malandros iam sambar //<br />
Depois, aos poucos, o nosso samba / S<strong>em</strong> sentirmos se aprimorou / Pelos salões da sociedade<br />
/ S<strong>em</strong> cerimônia ele entrou / Já não pertence mais à praça, / Já não é samba de terreiro /<br />
Vitorioso, ele partiu para o estrangeiro //<br />
E muito b<strong>em</strong> representado / Por inspiração de geniais artistas, / O nosso samba, humilde<br />
samba, / Foi de conquistas <strong>em</strong> conquistas / Conseguiu penetrar no Municipal / Depois de<br />
percorrer todo o universo / E com a mesma roupag<strong>em</strong> que saiu daqui / Exibiu-se pra Duquesa<br />
de Kent no Itamaraty<br />
Datação: 1960 T<strong>em</strong>a: metalinguag<strong>em</strong><br />
Disco: Verde que te quero rosa Gravadora: RCA Victor<br />
Intérprete: Cartola<br />
Nesta composição, samba aparece com duas significações diferentes: inicialmente, falase<br />
no samba como instituição cultural, <strong>em</strong> sua trajetória desde a orig<strong>em</strong>; mencionam-se<br />
eventos marcantes da sua expansão, ganhando maior visibilidade social e conquistando<br />
projeção internacional. Já na segunda estrofe, menciona-se o samba de terreiro, tipo de samba<br />
que costuma ser executado informalmente no terreiro das escolas de samba (atualmente mais<br />
conhecido como quadra, pois não se trata mais de um espaço de terra), para recreação e<br />
fruição dos participantes de eventos. Portanto, samba, neste último caso, é a composição<br />
musical <strong>em</strong> sentido estrito; ressalte-se que, no contexto dessa composição, terreiro ainda<br />
polariza com estrangeiro, reforçando-se a ampliação da projeção cultural do samba como<br />
instituição.<br />
Quanto à encenação discursiva, o enunciador apresenta-se como alguém de grande<br />
vivência no mundo do samba, que t<strong>em</strong> condições de rel<strong>em</strong>brar momentos históricos ligados a<br />
esse percurso. O espaço da praça Onze no Rio de Janeiro é l<strong>em</strong>brado como fundamental nessa<br />
história e os malandros, mais uma vez, figuram como seus protagonistas. A expansão é<br />
representada principalmente a partir da ascensão social do samba, que passa a penetrar<br />
espaços aristocráticos, como o Teatro Municipal e o palácio do Itamaraty.<br />
Os principais eixos lexicais, nesse caso, são os referentes a m<strong>em</strong>órias do passado<br />
(t<strong>em</strong>pos idos, esquecer, saudades, recordar, rel<strong>em</strong>brar, r<strong>em</strong>oto, test<strong>em</strong>unha ocular); a<br />
práticas do samba (praça Onze, malandro, sambar, samba de terreiro, inspiração, artistas); a<br />
expansão social e geográfica (salão, sociedade, cerimônia, estrangeiro, conquista, Municipal,<br />
universo, Duquesa de Kent, Itamaraty).<br />
286
10) Desdobramentos do estudo<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Esta foi uma breve exposição dos benefícios que um trabalho <strong>em</strong>basado <strong>em</strong> corpus pode<br />
oferecer para o conhecimento do léxico da letra de samba. A partir da compilação do corpus<br />
aqui apresentado, pretende-se ampliar a extensão dos dados, com inclusão de sambistas de<br />
outras gerações de compositores (dev<strong>em</strong> ser cont<strong>em</strong>plados artistas das cinco primeiras<br />
décadas do século XX).<br />
As técnicas de processamento dos dados, de depreensão de palavras-chave e de<br />
etiquetag<strong>em</strong> dos dados também dev<strong>em</strong> ser aperfeiçoadas, para que se aproveit<strong>em</strong> melhor os<br />
recursos de busca e as informações estatísticas oferecidas pelo Wordsmith Tools.<br />
Enfim, o trabalho aqui apresentado representa o ponto de partida para o Dicionário<br />
Histórico do Samba Carioca, obra que t<strong>em</strong> suas bases delineadas e entra <strong>em</strong> fase de<br />
compilação do seu corpus de referência.<br />
Referências<br />
BARBOSA, Flávio de Aguiar. Palavra de bamba: estudo léxico discursivo de pioneiros do samba<br />
urbano carioca. 494 f. 2009. Tese (Doutorado <strong>em</strong> Língua Portuguesa) − Instituto de <strong>Letras</strong>,<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Disponível <strong>em</strong>:<br />
. Acesso <strong>em</strong>: jan. 2010.<br />
BARBOZA DA SILVA, Marilia Trindade e OLIVEIRA FILHO, Arthur de. Cartola, os t<strong>em</strong>pos idos.<br />
Rio de Janeiro: Gryphus, 2003.<br />
BARBOZA DA SILVA, Marilia Trindade e SANTOS, Lygia. Paulo da Portela: traço de união entre<br />
duas culturas. Rio de Janeiro: Funarte, 1989.<br />
BERBER SARDINHA, Tony. Linguística de corpus. São Paulo: Manole, 2004.<br />
BIDERMAN, Maria Tereza C. O dicionário como norma na cont<strong>em</strong>poraneidade. In CARVALHO,<br />
Nelly Medeiros de e SILVA, Maria Emília Barcellos da. Lexicologia, lexicografia e terminologia:<br />
questões conexas: anais do I Encontro Nacional do GT de Lexicologia, Lexicografia e Terminologia<br />
da ANPOLL. Recife: UFPE:CNPq, 1998, p. 161-180.<br />
BORBA, Francisco da Silva. Organização de dicionários: uma introdução à lexicografia. São Paulo:<br />
UNESP, 2003.<br />
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.<br />
CANDEIA FILHO, Antônio e ARAÚJO, Isnard. Escola de samba: árvore que esqueceu a raiz. Rio de<br />
Janeiro: Lidador:SEEC, 1978.<br />
CARTOLA. Cartola: documento inédito [CD]. Eldorado, 1982.<br />
______. Cartola entre amigos [LP]. Diversos intérpretes. Acervo Funarte. Rio de Janeiro: Funarte,<br />
1984.<br />
287
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
______. A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes: Cartola [CD]. São Paulo:<br />
SESC-SP, 2000.<br />
CARVALHO, Luiz Fernando Medeiros de. Ismael Silva: samba e resistência. Rio de Janeiro: José<br />
Olympio, 1980.<br />
CENTRO CULTURAL CARTOLA. Discografia. Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>:<br />
mar. 2009.<br />
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de <strong>análise</strong> do discurso. São<br />
Paulo: Contexto, 2004.<br />
CHARAUDEAU, Patrick. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.<br />
CLIQUEMUSIC EDITORA LTDA. Discografia. Disponível <strong>em</strong>: .<br />
Acesso <strong>em</strong>: mar. 2009.<br />
CONFORTE, André N<strong>em</strong>i. As metalinguagens do samba. 103 f. 2007. Dissertação (Mestrado <strong>em</strong><br />
Língua Portuguesa) – Instituto de <strong>Letras</strong>, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,<br />
2007.<br />
DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Disponível <strong>em</strong>:<br />
. Acesso <strong>em</strong>: mar. 2009.<br />
História das escolas de samba: Mangueira [LP]. Diversos intérpretes. Marcus Pereira, 1974.<br />
INSTITUTO MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA (IMMUB). Discografia brasileira. Disponível<br />
<strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: mar. 2009.<br />
KFOURI, Maria Luiza. Discos do Brasil. Discografia. Disponível <strong>em</strong>: .<br />
Acesso <strong>em</strong>: mar. 2009.<br />
LOPES, Nei. Sambeabá: o samba que não se aprende na escola. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2003.<br />
MOURA, Roberto M. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros<br />
pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.<br />
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar:EdUFRJ, 2001.<br />
SCOTT, Mike. Oxford Wordsmith Tools - version 4.0: Manual. Oxford University Press, 2007.<br />
Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: ago. 2008.<br />
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Hom<strong>em</strong> de. A canção no t<strong>em</strong>po: 85 anos de músicas brasileiras.<br />
v. 1: 1901-1957. São Paulo: Editora 34, 1997.<br />
SILVA, Ismael. O samba na voz do sambista com Ismael Silva [LP]. Sinter, 1955.<br />
______. Ismael canta... Ismael [LP]. Mocambo, 1957.<br />
______. Se você jurar [LP]. Série Documento. RCA Victor, 1973.<br />
288
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
______. Ismael Silva: peçam bis [LP]. Acervo Funarte. Rio de Janeiro, Funarte, 1988.<br />
______. A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes: Ismael Silva [CD]. São<br />
Paulo: SESC-SP, 2000.<br />
THOMPSON, Daniella. Discografias. Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: mar.<br />
2009.<br />
VARGENS, João Baptista M. e MONTE, Carlos. A Velha Guarda da Portela. Rio de Janeiro: Manati,<br />
2001.<br />
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: UFRJ, 2002.<br />
289
LÉXICO E CULTURA: ALGUNS APONTAMENTOS A PARTIR DA<br />
TRADUÇÃO DE “FOI ASSIM” DE NATALIA GINZBURG<br />
Edson Roberto Bogas Garcia (UNESP/IBILCE)<br />
Claudia Zavaglia (UNESP/IBILCE)<br />
RESUMO: Atualmente, os estudos lexicológicos têm d<strong>em</strong>onstrado que as unidades lexicais possu<strong>em</strong> a<br />
fundamental característica de representar a realidade linguística cultural e social de uma determinada<br />
comunidade. É por meio dele que todo saber adquirido <strong>em</strong> vários momentos da vida dos indivíduos é transmitido<br />
às gerações seguintes. A partir desses pressupostos, este trabalho t<strong>em</strong> como objetivo ponderar acerca da<br />
importância da seleção lexical na tradução do romance “È stato cosi”, da escritora italiana Natalia Ginzburg,<br />
traduzido para o português com o título “Foi assim”. A obra <strong>em</strong> questão, no caso, é marcada pela maneira de<br />
representar a sociedade por meio de um realismo cujas raízes se firmam na angústia existencial do nosso t<strong>em</strong>po.<br />
Serve, portanto, para os pontos a que se propõe esta pesquisa. A fundamentação teórica baseia-se, por<br />
conseguinte, nos estudos do léxico de Matoré (1953), Vilela (1994) e Carvalho (2001), entre outros, apoiados<br />
pelas pesquisas sobre cultura e linguag<strong>em</strong> de Duranti (2000). A revisão das <strong>teoria</strong>s tradutológicas parte das obras<br />
de Paes (1990) e Aubert (1994). Com isso, pretende-se, por meio dessa <strong>análise</strong>, constatar que o resultado de uma<br />
tradução eficiente, além de considerar a <strong>em</strong>patia tradutor-obra, deve, indubitavelmente, levar <strong>em</strong> consideração os<br />
conhecimentos léxico-culturais desse profissional. O processo, assim desenvolvido, longe de possuir baixo teor<br />
científico, é um estudo que proporciona criteriosas descobertas acerca de áreas de pesquisas promissoras as quais<br />
pod<strong>em</strong> possibilitar a difusão de obras para que comunidades tenham acesso, cada vez mais, a boas leituras.<br />
1) Léxico e cultura<br />
(...)<br />
Cantando amor, os poetas na noite<br />
Repensam a tarefa de pensar o mundo.<br />
E podeis crer que há muito mais vigor<br />
No lirismo aparente<br />
No amante Fazedor da palavra<br />
Do que na mão que esmaga.<br />
A IDÉIA é ambiciosa e santa.<br />
E o amor dos poetas pelos homens<br />
é mais vasto<br />
Do que a voracidade que nos move.<br />
E mais forte há de ser<br />
Quanto mais parco<br />
Aos vossos olhos possa parecer.<br />
Hilda Hilst<br />
A partir da década de 50, Matoré (1953), seguindo ainda a linha estruturalista, passa a<br />
considerar os aspectos sociais no estudo do léxico. Esse linguista via a Lexicologia como uma<br />
disciplina sociológica e considerava a palavra não como um objeto isolado, mas como parte<br />
de uma estrutura social. Segundo ele, o léxico é um fato social. É o espelho de uma sociedade<br />
e para lá dos muros dela a linguag<strong>em</strong> não encontra expressão.<br />
Os estudos da Lexicologia, com base nesse preceito, têm d<strong>em</strong>onstrado que o léxico<br />
possui a fundamental característica de representar a realidade linguística cultural e social de<br />
290
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
uma determinada comunidade. É por meio dele que todo saber adquirido <strong>em</strong> vários momentos<br />
da vida dos indivíduos é transmitido às gerações seguintes. Assim sendo, os vocábulos têm a<br />
função de fazer perdurar sentimentos, <strong>em</strong>oções e conhecimentos.<br />
Acrescentamos que, por pertencer ao universo social, diferent<strong>em</strong>ente da gramática da<br />
língua, o léxico torna-se um sist<strong>em</strong>a aberto e <strong>em</strong> expansão, impossível de cristalizar-se, a não<br />
ser que a língua morra.<br />
De acordo com Vilela (1994, p. 6),<br />
O léxico é a parte da língua que primeiramente configura a realidade extralinguística e arquiva o<br />
saber linguístico duma comunidade. Avanços e recuos civilizacionais, descobertas e inventos,<br />
encontros entre povos e culturas, mitos e crenças, afinal quase tudo, antes de passar para a língua e<br />
para a cultura dos povos, t<strong>em</strong> um nome e esse nome faz parte do léxico. O léxico é o repositório do<br />
saber linguístico e é ainda a janela através da qual um povo vê o mundo.<br />
A definição acima corrobora com Carvalho (2001), que diz que língua e cultura formam<br />
um todo indissociável e que “no caso da língua e da cultura maternas, esse todo não é<br />
ensinado <strong>em</strong> nenhum lugar especial, mas adquirido ao sabor dos acontecimentos cotidianos”.<br />
A autora pondera que o componente s<strong>em</strong>ântico-lexical revela com maior clareza as<br />
divergências entre os usos por diferentes comunidades linguísticas.<br />
O jogo é s<strong>em</strong>pre o mesmo: no momento da comunicação, entender um signo é construir uma linha<br />
de d<strong>em</strong>arcação entre os que compartilham o sentido evocado e os que ficam excluídos. O implícito<br />
(cultural) des<strong>em</strong>penha um papel decisivo, impondo uma fronteira eficaz e discreta entre os que<br />
compreend<strong>em</strong> e os que não compreend<strong>em</strong> o sentido total da mensag<strong>em</strong>. A fronteira cultural não é<br />
apenas a das nações, n<strong>em</strong> sequer a da língua: pode ser regional e até mesmo grupal (CARVALHO,<br />
2001).<br />
Para elucidar o que se entende por cultura, partimos, no presente trabalho, das seis<br />
<strong>teoria</strong>s descritas por Duranti (2000, p. 47), <strong>em</strong> que a linguag<strong>em</strong> des<strong>em</strong>penha um papel<br />
decisivo:<br />
a) a cultura é aprendida e transmitida de geração <strong>em</strong> geração mediante a comunicação<br />
linguística. Dessa forma, ninguém nasce com uma cultura, mas, ao contrário, adquire-a por<br />
meio das pessoas com qu<strong>em</strong> convive;<br />
b) a cultura como conhecimento de mundo, compartilhado entre os m<strong>em</strong>bros de uma<br />
comunidade;<br />
c) a cultura como comunicação. Aquela conecta indivíduos, grupos, situações e objetos<br />
com outros grupos, situações e objetos. Nessa perspectiva, a comunicação não apenas<br />
representa, mas também indica alguma coisa, pressupõe, deduz;<br />
d) a cultura como um sist<strong>em</strong>a de mediação. O hom<strong>em</strong> utiliza-se de ferramentas para<br />
produzir um trabalho ou interagir com o mundo social ou físico. Coexist<strong>em</strong> a cultura dos<br />
objetos materiais como as ferramentas de trabalho, b<strong>em</strong> como aquela de sist<strong>em</strong>as de crenças e<br />
códigos lingüísticos como mediadores entre o hom<strong>em</strong> e seu entorno;<br />
e) a cultura como um sist<strong>em</strong>a de práticas. Ela existe por meio de uma prática rotineira<br />
que inclui as condições materiais e, também, pela experiência dos homens no seu meio<br />
familiar;<br />
f) a cultura como um sist<strong>em</strong>a de participação. Usar uma língua significa participar <strong>em</strong><br />
interações com o mundo que nos cerca. A cultura é, nessa medida, um sist<strong>em</strong>a de participação<br />
291
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
<strong>em</strong> que os indivíduos de uma comunidade compartilham os recursos existentes como as<br />
crenças, a linguag<strong>em</strong>, os costumes, etc.<br />
Sabe-se, no entanto, que a relação possível entre léxico e cultura não se esgota aí. Dessa<br />
maneira, apresentar uma definição totalizadora é bastante complexo. No entanto, com o<br />
levantamento das proposições acima, pode-se perceber, com maior acuidade, que o léxico<br />
des<strong>em</strong>penha um papel decisivo <strong>em</strong> uma sociedade.<br />
2) Tradução<br />
À primeira vista, a tradução literária (e aqui generalizamos para outros tipos de<br />
tradução) poderia ser considerada uma tarefa fácil: com o domínio que se t<strong>em</strong> sobre dois<br />
idiomas e, com a ajuda de dicionários, verte-se o texto de partida (no caso <strong>em</strong> questão a<br />
língua italiana) para o texto de chegada (língua portuguesa). Essa é uma ideia generalizada da<br />
literalidade sonhada por produtores de programas para computadores que, até hoje, não surtiu<br />
grandes efeitos práticos. Paes (1990, p. 116) esclarece a questão quando diz que: “Pelo<br />
simples fato de ter sido feita e publicada, tradução alguma pode aspirar à dignidade de tal<br />
estado. Para tanto, deve fazer-lhe jus. Não o faz<strong>em</strong>, obviamente, as traduções que, por<br />
incompetência, fiqu<strong>em</strong> aquém do horizonte do possível”.<br />
Não obstante, o trabalho de pesquisa requer mais do que isso. Devido à riqueza<br />
vocabular e cultural-literária de cada país, torna-se importante um conhecimento, por parte do<br />
tradutor:<br />
a) dos aspectos literários e históricos de cada nação;<br />
b) além do conhecimento linguístico, de um “saber” cultural que permite perpassar os<br />
limites da literalidade e<br />
c) das tendências peculiares, na linguag<strong>em</strong>, dos estilos e modismos da época a ser<br />
enfocada.<br />
A respeito disso, Aubert (1994) salienta que:<br />
[...] Mas todos esses el<strong>em</strong>entos - lexicais, morfológicos, sintáticos e textuais – por si só não<br />
proporcionam uma imag<strong>em</strong> completa do conceito de visão de mundo, tal como se manifesta ou se<br />
institui na língua. Vivenciar o mundo é algo que se faz, através da linguag<strong>em</strong>, instituindo relações<br />
de intimidade com esse mundo.<br />
Antes de prosseguir, abr<strong>em</strong>-se aqui parênteses para acrescentar, por meio das palavras<br />
de Paes (1990, p. 116), um it<strong>em</strong> d) à lista acima:<br />
Além de cultura literária e conhecimento de línguas, o aferidor deve ter certa intimidade com os<br />
procedimentos tradutórios, seja pela sua prática, seja pela leitura regular de traduções de nível, por<br />
via das quais tenha podido adquirir uma noção da natureza e dos limites do traduzir (Paes, 1990, p.<br />
116).<br />
A partir desses dados, o presente artigo analisa, para comprovar tais observações, as<br />
escolhas lexicais de alguns trechos de É stato così, traduzida no Brasil com o título Foi<br />
assim, um dos primeiros romances da escritora Natalia Ginzburg.<br />
292
3) A escolha lexical na tradução de “È stato cosi”<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Grandes autores da literatura italiana cont<strong>em</strong>porânea que compreende, mais<br />
especificamente, a produção do início do século XX até os nossos dias, s<strong>em</strong>pre tiveram<br />
grande acolhida por parte dos leitores brasileiros. A leitura de obras de escritores desse<br />
período, como Alberto Moravia, Elio Vittorini, Leonardo Sciascia, Italo Calvino, entre outros,<br />
contribuiu para que muitas pessoas pudess<strong>em</strong> conhecer o desenvolvimento da cultura italiana,<br />
com seus probl<strong>em</strong>as e soluções. Períodos densos como, por ex<strong>em</strong>plo, os que envolv<strong>em</strong> as<br />
duas guerras mundiais, o fascismo, a luta dos italianos para a liberação de seu país e que<br />
marcaram uma profunda transformação da nação, preparando-a para os novos avanços sociais,<br />
culturais e políticos.<br />
Apesar de não figurar entre os grandes nomes estudados pelos críticos, Natalia<br />
Ginzburg v<strong>em</strong> merecendo, cada vez mais, destaque por parte de estudiosos italianos,<br />
principalmente a partir dos anos Cinqüenta, quando a sua presença começa a afirmar-se na<br />
literatura italiana.<br />
Aqui, no Brasil, particularmente, com relação aos livros destinados ao estudo da língua<br />
italiana usados pelos nossos estudantes, muitos são os que inclu<strong>em</strong> textos da autora 1 . Em<br />
recente manual de italiano para brasileiros 2 , Natalia Ginzburg é uma das mais citadas, por<br />
meio de sua narrativa rica <strong>em</strong> descrição, para ex<strong>em</strong>plos gramaticais.<br />
Sua formação literária desenvolve-se num ambiente e num período histórico densos: a<br />
conturbada época <strong>em</strong> que se configura o pós-guerra. Desse período, traz consigo a sensação<br />
das profundas mudanças no povo italiano e na sua pátria:<br />
“[...] quando l<strong>em</strong>bramos daqueles anos, l<strong>em</strong>bramos do b<strong>em</strong>-estar junto com os desconfortos, o<br />
frio, a fome e o medo, que naqueles dias não nos deixavam nunca. O fascismo tinha duas faces, a<br />
imbecilidade e a perversão. Todos víramos a imbecilidade, há um bom t<strong>em</strong>po, mas a perversão a<br />
entend<strong>em</strong>os agora, e <strong>em</strong> todos nasceu o sentimento de que estávamos saturados de imbecilidade e<br />
presos na perversão. O pensamento que reinava constant<strong>em</strong>ente na mente de cada um era liberar o<br />
mundo daquelas trevas carcerárias [...] . As palavras “pátria” e “Itália” que nos nausearam tanto<br />
entre as paredes da escola, porque vinham s<strong>em</strong>pre acompanhadas pelo adjetivo “fascista”, cheias<br />
de vazio, nos apareceram, de repente, s<strong>em</strong> adjetivos e tão transformadas que nos pareceu tê-las<br />
escutado pela primeira vez. De repente, nos nossos ouvidos soaram como verdadeiras. Estávamos<br />
ali para defender a pátria e a pátria eram aquelas ruas e aquelas praças, os nossos entes queridos e<br />
a nossa infância, e todas as pessoas que passavam” (Ginzburg, 1964, p. 8).<br />
Por participar da atmosfera que envolve quase todas essas correntes, nunca se propôs a<br />
aderir a nenhuma delas, produzindo suas obras numa linha de constante fidelidade a si<br />
mesma. “Natalia Ginzburg é criatura de seu t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> cada momento e segundo uma<br />
perspectiva que ultrapassa os limites s<strong>em</strong>pre restritos dos vários “ismos” literários”<br />
(Cl<strong>em</strong>entelli, p. 107). Uma escritora consciente de seu relacionamento inato com a arte de<br />
escrever, mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po, constant<strong>em</strong>ente levada por um estado de forte tensão moral<br />
que a conduziu a um progressivo aprofundamento das razões da profissão.<br />
1<br />
Pod<strong>em</strong>os encontrar citações sobre a autora e suas obras <strong>em</strong> livros como Uno-corso di italiano per stranieri,<br />
p.110; Due-corso di italiano per stranieri, p. 42; Voci d’ Italia 1- scelta di letture guidate, p. 79-80; Voci<br />
d’Italia 2- scelta di letture guidate”, p.11-13 e Contesti italiani - materiali per la didattica dell’italiano L2,<br />
p. 29-33.<br />
2<br />
CEVIDALLI SALMONI, A., MORDENTE, O.A. Sì all’italiano. Grammatica italiana. São Paulo: Nobel;<br />
EDUSP, 1992. Pod<strong>em</strong>os encontrar citações nas páginas 7,41,51,54,55,74,87,109, 112, 121,<br />
132,143,145,172,176,184,222,236 e 271, de vários romances de Natalia Ginzburg.<br />
293
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Um itinerário que se mantém fiel, no nível t<strong>em</strong>ático, na representação da inevitável<br />
solidão humana, tratada através de um tom narrativo simples, real e muitas vezes irônico, que<br />
toma forma na probl<strong>em</strong>ática dos relacionamentos familiares.<br />
Segundo Marabini (1995, p. 24), “alguns livros dedicados aos m<strong>em</strong>bros da casa, à casa<br />
<strong>em</strong> si, aos hábitos cotidianos do grupo familiar, estão seguramente entre os melhores da<br />
segunda metade do século XX e são livros, além disso, de um não-preconceito que é a prova<br />
última da verdade”.<br />
Apesar da aparente monotonia t<strong>em</strong>ática, muito diversos serão os resultados estilísticos<br />
de cada obra: tramas s<strong>em</strong> diálogos, diálogos absolutos, formas epistolares, experiências<br />
teatrais e pesquisa de campo. Peças de um quebra-cabeça que permit<strong>em</strong> dividir <strong>em</strong> dois<br />
momentos a criação literária da escritora, que apresenta um divisor de águas preciso: Lessico<br />
famigliare. No primeiro, a busca da autobiografia (não casual) e no segundo, o<br />
distanciamento desse estilo (casual).<br />
Nesse primeiro momento - que vai de Un’assenza a Lessico famigliare, <strong>em</strong> que a<br />
autora busca o aprimoramento do estilo autobiográfico -, se encontra È stato così, publicado<br />
num período de grandes transformações mundiais e que t<strong>em</strong> como reflexo, na literatura, na<br />
maneira de representar a sociedade através de um realismo cujas raízes se firmam na angústia<br />
existencial do nosso t<strong>em</strong>po.<br />
Dentro dessa concepção de arte, o interesse <strong>em</strong> apresentar e traduzir o romance È stato<br />
così nasceu pela surpreendente capacidade da escritora de desenvolver a estória de uma<br />
mulher que analisa, passo a passo, momento a momento, os anseios e frustrações de uma vida<br />
solitária e infeliz. Uma maneira seca e minuciosa de entender as reações humanas, que<br />
termina sendo resolvida inteiramente na verbalização das motivações psicológicas.<br />
A pesquisa lexical para a realização do ato tradutório, por conseguinte, teve de atentar a<br />
essa elaboração para que não se perdesse essa busca constante na caracterização do narrador e<br />
da densidade das personagens do romance.<br />
4) Amostra do corpus<br />
Abaixo, selecionamos uma parte (que representa um percentual bastante significativo de<br />
ocorrência) do corpus trabalhado.<br />
1. Colocação dos adjetivos (adotou-se a estrutura S+A na língua portuguesa ao invés<br />
de A+S, comum, na língua italiana)<br />
“Poi mi son messa a letto e avevo un sonno tr<strong>em</strong>endo e m’addormentavo um<br />
minuto ma mi svegliavo con quell’orrendo dolore.”<br />
“Depois me deitava e tinha um sono tr<strong>em</strong>endo e adormecia um minuto, mas acordava<br />
com aquela dor horrível.”<br />
“Era una tetra pensione con delle tappezzerie oscure, (...).”<br />
“Era uma pensão tétrica com tapeçarias escuras, (...).”<br />
2. Termos mais apropriados<br />
2.1. cioccolatini = bombons <strong>em</strong> vez de chocolatezinhos.<br />
294
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
“Eppure mi portava dei libri e dei cioccolatini e pareva molto molto contento di stare<br />
con me.”<br />
“Contudo me trazia libros e bombons e parecia muito muito contente de estar comigo.”<br />
2.2. armadio = guarda-roupa <strong>em</strong> vez de armário.<br />
“(...)perché credeva che la vecchia sarebbe sbucata fuori a un tratto dall’armadio e<br />
l’avrebbe accecata”.<br />
“(...)porque acreditava que a velha, de repente, sairia do guarda-roupa e a cegaria.”<br />
2.3. salutava = acenava <strong>em</strong> vez de saudava.<br />
“(...)e lui che si sporgeva dal finestrino e salutava col fazzoletto.”<br />
“(...)e ele que se debruçava na janela e acenava com o lenço.”<br />
2.4. trovarti = visitá-la <strong>em</strong> vez de encontrá-la.<br />
“-(...).Tornerò qualche volta a trovarti, se non ti dispiace.”<br />
“-(...).Voltarei algumas vezes para visitá-la, se não lhe desagrada.”<br />
2.5. riaprivano le scuole = recomeçavam as aulas <strong>em</strong> vez de reabriam as escolas.<br />
“(...)perché pensavo che dovesse immaginarlo che io ero tornata, dato che riaprivano le<br />
scuole.”<br />
“(...)porque pensava que devia imaginar que eu chegara, pois recomeçavam as<br />
aulas.”<br />
3. Diferença de freqüência de uso das palavras nas duas línguas<br />
3.1. matrimonio = casamento <strong>em</strong> vez de matrimônio<br />
“E allora in quel momento ho pensato che il nostro matrimonio era un disastro.”<br />
“E então, naquele momento, pensei que o nosso casamento era um desastre.”<br />
3.2. funerale = enterro <strong>em</strong> vez de funeral<br />
“Al funerale non ci sono andata perché la vecchia aveva lasciato scritto che al<br />
funerale non voleva nessuno,(...).”<br />
“Não fui ao enterro porque a velha deixara escrito que não queria ninguém no enterro,<br />
(...).”<br />
4. Falsos amigos<br />
4.1. fede = aliança (de casamento) e não fé. A confusão pode surgir do fato que <strong>em</strong><br />
algumas regiões da Itália é mais usual o termo para aliança.<br />
“Mi son tolta la fede e l’ho messa in tasca.”<br />
“Tirei minha aliança e a coloquei no bolso.”<br />
5. Emprego do imperfeito do inidicativo (<strong>em</strong> italiano) x <strong>em</strong>prego do pretérito<br />
perfeito do indicativo (<strong>em</strong> português)<br />
“Ma dopo che ci siamo sposati non disegnava più la mia faccia. Disegnava degli<br />
animali e dei treni.”<br />
295
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
“Mas depois que nos casamos não desenhou mais o meu rosto. Desenhava animais e<br />
trens.”<br />
6. Emprego do futuro do pretérito composto do indicativo (<strong>em</strong> italiano) x <strong>em</strong>prego<br />
do futuro do pretérito simples do indicativo (<strong>em</strong> português)<br />
“Avr<strong>em</strong>mo avuto tanti bambini e Alberto sarebbe venuto a trovarci e avrebbe<br />
portato un grosso panettone a Natale e sarebbe stato contento(...).”<br />
“Teríamos muitos filhos e Alberto viria nos visitar e traria um grande panetone no<br />
Natal e ficaria contente(...).”<br />
7. Emprego do imperfeito do indicativo (<strong>em</strong> italiano) x <strong>em</strong>prego do pretérito<br />
imperfeito do subjuntivo (<strong>em</strong> português)<br />
“Sul principio non parlavamo della bambina, ma poi abbiamo cominciato a parlarne e<br />
lui m’ha detto che forse mi faceva bene parlarne molto a lungo com lui.”<br />
“No começo não falávamos sobre a menina, mas depois começamos a falar e ele me<br />
disse que talvez me fizesse b<strong>em</strong> falar sobre ela com ele.”<br />
8. Hábitos diferentes nos dois países<br />
“M’ha sbucciato un’arancia, ma non avevo voglia de mangiarla(...).”<br />
“Descascou-me uma laranja, ma não tinha vontade de comê-la(...).”<br />
Observação: Em vez de comer, <strong>em</strong> português, seria mais comum chupar. Só que na<br />
Itália a laranja se come <strong>em</strong> gomos e não se chupa, como no Brasil.<br />
9. Lugares específicos de Turim (<strong>em</strong>bora no romance não seja especificado que a<br />
ação se desenrole nesta cidade)<br />
“Andavamo a camminare lontano lungo il fiume o nelle vie di barriera,(...).”<br />
“Íamos caminhar longe ao longo do rio ou nas ruas da barreira alfandegária, (...)”<br />
Observação: Turim é uma das poucas cidades da Itália que ainda guarda vestígios<br />
urbanos do local <strong>em</strong> que era cobrado esse imposto sobre os produtos, que corresponde ao<br />
atual ICM, imposto sobre circulação de mercadoria.<br />
“(...)aspettava tutto l’anno la sera della Consolata per appendere al balcone quei<br />
lampioncini(...).”<br />
“(...)esperava o ano inteiro a noite de Nossa Senhora da Conceição para pendurar<br />
aqueles lampeõzinhos(...)”<br />
Observação: Nossa Senhora da Conceição é padroeira da cidade de Turim.<br />
5) Conclusão<br />
A importância do t<strong>em</strong>a pesquisado dá-se por existir uma parte considerável de<br />
pesquisadores <strong>em</strong> línguas estrangeiras os quais têm se dedicado a esse tipo de estudo. É<br />
necessário, por isso, estar consciente de que a escolha de uma obra literária para desenvolver<br />
uma pesquisa e, posteriormente, sua tradução, <strong>em</strong> cursos de pós-<strong>graduação</strong>, requer do<br />
investigador uma série de procedimentos para que seu trabalho possa ter o resultado que se<br />
296
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
espera na língua de chegada (basta pensarmos na importância do léxico, dos postulados<br />
teóricos da tradução, das tramas do texto literário, etc.).<br />
Não se trata de um trabalho que, a priori, tenha um objetivo comercial. Por isso, a<br />
seleção do texto deve, de ant<strong>em</strong>ão, propiciar a satisfação que os teóricos de Metodologia de<br />
Pesquisa insist<strong>em</strong> <strong>em</strong> defender para se defender qualquer tipo de trabalho científico. Dessa<br />
maneira, quanto mais prazerosa a leitura e quanto maior a identificação entre narrativatradutor,<br />
melhor será o des<strong>em</strong>penho <strong>em</strong> tentar descortinar o universo linguístico e<br />
extralinguístico presentes no texto.<br />
Apesar de ser um trabalho que requer um estudo pormenorizado das <strong>teoria</strong>s acima<br />
descritas, a ponte percorrida entre LP e LC pode possibilitar que um número de leitores<br />
interessados na Literatura Italiana e que não conhec<strong>em</strong> o idioma de tal forma a entendê-lo <strong>em</strong><br />
textos mais complexos, possa ter acesso a uma obra densa de significados para a cultura da<br />
Itália.<br />
O processo, assim desenvolvido, longe de possuir baixo teor científico, é um estudo que<br />
proporciona criteriosas descobertas acerca de áreas de pesquisas promissoras as quais pod<strong>em</strong><br />
possibilitar a difusão de obras para que comunidades tenham acesso, cada vez mais, a boas<br />
leituras.<br />
Referências<br />
AUBERT, Francis. As (in)fidelidades da tradução: servidões e autonomia do tradutor. 2. Ed.<br />
Campinas (SP): Editora da Unicamp.<br />
BUARQUE DE HOLANDA, A.F. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova<br />
Fronteira, 2001.<br />
CARVALHO, Nelly de. Publicidade: A linguag<strong>em</strong> da sedução. 3 ed. São Paulo: Ática, 2001.<br />
CLEMENTELLI, E. Invito alla lettura di Natalia Ginzburg. Milano: Mursia, 1972-1986.<br />
CROCENZI, L. Narratrici d’oggi. Cr<strong>em</strong>ona: Mangiarotti, 1966.<br />
DE NICOLA, F., ZANNONI, P.A. Scrittrici d’Italia, Genova: Costa & Nolan, 1995.<br />
DURANTI, Alessandro. Antropologia Lingüística. Tradução de Pedro Tena. Madrid: Cambridge<br />
University Press, 2000.<br />
FERNANDES, F. Dicionário de regimes de substantivos e adjetivos. Porto Alegre: Globo, 1980.<br />
______. Dicionário de verbos e regimes. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Globo, 1983.<br />
GARBOLI, C. “Introduzione”. In: Cinque romanzi brevi e altri racconti. Torino, Einaudi, 1964.<br />
p. IV-XII.<br />
GINZBURG, N. Cinque romanzi brevi e altri racconti. Torino: Einaudi, 1964.<br />
297
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
MARABINI, Claudio Marabini. Gli ultimi cinquant'anni di narrativa f<strong>em</strong>minile in Italia. In:<br />
NICOLA, Francesco de; ZANONI, Pier Antonio Zanoni. Scrittrici d'Italia. Atti del Convegno<br />
nazionale di Studi (Rapallo, 14 maggio 1994). Genova: Costa & Nolan, 1995.<br />
MATORÉ,George. La Méthode en Léxicologie. Paris: Didier, 1953.<br />
PAES, José Paulo. Tradução a ponte necessária: aspectos e probl<strong>em</strong>as da arte de traduzir.<br />
RÓNAI, P. A tradução vivida. Rio de Janeiro: Educom, 1976.<br />
VILELA, Mario. Estruturas léxicas do português. Coimbra: Livraria Almedina, 1979.<br />
______. Léxico e gramática. Coimbra: Almedina, 1995.<br />
ZINGARELLI, N. Il Nuovo Zingarelli, Vocabolario della lingua italiana. 11 ed., Bologna:<br />
Zanichelli, 1984.<br />
298
O discurso midiático acerca dos relacionamentos amorosos juvenis<br />
Ana Paula Ferreira (UERJ)<br />
Resumo: Reconhecendo a pluralidade das representações acerca dos relacionamentos amorosos cont<strong>em</strong>porâneos,<br />
tenho como objetivo, no presente estudo, verificar o conceito de amor existente nas produções impressas,<br />
averiguando se há uma forma de relacionar-se privilegiada atualmente pelos instrumentos midiáticos voltados<br />
para a juventude. Para tanto, contei com um diálogo entre duas <strong>teoria</strong>s de linguag<strong>em</strong>, Linguística Cognitiva, <strong>em</strong><br />
especial a Teoria da Metáfora Conceptual, e Análise de Discurso de linha francesa. O corpus foi constituído por<br />
artigos da Revista Capricho que trataram sobre relacionamentos amorosos, analisados conforme as <strong>teoria</strong>s<br />
citadas. Nas edições consideradas, as metáforas conceptuais indicavam, <strong>em</strong> sua maioria, uma representação do<br />
outro com o qual a leitora se relaciona afetivamente como objeto, alimento, forma de investimento, ou como<br />
adversário. A visão de uma sociedade pautada pelas relações de mercado, utilitarista e individualista parece ser<br />
corroborada. Os relacionamentos mostram-se fluidos, imediatistas, com validade até o momento <strong>em</strong> que houver<br />
conveniência.<br />
Palavras-chave: linguística cognitiva; metáfora conceptual; <strong>análise</strong> do discurso; relacionamentos amorosos.<br />
1) Introdução<br />
Falar sobre amor costuma ser uma atividade instigante. Há várias considerações que<br />
pod<strong>em</strong> ser feitas sobre esse assunto. Segundo o dicionário Aurélio (1999), pod<strong>em</strong> ser<br />
atribuídas a essa palavra ao menos treze significações, entre as quais, “sentimento que<br />
predispõe alguém a desejar o b<strong>em</strong> de outr<strong>em</strong>, ou de alguma coisa”, “sentimento de dedicação<br />
absoluta de um ser a outro ser ou a uma coisa; devoção extr<strong>em</strong>a”, como também “sentimento<br />
ardente de uma pessoa por outra, e que engloba também atração física” e sentimento<br />
“passageiro e s<strong>em</strong> consequência”. Observa-se, assim, que, longe de uma definição única,<br />
estática, exist<strong>em</strong> inúmeras possibilidades de se representar o amor, o que nos permite a<br />
constatação de que refletir sobre o amor, enquanto uma construção histórico-social, é também<br />
refletir sobre a condição humana <strong>em</strong> determinada época e cultura, o que possibilita ainda uma<br />
melhor compreensão acerca das próprias relações sociais como um todo.<br />
Se há, então, essa pluralidade, existiria uma forma predominante nos dias atuais, que<br />
fosse mais valorizada ou possibilitada pela sociedade moderna? Seria a mídia, de alguma<br />
forma, instrumento participante nesse processo?<br />
As relações amorosas são intensamente abordadas pela mídia. Reconhecendo as<br />
representações sociais acerca dos relacionamentos, ela busca oferecer aquilo que acredita ser<br />
de interesse do público a que se destina. Consequent<strong>em</strong>ente, acaba também por influenciar<br />
este, ratificando as regras de conduta social.<br />
Sendo o estudo dos relacionamentos amorosos cont<strong>em</strong>porâneos objeto de meu<br />
interesse, pude verificar que há poucos pesquisadores no Brasil que se preocupam <strong>em</strong> analisar<br />
as representações da mídia sobre os padrões de conduta amorosa. O t<strong>em</strong>a parece estar mais<br />
restrito a alguns psicólogos e sociólogos. Tratando-se de juventude, esse número se torna<br />
ainda mais escasso, uma lacuna lastimável, visto que esse público merece especial atenção<br />
devido ao período <strong>em</strong> que se encontra de construção e desenvolvimento, necessidade de<br />
experimentações, integração e aceitação. Paralelamente a isto, os espaços tradicionais de<br />
referência para o adolescente e o jov<strong>em</strong>, como a família e a escola, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre têm<br />
conseguido prover as necessidades de informação geradas por uma realidade <strong>em</strong> acelerado<br />
processo de mudança.<br />
Minha intenção, através da observação das representações da mídia impressa acerca<br />
das relações amorosas cont<strong>em</strong>porâneas, seria a de verificar o conceito de amor existente<br />
299
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
nessas produções, e averiguar se há uma forma de relacionar-se privilegiada atualmente pelos<br />
instrumentos midiáticos voltados para a juventude. Para tanto, contarei com um diálogo entre<br />
duas <strong>teoria</strong>s da área da linguag<strong>em</strong>, Linguística Cognitiva, <strong>em</strong> especial a Teoria da Metáfora<br />
Conceptual, e Análise de Discurso de linha francesa.<br />
O presente trabalho constou de três etapas. Na primeira, durante os meses de<br />
nov<strong>em</strong>bro de 2008 a fevereiro de 2009, coletei artigos da Revista Capricho que trataram<br />
sobre relacionamentos amorosos. Na segunda etapa, tomando como base as metáforas<br />
conceptuais estruturais, estabelecidas por Lakoff e Johnson, os artigos foram analisados,<br />
possibilitando um estudo da formação discursiva e a identificação de representações acerca<br />
dos relacionamentos amorosos cont<strong>em</strong>porâneos. Por fim, destacando as representações<br />
preponderantes, propus o reconhecimento de possíveis ideologias subjacentes, valendo-me da<br />
Análise de Discurso de linha francesa para a atribuição de sentido aos múltiplos discursos <strong>em</strong><br />
que os jovens se encontram inseridos.<br />
Pretendo que as considerações feitas a partir desse estudo possam ser de valia não<br />
somente para aqueles que se interessam pelo estudo da linguag<strong>em</strong>, ou dos relacionamentos<br />
amorosos, mas por todos aqueles que conviv<strong>em</strong> e trabalham com a faixa etária <strong>em</strong> questão,<br />
<strong>em</strong> uma possibilidade de reflexão sobre os comportamentos dos jovens <strong>em</strong> nossos dias.<br />
2) A <strong>análise</strong> do discurso a partir das metáforas conceptuais<br />
Quando pensamos <strong>em</strong> metáforas, normalmente nos l<strong>em</strong>bramos da figura de linguag<strong>em</strong><br />
<strong>em</strong> que comparamos uma coisa com outra. Essa concepção nos leva a defender que a<br />
metáfora é um fenômeno usado com finalidades artísticas e baseado na s<strong>em</strong>elhança entre duas<br />
entidades que são comparadas. Sendo apenas um el<strong>em</strong>ento acessório, usado para “enfeitar” o<br />
discurso, a metáfora não seria essencial <strong>em</strong> nossa comunicação.<br />
A partir de 1980, com a publicação de Metáforas da vida cotidiana, de George Lakoff<br />
e Mark Johnson, surge uma nova visão de metáfora: a metáfora conceptual. De acordo com<br />
ela, a metáfora é uma figura do pensamento. Se antes ela era considerada um produto dos<br />
profissionais da linguag<strong>em</strong> e da literatura, agora passa a ser um el<strong>em</strong>ento usado com o<br />
objetivo de auxiliar na compreensão de determinados conceitos, sendo <strong>em</strong>pregada comumente<br />
no dia a dia por todas as pessoas. A metáfora passa a não mais ser considerada como um<br />
ornamento, mas como um processo importante do pensamento humano.<br />
Uma metáfora conceptual é uma maneira convencional de conceitualizar um domínio<br />
de experiências <strong>em</strong> termos de outro, normalmente de modo inconsciente; ou seja, a metáfora é<br />
chamada de conceptual porque fornece o conceito de algo. Em uma metáfora conceptual,<br />
encontramos dois tipos de domínios, o domínio-fonte e o domínio-alvo. Domínio é a área do<br />
conhecimento ou experiência humana. O domínio-fonte é aquele que a partir do qual alguma<br />
coisa é conceitualizada metaforicamente; geralmente é algo concreto, que faz parte de nossa<br />
experiência. O domínio-alvo é o abstrato, é aquele ao qual desejamos conceitualizar.<br />
Segundo Kövecses (2002: 16-24), <strong>em</strong> pesquisa realizada com a utilização do Cobuild<br />
Metaphor Dictionary, domínios-fonte comumente utilizados são aqueles que pod<strong>em</strong>os<br />
delinear mais facilmente e sobre o qual acreditamos ter um bom conhecimento, tais como:<br />
corpo humano; saúde e doença; animais; plantas; prédios e construções; máquinas e<br />
ferramentas; jogos e esportes; dinheiro e negócios; comida; calor e frio; luz e escuridão;<br />
forças (tais como gravitacional, elétrica, magnética e mecânica); movimento e direção. Os<br />
domínios-alvo não possu<strong>em</strong> uma definição precisa, requisitando, portanto, uma<br />
300
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
conceitualização metafórica. Se pegarmos o ex<strong>em</strong>plo o amor é uma viag<strong>em</strong> (as metáforas<br />
conceptuais são s<strong>em</strong>pre grafadas <strong>em</strong> versalete), o conceito de amor é fornecido a partir do<br />
conceito de viag<strong>em</strong>. O amor é o domínio-alvo, aquele a que quer<strong>em</strong>os atribuir um conceito e<br />
viag<strong>em</strong> é o domínio-fonte, a partir do qual o amor é conceitualizado.<br />
Quando afirmamos que um conceito é compreendido a partir de outro, consideramos<br />
que há uma série de correspondências entre a fonte e o alvo, e assim, el<strong>em</strong>entos conceptuais<br />
do alvo correspond<strong>em</strong> a el<strong>em</strong>entos conceptuais da fonte. Essas correspondências conceptuais<br />
sist<strong>em</strong>áticas são chamadas de mapeamento. Para o ex<strong>em</strong>plo dado anteriormente, Sardinha<br />
(2007, p. 31) fornece os seguintes mapeamentos, entre outros:<br />
• Viajantes: marido e mulher;<br />
• Mapa da viag<strong>em</strong>: planos futuros da vida a dois;<br />
• Destino da viag<strong>em</strong>: relação feliz a dois;<br />
• Deslocamento tranquilo na viag<strong>em</strong>: relação s<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as.<br />
Sardinha (2007) ainda sinaliza que se uma viag<strong>em</strong> longa é monótona ou cansativa, um<br />
casal que vive há muito t<strong>em</strong>po junto pode se cansar do relacionamento ou achá-lo monótono.<br />
Esses seriam desdobramentos, ou seja, as inferências que pod<strong>em</strong>os fazer a partir de uma<br />
metáfora conceptual.<br />
Compreender, então, uma metáfora significa efetuar o mapeamento entre a fonte e o<br />
alvo. Ao utilizarmos uma expressão linguística metafórica, nós respeitamos o mapeamento<br />
convencionado pela comunidade linguística; não é qualquer el<strong>em</strong>ento do alvo que pode ser<br />
mapeado com determinado el<strong>em</strong>ento da fonte. Gostaria de ressaltar aqui a diferença entre<br />
expressões linguísticas e metáforas conceptuais. As expressões linguísticas são as<br />
manifestações (modo de falar) das metáforas conceptuais (modos de pensar). É através do uso<br />
das expressões linguísticas que a existência das metáforas conceptuais é revelada.<br />
Lakoff (1987) divide <strong>em</strong> três tipos as metáforas conceptuais, de acordo com a função<br />
cognitiva que elas exerc<strong>em</strong>, ou seja, com sua função na compreensão do mundo:<br />
• Metáforas estruturais: a função cognitiva dessa metáfora é possibilitar ao<br />
falante compreender o alvo a partir da estrutura do domínio-fonte. Isso se dá<br />
através de mapeamentos conceituais entre el<strong>em</strong>entos da fonte e do alvo. É o caso<br />
de o amor é uma viag<strong>em</strong>, cuja proposta de mapeamento foi d<strong>em</strong>onstrada<br />
anteriormente;<br />
• Metáforas ontológicas: sua função cognitiva é dar um status ontológico para<br />
categorias gerais de conceitos abstratos do alvo. As experiências são concebidas<br />
<strong>em</strong> termos de objetos, substâncias, contêineres, s<strong>em</strong> maiores especificações.<br />
Desse modo, concretizam algo abstrato, mas s<strong>em</strong> estabelecer os mapeamentos.<br />
Com isso, as categorias para a compreensão do alvo não são muito<br />
aprofundadas, como ocorre com as metáforas estruturais. Contudo, isso não<br />
diminui sua importância, ao contrário, elas são essenciais, principalmente na<br />
categorização de experiências mais vagas e abstratas. A metáfora t<strong>em</strong>po é uma<br />
entidade é um ex<strong>em</strong>plo; ela permite o uso das expressões linguísticas “a maior<br />
parte do t<strong>em</strong>po”, “pouco t<strong>em</strong>po”, “desperdiçar o t<strong>em</strong>po”, “correr contra o<br />
t<strong>em</strong>po”, etc. A personificação pode ser considerada uma espécie de metáfora<br />
ontológica; nela, qualidades humanas são atribuídas a entidades não-humanas. É<br />
o caso de uma <strong>teoria</strong> é uma pessoa, o que pode ser verificado <strong>em</strong> “a <strong>teoria</strong> diz<br />
que”, “segundo tal <strong>teoria</strong>”;<br />
301
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
• Metáforas orientacionais: sua função cognitiva é possibilitar um conjunto de<br />
conceitos do domínio-alvo coerentes com o sist<strong>em</strong>a conceptual. Recebe o nome<br />
de orientacional por estar<strong>em</strong> relacionadas com orientações espaciais básicas dos<br />
seres humanos, como para cima - para baixo, centro - periferia, entre outras. Por<br />
ex<strong>em</strong>plo, passado é para trás, futuro é para frente, como se uma linha do t<strong>em</strong>po<br />
fosse existente. O passado estaria voltado para trás; o indivíduo, observador do<br />
t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> movimento, encontrar-se-ia parado no presente; e o futuro, à sua<br />
frente. A base física para essa metáfora encontra-se no fato de os olhos,<br />
geralmente, ir<strong>em</strong> na direção para a qual a pessoa se move (para frente).<br />
No presente trabalho, a <strong>análise</strong> será dedicada somente às metáforas estruturais, que<br />
diz<strong>em</strong> respeito à estruturação do sist<strong>em</strong>a conceptual. Sendo o objetivo a identificação das<br />
metáforas preponderantes na representação dos relacionamentos amorosos, a prioridade é<br />
dada às metáforas mais específicas, e com possibilidade de efetuação das projeções entre os<br />
el<strong>em</strong>entos dos domínios fonte e alvo, o que permitiria a compreensão do modo como o amor é<br />
conceitualizado cont<strong>em</strong>poraneamente pela juventude.<br />
As metáforas conceptuais são culturais, resultantes de mapeamentos que são<br />
relevantes para uma determinada cultura. Elas reflet<strong>em</strong> a ideologia e o modo de ver o mundo<br />
de certo grupo de pessoas. Elas são coletivas, no sentido de que para ser<strong>em</strong> verdadeiras,<br />
precisam ser compartilhadas <strong>em</strong> sociedade. Como ressalta Sardinha (2007, p. 30), “viv<strong>em</strong>os<br />
de acordo com as metáforas que exist<strong>em</strong> na nossa cultura [...]: se quisermos fazer parte da<br />
sociedade, interagir, ser entendidos, entender o mundo etc., precisamos obedecer [...] às<br />
metáforas que nossa cultura coloca à disposição”. Pode-se, portanto, perceber que o estudo<br />
das metáforas é fonte riquíssima para uma melhor compreensão do grupo social a que ela<br />
pertence e do modo que as relações entre esses grupos se configuram. Portanto, pod<strong>em</strong> ser<br />
<strong>em</strong>pregadas como meio de entender como as pessoas viv<strong>em</strong> e interag<strong>em</strong> no meio social, <strong>em</strong><br />
interface com diferentes áreas, como a <strong>análise</strong> do discurso, entre outras.<br />
De acordo com a <strong>análise</strong> do discurso, é necessário que a linguag<strong>em</strong> seja considerada<br />
além de seu aspecto formal, e vinculada a formações sociais, históricas e ideológicas. Como<br />
sinalizado por Orlandi (1999), mais do que um instrumento de comunicação, a linguag<strong>em</strong> se<br />
encontra imbricada nos processos histórico-sociais; logo, antes de tudo, deve ser considerada<br />
um ato social, não podendo ser estudada alheia à sociedade que a produz.<br />
Segundo Pêcheux (1997), quando alguém fala algo, fala de algum lugar da sociedade<br />
para outro alguém que também se encontra <strong>em</strong> algum lugar, e, assim, constitui-se o sentido.<br />
Se “a língua está a serviço da sociedade como um todo” (1997: 92), o sentido só se constrói a<br />
partir das posições ideológicas existentes no processo sócio-histórico de produção das<br />
palavras. Em certas situações de produção, há um sentido que se sobressai e torna-se o<br />
dominante. É atribuído a esse sentido dominante certo prestígio de legitimidade, e este é<br />
fixado, muitas vezes, como o sentido oficial.<br />
O sujeito que aparent<strong>em</strong>ente produz o discurso, na verdade, ao mesmo t<strong>em</strong>po o<br />
reproduz e é reproduzido nele. Trata-se de um ser pertencente a uma sociedade, o qual,<br />
consequent<strong>em</strong>ente, reflete o desejo de uma coletividade. Há uma submissão do sujeito ao<br />
discurso; são várias as vozes necessárias para que o discurso se construa e suas palavras só<br />
significam pela história e pelo contexto <strong>em</strong> que se encontra inserido. Ao escolher quais<br />
palavras utilizará <strong>em</strong> um texto, por ex<strong>em</strong>plo, o sujeito se vale de uma série de outros discursos<br />
com os quais já teve contato; há um entrelaçamento de vozes nesta constituição, e esta escolha<br />
não se dá de modo arbitrário, mas é repleta de conteúdo ideológico.<br />
302
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Por estarmos constant<strong>em</strong>ente nos valendo de inúmeras vozes no discurso, Bakhtin<br />
(2004) destaca o caráter dialógico e polifônico da linguag<strong>em</strong>; “nenhuma enunciação<br />
verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a qu<strong>em</strong> a enunciou: é produto da interação<br />
entre falantes e <strong>em</strong> termos mais amplos, produto de toda uma situação social <strong>em</strong> que ela<br />
surgiu” (2004, p. 79). Ressalta que qualquer enunciado pressupõe uma atitude responsiva do<br />
interlocutor. Não há, portanto, um destinatário no sentido passivo do termo; s<strong>em</strong>pre há uma<br />
resposta por parte do outro a qu<strong>em</strong> o discurso se destina, a qual pode ser de concordância,<br />
adesão, objeção, entre outras (Clark, 1998).<br />
Se o sentido depende da interação entre os falantes e do contexto <strong>em</strong> que o enunciado<br />
é produzido, um leitor crítico é aquele que não se limita ao significado do signo. Ele busca<br />
uma compreensão ativa, estabelece relações e utiliza seus conhecimentos prévios no<br />
reconhecimento dos valores e crenças presentes <strong>em</strong> sua sociedade. Isso possibilitará<br />
identificar, inclusive, os recursos utilizados pelos instrumentos midiáticos.<br />
3) Análise do corpus<br />
Com o intuito de verificar a possível existência de uma representação preponderante<br />
acerca dos relacionamentos amorosos, quando os jovens são os co-enunciadores, coletei<br />
artigos da coluna “conversa de banheiro” <strong>em</strong> oito edições da Revista Capricho, durante os<br />
meses de nov<strong>em</strong>bro de 2008 a fevereiro de 2009. Trata-se de uma revista de grande circulação<br />
entre o público jov<strong>em</strong> do sexo f<strong>em</strong>inino, líder de venda <strong>em</strong> seu ramo, atualmente com tirag<strong>em</strong><br />
quinzenal de 250 mil ex<strong>em</strong>plares. Todos os artigos abordavam questões acerca dos<br />
relacionamentos amorosos juvenis. Foram identificados treze grupos de metáforas<br />
conceptuais, as quais serão apresentadas, com alguns ex<strong>em</strong>plos de expressões linguísticas. O<br />
processo de identificação das metáforas e categorização dos mapeamentos foi feito<br />
manualmente, através da leitura de cada artigo.<br />
A - amor é jogo / competição esportiva<br />
A.1 Apenas compreenda que no jogo do amor a tal da química é peça fundamental.<br />
A.2 No jogo do amor você deve aspirar s<strong>em</strong>pre pelo posto de titular. Ficar no banco de<br />
reserva é furada.<br />
A.3 Goooool!!! Tá na maior disputa com o gato? Decida isso, já!<br />
A partir da observação das metáforas conceptuais presentes nos artigos selecionados,<br />
verifiquei primeiramente a equivalência dos relacionamentos amorosos a uma competição<br />
esportiva. As pessoas que se relacionam afetivamente apresentam-se, desse modo, como<br />
competidores ou rivais. A posição entre os namorados parece ser de conflito, e,<br />
consequent<strong>em</strong>ente, alguém precisará ser derrotado. Exist<strong>em</strong> também os jogos coletivos, <strong>em</strong><br />
que os participantes formam uma equipe, colaborando uns com os outros, visando a um<br />
objetivo <strong>em</strong> comum. Eles pod<strong>em</strong> estar no mesmo time, buscando uma diversão <strong>em</strong> conjunto.<br />
O prêmio pode ser conquistar a afeição do namorado, dominá-lo, enganá-lo, dependendo de<br />
qual for a proposta do jogo e se algumas regras, como, por ex<strong>em</strong>plo, respeito, sinceridade,<br />
entre outras, serão estabelecidas. Outros jogadores poderão participar também do jogo,<br />
brigando pela posição de namorada e deixando a perdedora no banco de reserva, ou seja, s<strong>em</strong><br />
participar do jogo do amor.<br />
303
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
B - amor é guerra<br />
B.1 [...] é possível que possam ser rivais batalhando pelo mesmo objetivo.<br />
B.2 D<strong>em</strong>os todas as estratégias para conquistar o coração dele.<br />
Quando o amor é visto como uma guerra, os adversários poderão ser o namorado e a<br />
namorada, ou a namorada e uma rival, ambas querendo o amor do mesmo garoto. O objetivo<br />
é conquistar ou derrotar o outro. Não se pode confiar no inimigo, e as táticas de guerra<br />
poderão ser as mais variadas possíveis, visando à vitória.<br />
C - amor é viag<strong>em</strong><br />
C.1 [...] porque seu amor vai assim, aos trancos e barrancos.<br />
C.2 [...] porque o amor chegou ao fim [...].<br />
Se o relacionamento amoroso é uma viag<strong>em</strong>, pod<strong>em</strong>os considerar que ele teve um<br />
início, terá um término... O trajeto poderá ser longo ou curto, monótono, conturbado etc.. Não<br />
foi encontrada menção a cooperação entre os viajantes ou a aspectos positivos da viag<strong>em</strong>.<br />
D - amor é diversão<br />
D.1 Descomplique o amor! Torne o romance mais fácil. Como? Curtindo, s<strong>em</strong>pre!<br />
D.2 O cara não t<strong>em</strong> obrigação de ligar, seu coração não deve sofrer. Aproveite e não leve<br />
tudo tão a sério [...].<br />
Na representação do amor como uma diversão, já há a possibilidade de os namorados<br />
saír<strong>em</strong> da posição de conflito para uma situação que pode, inclusive, ser mais cooperativa. O<br />
relacionamento é pautado pela necessidade de aproveitar o momento e pela falta de<br />
compromisso. Se esse imperativo não é observado, a recomendação é que a brincadeira seja<br />
prontamente encerrada.<br />
E - amor é negócio<br />
E.1 Vale investir quando a gente sente que é um amor maior.<br />
E.2 É hora de perguntar se esse garoto merece todo esse investimento. Se a resposta for sim,<br />
capriche, mas cobre uma resposta à altura.<br />
No reconhecimento do amor como um negócio, há geralmente um maior cuidado com<br />
o outro e com o relacionamento. Várias orientações de investimento são dadas a namorada, as<br />
quais pod<strong>em</strong> ser atenção, carinho, respeito, um bom papo, ou também trapaças, e até mesmo<br />
uma produção mais caprichada, como roupas, maquiagens... Tudo para que o retorno seja<br />
alcançado, ou seja, para a obtenção de alguma forma de lucro.<br />
F - amor é objeto<br />
F.1 Valorize-se e ame-se antes de oferecer o seu coração a um garoto.<br />
F.2 Jogue esse sentimento fora, até que pinte um garoto divertido e fofo, que mereça ganhar<br />
o seu amor.<br />
A concepção do amor como um objeto pode não ser muito diferente da ideia de um<br />
negócio, visto que ele passa a ser considerado também como material a ser usado com alguma<br />
finalidade específica, para a obtenção de alguma satisfação. E, após o serviço cumprido, o<br />
304
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
objeto pode ser descartado, reciclado ou simplesmente deixado de lado até o momento <strong>em</strong> que<br />
for útil novamente. O objeto-amor também pode ser considerado um presente ou prêmio, o<br />
qual deve ser ofertado ao garoto que for merecedor, por possuir características valorizadas <strong>em</strong><br />
um relacionamento, como o bom humor, por ex<strong>em</strong>plo.<br />
G – amor é doença<br />
G.1 Ele pode estar morrendo de amor.<br />
G.2 Só o t<strong>em</strong>po e um novo amor tudo-de-bom pod<strong>em</strong> curar esse amor.<br />
Se o amor é uma doença, a cura seria o seu término; os sintomas pod<strong>em</strong> ser variados<br />
como sofrimento, falta de concentração nas atividades cotidianas que não estejam<br />
relacionadas com o outro, alta <strong>em</strong>otividade, etc.. Segundo as metáforas verificadas, os<br />
r<strong>em</strong>édios mais eficientes seriam o aumento da autoestima e um novo amor que não<br />
provocasse tais sintomas.<br />
H - amor é caça<br />
H.1 O amor s<strong>em</strong>pre foi algo caçado pelas pessoas.<br />
H.2 Aí, vale qu<strong>em</strong> conseguir fisgar primeiro o coração do garoto.<br />
Na representação do amor como uma caça, mais uma vez t<strong>em</strong>os uma situação de<br />
conflito, alguém que deve ser abatido para a satisfação dos desejos e necessidades do outro.<br />
I - amor é alimento<br />
I.1 Essas situações amargas são suficientes para fazer um amor desandar.<br />
I.2 Cuidado para não esperar d<strong>em</strong>ais. Afinal, vamos combinar que, a essa altura do<br />
campeonato, ninguém merece ser cozinhado <strong>em</strong> banho-maria.<br />
Em relação à representação do amor como alimento, poderíamos considerar que não<br />
conseguimos viver s<strong>em</strong> alimentação e que o amor seria, assim, o responsável pela obtenção de<br />
energias <strong>em</strong> nossas vidas. Entretanto, não pod<strong>em</strong>os esquecer que, para nós, seres humanos, os<br />
alimentos não são somente recursos de sobrevivência; são consumidos como fonte de prazer,<br />
para nossa satisfação. De qualquer forma, os alimentos estão a nosso serviço, e também<br />
serv<strong>em</strong> para a satisfação das nossas necessidades ou desejos. Caso situações amargas façam o<br />
doce amor desandar, a orientação é a busca por um novo prato.<br />
J - amor é eleição<br />
J.1 Que tipo de namorada você vai ser quando for eleita ganhadora do amor dele? Se está <strong>em</strong><br />
fase de campanha, [...].<br />
J.2 Inicie a sua campanha rumo ao amor do gato. Panfletos, cartazes, propagandas [...].<br />
J.3 Comece a promover comícios que, na linguag<strong>em</strong> do coração, significa [...].<br />
Os relacionamentos amorosos associados a uma eleição parec<strong>em</strong> comparar o processo<br />
de conquista ao processo eleitoral, com direito a cabo eleitoral, propagandas, promessas,<br />
campanha e estratégias <strong>em</strong> busca pela vitória. Novamente pod<strong>em</strong> ser utilizados carinho,<br />
atenção, respeito, um bom papo, como também mentiras, trapaças, e até mesmo uma<br />
produção mais caprichada, roupas novas, maquiagens... Geralmente, há a ideia de competição,<br />
disputa com outras candidatas ao cargo almejado.<br />
305
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
K - amor é magia / encantamento<br />
K.1 [...] e chega até mesmo a ficar ‘enfeitiçado’. É que o amor t<strong>em</strong> muito de magia mesmo.<br />
K.2 Enfeitice o gato. Dicas e magias para você ter o seu amor.<br />
No amor visto como magia, o papel de mágico é atribuído à namorada, que se valerá<br />
de truques ou encantamentos para enfeitiçar sua plateia, o namorado. Cabe aqui ressaltar que<br />
mágicas são ilusões utilizadas para dar uma falsa impressão às pessoas. O encantamento t<strong>em</strong><br />
um efeito t<strong>em</strong>porário e os truques pod<strong>em</strong> ser descobertos ou revelados.<br />
L - amor é conto de fadas<br />
L.1 [...] e, após muita confusão, ganhou o coração do príncipe.<br />
L.2 Deixe os sapos e garanta o namorado perfeito.<br />
O conto de fadas nos traz a figura idealizada do príncipe encantado, o herói s<strong>em</strong><br />
defeitos que salva a mocinha, vence todos os obstáculos e garante a felicidade eterna. Porém,<br />
às vezes, essa “eternidade” t<strong>em</strong> prazo de validade. É s<strong>em</strong>pre sinalizado à princesa que se o<br />
príncipe virar um sapo, ele deverá voltar ao brejo.<br />
M - amor é r<strong>em</strong>édio<br />
M.1 A verdade é que ele está doente e precisa muito de amor.<br />
M.2 Coração na UTI? Sim, existe tratamento rápido... Um novo amor [...].<br />
O amor apresentado como r<strong>em</strong>édio também indica uma busca pela salvação, pela<br />
ausência da dor ou do sofrimento. No amor, estaria a solução dos probl<strong>em</strong>as. Essa é uma<br />
visão valorizada pelas gerações passadas, pautada, de modo geral, por uma concepção<br />
romântica. No r<strong>em</strong>édio é vista somente a cura, deixando-se de lado os efeitos colaterais. Se os<br />
sintomas da doença não desaparecer<strong>em</strong>, porém, o r<strong>em</strong>édio deverá ser trocado.<br />
Em grande parte das edições analisadas, há a imag<strong>em</strong> do relacionamento como um<br />
conflito, onde o namorado ou similar é apresentado, portanto, como um adversário, alguém<br />
com qu<strong>em</strong> se está competindo e que precisa ser derrotado, abatido ou enganado para que a<br />
vitória seja alcançada, assim como uma sensação de felicidade e b<strong>em</strong>-estar. Encontra-se,<br />
também, uma visão do outro com o qual a leitora se relaciona afetivamente como um objeto;<br />
seus relacionamentos amorosos foram representados como uma forma de diversão ou de<br />
investimento, como algo que deve ser utilizado, visando a um propósito ou benefício.<br />
A recomendação de estratégias e truques para o alcance dos objetivos é constante;<br />
entre as quais, encontra-se presente, <strong>em</strong> vários artigos, o uso de determinadas roupas,<br />
maquiagens e, até mesmo, sugestões de mentiras e simulação de outra personalidade. Se o<br />
amor se torna motivo de sofrimento ou prejudica, de alguma forma, o bom andamento das<br />
atividades cotidianas, é preciso que esse sentimento seja reavaliado ou mesmo descartado.<br />
A visão de uma sociedade pautada pelas relações de mercado, utilitarista e<br />
individualista, onde o outro t<strong>em</strong> de perder, ser subjugado, usado ou manipulado para que se<br />
possa ganhar e ter prazer, parece ser corroborada. Não há quase perspectiva futura nesses<br />
relacionamentos, os quais se mostram fluidos, imediatistas, com validade até o momento <strong>em</strong><br />
que houver conveniência. Observa-se uma maior preocupação com a satisfação pessoal, onde<br />
os próprios desejos prevalec<strong>em</strong> sobre os do outro, <strong>em</strong> uma busca constante pelo b<strong>em</strong>-estar e<br />
pela supressão de qualquer sensação de incômodo. E se os relacionamentos, de modo geral,<br />
306
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
são baseados <strong>em</strong> busca por satisfação pessoal através de contatos superficiais e efêmeros,<br />
provavelmente isso se refletirá <strong>em</strong> nos atos e nos objetivos dos jovens. A mídia parece ser<br />
instrumento que, ao mesmo t<strong>em</strong>po, transparece e estimula esse tipo de comportamento.<br />
4) Considerações finais<br />
Considerando a pluralidade de representações acerca dos relacionamentos amorosos<br />
cont<strong>em</strong>porâneos, propus, através de contribuições da Linguística Cognitiva e da Análise do<br />
Discurso, o reconhecimento de formas de relacionar-se privilegiadas pelos instrumentos<br />
midiáticos voltados para a juventude.<br />
A partir da identificação das metáforas conceptuais presentes nos artigos de uma<br />
revista de grande circulação entre o público f<strong>em</strong>inino jov<strong>em</strong>, defendi a possibilidade de<br />
reconhecimento de uma visão de mundo construída socialmente e, consequent<strong>em</strong>ente, da<br />
formação ideológica presente no discurso.<br />
Foram encontradas diferentes representações de relacionamentos amorosos, desde as<br />
mais românticas, de um amor perfeito, que salva e traz sentido à vida, com promessas de<br />
felicidade, até aquelas de um amor que busca a satisfação momentânea, <strong>em</strong> uma visão<br />
utilitarista, na qual a cooperação até existe, mas somente até o momento <strong>em</strong> que trouxer<br />
alguma forma de ganho. Esta última esteve mais presente no material analisado.<br />
Gostaria de ressaltar que, mesmo nas mencionadas concepções românticas, qualquer<br />
situação adversa é sinalizada como motivo para um questionamento da validade do amor, e<br />
que a promessa de “ser feliz para s<strong>em</strong>pre” é substituída pela necessidade de aproveitar a<br />
intensidade do momento.<br />
O presente estudo, tendo como objetivo refletir sobre uma dada realidade históricosocial,<br />
não t<strong>em</strong> a pretensão de apresentar uma verdade absoluta e certamente não quer propor<br />
qualquer tipo de generalização. Ao buscar verificar a representação dos relacionamentos<br />
amorosos cont<strong>em</strong>porâneos <strong>em</strong> mídia impressa voltada para o público jov<strong>em</strong>, minha intenção é<br />
a de possibilitar uma reflexão acerca do que é gerado com/entre/para a juventude. Proponho,<br />
então, que possam ser considerados, <strong>em</strong> estudos futuros, não só os seus relacionamentos,<br />
como também os seus comportamentos e objetivos de vida. Identificar as ideologias<br />
subjacentes aos discursos pode ser bastante esclarecedor na <strong>análise</strong> dos anseios, das metas,<br />
das dificuldades e dos comportamentos dos jovens. Ao desvelá-las, tornamo-nos conscientes<br />
dos mapeamentos <strong>em</strong> que são produzidas e somos capazes de nos avaliá-las criticamente.<br />
Referências<br />
BAKHTIN, Mikhail. O freudismo. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.<br />
KÖVECSES, Zoltán. Metaphor: a practical introduction. New York: Oxford University Press, 2002.<br />
LAKOFF, George. Women, fire, and dangerous things: what categories reveal about the mind.<br />
Chicago, London: The University of Chicago Press, 1987.<br />
_____; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980.<br />
307
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1999.<br />
PÊCHEUX, Michel. S<strong>em</strong>ântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas-São Paulo:<br />
Editora da UNICAMP, 1997.<br />
SARDINHA, Tony Berber. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.<br />
308
“You pulled a Monica”: buscando (um) sentido 1<br />
Charles Fouquet (UERJ)<br />
Evelyn Chagas (UERJ)<br />
Gabriel Machado (UERJ)<br />
Natália Affonso (UERJ)<br />
Ulisses Gomes (UERJ)<br />
RESUMO: No presente trabalho, buscamos descrever o sentido da expressão “You pulled a Monica” usada no<br />
contexto de um episódio da série norte-americana “Friends”. Na trama, há a reconstrução desse sentido, que<br />
passa de depreciativo a positivo. Procuramos inicialmente utilizar conceitos da S<strong>em</strong>ântica Formal, presentes nos<br />
estudos de Frege, e da Teoria Polifônica de Ducrot (1987), que estende para a <strong>análise</strong> dos enunciados o conceitos<br />
de polifonia de Bakhtin; por último, buscamos dar conta do sentido da expressão usando a <strong>teoria</strong> da S<strong>em</strong>ântica<br />
Cognitiva, a partir dos estudos de Lakoff e Johnson (1981), constatando que essa <strong>teoria</strong> é a que melhor se aplica<br />
ao caso <strong>em</strong> <strong>análise</strong>. No episódio há, inicialmente, uma projeção de significados do espaço mental da expressão<br />
“screw up” 2 para o espaço mental da personag<strong>em</strong> Monica. Por isso, o termo “Monica”, nesse uso, t<strong>em</strong><br />
característica depreciativa. Todavia, no final no episódio, há uma alteração no <strong>em</strong>prego de “pull a Monica”, que<br />
passa a se relacionar a outros espaços mentais de natureza positiva, o que modifica radicalmente o significado da<br />
expressão. D<strong>em</strong>onstra-se, portanto, como a metáfora é estruturante e essencial à língua como expressão de<br />
saberes de ord<strong>em</strong> linguística e cognitiva.<br />
Palavras-chave: Linguística. S<strong>em</strong>ântica. Língua Inglesa. “Pull a Monica”.<br />
1) Introdução<br />
O presente artigo t<strong>em</strong> como objetivo buscar um sentido para a expressão “you pulled a<br />
Monica” a partir de um exercício de <strong>análise</strong>, utilizando <strong>teoria</strong>s s<strong>em</strong>ânticas.<br />
Realizamos uma <strong>análise</strong> s<strong>em</strong>ântica de trecho de um episódio da série norte-americana<br />
“Friends”. No episódio, a personag<strong>em</strong> Monica, tendo sido contratada pela mãe para cozinhar<br />
<strong>em</strong> um evento, perde uma de suas unhas postiças enquanto prepara um dos pratos. Essa<br />
situação provoca desconforto <strong>em</strong> Monica, mas logo adiante perceb<strong>em</strong>os que o fato já era<br />
previsto pelos seus pais. Ocorre então um conflito, já que os pais de Monica apostaram que<br />
algo certamente daria errado e usaram a expressão “pull a Monica”, que data da infância da<br />
moça. No final, outra personag<strong>em</strong>, Phoebe, amiga de Monica, tenta dar novo uso para a<br />
expressão, desconstruindo seu significado inicial, de caráter depreciativo.<br />
O ponto principal do episódio é, portanto, a (des)construção do sentido inicial da<br />
expressão “pull a Monica”, que pode ser traduzida <strong>em</strong> português para “dar uma de Monica”.<br />
Essa expressão t<strong>em</strong> sido usada com frequência <strong>em</strong> inglês para indicar, <strong>em</strong> termos gerais, a<br />
ação que alguém pratica e que se aproxima ou se ass<strong>em</strong>elha àquela realizada por outra pessoa.<br />
Seria algo como “P agiu da mesma forma que N”.<br />
Diversos são os autores que têm se proposto a realizar estudos s<strong>em</strong>ânticos, ou seja, a<br />
buscar o sentido (significado, significação) das formas linguísticas. Os diferentes enfoques e<br />
fundamentações resultaram no desenvolvimento de <strong>teoria</strong>s que são constante objeto de<br />
debates, e que apontam para o caráter heterogêneo dos estudos. A própria definição de seu<br />
objeto– o significado – já é um ponto controverso.<br />
1 Orientados pela Professora Dra. Tânia Saliés (UERJ).<br />
2 Essa expressão pode ser entendida como “estragar”, “arruinar”.<br />
309
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Cançado (2008) organizou as <strong>teoria</strong>s s<strong>em</strong>ânticas <strong>em</strong> dois grupos: um que engloba<br />
<strong>teoria</strong>s baseadas na lógica (<strong>teoria</strong>s formais, referenciais ou de valor de verdade), que procuram<br />
ver a relação entre as expressões linguísticas e objetos extralinguísticos; e outro que inclui<br />
<strong>teoria</strong>s que assum<strong>em</strong> um ponto de vista representacional (<strong>teoria</strong>s mentalistas,<br />
representacionais ou cognitivas), considerando o significado como representação mental, s<strong>em</strong><br />
relação com a referência no mundo.<br />
Pretend<strong>em</strong>os fundamentar a construção do sentido da expressão <strong>em</strong> pauta utilizando<br />
estudos de várias <strong>teoria</strong>s s<strong>em</strong>ânticas. Procurar<strong>em</strong>os mostrar que a S<strong>em</strong>ântica Formal não é<br />
suficiente para explicar o sentido da expressão. Além disso, mostrar<strong>em</strong>os que, dentre as<br />
<strong>teoria</strong>s representacionais, a S<strong>em</strong>ântica da Enunciação também não desvenda completamente<br />
tal sentido. da expressão, Daí buscamos dar conta dele a partir da S<strong>em</strong>ântica Cognitiva, com<br />
base nos estudos de Lakoff e Johnson (1981) e de sua repercussão no Brasil, principalmente<br />
nos trabalhos de Roberta Pires de Oliveira.<br />
A respeito do corpus analisado, cabe trazer uma reflexão de Crystal (2003) sobre<br />
diálogos de séries de televisão, <strong>em</strong> contraste com os diálogos <strong>em</strong> uma situação real:<br />
When we investigate how dialogs actually work, as found in recordings of<br />
natural speech, we are often in for a surprise. We are used to seeing<br />
dialogue in contexts where the language has been carefully crafted, such as<br />
the script of a play or the conversation in a language teaching textbook.<br />
Such dialogues may be very effective for their purpose, but they are usually<br />
a long way from what can happen in everyday conversation. The stereotype<br />
is that people speak in complete sentences, taking well-defined turns,<br />
carefully listen to each other, and producing balanced amounts of speech. 3<br />
Portanto, considerando que o objeto de <strong>análise</strong> é uma “conversa artificial”, como<br />
definido por Dionisio (2000, p.74), o trecho escolhido será a transcrição de uma parte do<br />
roteiro do episódio mencionado, de onde serão extraídos os dados para a <strong>análise</strong><br />
pretendendida.<br />
É também interessante ressaltar que o seriado <strong>em</strong> questão é predominant<strong>em</strong>ente<br />
humorístico e as situações criadas têm, portanto, a intenção de divertir o público. Diante,<br />
pois, da intenção do autor do texto, é possível (e aceitável) a quebra de algumas máximas<br />
conversacionais, fato que resulta no humor da cena.<br />
2) Buscando (um) sentido<br />
Utilizando-se dos estudos de Cançado (2008), buscamos fundamentar nossa <strong>análise</strong> <strong>em</strong><br />
uma <strong>teoria</strong> s<strong>em</strong>ântica baseada na lógica e <strong>em</strong> outras que tomam o ponto de vista<br />
representacional, considerando s<strong>em</strong>pre as suas particularidades na busca pelo sentido.<br />
3<br />
Quando nós investigamos como os diálogos realmente funcionam, como os encontrados <strong>em</strong> gravações de uma<br />
fala natural, muitas vezes somos surpreendidos. Estamos habituados a diálogos <strong>em</strong> contextos nos quais a língua<br />
foi cuidadosamente elaborada, como no script de uma peça ou <strong>em</strong> um diálogo <strong>em</strong> um livro-texto de ensino de<br />
língua. Tais diálogos pod<strong>em</strong> ser muito eficazes ao que se propõ<strong>em</strong>, mas eles geralmente estão muito longe do<br />
que acontece numa conversa do dia a dia. O estereótipo é que as pessoas usam sentenças completas, tomam<br />
turnos b<strong>em</strong> definidos, ouv<strong>em</strong> cuidadosamente umas às outras e produz<strong>em</strong> quantidades equilibradas de fala. (livre<br />
tradução)<br />
310
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Pela S<strong>em</strong>ântica Lógica, as condições de verdade das sentenças seriam desvendadas a<br />
partir de relações intrínsecas de significado entre elas. Nesse aspecto, portanto, seriam<br />
sentenças anômalas aquelas nas quais, apesar de sintaticamente aceitáveis, o sentido de uma<br />
não é compatível com o sentido de outra (Cançado, 2008).<br />
Por outro lado, segundo os estudos proposto por Oswald Ducrot (1987) no que mais<br />
tarde se chamou S<strong>em</strong>ântica da Enunciação – pertencente ao grupo das <strong>teoria</strong>s de base<br />
representacional – , a referência é tida como uma ilusão criada pela linguag<strong>em</strong>. Apropriandose<br />
do conceito bakhtiniano de polifonia, o autor questiona entendimentos anteriores e busca<br />
um novo meio de encontrar o significado. A <strong>teoria</strong> de Ducrot analisa a ação humana realizada<br />
pela linguag<strong>em</strong> e as suas condições de alcance a partir do estudo do enunciado (fragmento do<br />
discurso). Deve-se distinguir o locutor enquanto tal, que realiza um ato de afirmação (posto),<br />
e o locutor enquanto ser do mundo, um ser considerado fora do discurso – voz coletiva –<br />
apresentando o conteúdo pressuposto.<br />
Ainda no grupo das <strong>teoria</strong>s de base representacional, menciona-se a S<strong>em</strong>ântica<br />
Cognitiva, principalmente os estudos de Lakoff e Johnson (1981). Com foco no significado,<br />
esses teóricos acreditam que a expressão da m<strong>em</strong>ória de experiências cognitivas pode ser feita<br />
através dos mecanismos da metáfora (conjunto de correspondências entre domínios,<br />
relacionadas aos esqu<strong>em</strong>as imagéticos) e da metonímia (esqu<strong>em</strong>a que permite a criação de<br />
relações de hierarquia entre conceitos, relacionada às categorias de nível básico). O indivíduo<br />
categorizaria o mundo através de protótipos, que representam um caso médio ou central e, a<br />
partir da metonímia, essa categoria seria gradualmente estendida.<br />
2.1) A S<strong>em</strong>ântica Formal<br />
Segundo o que ensina Marques (1999, p. 89)<br />
Em s<strong>em</strong>ântica lógica, o estudo das relações de significado entre termos<br />
metalinguísticos nos faz lidar com fenômenos de condições de verdade<br />
metalinguísticas, referentes a sentenças ou proposições que são logicamente<br />
verdadeiras ou falsas, porque entre elas exist<strong>em</strong> relações intrínsecas de<br />
significado.<br />
Para a s<strong>em</strong>ântica formal, seriam sentenças anômalas aquelas <strong>em</strong> que, apesar de<br />
sintaticamente aceitáveis, o sentido de uma não é logicamente compatível com o de outra<br />
(Cançado, 2008).<br />
Tom<strong>em</strong>os o primeiro uso da expressão “pull a Monica” no fragmento analisado:<br />
A- I just bet I’d need one of these [frozen lasagnas].<br />
B- You bet that I’d screw up?<br />
A- This was just in case you pulled a Monica 4 .<br />
Aqui, portanto, o sentido da expressão “pull a Monica” refere-se ao de “screw up.” 5<br />
4 A- Eu apostei que iria precisar de uma dessas [lasanhas congeladas]<br />
B- Você apostou que eu estragaria tudo?<br />
A- Isso era só no caso de você dar uma de Monica. (livre tradução)<br />
5 V. nota 2.<br />
311
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Um dos probl<strong>em</strong>as que se apresentam para a <strong>análise</strong> dessa relação sob o ponto de vista<br />
formal reside no fato de não haver acarretamento entre as sentenças:<br />
a-You pulled a Monica 6 .<br />
b-You screw up 7 .<br />
O aspecto objetivo da visão da s<strong>em</strong>ântica formal leva a considerar que a sentença (b)<br />
não esteja relacionada com a sentença (a).<br />
Refletindo ainda sobre o que diz<strong>em</strong> Fromkin & Rodman (1993), uma parte do<br />
significado das sentenças está no conhecimento de suas condições de verdade (propriedades<br />
s<strong>em</strong>ânticas que permit<strong>em</strong> saber se a sentença é verdadeira ou falsa), já que o conhecimento da<br />
língua envolve a maneira de combinar as palavras. O uso de “to pull” (puxar) levaria um<br />
indivíduo que conheça a língua inglesa a considerar como seu objeto “algo” ou “alguém”.<br />
Um objeto determinado, então. No entanto, o uso do artigo indefinido retira essa<br />
determinação do nome próprio, mostrando uma quebra de tal regra de combinação.<br />
Essa quebra ou violação de princípio é característica de expressões idiomáticas, cujo<br />
significado foge ao conteúdo da s<strong>em</strong>ântica formal.<br />
2.2) A S<strong>em</strong>ântica da Enunciação<br />
Vê-se que a S<strong>em</strong>ântica Formal não é suficiente para esclarecer o significado de “you<br />
pulled a Monica”. Pass<strong>em</strong>os, assim, a tratar da S<strong>em</strong>ântica da Enunciação.<br />
De acordo com essa <strong>teoria</strong>, proposta por Oswald Ducrot (1987), a referência é tida<br />
como uma ilusão criada pela linguag<strong>em</strong>. O autor questiona entendimentos anteriores e busca<br />
um novo meio de encontrar o significado. Inicialmente denominada Pragmática Linguística<br />
ou Pragmática S<strong>em</strong>ântica, a <strong>teoria</strong> de Ducrot analisa a ação humana realizada pela linguag<strong>em</strong><br />
e as suas condições de alcance. O objeto da <strong>teoria</strong> é dar conta do que é feito pela fala.<br />
6 Você deu uma de Monica.<br />
7 Você estragou tudo.<br />
Sub<br />
F<br />
SN SV<br />
SV SN<br />
Det N<br />
You pulled a Monica<br />
312
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Ducrot baseia-se no conceito bakhtiniano de polifonia, que reconhece a existência de<br />
várias vozes no texto. Contudo, diferent<strong>em</strong>ente de Bakhtin, ele entende que essa polifonia<br />
não está presente somente no texto (sequência de enunciados), mas também nos enunciados<br />
que formam o texto.<br />
O primeiro aspecto de que tratar<strong>em</strong>os aqui é a distinção feita entre sentença e<br />
enunciado. Para Ducrot, a sentença está desvinculada do contexto, diferent<strong>em</strong>ente da<br />
enunciação, na qual se repara a existência de cadeias discursivas: “A realização de um<br />
enunciado é de fato um acontecimento histórico: é dada existência a alguma coisa que não<br />
existia antes de se falar e que não existirá mais depois. É essa aparição momentânea que<br />
chamo ‘enunciação’” (Ducrot, 1987, p. 168).<br />
Segundo o autor, a frase “não pertence, para o linguista, ao domínio do observável, mas<br />
constitui uma invenção desta ciência particular que é a gramática” (Ducrot, 1987, p.164). O<br />
objeto do linguista é o enunciado (fragmento do discurso).<br />
Ducrot traz três acepções de enunciação:<br />
• Atividade psico-fisiológica implicada na produção do enunciado;<br />
• Produto da atividade do sujeito falante (segmento de discurso, enunciado);<br />
• Acontecimento constituído pelo aparecimento de um enunciado.<br />
Ainda a propósito da distinção entre frase e enunciado, Ducrot distingue o conceito de<br />
significação do de sentido. Segundo o autor, a significação seria a caracterização s<strong>em</strong>ântica<br />
da frase, e o sentido a caracterização s<strong>em</strong>ântica do enunciado. A significação representa um<br />
conjunto de instruções para associar sentido aos enunciados. “Interpretar uma produção<br />
linguística consiste, entre outras coisas, <strong>em</strong> reconhecer nela atos, e que este reconhecimento<br />
se faz atribuindo ao enunciado um sentido, que é um conjunto de indicações sobre a<br />
enunciação” (Ducrot, 1987, p.173).<br />
Ao trazer a polifonia para a <strong>análise</strong> dos enunciados, Ducrot vislumbra a possibilidade de<br />
três tipos de negação:<br />
1 negação metalingüística: “uma negação que contradiz os próprios termos de uma fala<br />
efetiva à qual se opõe” (Ducrot, 1987, p. 204):<br />
Ex<strong>em</strong>plo 1: Pedro não parou de fumar, de fato Pedro nunca fumou na sua vida.<br />
Há aqui uma afirmação antecedente (L – Pedro parou de fumar) que possibilita a<br />
negação do enunciador.<br />
Ex<strong>em</strong>plo 2: Pedro não é inteligente, ele é genial.<br />
Da mesma forma, existe aqui uma afirmação anterior feita por um locutor L: Pedro é<br />
inteligente.<br />
2 negação polêmica:<br />
Ex<strong>em</strong>plo:<br />
L- Pedro não é inteligente.<br />
E1- Pedro é inteligente. (pode não ser discurso efetivo)<br />
313
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Nesse caso “a atitude positiva à qual o locutor se opõe é interna ao discurso no qual é<br />
contestada. Esta negação ‘polêmica’ t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre um efeito rebaixador e mantém os<br />
pressupostos” (Ducrot, 1987, p. 204).<br />
205)<br />
3 negação descritiva: “derivado delocutivo da negação polêmica”. (Ducrot, 1987, p.<br />
Atribuição de propriedade que legitima oposição a um enunciador que tivesse feito uma<br />
afirmação qualquer.<br />
Fenômenos de Pressuposição:<br />
Pedro parou de fumar. (enunciado com pressuposto)<br />
E1- conteúdo pressuposto. Pedro fumava anteriormente.<br />
E2- posto. Pedro não fuma atualmente.<br />
O E2 é assimilado ao locutor L, que realiza ato de afirmação. O E1 é assimilado a uma<br />
voz coletiva. Nas hipóteses de pressuposição, deve-se distinguir o locutor enquanto tal (L) e<br />
o locutor enquanto ser do mundo (λ), um ser considerado fora do discurso.<br />
Diante disso, considerando-se a expressão tomada para <strong>análise</strong>, pode-se concluir o<br />
seguinte:<br />
You pulled a Monica. (Você deu uma de Monica)<br />
E1- conteúdo pressuposto: Monica fez algo.<br />
E2- posto: Você agiu como Monica.<br />
O probl<strong>em</strong>a que se coloca para que se construa o sentido da expressão é a utilização do<br />
nome “Monica” para que se verifique qual atitude está sendo repetida. Isso só é possível a<br />
partir do contexto, do conhecimento de mundo partilhado entre os falantes e do uso que se faz<br />
da expressão. Daí entend<strong>em</strong>os que a S<strong>em</strong>ântica Cognitiva é a mais adequada para a situação.<br />
2.3) A S<strong>em</strong>ântica Cognitiva<br />
Considera-se que os estudos de Lakoff e Johnson (1981) deram início aos estudos dessa<br />
<strong>teoria</strong> s<strong>em</strong>ântica. Num artigo sobre o percurso dos estudos s<strong>em</strong>ânticos no Brasil, Oliveira<br />
(1999) apresenta as principais críticas de Lakoff à <strong>análise</strong> formal. Dentre elas o fato da não<br />
percepção, pela S<strong>em</strong>ântica Formal, da centralidade da imaginação, sendo a metáfora por ela<br />
considerada um mero “desvio marginal”, ao passo que, para o autor, se trataria de um<br />
mecanismo onipresente, relacionado aos domínios cognitivos. Oliveira também menciona o<br />
conceito de objetivismo metafísico criado por Lakoff, que engloba uma crítica à abordag<strong>em</strong><br />
lógico-formal do significado.<br />
Para a Linguística Cognitiva, o enunciado surge de dentro para fora – não possui um<br />
referente – e <strong>em</strong>erge de nossa interação corpórea com o mundo, com o ambiente.<br />
Dessa relação com o ambiente, a criança apreenderia el<strong>em</strong>entos – aqui denominados<br />
categorias de nível básico – e, a partir daí, da m<strong>em</strong>ória dessas experiências, seriam criados<br />
esqu<strong>em</strong>as imagéticos “que dão significado às nossas experiências lingüísticas” (Oliveira,<br />
2000, p. 34).<br />
314
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A expressão dessa m<strong>em</strong>ória de experiências cognitivas poderia ser feita através dos<br />
mecanismos da metáfora (conjunto de correspondências entre domínios) e da metonímia<br />
(esqu<strong>em</strong>a que permite a criação de relações de hierarquia entre conceitos).<br />
Pela ótica dessa <strong>teoria</strong>, a metáfora e a metonímia não são consideradas como meras<br />
figuras de linguag<strong>em</strong>. A metáfora se relacionaria aos esqu<strong>em</strong>as imagéticos e a metonímia às<br />
categorias de nível básico. O indivíduo categoriza o mundo através de protótipos, que<br />
representam um caso médio ou central, e, por meio da metonímia, essa categoria é<br />
gradualmente estendida.<br />
A pressuposição é outro el<strong>em</strong>ento a ser destacado nessa <strong>teoria</strong>. Diferent<strong>em</strong>ente do que<br />
ocorre na enunciação (argumentação), aqui a pressuposição significa a transferência de<br />
significados de um espaço mental para outro.<br />
3) Analisando a expressão “pull a monica” a partir da s<strong>em</strong>ântica cognitiva<br />
Os conceitos da S<strong>em</strong>ântica Cognitiva pod<strong>em</strong> ser utilizados para que se encontre o<br />
significado da expressão “pull a Monica” tal como utilizada no fragmento <strong>em</strong> <strong>análise</strong>.<br />
Vimos acima que o primeiro uso da expressão t<strong>em</strong> aspecto depreciativo, relacionandose<br />
à expressão “screw up” (estragar, arruinar tudo) .<br />
Inicialmente, pod<strong>em</strong>os analisar o significado do uso de “pull a”:<br />
Se tomarmos o uso “P pulled a N”, pode-se admitir que pull (puxar) traz o esqu<strong>em</strong>a de<br />
MOVIMENTO, de trazer para si. Assim, entend<strong>em</strong>os “pull a” como um movimento de trazer<br />
algo para si, no caso, uma característica. Portanto, <strong>em</strong> “P pulled a N”, entend<strong>em</strong>os que P<br />
trouxe para si características de N.<br />
A S<strong>em</strong>ântica Cognitiva pode também ser útil para explicar os usos de “Monica” como<br />
referente:<br />
a-You pulled a Monica.<br />
b-You screw up.<br />
fail (falhar)<br />
SCREW UP<br />
ruin (arruinar)<br />
spoil (estragar)<br />
Input 1 Input 2<br />
MONICA<br />
Há, portanto, uma projeção, uma transferência de significados do espaço mental de<br />
“screw up” para o espaço mental da personag<strong>em</strong> Monica. Por isso, o termo “Monica”, nesse<br />
uso, t<strong>em</strong> característica depreciativa.<br />
fail<br />
ruin<br />
spoil<br />
315
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Todavia, no final no episódio, há uma alteração no uso da expressão, e “pull a Monica”<br />
passa a relacionar-se a outros espaços mentais:<br />
a) If a kid gets straight A’s, his parents would say, "Yeah, he pulled a Monica” 8<br />
b) If a fir<strong>em</strong>an saves a baby, and they go, "Yeah I know, he pulled a Monica." 9<br />
Input 3 Input 4<br />
Portanto, essa segunda acepção não traz mais o conteúdo depreciativo, já que, ao<br />
projetar <strong>em</strong> Monica el<strong>em</strong>entos das categorias de um bom aluno e de um bombeiro, há radical<br />
mudança do significado da expressão.<br />
4) Conclusão<br />
“A” grade (nota A)<br />
KID<br />
successful (b<strong>em</strong> sucedido)<br />
intelligent (inteligente)<br />
FIREMAN<br />
baby rescue (resgata bebês)<br />
successful (b<strong>em</strong> sucedido)<br />
intelligent (inteligente)<br />
Input 5 Input 6<br />
Assim, o primeiro uso da expressão t<strong>em</strong> um aspecto negativo, já que se relaciona a<br />
algum erro cometido no passado pela personag<strong>em</strong> Monica. E esse conhecimento é partilhado<br />
pelos interlocutores, daí:<br />
A- I just bet I’d need one of these [frozen lasagnas].<br />
B- You bet that I’d screw up?<br />
A- This was just in case you pulled a Monica 10 .<br />
8 Se um garoto tira um A, seus pais diriam “Isso, ele deu uma de Monica” bombeiro resgata uma criança, e eles<br />
diriam, “Isso, eu sei, ele deu uma de Monica” (livre tradução)<br />
9 Se um bombeiro resgata uma criança, e eles diriam, “Isso, eu sei, ele deu uma de Monica” (livre tradução)<br />
10 A- Eu apostei que iria precisar de uma dessas [lasanhas congeladas]<br />
B- Você apostou que eu estragaria tudo?<br />
successful<br />
intelligent<br />
good girl<br />
Successful<br />
Intelligent<br />
Special<br />
MONICA<br />
MONICA<br />
316
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Todavia, a expressão t<strong>em</strong> seu significado alterado no final do trecho. Isso prova que o<br />
seu sentido depende do uso e isso pode ser verificado no segundo uso da expressão:<br />
Monica: Ohh, I’m such an idiot. I can’t believe I actually thought she could<br />
change.<br />
Phoebe: Well, who cares what your Mom thinks? So you pulled a Monica…<br />
Monica: Oh good, I’m glad that’s catching on.<br />
Phoebe: No but, (1) why does that have to be a bad thing? (2) Just change<br />
what it means. Y'know? (3) Go down there and prove your Mother wrong.<br />
(4) Finish the job you were hired to do, and we’ll call that pulling a Monica.<br />
Monica: What?<br />
Phoebe: Okay, umm,(5) if a kid gets straight A’s, his parents would say,<br />
"Yeah, he pulled a Monica." You know? (6) Or a fir<strong>em</strong>an saves a baby, and<br />
they go, "Yeah I know, he pulled a Monica. " 11<br />
No segmento (1) a personag<strong>em</strong> expressamente declara que o sentido da expressão “pull<br />
a Monica” t<strong>em</strong> um aspecto negativo. No entanto, <strong>em</strong> (2), (3) e <strong>em</strong> (4) ela mostra a<br />
possibilidade de alterar esse sentido, que está estritamente relacionado ao seu uso. Em (5) e<br />
(6), são sugeridas novas situações de uso da expressão, que apontam para um aspecto<br />
positivo.<br />
É importante também verificar a necessidade de compartilhamento do conhecimento<br />
pelos interactantes para que se faça a construção do sentido, expresso no segmento (8) a<br />
seguir:<br />
Mrs. Geller: Yes, well I was wrong, and I have to say you really impressed<br />
me today.<br />
Monica: Wow!<br />
Phoebe: Umm, you might even say that she pulled a Monica.<br />
(Mrs. Geller and Monica both look at her)<br />
Phoebe (to Monica): (8) She doesn’t know we switched it.<br />
(Monica nods her head ‘No.’) 12<br />
Como diz Koch (2009, p. 56-7):<br />
A- Isso era só no caso de você dar uma de Monica. (livre tadução)<br />
11<br />
Monica: Oh, eu sou tão idiota. Eu não acredito que eu realmente achei que ela pudesse mudar.<br />
Phoebe: B<strong>em</strong>, qu<strong>em</strong> se importa com o que sua mãe acha? Então você deu uma de Monica...<br />
Monica: Ai, meu Deus, estou feliz que isso esteja pegando.<br />
Phoebe: Não, mas por que isso t<strong>em</strong> que ser uma coisa ruim? Basta mudar o que isso significa. Entende? Desça<br />
lá e prove que sua mãe está errada. Termine o trabalho para que você foi contratada e nós chamar<strong>em</strong>os a isso dar<br />
uma de Monica.<br />
Monica: O que?<br />
Phoebe: Okay, hum, se um garoto tira um A, seus pais diriam “Isso, ele deu uma de Monica’. Entende? Ou um<br />
bombeiro resgata uma criança, e eles diriam, “Isso, eu sei, ele deu uma de Monica” (livre tradução).<br />
12<br />
Sra. Geller: Sim, b<strong>em</strong>, eu estava errada, e eu tenho que dizer que você realmente me impressionou hoje.<br />
Monica: Uau!<br />
Phoebe: Hum, você deve dizer que ela deu uma de Monica.<br />
(Sra. Geller e Monica olham para ela)<br />
Phoebe (para Monica): Ela não sabe que nós o mudamos.<br />
(Monica nega com a cabeça ‘Não’) (livre tradução)<br />
317
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Em última <strong>análise</strong>, a língua não existe fora dos sujeitos sociais que a falam e<br />
fora dos eventos discursivos nos quais eles intervêm e nos quais mobilizam<br />
suas percepções, seus saberes quer de ord<strong>em</strong> linguística, quer de ord<strong>em</strong><br />
cognitiva, ou seja, seus modelos de mundo. Estes, todavia, não são<br />
estáticos, (re)constro<strong>em</strong>-se tanto sincrônica como diacronicamente, dentro<br />
das diversas cenas enunciativas, de modo que, no momento <strong>em</strong> que se passa<br />
da língua ao discurso, torna-se necessário invocar conhecimentos –<br />
socialmente compartilhados e discursivamente (re)construídos - , situar-se<br />
dentro das contingências históricas, para que se possa proceder aos<br />
encadeamentos discursivos.<br />
Portanto, essa segunda acepção não traz mais o conteúdo depreciativo, já que, ao<br />
projetar <strong>em</strong> Monica el<strong>em</strong>entos das categorias de um bom aluno e de um bombeiro, há radical<br />
mudança do significado da expressão, que passa a ter aspecto positivo. Ao utilizar a<br />
S<strong>em</strong>ântica Cognitiva para depreender o significado da expressão “pull a Monica”, verificamos<br />
que não há como cumprir essa tarefa somente a partir de dados do texto, o conhecimento de<br />
mundo compartilhado entre os interactantes é fundamental nessa tarefa.<br />
REFERÊNCIAS<br />
CANÇADO, Márcia. Manual de s<strong>em</strong>ântica: noções básicas e exercícios. Belo Horizonte : UFMG,<br />
2008.<br />
CRYSTAL, David. The Cambridge encyclopedia of the English language. 2. ed. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 2003.<br />
DIONÍSIO, Ana Paula. Análise da conversação. In: MUSSALIN, Fernanda; BENTES, Anna<br />
Christina (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras . São Paulo : Cortez, 2000. p. 69-<br />
101. v. 2.<br />
DUCROT, Oswald. O Dizer e o dito. Tradução de Eduardo Guimarães. Campinas : Pontes, 1987.<br />
FROMKIN, Victoria; RODMAN, Robert. Introdução à linguag<strong>em</strong>. Coimbra : Almedina, 1993. p<br />
177-215.<br />
KOCH, Ingedore G. Villaça. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes t<strong>em</strong>as. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 2009.<br />
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark.. Metaphors we live by. Chicago : University of Chicago Press,<br />
1981.<br />
MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à s<strong>em</strong>ântica. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.<br />
OLIVEIRA, Roberta Pires de. Uma história de delimitações teóricas: trinta anos de s<strong>em</strong>ântica no<br />
Brasil. DELTA. v. 15, n.esp., p. 291-321, 1999. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010244501999000300012&script=sci_arttext. Acesso <strong>em</strong>: 01<br />
de maio 2010.<br />
318
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
______. S<strong>em</strong>ântica. In: MUSSALIN Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à<br />
linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2000. p. 18-46. v. 2.<br />
319
Considerações acerca do discurso jurídico<br />
320
A MATERIALIZAÇÃO DA SUBJETIVIDADE NO DISCURSO<br />
JURÍDICO: A LINGUAGEM DO MAGISTRADO<br />
Valdeciliana da Silva Ramos Andrade (FDV)<br />
RESUMO: O presente estudo trata da manifestação da subjetividade no discurso jurídico. Por ser inerente ao ser<br />
humano, a subjetividade é parte integrante da produção de qualquer cidadão, independente da posição ocupada<br />
na sociedade. Assim, parte-se do pressuposto de que a subjetividade está presente <strong>em</strong> qualquer manifestação<br />
linguística e isso não é diferente no âmbito jurídico. Além disso, na esfera discursiva do Direito, <strong>em</strong> geral,<br />
pressupõe-se que o discurso é “neutro”, isento de traços de qu<strong>em</strong> o produz. Por causa desse equívoco, é<br />
necessário mostrar que o discurso jurídico, como outras instâncias discursivas, é perpassado pela subjetividade, a<br />
qual ultrapassa a mera noção de pessoalidade e impessoalidade. A fim de realizar este estudo, pautou-se nas<br />
pr<strong>em</strong>issas discursivas aludidas por Benveniste (1995) e no pressuposto de que a materialização do discurso<br />
jurídico ocorre através de diferentes gêneros textuais, a saber: técnico, opinativo, decisório, legal, processual<br />
(ANDRADE, 2007). Por isso, de acordo com o gênero textual, há diferentes formas de manifestação da<br />
subjetividade, uma vez que os sujeitos assum<strong>em</strong> posições discursivas distintas. Assim, busca-se verificar as<br />
diferentes formas de manifestação da subjetividade no discurso proferido pelo magistrado (gênero decisório) e<br />
associá-la à posição discursiva e argumentativa ocupada pelo juiz, que é o sujeito comunicante no texto<br />
decisório. Para a realização da <strong>análise</strong>, recorreu-se, para a formação do corpus (amostra aleatória), a sentenças do<br />
âmbito trabalhista. Neste sentido, foram selecionadas 10 sentenças de magistrados distintos. Tal quantidade<br />
corresponde a cerca de 20% dos magistrados de primeiro grau.<br />
1) Introdução<br />
O hom<strong>em</strong> traz <strong>em</strong> si aspectos que o tornam singular, os quais permit<strong>em</strong> que ele<br />
manifeste sua ideologia, tenha relação com os d<strong>em</strong>ais seres a sua volta, influencie os outros,<br />
crie novas realidades, enfim, o hom<strong>em</strong> é um ser criador e, sobretudo, um ser pensador, muitas<br />
vezes, um revolucionador. Enfim, é alguém capaz de quebrar paradigmas e construir novos,<br />
apenas por ter a capacidade de raciocinar.<br />
Tal capacidade é inerente ao ser humano e isso está refletido na possibilidade que o ser<br />
humano t<strong>em</strong> <strong>em</strong> trazer, para seus textos, nuanças de tudo que foi significativo na vida. Diante<br />
disso, é inaceitável pensar <strong>em</strong> construções neutras, como se o ser humano fosse uma tábua<br />
lisa e s<strong>em</strong> impressões que foram sendo postas ao longo da sua convivência com os outros,<br />
com a escola, com a leitura.<br />
Nesse cenário é que figura a subjetividade como fundamental na construção do próprio<br />
ser humano. Toda pessoa é perpassada pela subjetividade, <strong>em</strong> virtude disso, há a<br />
impossibilidade de se admitir a neutralidade <strong>em</strong> qualquer nível (parcial ou relativa). Admitir a<br />
neutralidade na linguag<strong>em</strong> é admitir a existência de um mito.<br />
Isso é plausível com a concepção de Fiorin, quando diz que “O hom<strong>em</strong> aprende como<br />
ver o mundo pelos discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses<br />
discursos <strong>em</strong> sua fala” (Fiorin, 2007: 35). Por isso, este estudo parte da hipótese de que a<br />
subjetividade é intrínseca a todo ser humano e que ela, de algum modo, <strong>em</strong>erge no discurso.<br />
A partir desse pressuposto, escolheu-se o discurso jurídico como palco para se verificar<br />
se tal hipótese é real. Esta escolh centra-se especificamente na fala do magistrado, pois, <strong>em</strong><br />
geral, por ele representar o Estado, há uma omissão (ou dissimulação) da sua própria voz.<br />
321
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Assim, buscamos verificar se um personag<strong>em</strong> do discurso jurídico – o juiz – permite <strong>em</strong>ergir<br />
ou não a sua subjetividade e, caso positivo, se esta se manifesta de forma uniforme ou sofre<br />
variações de acordo com sua intenção comunicativa e direcionamento argumentativo.<br />
Nesse sentido, o método de abordag<strong>em</strong> para este estudo foi o hipotético-dedutivo e as<br />
técnicas de pesquisa foram a bibliográfica e a documental. Para verificarmos a existência da<br />
subjetividade, recorr<strong>em</strong>os a estudos na área da subjetividade, <strong>em</strong> especial os estudos de<br />
Benveniste. Para realizar a pesquisa documental, foram utilizadas dez sentenças, produzidas<br />
no âmbito da Justiça Federal do Trabalho. A escolha das sentenças se deu por meio do<br />
procedimento aleatório não-probabilístico, visto que “[...] a chance de cada el<strong>em</strong>ento da<br />
população ser incluído na amostra é desconhecida [...]” (Moura; Ferreira; Paine, 1998, p.59).<br />
Com efeito, buscaram-se quaisquer textos (sentenças) que estivess<strong>em</strong> disponíveis (sentenças<br />
que pudess<strong>em</strong> ser cedidas por magistrados os quais não sabiam o propósito da pesquisa).<br />
O presente estudo é fruto de parte da tese de doutorado da autora, defendido na UERJ<br />
<strong>em</strong> 2007, que trata da causalidade como forma de estruturação para a argumentação jurídica.<br />
Neste recorte, ve<strong>em</strong>-se, num primeiro momento, as manifestações da linguag<strong>em</strong>, como forma<br />
de esclarecer a relação intrínseca entre o hom<strong>em</strong> e a linguag<strong>em</strong>; <strong>em</strong> seguida, trata-se da<br />
sentença como forma de manifestação da enunciação do magistrado; logo após, abordam-se a<br />
subjetividade no discurso e as formas de manifestação da subjetividade no discurso jurídico;<br />
para, finalmente, ser<strong>em</strong> traçadas algumas considerações acerca da subjetividade no discurso<br />
jurídico do magistrado.<br />
2) A linguag<strong>em</strong> e as suas manifestações<br />
Toda essa capacidade que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> de se relacionar com outros é intrínseca do ser<br />
humano e a linguag<strong>em</strong> é o caminho para a materialização. É a linguag<strong>em</strong> que traz,<br />
provavelmente, os traços de cultura, uma vez que as trocas simbólicas permit<strong>em</strong> a<br />
comunicação, gerando relações sociais, proporcionando, dessa forma, que o pensamento se<br />
estruture. Mas a linguag<strong>em</strong> não está presa como se fosse um reflexo puro e simples do<br />
pensamento, até mesmo porque ela não se constitui de signos que não sejam polissêmicos,<br />
vagos e, muitas vezes, ambíguos. Por isso, cabe mencionar que ela percorre todo o nosso<br />
universo psíquico e o seu desenvolvimento, já que<br />
[...] não se limita a acompanhar o conteúdo interno da consciência;<br />
acompanha-o <strong>em</strong> níveis diversos, indo desde o estado mental que é<br />
dominado pelas imagens concretas, até aquele <strong>em</strong> que só são focalizados<br />
pela atenção os conceitos abstratos e as suas relações, o que comumente<br />
recebe o nome de raciocínio (Sapir, 1980, p.18).<br />
Na verdade, a relação entre o hom<strong>em</strong> e a linguag<strong>em</strong> é algo quase sublime, visto que há<br />
um <strong>em</strong>bate entre pensamento e linguag<strong>em</strong> – n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre falamos o que gostaríamos de dizer<br />
–, devido a isso, Charaudeau diz que “mesmo quando quer<strong>em</strong>os dizer tudo, não pod<strong>em</strong>os<br />
dizer tudo”. A linguag<strong>em</strong> é incapaz de traduzir <strong>em</strong> palavras tudo o que gostaríamos de dizer,<br />
pois ela é plural e, “[...] sob as aparências de um parecer inocente, s<strong>em</strong>pre diz algo diferente<br />
do que parece dizer” (Charaudeau s/d, p.1).<br />
Além disso, é notório que a linguag<strong>em</strong> não é “[...] um objeto descarnado, um esqueleto<br />
desprovido de sua carne psicológica e social” (Charaudeau, s/d, p.1), ela, apesar de estar<br />
intrinsecamente ligada ao ser humano, influencia-o no silêncio que perpassa a história que se<br />
322
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
faz ao redor do ser, porquanto, consoante Hjelmslev (2003, p.1) “a linguag<strong>em</strong> não é um<br />
simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o<br />
indivíduo, ela é o tesouro da m<strong>em</strong>ória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho”.<br />
Certamente, é isso que torna o ser humano singular – a capacidade de lidar com a<br />
linguag<strong>em</strong>, s<strong>em</strong>, na realidade, dominá-la. Necessário destacar, ainda, que é ela que fornece ao<br />
ser humano o acesso à realidade, ao processo de construção do pensamento. À conta disso,<br />
Hjelmslev (2003, p.1) atesta também que<br />
A linguag<strong>em</strong> [...] é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A<br />
linguag<strong>em</strong> é inseparável do hom<strong>em</strong> e segue-o <strong>em</strong> todos os seus atos. A<br />
linguag<strong>em</strong> é o instrumento graças ao qual o hom<strong>em</strong> modela seu<br />
pensamento, seus sentimentos, suas <strong>em</strong>oções, seus esforços, sua vontade e<br />
seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a<br />
base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso<br />
último e indispensável do hom<strong>em</strong>, seu refúgio nas horas solitárias <strong>em</strong> que o<br />
espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo<br />
do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar<br />
de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para<br />
envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos<br />
acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes<br />
ocupações da vida quotidiana aos momentos mais sublimes e mais íntimos<br />
dos quais a vida de todos os dias retira, graças às l<strong>em</strong>branças encarnadas<br />
pela linguag<strong>em</strong>, força e calor.<br />
Neste sentido, o hom<strong>em</strong> requer a linguag<strong>em</strong> para auxiliar no processo de articulação das<br />
suas ideias, pois é na e pela linguag<strong>em</strong> que se pode tentar traduzir idéias e conceitos. É claro<br />
que, muitas vezes, pensamos algo e isso não se concretiza no mundo factual, fica apenas <strong>em</strong><br />
nosso nível mental, afinal, não falamos (n<strong>em</strong> dev<strong>em</strong>os falar) tudo o que pensamos. Mas, não<br />
restam dúvidas de que o raciocínio e a linguag<strong>em</strong> são as duas faces de uma mesma moeda.<br />
Quanto a isso, Sapir (1980, p.19) estabelece uma comparação dizendo que “o<br />
pensamento é tão inconcebível s<strong>em</strong> a linguag<strong>em</strong> quanto o raciocínio mat<strong>em</strong>ático é<br />
impraticável s<strong>em</strong> a alavanca de um simbolismo mat<strong>em</strong>ático adequado”. Desse modo, ver o<br />
raciocínio se materializar no curso silencioso das palavras retidas no papel, na tela de<br />
computador ou <strong>em</strong> qualquer outra forma é uma necessidade básica do ser humano.<br />
Em virtude dessa ânsia, dispus<strong>em</strong>o-nos a estudá-la dentro de um processo de busca de<br />
convencimento, de persuasão ou mesmo de sedução do outro a qu<strong>em</strong> nos dirigimos – a<br />
realidade argumentativa. Buscamos vislumbrar, dentro de tal foco, as formas de construção do<br />
pensamento, partindo do viés da construção de causalidade, considerando este pressuposto<br />
como el<strong>em</strong>ento fundador do pensamento argumentativo. Para tanto, é preciso observar como a<br />
linguag<strong>em</strong> se estrutura e que rumos ela toma dentro do discurso.<br />
2.1) O hom<strong>em</strong> e a linguag<strong>em</strong><br />
A linguag<strong>em</strong> é inerente ao hom<strong>em</strong>, faz parte da natureza deste, por isso é impossível<br />
pensar o ser humano dissociado de tal capacidade. S<strong>em</strong>pre que pensamos no hom<strong>em</strong>, v<strong>em</strong>o-lo<br />
como um ser falante que se expressa num mundo concreto. Concernente a isso, Benveniste<br />
(1989, p.93) certifica que<br />
323
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Inclinamo-nos s<strong>em</strong>pre para a imaginação ingênua de um período original<br />
<strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> completo descobriria um s<strong>em</strong>elhante igualmente completo<br />
e, entre eles, pouco a pouco, se elaboraria a linguag<strong>em</strong>. Isso é pura ficção.<br />
Não atingimos nunca o hom<strong>em</strong> separado da linguag<strong>em</strong> e não o v<strong>em</strong>os nunca<br />
inventando.<br />
Assim, independente de sua condição de sociabilidade, é impossível pensar no hom<strong>em</strong><br />
distante da linguag<strong>em</strong>, pois ele s<strong>em</strong>pre sente necessidade de se comunicar, de estar envolvido<br />
por uma rede de comunicações com os seus s<strong>em</strong>elhantes, de expressar seus pensamentos, de<br />
receber informações, de ter do outro ações e reações, enfim, conhecer a si e ao outro por meio<br />
do processo de interação proporcionado pela linguag<strong>em</strong>.<br />
A linguag<strong>em</strong> humana, segundo Koch (2001, p.9), ao longo da história, t<strong>em</strong> sido<br />
compreendida por três perspectivas diferentes, a saber: a primeira é a linguag<strong>em</strong> como<br />
representação do mundo e do pensamento, tal concepção é a mais antiga e nela o hom<strong>em</strong><br />
representa para si o mundo através da linguag<strong>em</strong>; já a segunda, a linguag<strong>em</strong> como<br />
instrumento de comunicação, vê a língua como um código utilizado por um <strong>em</strong>issor para<br />
transmitir mensagens a um interlocutor 1 , a função precípua é transmitir informações; por fim,<br />
na última, a linguag<strong>em</strong> é vista como forma ou lugar da ação ou interação, tal perspectiva<br />
visualiza a linguag<strong>em</strong> como espaço para se interagir, lugar no qual se permite os mais<br />
diversos tipos de trocas e se oferece a oportunidade para o conhecimento de outras realidades.<br />
O último ponto de vista trata da função social da linguag<strong>em</strong>, uma vez que ela traduz <strong>em</strong><br />
si mesma o desejo maior do ser humano, o de comunicar-se, fazer-se notar e observar os<br />
outros. Tal processo de troca deve ser entendido como uma forma de expressão do<br />
pensamento do ser humano, que se materializa na ação do hom<strong>em</strong> sobre o outro a qu<strong>em</strong> se<br />
dirige, sobre si mesmo ou até sobre o próprio mundo no qual está inserido. Na realidade, isso<br />
se traduz na ânsia de o hom<strong>em</strong> conquistar o direito à palavra.<br />
É importante perceber que a linguag<strong>em</strong> t<strong>em</strong> a capacidade de estabelecer fronteiras entre<br />
um ser e o outro, de d<strong>em</strong>arcar os espaços entre os seres. Dessa forma, a linguag<strong>em</strong> é sinônimo<br />
de poder para aquele que sabe manipulá-la, na verdade, para aquele que alcança o direito à<br />
palavra.<br />
Essa pluralidade de percepções quanto à linguag<strong>em</strong> já estava na raiz do pensamento dos<br />
filósofos, pois Platão (apud Chauí, 2002, p.137), no diálogo Fedro, assegura que a linguag<strong>em</strong><br />
é um pharmakon. Essa palavra, de orig<strong>em</strong> grega, t<strong>em</strong>, no português, três sentidos: r<strong>em</strong>édio,<br />
veneno e cosmético. É r<strong>em</strong>édio para o conhecimento, porque pode curar a ignorância de<br />
alguém, b<strong>em</strong> como proporcionar a aprendizag<strong>em</strong>. É veneno, visto que passa pela sedução das<br />
palavras, faz-nos aceitar s<strong>em</strong> questionamentos algo que vimos ou l<strong>em</strong>os apenas pelo poder da<br />
fascinação que a linguag<strong>em</strong> exerce sobre nós. É cosmético, porquanto pode ser maquiag<strong>em</strong>,<br />
máscara que encobre ou dissimula a verdade, ocultando-a por meio das palavras, dando a<br />
falsa ilusão do real.<br />
Assim, t<strong>em</strong>os que a linguag<strong>em</strong> não é inocente, s<strong>em</strong> intenção. Ao contrário, qualquer<br />
processo comunicativo é dotado de intencionalidade e veicula uma ideologia que perpassa<br />
toda a noção que o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> de si, do mundo e do outro, haja vista que a linguag<strong>em</strong> do ser<br />
1<br />
Não definimos necessariamente a nomenclatura para a pessoa que enuncia e o outro que faz parte da<br />
enunciação, por isso, às vezes, referimo-nos a tais seres como locutor/interlocutor, locutor/alocutário,<br />
produtor/destinatário, <strong>em</strong>issor/receptor.<br />
324
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
humano não é privada de <strong>em</strong>oção n<strong>em</strong> de ideologia. Suas palavras, suas ações estão<br />
permeadas de tudo o que forma o imaginário do hom<strong>em</strong>. Por isso, não se pode pensar <strong>em</strong><br />
linguag<strong>em</strong> ingênua, neutra que funcione somente como instrumento de comunicação, o qual<br />
veicula uma mensag<strong>em</strong> desprovida de intenções ou mesmo de reflexos da sociedade e do<br />
momento histórico-social <strong>em</strong> que está inserida.<br />
Evidente que a linguag<strong>em</strong>, como interação, foge à transparência de sentidos, já que é<br />
um modo de produção social e ela se constitui, de fato, <strong>em</strong> uma mediação necessária entre os<br />
homens e entre o próprio hom<strong>em</strong> e o mundo <strong>em</strong> que vive. Diante disso, pod<strong>em</strong>os preceituar<br />
que a linguag<strong>em</strong> é uma forma de negociação, é um instrumento de ação política do hom<strong>em</strong><br />
sobre sua realidade, do hom<strong>em</strong> sobre o outro e do hom<strong>em</strong> sobre a sociedade. Com efeito, o<br />
discurso que o ser produz reflete esta ambivalência.<br />
Como forma de engajamento do hom<strong>em</strong> com o mundo, Brandão (s/d, p.12) atesta que<br />
“a linguag<strong>em</strong> é lugar de conflito, de confronto ideológico”. Devido a isso, o estudo da<br />
linguag<strong>em</strong> não pode estar distante da sociedade que a produz, mesmo porque os aspectos que<br />
envolv<strong>em</strong> a produção da linguag<strong>em</strong> são considerados histórico-sociais. Cumpre ressaltar que<br />
tal estudo não pode prescindir das circunstâncias que envolv<strong>em</strong> a produção discursiva, as<br />
quais perpassam a situação comunicativa <strong>em</strong> que se constrói o texto.<br />
A linguag<strong>em</strong> constitui-se <strong>em</strong> um molde, mais ou menos fiel, da realidade lógica e<br />
psicológica. É, por conseguinte, o espaço onde o hom<strong>em</strong> se realiza como sujeito que pensa,<br />
age e reage e, nesse universo convencional de signos, ele estrutura o seu pensamento e<br />
materializa sua cultura. Por causa disso, o hom<strong>em</strong> é, na perspectiva de Vogt (1980, p.72),<br />
“carregado das relações deste universo de significações culturais, é ele próprio um signo<br />
constant<strong>em</strong>ente interrogado por suas ações e constant<strong>em</strong>ente voltado para a interrogação dos<br />
signos, que são a linguag<strong>em</strong>”.<br />
De fato, a linguag<strong>em</strong>, <strong>em</strong>bora não se restrinja a isso, pode ser vista como forma de<br />
representação do ser, visto que se preocupa <strong>em</strong> construir sentidos. Por causa disso, evoca,<br />
para sua corporificação, determinados el<strong>em</strong>entos – o outro, a posição que ocupa no cenário<br />
<strong>em</strong> que está inserido, o contexto histórico-social, a cultura, a ideologia, entre outros el<strong>em</strong>entos<br />
importantes para a constituição de uma situação comunicativa. O que se vislumbra, realmente,<br />
é a possibilidade fática de a linguag<strong>em</strong> se comportar como uma forma de encenação do real,<br />
traduzindo, por meio de uma cena enunciativa e por meio de personagens, o que se pretende<br />
dizer.<br />
Ao vislumbrarmos a linguag<strong>em</strong> desse modo, perceb<strong>em</strong>os que a necessidade de<br />
representação envolve o ato de provar para si ou para o outro algo que se quer comunicar. Isso<br />
revela que a natureza da linguag<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre busca o consentimento do outro para aquilo que se<br />
fala, mesmo que esse outro seja a própria pessoa, já que, não raras vezes, buscamos<br />
convencer-nos de algo. Assim, t<strong>em</strong>os que a natureza da linguag<strong>em</strong> é essencialmente<br />
argumentativa.<br />
Se observarmos os minúsculos fatos que nos cercam, perceber<strong>em</strong>os isso. Vejamos a<br />
criança – quando ela quer, sabe, exatamente, como conseguir algo de seus pais – ela conhece<br />
o jeito, o momento e a forma de “seduzir” os pais para o propósito a ser alcançado. Convém<br />
l<strong>em</strong>brar que n<strong>em</strong> precisa ir à escola para aprender a “manipular” a linguag<strong>em</strong> a fim de atingir<br />
seu objetivo. Também quando compartilhamos algo pessoal com alguém, quer<strong>em</strong>os o<br />
consentimento da pessoa, isto é, esperamos que a pessoa a qu<strong>em</strong> nos dirigimos se convença<br />
daquilo que foi dito e concorde. Se, ao contrário, ela nos repreender, considerar<strong>em</strong>os um<br />
325
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
absurdo, pelo menos num primeiro momento, uma vez que houve a ausência da concordância<br />
esperada.<br />
É bom l<strong>em</strong>brar que o desejo atravessa todo o imaginário do ser e, portanto, a construção<br />
da linguag<strong>em</strong> está pautada na necessidade de levar o outro a pensar como pensamos. Daí não<br />
admitirmos que, mesmo num informativo, s<strong>em</strong> marcas explícitas de pessoalidade, inexista o<br />
objetivo de levar o outro a ver aquilo com nossos olhos. Muitas vezes, do desejo cego de levar<br />
o outro para o nosso posicionamento, surge a intolerância, a impaciência e, <strong>em</strong> geral, a falta<br />
de respeito pela cultura e pelo posicionamento alheios.<br />
Apesar disso, é s<strong>em</strong>pre muito importante não nos iludirmos, crendo que somos<br />
“transparentes” naquilo que nos propomos a expressar, pois, como diz Charaudeau (s/d,<br />
mimeo, p.3), “se somos condenados a nos comunicar, não estamos jamais certos do que<br />
comunicamos”. Nesse sentido, por mais que nos esforc<strong>em</strong>os, nunca conseguir<strong>em</strong>os dizer tudo<br />
aquilo que desejamos.<br />
Como a linguag<strong>em</strong> é inerente ao ser, e, para nós, ela é essencialmente argumentativa, é<br />
necessário observar como ela se materializa, no que tange a sua estrutura formal, porquanto,<br />
nesse âmbito, é mais fácil depreender os matizes sintático-s<strong>em</strong>ânticos que produz<strong>em</strong> o<br />
sentido.<br />
T<strong>em</strong>os, portanto, dentre as diversas tendências que estudam a manifestação da<br />
linguag<strong>em</strong>, duas que privilegiamos neste trabalho, quais sejam: uma aborda a presença do EU<br />
no texto, a manifestação do ser que produz um discurso; a outra fala da relação que este EU<br />
t<strong>em</strong> com o outro, isto é, a relação dialógica da linguag<strong>em</strong>, a presença imprescindível do outro.<br />
Conquanto consider<strong>em</strong>os tais perspectivas basilares para se perceber o processo de<br />
materialização da linguag<strong>em</strong>, é importante perceber que o texto é s<strong>em</strong>pre um palco <strong>em</strong> que<br />
ocorre esta materialização e onde se encenam diversos papéis representados por personagens<br />
que surg<strong>em</strong> na cena discursiva.<br />
3) A enunciação do magistrado<br />
No processo de enunciação, ao se instituir um EU, há obrigatoriamente a construção de<br />
um TU – “Toda enunciação é, explícita ou implícita, uma alocução – ela postula um<br />
alocutório” (Benveniste,1989, p.84).<br />
Enunciar, na óptica desse estudioso, equivale a colocar <strong>em</strong> funcionamento a língua por<br />
meio de um ato individual de utilização. Antes disso, a língua é apenas uma possibilidade,<br />
mas com a enunciação é uma instância do discurso.<br />
Essa vertente acerca da enunciação, na <strong>teoria</strong> de Benveniste, constitui-se <strong>em</strong> um ato<br />
particular de apropriação da língua, capaz de introduzir aquele que fala <strong>em</strong> seu próprio<br />
discurso. Devido a isso, cada instância discursiva torna-se um centro de referência interna.<br />
O discurso jurídico do magistrado é manifesto nas sentenças, uma vez que somente o<br />
magistrado possui legitimidade para prolatar um texto decisório que t<strong>em</strong> características<br />
particulares, mais ou menos estáveis quanto à estrutura, mas que t<strong>em</strong> nuanças enunciativas<br />
distintas, pois a cada nova enunciação há uma situação comunicativa distinta.<br />
Há que se esclarecer, contudo, que a enunciação, <strong>em</strong> si, parece ser mais ampla, visto<br />
que, consoante Maingueneau; Charaudeau (2004, p.193) “[...] constitui o pivô da relação entre<br />
326
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
a língua e o mundo: por um lado, permite representar fatos no enunciado, mas, por outro,<br />
constitui por si mesma um fato, um acontecimento único definido no t<strong>em</strong>po e no espaço”.<br />
Ad<strong>em</strong>ais, os autores afirmam haver vantag<strong>em</strong> <strong>em</strong> se distinguir, a fim de se proporcionar<br />
clareza, situação de enunciação e situação de comunicação, uma vez que a primeira estaria<br />
relacionada a “um sist<strong>em</strong>a de coordenadas abstratas, associadas à produção verbal”; já a<br />
segunda envolveria o contexto concreto de um discurso (MAINGUENEAU e<br />
CHARAUDEAU, 2004, p.194).<br />
Conquanto existam vertentes distintas no que se refere à enunciação, merece menção o<br />
fato de que o EU e o TU são os protagonistas da enunciação e apresentam marcas de pessoas.<br />
Ambos são distintos, porquanto o EU é pessoa subjetiva e o TU é não-subjetiva. Aquele<br />
possui posição de “transcendência” <strong>em</strong> relação ao TU, mesmo não podendo existir sozinho,<br />
uma vez que não há um s<strong>em</strong> o outro, além disso, ambos são compl<strong>em</strong>entares e, ao mesmo<br />
t<strong>em</strong>po, reversíveis.<br />
Infelizmente, nesse caso, o TU fica reduzido apenas a um eco, visto que o “eu propõe<br />
outra pessoa, aquela, que sendo <strong>em</strong>bora exteriormente a ‘mim’, torna-se o meu eco – ao qual<br />
digo tu e que me diz tu” (1995, p.286). Ora, o eco nada mais é do que uma projeção da minha<br />
própria voz – eu pronuncio uma frase e ela volta para mim da mesma forma, com apenas um<br />
pouco de distorção, mas, na essência, é a mesma coisa.<br />
À conta disso, mesmo havendo uma relação intersubjetiva, o TU é uma figura periférica<br />
<strong>em</strong> relação ao EU. Embora mostre que há uma relação de troca, a existência de um TU não<br />
deixa de ser uma projeção do meu EU, que aparece apenas com algumas variações do meio.<br />
Há, nessa situação, certo reducionismo que revela uma determinada restrição na <strong>teoria</strong><br />
de Benveniste, já que vê somente no EGO o cerne da enunciação <strong>em</strong> detrimento do TU,<br />
porque, como já vimos, para o estudioso, a subjetividade só se constrói à medida <strong>em</strong> que se<br />
t<strong>em</strong> capacidade de dizer EU. Por conseguinte, o TU fica relegado a uma posição inferior e a<br />
noção de subjetividade fica restrita somente ao EU, que comanda a relação discursiva.<br />
É essa relação intersubjetiva que se vê nos discursos dos magistrados. O juiz, ao proferir<br />
a sentença, imagina um TU a qu<strong>em</strong> ele se dirige e para este produz a sua enunciação. No<br />
processo de situação de enunciação, configura como seria o Tu e quais seriam as suas<br />
características. S<strong>em</strong> abrir mão dos traços de seu discurso, apresenta, numa situação de<br />
comunicação o texto decisório, que precisa ser objetivo e claro para os destinatários da<br />
enunciação. Além da precisão, que t<strong>em</strong> sido típica de textos decisórios, o magistrado se<br />
<strong>em</strong>penha <strong>em</strong> argumentar <strong>em</strong> prol da sua tese que é a decisão a ser anunciada, não somente<br />
porque ele quer dar ciência às partes, mas também para justificar o porquê de se ter tomado tal<br />
decisão.<br />
4) A subjetividade no discurso<br />
Da relação do sujeito com a linguag<strong>em</strong>, <strong>em</strong>erge a subjetividade, que se estrutura na<br />
concretização do discurso. Esta é alvo de estudos de várias áreas, como, por ex<strong>em</strong>plo, a<br />
filosofia, a psic<strong>análise</strong>, a lingüística. Cada uma dessas ciências tece pr<strong>em</strong>issas acerca da<br />
subjetividade, de acordo com as concepções que elege para estudá-la.<br />
Neste cenário polêmico e polissêmico <strong>em</strong> que se insere o termo “subjetivo”, ouvimos,<br />
com freqüência, falar <strong>em</strong> subjetividade <strong>em</strong> diversos âmbitos seja no texto, na relação pessoal<br />
327
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ou na relação profissional. A sociedade diz que dev<strong>em</strong>os ter idéias próprias, ter nossa<br />
personalidade, “não ir pela cabeça do outro”, possuir uma personalidade peculiar. O ser<br />
começa a constituir-se como sujeito, quando se assume e declara o seu posicionamento acerca<br />
de algo.<br />
Mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que ouvimos o discurso da subjetividade, que preconiza certa<br />
dose de individualidade, quando começamos a escrever ou a falar, utilizando a primeira<br />
pessoa, somos criticados por sermos muito pessoais. Muitos criticam a pessoalidade, alegando<br />
que isso é ser essencialmente “subjetivo”, e que, <strong>em</strong> geral, isso revela prepotência, assim,<br />
apresentam a subjetividade como um defeito. Às vezes, dão-nos a entender que é preferível<br />
que o ser se anule <strong>em</strong> detrimento da massa, porque não é adequado “ser subjetivo”. Daí<br />
advém a ausência de nomes, a pessoa ser reconhecida apenas por um número, às vezes, por<br />
um “código”. O ser humano não é declarado como pessoa – falta-lhe uma identidade própria<br />
que seja distintiva.<br />
É claro que há vários equívocos nesses discursos, os quais são provocados pela vagueza<br />
do próprio termo “subjetivo” que, não raro, é visto como algo <strong>em</strong>ocional e, às vezes, patético.<br />
Contudo, apesar da pluralidade de concepções que envolv<strong>em</strong> a subjetividade, neste trabalho,<br />
ir<strong>em</strong>os nos ater aos princípios de subjetividade delineados por Émile Benveniste (1995,<br />
p.286), para qu<strong>em</strong> a subjetividade “[...] é a capacidade do locutor para se propor como<br />
“sujeito” e “a linguag<strong>em</strong> é [...] a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter s<strong>em</strong>pre as<br />
formas lingüísticas apropriadas à expressão; e o discurso provoca a <strong>em</strong>ergência da<br />
subjetividade, pelo fato de consistir de instâncias discretas” (Benveniste, 1995, p.289).<br />
Na concepção de Benveniste (1995, p.285), é impossível pensar no hom<strong>em</strong> separado da<br />
linguag<strong>em</strong>, uma vez que esta se encontra na natureza do ser humano, <strong>em</strong> razão disso, ele não<br />
pode inventá-la. Nesse viés, “não atingimos o hom<strong>em</strong> reduzido a si mesmo e procurando<br />
conceber a existência do outro”. Em nosso mundo, o que v<strong>em</strong>os é um hom<strong>em</strong> que fala com<br />
outro hom<strong>em</strong>, preservando sua particularidade, pois “todo hom<strong>em</strong> se coloca <strong>em</strong> sua<br />
individualidade enquanto EU por oposição a TU e ELE” (Benveniste, 1989, p.68), pois é a<br />
própria linguag<strong>em</strong> que ensina a definição de hom<strong>em</strong>.<br />
Assim, um dos traços essenciais do hom<strong>em</strong> é poder ser subjetivo. Neste sentido, é pura<br />
ilusão acreditar que alguém pode se expressar de qualquer forma s<strong>em</strong> revelar sua<br />
subjetividade. Em toda e qualquer circunstância, o ser humano s<strong>em</strong>pre é subjetivo, o que não<br />
corresponde, necessariamente, a ser sentimental.<br />
Pedir ao hom<strong>em</strong> para abstrair a subjetividade é pedir que ele deixe de ser racional,<br />
individual, ímpar, que passe para o universo da irracionalidade e, sobretudo, que não utilize a<br />
linguag<strong>em</strong>. O que é inaceitável, haja vista que “é na linguag<strong>em</strong> e pela linguag<strong>em</strong> que o<br />
hom<strong>em</strong> se constitui como sujeito” (Benveniste, 1995, p.286).<br />
Em virtude disso, para o estudioso (1989, p.82-83), o ato de enunciar é “[...] colocar <strong>em</strong><br />
funcionamento a língua por um ato individual de utilização”. Desse modo, a enunciação<br />
pressupõe “a conversão individual da língua <strong>em</strong> discurso”. Com efeito, o ato de enunciar se<br />
concretiza quando o locutor se apropria do aparelho formal da língua, pois, “enquanto<br />
realização individual, a enunciação pode se definir, <strong>em</strong> relação à língua, como um processo de<br />
apropriação” de certas formas que a língua disponibiliza para delinear as marcas de<br />
subjetividade, como é o caso do uso do pronome “eu”. Quanto a isso, Benveniste (1989, p.83)<br />
declara que<br />
328
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O ato individual pelo qual se utiliza a língua introduz o locutor como<br />
parâmetro nas condições necessárias da enunciação. Antes da enunciação, a<br />
língua não é senão possibilidade da língua. Depois da enunciação, a língua é<br />
efetuada <strong>em</strong> uma instância do discurso, que <strong>em</strong>ana de um locutor, forma<br />
sonora, que atinge um ouvinte e que suscita outra enunciação de retorno.<br />
Esse processo de apropriação r<strong>em</strong>ete a esta noção de subjetividade, que se materializa<br />
na e pela linguag<strong>em</strong> e que “[...] é a capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’”.<br />
(Benveniste, 1995, p.286). Isso não se define pelo sentimento que “[...] cada um experimenta<br />
de ser ele mesmo [...] mas como a unidade psíquica que transcende a totalidade das<br />
experiências vividas que reúne, e que assegura a permanência da consciência”. (Benveniste,<br />
1995, p.286)<br />
Nisso se encontra o fundamento da subjetividade que se determina pelo “status”<br />
lingüístico da pessoa. Dessa forma, para Benveniste (1995, p.286), “a consciência de si<br />
mesmo só é possível se experimentada por contraste”, desse modo cada locutor só <strong>em</strong>prega o<br />
“eu”, quando, na sua alocução, dirige-se a um “tu”. Disso, advém que a noção de<br />
subjetividade está ligada intrinsecamente à de intersubjetividade. O discurso, como veiculador<br />
da linguag<strong>em</strong>, apresenta marcas (formas t<strong>em</strong>porais, indicadores de dêixis, modalizadores, etc)<br />
desta relação.<br />
Vale l<strong>em</strong>brar ainda que “a polaridade das pessoas é na linguag<strong>em</strong> condição<br />
fundamental”. Tal polaridade não equivale à igualdade n<strong>em</strong> simetria, porque o “ego t<strong>em</strong> uma<br />
posição de transcendência quanto a tu”. No entanto, o TU se apresenta como a figura de um<br />
parceiro que pode ser real ou imaginário, individual ou coletivo.<br />
Convém destacar também que, na visão do autor, o “eu” se realiza no discurso e, nesta<br />
instância, ele se enuncia como “sujeito”, razão pela qual o fundamento da subjetividade está<br />
no exercício da língua.<br />
Chauí (2002, p.118), partindo da óptica da <strong>teoria</strong> do conhecimento, vê o sujeito como<br />
correspondente da consciência de “uma atividade sensível e intelectual dotada do poder de<br />
<strong>análise</strong>, síntese e representação”. E ele t<strong>em</strong> a possibilidade de instituir sentidos, elaborar<br />
conceitos, idéias, juízos e <strong>teoria</strong>s. Ele é “[...] dotado da capacidade de conhecer-se a si mesmo<br />
no ato do conhecimento, ou seja, é capaz de reflexão”. Além disso, é capaz de “saber de si<br />
sobre o mundo, manifestando-se como sujeito percebedor, imaginante, m<strong>em</strong>orioso, falante e<br />
pensante”.<br />
Com efeito, a linguag<strong>em</strong> está tão organizada que “permite a cada locutor apropriar-se<br />
da linguag<strong>em</strong> toda designando-se como eu”. (Benveniste, 1995, p.288), por isso a linguag<strong>em</strong><br />
é o espaço onde se materializa a subjetividade. Acrescente-se ainda que, consoante o autor<br />
(Benveniste, 1995, p.289), a própria linguag<strong>em</strong> “propõe formas ‘vazias’ das quais cada<br />
locutor, <strong>em</strong> exercício de discurso, se apropria e as quais se refer<strong>em</strong> à sua ‘pessoa’ definindose,<br />
ao mesmo t<strong>em</strong>po, a si mesmo como EU e a um parceiro como TU”.<br />
Ad<strong>em</strong>ais, Benveniste alude à existência de uma relação fora da subjetividade quando se<br />
refere ao ELE, que é a não-pessoa (o “ausente” dos gramáticos árabes), o qual se opõe ao EU<br />
e ao TU por não ter marca de pessoa e por não se referir a um indivíduo específico, mas a um<br />
objeto colocado fora da alocução. A forma ELE “tira o seu valor do fato de que faz<br />
necessariamente parte de um discurso enunciado por um ‘eu’”. (1995, p.292, grifo do autor)<br />
329
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Dentro da <strong>teoria</strong> de subjetividade de Benveniste, a valorização do EU o qual se<br />
manifesta no discurso como ser que t<strong>em</strong> forma, pensa e utiliza a língua para influenciar, de<br />
alguma forma, o interlocutor, e a percepção da existência de um TU com qu<strong>em</strong> mantém uma<br />
relação discursiva tornam a <strong>teoria</strong> benvenistiana ímpar, pois a visão do sujeito proporciona ao<br />
discurso certa dinamicidade, haja vista que a relação discursiva se constrói <strong>em</strong> um mundo<br />
cujo processo de evolução é constante e onde há muito por se construir.<br />
Com efeito, o autor vê uma correspondência entre o centro da enunciação e o EGO e<br />
identifica tal centro como sendo a noção de sujeito, pois, para ele, a subjetividade vai se<br />
construindo à medida que se t<strong>em</strong> a capacidade de dizer eu.<br />
Concernente a isso, Brandão (s/d, p. 48) informa que “parece localizar uma fissura<br />
através da qual, atualmente, se t<strong>em</strong> criticado a posição de Benveniste, haja vista que a<br />
subjetividade é inerente a toda linguag<strong>em</strong> e sua constituição se dá mesmo quando não se<br />
enuncia o eu”. De outra forma, mesmo quando houver formas vazias ou mesmo a existência<br />
do ELE, isso não equivale à ausência de subjetividade. Assim, os discursos de formas<br />
indeterminadas, impessoais, que se apresentam, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> vários discursos jurídicos<br />
mostram uma enunciação que disfarça, de certa forma, o sujeito.<br />
Nesses tipos de enunciações, assevera a autora (s/d, p.48) que<br />
O sujeito enuncia de outro lugar, postando-se numa outra perspectiva seja a<br />
da impessoalidade <strong>em</strong> busca de uma objetivação dos fatos ou de um<br />
apagamento da responsabilidade pela enunciação seja a da incapacidade<br />
patológica de assunção de um eu (destaque da autora).<br />
Esse “mascaramento” não deixa de ser uma forma de constituição da subjetividade,<br />
entretanto, nesse caso, o sujeito não é o centralizador absoluto da subjetividade, deslocando<br />
seu foco para duas outras perspectivas no discurso - ou assumirá outras formas de paradigma<br />
da pessoa ou des<strong>em</strong>penhará outros papéis discursivos.<br />
Neste ponto, cabe-nos fazer uma asserção. Depreend<strong>em</strong>os, como pressuposto básico da<br />
subjetividade, que todo discurso é subjetivo, ou seja, todo discurso <strong>em</strong>ana de um EU que se<br />
realiza no discurso e este EU possui uma história, uma concepção de vida, uma ideologia<br />
entre tantas outras nuanças que perpassam a construção deste ser. Em suma, a subjetividade é<br />
a capacidade de se propor como sujeito de seu próprio discurso, construindo imagens<br />
discursivas que pod<strong>em</strong> revelar com maior ou menor intensidade suas intenções. Além disso, a<br />
concretização da subjetividade na linguag<strong>em</strong> possibilita a criação da categoria de pessoa<br />
(Benveniste, 1995, p.290).<br />
No tocante a isso, as manifestações da subjetividade pod<strong>em</strong> se materializar de maneiras<br />
diferentes, pois é possível que as evidências da subjetividade estejam explícitas, no entanto, é<br />
possível que a subjetividade esteja encoberta, “dissimulada” ou mesmo camuflada, para iludir<br />
um leitor mais desatento, a fim de que o mesmo creia que o texto não é um processo de<br />
condução e de manipulação do outro <strong>em</strong> prol de divulgar um posicionamento, uma<br />
perspectiva acerca de algo.<br />
5) Formas de materialização da subjetividade: <strong>análise</strong> do corpus<br />
O hom<strong>em</strong> não consegue enclausurar sua subjetividade, ele a manifesta mesmo quando<br />
não deixa transparecer as formas <strong>em</strong> que assume explicitamente o discurso, ou seja, quando<br />
330
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
não <strong>em</strong>prega quaisquer formas de primeira pessoa. Há s<strong>em</strong>pre uma relação intersubjetiva que<br />
visa à propagação explícita ou velada da subjetividade expressa por meio da linguag<strong>em</strong>.<br />
De outro modo, há momentos no discurso <strong>em</strong> que o sujeito deixa transparecer<br />
explicitamente sua subjetividade, especialmente, quando <strong>em</strong>prega marcas de primeira pessoa,<br />
o que torna a pessoalidade um fator explícito da subjetividade. No entanto, há momentos <strong>em</strong><br />
que o sujeito quer dizer determinadas coisas, mas prefere se pôr explicitamente – nessas<br />
circunstâncias, t<strong>em</strong>os a manifestação da subjetividade velada, implícita, uma vez que o autor<br />
recorre a artifícios lingüísticos – adjetivos, advérbios, frases de caráter imperativo, etc.<br />
Antes de procedermos à <strong>análise</strong> do corpus propriamente dito, são necessários alguns<br />
esclarecimentos, quais sejam:<br />
i) a sentença é um texto decisório, pois é o discurso de um magistrado num momento<br />
<strong>em</strong> que ele decide entre pólos distintos. Por causa disso, o texto t<strong>em</strong> natureza argumentativa –<br />
há uma decisão e esta t<strong>em</strong> de ser fundamentada.<br />
ii) a sentença é estruturada <strong>em</strong> três partes, a saber: o relatório (que, <strong>em</strong> alguns casos,<br />
pode ser dispensado) trata de partes do processo que o juiz considera interessante relatar <strong>em</strong><br />
frases injuntivas; a fundamentação – nesta parte, constam os fundamentos da decisão e, com<br />
frequência, os dados e os relatos do caso <strong>em</strong> questão; a decisão – também chamada de<br />
“decisum”, “ex positis”, esse it<strong>em</strong> contém a decisão do magistrado de forma objetiva, <strong>em</strong>bora<br />
ao longo da fundamentação, o juiz já tenha deixado clara a decisão. Nessa parte, o juiz retoma<br />
todos os itens pedidos e refutados pelos advogados, para se manifestar de forma bastante<br />
pontual.<br />
Dados os esclarecimentos, volt<strong>em</strong>os à <strong>análise</strong> do corpus. Nos textos analisados,<br />
observamos que há dois tipos de subjetividade num discurso, quais sejam: a subjetividade<br />
assumida e a subjetividade não-assumida.<br />
5.1) A subjetividade assumida 2<br />
A subjetividade “assumida” ocorre quando o locutor assume, deliberadamente, o<br />
discurso como autor, manifestando-se <strong>em</strong> primeira pessoa, ou seja, deixa marcas explícitas, na<br />
estrutura superficial do texto, de que o discurso proferido é fruto da concepção históricosocial<br />
e até mesmo cultural da própria pessoa, além, é claro, de que o discurso, por meio<br />
dessas marcas, externa o posicionamento de qu<strong>em</strong> se enuncia quanto aos fatos que estão<br />
sendo discutidos no texto. Ex<strong>em</strong>plo notório disso no discurso jurídico:<br />
Não quer<strong>em</strong>os ser apóstolos do “bom juiz francês” Magnaud, que, nas decisões,<br />
“mostrava-se cl<strong>em</strong>ente e atencioso para com os fracos [...]” (Sentença – RT 0694/1997,<br />
grifo nosso)<br />
Por esses fundamentos, declaro improcedente o pedido cautelar. (Sentença – RT 456/2002,<br />
grifo nosso)<br />
Nesses casos, v<strong>em</strong>os o magistrado assumir deliberadamente seu posicionamento s<strong>em</strong> se<br />
preocupar <strong>em</strong> dar um “ar de onisciência”, mas simplesmente uma postura condizente com a<br />
tese defendida.<br />
2<br />
Resolv<strong>em</strong>os denominar aqui de “subjetividade assumida”, mas poderia ser “subjetividade explícita”,<br />
“subjetividade marcada”, entre outras possibilidades que r<strong>em</strong>etam à idéia de que a subjetividade encontra-se<br />
materializada concretamente na superfície do texto.<br />
331
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Quanto a isso, um fato interessante a ser destacado é que, s<strong>em</strong> exceções, os magistrados<br />
manifestaram-se pessoalmente (1ª pessoa) no momento da decisão, isto é, no momento<br />
fundamental da sentença, o magistrado chama para si a responsabilidade das ideias expressas<br />
no texto decisório e deixa clara a manifestação de sua subjetividade.<br />
O uso desse tipo de subjetividade é mais restrito, principalmente, porque parece haver<br />
certa rejeição à pessoalidade, como se a manifestação da pessoalidade, num texto, excluísse a<br />
imparcialidade. Na verdade, o que se vê é que, no imaginário social da comunidade científica,<br />
o uso da 1ª pessoa pressupõe que a pessoa não tenha a isenção necessária para julgar ou<br />
mesmo que ela não seja o Estado-juiz.<br />
Vale dizer que essas concepções não são verdadeiras. O uso ou não da pessoalidade não<br />
pode ser sinônimo de parcialidade ou imparcialidade. O magistrado t<strong>em</strong> de ser imparcial (não<br />
pender para nenhum dos lados), mas a manifestação da sua decisão é pautada pelas suas<br />
construções ideológicas, filosóficas, jurídicas, morais, sociais, afetivas, entre tantas outras.<br />
Tais construções constitu<strong>em</strong>-se na sua subjetividade.<br />
5.2) A subjetividade não-assumida<br />
A subjetividade não-assumida não pressupõe ausência de pessoalidade, apenas não há<br />
manifestação de pronomes que se refiram a 1ª pessoa. Assim, esse tipo de subjetividade é<br />
extr<strong>em</strong>amente presente no discurso jurídico, e, como diss<strong>em</strong>os, isso não significa que os<br />
produtores do discurso não manifest<strong>em</strong> sua subjetividade, ao contrário, eles a manifestam,<br />
mas de uma forma velada, visto que faz<strong>em</strong> uso de formas e estruturas impessoais, além de<br />
utilizar<strong>em</strong> adjetivos, advérbios, locuções e estruturas modais que indicam algumas escolhas<br />
realizadas pelo próprio ser que se enuncia.<br />
Cabe esclarecer aqui que há uma concepção muito presente no mundo jurídico, de que é<br />
possível que o autor se pronuncie, no texto, s<strong>em</strong> manifestar explicitamente, ou mesmo com<br />
clareza, sua subjetividade, qualquer que seja a forma dela. Tais asserções presentes, neste<br />
estudo, buscam esclarecer que não há texto neutro. Todo e qualquer texto é subjetivo, uma<br />
vez que a pessoa que o produz é um ser no mundo com uma história, uma ideologia.<br />
S<strong>em</strong> dúvida, mesmo quando se defende uma causa alheia ou se julga um caso de um<br />
estranho, defende-se algo <strong>em</strong> que se acredita por qualquer motivo, ou se está julgando algo<br />
pautado <strong>em</strong> pr<strong>em</strong>issas que norteiam a conduta e o imaginário social do julgador. Assim,<br />
pensar <strong>em</strong> texto s<strong>em</strong> subjetividade é pensar num texto s<strong>em</strong> sujeito que comunica, mas isso é<br />
um universo onírico, pura ficção, utopia. A realidade mostra que isso não existe. Todo texto<br />
<strong>em</strong>ana de uma voz que t<strong>em</strong> história, posicionamentos e condutas.<br />
É bom advertir apenas que a forma da subjetividade não-assumida dá a falsa ilusão de<br />
“neutralidade”, pois parece que a voz do discurso, <strong>em</strong> geral, a terceira pessoa (correspondente<br />
a não-pessoa), <strong>em</strong>ana de uma consciência social superior, não de uma face específica. Isso é<br />
evidente nos seguintes fragmentos:<br />
A primeira observação necessária é a de que, mais de uma vez, o preposto d<strong>em</strong>onstrou não<br />
ter conhecimento sobre os aspectos litigiosos, ao afirmar que: “[...] não sabe dizer se o<br />
reclamante foi assediado sexualmente dentro da <strong>em</strong>presa” (fl. 161), o que importa na<br />
aplicação da pena de confissão quanto à matéria de fato, como é comezinho.<br />
Enquanto que a test<strong>em</strong>unha trazida pela ré seguiu o mesmo discurso (“[...] não t<strong>em</strong><br />
conhecimento do reclamante ter sido assediado sexualmente dentro da <strong>em</strong>presa”- fl. 163), a<br />
332
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
test<strong>em</strong>unha do autor entregou que: “[...] o gerente XXXX tomava algumas atitudes<br />
estranhas com pessoas do mesmo sexo, inclusive o depoente; já viu o Sr. XXXX passando<br />
a mão nas nádegas do reclamante; percebeu que o reclamante ficou constrangido e saiu de<br />
perto; o depoente estava a uma certa distância e não percebeu a conversa entre eles; nunca<br />
viu o reclamante tomando atitudes s<strong>em</strong>elhantes com pessoas do mesmo sexo; nunca<br />
denunciou o Sr. XXXX, com receio de perder o <strong>em</strong>prego” (fl. 162). (Sentença – RT<br />
0296/2002)<br />
As evidências, nos autos, <strong>em</strong> desfavor do Reclamante 3 , são tantas, que é forçoso concluir<br />
que a penalidade de d<strong>em</strong>issão por justa causa foi corretamente aplicada a ele. Não havia<br />
mais como manter a confiança <strong>em</strong> tal <strong>em</strong>pregado. (Sentença – RT 1446/2000)<br />
Isso é o que basta para firmar a competência deste Juízo à luz do preceito insculpido no art. 114<br />
da Constituição Federal. (Sentença – RT 391/2003)<br />
Observe que os produtores dos textos, apesar de não utilizar<strong>em</strong> a 1ª pessoa,<br />
manifestaram suas intenções claramente. No primeiro caso, a seleção das falas dos depoentes<br />
revela o posicionamento do juiz ao verificar que houve assédio homossexual, tanto que o<br />
magistrado, ao inserir as falas, assegura, num primeiro momento, que “A primeira observação<br />
necessária é a de que, mais de uma vez, o preposto d<strong>em</strong>onstrou não ter conhecimento sobre os<br />
aspectos litigiosos”; num segundo momento, afirma que “Enquanto que a test<strong>em</strong>unha trazida<br />
pela ré seguiu o mesmo discurso [...], a test<strong>em</strong>unha do autor entregou [...] (grifo nosso), tais<br />
construções, apesar de parecer<strong>em</strong> impessoais, traz<strong>em</strong> evidente a convicção do magistrado e<br />
isso é parte da subjetividade, que, por tratar de um assunto delicado, enuncia-se de uma<br />
posição distante, mas busca convencer o leitor de que a decisão tomada é a mais plausível<br />
diante do quadro que se mostra.<br />
As construções do segundo ex<strong>em</strong>plo (RT 1446/2000) se mostram impessoais – “[...] é<br />
forçoso concluir que a penalidade de d<strong>em</strong>issão por justa causa foi corretamente aplicada a ele.<br />
Não havia mais como manter a confiança <strong>em</strong> tal <strong>em</strong>pregado [...]”. Vê-se que tais construções<br />
traz<strong>em</strong> explícitas as intenções do magistrado, especialmente, com o <strong>em</strong>prego de “é forçoso<br />
concluir” e “Não havia mais”. Isso mostra que a manifestação da subjetividade independe da<br />
pessoalidade. Nesse caso, como <strong>em</strong> outros, o que se percebe é a manifestação clara da<br />
subjetividade.<br />
É importante não confundir subjetividade explícita com subjetividade assumida. A<br />
subjetividade pode ser não-assumida e estar explícita. Para evitar tais confusões, é que se<br />
escolheu essa nomenclatura, pois a concepção de assumir ou não-assumir está mais<br />
relacionada à concepção de pessoalidade e impessoalidade.<br />
No terceiro ex<strong>em</strong>plo (RT 391/2003), por sua vez, parece haver uma personificação de<br />
institutos – “competência deste Juízo” – como se o “juízo” não fosse a mesma pessoa que está<br />
escrevendo. Essas construções são estratégias linguísticas de dar a ilusão de afastamento do<br />
que se está discutindo, a fim de que o leitor “pense” que qu<strong>em</strong> está falando é alguém acima do<br />
b<strong>em</strong> e do mal, por isso t<strong>em</strong> razão <strong>em</strong> decidir acerca de algo que se lhe apresenta.<br />
Indiscutível que, nos casos arrolados, há subjetividade, pois os seres que ali enunciam,<br />
<strong>em</strong>bora se express<strong>em</strong> de forma impessoal, manifestam-se como sendo porta-vozes de seus<br />
discursos, prova disso são os reflexos de todo um contexto que transparece na superfície do<br />
3<br />
Reclamante – termo designa para a pessoa que ingressa com uma ação na Justiça do Trabalho, também é<br />
denominado de “autor”. Reclamada – termo que designa a pessoa/instituição contra qu<strong>em</strong> se ingressa com uma<br />
ação. Reclamatória trabalhista – refere-se à ação judicial na área da Justiça do Trabalho.<br />
333
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
texto. Tais reflexos são evidenciados por meio de advérbios, de adjetivos, de expressões<br />
impessoais, de questionamentos, entre outras possibilidades que a língua apresentar.<br />
6) Considerações Finais<br />
O ato de se enunciar não é meramente uma colocação de palavras, mas é buscar<br />
construir sentidos que possam ser depreendidos pelos outros sujeitos que faz<strong>em</strong> parte da<br />
situação comunicativa que abrange determinado texto.<br />
Essa é a realidade dos discursos jurídicos apresentados nas sentenças. Os magistrados<br />
não ag<strong>em</strong> s<strong>em</strong> propósitos claros <strong>em</strong> seus textos decisórios. No entanto, os mesmos recorr<strong>em</strong> a<br />
recursos lingüísticos para manifestar<strong>em</strong> certa distância entre o ser humano que fala e a papel<br />
de juiz que é exercido naquele momento.<br />
A subjetividade, intrínseca ao ser humano, fornece os subsídios para dar a ilusão de<br />
distanciamento entre a decisão do Estado-juiz e a pessoa real por trás da “capa”. Isso não<br />
significa dissimulação, mas uso adequado da subjetividade para se atingir um propósito<br />
comunicativo claro.<br />
Com este estudo, é possível verificar que há manifestações distintas da subjetividade<br />
que pod<strong>em</strong> trazer maior ou menor aceitação. Assim, ao se trazer um texto <strong>em</strong> que o assunto<br />
veiculado não é consensual, há maior incidência da subjetividade não-assumida, uma vez que<br />
esse tipo de subjetividade imprime a “falsa ilusão da neutralidade,” o que faz existir maior<br />
adesão por parte dos leitores ao que se está expondo.<br />
Já, ao se trazer um texto com assunto aceito pela sociedade <strong>em</strong> geral, vê-se um maior<br />
<strong>em</strong>prego da subjetividade assumida, pois a t<strong>em</strong>ática é menos contundente e há maior<br />
consonância das diversas partes.<br />
Por fim, é bom esclarecer que o uso de uma forma de subjetividade não exclui a outra e,<br />
<strong>em</strong> textos argumentativos (o decisório se insere neste rol), é mais presente a subjetividade<br />
não-assumida pela força discursiva que esta possui. Isso não quer dizer que uma é melhor que<br />
a outra. Ambas são diferentes, depend<strong>em</strong> apenas das intenções discursivas de qu<strong>em</strong> se<br />
enuncia.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ANDRADE, V. da S. R. A construção da causalidade na vertente dos gêneros textuais: uma<br />
<strong>análise</strong> da argumentação jurídica. 2007. 351 f. Tese (Doutorado <strong>em</strong> Língua Portuguesa) –<br />
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 2007. Disponível <strong>em</strong><br />
. Acesso <strong>em</strong>: 26 jul. 2010.<br />
BENVENISTE, E. Probl<strong>em</strong>as de lingüística geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria<br />
Luisa Néri. 4. ed. Campinas, SP: Pontes; Editora da UNICAMP, 1995.<br />
______. Probl<strong>em</strong>as de lingüística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et. al. Campinas, SP:<br />
Pontes, 1989.<br />
334
BITTAR, E. C. B. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001.<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à <strong>análise</strong> do discurso. 7.ed. Campinas/SP: Editora UNICAMP,<br />
1991.<br />
______. Subjetividade, argumentação, polifonia: a propaganda da Petrobrás. São Paulo: Editora<br />
UNESP, 1998.<br />
BRETON, P. A argumentação na comunicação. Tradução Viviane Ribeiro. Bauru,SP: EDUSC,<br />
1999.<br />
CHARAUDEAU, P. Discurso Político. Tradução de Fabiana Komesu e Dílson Ferreira da Cruz. São<br />
Paulo: Contexto, 2006.<br />
______. O que quer dizer comunicar. Texto fotocopiado. Paris: CAD; Rio de Janeiro: CIAD. s/d.<br />
______. El discurso mediático: legitimidad, credibilidad y captación. Paris: Université de Paris 13 –<br />
Centre d’analyse du discours. Ms.<br />
______; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.<br />
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 12 ed. São Paulo: Ática, 2002.<br />
FIORIN, J. L. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> e Ideologia. São Paulo: Ática, 1988.<br />
HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma <strong>teoria</strong> da linguag<strong>em</strong>. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.<br />
KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.<br />
______. A inter-ação pela linguag<strong>em</strong>. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2001.<br />
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Tradução de Cecília P. de Souza-e-Silva e<br />
Décio Rocha. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002.<br />
MOURA, L. S. de M.; FERREIRA, M. C.; PAINNE, P. A. Manual de elaboração de projetos de<br />
pesquisa. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998.<br />
SAPIR, E. A linguag<strong>em</strong>: introdução ao estudo da fala. 2. ed. Tradução de J. Mattoso Câmara Jr. São<br />
Paulo: Perspectiva, 1980.<br />
VOGT, C. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong>, pragmática e ideologia. Campinas, SP: Hucitec, 1980.<br />
335
JURIDIQUÊS: A QUEBRA DO CONTRATO DE COMUNICAÇÃO<br />
Juliana Oliveira Ribeiro (FDV) 1<br />
Natália Camara Lopes (FDV) 2<br />
Priscila Tinelli Pinheiro (FDV) 3<br />
RESUMO: Para se comunicar, o ser humano estabelece acordos para o processo de interação. Logo, é possível<br />
se falar na existência de um contrato de comunicação, visto que envolve sujeitos distintos e o próprio contrato é<br />
resultado de uma “troca simbólica entre dados externos e internos, o qual se estabelece <strong>em</strong> determinado espaço e<br />
por meio de ações” (CHARAUDEAU, 2006). O presente estudo aborda a linguag<strong>em</strong> jurídica nos contratos de<br />
comunicação do discurso jurídico, como um el<strong>em</strong>ento essencial para o acesso do cidadão aos seus direitos.<br />
Apesar da existência do contrato, o que se t<strong>em</strong> evidenciado, <strong>em</strong> muitas circunstâncias, é uma quebra desse<br />
contrato: o juridiquês – uso exacerbado e incompreensível da linguag<strong>em</strong> jurídica. Importa salientar que há, na<br />
sociedade, uma preocupação com a linguag<strong>em</strong> do magistrado, uma vez que está <strong>em</strong> tramitação no Senado<br />
Federal um Projeto de Lei n. 7448/06, aprovado recent<strong>em</strong>ente pela Comissão de Constituição e Justiça da<br />
Câmara dos Deputados, o qual exige que os magistrados produzam as sentenças judiciais com linguag<strong>em</strong><br />
acessível à população. Tendo <strong>em</strong> vista esta preocupação, o estudo observará a acessibilidade da linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />
10 (dez) sentenças judiciais com o objetivo de evidenciar a simplificação da linguag<strong>em</strong> jurídica e, inclusive,<br />
propor soluções para a probl<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> questão. A fim de realizar a presente pesquisa, recorreu-se aos estudos<br />
de Charaudeau (2006; 2004; 2008; 1992), Andrade (2010) e Oliveira (2003) b<strong>em</strong> como a <strong>análise</strong> de sentenças, os<br />
quais tornaram possível compreender com maior clareza as nuanças do contrato de comunicação, <strong>em</strong> que se<br />
insere o juridiquês.<br />
1) Introdução<br />
O processo comunicação é s<strong>em</strong>pre uma via de mão dupla, mas cabe ao produtor do<br />
texto se preocupar com o que enuncia e para qu<strong>em</strong> se enuncia, ou seja, o êxito do processo de<br />
comunicação depende dos sujeitos do discurso, mas qu<strong>em</strong> se enuncia deve produzir um texto<br />
que atenda às d<strong>em</strong>andas comunicacionais de seu público alvo.<br />
Neste sentido, este trabalho visa a estudar a linguag<strong>em</strong> jurídica como forma de acesso à<br />
justiça. Assim, o discurso jurídico deve primar por ser mais acessível e eliminar as barreiras<br />
impostas pelos entraves da linguag<strong>em</strong> jurídica que visa distanciar o cidadão comum.<br />
Esse entrave existente na linguag<strong>em</strong> jurídica é conhecido, tradicionalmente, como<br />
juridiquês, o qual será analisado <strong>em</strong> sentenças da área trabalhista, visto que este estudo<br />
pretende mostrar que tal desvio afasta o cidadão de seu direito e é responsabilidade do<br />
magistrado tentar tornar o seu texto mais acessível.<br />
O trabalho partiu-se do método de abordag<strong>em</strong> hipotético-dedutivo, para se verificar a<br />
existência de “juridiquês” <strong>em</strong> textos decisórios (sentenças). Para tanto, recorr<strong>em</strong>os à Justiça<br />
do Trabalho, visto que, <strong>em</strong> geral, as ações trabalhistas têm a finalidade de ser<strong>em</strong> mais<br />
próximas do cidadão comum. Nesse sentido, por meio do método aleatório não-probabilístico,<br />
1<br />
Trabalho orientado pela professora Dra Valdeciliana da Silva Ramos Andrade, como atividade integrante do<br />
Núcleo de Estudos de <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> Jurídica da Faculdade de Direito de Vitória – FDV.<br />
2<br />
Trabalho orientado pela professora Dra Valdeciliana da Silva Ramos Andrade, como atividade integrante do<br />
Núcleo de Estudos de <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> Jurídica da Faculdade de Direito de Vitória – FDV.<br />
3<br />
Trabalho orientado pela professora Dra Valdeciliana da Silva Ramos Andrade, como atividade integrante do<br />
Núcleo de Estudos de <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> Jurídica da Faculdade de Direito de Vitória – FDV.<br />
336
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
foram selecionadas 10 (dez) sentenças que compuseram o corpus desta <strong>análise</strong>. É válido<br />
descrever que as partes do processo de comunicação são o cidadão comum e o magistrado.<br />
Desse modo, analisar<strong>em</strong>os se as sentenças, produzidas pelos juristas para o cidadão comum,<br />
estão de acordo com o contrato de comunicação.<br />
2) O contrato de comunicação no discurso jurídico<br />
2.1) O discurso jurídico<br />
O discurso jurídico é um domínio discursivo que se manifesta predominant<strong>em</strong>ente na<br />
forma verbal, visto que o Direito é evidenciado essencialmente pela linguag<strong>em</strong>. Porém, o<br />
discurso não é classificado como jurídico apenas por tratar de questões referentes à esfera<br />
jurídica.<br />
Importante dizer que este tipo de discurso ultrapassa o campo normativo, pois, além de<br />
referenciar a lei, ele reflete o meio social. Em razão de o discurso jurídico possuir várias<br />
vertentes, Bittar (2001) o divide <strong>em</strong> quatro subgêneros, os quais sejam normativo,<br />
burocrático, decisório e científico. Cada subgênero possui uma função, que juntas formam o<br />
gênero do discurso jurídico.<br />
O discurso normativo<br />
[...] é o discurso do legislador [...], agente investido de competência e poder para a<br />
realização de uma tarefa social, a regulamentação de condutas. A prática social motiva a<br />
prática jurídica, fundamentando-a, de modo que, uma vez investido, o legislador exerce seu<br />
papel discursivo dirigindo-se à comunidade de súditos [...] (BITTAR, 2001, p. 195)<br />
Nesse sentido, o discurso normativo exerce a função de regulação das condutas sociais<br />
e, consequent<strong>em</strong>ente, apresenta-se de forma coercitiva para a sociedade.<br />
Já o discurso decisório se aproxima do meio social pela sua capacidade de<br />
transformação da realidade. Assim, pode-se afirmar que o discurso decisório [...] “é capaz de<br />
modificar a situação jurídica de um sujeito, pelo simples fato de sua enunciação com caráter<br />
de publicidade e oficialidade [...]” (Id<strong>em</strong>, p. 266). É por meio do discurso decisório, portanto,<br />
que o magistrado aplica o texto normativo, norma imposta pelo legislador, à conduta<br />
praticada pelo cidadão.<br />
Com relação ao discurso jurídico, Bittar (2001, p.177) elenca algumas características<br />
preponderantes. De acordo com o autor, discurso jurídico<br />
[...] 1) é linguag<strong>em</strong> técnica, 2) constrói-se a partir de experiências da vida ordinária, 3)<br />
ocorre interculturalmente, 4) possui ideologia, 5) exerce poder, 6) seu caráter é,<br />
normalmente, performativo, e sua apresentação se faz, fundamentalmente, por meio de<br />
pressupostos lógico-deônticos.<br />
É linguag<strong>em</strong> técnica, pois, na maioria de seus textos, utiliza expressões e significados<br />
próprios da área jurídica, isto é, assim como <strong>em</strong> outras áreas, o Direito possui uma série de<br />
conceitos que buscam explicar melhor os institutos jurídicos e que são utilizados pelo<br />
construtor da linguag<strong>em</strong>, seja ele o magistrado ao proferir sua decisão, o advogado ao<br />
elaborar a petição inicial, o doutrinador ao dispor sobre determinado assunto, muitas vezes, de<br />
337
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
forma indistinta. É nesse momento que surge o probl<strong>em</strong>a, pois não são todas as pessoas que<br />
t<strong>em</strong> acesso a esses conceitos e acabam ficando fora do contrato de comunicação.<br />
O discurso jurídico constrói-se a partir de acontecimentos cotidianos, ou seja, qu<strong>em</strong><br />
escreve terá s<strong>em</strong>pre como base uma situação da vida <strong>em</strong> sociedade. Na maioria das vezes,<br />
esse discurso surge de um probl<strong>em</strong>a, quando, por ex<strong>em</strong>plo, o magistrado deve pronunciar-se a<br />
respeito da posse de determinado terreno. É uma “experiência da vida ordinária”, como disse<br />
Bittar (2001, p.177), e, ao mesmo t<strong>em</strong>po uma controvérsia que surgiu entre duas pessoas.<br />
Nesse cenário, o magistrado irá construir um discurso jurídico a fim de solucionar a contenda.<br />
Ele também ocorre interculturalmente e possui ideologia. Isso se explica pelo fato de o<br />
discurso jurídico vincular juridicamente diferentes culturas <strong>em</strong> diferentes contextos históricos,<br />
ou seja, deve o discurso jurídico preocupar-se, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> uma argumentação que tenha<br />
uma universalidade cultural, que, segundo Moreira (2002, p. 43), “represente os interesses<br />
dessa e daquela cultura, uma vez que sua legitimidade decorre de argumentos que sejam<br />
invariavelmente válidos <strong>em</strong> todas as culturas.”<br />
Já com relação à ideologia, segundo a concepção dos materialistas históricos – também<br />
chamados de marxistas –, representa um conjunto de idéias, sist<strong>em</strong>a de normas caracterizado<br />
pela aparência de universalidade, abstração, neutralidade e independência. Na perspectiva do<br />
materialismo, a ideologia é uma produção intelectual implicada na relação da luta de classes e<br />
funciona como instrumento de legitimação de um modelo de dominação política. Sobre esse<br />
assunto, escreveu Chauí, <strong>em</strong> seu texto “O que é ideologia?” (1980, p. 5), que “[...] um dos<br />
traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, <strong>em</strong> tomar as idéias como<br />
independentes da realidade histórica e social, de modo a fazer com que tais idéias expliqu<strong>em</strong><br />
aquela realidade.”<br />
Isso, no Direito, é muito visto quando se fala na legitimação da ord<strong>em</strong> jurídica e t<strong>em</strong><br />
inclusive relação com a quinta característica do discurso jurídico evidenciada por Bittar, o<br />
poder. A ideologia no discurso jurídico se parece com um pensamento que se apresenta como<br />
verdade, algo neutro que expressa a universalidade. Representa a interpretação da realidade<br />
como se fosse descolada das classes sociais, d<strong>em</strong>onstrando uma relação também como o<br />
caráter intercultural desse discurso. Como algo que generaliza, atinge um grande número de<br />
cidadãos, evidenciando o poder gerado por ela e a legitimidade concorrente, uma vez que o<br />
poder aqui tratado é conferido ao discurso jurídico a partir da legitimação dessas pessoas.<br />
Por último, o discurso jurídico possui caráter, normalmente, performativo, isto é, ele só<br />
se perfaz e possui validade caso haja a composição <strong>em</strong> um documento escrito de<br />
acontecimentos do Direito, tais como test<strong>em</strong>unhos no tribunal, juramento, acusação, dentre<br />
outros. Sua apresentação acontece, fundamentalmente, por meio de pressupostos lógicodeônticos.<br />
Isso significa que a seara jurídica agrega uma série de valores e de princípios,<br />
sejam eles morais ou do Direito; proibições e obrigações. Esses pressupostos lógico-deônticos<br />
inser<strong>em</strong> o caráter de imperatividade às normas, direciona o que se deve ou não fazer,<br />
baseando-se nessas características acima relatadas.<br />
2.2) O contrato de comunicação<br />
Para melhor compreender o Contrato de Comunicação, é necessário que se alcance,<br />
primeiramente, o significado de comunicação. Comunicar, segundo Charaudeau e<br />
338
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Maingueneau (2004, p. 132), “[...] é conquistar o direito à palavra, tendo <strong>em</strong> conta as<br />
restrições do mercado social da linguag<strong>em</strong> para a atualização do discurso”. Com base nesse<br />
conceito, entende-se como comunicação o ato de se expressar socialmente, s<strong>em</strong>pre<br />
observando os limites do “mercado social da linguag<strong>em</strong>” – ambiente <strong>em</strong> que se insere o<br />
indivíduo que se comunica – para essa comunicação, isto é, se não for<strong>em</strong> observadas as<br />
restrições e a linguag<strong>em</strong> for feita de qualquer maneira, corre-se o risco de não se alcançar o<br />
objetivo da comunicação.<br />
O ato de comunicar é tentar estabelecer uma ponte entre os sujeitos do discurso. Antes<br />
de prosseguirmos, é essencial que se estabeleça o conceito desses sujeitos, que estão presentes<br />
<strong>em</strong> todos os processos de comunicação. Para Charaudeau (2006, p. 45), o eu é o sujeito que<br />
constrói o ato de linguag<strong>em</strong> e o tu aquele que recebe esse ato e que cria, a partir desse<br />
recebimento, uma interpretação de acordo com o seu ponto de vista sobre as condições do<br />
discurso. Dentro dessa classificação, o autor ainda traz uma subclassificação, qual seja a<br />
divisão do eu – comunicante e enunciador – e do tu – interpretante e receptor.<br />
À luz disso, deve-se mencionar que o eu-comunicante e o tu-interpretante são pessoas<br />
reais, enquanto o eu-enunciador e o tu-destinatário são projeções inseridas no contexto da<br />
comunicação. Aqueles são reais, pois se inser<strong>em</strong> <strong>em</strong> um contexto real, <strong>em</strong> que o eucomunicante<br />
representa o ser que produz a fala, pronunciando-se por meio dela características<br />
pessoais, ideologias, segmento social, a classe representada por esse sujeito dentro do<br />
universo histórico-social <strong>em</strong> que está envolvido, dentre outras. Já o tu-interpretante é um ser<br />
que faz a depreensão da intenção do EU com base <strong>em</strong> uma determinada realidade, como uma<br />
forma de tradução. Com relação ao eu-enunciador, ele é o sujeito que se manifesta, enuncia a<br />
fala, e o tu-destinatário é o ser imaginado pelo EU, aquele que s<strong>em</strong>pre existirá, mesmo que<br />
entre esses sujeitos não haja uma comunicação direta. (ANDRADE, 2007).<br />
Trata-se de um processo comunicacional <strong>em</strong> que dois ou mais sujeitos, por meio de um<br />
acordo ou contrato, consegu<strong>em</strong> estabelecer a comunicação. E esse processo comunicacional<br />
não é tão simples quando parece ser. Comunicar é se expressar, considerando que os sujeitos<br />
do contrato nunca estão sós nesse processo, pois os entornos comunicacionais (identidade dos<br />
parceiros, finalidade do ato, contexto histórico-social, reconhecimento dos papéis discursivos,<br />
entre outros) são tão importantes quando os protagonistas do discurso.<br />
Além disso, há alguns requisitos estabelecidos por Andrade (2007, p.89) para que uma<br />
boa comunicação se efetive. De acordo com a autora, o processo comunicacional<br />
[...] envolve um <strong>em</strong>issor e um receptor que se desdobram <strong>em</strong> dois cada um (eu –<br />
comunicante e enunciador – e tu – interpretante e destinatário), uma mensag<strong>em</strong> que se quer<br />
efetivamente comunicar, um contexto de comunicação (que envolve aspectos sociais,<br />
políticos, ideológicos, históricos, etc.), um canal (falado, pictórico ou escrito) e um código<br />
(língua).<br />
Sobre esse ponto, é fundamental afirmar que as palavras <strong>em</strong> um contrato de<br />
comunicação precisam ser ponderadas e reguladas, principalmente na área do Direito. Isso<br />
porque, muitas vezes, a depender do modo que se expressa ou as palavras que utiliza, a<br />
intenção do Eu-comunicante <strong>em</strong> seu discurso não é alcançada, tendo <strong>em</strong> vista que o Tuinterpretante<br />
não conhece essas palavras utilizadas por ele, por isso a tentativa de<br />
comunicação fica prejudicada.<br />
Para comprovar isso, basta pensar <strong>em</strong> um advogado que é interrogado por seu cliente –<br />
indivíduo leigo juridicamente – sobre determinada contenda e ele, ao responder as perguntas<br />
339
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
dessa pessoa, utiliza-se apenas de vocabulário técnico da sua área, com termos jurídicos e <strong>em</strong><br />
latim, por ex<strong>em</strong>plo. Nessa situação, verifica-se que o fim da comunicação não foi alcançado,<br />
tendo <strong>em</strong> vista que o cliente era uma pessoa leiga na área do Direito e desconhecia os termos<br />
nos quais se basearam a argumentação do advogado, ficando o tu-interpretante s<strong>em</strong> entender o<br />
que o eu – comunicante gostaria de comunicar.<br />
Nesse sentido, para uma boa comunicação, os sujeitos estabelec<strong>em</strong> acordos, contratos,<br />
os quais pressupõ<strong>em</strong> a idéia de um pacto entre duas ou mais pessoas, que se obrigam a<br />
cumprir o que foi entre elas combinado com base <strong>em</strong> liberdades e determinadas condições,<br />
restrições. Assim, t<strong>em</strong>-se que essas restrições e liberdades pod<strong>em</strong> ser da própria língua ou do<br />
comportamento lingüístico, neste sentido afirma Oliveira (2003, p. 33),<br />
Não pod<strong>em</strong>os, por ex<strong>em</strong>plo, usar o pronome de primeira pessoa com o verbo na terceira,<br />
porque o sist<strong>em</strong>a da língua não o permite, logo a língua t<strong>em</strong> suas restrições, mas pod<strong>em</strong>os<br />
escolher entre duas ou mais formas de estruturar a frase (escolhas sintáticas) [...] Da mesma<br />
forma, os contratos de comunicação que reg<strong>em</strong> nossa atividade lingüística permit<strong>em</strong> certos<br />
comportamentos e interditam outros. Por ex<strong>em</strong>plo, no Tribunal do Júri, a parte que não está<br />
com a palavra t<strong>em</strong> direito ao chamado “protesto” (liberdade), desde que o juiz concorde<br />
(restrição).<br />
Esse conjunto de restrições e de liberdades inerentes ao ato discursivo deixa ao eu –<br />
comunicante uma marg<strong>em</strong> de manobra, isto é, um espaço livre dentro do contrato de<br />
comunicação para que qu<strong>em</strong> fala ou escreve possa escolher suas palavras, adotar determinado<br />
comportamento <strong>em</strong> relação ao tu – interpretante, escolher a qu<strong>em</strong> se direciona o discurso, usar<br />
que variedade da língua (informal, formal, etc.).<br />
Todas essas características relativas à comunicação inser<strong>em</strong>-se no contexto do contrato.<br />
O contrato pressupõe a idéia de acordo, corresponde, segundo o Dicionário Houaiss, ao<br />
“pacto entre duas ou mais pessoas, que se obrigam a cumprir o que foi entre elas combinado<br />
sob determinadas condições”. Em outras palavras, esse contrato de comunicação é um rito<br />
sócio-discursivo que exige a dependência de códigos subentendidos, os quais se manifestam<br />
no discurso por meio de ambos os sujeitos da comunicação. Esse rito pode ser definido, da<br />
mesma forma que ocorre nos contratos jurídicos, como um conjunto de limites que codifica as<br />
práticas sócio-discursivas, que são resultantes das condições, da produção e da interpretação<br />
do ato de linguag<strong>em</strong>.<br />
Além disso, esse contrato possui alguns parâmetros principais. O primeiro deles é de<br />
nortear a conduta dos protagonistas do discurso, uma forma de orientar os sujeitos da<br />
comunicação no ato discursivo. Ainda, atua no sentido de permitir que o tu-interpretante<br />
depreenda os sentidos mínimos manifestados pelo eu-comunicante, uma vez que o contrato<br />
fixa limites ao discurso, tornando-se uma via de mão-dupla para as partes. Trata-se, então, de<br />
um processo de colaboração, <strong>em</strong> que os sujeitos se preocupam <strong>em</strong> ser<strong>em</strong> entendidos, estando<br />
atentos às restrições do ato de comunicar.<br />
3) A linguag<strong>em</strong> jurídica como forma de acesso à justiça<br />
O maior obstáculo encontrado pelo cidadão comum para entender as decisões proferidas<br />
pelo judiciário é a relação lingüística de dominação estabelecida [...] “entre aquele que detém<br />
340
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
o poder – o magistrado –, e aqueles que anseiam por justiça – as partes” (ANDRADE e<br />
BUSSINGUER, 2006, p. 23).<br />
Essa relação de dominação criada entre o magistrado e o cidadão comum pode ser<br />
evidenciada pela linguag<strong>em</strong> utilizada nas decisões judiciais, a qual contém termos técnicos<br />
referentes ao âmbito jurídico e palavras escritas na língua latina.<br />
Ao utilizar esse tipo de linguag<strong>em</strong>, o magistrado impossibilita a compreensão do<br />
cidadão comum. Entende-se por cidadão comum aquele que está fora do universo jurídico,<br />
mas que possui certo nível de escolaridade e que é capaz de compreender o que está descrito<br />
nas decisões judiciais.<br />
Entende-se que [...] o “acesso à justiça” se constitui <strong>em</strong> um fator básico para um sist<strong>em</strong>a<br />
jurídico moderno e igualitário que proporciona que os cidadãos tenham seus direitos<br />
garantidos (ANDRADE e BUSSINGUER, 2006, p. 23).<br />
Assim, o acesso à justiça r<strong>em</strong>ete à ideia de que o indivíduo, o qual buscou ao judiciário<br />
para ter seu conflito resolvido, possa ao menos entender qual foi o resultado dado, pelo<br />
magistrado, para a sua d<strong>em</strong>anda. Assim, [...] o acesso à justiça, para nós, traduz-se no acesso à<br />
ord<strong>em</strong> jurídica justa (Id<strong>em</strong>, p. 26).<br />
Neste sentido, a linguag<strong>em</strong> pode aproximar ou distanciar o cidadão – afinal linguag<strong>em</strong> é<br />
poder. Quando a linguag<strong>em</strong> jurídica se coloca a serviço do cidadão, busca-se um texto claro,<br />
objetivo, s<strong>em</strong> os rebuscamentos que marcam a distinção de poder entre qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> “direito”<br />
(curso) e qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> “direito” de fato.<br />
Um ex<strong>em</strong>plo de aproximação da Justiça do cidadão comum, por meio da linguag<strong>em</strong>,<br />
pode ser evidenciado no trecho a seguir, o qual foi extraído de uma sentença proferida pelo<br />
juiz da comarca de Conceição do Coité, Bahia.<br />
Por último, Seu Gregório, os Doutores advogados vão dizer que o Juiz decidiu “extra<br />
petita”, quer dizer, mais do que o Senhor pediu e também que a decisão não preenche os<br />
requisitos legais. Não se incomode. Na verdade, para ser mais justa, deveria também<br />
condenar na indenização por dano moral, quer dizer, a vergonha que o senhor sentiu, e no<br />
lucro cessante, quer dizer, pagar o que o Senhor deixou de ganhar. No mais, é uma sentença<br />
para ser lida e entendida por um marceneiro.<br />
Na presente sentença, o magistrado lançou mão de uma linguag<strong>em</strong> clara e que de fácil<br />
compreensão, principalmente para o cidadão que confiou ao Judiciário a resolução de seu<br />
probl<strong>em</strong>a. Apesar do uso de termos técnicos, o juiz explica os seus significados, a fim de que<br />
o cidadão seja capaz de entender o que foi dito e enxergar o Judiciário como guardião dos<br />
direitos sociais.<br />
Tal fato é uma pequena amostra de como a linguag<strong>em</strong> é um importante mecanismo de<br />
aproximação, uma vez que o magistrado, por meio de sua decisão, coloca a Justiça no mesmo<br />
patamar do cidadão, assim, d<strong>em</strong>onstra como ela está presente na sociedade para prestar<br />
serviços a todos os seus m<strong>em</strong>bros s<strong>em</strong> distinção.<br />
4) O juridiquês <strong>em</strong> sentenças<br />
A ciência do Direito s<strong>em</strong>pre esteve vinculada à figura da formalidade, seja pela<br />
burocracia de um processo, como também pelo traje e pela linguag<strong>em</strong>. Embora essa<br />
341
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
formalidade esteja tão presente no Direito, é importante destacar que “é o Ser Humano qu<strong>em</strong><br />
faz o Direito e é para ele que o Direito é feito” (CASTRO, 2008, p. 2). Dessa forma, ao<br />
analisarmos que o Direito é feito para o hom<strong>em</strong>, seja ele leigo ou não, verifica-se a<br />
importância e a responsabilidade que os operadores do direito possu<strong>em</strong> para repassar<strong>em</strong> a<br />
sociedade os seus direitos.<br />
É sabido que toda ciência, exata, humana ou bioquímica, possui uma linguag<strong>em</strong> técnica.<br />
Assim, conclui-se que o Direito agrega linguagens peculiares do seu meio, que são termos<br />
técnicos utilizados s<strong>em</strong>pre que necessários. Vale destacar que a probl<strong>em</strong>ática do juridiquês<br />
não se caracteriza pelo uso da linguag<strong>em</strong> técnica do Direito, mas, sim, pelo excesso de<br />
formalidade no meio jurídico.<br />
Esse excesso de formalidade gera prejuízo na comunicação entre as partes envolvidas<br />
no processo, pois o uso do juridiquês faz com que a linguag<strong>em</strong> não seja eficaz, já que o<br />
contrato de comunicação não foi devidamente respeitado. Segundo Andrade (2009, p. 30), o<br />
juridiquês pode de correr de duas formas: “o preciosismo <strong>em</strong>pregado na linguag<strong>em</strong> jurídica e<br />
os probl<strong>em</strong>as que rondam a construção textual na área do direito”.<br />
Como já descrito acima, o juridiquês não ocorre com a utilização dos termos técnicos<br />
que, diversas vezes, são necessários ser<strong>em</strong> <strong>em</strong>pregados. Mas sim, com o uso de palavras e<br />
expressões rebuscadas que pode se caracterizar pelo preciosismo, que, de acordo com<br />
Andrade (2009, p. 30), é “um desvio que cont<strong>em</strong>pla o uso descomedido de latinismo, de<br />
termos ou expressões arcaicas ou mesmo rebuscadas e de neologismos.”<br />
No entanto, grande parte dos profissionais do âmbito jurídico acredita que escrever b<strong>em</strong><br />
é escrever com recursos arcaicos, difíceis de compreensão. Pensamento esse equivocado, já<br />
que um bom texto não é analisado pelo grau de palavras ou de expressões latinas e<br />
rebuscadas. Ad<strong>em</strong>ais, ocorre muito, nos textos jurídicos, abreviações que a maior parte dos<br />
próprios profissionais de direito não sab<strong>em</strong> o que significa. D<strong>em</strong>onstra-se, portanto, um<br />
desrespeito à língua portuguesa e à própria sociedade.<br />
Em conformidade, o ministro Edson Vidigal do Superior Tribunal de Justiça<br />
Compara o juridiquês ao latim <strong>em</strong> missa, acobertando um mistério que amplia a distância<br />
entre a fé e o religioso; do mesmo modo, entre o cidadão e a lei. Ou seja, o uso da<br />
linguag<strong>em</strong> rebuscada, incompreensível para a maioria, seria também uma maneira de<br />
d<strong>em</strong>onstração de poder e de manutenção do monopólio do conhecimento (ALVARENGA,<br />
2005).<br />
O juridiquês traz prejuízo à comunicação, já que ele gera a quebra do contrato de<br />
comunicação, ou seja, com o excesso de formalidade, faz com que as partes do contrato de<br />
comunicação não compreendam e não se integram ao sentindo e o entendimento que é<br />
fundamental para a efetiva comunicação entre elas (ANDRADE, 2009, p. 30).<br />
Ad<strong>em</strong>ais, o operador do direito não pode, de forma alguma, esquecer-se da função<br />
social da linguag<strong>em</strong> utilizada por ele no meio jurídico, pois ele t<strong>em</strong> uma função muito mais<br />
ampla do que simplesmente produzir peça; o operador t<strong>em</strong> que se preocupar com que o<br />
destinatário consiga entender sua mensag<strong>em</strong> perante sua linguag<strong>em</strong> usada na peça<br />
(ANDRADE e BUSSINGER, 2004). No tocante a isso, Charaudeau e Maingueneau (2004, p.<br />
131) descrev<strong>em</strong> que<br />
Os discursos permit<strong>em</strong> a construção de relações sociais e realizam, assim, a função<br />
social da linguag<strong>em</strong>. As maneiras próprias de falar <strong>em</strong> um serviço, <strong>em</strong> um ateliê, <strong>em</strong><br />
um depósito serv<strong>em</strong> de marcadores de identidade do grupo. Os locutores criam<br />
342
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
vocabulários específicos que lhes permit<strong>em</strong> reconhecer-se como m<strong>em</strong>bros de uma<br />
mesma coletividade.<br />
Pode-se constatar que o operador do direito deve considerar e se responsabilizar pela<br />
função social da linguag<strong>em</strong> usada <strong>em</strong> sua área de atuação. Desse modo, o magistrado, por<br />
ex<strong>em</strong>plo, deve utilizar uma linguag<strong>em</strong> formal com o uso até mesmo de palavras técnicas <strong>em</strong><br />
suas sentenças, mas acessível para as partes envolvidas. A linguag<strong>em</strong> jurídica usada pelo<br />
operador quando b<strong>em</strong> <strong>em</strong>pregada gera o acesso à justiça. Uma linguag<strong>em</strong> clara, por ex<strong>em</strong>plo,<br />
é mais compreensível do que a linguag<strong>em</strong> formal e, se contiver significados básicos de<br />
palavras técnicas transmitirá a mensag<strong>em</strong> de forma ainda mais eficaz.<br />
O acesso à justiça é composto por diversas estratégias, como, por ex<strong>em</strong>plo,<br />
disponibilidade de defensores públicos para atender<strong>em</strong> pessoas que não possu<strong>em</strong> renda para<br />
pagar um advogado. No entanto, não basta conceder meios para que a população consiga<br />
chegar ao Judiciário. Além de acessar o Judiciário, a sociedade precisa entender a mensag<strong>em</strong><br />
dirigida a ela por meio do operador de direito.<br />
Nota-se a importância que a linguag<strong>em</strong> possui para as sentenças, visto que é por meio<br />
dela que o magistrado transmitirá a resolução do conflito para as partes envolvidas no<br />
processo.<br />
Voltando à questão do juridiquês, vale descrever que o probl<strong>em</strong>a do juridiquês não se<br />
encontra apenas <strong>em</strong> palavras e expressões rebuscadas utilizadas no meio jurídico. Muitas<br />
vezes, magistrados criam códigos entendidos apenas por eles, como, por ex<strong>em</strong>plo,<br />
abreviações, que acarretam prejuízos no entendimento da mensag<strong>em</strong> proferidos pelos juízes<br />
(ANDRADE, 2009, p. 31).<br />
No que tange ao juridiquês na produção textual, refere-se a textos extensos e de leitura<br />
truncada. Ao levar <strong>em</strong> conta a formalidade que o Direito tanto preza, os textos, como<br />
sentenças, <strong>em</strong> regra, são extensas e difíceis de ser<strong>em</strong> compreendidos (ANDRADE, 2009, p.<br />
34). Segundo Andrade (2009, p. 34),<br />
Este é um dos grandes probl<strong>em</strong>as do texto jurídico – a falta de objetividade. Há um<br />
equívoco diss<strong>em</strong>inado no meio jurídico de que é preciso falar muito, citar muito para ser<br />
um bom texto. Isso transgride as normas de conduta de um bom texto, primeiro porque não<br />
pelo muito falar que um texto será bom – a qualidade de um texto está no desenvolvimento<br />
de habilidades textuais –; segundo porque o fato de citar não garante cientificidade, n<strong>em</strong><br />
qualidade textual.<br />
Compreende, contudo, que o juridiquês está presente não só pelas palavras e expressões<br />
rebuscadas, mas também pela má produção textual, como, por ex<strong>em</strong>plo, citações s<strong>em</strong> relação<br />
com o texto e s<strong>em</strong> comentário sobre o que foi citado e que traz prejuízos para a comunicação<br />
textual. Assim, numa sentença <strong>em</strong> que o magistrado utiliza o juridiquês gerará quebra de<br />
comunicação e lesionará o entendimento das partes <strong>em</strong> sua decisão.<br />
Portanto, é válido afirmar que o magistrado, ao prolatar uma sentença, deve preocuparse<br />
com o <strong>em</strong>prego do juridiquês, para que não ocorram danos para as pessoas envolvidas, já<br />
que é direito delas ter<strong>em</strong> o devido acesso à justiça, ou seja, não apenas conseguir acesso ao<br />
Judiciário e sim, ter acesso também aos seus direitos e deveres.<br />
343
5) A <strong>análise</strong> do discurso so magistrado nas sentenças<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Para se realizar a <strong>análise</strong> do juridiquês no discurso jurídico, optou-se por analisar o<br />
discurso proferido pelos magistrados. Neste sentido, este trabalho utilizou 10 (dez) sentenças<br />
jurídicas da área trabalhista, que foram escolhidas através do método aleatório não<br />
probabilístico.<br />
O resultado desta pesquisa foi preocupante, já que das 10 (dez) sentenças avaliadas, <strong>em</strong><br />
8 (oito) sentenças, foi encontro o <strong>em</strong>prego do juridiquês. Além disso, é importante destacar<br />
que as sentenças referidas acima foram proferidas <strong>em</strong> juízo trabalhista, local por onde passam,<br />
na maioria das vezes, inúmeros trabalhadores das diversas classes trabalhistas, que n<strong>em</strong><br />
s<strong>em</strong>pre são instruídos ou t<strong>em</strong> uma base jurídica a respeito do Direito. Para ilustrar o excesso<br />
de formalidade encontrado nessa pesquisa, pode-se ex<strong>em</strong>plificar o vocábulo “exordial” para<br />
se referir à peça <strong>em</strong> que se inicia uma ação, sendo que o próprio art. 282 do Código de<br />
Processo Civil se refere a essa peça como “petição inicial”.<br />
Desse modo, pode-se constatar que o discurso do magistrado nas sentenças estudadas<br />
foi, <strong>em</strong> regra, mal utilizado, já que foi encontrado desvio da linguag<strong>em</strong> jurídica – juridiquês.<br />
Esse desvio da linguag<strong>em</strong> traz consequências graves, como o não acesso das partes do<br />
processo dos seus direitos. No discurso jurídico, principalmente, o discurso dos magistrados<br />
t<strong>em</strong> se verificado um discurso incoerente, já que a linguag<strong>em</strong> agregada pelos juízos gera um<br />
divisor entre eles e as partes.<br />
Além disso, segundo Andrade e Bussinger (2001, p. 18), “os magistrados vê<strong>em</strong> uma<br />
relação profunda entre linguag<strong>em</strong> e acesso à justiça, reconhecendo inclusive a importância da<br />
linguag<strong>em</strong> que eles mesmos utilizam”. Essa importância se deve ao fato de a linguag<strong>em</strong> ser o<br />
meio utilizado pelo magistrado para repassar o conhecimento do processo e o direito e<br />
deveres das partes. Com o mau uso da linguag<strong>em</strong> jurídica, o juiz pode interferir no devido<br />
acesso à justiça.<br />
No entanto, é válido ressaltar que, apesar de 80% (oitenta por cento) das sentenças<br />
analisadas apresentar<strong>em</strong> o uso do juridiquês, não se pode esquecer de nomear as sentenças<br />
que estão <strong>em</strong> conformidade com a linguag<strong>em</strong> técnica, s<strong>em</strong> o excesso de formalidade.<br />
Assim, pode-se verificar um período de transição, <strong>em</strong> que os magistrados, mesmo não<br />
sendo <strong>em</strong> maioria, estão preocupados com a linguag<strong>em</strong> usada <strong>em</strong> suas sentenças. Para melhor<br />
ilustrar, pode-se constatar a decisão proferida pelo juiz:<br />
1.1. Do Estado de Revelia da 1ª Ré e de seus Efeitos. A revelia representa a falta de<br />
resposta ou a falta de resposta válida da parte passiva, <strong>em</strong>bora devidamente citada. (1ª Vara<br />
do Trabalho. Proc. n. 0039700-35.2010.5.17.0001).<br />
Portanto, percebe-se que houve uma preocupação do juiz <strong>em</strong> mostrar a qu<strong>em</strong> lê a<br />
sentença, o que significa o termo “revelia”, que, para um cidadão comum, alheio à área<br />
jurídica, pode parecer ininteligível, obscuro, confuso. Outro ex<strong>em</strong>plo de preocupação do<br />
magistrado ao proferir texto decisório (sentença) é quando ele descreve o significado da sigla<br />
CIPA (Comissão Interno de Prevenção de Acidentes) caso as partes não saibam ou não<br />
conheçam a sigla. Para que, assim, os sujeitos do processo tenham, de fato, um entendimento<br />
do que está sendo exposto na sentença.<br />
344
6) Algumas estratégias para a simplificação da linguag<strong>em</strong><br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O discurso jurídico, principalmente o do magistrado, é aquele que mais se conecta com<br />
o cidadão comum, e deve ser elaborado com muita cautela. Isso porque existe a necessidade<br />
de fazer com que esse cidadão compreenda a sentença proferida e, por meio dela, possa<br />
entender quais são seus reais direitos ou suas devidas obrigações, se for o caso de devedor de<br />
alimentos, por ex<strong>em</strong>plo.<br />
Nesse sentido, há alguns el<strong>em</strong>entos, na linguag<strong>em</strong> jurídica, muito comuns entre os<br />
profissionais da área do Direito, que, às vezes, funcionam como um clichê. Expressões como<br />
“pólo passivo da d<strong>em</strong>anda”, <strong>em</strong> uma primeira leitura, pode ser facilmente entendida pelos<br />
operadores da linguag<strong>em</strong> jurídica, tendo <strong>em</strong> vista que se trata de uma expressão<br />
absolutamente normal para esse grupo de pessoas e r<strong>em</strong>ete à idéia do conceito da parte no<br />
processo que é d<strong>em</strong>andada.<br />
Entretanto, não é s<strong>em</strong>pre que se pode afirmar ser<strong>em</strong> tais expressões inteligíveis. Essa<br />
afirmação decorre do fato de que não são todas as pessoas que lidam com o vocabulário<br />
jurídico, com a prática jurídica. Em razão disso, quando se quer realizar a comunicação entre<br />
advogado e cliente, juiz, autor e réu, por ex<strong>em</strong>plo, o ideal é que se tent<strong>em</strong> evitar os jargões<br />
jurídicos, expressões <strong>em</strong> latim, linguajar pomposo, rebuscamento inútil, expressões<br />
incompreensíveis e exageros verbais que dificult<strong>em</strong> a compreensão do ato comunicativo pelo<br />
cidadão comum.<br />
É essa a proposta do Projeto de Lei 7448/06, da deputada Maria do Rosário (PT-RS),<br />
que facilita a compreensão da linguag<strong>em</strong> utilizada nas sentenças judiciais. O projeto prevê a<br />
elaboração, por parte do juiz, de duas versões de sentença: uma destinada aos leigos, com<br />
linguag<strong>em</strong> coloquial e outra com linguag<strong>em</strong> especializada do Direito, porém mais acessível.<br />
Essa é uma proposta que atua como uma forma de estratégia para a simplificação da<br />
linguag<strong>em</strong>, já que não existe na legislação atual nenhum outro procedimento que auxilie o<br />
leigo na compreensão da sentença do processo no qual é parte.<br />
Posteriormente à proposição do Projeto de Lei 7448/06, foi proposto pelo deputado José<br />
Genuíno (PT-SP) uma modificação ao mesmo projeto, criando-se, assim, um projeto<br />
substitutivo, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça. Por meio desse substitutivo<br />
aprovado, os magistrados não serão obrigados a produzir duas sentenças, mas, ao contrário,<br />
deverão redigir apenas uma, de forma inteligível e com linguag<strong>em</strong> coloquial. Além disso, a<br />
nova proposta prevê a desnecessidade de se enviar à parte interessada a sentença.<br />
É importante que se comente a importância de haver projeto legislativo neste sentido,<br />
uma vez que se o juiz é incapaz de perceber a necessidade de linguag<strong>em</strong> acessível, proferindo<br />
sentenças que valorizam o juridiquês, há outros setores que perceb<strong>em</strong> a importância da<br />
linguag<strong>em</strong> jurídica no cenário.<br />
Para a construção de uma linguag<strong>em</strong> efetivamente acessível ao cidadão que busca seus<br />
direitos, é essencial que os magistrados observ<strong>em</strong> algumas sugestões de construção textual. A<br />
primeira delas é tentar s<strong>em</strong>pre evitar o latinismo. Isso decorre do fato de que a grande maioria<br />
dos interessados nos textos decisórios não t<strong>em</strong> o latim como uma linguag<strong>em</strong> inteligível.<br />
Além disso, é necessário que as sentenças possuam clareza, objetividade e concisão,<br />
fatores que colaboram bastante para o melhor entendimento do que se pretende comunicar.<br />
Outra idéia interessante é o uso de aposto, que vai se juntar a um termo de valor substantivo<br />
ou pronominal extr<strong>em</strong>amente técnico para explicá-lo ou especificá-lo melhor.<br />
345
7) Considerações Finais<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A distância imposta entre o judiciário e o cidadão comum é um obstáculo ao pleno<br />
acesso à justiça e principalmente aos seus direitos. Essa distância se perfaz por meio da<br />
linguag<strong>em</strong>, a qual impede que o magistrado transmita sua ideia e produza, assim, a decisão do<br />
litígio levado ao judiciário.<br />
É inegável a necessidade de simplificação da linguag<strong>em</strong> como uma estratégia de<br />
aproximação do cidadão comum ao universo jurídico. Tal simplificação já é <strong>em</strong>pregada por<br />
alguns juristas trabalhistas, como pode ser verificado no resultado da <strong>análise</strong> de nove<br />
sentenças trabalhistas, as quais continham explicações de determinadas expressões técnicas e<br />
latinas e, <strong>em</strong> boa parte das decisões, o uso de expressões latinas era ínfimo, o que não<br />
comprometia o entendimento da ideia transmitida.<br />
Porém, a situação narrada não é a realidade encontrada, uma vez que a maior parte dos<br />
juristas é tradicionalista e faz o uso exacerbado de expressões latinas e técnicas, o que torna o<br />
texto truncado e de difícil entendimento.<br />
Dessa forma, é preciso conscientizar os profissionais do Direito e principalmente os<br />
estudantes de que o uso exacerbado de expressões técnicas e latinas torna o texto jurídico<br />
inacessível e incompreensível pelos maiores interessados, que são os cidadãos que recorr<strong>em</strong> à<br />
Justiça <strong>em</strong> busca do seu direito lesado. É importante que os magistrados não se esqueçam de<br />
que as suas decisões são para o próprio cidadão e imprescindível que ele consiga entender o<br />
resultado da decisão por meio da leitura da própria decisão.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ANDRADE, Valdeciliana da Silva Ramos; BUSSINGER, Marcela de Azevedo. A linguag<strong>em</strong> jurídica<br />
como estratégia de acesso à justiça: uma <strong>análise</strong> do processo de interação lingüística entre o<br />
magistrado e as partes. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 1, set. 2006, p. 22-45. Disponível <strong>em</strong>:<br />
. Acesso <strong>em</strong>: 28 nov. 2010.<br />
ANDRADE, Valdeciliana da Silva Ramos. A construção da causalidade na vertente dos gêneros<br />
textuais: uma <strong>análise</strong> da argumentação jurídica. 2007. 351 f. Tese (Doutorado <strong>em</strong> Língua Portuguesa)<br />
– Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007. Disponível <strong>em</strong><br />
. Acesso <strong>em</strong>: 26 jul. 2010.<br />
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001.<br />
CHARAUDEAU, Patrick. O ato de linguag<strong>em</strong> como encenação. In: ______. Langage et discours:<br />
el<strong>em</strong>ents de s<strong>em</strong>iolinguistique. Paris: Hachette, 1983. (fotocópia de texto traduzido).<br />
______. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.<br />
346
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENAU, Dominique. Dicionário de <strong>análise</strong> do discurso.<br />
Coordenação da tradução: Fabiana. São Paulo: Contexto, 2004.<br />
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? Revisor: José E. Andrade. Publicada <strong>em</strong> 1980. Digitalizada <strong>em</strong><br />
2004. http://www.scribd.com/doc/12876624/Colecao-Primeiros-Passos-O-Que-e-IdeologiaMarilena-<br />
Chaui<br />
MOREIRA, Luiz. Direitos Humanos: a proposta transcendental de Otfried Höffe. Síntese, Revista de<br />
Filosofia. Belo Horizonte, v. 29, n. 93, 2002. (artigo)<br />
http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/viewFile/536/959<br />
OLIVEIRA, Ieda de. O contrato de comunicação da literatura infantil e juvenil. Rio de Janeiro:<br />
Lucerna, 2003.<br />
347
A TEORIA DA RELEVÂNCIA NO DISCURSO JURÍDICO 1<br />
Géssica de Oliveira Silva (FDV)<br />
Isabelle Rangel da Costa (FDV)<br />
Mariana Silva Oliveira (FDV)<br />
Valdeciliana da Silva Ramos Andrade (FDV)<br />
RESUMO: Para realizar o presente estudo, parte-se do pressuposto de que a linguag<strong>em</strong> deve ser clara, objetiva,<br />
s<strong>em</strong> ambiguidade, breve, ordenada, s<strong>em</strong> obscuridade e acessível ao público a que se destina, mesmo quando se<br />
tratam de textos técnicos científicos, conforme o princípio da cooperação. Diante disso, vê-se que, na esfera<br />
jurídica, há textos que produz<strong>em</strong> um abismo entre o produtor e o receptor, o que resulta <strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as para a<br />
compreensão e interpretação textual. Dessa forma, cabe analisar a Teoria da Relevância, que põe <strong>em</strong> evidência<br />
aquilo que as pessoas observam, por considerar relevante. Nesse sentido, este estudo t<strong>em</strong> como objetivo analisar,<br />
por meio de pesquisa documental, a linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong>pregada no discurso jurídico presente nos textos científicos de<br />
Direito Penal, <strong>em</strong> livros de três autores diferentes, visto que os manuais científicos abordam um mesmo assunto<br />
de formas distintas e, muitas vezes, confusas. Além disso, muitos textos jurídicos apresentam citações<br />
exacerbadas, ex<strong>em</strong>plos repetitivos, frases extr<strong>em</strong>amente longas, notas de rodapé extensas e confusas, e até<br />
mesmo uma certa poetização do assunto tratado. Assim, para desenvolver este estudo, recorreu-se ao método de<br />
abordag<strong>em</strong> hipotético dedutivo, assim como a uma pesquisa bibliográfica, centrada nos pressupostos teóricos de<br />
Sperber e Wilson (1995, 2005), Silveira e Feltes (1997). Tais textos tratam da <strong>teoria</strong> da relevância, além do<br />
suporte teórico de gêneros textuais no discurso jurídico, centrado na tese de doutorado de Andrade (2007). Vale<br />
esclarecer ainda que, para Grice (1975), exist<strong>em</strong> máximas básicas da conversação, dentre elas a da relevância.<br />
1) Introdução<br />
Entender o que o outro quis dizer é s<strong>em</strong>pre uma aventura. A arte de compreender o<br />
outro e depreender os sentidos apresentados <strong>em</strong> um diálogo informal, <strong>em</strong> um telejornal, ou<br />
mesmo <strong>em</strong> uma palestra científica é um terreno árido – mesmo quando se t<strong>em</strong> o outro ali,<br />
“quase que presencial”. Imagine, então, o deserto que é caminhar pelas trilhas do texto<br />
escrito, ainda mais quando se trata de áreas específicas da sociedade. Este é o nosso desafio<br />
<strong>em</strong> trabalhar com o discurso jurídico.<br />
Esse domínio discursivo é pautado essencialmente na linguag<strong>em</strong>. No entanto, não raro,<br />
vê-se que os atores deste ambiente encobr<strong>em</strong> suas intenções ou não são muito felizes <strong>em</strong><br />
expressar suas ideias. Por isso, é necessário que nos debruc<strong>em</strong>os sobre esse discurso para<br />
verificar como têm sido produzidos os estímulos para a produção textual e averiguar quais os<br />
probl<strong>em</strong>as que prejudicam ou desestimulam a leitura.<br />
Para tratar acerca disso, recorr<strong>em</strong>os à Teoria da Relevância, objeto deste estudo, uma<br />
vez que visa apresentar um discurso compreensível entre o enunciador e o receptor, pondo <strong>em</strong><br />
evidência aquilo que as pessoas observam por considerar relevante. Na verdade, a relevância<br />
parte do princípio de que a maior quantidade de estímulos linguísticos que produz<strong>em</strong> efeitos<br />
cognitivos desperta maior atenção no leitor, o que, por sua vez, dispensa menos energia para a<br />
compreensão.<br />
1 Este artigo é resultado do Núcleo de Estudos de <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> Jurídica – MELJ. O artigo foi orientado pela Profa.<br />
Dra. Valdeciliana da Silva Ramos Andrade.<br />
348
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Para desenvolver este estudo, restringir-nos-<strong>em</strong>os ao gênero técnico-científico, uma vez<br />
que o discurso jurídico se materializa <strong>em</strong> vários gêneros distintos (decisório, processual,<br />
opinativo, normativo, técnico-científico – Andrade, 2007). Tal escolha se deu porque, no<br />
âmbito jurídico, há vários manuais científicos que abordam um mesmo assunto de formas<br />
distintas. Devido a isso, para sermos precisos, procedeu-se uma escolha aleatória de três obras<br />
da área do Direito Penal, Bitencourt (2004), Greco (2010) e Hungria (1983). Para<br />
delimitarmos melhor o objeto de <strong>análise</strong>, selecionamos um capítulo que é comum nessas<br />
obras – a parte dos crimes sexuais. A seleção desse corpus para <strong>análise</strong> se deve ao fato de<br />
tentar mostrar, <strong>em</strong>piricamente, como a linguag<strong>em</strong> técnico-científica no Direito se comporta e<br />
constatar os probl<strong>em</strong>as referentes à linguag<strong>em</strong> utilizada no que toca aos estímulos<br />
interpretativos.<br />
Assim, parte-se do método hipotético dedutivo, como método de abordag<strong>em</strong>, visto que<br />
partimos de uma lacuna, qual seja: os textos científicos, na área do Direito, não produz<strong>em</strong><br />
estímulos necessários para a leitura e para a fixação de conteúdos relevantes. Além disso,<br />
recorr<strong>em</strong>os à pesquisa bibliográfica e à pesquisa documental, visto que usamos as obras de<br />
Direito Penal como documentos para a <strong>análise</strong> da linguag<strong>em</strong> científica. Com relação às bases<br />
teóricas, utilizamos, num primeiro momento, para tratar do processo de interação<br />
comunicativa, as máximas conversacionais de Grice; num segundo momento, centramo-nos<br />
nos pressupostos da Teoria da Relevância, desenvolvida por Dan Sperber e Deirdre Wilson<br />
(1995, 2005), além da obra de Silveira e Feltes (1997).<br />
A fim de apresentar este estudo de forma mais didática, a divisão do trabalho foi feita,<br />
<strong>em</strong> princípio, abordando as questões teóricas sobre o processo de interação discursiva com<br />
ênfase nas máximas conversacionais e no princípio de cooperação; após, tratou-se da Teoria<br />
da Relevância e da aplicação desta ao discurso jurídico. Em seguida, partiu-se para <strong>análise</strong> do<br />
corpus, destacando, dentre os el<strong>em</strong>entos que pod<strong>em</strong> oferecer um estímulo para a atenção do<br />
leitor quatro aspectos, a saber: a extensão dos parágrafos ou mesmo de frases; a estrutura<br />
metafórica; o <strong>em</strong>prego de citação e a existência de nota de rodapé.<br />
Estudar o universo discursivo forense é trilhar um caminho árduo, especialmente,<br />
quando se trata de textos científicos e de autores consagrados. O propósito deste estudo é tão<br />
somente propor um repensar acerca dos textos que são apresentados à comunidade acadêmica.<br />
Eis o nosso desafio!<br />
2) O processo de interação discursiva<br />
Debruçar sobre a linguag<strong>em</strong> é um desafio, pois este é um terreno árido, <strong>em</strong> que não há<br />
muitas certezas. Apesar disso, a linguag<strong>em</strong> permite que os seres humanos se comuniqu<strong>em</strong> e<br />
cri<strong>em</strong> entre si redes de interação nas quais se constro<strong>em</strong> vínculos sociais, afetivos e, até<br />
mesmo, jurídicos.<br />
Embora as redes de interação perpass<strong>em</strong> toda a sociedade, o processo comunicativo não<br />
é algo tão simples como às vezes se pensa. A comunicação efetiva ultrapassa a mera noção de<br />
codificação e decodificação de signos. O processo interpretativo d<strong>em</strong>anda a existência de<br />
inferências, pois entre o que se diz e o que se compreende há uma teia de ideias que n<strong>em</strong><br />
s<strong>em</strong>pre são nítidas.<br />
Para que haja êxito na produção de sentidos, é importante que os sujeitos do discurso –<br />
tanto qu<strong>em</strong> enuncia, como qu<strong>em</strong> recebe a enunciação – cooper<strong>em</strong> para que exista<br />
349
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
comunicação, isto é, os sujeitos do discurso são co-participantes do processo de comunicação.<br />
Caso algum desses sujeitos se negue a ser cooperador, há um vácuo que irá produzir falhas no<br />
que se está comunicando, visto que o processo de compreensão de um texto requer esforço de<br />
ambas as partes, não só para depreender o que está posto, mas também para identificar o que<br />
está implícito – o que se pode inferir de dada situação ou de dado discurso.<br />
A partir dessa concepção de que o texto ultrapassa a mera codificação, Grice (1975)<br />
estabelece que as interações comunicativas verbais estão vinculadas a uma espécie de acordo<br />
de cooperação. Assim, ele concebeu o Princípio de Cooperação, o qual é pautado por<br />
máximas conversacionais que permit<strong>em</strong> vislumbrar, com maior clareza, o processo de<br />
comunicação. Deste modo, as máximas são balizas para nortear a relação entre os sujeitos da<br />
enunciação. Vejamos, pois, estas máximas:<br />
Máxima da quantidade. R<strong>em</strong>ete à quantidade de informação que deve ser veiculada <strong>em</strong><br />
uma enunciação: torne sua mensag<strong>em</strong> tão informativa quanto ela for necessária para a<br />
conversação; não dê mais informação que o necessário.<br />
Máxima da qualidade. Refere-se à veracidade do que é dito: não afirme algo para o qual<br />
não há evidência adequada; não afirme o que você crê ser falso.<br />
Máxima da relevância. Trata da pertinência da mensag<strong>em</strong>: seja relevante.<br />
Máxima do modo/ maneira. Está ligado ao processo textual <strong>em</strong> si – evite obscuridade de<br />
expressão; evite ambiguidade; seja breve (evite prolixidade); seja ordenado.<br />
Quanto a isso, observ<strong>em</strong>os o trecho “N<strong>em</strong> é de confundir a efetiva resistência com a<br />
instintiva ou convencional relutância ao pudor, ou com o jogo de simulada esquivança ante<br />
uma vis grata, como o daquelas ninfas de que nos fala Camões” (Camões apud Hungria, 1983,<br />
p.108).<br />
Diante do ex<strong>em</strong>plo dado, vamos averiguar máximas conversacionais. Portanto, o leitor,<br />
ao ler Hungria, deve estar ciente de que a linguag<strong>em</strong> é mais erudita. Tal compreensão infere<br />
que o leitor se mostra disposto a compreender o que o autor disse. Assim, vê-se que o autor<br />
estabelece um paralelo entre “efetiva resistência”, “instintiva ou convencional relutância ao<br />
pudor” e “o jogo de simulada esquivança ante uma vis grata” – máxima da quantidade. Além<br />
disso, a máxima da qualidade é respeitada também, no entanto a máxima da relevância não o<br />
é, uma vez que o autor estabelece comparação com as “ninfas” de Camões, que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre<br />
são conhecidas de todos, o que acaba por prejudicar a compreensão e, consequent<strong>em</strong>ente, a<br />
máxima do modo, já que o autor é prolixo e obscuro ao trazer tantos paralelos.<br />
Outra circunstância pode ser vista <strong>em</strong> “A fraude grosseira t<strong>em</strong> o condão de afastar a<br />
infração penal pois a vítima não estaria se entregando enganosamente ao agente, uma vez que,<br />
como diz a parte final do art. 215 do Código Penal, a utilização desse meio não impediria ou<br />
mesmo dificultaria a sua livre manifestação de vontade” (Greco, 2010, p.498). Neste<br />
ex<strong>em</strong>plo, as máximas conversacionais também pod<strong>em</strong> ser visualizadas, tais como a da<br />
quantidade, <strong>em</strong> que o parágrafo citado apresenta apenas as informações pertinentes, o que<br />
automaticamente produz efeito na máxima da qualidade. Por fim, as máximas da relevância e<br />
do modo manifestam-se de forma que o discurso é relevante e, também, claro.<br />
3) Teoria da Relevância<br />
A partir dessa concepção de Grice (1975) que o processo de comunicação ultrapassa a<br />
simples codificação, Dan Sperber e Deirdre Wilson (1995) apresentam uma <strong>teoria</strong> de<br />
350
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
comunicação pautada no princípio de que, <strong>em</strong> geral, o ser humano presta atenção <strong>em</strong><br />
estímulos que, de algum modo, vêm ao interesse de qu<strong>em</strong> enuncia e se adéqua às<br />
circunstâncias do momento. Assim, a Teoria da Relevância traz, para o discurso, uma<br />
abordag<strong>em</strong> pragmático-cognitiva, que é, segundo os autores, indissociável da comunicação<br />
humana.<br />
À luz das concepções desta <strong>teoria</strong>, as intenções pod<strong>em</strong> estar evidentes ou<br />
discretas, mas isso é produzido de forma intencional. Por isso, as<br />
“expectativas de relevância geradas por um enunciado são precisas e<br />
previsíveis o suficiente para guiar o ouvinte ou o leitor na direção do<br />
significado do falante ou do enunciador do texto [...] (Sperber; Wilson,<br />
2005, p. 223).<br />
Neste sentido, Silveira e Feltes (2002) informam que o modelo proposto por Sperber e<br />
Wilson (2005) está centrado <strong>em</strong> duas características conjugadas e fundamentais na<br />
comunicação humana, a saber: ser ostensiva por parte do comunicador e ser inferencial por<br />
parte do ouvinte.<br />
Assim, qualquer enunciado pode ter ou não a nossa atenção. Ao se produzir um<br />
enunciado, este se torna comum tanto para o sujeito que enunciou quanto para o sujeito que<br />
recebe a enunciação. Aquele espera que sua intenção comunicativa desperte atenção deste,<br />
isto é, espera que sua comunicação seja relevante. Se isso se concretizar, qu<strong>em</strong> recebeu a<br />
enunciação fará inferências a partir do que foi enunciado, acrescidas das informações que<br />
constam <strong>em</strong> seu ambiente cognitivo, que é o conhecimento de mundo que a pessoa possui.<br />
Deste modo, Sperber e Wilson (2005, p. 223) asseguram que<br />
Relevância é uma propriedade potencial não somente de enunciados e outros<br />
fenômenos observáveis, mas de pensamentos, m<strong>em</strong>órias e conclusões de<br />
inferências. Nos termos da Teoria da Relevância, qualquer estímulo externo ou<br />
representação interna que fornece um input para processos cognitivos pode ser<br />
relevante para um indivíduo <strong>em</strong> algum momento. De acordo com a Teoria da<br />
Relevância, enunciados geram expectativas de relevância não porque falantes<br />
obedeçam a um princípio de cooperação ou a alguma outra convenção<br />
comunicativa, mas porque a busca pela relevância é uma característica básica da<br />
cognição humana, que comunicadores pod<strong>em</strong> explorar.<br />
A relevância é, então, um processo de seleção inconsciente de entrada de dados para o<br />
ambiente cognitivo. Essas entradas (inputs) pod<strong>em</strong> ser materializadas das mais diversas<br />
formas no discurso jurídico – negrito, metáfora, ex<strong>em</strong>plo, analogia, etc. Quando este input se<br />
conecta a uma informação dada (background disponível), produz conclusões que são<br />
relevantes para o interlocutor. Assim, na visão de Sperber e Wilson (2005, p. 223)<br />
[...] um input é relevante para um indivíduo quando seu processamento, <strong>em</strong> um<br />
contexto de suposições disponíveis, produz um EFEITO COGNITIVO POSITIVO.<br />
Um efeito cognitivo positivo é uma diferença vantajosa na representação de mundo<br />
do indivíduo: uma conclusão verdadeira, por ex<strong>em</strong>plo. Conclusões falsas não são<br />
posses vantajosas; elas são efeitos cognitivos, mas não são efeitos positivos.<br />
Ao se tratar de efeito cognitivo positivo, é possível pensar <strong>em</strong> efeito cognitivo negativo,<br />
que seria aquele que afasta o leitor e co-participante do processo discursivo do processo de<br />
leitura e compreensão do texto. Com efeito, textos que apresentam notas de rodapé excessivas<br />
se encontrariam neste rol, pois, <strong>em</strong> geral, as notas de rodapé extensas e excessivas acabam por<br />
351
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
afastar o leitor. Neste caso, o input não seria considerado relevante, mas estressante. E o input<br />
válido somente ocorre quando seu processamento produz efeitos cognitivos positivos.<br />
Dentre os diversos tipos de efeito cognitivo – fortalecimento, revisão ou abandono de<br />
suposições disponíveis –, o tipo de efeito cognitivo mais significativo se dá quando “o<br />
processamento de um input <strong>em</strong> um contexto é uma IMPLICAÇÃO CONTEXTUAL, uma<br />
conclusão dedutível <strong>em</strong> conjunto do input e do contexto, mas não do input n<strong>em</strong> do contexto<br />
isolados” (Sperber; Wilson, 2005, p. 223). Tais efeitos contextuais permit<strong>em</strong> que o indivíduo,<br />
num processo de interação, modifique suas concepções, suas crenças, seu comportamento.<br />
Enfim, proporcionam que haja alterações nos ambientes cognitivos que são o alicerce do<br />
processo comunicativo.<br />
É bom l<strong>em</strong>brar que relevância não está restrita a um processo de compreensão completo<br />
ou incompleto, mas r<strong>em</strong>ete a uma questão de graus, visto que há inputs potenciais que pod<strong>em</strong><br />
ser muito relevantes para nós, no entanto, por diversos motivos, não nos at<strong>em</strong>os a eles numa<br />
dada circunstância. À luz disso, para que um input seja reconhecido entre os d<strong>em</strong>ais, segundo<br />
a Teoria da Relevância (Sperber; Wilson, 2005, p. 225), não é somente necessário que ele seja<br />
relevante, mas também é necessário que ele<br />
[...] seja mais relevante do que algum input alternativo disponível para nós ao<br />
mesmo t<strong>em</strong>po. Intuitivamente, <strong>em</strong> contextos idênticos, quanto maior o valor das<br />
conclusões alcançadas pelo processamento de um input, mais relevante ele será.<br />
Nos termos teóricos da Teoria da Relevância, <strong>em</strong> contextos idênticos, quanto<br />
maiores for<strong>em</strong> os efeitos cognitivos positivos alcançados pelo processamento de<br />
um input, maior será a relevância.<br />
Diante disso, o que faz um estímulo ser percebido não são apenas os efeitos cognitivos,<br />
pois tais efeitos pod<strong>em</strong> não ser notados num momento e o ser <strong>em</strong> outro. Assim, “a mesma<br />
suposição contextual mais ou menos acessível e um mesmo efeito cognitivo mais fácil ou<br />
mais difícil de derivar” (Sperber; Wilson, 2005, p. 224).<br />
Deste modo, vê-se que o processamento de informações d<strong>em</strong>anda, por parte do leitor,<br />
um esforço no sentido de compreender o que está posto e de estabelecer as redes cognitivas<br />
<strong>em</strong> que resid<strong>em</strong> os efeitos contextuais. É claro que quanto mais evidente for a intenção<br />
comunicativa, menor esforço e maior facilidade de reconstrução dos sentidos por parte do<br />
leitor. Mas o inverso também é verdadeiro! No tocante a isso, Silveira (2002, p. 44) informa<br />
que<br />
Todo processamento de informação exige algum esforço, algum dispêndio de<br />
energia mental <strong>em</strong> nível de atenção, m<strong>em</strong>ória e raciocínio. O esforço está numa<br />
relação comparativa com os benefícios que são alcançados, os quais, nesse caso,<br />
são os efeitos cognitivos. De uma maneira geral, a mente opera de modo produtivo<br />
e econômico, no sentido de alcançar o máximo de efeitos com um mínimo de<br />
esforço.<br />
Por causa dessa proporção entre esforço e compreensão, Sperber e Wilson (2005)<br />
aduz<strong>em</strong> que “quanto maior for o esforço requerido de percepção, de m<strong>em</strong>ória e de inferência,<br />
menor será a recompensa pelo processamento do input e, por isso, um menor merecimento de<br />
atenção. Nos termos teóricos da Teoria da Relevância, <strong>em</strong> contextos idênticos, quanto maior o<br />
ESFORÇO DE PROCESSAMENTO requerido, menos relevante será o input”.<br />
352
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Já que a Teoria Relevância está relacionada à equação <strong>em</strong> termos de efeitos cognitivos<br />
e de esforços de processamento, Sperber e Wilson (2005, p. 225) defin<strong>em</strong> as condições para<br />
que haja relevância:<br />
a. Em contextos idênticos, quanto maiores for<strong>em</strong> os efeitos cognitivos<br />
positivos alcançados pelo processamento de um input, maior será a<br />
relevância do input para o indivíduo nessa situação.<br />
b. Em contextos idênticos, quanto maior for o esforço de processamento<br />
despendido, menor será a relevância do input para um indivíduo nessa<br />
situação.<br />
A existência do efeito cognitivo está relacionada à de um input, <strong>em</strong> suma, quanto mais<br />
eficaz o input <strong>em</strong>pregado, mais efeitos cognitivos e maior a relevância. Além disso, se o input<br />
for bom, mas, para compreendê-lo, se o leitor tiver que investir esforço mental, o texto se<br />
tornará cansativo, visto que um texto é relevante se houver um pequeno gasto de esforço<br />
mental.<br />
Tais concepções são evidentes no seguinte fragmento:<br />
Dev<strong>em</strong>os aplicar, in casu, aquilo que, <strong>em</strong> criminologia, é conhecido como<br />
síndrome da mulher de Potifar, importado dos ensinamentos bíblicos. Para<br />
qu<strong>em</strong> nunca teve a oportunidade de ler a Bíblia, resumindo a história que<br />
motivou a criação desse pensamento criminológico, tal <strong>teoria</strong> foi originária<br />
do livro de Gênesis, principalmente do capítulo 39, onde é narrada a história<br />
de José, décimo primeiro filho de Jacó (Greco, 2010, p. 472).<br />
Após esse trecho, o autor continua a contar a história <strong>em</strong> mais duas páginas. Aqui há<br />
duas realidades a ser<strong>em</strong> observadas, quais sejam: o leitor conhece a história de José ou o leitor<br />
desconhece a história de José. No primeiro caso, se ele conhecer a história, poderá fazer saltos<br />
na leitura e considerará interessante a relação conduta bíblica e Direito penal. Já, no segundo<br />
caso, se o leitor não conhecer a história e tiver que ler duas páginas para compreender a<br />
analogia, haverá muito esforço por arte de qu<strong>em</strong> lê, que considerará o texto cansativo e o<br />
input desencadeador de compreensão será negativo, pois não estimula a leitura.<br />
À luz dessa concepção da Teoria da Relevância, é possível dizer que há mecanismos<br />
linguísticos (texto escrito) <strong>em</strong> contextos comunicativos que conduz<strong>em</strong> à interpretação de<br />
determinadas intenções implícitas ou não. Tais mecanismos, para alcançar o sucesso<br />
comunicativo, dev<strong>em</strong> produzir efeitos cognitivos e d<strong>em</strong>andar esforço mínimo para que a<br />
comunicação seja, de fato, relevante e significativa para o leitor, uma vez que Silveira (apud<br />
Silveira e Feltes, 2002, p.53) assevera que, “comunicar é requisitar a atenção de alguém<br />
através de um estímulo ostensivo; consequent<strong>em</strong>ente, comunicar é implicar que a informação<br />
comunicada é relevante, o que garante a presunção da relevância ótima”.<br />
Apesar da clareza do que seja este “estímulo ostensivo”, se o autor de um texto recorrer<br />
a um estímulo negativo, é possível falar <strong>em</strong> irrelevância de determinado conteúdo?<br />
Conquanto isso pareça drástico, no universo do discurso jurídico, é muito comum ver<br />
autores que buscam afastar seus leitores com estratégias linguísticas que compromet<strong>em</strong> a<br />
clareza. Apenas para ex<strong>em</strong>plificar, pod<strong>em</strong>os falar de textos com várias notas de rodapé,<br />
parágrafos extr<strong>em</strong>amente longos, linguag<strong>em</strong> arcaica, estruturas inversas e, não raro, frases<br />
353
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
intermináveis que não r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> a nada, dentre outras nuanças que perpassam a realidade do<br />
discurso jurídico.<br />
4) A Teoria da Relevância e o discurso jurídico<br />
O discurso jurídico t<strong>em</strong> um cenário discursivo específico, tanto que há uma linguag<strong>em</strong><br />
própria, mas que t<strong>em</strong> buscado cada vez mais se tornar acessível às várias camadas da<br />
população. Prova disso é que, atualmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) t<strong>em</strong> imposto<br />
a necessidade de os juízes produzir<strong>em</strong> textos claros, não só para os profissionais da área<br />
jurídica, mas também para as pessoas leigas, que tenham um bom conhecimento de mundo<br />
(saber elocutivo).<br />
Além dessa necessidade de clareza no texto jurídico decisório (o que é produzido pelos<br />
magistrados ao decidir algo), o próprio texto técnico-científico precisa ser mais acessível, pois<br />
n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre o discente do curso de Direito consegue “entender” o que determinado autor quis<br />
dizer.<br />
Vale esclarecer apenas que, no discurso jurídico, há uma infinidade de gêneros textuais<br />
que variam de acordo com os sujeitos comunicativos e com as posições discursivas ocupadas<br />
pelos sujeitos, numa dada cena discursiva (Andrade, 2007).<br />
Por isso, a <strong>teoria</strong> da relevância se faz importante nesse gênero textual, isto porque ela<br />
mostra a necessidade de se construir um discurso acessível tanto para leitores leigos quanto<br />
para os leitores da área jurídica, pois é necessário que haja inputs e que estes se som<strong>em</strong> ao<br />
conhecimento de mundo das pessoas, produzindo, assim, efeitos cognitivos que conduz<strong>em</strong> a<br />
uma maximização da compreensão.<br />
A <strong>teoria</strong> da relevância preconiza a existência de construções linguísticas e estratégias<br />
discursivas que facilit<strong>em</strong> o processo de compreensão, por isso é importante a existência de<br />
texto claro, s<strong>em</strong> ambiguidade, direto, não extenso, de modo que a relação entre os sujeitos do<br />
discurso seja feita de maneira positiva, ou seja, que a mensag<strong>em</strong> passada pelo enunciador seja<br />
transmitida e compreendida pelo receptor.<br />
5) O discurso científico no âmbito do Direito Penal: a perspectiva da Teoria da<br />
Relevância<br />
Para analisar o discurso científico, fez-se um recorte numa área do Direito – Direito<br />
Penal –, mais especificamente o capítulo referente aos crimes sexuais, pois era um capítulo<br />
comum aos três livros, inclusive com t<strong>em</strong>áticas extr<strong>em</strong>amente s<strong>em</strong>elhantes. Ad<strong>em</strong>ais,<br />
recorreu-se à Teoria da Relevância, a partir dos pressupostos da existência de inputs e de<br />
esforço gasto para a compreensão. Além disso, procedeu-se à delimitação do que será visto<br />
nos textos de Hungria, Greco e Bittencourt, a saber: extensão de frases ou de parágrafos;<br />
utilização de metáforas; <strong>em</strong>prego de citação e uso de notas de rodapé.<br />
5.1) Quanto à estrutura do parágrafo/frases<br />
O parágrafo é uma unidade de composição <strong>em</strong> que se desenvolve uma ideia básica e é<br />
uma unidade de sentido, pois abarca um processo de raciocínio completo. Ele pode, por si só,<br />
formar um texto ou pode se agregar a outros parágrafos que tenham uma t<strong>em</strong>ática comum,<br />
354
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
numa progressão contínua da idéia que perpassa os parágrafos para formar o texto. Além<br />
disso, segundo Othon Moacyr Garcia (2003, p. 220), o parágrafo é “indicado materialmente<br />
na página impressa ou manuscrita por um ligeiro afastamento da marg<strong>em</strong> esquerda da folha”<br />
ou atualmente é indicado pelos espaços que há entre um bloco escrito e outro (parágrafo<br />
americano).<br />
Deve-se destacar que o parágrafo t<strong>em</strong> papel fundamental no processo de produção e no<br />
processo de apreensão da atenção do leitor, pois “o parágrafo facilita ao escritor a tarefa de<br />
isolar e depois ajustar convenient<strong>em</strong>ente as ideias principais da sua composição, permitindo<br />
ao leitor acompanhar-lhes o desenvolvimento nos seus diferentes estágios” (Garcia, 2003, p.<br />
220).<br />
Vale esclarecer ainda que a extensão do parágrafo varia – pode ser de uma linha ou de<br />
uma página inteira. Mas o que vai determinar a extensão é a intenção comunicativa de qu<strong>em</strong><br />
enuncia e o fato de que cada parágrafo contém uma idéia que deve ser desenvolvida. Assim<br />
que o pressuposto do parágrafo se materializa, não é necessário que o mesmo se estenda mais.<br />
Em virtude disso, é recomendável que um parágrafo não se estenda além de 15 linhas e que,<br />
<strong>em</strong> geral, inicie com o tópico frasal, pois, deste modo, o objetivo comunicacional do<br />
parágrafo é mais evidente.<br />
Diante disso, t<strong>em</strong>os que o parágrafo, quando apresenta uma extensão menor e se inicia<br />
com o tópico frasal, produz um input positivo, visto que produz no leitor a satisfação por ter<br />
compreendido o propósito daquela unidade comunicacional. É bom l<strong>em</strong>brar que o inverso é<br />
verdadeiro.<br />
Assim, dos autores analisados, Rogério Greco apresentou tanto parágrafos longos,<br />
quanto parágrafos curtos. No que tange aos longos, a leitura tornou-se cansativa e de difícil<br />
compreensão, tal como ex<strong>em</strong>plo abaixo:<br />
Mesmo que numa comparação quantitativa, ou seja, mesmo fazendo-se os cálculos<br />
mat<strong>em</strong>áticos para se concluir que, na vigência da lei anterior, o agente que viesse a<br />
praticar um estupro, por ex<strong>em</strong>plo, contra vitima menor de 14 (catorze anos), teria,<br />
<strong>em</strong> virtude da previsão constante no art. 9 da Lei n 8.072/90, sua pena aumentada<br />
<strong>em</strong> metade, o que faria com que a pena mínima fosse calculada <strong>em</strong> 9 (nove) e a<br />
máxima <strong>em</strong> 15 (quinze) anos, e que no atual delito de estupro de vulnerável, que<br />
prevê a mesma hipótese, a pena mínima cominada ‘e de 8 (oito) e a máxima de 15<br />
(quinze) anos, não poderíamos com um suposto argumento de beneficiar o agente,<br />
substituir o aumento previsto na Lei 8.072/90, a fim de aplicar-lhe a pena mínima<br />
do atual tipo penal (art. 217-A), vale dizer, 8 (oito) anos (Greco, 2010, p. 482).<br />
Vê-se, nesse texto, que o <strong>em</strong>aranhado de informações cria uma teia de confusões no<br />
processo cognitivo do leitor que não t<strong>em</strong> muita clareza do que está sendo dito. Com efeito, há<br />
um gasto de força maior para que o leitor compreenda. Em razão disso, os parágrafos longos<br />
são desestimulantes para a leitura, ou seja, há uma pré-indisposição para a leitura. É possível<br />
verificar que o parágrafo longo, <strong>em</strong> geral, funciona como uma espécie de input negativo.<br />
O segundo discurso jurídico analisado foi de Cezar Roberto Bitencourt. Este autor teve<br />
mais concisão <strong>em</strong> suas ideias, pois foi o que redigiu o texto científico de forma mais curta<br />
comparado com os outros autores, isso produziu, necessariamente, mais clareza. Em<br />
decorrência disso, a compreensão do assunto se torna mais fácil.<br />
Isso pode ser visualizado no parágrafo a seguir: “Consuma-se o assédio sexual, na<br />
verdade, independent<strong>em</strong>ente de a vítima submeter-se à chantag<strong>em</strong> sexual constrangedora”<br />
355
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(Bitencourt, 2004, p.42). Vê-se nesse ex<strong>em</strong>plo, portanto, que este parágrafo é claro <strong>em</strong> sua<br />
ideia, pois foi redigido de maneira curta e s<strong>em</strong> trazer dúvidas quanto a sua interpretação.<br />
Ad<strong>em</strong>ais, Hungria também redigiu seu texto com parágrafos adequados, de maneira<br />
correta, posto que não eram n<strong>em</strong> tão longos, n<strong>em</strong> tão curtos. As estruturas eram suficientes<br />
para trazer as ideias com clareza para o leitor.<br />
Nesses dois últimos casos, viu-se uma maior aceitação no momento da leitura e,<br />
consequent<strong>em</strong>ente, maior aceitação dos pressupostos veiculados.<br />
5.2) Estrutura metafórica<br />
Apenas para esclarecer, metáfora, <strong>em</strong> sentido abrangente, seria transposição de traços<br />
entre domínios distintos. Isso se dá por meio de um mecanismo cognitivo. Quando um<br />
enunciador recorre a uma metáfora, ele espera que o outro consiga depreender os el<strong>em</strong>entos<br />
cognitivos que estão sendo veiculados, por isso a metáfora, num sentido mais estrito,<br />
[...] pode ser vista como um processo cognitivo por meio do qual o locutor<br />
utiliza a denominação de um el<strong>em</strong>ento pertencente a um domínio conceitual<br />
para referir-se a um outro el<strong>em</strong>ento pertencente a um domínio distinto do<br />
primeiro. Esse processo leva à superposição de, pelo menos, dois esqu<strong>em</strong>as<br />
conceituais, implicando a suspensão de conceitos ordinários envolvidos e o<br />
rearranjo do esqu<strong>em</strong>a conceitual (Carvalho; Souza, 2003, p. 31).<br />
Greco utiliza a estrutura metafórica <strong>em</strong> alguns trechos, pois é comum fazer citações<br />
bíblicas no meio do texto, por ex<strong>em</strong>plo, a passag<strong>em</strong> bíblica da mulher de Potifar.<br />
José era um belo era um belo tipo de hom<strong>em</strong> simpático. Algum t<strong>em</strong>po<br />
depois, a mulher do seu dono começou a cobiçar José. Um dia ela disse:<br />
Venha, vamos para a cama. Ele recusou, dizendo assim: Escute! O meu<br />
dono não precisava se preocupar com nada nessa casa, pois eu estou aqui,<br />
Ele me pôs como responsável por tudo que tenho. Nesta casa eu mando<br />
tanto quanto ele. Aqui eu posso ter o que quiser, menos a senhora, pois ‘e<br />
mulher dele. Sendo assim, como poderia eu fazer uma coisa tão imoral e<br />
pecar contra Deus? (Greco, 2010, p. 472).<br />
Neste trecho, Greco faz alusão ao texto bíblico, para depois estabelecer paralelos com o<br />
Direito Penal. Este é um tipo de recurso interessante para se utilizar, principalmente para<br />
ex<strong>em</strong>plificar uma situação de forma a dinamizar o assunto, por meio de poesias, bíblia,<br />
literatura, menção à arte. Porém, quanto utilizado d<strong>em</strong>asiadamente, muitas vezes foge do seu<br />
objetivo, pois o texto bíblico, invariavelmente, relaciona-se à religião.<br />
Já, Bitencourt, ao tratar do assunto dos crimes sexuais, não faz uso desse tipo de<br />
recurso. Contudo, não se pode afirmar que essa estrutura não é <strong>em</strong> nenhum momento utilizada<br />
<strong>em</strong> sua obra, visto que apenas uma parte dela é que foi analisada.<br />
Em relação a Hungria, observou-se que, na obra, o autor fez bastante uso de metáforas,<br />
por ex<strong>em</strong>plo, a citação da obra “Lusíadas” - “Fugindo as ninfas vão por entre os ramos, Mas,<br />
mais industriosas que ligeiras, pouco a pouco sorrindo, e gritos dando, Se deixam ir dos<br />
galgos alcançando [...]” (Camões apud Hungria, 1983, p.108).<br />
356
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Em relação a esse t<strong>em</strong>a, é necessário dizer que o seu uso pode ser atrativo, isto é,<br />
produz uma maior quantidade de efeitos cognitivos o que torna o texto mais relevante. Apesar<br />
disso, o Greco não foi feliz <strong>em</strong> suas escolhas, uma vez que fez uso de metáfora<br />
exageradamente. Neste sentido, o excesso de previsibilidade pode provocar no leitor<br />
desinteresse para leitura.<br />
5.3) Emprego de citação<br />
Todo texto é, <strong>em</strong> alguma medida, a retomada de outros textos – este é um princípio<br />
básico da intertextualidade, que pode se manifestar por meio de citações literais e por meio de<br />
paráfrases.<br />
O texto científico recorre, invariavelmente, ao <strong>em</strong>prego intertextual e, especialmente, o<br />
uso da citação literal. O <strong>em</strong>prego desse tipo de citação confere ao texto maior credibilidade,<br />
pois releva que o autor se preocupou <strong>em</strong> fazer uma pesquisa séria para fundamentar a sua<br />
palavra.<br />
O uso da citação t<strong>em</strong> um efeito cognitivo positivo, desde que haja bom senso na<br />
quantidade de citações <strong>em</strong>pregadas, pois pode ter um efeito negativo e de repulsa de leitura se<br />
houver um exagero quanto ao <strong>em</strong>prego desse recurso.<br />
No que tange a esse it<strong>em</strong>, Greco apresentou o maior número de citações longas (75,5%),<br />
o que deixa o texto confuso e, assim, prejudica a leitura – este tipo de leitura d<strong>em</strong>anda um<br />
gasto grande de esforço, o qual diminui a relevância. Quanto às citações pequenas, ele ocupou<br />
o último lugar com 27,4%, mas não apresentou citações <strong>em</strong> língua estrangeira – o que pode<br />
gerar repulsa por parte do leitor.<br />
Já Bitencourt apresentou a maior porcentag<strong>em</strong> de citações adequadas (85%). Isto<br />
significa dizer que ele as fez <strong>em</strong> língua portuguesa e <strong>em</strong> um tamanho não tão extenso quanto<br />
os outros autores. Isso é um ponto positivo, já que esse recurso serve para auxiliar, mas,<br />
muitas vezes, acaba por atrapalhar.<br />
Na obra de Hungria, apesar de muitas citações ser<strong>em</strong> adequadas (47,2%), observou-se<br />
que as inadequadas foram, praticamente, a metade das anteriores (22,9%), o que d<strong>em</strong>onstra<br />
um texto carregado de informações que não são necessárias e acabam por poluí-lo. Há, ainda,<br />
que se falar nas citações <strong>em</strong> língua estrangeira (29,8%), um uso da mesma de forma errôneo,<br />
uma vez que exacerbado e, principalmente, s<strong>em</strong> tradução, o que também gera a<br />
incompreensão do texto, já que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre o leitor entende a língua estrangeira que foi<br />
escrita.<br />
357
Isso é melhor visualizado no gráfico a seguir:<br />
90<br />
80<br />
70<br />
60<br />
50<br />
40<br />
30<br />
20<br />
10<br />
0<br />
47,2<br />
22,9<br />
29,8<br />
27,4<br />
75,5<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
85<br />
15<br />
0 0<br />
Hungria Greco Bitencourt<br />
Gráfico 1 – Emprego de citação<br />
5.4) Notas de rodapé<br />
Adequada<br />
Inadequada<br />
Língua Estrangeira<br />
As notas de rodapé ou de final de capítulo dev<strong>em</strong> conter informações que não foram<br />
cont<strong>em</strong>pladas no texto, por não ser<strong>em</strong> fundamentais para o conteúdo e se constituír<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />
uma informação adicional, mas dispensável. Tais notas pod<strong>em</strong> ser de duas naturezas:<br />
explicativas e de referência. As primeiras visam trazer breves informações ou esclarecimentos<br />
ao conteúdo textual e também pod<strong>em</strong> ser utilizadas para conter a versão original de um texto<br />
traduzido no corpo do texto. Já as segundas serv<strong>em</strong> para fazer indicação bibliográfica de<br />
alguma fonte mencionada no corpo do texto.<br />
Para a <strong>teoria</strong> da relevância, que valoriza o esforço mínimo por parte do leitor como<br />
forma de agilizar o processo de compreensão, o <strong>em</strong>prego de notas de rodapé pode se tornar<br />
um desalento para a leitura, pois um texto que tenha muitas notas traz implícitas algumas<br />
informações – o texto é muito denso (complicado); o autor é meticuloso d<strong>em</strong>ais (prende-se a<br />
detalhes); não há uma seleção de fato do autor entre o que deve estar no texto e o que deve<br />
estar na nota; a nota pode ser mais importante que o texto. Diante disso, a nota de rodapé pode<br />
funcionar como um input negativo, ou seja, produzir desestímulo para o que está posto.<br />
Em nossa <strong>análise</strong>, vimos o uso exacerbado de notas de rodapé de caráter referencial no<br />
texto de Greco (85,1%). Já as notas de rodapé explicativas formam 14,8% e as grandes 2,4%.<br />
Entende-se por nota de rodapé grande aquela que visualmente polui o texto devido a sua<br />
extensão.<br />
Quanto a esses dados, observa-se um ponto negativo ao se <strong>em</strong>pregar tantas notas de<br />
referência, uma vez que isso denota que o texto do autor (Greco) é mera compilação do que<br />
outros já disseram, o que faz com que ele perca a sua identidade no discurso, no momento <strong>em</strong><br />
que traz a voz de muitos autores para seu texto.<br />
358
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Quanto a Bitencourt, as notas de rodapé <strong>em</strong>pregadas foram, mais da metade, de caráter<br />
referencial (65,5,%) e também consideradas adequadas, ou seja, eram pequenas. Foram<br />
redigidas <strong>em</strong> língua portuguesa e as notas que foram explicativas, de fato, retomavam o<br />
assunto de maneira mais clara, o que é um ponto positivo.<br />
Já Hungria foi o que mais utilizou as notas, principalmente a nota de rodapé explicativa<br />
(79,5%), que, por diversas vezes, seria melhor que foss<strong>em</strong> colocadas no corpo do texto, por<br />
tratar<strong>em</strong> de informações importantes. Em relação a notas de rodapé extensas (11,8%),<br />
apresentou uma grande quantidade relevante, o que pode tirar a atenção do leitor. Comparado<br />
com os outros autores, ele foi o que menos se utilizou da nota referencial, com apenas 13,5%.<br />
Tais informações pod<strong>em</strong> ser visualizadas com mais nitidez no gráfico a seguir:<br />
90<br />
80<br />
70<br />
60<br />
50<br />
40<br />
30<br />
20<br />
10<br />
0<br />
79,5<br />
13,5<br />
11,8<br />
14,8<br />
85,1<br />
33,3<br />
65,5<br />
2,4 1,1<br />
Hungria Greco Bitencourt<br />
Gráfico 2: EMPREGO DE NOTAS DE RODAPÉ<br />
6) Considerações Finais<br />
Explicativa<br />
Referencial<br />
Extensa<br />
Diante do exposto, pode-se afirmar que os aspectos textuais abordados acima serv<strong>em</strong><br />
para ajudar na construção de um discurso compreensível, de forma a trazer as informações<br />
necessárias no corpo do texto ou <strong>em</strong> notas explicativas.<br />
No que tange à estrutura metafórica e às citações, vale o mesmo raciocínio, qual seja,<br />
constitu<strong>em</strong> ferramentas à disposição do autor para enriquecer seu texto, porém deve-se atentar<br />
ao modo com que são <strong>em</strong>pregadas, para não se tornar<strong>em</strong> um el<strong>em</strong>ento negativo.<br />
Para que isso seja alcançado, é de fundamental importância que as frases e os parágrafos<br />
sejam redigidos de forma a trazer<strong>em</strong> o conteúdo tratado de maneira relevante. Assim, não<br />
pod<strong>em</strong> ser extensos e exaustivos para aquele que recebe a mensag<strong>em</strong>, pois prejudicará o<br />
processo de comunicação entre os sujeitos. Isso porque a mensag<strong>em</strong> enunciada não será<br />
recebida com o mesmo objetivo com que foi enunciado.<br />
359
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Nesse sentido, pode-se depreender que os aspectos textuais quando utilizados de modo<br />
inadequado acabam por prejudicar a compreensão do texto, como foi d<strong>em</strong>onstrado na <strong>análise</strong><br />
acima, visto que formam inputs negativos durante a leitura e o processamento do discurso.<br />
Assim, cabe ao produtor do texto fazer as escolhas que considerar convenientes para<br />
produzir um texto que seja mais relevante para o leitor.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ANDRADE, Valdeciliana da Silva Ramos. A construção da causalidade na vertente dos gêneros<br />
textuais: uma <strong>análise</strong> da argumentação jurídica. 2007. 351 f. Tese (Doutorado <strong>em</strong> Língua<br />
Portuguesa) – Programa de <strong>Pós</strong>-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio<br />
de Janeiro, 2007. Disponível <strong>em</strong>: .<br />
Acesso <strong>em</strong>: 26 jul. 2010.<br />
BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial São Paulo: Saraiva, 2004.<br />
v. 5.<br />
CARVALHO, Maurício Brito de; SOUZA, Ana Claudia de. As metáforas e sua relevância no<br />
processo ensino-aprendizag<strong>em</strong> de Língua Estrangeira. Revista de Língua e Literatura estrangeiras<br />
da Universidade Federal de Santa Catarina – Fragmentos, Florianopólis, n.24, p. 29-44, 1. S<strong>em</strong>.<br />
2003. Disponível <strong>em</strong>:<br />
. Acesso <strong>em</strong>: 10 out.<br />
2010.<br />
GARCIA, Othon Moacyr. Comunicação <strong>em</strong> prosa moderna. 23. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV.<br />
2003.<br />
GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. 7. ed. Niterói/RJ: Impetus, 2010. v. 3.<br />
GRICE, H.P. Logic and Conversation. In: COLE, P.; MORGAN, J. (eds.). Syntax and S<strong>em</strong>antics.<br />
v.3, Speech Acts. New York: acad<strong>em</strong>ic Press, 1975.<br />
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. v. 8.<br />
LEVINSON, Stephen C. Pragmática. Tradução de Luís Carlos Borges e de Aníbal Mari. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 2007.<br />
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Ângela<br />
Paiva et. al. (Org.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. p. 19-36.<br />
RAUEN, Fábio José. Inferências <strong>em</strong> resumo com consulta ao texto de base: estudo de caso com base<br />
na <strong>teoria</strong> da relevância. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong> (Dis)curso - L<strong>em</strong>D, Tubarão, v. 5, n. esp., p. 33-57, 2005.<br />
Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 05<br />
set. 2010.<br />
______. Teoria da relevância: uma proposta pragmático-cognitiva à comunicação inferencial<br />
humana. 1997. 406f. Tese (Doutorado <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>) – Programa de <strong>Pós</strong> Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>,<br />
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: PUCRS, 1997. Disponível <strong>em</strong>:<br />
360
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
. Acesso <strong>em</strong>: 20 jul. 2010.<br />
SILVEIRA, Jane Rita Caetano, FELTES, Heloísa Pedroso de Moraes. Pragmática e cognição: a<br />
textualidade pela Relevância. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.<br />
SILVEIRA, Jane Rita Caetano da; FELTES, Heloísa Pedroso de Moraes. Pragmática e cognição: a<br />
textualidade pela relevância e outros ensaios. 3. ed. Porto Alegre: DIPUCRS, 2002.<br />
SPERBER, Dan; WILSON, Deirdre. Relevance: communication and cognition. Massaschusetts:<br />
Harvard University Press, 1995.<br />
______. Teoria da relevância. Tradução de Fábio José Rauen e de Jane Rita Caetano da<br />
Silveira. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong> (Dis)curso - L<strong>em</strong>D, Tubarão, v. 5, n. esp., p. 221-268, 2005. Disponível <strong>em</strong>:<br />
. Acesso <strong>em</strong>: 05 set. 2010.<br />
361
A APLICAÇÃO DO ETHOS DISCURSIVO<br />
NO CENÁRIO JURÍDICO TRABALHISTA<br />
Nayanne Neves Spessimilli (FDV)<br />
Paola Marcarini Boldrini (FDV)<br />
Valdeciliana da Silva Ramos Andrade (FDV) 1<br />
RESUMO: O processo discursivo implica a existência de diferentes atores, de acordo com a situação<br />
comunicativa <strong>em</strong> que ele está inserido. Além disso, é bom que se diga que o ator s<strong>em</strong>pre se manifesta de forma<br />
distinta de acordo com o personag<strong>em</strong> que ele incorpora. Assim, para desenvolver este estudo, parte-se, <strong>em</strong><br />
princípio, de uma esfera discursiva autônoma – o discurso jurídico. Ele é assim considerado, pois t<strong>em</strong> uma<br />
estrutura que lhe é peculiar. A partir disso, será abordada, nesta pesquisa, a t<strong>em</strong>ática do ethos no discurso<br />
jurídico, especificamente a construção do ethos feita por magistrados e por advogados no cenário de audiências<br />
trabalhistas. É importante dizer que tal construção é <strong>em</strong>pregada por esses atores para persuadir o receptor por<br />
meio da imag<strong>em</strong> mostrada, além de criar um cenário que seja simpático e favorável à perspectiva argumentativa<br />
que se quer defender. Dessa forma, ao se comunicar, os sujeitos do processo de comunicação transmit<strong>em</strong> ao<br />
outro apenas aquilo que desejam, não representando, necessariamente, o que de fato eles são, mas sim o que<br />
quer<strong>em</strong> aparentar ser. Essa modalidade de interagir na comunicação e de representar um personag<strong>em</strong> se<br />
caracteriza como o ethos discursivo. Para realizar este estudo, quanto à metodologia, partiu-se do método de<br />
abordag<strong>em</strong> hipotético dedutivo, visto que há uma pr<strong>em</strong>issa que se constitui na hipótese deste estudo – a de que,<br />
por ser a audiência trabalhista um cenário específico do direito, o magistrado constrói um personag<strong>em</strong> distinto do<br />
personag<strong>em</strong> produzido pelo advogado, e, além disso, <strong>em</strong> cada audiência, o personag<strong>em</strong> juiz se manifesta de<br />
formas distintas, dependendo de qual é a outra parte. Para verificar essa hipótese, fez-se primeiramente uma<br />
pesquisa bibliográfica, que se constituirá na base teórica do presente estudo, centrada nas concepções de<br />
Maingueneau (1996, 1997, 2002 e 2008) e de Charaudeau (2006), que defend<strong>em</strong> o ethos como uma ilustração<br />
que está junto com aquele que fala, mas não é única dele; é como um personag<strong>em</strong> que o interlocutor cria e, a<br />
partir daí, constrói suas falas. Além disso, com a finalidade de fazer um estudo <strong>em</strong>pírico, a fim de que esta<br />
pesquisa tenha validade de forma efetiva, recorreu-se a uma situação real, visto que a observação ocorreu <strong>em</strong> 40<br />
audiências trabalhistas com um corpus formado por quatro magistrados distintos. Para tanto, fez-se a gravação<br />
das audiências e, posteriormente, a transcrição dos textos gravados, além de observações feitas presencialmente.<br />
A partir da <strong>análise</strong> do corpus desta pesquisa – quarenta audiências – foi possível verificar que uma mesma<br />
pessoa, no caso o magistrado, apresenta diferentes manifestações discursivas, as quais são construídas no<br />
decorrer de uma mesma audiência com relação a sujeitos distintos (advogados das partes, test<strong>em</strong>unhas) e, no<br />
decorrer de uma audiência para outra, <strong>em</strong> virtude dos diferentes atores que figuram no cenário.<br />
1) Introdução<br />
Todos nós encenamos algo. Isso não quer dizer que somos mascarados! Mas que nos<br />
adequamos às necessidades de representação que os ambientes profissionais, sociais, afetivos,<br />
religiosos, entre outros, nos impõe.<br />
Partindo desse pressuposto, escolheu-se estudar justamente a versatilidade que t<strong>em</strong>os<br />
de criar personagens para, dessa forma, nos adaptarmos às diferentes situações que ocorr<strong>em</strong><br />
no dia-a-dia. Dessa maneira, foi decidido estudar o ethos discursivo. Com o objetivo de tratar<br />
1 Orientadora deste trabalho e integrante do Núcleo de Estudos de <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> Jurídica – NELJ.<br />
362
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
de algo mais específico, optou-se por restringir essa pesquisa ao ethos discursivo <strong>em</strong>pregado<br />
pelos magistrados <strong>em</strong> diferentes audiências no cenário forense trabalhista.<br />
S<strong>em</strong> dúvidas, essa pesquisa ajuda a reconhecer que todos viv<strong>em</strong>os <strong>em</strong> um teatro da<br />
vida e, por isso, é normal que cri<strong>em</strong>os personagens com diferentes características, dependendo<br />
de cada situação, uma vez que o objetivo é persuadir o outro que nos ouve. Isso não seria<br />
diferente no ambiente forense. É no Direito que a aplicação do ethos ocorre de forma mais<br />
frequente, já que se t<strong>em</strong> por objetivo, <strong>em</strong> uma audiência, convencer o outro de seus desejos<br />
através das estratégias aplicadas. Sabe-se que a conduta do juiz é fundamental para o<br />
desenvolvimento dos conflitos e, assim, a efetivação da justiça, por isso, a figura do<br />
magistrado foi a principal a ser estudada.<br />
Para realizar a pesquisa, partiu-se do método hipotético-dedutivo, uma vez que foi por<br />
meio da observação das audiências trabalhista e da <strong>análise</strong> das atitudes dos magistrados que as<br />
conclusões a respeito do ethos foram feitas.<br />
Portanto, a pesquisa a respeito do ethos discursivo foi organizada na explanação,<br />
primeiramente, da parte teórica, que diz respeito à explicação de discurso jurídico; logo após<br />
se trata dos sujeitos do processo de comunicação; e por fim se fala do ethos discursivo: a<br />
construção do personag<strong>em</strong>. No que tange à parte da aplicação dos conceitos, a pesquisa se<br />
dividiu na compreensão da encenação do discurso jurídico e na efetiva <strong>análise</strong> e relatório da<br />
observação feita nas audiências trabalhistas, subdividindo-se a avaliação do ethos do<br />
magistrado <strong>em</strong> duas etapas, uma primeira <strong>em</strong> que não houve gravação de áudio, e uma<br />
segunda, com a utilização da ferramenta mecânica de gravar áudio 2 .<br />
2) Discurso jurídico<br />
Conquanto o discurso possa se manifestar tanto no nível verbal, quanto no não verbal, o<br />
discurso jurídico é essencialmente verbal. Vê-se que o Direito se concretiza por meio da<br />
linguag<strong>em</strong>, por isso o discurso é parte fundamental da estrutura e das práticas jurídicas.<br />
Concernente a essa relação, Bittar e Almeida (2001, p. 464) certificam que “Direito e<br />
linguag<strong>em</strong> conviv<strong>em</strong> [...], uma vez que aquele depende desta como forma de manifestação.<br />
Quer-se afirmar desde já que a linguag<strong>em</strong> possui um papel fundamentalmente instrumental<br />
perante o Direito”.<br />
Assim, a esfera jurídica, manifestada textualmente, constitui uma instância discursiva<br />
autônoma, que é capaz de produzir suas próprias exigências e de influenciar outras instâncias<br />
que a cercam.<br />
Cumpre salientar que não é pelo fato de o texto trazer um assunto referente ao Direito<br />
que se constitui num discurso jurídico, pois este apresenta diversas particularidades que<br />
traduz<strong>em</strong> a sua essência. Em razão disso, Bittar e Almeida (2001, p. 476) informam como<br />
reconhecer o discurso jurídico, ao aduzir, que<br />
É pelo potencial transformador de situações reais que se pode identificar o discurso<br />
jurídico, pois este é capaz de influenciar sobre a esfera de existência, destinação e utilização<br />
de objetos, criando, modificando e extinguindo relações, afetando, atingindo e regulando,<br />
por formas mais ou menos favoráveis, as condutas humanas <strong>em</strong> sociedade, regulamentando<br />
situações, enfim construindo um universo descritivo <strong>em</strong> torno do qual dev<strong>em</strong> girar os atos<br />
humanos (grifo nosso).<br />
2 A gravação das audiências foi feita com autorização dos juízes envolvidos.<br />
363
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Além disso, como é produzido no seio da sociedade, tal discurso não é<br />
descontextualizado, logo traz um reflexo histórico-social que “implica s<strong>em</strong>pre uma<br />
normatividade organicamente inserida nos atos que a constitu<strong>em</strong>” (Alves, apud Bittar, 2001,<br />
p.169).<br />
O discurso jurídico, <strong>em</strong>bora traduza a expressão da norma que pressupõe uma<br />
determinada imutabilidade, não é estático. Ao contrário, está inserido <strong>em</strong> um conjunto de<br />
sist<strong>em</strong>as que envolv<strong>em</strong> uma dinâmica de trocas linguísticas, uma vez que está <strong>em</strong> contato<br />
constante com os d<strong>em</strong>ais sist<strong>em</strong>as sociais.<br />
Greimas e Landowski (apud Bittar, 2001, p.170) asseveram que<br />
se o sist<strong>em</strong>a jurídico, considerado na sua orig<strong>em</strong> – enquanto fala performativa absoluta que<br />
instaura uma ord<strong>em</strong> do mundo convencional e explícita [...], aparece como uma arquitetura<br />
sólida e imutável – sendo a imutabilidade do direito uma de suas principais conotações –,<br />
nada impede que esse sist<strong>em</strong>a evolua, complete-se e transforme-se, graças justamente aos<br />
discursos jurídicos s<strong>em</strong>pre renovados que faz<strong>em</strong> suas inovações repercutir no nível do<br />
sist<strong>em</strong>a que lhes é subentendido.<br />
É evidente, então, que o discurso jurídico, como qualquer outro campo discursivo,<br />
interage com outras esferas do discurso. Esse intercâmbio confere à discursividade jurídica<br />
um caráter eclético, não só restrito ao campo da norma, mas também descreve uma<br />
transformação dialética a qual revela a sustentação de duas forças contrárias, a de<br />
conservação e a de mudança. Essas forças marcam a singularidade do discurso jurídico; cada<br />
uma apresenta particularidades das marcas de juridicidade que precisam ser explicitadas.<br />
A marca da conservação está, muitas vezes, inscrita na própria necessidade de que o<br />
discurso jurídico t<strong>em</strong> de se manter imutável diante das transformações da linguag<strong>em</strong>, ou seja,<br />
do impedimento do devenir da língua.<br />
É possível que isso seja uma tentativa de preservação de alguns traços que sustentam o<br />
vernáculo jurídico. Talvez esta visão não evolutiva da linguag<strong>em</strong> tenha surgido nos<br />
primórdios com os próprios editos 3 que eram estabelecidos pelos pretores para os julgamentos<br />
realizados pelos magistrados, os quais se baseavam <strong>em</strong> uma fórmula, 4 que era um paradigma<br />
para os julgamentos. Tal concepção de linguag<strong>em</strong> era restritiva, pois tolhia a capacidade de<br />
expressão do magistrado. Em decorrência, Chauí (2002, p. 138-39) atesta que<br />
Na orig<strong>em</strong>, o direito não era um código de leis referentes à propriedade [...], n<strong>em</strong> referentes<br />
à vida política [...], mas era um tom solene no qual o juiz pronunciava uma fórmula pela<br />
qual duas partes <strong>em</strong> conflito faziam a paz. O direito era uma linguag<strong>em</strong> solene de fórmulas<br />
conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes <strong>em</strong> litígio.<br />
3<br />
“Os editos dos magistrados são fontes de direito importantíssima na República (510-27 a.C.). A determinação<br />
da regra jurídica a ser aplicada pelo juiz na decisão de uma questão controvertida cabia ao magistrado,<br />
especialmente ao pretor [...]” (Marky, 1987, p.19).<br />
4<br />
“A partir da criação do pretor urbano (367 a.C.), e mais tarde do pretor peregrino (242 a.C.), outorgou-se a tais<br />
magistrados, detentores da iurisdictio, o poder de conceder fórmulas não previstas no vetusto ius civile. Ao<br />
assumir o cargo, o pretor fazia publicar o seu edito anual <strong>em</strong> que elencado o programa atinente às ações e<br />
r<strong>em</strong>édios que seriam por ele concedidos durante a respectiva pretura.” (Marky, 1987, p. 30)<br />
“A fórmula – altera a característica <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente oral do sist<strong>em</strong>a anterior – o ‘agere’ [que correspondia ao uso<br />
da própria força para recuperar ou para obter alguma coisa de outr<strong>em</strong>] – correspondia ao esqu<strong>em</strong>a abstrato<br />
contido no edito do pretor, e que servia de paradigma para que, num caso concreto, feitas as adequações<br />
necessárias, fosse redigido um documento (iudicium) – pelo magistrado com o auxílio das partes –, no qual se<br />
fixava o objeto da d<strong>em</strong>anda que devia ser julgada pelo iudex popular.” (Tucci, J. R. C.; Azevedo, L. C. de, 1996,<br />
p. 47)<br />
364
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Assim, a linguag<strong>em</strong> jurídica era solene, estável, expressão de um discurso que<br />
conservava as suas raízes e relutava contra a mudança. Apesar dessa realidade, é importante<br />
que se diga que estamos vivendo um período de transição na área jurídica. Isso implica,<br />
necessariamente, a mudança de posturas quanto à produção de textos jurídicos, os quais<br />
atualmente são mais objetivos, claros e concisos.<br />
Além disso, o discurso jurídico mantém a tradição de ser um discurso que, <strong>em</strong> geral,<br />
manifesta a exigência da persuasão, isto é, a argumentação é uma presença constante neste<br />
tipo discursivo. Não que este traço seja peculiar apenas a esta esfera, até porque partimos do<br />
princípio de que qualquer tipo discursivo é essencialmente argumentativo, ou seja, a todo<br />
momento, procuramos convencer o outro de nossa realidade, por isso a relação de<br />
causa/efeito 5 é tão presente.<br />
O discurso jurídico é, por excelência, o espaço da argumentação, do convencimento e<br />
até da retórica, visto que a finalidade de toda argumentação é provocar ou aumentar a adesão<br />
das pessoas às teses apresentadas. Desta forma, pod<strong>em</strong>os considerar como argumentação<br />
adequada aquela que atinge seu propósito e é capaz de aumentar a adesão de forma tal que<br />
provoque no outro a ação pretendida.<br />
3) Os sujeitos do processo de comunicação<br />
O processo de comunicação é o palco <strong>em</strong> que surg<strong>em</strong> os personagens do discurso,<br />
porquanto s<strong>em</strong>pre que alguém enuncia não o faz para si mesmo, mas para o outro. Isso é tão<br />
real que, mesmo quando falamos com nós mesmos, reportamo-nos a um “eu” interno que<br />
dialoga com o “eu” externo.<br />
Além dessa dualidade EU – TU, o EU manifestado no texto nunca é transparente:<br />
mesmo quando assume deliberadamente o discurso, faz uso de uma ou mais “máscaras”. Isso<br />
ocorre porque nós, devido à nossa natureza humana, racional e social, nunca diz<strong>em</strong>os tudo o<br />
que gostaríamos de dizer. S<strong>em</strong>pre nos v<strong>em</strong>os limitados pelas circunstâncias sociais, pela<br />
necessidade de mantermos um padrão de convívio no mínimo razoável para com aqueles que<br />
estão ao nosso redor. Qu<strong>em</strong> não se comunica de uma forma comedida acaba por ser visto<br />
como uma pessoa agressiva, dura, que, <strong>em</strong> geral, não é b<strong>em</strong> vista socialmente – é o chamado<br />
ser inconveniente, com qu<strong>em</strong> não gostamos de nos relacionar.<br />
Nesse processo, <strong>em</strong> princípio dual, a relação de produção e de interpretação dentro do<br />
ato de linguag<strong>em</strong>, segundo Charaudeau (2005, p.17), está relacionada à percepção que os<br />
parceiros têm um do outro e ao reconhecimento do direito à fala. Deste modo, é importante<br />
que “possuam <strong>em</strong> comum um mínimo de saberes postos <strong>em</strong> jogo no ato de troca linguageira.”<br />
O que se vê, de fato, é uma determinada assimetria entre o processo de produção e o de<br />
interpretação do ato de linguag<strong>em</strong>. Para construir essa relação comunicativa, o produtor cria a<br />
realidade do texto – o mundo textual – que é uma “versão” de um fragmento da realidade de<br />
fato. Apesar de o mundo textual ser um simulacro do mundo real, é por meio deste processo<br />
que o ser que enuncia manifesta suas intenções, traduz seu querer, enfim, expressa o seu<br />
pensar.<br />
5<br />
Denominada, por nós, como relação de causalidade que perpassa qualquer discurso argumentativo, por isso está<br />
s<strong>em</strong>pre presente no discurso jurídico, adquirindo formas e contornos distintos.<br />
365
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
É claro que o mundo do produtor e do receptor não são necessariamente idênticos, o que<br />
gera percepções diferentes acerca de um mesmo assunto. Além disso, é impossível, para o<br />
produtor, retratar toda a realidade daquilo que quer. Em função disso, diz<strong>em</strong>os que o “mundo<br />
textual” é uma faceta da realidade e não a realidade de fato, uma vez que o processo de<br />
comunicação é uma via de mão dupla: o produtor enuncia, o receptor decodifica a enunciação<br />
de acordo com seu contexto e passa a ser o produtor do seu próprio texto a partir da<br />
interpretação feita. Dessa forma, aquele que primeiro havia se manifestado por sua vez podese<br />
tornar o receptor, se houver um comentário feito diretamente a ele sobre seu texto inicial.<br />
Convém ressaltar também que, nesse processo de representação dentro de um texto,<br />
existe o desdobramento do EU como sujeito-produtor do ato de linguag<strong>em</strong> e do TU como<br />
sujeito-receptor deste mesmo ato, já que aquilo que v<strong>em</strong>os realmente são dois EUs e dois<br />
TUs. Diante dessa duplicidade, é necessário esclarecer que existe o TU destinatário (TUd) e o<br />
TU interpretante (TUi). Assim, aquele “[...] é um sujeito de fala , que depende do EU, já que é<br />
instituído por este último”; já este (TUi) “[...] é um sujeito que age independente do EU, que<br />
institui a si próprio como responsável pelo ato de interpretação que possui”. (Charaudeau,<br />
2008, p.47)<br />
O EU, ao construir seu discurso, fabrica um TU-destinatário ideal para o ato de<br />
enunciação projetado. Nesse viés, o EU acredita que t<strong>em</strong> domínio total sobre o Tudestinatário,<br />
porque supõe ser “transparente” para este personag<strong>em</strong> do discurso. Na realidade,<br />
o EU faz uma projeção do ethos do Tu-destinatário e “aposta” que ele será capaz de<br />
depreender as intenções lançadas pelo enunciador do texto.<br />
Vale dizer que o Tu-destinatário está s<strong>em</strong>pre presente, independente de haver ou não<br />
um diálogo direto com ele. Em outros termos, mesmo que não se fale diretamente com o TU,<br />
ele existe, haja vista que se constitui no motivo para se produzir um texto coerente.<br />
Além do Tu-destinatário, que é aquele imaginado pelo EU, há também o Tuinterpretante.<br />
Esse é um ser real, que pode se aproximar daquele “imaginado” pelo EU no ato<br />
de enunciação ou ser completamente distinto dele. Assim, não existe, necessariamente,<br />
equivalência entre o Tu-interpretante e o Tu-destinatário, pois este é uma imag<strong>em</strong> projetada<br />
no processo de construção dos discursos e aquele se materializa no processo de interpretação,<br />
existe no concreto da compreensão, mas não no processo de produção. É claro, portanto, que<br />
n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre existe simetria entre as possíveis reações desses “TUs”. Enquanto há suposta<br />
transparência no processo de depreensão de intencionalidade entre o EU e o Tu-destinatário,<br />
há opacidade entre o EU e o Tu-interpretante.<br />
Nesse processo de jogo discursivo, Charaudeau (1983) informa que o Tu- interpretante,<br />
por causa de sua interpretação, envia ao EU uma imag<strong>em</strong> diferente daquela que o EU<br />
esperava. Assim, o sujeito percebido pelo Tu-interpretante é o Eu-enunciador a que se opõe o<br />
EU que produz a fala, denominado pelo estudioso francês de Eu-comunicante. Dessa maneira,<br />
o Eu-enunciador “[...] é um ser de fala s<strong>em</strong>pre presente no ato de linguag<strong>em</strong>, quer seja<br />
explicitamente marcado, quer esteja apagado na configuração verbal do discurso[...]”<br />
(Charaudeau, 2008, p.48).<br />
V<strong>em</strong>os que a construção do discurso envolve um simulacro, pois, de um lado, da<br />
perspectiva da produção, o Eu-enunciador é uma projeção de qu<strong>em</strong> produz o ato de linguag<strong>em</strong><br />
(Eu-comunicante). Na verdade, ele equivale ao traço de intencionalidade do Eu-comunicante<br />
no processo de produção. Já por outro lado, da perspectiva da interpretação, o Eu-enunciador<br />
366
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
é uma imag<strong>em</strong> construída pelo Tu-interpretante, como uma possibilidade acerca das intenções<br />
alçadas no ato de produção.<br />
Assim, observando essa relação paralela, ao lado do Eu-comunicante, há a projeção do<br />
Eu-enunciador. Em razão disso, é mais fácil para este “jogar” tanto com a transparência<br />
quanto com a opacidade das intenções espalhadas no texto. Com efeito, não há relação de<br />
transparência entre Eu-enunciador e Eu-comunicante. (Charaudeau, 2008, p.49).<br />
À luz disso, é possível perceber que o Eu-comunicante e o Tu-interpretante são pessoas<br />
reais, <strong>em</strong> um contexto real, ao passo que o Eu-enunciador e o Tu-destinatário são projeções<br />
dentro do processo de comunicação.<br />
Ad<strong>em</strong>ais, no processo de representação, é importante notar que, quando o Eucomunicante<br />
fala, pronunciam-se, por intermédio desse ser, não só as características pessoais,<br />
o segmento social, a faixa social, o segmento profissional, a ideologia, etc., mas também a<br />
classe que este ser representa dentro do universo histórico-social <strong>em</strong> que ele está envolvido.<br />
Há ainda um outro aspecto que, convém l<strong>em</strong>brar, r<strong>em</strong>ete à idéia de um texto ser<br />
interpretado isoladamente, isto é, fora das circunstâncias de produção. Isso pode levar a uma<br />
interpretação equivocada, pois é possível que o TU-interpretante construa uma imag<strong>em</strong><br />
(interpretação) que é resultante de suas referências ou mesmo experiências.<br />
Esse processo de manifestação dos sujeitos do discurso é muito evidente dentro do<br />
espaço social do âmbito jurídico, uma vez que os sujeitos nessa esfera se manifestam como<br />
personagens de fato, inclusive o próprio eu-comunicante, que é a “pessoa real”, é uma<br />
transfiguração do real no momento <strong>em</strong> que há um texto e um determinado cenário se cria.<br />
4) Ethos discursivo: a construção do personag<strong>em</strong><br />
O processo de interação no ato de comunicação é s<strong>em</strong>elhante ao que ocorre entre<br />
personagens no teatro. Na verdade, representamos o t<strong>em</strong>po todo. Devido a isso, é importante<br />
ter claro o processo de construção do ethos, visto que é o conhecimento de tal processo que<br />
proporcionará maior esclarecimento da relação entre o EU que enuncia e o TU com qu<strong>em</strong> se<br />
dialoga.<br />
O termo ethos, de orig<strong>em</strong> grega, compreende as propriedades que os oradores atribuíam<br />
a si mesmo, de modo implícito, por meio da forma de falar. Na realidade, eles não falavam de<br />
suas peculiaridades reais, mas, pela maneira de se expressar, mostravam o que queriam<br />
aparentar.<br />
Aristóteles inclui o ethos como meio discursivo de influenciar um auditório, juntamente<br />
com o logos e o pathos. O logos pertence ao domínio da razão e torna possível o<br />
convencimento; já o ethos e o pathos se refer<strong>em</strong> à esfera da <strong>em</strong>oção, que ambos tornam<br />
possível a <strong>em</strong>oção, <strong>em</strong>bora sejam distintos quanto ao foco de atuação, o pathos sendo voltado<br />
para o auditório e o ethos para o orador. Tanto o ethos quanto o pathos diz<strong>em</strong> respeito a<br />
disposições psicológicas que não equival<strong>em</strong>, necessariamente, ao estado real do orador.<br />
O Dicionário Houaiss (2001, p. 1271) apresenta dois significados expressivos para o<br />
termo ethos – o primeiro corresponde à capacidade d<strong>em</strong>ostrar um caráter pessoal, de um<br />
padrão relativamente constante de disposições morais, afetivas, comportamentais e<br />
intelectivas do indivíduo; o segundo refere-se ao t<strong>em</strong>peramento predominante de um<br />
367
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
personag<strong>em</strong>, caracterizável pela vontade, paixões e hábitos que determinam seu<br />
comportamento <strong>em</strong> um enredo dramático.<br />
A primeira noção de ethos é relativa à ética; a segunda é aquela voltada para a<br />
construção de um personag<strong>em</strong> num dado cenário específico. Cumpre ressaltar que o ser criado<br />
t<strong>em</strong> características que lhe são peculiares, pois está investido de uma função dentro de um<br />
roteiro pré-determinado. Esta segunda concepção concerne ao caráter do personag<strong>em</strong> e às<br />
reações que ele provoca <strong>em</strong> um auditório, algo s<strong>em</strong>elhante ao que era exercitado pelos antigos<br />
oradores e que se mostra bastante presente no discurso político.<br />
Tais concepções pod<strong>em</strong> ser transpostas para o discurso, assim, o ethos será a imag<strong>em</strong><br />
que o locutor projeta de si por meio do discurso. Essa imag<strong>em</strong> não equivale ao ser real, mas o<br />
que ele deixa passar por meio de seu discurso. Assim, o EU do ator, num palco, não<br />
corresponde exatamente à pessoa dele, mas a uma representação daquilo que ele pretende<br />
mostrar (personag<strong>em</strong> que foi criado). E o TU representado no palco torna-se uma instituição<br />
pensada, visto que é uma projeção do outro feita pelo ator. Por isso, para Charaudeau (2006,<br />
p. 115),<br />
O ethos, enquanto imag<strong>em</strong> que se liga àquele que fala, não é uma propriedade exclusiva<br />
dele; é antes de tudo a imag<strong>em</strong> de que se transveste o interlocutor a partir daquilo que diz.<br />
O ethos relaciona-se ao cruzamento de olhares: olhar do outro sobre aquele que fala, olhar<br />
daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê.<br />
Neste mesmo viés, na vertente retórica, Barthes (apud Pauliukonis, 2003, p. 40) alega<br />
que o orador não precisa dizer, mas fazer acontecer. Assim, a persuasão não consiste naquilo<br />
que o orador diz de si, mas no que mostra. Trata-se, portanto, do que ele “apresenta” e não do<br />
que “representa”. É bom l<strong>em</strong>brar que a persuasão, então, está ligada ao fator credibilidade, e<br />
não ao caráter do locutor.<br />
Maingueneau (2002, p. 98), por sua vez, garante que “ethos não diz respeito apenas [...]<br />
à eloqüência judiciária ou aos enunciados orais: é válido também para qualquer discurso,<br />
mesmo para o escrito”. O fato de, no texto escrito, não se ver explicitamente qu<strong>em</strong> fala não é<br />
impedimento para se perceber o caráter de qu<strong>em</strong> se enuncia, uma vez que, consoante o autor<br />
(2002, p. 98) “a leitura faz [...] <strong>em</strong>ergir uma instância subjetiva que des<strong>em</strong>penha o papel de<br />
fiador do que é dito” (grifo do autor).<br />
Desse modo, pensar <strong>em</strong> ethos é pensar <strong>em</strong> uma imag<strong>em</strong> projetada por meio da<br />
enunciação, <strong>em</strong> que se sobrepõe a capacidade de persuadir, de transmitir credibilidade ao<br />
caráter de qu<strong>em</strong> enuncia. Tal imag<strong>em</strong> é uma máscara que o ator coloca sobre seu personag<strong>em</strong><br />
com a finalidade de alcançar a simpatia do outro.<br />
Além disso, ao tratar de ethos, Amossy (2011, p.9) também declara que<br />
Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imag<strong>em</strong> de si. Para tanto, não é<br />
necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades n<strong>em</strong> mesmo que fale<br />
explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas<br />
crenças implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa.<br />
Deliberadamente ou não, o locutor efetua <strong>em</strong> seu discurso uma apresentação de si. Que a<br />
maneira de dizer induz a uma imag<strong>em</strong> que facilita, ou mesmo condiciona a boa realização<br />
do projeto, é algo que ninguém pode ignorar s<strong>em</strong> arcar com as consequências.<br />
Essa representação ocorre <strong>em</strong> qualquer tipo de texto, pois é interessante verificar que,<br />
conforme Maingueneau (2002, p. 95), “toda fala procede de um enunciador encarnado;<br />
mesmo quando escrito, um texto é sustentado por uma voz – a do primeiro sujeito situado<br />
368
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
para além texto”. Ora, <strong>em</strong> qualquer tipo de texto, prevalece uma voz, mesmo que “mascarada”<br />
através de diversos subterfúgios, mas, certamente, ela existe.<br />
Há que se destacar outro aspecto, que é a imag<strong>em</strong> construída pelo ethos no discurso.<br />
Consoante Charaudeau (2006, p.137), essa imag<strong>em</strong> se manifesta numa relação triangular entre<br />
o si, o outro e um terceiro ausente que é portador de uma imag<strong>em</strong> ideal de referência. Dessa<br />
maneira, para Charaudeau, “[...] o si procura endossar essa imag<strong>em</strong> ideal; o outro se deixa<br />
levar por um comportamento de adesão à pessoa que a ele se dirige por intermédio dessa<br />
mesma imag<strong>em</strong> ideal de referência”. No discurso jurídico, as imagens do ethos são,<br />
simultaneamente, voltadas para si mesmo, para o outro que é alvo do ato de linguag<strong>em</strong> e para<br />
os valores de referência.<br />
A percepção da concretização do ethos no discurso é delineada por meio de marcas<br />
discursivas que deixam um rastro de informações, as quais permit<strong>em</strong> entrever os traços do<br />
sujeito discursivo, ou seja, é possível que o outro a qu<strong>em</strong> se dirige o discurso depreenda tais<br />
configurações.<br />
A construção do ethos, portanto, por parte do locutor, implica diretamente a produção<br />
de um discurso permeado de intenções, visto que o locutor se pronuncia como um EU<br />
discursivo que t<strong>em</strong> objetivos supostamente claros a ser<strong>em</strong> atingidos.<br />
Por isso, como uma espécie de estratégia discursiva, o locutor procura antecipar as<br />
representações do interlocutor para estruturar seu discurso, de tal forma que ele se constitua<br />
“imaginário” do outro, mesmo que seja para produzir ilusões do real.<br />
Tal estratégia envolve diretamente a preocupação do Eu com o outro, pois aquele busca<br />
conhecer qu<strong>em</strong> é este, o lugar onde está e até alguma referência ideológica. Isso revela uma<br />
preocupação dialógica.<br />
A construção do ethos discursivo não parte unicamente daquele que enuncia. Em nossa<br />
perspectiva, acreditamos que o interlocutor é um co-participante deste processo. Em razão<br />
disso, para haver um processo efetivo de comunicação, é essencial que haja uma preocupação<br />
por parte do interlocutor <strong>em</strong> recuperar o ethos do locutor, procurando verificar os possíveis<br />
níveis de veracidade daquilo que se enuncia. Em outros termos, a existência de uma<br />
disposição por parte do outro <strong>em</strong> tentar decodificar as marcas enunciativas do ethos presentes<br />
no discurso irá permitir que o mesmo possa deslindar a trama discursiva produzida pelas<br />
imagens criadas.<br />
Assim, quando se pensa <strong>em</strong> ethos discursivo, a função do outro é procurar alinhar o seu<br />
ethos com o do locutor para haver um processo comunicativo pleno. Isso se mostra de<br />
extr<strong>em</strong>a importância, porque, na relação discursiva, o outro troca de lugar a todo momento<br />
com o locutor, visto que, <strong>em</strong> um momento, o outro “recebe” a enunciação, entretanto, no<br />
minuto seguinte, é esse outro que passa a ser o locutor. Vê-se, de fato, um jogo discursivo.<br />
Apesar disso, infelizmente, <strong>em</strong> se tratando de discurso, isso n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre ocorre, haja<br />
vista que, às vezes, não há uma preocupação do interlocutor <strong>em</strong> “decodificar” o ethos do<br />
locutor. Nesse caso o processo comunicativo fica prejudicado.<br />
Todavia, ciente de tal realidade, <strong>em</strong> geral o locutor cria um ethos que se aproxime ao<br />
máximo da realidade do interlocutor. Um ex<strong>em</strong>plo nítido disso são os discursos da mídia,<br />
cujas finalidades visam ser as mais claras possíveis.<br />
369
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Já não se pode dizer o mesmo do discurso jurídico <strong>em</strong> muitas situações, visto que é<br />
comum haver um locutor que não deseja ser “desnudado”, mas que anseia passar na<br />
penumbra, criando imagens de persuasão, ou mesmo dificultar o processo de compreensão do<br />
outro, a fim de prejudicar uma possível defesa. Como se pode perceber no fragmento desta<br />
sentença:<br />
Convulsões... Perda de equilíbrio... Perda de forças e reflexos... Crises de ausência...<br />
Cegueira... Expectativa de vida: 6 meses! Esses são alguns dos sintomas da doença do<br />
Reclamante 6 apontados às fls. 34/35, b<strong>em</strong> como a descrição do laudo médico indicando que<br />
esse tipo de ‘tumor com grau de malignidade t<strong>em</strong> sobrevida mediana de cerca de seis<br />
meses’ (fl.34).Essa é a situação <strong>em</strong> que se encontra o Autor. Laborou, por muito t<strong>em</strong>po, na<br />
<strong>em</strong>presa com diligência, com fidelidade, com zelo. Contribuiu com seu trabalho para o<br />
progresso da Reclamada. Agora... está aposentado por invalidez. Não t<strong>em</strong> qualquer<br />
expectativa. Está cego. Está doente. E com seis meses de vida. (Sentença – RT 0913/2005).<br />
Antes de comentar acerca das imagens projetadas pelo ethos do magistrado, faz-se<br />
necessário esclarecer que o juiz está julgando o pedido do <strong>em</strong>pregado de reaver seu plano de<br />
saúde, pois, ao ser aposentado, ele foi desligado da <strong>em</strong>presa, o que ocasionou o término desse<br />
benefício.<br />
Conquanto haja a situação lamentável do <strong>em</strong>pregado, é evidente que, nesta sentença, o<br />
magistrado cria um ethos sensacionalista, ou seja, o ethos voltado para o outro busca seduzir a<br />
pessoa a qu<strong>em</strong> se dirige, visto que o uso de frases seguidas de reticências forma um processo<br />
de gradação e faz com que o leitor se solidarize e passe a considerar a <strong>em</strong>presa como uma<br />
entidade desumana que não se comove com tal situação. Importante ressaltar que até aqui não<br />
nos foi apresentada a defesa da <strong>em</strong>presa, mas nós já a condenamos.<br />
Ao produzir o ethos sensacionalista, com traços evidentes de um texto de propaganda, o<br />
magistrado busca manter uma eqüidistância (o ethos produzido acerca de si), tentando dar a<br />
falsa ilusão de que ele não está presente no texto. O que há ali é apenas uma projeção<br />
discursiva construída para aquela situação específica; isso está ligado à ideia do “terceiro<br />
ausente”, de Charaudeau (2006, p.114-118), uma vez que a imag<strong>em</strong> ideal de um magistrado é<br />
aquela <strong>em</strong> que ele está “acima do b<strong>em</strong> e do mal”. Em virtude disso, ele seria considerado<br />
habilitado para julgar os fatos, já que supostamente teria uma “neutralidade” (apenas para<br />
l<strong>em</strong>brar – isso é um mito) necessária para dar uma decisão justa.<br />
Por isso, dentro do discurso jurídico, a formação do ethos, por parte do locutor,<br />
depende, essencialmente, do subtipo de texto (petição inicial, sentença, contestação), b<strong>em</strong><br />
como da natureza do gênero discursivo, porque, conforme a modalidade deste (decisório,<br />
processual, técnico, normativo, opinativo) 7 , o qual se consolida numa dada situação<br />
comunicativa, o locutor revela maior ou menor grau de preocupação com o interlocutor e com<br />
as estratégias a ser<strong>em</strong> utilizadas.<br />
6<br />
Reclamante e Reclamada são termos que designam, respectivamente, o <strong>em</strong>pregado que move uma ação<br />
trabalhista e a <strong>em</strong>presa contra a qual essa ação é movida.<br />
7<br />
Essa classificação refere-se aos gêneros textuais que exist<strong>em</strong> no âmbito jurídico (Andrade, 2007). Tal<br />
classificação se deve ao posicionamento discursivo dos sujeitos participantes do processo comunicativo, b<strong>em</strong><br />
como a orientação discursiva de cada texto.<br />
370
5) Encenação do discurso jurídico<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O texto é um palco <strong>em</strong> que se apresentam os atores, no qual está o cenário, o figurino,<br />
as luzes, enfim, todos os el<strong>em</strong>entos que ajudam a construir o espetáculo que se quer mostrar<br />
para o leitor. Às vezes, há probl<strong>em</strong>as com os el<strong>em</strong>entos que compõ<strong>em</strong> o ato que será<br />
apresentado, mas t<strong>em</strong>-se o ato <strong>em</strong> qualquer circunstância.<br />
O discurso jurídico não foge a essa realidade, ao contrário, o discurso jurídico é o palco<br />
por excelência para encenação das teses que são defendidas. Para mobilizar a compreensão do<br />
outro, recorre a vários artifícios.<br />
Neste sentido, é necessário entender que o objeto deste estudo – a audiência trabalhista<br />
– é um cenário específico, no qual se desenrolam diversas cenas, com os mais diversos<br />
autores e com os mais variados recursos. Os atores desse cenário são específicos e atuam de<br />
acordo com a situação apresentada. Na verdade, estamos <strong>em</strong> um teatro no qual os personagens<br />
são os advogados, as partes (autor e réu), o magistrado, o escrivão e a plateia.<br />
Esse cenário de uma audiência trabalhista possui diversas características de uma peça de<br />
teatro que são encontradas no ambiente forense, como é o caso da marcação de cena, dos<br />
figurinos e do roteiro programado dos personagens, das falas, do cenário, do improviso.<br />
Na questão da marcação de cena, pode ser feita a referência ao local específico <strong>em</strong> que<br />
cada pessoa deve se colocar na sala de audiência. No caso do magistrado, ele se senta ao<br />
centro e num plano mais elevado, transparecendo uma hierarquia artificial, se comparado aos<br />
advogados e às partes, que se sentam no plano inferior da sala de audiência. Próximos ao juiz,<br />
porém <strong>em</strong> lados opostos, sentam-se os advogados, e logo depois as partes (autor e réu), uma<br />
de frente para a outra, proporcionando um melhor contato e eficiência do principio da<br />
oralidade. Vale ressaltar que o réu se senta obrigatoriamente do lado direito do juiz, e o autor<br />
do lado esquerdo, ambos acompanhado de seus respectivos advogados. Essa marcação é fixa<br />
e não pode ser mudada arbitrariamente, já que caracteriza o ambiente forense e possibilita a<br />
maior compreensão e visualização da audiência.<br />
Em referência ao figurino da encenação da audiência trabalhista, percebe-se que<br />
geralmente o objetivo maior é transmitir seriedade à situação, por isso os personagens se<br />
vest<strong>em</strong> de maneira formal, evitando ao máximo roupas chamativas e inconvenientes para<br />
aquela situação (roupas decotadas ou muito “descoladas”, por ex<strong>em</strong>plo). Nota-se que os juízes<br />
estão, na maioria esmagadora das vezes, com sua vestimenta tradicional, o terno e a gravata.<br />
Isso pode se explicar no intuito de passar formalidade à situação e impor a vontade<br />
apresentada, conseguindo conduzir a audiência da maneira que desejam, ou seja, constro<strong>em</strong><br />
um personag<strong>em</strong> íntegro e concentrado na melhor aplicação da lei. Os advogados costumam<br />
usar o mesmo tipo de vestimentas. Quanto às partes, nota-se mais despojamento e<br />
informalidade, pois muitas vezes, sobretudo <strong>em</strong> audiências trabalhistas, elas sa<strong>em</strong><br />
rapidamente de seus trabalhos para estar<strong>em</strong> presentes à audiência, portanto não se preocupam<br />
tanto com a imag<strong>em</strong> mostrada através da roupa, mas sim com a projetada pela fala.<br />
No que tange ao roteiro programado, cabe l<strong>em</strong>brar que as duas partes, juntamente com<br />
seus advogados, organizam os fatos e o que será falado nas audiências; defin<strong>em</strong> como<br />
objetivo a concretização correta de tudo aquilo que foi por eles ensaiado, e, no momento da<br />
audiência, na hora da apresentação real, tudo deve sair de acordo com o “script”. A<br />
recompensa pela eficácia do plano anteriormente ensaiado serão os “aplausos finais” a ser<br />
371
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
recebidos por aqueles personagens que melhor ensaiaram seus textos e argumentos, ou seja,<br />
saír<strong>em</strong> vencedores no conflito litigioso.<br />
Quanto às falas, <strong>em</strong> audiência t<strong>em</strong>-se b<strong>em</strong> claro qu<strong>em</strong> é o “juiz” – ele é a Excelência –e<br />
os modos de se dirigir a ele são mais refinados, <strong>em</strong> geral d<strong>em</strong>onstram que ele é um ser<br />
“superior”. Mas isso não se restringe ao magistrado, os advogados são “doutores”, mesmo<br />
s<strong>em</strong> ter feito doutorado; mesmo se muitos dos que ali estão são meros estagiários (não<br />
completaram a <strong>graduação</strong>), já foram elevados à categoria de doutor. Essas falas denotam<br />
hierarquia e poder, pois as partes, <strong>em</strong> geral, são figurantes, não têm fala. Só pod<strong>em</strong> dizer algo<br />
quando isso é requerido por algum dos atores detentores da fala, no mais ficam mudas e<br />
restritas a um papel “insignificante”.<br />
Em se tratando do cenário, <strong>em</strong> geral, os prédios da justiça são b<strong>em</strong> estruturados, limpos<br />
e organizados. Quando se adentra no ambiente forense, é como se a pessoa estivesse entrando<br />
<strong>em</strong> outro mundo – o mundo jurídico – com linguag<strong>em</strong> própria, roupag<strong>em</strong> específica e sujeitos<br />
definidos. O cenário da audiência é b<strong>em</strong> delimitado e, como dito, os sujeitos ocupam seus<br />
espaços <strong>em</strong> cena. Há fatos relevantes a ser<strong>em</strong> destacados. A cadeira do juiz, <strong>em</strong> geral, é a<br />
maior; o secretário de audiência fica “escondido” (quase não é visto n<strong>em</strong> ouvido); a "plateia"<br />
é mantida à parte por uma espécie de “cercado”, que serve para separá-la do "palco”.<br />
Além desses el<strong>em</strong>entos, dev<strong>em</strong>os falar do improviso, pois, apesar de as falas e de os<br />
papeis estar<strong>em</strong> definidos e claros, não raro v<strong>em</strong>os alguém fugindo ao que estava no “script”.<br />
Isso ocorre quando um juiz faz uma brincadeira, quando um advogado chega atrasado, ou<br />
quando uma test<strong>em</strong>unha mente e o juiz precisa rever suas estratégias para conseguir formar<br />
seu entendimento acerca do que foi dito.<br />
Dessa forma, percebe-se que a comparação da audiência trabalhista com uma peça<br />
teatral é coerente: esse processo de encenação é a representação de algo que se quer<br />
transmitir, e depende da interpretação do outro para ser compreendido, é uma versão de qu<strong>em</strong><br />
fala e de qu<strong>em</strong> vê. Isso se concretiza na medida <strong>em</strong> que a comunicação jurídica está pautada<br />
<strong>em</strong> um processo de comunicação próprio dos personagens da cena, <strong>em</strong> que o comunicador<br />
cria um personag<strong>em</strong> com características adequadas ao convencimento dos d<strong>em</strong>ais<br />
interpretantes, tendo como objetivo persuadi-los do que quer mostrar. Mas há que se ter<br />
cuidado com o fato de não se perder <strong>em</strong> meio aos personagens criados, de forma que fique<br />
b<strong>em</strong> claro que cada situação merece um personag<strong>em</strong> específico, e por isso as características<br />
reais da pessoa não deveriam se misturar com as fictícias. Tais apresentações dos personagens<br />
se constitu<strong>em</strong> na manifestação do ethos dentro do discurso jurídico.<br />
6) Audiências trabalhistas: o ethos do magistrado<br />
6.1) O corpus: a audiência trabalhista<br />
O cenário escolhido para a <strong>análise</strong> do ethos foi o de audiências <strong>em</strong> Varas Federais do<br />
Trabalho, e o personag<strong>em</strong> foco da <strong>análise</strong> foi o do magistrado. Este estudo não se restringiu a<br />
um juiz, porque isso seria tendencioso; tiv<strong>em</strong>os um corpus formado por quatro magistrados<br />
distintos. Além disso, cada um desses magistrados realizou 10 audiências presenciadas por<br />
nós, tendo sido presenciadas ao todo 40 sentenças.<br />
372
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Além disso, para que a pesquisa fosse realizada, o método de escolha respeitou alguns<br />
pontos específicos, como o fato de ser<strong>em</strong> observadas Varas do Trabalho que tivess<strong>em</strong><br />
audiências no dia 25 de nov<strong>em</strong>bro de 2011, no período da tarde, e que se localizass<strong>em</strong> na<br />
capital do Espírito Santo – Vitória.<br />
Outro fator relevante é que, num primeiro momento, o registro das audiências foi<br />
apenas escrito, s<strong>em</strong> que os magistrados tivess<strong>em</strong> noção de que estavam sendo observados<br />
durante o desenrolar de várias audiências.<br />
Já num segundo momento, houve um consentimento tácito de dois magistrados para que<br />
houvesse alguma forma de gravação das audiências. Vale dizer que conseguir fazer registro<br />
de audiências, mesmo que seja só de áudio, é muito difícil, visto que os magistrados <strong>em</strong> geral<br />
não quer<strong>em</strong> nenhum tipo de registro mecânico do que ocorre no momento das audiências.<br />
6.2) O ethos do magistrado <strong>em</strong> audiência<br />
6.2.1) Primeiro contato – s<strong>em</strong> gravação de áudio<br />
É de grande relevância que se tenha <strong>em</strong> mente que, neste primeiro momento de<br />
observação das audiências, a <strong>análise</strong> foi realizada s<strong>em</strong> a consciência dos magistrados, uma vez<br />
que eles não foram informados formalmente.<br />
Em uma das audiências analisadas, foi possível encontrar um juiz que apresentava<br />
grande sensibilidade ao reformular as frases de modo mais acessível para a compreensão do<br />
reclamante, nos casos <strong>em</strong> que se tratava de pessoas humildes, pertencentes às classes menos<br />
abastadas e que aparentavam um nível educacional baixo, motivo de grande surpresa, uma vez<br />
que o esperado era um juiz que se mantinha distante das partes e que se via apenas como um<br />
aplicador das leis.<br />
Dessa forma, foi possível analisar toda essa estratégia discursiva, que o juiz utiliza para<br />
persuadir o receptor através da imag<strong>em</strong> mostrada, afinal essa preocupação dialógica apresenta<br />
uma fala cheia de intenções.<br />
Ao observar o ethos discursivo na audiência trabalhista, nota-se que cada pessoa ali<br />
presente possui um ethos específico. Vale ressaltar o papel criado pelo juiz, uma vez que<br />
existe sobre ele uma carga de responsabilidade e de autoridade que deve ser des<strong>em</strong>penhada<br />
com cautela, para que não sejam cometidos abusos.<br />
Ao se pensar <strong>em</strong> Direito, as pessoas pensam imediatamente na lei; entretanto, uma lei<br />
de qualidade, se aplicada por um juiz que não saiba des<strong>em</strong>penhar o seu papel, de nada<br />
adiantaria. Outra função que os magistrados des<strong>em</strong>penham é a de “ajustar a balança”, isto é, o<br />
juiz, <strong>em</strong> uma audiência, deve sentir as necessidades das partes e sobrepesar a necessidade de<br />
cada uma, para que ninguém se beneficie à custa do outro.<br />
Pud<strong>em</strong>os observar o juiz como uma pessoa que se adapta a cada situação, mudando de<br />
postura de acordo com as circunstâncias. Isso se deu, por ex<strong>em</strong>plo, com respeito ao dever do<br />
juiz de advertir as test<strong>em</strong>unhas quanto à importância de falar a verdade <strong>em</strong> seu depoimento, já<br />
que a não observância desse princípio pode acarretar <strong>em</strong> prisão. Pud<strong>em</strong>os ver diferenças na<br />
postura de um juiz, que, <strong>em</strong> um dos casos, alertou a test<strong>em</strong>unha de forma branda, e, <strong>em</strong> outro,<br />
falou de forma áspera e seca om a test<strong>em</strong>unha. Isso porque, no segundo caso, já era notório<br />
373
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
que a test<strong>em</strong>unha estava a favor do reclamante, e não estava ali apenas para relatar os fatos,<br />
mas sim para tentar “ajudar” uma das partes.<br />
Outro caso que nos chamou a atenção ocorreu <strong>em</strong> uma audiência <strong>em</strong> que o juiz<br />
aparentava ter experiência, e até mesmo certa malícia, no modo como conduzia a audiência e<br />
o interrogatório das test<strong>em</strong>unhas, fazendo com que toda a audiência seguisse o caminho que<br />
desejava. Uma das atitudes mais marcantes do magistrado se deu quando o mesmo, ao se<br />
referir a uma advogada, disse, de forma áspera e firme, que as perguntas feitas por ela à<br />
test<strong>em</strong>unha deveriam ser s<strong>em</strong> indução, não lhe deveriam ser feitas perguntas dirigidas. A<br />
advogada retrucou dizendo que não estava entendendo o que o juiz queria dizer. Então, já s<strong>em</strong><br />
paciência, o juiz disse: “Você t<strong>em</strong> que perguntar a cor da caneta, e não se ela é azul”.<br />
Por fim, outro episódio motivo de destaque se passou durante uma audiência de<br />
instrução <strong>em</strong> que as partes, mal preparadas pelos seus respectivos advogados, quiseram<br />
conversar e formular perguntas livr<strong>em</strong>ente uma para a outra, e o juiz logo se manifestou com<br />
um tom de voz áspero: “Isso aqui não é um debate, onde vocês pensam que estão?”. Neste<br />
momento, o juiz teve que ser rígido para que fosse mantida a ord<strong>em</strong> durante a audiência, <strong>em</strong><br />
razão de ser autoridade e responsável pelo andamento daquele ato processual. Diante disso,<br />
fica evidente que o magistrado necessita, <strong>em</strong> todo o momento, se adequar às situações vividas<br />
durante as audiências.<br />
No tocante ao papel des<strong>em</strong>penhado historicamente pelos juízes, verifica-se que os<br />
magistrados eram vistos no passado como aplicadores do Direito puro, como é possível ver<br />
através da máxima “Dá-me o fato que eu lhe dou o direito” (Da mihifactum et dabotibi jus).<br />
Em decorrência desse pensamento, os juízes eram tidos como a “boca da lei”, seres s<strong>em</strong><br />
sentimentos que simplesmente aplicavam as leis aos casos concretos. Contudo, os<br />
magistrados da modernidade não dev<strong>em</strong> n<strong>em</strong> pod<strong>em</strong> ser vistos dessa forma. Ao contrário,<br />
dev<strong>em</strong> ser intérpretes das leis, mas também ser sensíveis para enxergar que há vidas por trás<br />
de cada processo, e que o curso dessas vidas está ligado diretamente à sentença que será<br />
proferida por eles.<br />
Com isso, torna-se de vital importância relatar que o juiz, durante toda a audiência, é<br />
um “ator”, sendo a figura de juiz um dos papéis que ele representa <strong>em</strong> sua vida, que não<br />
condiz, na íntegra, com qu<strong>em</strong> ele realmente é na sua vida pessoal. O juiz, fora do local de<br />
trabalho, abandona o ethos juiz e volta a ser uma pessoa “normal”, e é exatamente como uma<br />
pessoa “normal” que ele deve ser visto pelas d<strong>em</strong>ais pessoas. Afinal, como já relatado, o ethos<br />
é uma criação, uma construção da imag<strong>em</strong> e representação de um personag<strong>em</strong>, utilizado para<br />
alcançar um objetivo: persuadir o receptor com aquilo que é mostrado.<br />
6.2.2) Segundo contato – com gravação de áudio<br />
Nessa nova etapa, buscamos estudar o que mais despertou atenção anteriormente<br />
durante o primeiro contato com o cenário forense: a forma como o juiz se adapta às diferentes<br />
situações que aparec<strong>em</strong>, e assim t<strong>em</strong> a habilidade de encarnar diferentes personagens com<br />
características específicas de acordo com a necessidade. Ao nos aprofundarmos no assunto,<br />
compreend<strong>em</strong>os que esse é o ethos discursivo colocado na prática, sendo, exatamente, a<br />
capacidade do ser humano de criar personagens no intuito de convencer aquele que o escuta,<br />
por meio da imag<strong>em</strong> mostrada.<br />
374
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Nessa etapa, optamos por escolher especificamente dois juízes com características<br />
distintas, baseando-se nos relatos das d<strong>em</strong>ais pessoas que trabalhavam com eles. O primeiro é<br />
conhecido por sua serenidade e calma, sendo, além disso, um juiz com mais de 15 anos de<br />
magistratura; já o segundo é juiz novo <strong>em</strong> idade e <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po de magistratura, conhecido por<br />
manifestar falta de polidez ao tratar com os advogados e focar s<strong>em</strong>pre na resolução mais<br />
rápida do conflito. Cabe destacar que o fato de maior importância, nessa nova etapa, é que,<br />
dessa vez, foi pedida autorização aos magistrados para que as audiências analisadas foss<strong>em</strong><br />
registradas <strong>em</strong> áudio, o que foi concedido por ambos.<br />
É importante ressaltar que a observação dos os magistrados se iniciou desde o momento<br />
do pedido de autorização para a gravação de voz nas audiências trabalhistas, sendo necessário<br />
dizer que houve hesitação por parte dos juízes, que desejaram saber o local no qual seria<br />
apresentada a pesquisa, o que mostra a preocupação de ser<strong>em</strong> avaliados e expostos no local<br />
onde viv<strong>em</strong>. Mas o alívio e o “sim” vieram, concomitant<strong>em</strong>ente, ao tomar<strong>em</strong> conhecimento<br />
de que a apresentação da pesquisa seria realizada <strong>em</strong> uma universidade no Rio de Janeiro (no<br />
caso, a UERJ). Por fim, os juízes fizeram apenas questão de se assegurar<strong>em</strong> de que a<br />
gravação seria apenas de voz, não comprometendo a imag<strong>em</strong> do corpo; prova disso foi a fala<br />
de um deles ao se pronunciar dizendo “É apenas áudio, não é? Aí sim, tudo b<strong>em</strong>”.<br />
Dessa forma, pelo fato de já estar decidido o foco de nossa avaliação no ethos dos<br />
magistrados e, também, já haver prévio estudo com doutrinas a respeito do t<strong>em</strong>a, faltava<br />
verificar na prática forense, a aplicação dessa projeção daquele que fala, de forma que, nessa<br />
nova etapa da experiência, estávamos asseguradas com o auxilio de uma nova ferramenta: a<br />
gravação de voz. Todo esse conjunto já conquistado nos deixava cada vez mais radiantes e<br />
confiantes no sucesso da pesquisa.<br />
Já na primeira audiência, ao ser posicionado o gravador perto do magistrado que é<br />
conhecido por ser um pouco rude e impolido, o mesmo já proferiu a frase “Tenho que ser<br />
gente boa hoje!”, mascarando a postura adotada e já pensando na criação de um novo<br />
personag<strong>em</strong> para convencer os d<strong>em</strong>ais. Dessa maneira, observou-se que todas as outras<br />
audiências realizadas por esse magistrado se tornaram mecânicas, s<strong>em</strong> <strong>em</strong>oção e b<strong>em</strong><br />
diferentes das anteriormente relatadas pelos que já o conheciam. Com isso, o que gostaríamos<br />
de analisar, que seriam as reviravoltas feitas pelos magistrados <strong>em</strong> diferentes situações, não<br />
aconteceram devido à presença do gravador, que passou a ser uma espécie de intimidador ao<br />
magistrado.<br />
No decorrer das audiências do magistrado conhecido por sua serenidade, observamos<br />
que a linguag<strong>em</strong> jurídica é um <strong>em</strong>pecilho na comunicação com as partes no processo. A<br />
linguag<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> dúvida, é um “divisor de águas” na sociedade, e caracteriza cada ramo social<br />
por termos específicos, acabando por excluir os que não compreend<strong>em</strong> o que é falado.<br />
Isso pode ser concretizado <strong>em</strong> um fato que nos chamou atenção, quando o juiz se dirigiu<br />
diretamente a uma das partes e fez uma pergunta normal para qu<strong>em</strong> está acostumado com<br />
aquele ambiente e com termos jurídicos, mas que pode ser muito distante da realidade de um<br />
simples brasileiro. O juiz perguntou: “A senhora vai mover ação <strong>em</strong> face da reclamada?”.<br />
Houve silêncio por parte da senhora. Então, percebendo o não entendimento por parte dela, o<br />
juiz perguntou novamente, tentando deixar mais clara a frase: “A senhora vai entrar com uma<br />
ação contra a reclamada?”. Houve silêncio outra vez. Por fim, observando que havia um<br />
abismo entre os termos jurídicos específicos e a linguag<strong>em</strong> utilizada pela parte, o juiz decidiu<br />
usar termos mais populares, dizendo: “A senhora vai meter a <strong>em</strong>presa no pau?” A senhora<br />
375
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
respondeu s<strong>em</strong> pestanejar, prontamente e de forma segura: “Vou e vou ganhar tudo deles!”. É<br />
dessa forma que se percebe o quão importante é saber se comunicar da maneira correta, de<br />
forma que se escolha o meio mais adequado para se conversar com todos os tipos de pessoas.<br />
Afinal o outro pode se sentir submisso, ou até mesmo inferior aos d<strong>em</strong>ais, por não entender o<br />
que falam.<br />
Observe-se que a língua é a melhor forma de expressão que existe, é por meio da<br />
comunicação falada que as pessoas expressam sua identidade e personalidade. Portanto, devese<br />
buscar os meios mais eficazes para que as pessoas do povo express<strong>em</strong> seus pensamentos e<br />
construam seus personagens <strong>em</strong> dadas situações. É na adequação para cada ambiente e <strong>em</strong><br />
situações diversas que o ethos se concretiza a fim de convencer o outro por meio da<br />
persuasão.<br />
Observou-se, ao fazer esta pesquisa, que os magistrados se intimidaram com a presença<br />
de um instrumento que poderia repercutir nos personagens por eles adotados <strong>em</strong> cada<br />
situação. Isso, lamentavelmente, não nos proporcionou fatos diferentes e interessantes, como<br />
ocorreu no primeiro contato, <strong>em</strong> que não havia gravação n<strong>em</strong> não foi dito aos magistrados, de<br />
maneira formal, que estavam sendo observados.<br />
A nossa pesquisa pretendia comprovar, por meio de uma gravação mecânica, o que já<br />
havíamos percebido – o magistrado se adequa a cada realidade discursiva, e isso foi<br />
literalmente visto. Afinal, ao saber<strong>em</strong> que seriam gravados, os mesmos logo se preocuparam<br />
<strong>em</strong> construir um personag<strong>em</strong> diferente daquele que já era apresentado. Pode-se dizer que<br />
houve um juiz antes da gravação, e outro juiz, com características diferentes, após o registro<br />
de áudio.<br />
Portanto, ao analisar o ocorrido, perceb<strong>em</strong>os que o “bloqueio” dos juízes, e o poder<br />
intimidatório do gravador, que levou a uma mudança no comportamento por nós esperado,<br />
não passavam da plena confirmação do exercício do ethos nas audiências. Afinal, os juízes<br />
vieram a encarnavam novos personagens para passar<strong>em</strong> para o receptor a imag<strong>em</strong> por eles<br />
desejada, no caso, a de pessoas sérias e compenetradas no exercício da lei, assumindo um<br />
papel diferente do que foi analisado no primeiro contato.<br />
7) Considerações Finais<br />
O estudo da linguag<strong>em</strong> é de extr<strong>em</strong>a relevância, uma vez que a linguag<strong>em</strong> é a grande<br />
responsável pela interação do ser humano. O processo de comunicação entre os indivíduos se<br />
dá a partir do uso da linguag<strong>em</strong>, seja ela falada ou escrita, já que é a linguag<strong>em</strong> que permite<br />
ao ser humano expor os seus sentimentos internos para o mundo exterior e, assim, a partir da<br />
expressão linguística, “desbravar” o resto do mundo.<br />
A pesquisa desenvolveu-se a partir das <strong>análise</strong>s de audiências trabalhistas, focando mais<br />
precisamente a figura do Juiz Federal do Trabalho, no tocante ao ethos discursivo, a imag<strong>em</strong><br />
que era mostrada. Pud<strong>em</strong>os verificar que, <strong>em</strong> cada audiência, o juiz apresentava um ethos<br />
específico, um novo “papel”, que se alterava de acordo com as circunstâncias comunicativas.<br />
Isso aconteceu de forma mais marcada quando, depois de permitir a gravação das audiências,<br />
os juízes mudaram sua postura, adequando-a melhor ao que seria a conduta condizente com o<br />
“esperado” pela sociedade por parte de um magistrado. Aí a presença do "personag<strong>em</strong>" <strong>em</strong><br />
cena ficou mais evidente.<br />
376
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A experiência de realizar esta pesquisa foi excepcional, já que foi possível analisar um<br />
dos diversos aspectos da expressão linguística aplicada no discurso jurídico que compõe uma<br />
audiência trabalhista. Ficou claro que uma audiência trabalhista engloba diversas matérias do<br />
âmbito linguístico. O juiz, para ser um excelente profissional, necessita, além de todo o saber<br />
jurídico, se adaptar – criar ethos – para as diversas situações que aparec<strong>em</strong> todos os dias<br />
durante as audiência, lidando, assim, com cada circunstância da melhor forma possível, a fim<br />
de garantir a efetividade da justiça para qu<strong>em</strong> recorre ao poder judiciário.<br />
REFERÊNCIAS<br />
AMOSSY, R. (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2.ed. Trad. Dilson F. Cruz,<br />
Fabiana Komesu, Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 2011.<br />
ANDRADE, V. da S. R. A construção da causalidade na vertente dos gêneros textuais: uma<br />
<strong>análise</strong> da argumentação jurídica, 2007. 351 f. Tese (Doutorado <strong>em</strong> Língua Portuguesa) – Programa<br />
de <strong>Pós</strong>-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007. Disponível <strong>em</strong><br />
. Acesso <strong>em</strong>: 26 jul. 2010.<br />
ALMEIDA, F. A. Enunciação, ethos e gêneros do discurso na <strong>análise</strong> da interação. In:<br />
PAULIUKONIS, M. A. L.; GAVAZZI, S. (Orgs.). Texto e discurso: mídia, literatura e ensino. Rio<br />
de Janeiro: Lucerna, 2003, p. 71-84.<br />
BITTAR, E. C. B. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> jurídica. São Paulo: Saraiva, 2001.<br />
______; ALMEIDA, G. A. de. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001.<br />
BRAIT, B. Alteridade, dialogismo, heterogeneidade: n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre o outro é o mesmo. In: ______<br />
(Org.). Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. Campinas: Pontes; São Paulo:<br />
FAPESP, 2001, p.7-26.<br />
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à <strong>análise</strong> do discurso. 7.ed. Campinas: UNICAMP, s/d.<br />
______. Subjetividade, argumentação, polifonia: a propaganda da Petrobrás. São Paulo: UNESP,<br />
1998.<br />
CHARAUDEAU, P. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> e Discurso: modos de organização. Trad. Ângela S. M. Corrêa e Ida<br />
Lúcia Machado (ccords.). São Paulo: Contexto, 2008.<br />
______. Discurso das mídias. Trad. Ângela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2007.<br />
______. Discurso político. Trad. Fabiana Komesu, Dílson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto,<br />
2006.<br />
______. Uma <strong>análise</strong> s<strong>em</strong>iolingüística do texto e do discurso. In: PAULIOKONIS, M. A.; GAVAZZI,<br />
S. (Orgs.). Da língua ao discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005, p.11-29.<br />
377
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
______. Análise do Discurso: Controvérsias e perspectivas. In: MARI, H. et. al. (Orgs.).<br />
Fundamentos e dimensões da <strong>análise</strong> do discurso. Belo Horizonte: C. Borges; Fale-UFMG, 1999,<br />
p.27-43.<br />
______. Le contrat d’information médiatique: la spécificité de l’information télévisée. Encontro<br />
Franco-Brasileiro de Análise do Discurso, 2, 1996, Rio de Janeiro. Anais do II Encontro francobrasileiro<br />
de <strong>análise</strong> do discurso: o discurso da mídia. Rio de Janeiro: Círculo Interdisciplinar de<br />
<strong>análise</strong> do Discurso da Faculdade de <strong>Letras</strong> da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996, p.13-29.<br />
______. De la competência social de comunicación a las competências discursivas. Revista<br />
Latinoamericana de Estudios del Discurso, Venezuela, ano 1, n.1, vol.1, p.7-20, ago. 2001.<br />
______; MAINGUENEAU, D. Dicionário de <strong>análise</strong> do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.<br />
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 2002.<br />
MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. Organização Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de<br />
Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.<br />
______. Novas tendências <strong>em</strong> <strong>análise</strong> do discurso. Trad. Freda Indursky. Campinas: Pontes/Editora<br />
da UNICAMP, 1997.<br />
______. Pragmática para o discurso literário. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins<br />
Fontes, 1996.<br />
MARKY, T. Curso el<strong>em</strong>entar de Direito Romano.3.ed. São Paulo: Saraiva, 1987.<br />
MOURA, L. S. de M.; FERREIRA, M. C.; PAINNE, P. A. Manual de elaboração de projetos de<br />
pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.<br />
TUCCI, J. R. C.; AZEVEDO, L. C. de. Lições de história do processo civil romano. São Paulo:<br />
Revista dos Tribunais, 1996.<br />
378
Estudos do discurso<br />
379
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Poder e supr<strong>em</strong>acia: a venda do ensino de língua inglesa como língua<br />
estrangeira no Brasil<br />
Bruna Damiana (UERJ)<br />
RESUMO: Este trabalho t<strong>em</strong> como objetivo a <strong>análise</strong> e a probl<strong>em</strong>atização da forma através da qual é vendido o<br />
ensino da língua inglesa como língua estrangeira pelos principais cursos deste idioma oferecidos na cidade do<br />
Rio de Janeiro, Brasil. Tomando como ponto de partida a difusão e manutenção de ideologias pelos discursos,<br />
<strong>em</strong> caso especial o discurso midiático, e o crescimento da venda do ensino de língua inglesa no Brasil, dentro de<br />
um quadro <strong>em</strong> que culturas e economias do mundo inteiro encontram-se interligadas – a chamada Globalização –<br />
, e que a língua inglesa alcançou o status de “língua franca”, passando a ser considerada sinônimo de progresso,<br />
t<strong>em</strong>-se como hipótese a presença de estratégias discursivas nas propagandas desses cursos que legitimam e/ou<br />
faz<strong>em</strong> a manutenção da relação de poder existente entre língua e cultura inglesa (e/ou norte-americana), como<br />
dominantes, e língua portuguesa e cultura brasileira, como dominadas. O corpus de estudo compreende<br />
propagandas do gênero folder, totalizando oito itens, coletados <strong>em</strong> março de 2010. T<strong>em</strong>-se como referencial<br />
teórico-metodológico a Análise Crítica do Discurso, com base, primordialmente, nos conceitos de língua e<br />
ideologia, definidos por Norman Fairclough (1989) e John B. Thompson (1990), e cognição social, definido por<br />
Teun A. van Dijk (1993). Como o folder se caracteriza por ser um gênero multimodal, trabalha-se, ainda, com as<br />
categorias de representação visual dos atores sociais, por Theo van Leeuwen (1997). As escolhas léxicogramaticais<br />
veiculadas nas propagandas, junto às representações visuais dos atores sociais, são o ponto de<br />
entrada para a investigação do modo como opera a ideologia nos textos do corpus. Busca-se obter como<br />
conclusão a ratificação da hipótese aqui apresentada, uma vez feita a Análise Crítica dos textos.<br />
Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso, língua inglesa, propaganda, ideologia, sucesso.<br />
1) Introdução<br />
Em um quadro <strong>em</strong> que culturas e economias do mundo inteiro encontram-se interligadas<br />
– a chamada Globalização –, e que a mídia nacional e internacional exerce papel fundamental<br />
na difusão e manutenção de crenças e ideologias, há a crescente necessidade de uma <strong>análise</strong><br />
crítica da forma através da qual operam esses discursos midiáticos quanto a suas posições<br />
sociais, interesses e objetivos. Tal <strong>análise</strong> se dá com base <strong>em</strong> traços e pistas deixados nos<br />
mesmos, a fim de tornar clara a relação entre a linguag<strong>em</strong> e outras práticas sociais.<br />
Uma das questões encontradas nesse quadro é o status adquirido pela língua inglesa,<br />
sendo atualmente considerada “língua franca”. O amplo comércio relacionado à venda do<br />
ensino de língua inglesa é um fenômeno mundial e suas proporções são significativas quando<br />
se trata do território brasileiro. Com isso, t<strong>em</strong>-se o crescimento também do gênero<br />
propaganda, vinculado aos cursos que oferec<strong>em</strong> esse serviço.<br />
Tomando como ponto de partida a difusão e manutenção de ideologias pelos discursos,<br />
<strong>em</strong> caso especial o discurso midiático, e o crescimento da venda do ensino de língua inglesa<br />
no Brasil, o presente artigo visa à probl<strong>em</strong>atização e à <strong>análise</strong> da maneira através da qual essa<br />
venda é feita pelos principais cursos que oferec<strong>em</strong> o ensino de língua inglesa na cidade do Rio<br />
de Janeiro. T<strong>em</strong>-se como hipótese a presença de certas estratégias discursivas nas<br />
propagandas desses cursos que legitimam e/ou faz<strong>em</strong> a manutenção das relações de poder<br />
380
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
existentes entre língua e cultura inglesa (e/ou norte-americana), no papel de dominantes, e<br />
língua portuguesa e cultura brasileira, no papel de dominadas.<br />
O corpus de estudo compreende oito propagandas do tipo folder desses cursos,<br />
coletados <strong>em</strong> março de 2010. Serão analisadas, inicialmente, as escolhas léxico-s<strong>em</strong>ânticas<br />
veiculadas pelos sete itens, e, a seguir, a relação do conteúdo de suas mensagens com a<br />
realidade social mais abrangente. Uma vez que o gênero folder se caracteriza por ser um<br />
gênero multimodal, também será levada <strong>em</strong> consideração a representação visual dos atores<br />
sociais. Busca-se obter como resultado posterior à <strong>análise</strong> a ratificação da hipótese<br />
apresentada, b<strong>em</strong> como melhor compreensão da construção das relações entre mídia e<br />
público, da identidade sociocultural brasileira <strong>em</strong> contraste com a inglesa (e/ou norteamericana)<br />
e da versão da realidade apresentada por esses textos.<br />
Este trabalho se divide <strong>em</strong> oito partes, incluindo introdução, apresentação dos conceitos<br />
teóricos básicos, ideia e probl<strong>em</strong>a central de estudo, a própria <strong>análise</strong> crítica dos textos, uma<br />
breve discussão acerca dos resultados, conclusão, referências bibliográficas e anexos.<br />
2) Língua, Discurso e Poder na Análise Crítica do Discurso<br />
Antes de iniciar a prática da <strong>análise</strong> do corpus, faz-se necessária uma breve<br />
apresentação do foco da corrente teórica adotada, além dos principais conceitos, pertinentes à<br />
<strong>análise</strong>, trabalhados pela mesma.<br />
A Análise Crítica do Discurso (ACD) t<strong>em</strong> como foco a relação entre o mundo social e a<br />
linguag<strong>em</strong>, estudando a forma como a realidade é apresentada, sancionada e criticada através<br />
dos discursos. De forma mais específica, pode-se dizer que a ACD se ocupa da construção das<br />
relações sociais, identidades, conhecimento e, principalmente, poder, através da prática<br />
discursiva.<br />
Tendo como principais expoentes Norman Fairclough e Teun A. van Dijk, configura-se<br />
como corrente multidisciplinar, dialogando com diversas outras <strong>teoria</strong>s, especialmente com a<br />
obra de Michel Foucault no que tange às relações de poder encontradas na sociedade e à<br />
natureza reguladora do discurso. Sendo assim, para a ACD, a linguag<strong>em</strong> deve ser entendida<br />
como prática social, cujos textos são perpassados por relações de poder. Seus estudos estão<br />
interessados <strong>em</strong> mapear a forma como a materialidade discursiva é utilizada para criar,<br />
diss<strong>em</strong>inar, manter e legitimá-lo.<br />
É sabido que os discursos presentes na vida cotidiana pod<strong>em</strong> ser utilizados na<br />
construção ou legitimação de relações (desiguais) de poder, operando assim ideologicamente.<br />
Todavia, defende-se que tal poder não é inerente ao discurso e, sim, adquirido <strong>em</strong> sua<br />
articulação com a sociedade, a partir do uso que os agentes detentores do poder faz<strong>em</strong> do<br />
mesmo. A construção dessas relações acontece de forma dialética. Considera-se, portanto, a<br />
visão do teórico Mikhail Bakhtin, que aponta o meio social como centro organizador e<br />
regulador da atividade linguística.<br />
381
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Teun A. van Dijk (1993) postula que poder envolve controle, sendo este o controle de<br />
um grupo sobre o outro, ou de m<strong>em</strong>bros de um grupo sobre m<strong>em</strong>bros de outro grupo, e que o<br />
mesmo pode ocorrer de duas maneiras distintas. A primeira delas de forma limitadora, o que<br />
ocorre, por ex<strong>em</strong>plo, quando há desigualdade entre a força física de dois indivíduos, ou<br />
quando há uma relação hierárquica profissional. A segunda ocorre mediante influência<br />
psicológica, cognitiva, sendo esta dita a mais efetiva forma de poder.<br />
Contudo, para que a segunda relação seja instaurada, é necessária a existência não só de<br />
modelos cognitivos individuais, mas do que o teórico chama de cognição social. Por cognição<br />
social entende-se o conjunto formado não só pelas operações mentais individuais (tais como<br />
interpretações ou experiências vividas), mas, também, pela representação de estruturas sociais<br />
e pressupostos compartilhados. Todo tipo de discurso é monitorado pela cognição social<br />
porque suas origens estão na organização sociocultural como um todo. Para van Dijk, a<br />
cognição social é o que possibilita a criação de um link entre discurso e dominação. As<br />
ideologias, portanto, estão inseridas nesse contexto. E, por sua vez, os modelos individuais<br />
são o que permit<strong>em</strong> conectar o pessoal ao coletivo.<br />
3) A legitimação da ideologia através das propagandas<br />
Como já mencionado na introdução deste artigo, t<strong>em</strong>-se como hipótese o uso de<br />
determinadas estratégias discursivas nas propagandas dos cursos voltados ao ensino de língua<br />
inglesa na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, que acabam (indiretamente) por diss<strong>em</strong>inar e<br />
legitimar uma relação desigual de poder entre língua e cultura inglesa (e/ou norte-americana)<br />
e língua portuguesa e cultura brasileira.<br />
O discurso, para Fairclough (1989), funciona não só como forma de ação, mas também<br />
de representação. Em outras palavras, a cada ato discursivo há a representação de uma<br />
realidade social. Considera-se, grosso modo, o texto midiático, especificamente o gênero<br />
propaganda, um texto carregado de ideologias. Como todo outro, o texto midiático é<br />
construído por um grupo específico de indivíduos para outro grupo específico de indivíduos e<br />
as representações e versões da realidade apresentadas por ele depend<strong>em</strong> da relação entre o<br />
primeiro e o segundo grupo. Em função da <strong>análise</strong> <strong>em</strong> questão, os dois grupos correspond<strong>em</strong><br />
respectivamente, a dominante e dominado. Busca-se, então, nesse caso, refletir acerca da<br />
realidade apresentada pelo discurso midiático propaganda, cujo foco é a mudança social.<br />
Tendo como característica principal a intenção de persuasão, esse gênero discursivo<br />
instaura sua relação de poder mediante influência cognitiva, a segunda das maneiras distintas<br />
estabelecidas por van Dijk anteriormente apresentadas. Ao contrário do que frequent<strong>em</strong>ente<br />
se difunde, esse tipo de influência discursiva não corresponde necessariamente a um jogo<br />
radical de manipulação, sendo na maior parte das vezes instaurada e reproduzida por meio de<br />
textos orais e escritos presentes no cotidiano, aceitos de forma natural. E é precisamente a<br />
naturalidade alcançada por esses discursos o que acaba por legitimar tais relações desiguais de<br />
poder. Indo além, para Foucault, na sociedade moderna tais relações são instauradas, e seu<br />
poder exercido, por meio de práticas discursivas institucionalizadas, funcionando como<br />
“sist<strong>em</strong>as operacionais”.<br />
382
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Voltando à hipótese levantada, t<strong>em</strong>-se como ponto de partida a probl<strong>em</strong>atização da<br />
maneira como o discurso das propagandas dos cursos de língua inglesa é elaborado, de que<br />
forma contribui na construção das identidades dos atores sociais <strong>em</strong> questão e como trabalha<br />
os sentidos a fim de legitimar suas ideologias, não visando somente à <strong>análise</strong> do impacto do<br />
discurso junto ao seu público. A partir das escolhas léxico-gramaticais a ser<strong>em</strong> analisadas, e<br />
da influência mútua entre discurso e sociedade, será possível identificar e explicar as<br />
estratégias discursivas utilizadas, b<strong>em</strong> como de que maneira ocorre essa legitimação.<br />
Para Thompson (1990) há duas concepções de ideologia diferentes. A primeira delas, a<br />
qual chama de “concepção neutra de ideologia”, não carrega juízos de valores quanto ao<br />
fenômeno ideológico, sendo a ideologia apenas um aspecto da vida social entre outros<br />
quaisquer. A segunda, chamada “concepção crítica de ideologia”, corresponde ao sentido<br />
negativo, crítico ou pejorativo do fenômeno ideológico, que se apresenta ilusório ou parcial.<br />
Dessa forma, a ideologia <strong>em</strong> si não possui como característica primordial sua operação<br />
através de mascaramento ou ocultamento das relações sociais através do obscurecimento.<br />
Trabalhar-se-á, portanto, com a concepção crítica de ideologia.<br />
Thompson afirma, ainda, que a ideologia faz-se necessária para que grupos submissos<br />
se mantenham submissos e para que grupos dominantes defendam o status quo. Estudar as<br />
formas simbólicas de ideologia é, então, estudar as maneiras através das quais o sentido serve<br />
para estabelecer e sustentar tais relações. São definidos pelo autor cinco modos de operação<br />
da ideologia, sendo eles: Legitimação, Dissimulação, Unificação, Fragmentação e Reificação.<br />
Na <strong>análise</strong> <strong>em</strong> questão serão observados os modos Legitimação e Reificação. Através do uso<br />
da Legitimação as relações de poder são estabelecidas e sustentadas mediante suas<br />
apresentações como legítimas e justas, sendo dignas de apoio. Já na Reificação o que ocorre é<br />
a retratação de uma situação transitória, histórica, como permanente, natural e at<strong>em</strong>poral.<br />
Embora alguns autores difiram quanto à adoção dos conceitos de ideologia, as <strong>teoria</strong>s<br />
críticas como a ACD, como ressalta Ruth Wodak (2004), buscam mediante seus estudos<br />
despertar nos agentes a consciência de que freqüent<strong>em</strong>ente são enganados a respeito de suas<br />
próprias necessidades e interesses.<br />
4) Análise Crítica do Corpus<br />
A Análise Crítica do Discurso faz-se necessária quando um probl<strong>em</strong>a de natureza<br />
discursiva é percebido <strong>em</strong> algum eixo da vida social, seja quanto às atividades desse eixo ou<br />
quanto à reflexão de sua prática. A <strong>análise</strong> deve estar voltada, então, simultaneamente, para a<br />
estrutura do texto e para a interação desse texto com o meio social.<br />
A <strong>análise</strong> da construção e das representações contidas <strong>em</strong> um texto de natureza qualquer<br />
t<strong>em</strong> como base questões como suas escolhas léxico-gramaticais. Ao escolher determinado<br />
it<strong>em</strong> lexical, outros são excluídos, de forma que é possível identificar quais idéias são<br />
destacadas – explicitadas ou apresentadas de forma implícita – e quais são descartadas. Esse<br />
será o ponto de entrada da <strong>análise</strong> desse corpus, juntamente com forma como os atores sociais<br />
aparec<strong>em</strong> representados visualmente nos folders.<br />
383
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Em uma primeira <strong>análise</strong> comum a todos os itens do corpus, pode-se perceber que<br />
todos os textos <strong>em</strong> questão trabalham com a visão do já apto na língua inglesa e,<br />
consequent<strong>em</strong>ente, b<strong>em</strong> sucedido, especialmente no campo profissional, capaz de aconselhar<br />
o outro <strong>em</strong> suas decisões. Quanto aos atores sociais, o ponto comum entre as propagandas é a<br />
apresentação de três el<strong>em</strong>entos básicos: a mulher b<strong>em</strong> sucedida profissionalmente; o hom<strong>em</strong><br />
b<strong>em</strong> sucedido profissionalmente; os jovens e crianças <strong>em</strong> momentos de lazer. As mulheres<br />
são representadas como adultas, <strong>em</strong> vestes formais, típicas da mulher b<strong>em</strong> sucedida, aquela<br />
que “trabalha fora”. Apenas dois dentre os oito folders não apresentam essa figura f<strong>em</strong>inina<br />
(fig. 1a/b e fig. 8). Da mesma forma, apenas nestes dois a figura do hom<strong>em</strong> vestindo terno e<br />
gravata, também vestes de homens b<strong>em</strong> sucedidos, não é representada. Junto a essas duas<br />
figuras aparec<strong>em</strong> crianças e jovens, s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> momentos de lazer e diversão, <strong>em</strong> contato<br />
com as mais recentes tecnologias. Mais uma vez, <strong>em</strong> apenas outros dois folders distintos não<br />
há essa representação (fig. 2a/b e 6a/6b).<br />
Analisando os slogans, observa-se que <strong>em</strong> três deles há a alusão ao sucesso<br />
diretamente ligado ao conhecimento da língua inglesa. São eles: “Você faz, você vence.” (fig.<br />
2a); “Diga sim ao mundo!” (fig.5a) e “Real life, Real English” (fig.7a). No primeiro, essa<br />
relação se mostra de forma extr<strong>em</strong>amente transparente: o caminho para o sucesso, para vencer<br />
(nesse caso subentende-se “vencer na vida”, profissionalmente) é através das aulas do curso,<br />
que o tornarão proficiente na língua inglesa. Já no segundo, o que t<strong>em</strong>os é a associação entre o<br />
contato com as novas tecnologias e a possibilidade de interações sociais no mundo<br />
globalizado a partir dessa proficiência. Os dois slogans são construídos mediante frases<br />
simples e curtas, s<strong>em</strong> maior complexidade sintática. No terceiro it<strong>em</strong> nos deparamos com um<br />
texto inteiramente escrito na língua alvo, trabalhando com duas associações, jogando com o<br />
campo s<strong>em</strong>ântico da palavra inglesa “real”, como também possível na língua portuguesa. A<br />
primeira delas quando a leitura é feita como “real” (/reɪˈɑːl/) significando real, concreto.<br />
Nesse caso, viver a vida real, concreta, t<strong>em</strong> como grande pré-requisito o conhecimento do<br />
inglês, também concreto, real. A segunda interpretação busca o significado de “Real” (mesma<br />
leitura fonética) vindo de realeza. O inglês britânico, da monarquia. Para alcançar tal status,<br />
somente através da língua inglesa. Em um quarto slogan, “Inglês Global” (fig.4a), há alusão<br />
ao status de língua franca adquirido mesma.<br />
Quanto aos textos informativos encontrados nos folders, as frases que mais chamam<br />
atenção, ao analisá-los criticamente, são: “a escolha de qu<strong>em</strong> é apaixonado pelo sucesso” (fig.<br />
3a), “aprendizado voltado para o sucesso” (fig. 3b), “jovens e adultos preparados para o<br />
mundo globalizado” (fig. 5b), “totalmente conectado com o mundo” (fig. 4d), “novidades do<br />
mundo globalizado” (fig. 4d), “para sua vida profissional e social” (fig. 4e), “realizar essas<br />
conquistas” (fig. 4e), “você desenvolve técnicas de liderança” (fig. 1b), “Inglês. Logo você<br />
vai precisar” (fig. 1a), “Você se garante ou a língua derruba você?” (fig. 8), “para realizar<br />
seus sonhos e alcançar o sucesso” (fig. 6b), “interagir com o mundo”(fig. 7b), “participar dos<br />
acontecimentos” (fig. 7b) e “língua universal” (fig. 7b).<br />
Assim como <strong>em</strong> um dos slogans supracitados, mais uma vez é reforçado o caráter<br />
universal adquirido pela língua inglesa. Outra característica marcante é, novamente, a<br />
presença intensa da idéia de co-dependência entre dominar a língua inglesa e ser b<strong>em</strong><br />
sucedido, b<strong>em</strong> como entre a possibilidade de usufruir o que o mundo t<strong>em</strong> a oferecer, incluindo<br />
suas novidades e tecnologias. Em um levantamento geral de todo os itens lexicais contidos<br />
384
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
nos oito folders, encontram-se de relevante os seguintes itens: mundo (8x), sucesso (4x),<br />
tecnologia(s) (5x), tecnológico(a) (3x), profissionais (3x), vida (3x), real (3x), realizar (2x),<br />
globalizado (2x), conectado(s) (2x), conexão (2x), melhor (2x), reconhece, sonhos, alcançar,<br />
global, novidades, importante, sonhar, planos, futuro, conquistas, interativo, linkado,<br />
precisar, liderança, garante, derruba, interligados, interagir, universal, universo, trabalho.<br />
Van Dijk (1993) postula que uma das funções principais do discurso dominante é criar<br />
consensos, aceitação e legitimação de seu domínio, e que tais feitos pod<strong>em</strong> ser sustentados e<br />
reproduzidos através do discurso midiático. Faz-se uso, então, dos dois modos de operação da<br />
ideologia definidos por Thompson (1990) citados anteriormente: a Legitimação e a<br />
Reificação. A Legitimação ocorre mediante a transmissão do ideal de que o aprendizado da<br />
língua inglesa se faz necessário para todas as pessoas, sejam elas de qualquer núcleo político,<br />
social ou cultural, e independente de que carreira deseje seguir, desde que tenha como meta o<br />
sucesso. Isso ocorre através da estratégia chamada por Thompson de Universalização <strong>em</strong> que<br />
determinados acordos, que <strong>em</strong> verdade serv<strong>em</strong> apenas ao interesse de alguns indivíduos, são<br />
apresentados como de interesse unânime. O receptor crê no ideal veiculado, uma vez que os<br />
países cuja língua mãe é a língua inglesa são tidos como desenvolvidos, de “primeiro mundo”,<br />
representando status social. A Reificação ocorre uma vez que tal situação histórica não é<br />
encarada como algo transitório e sim permanente, at<strong>em</strong>poral e natural, b<strong>em</strong> como a<br />
necessidade do aprendizado da língua inglesa se apresenta também natural.<br />
5) Discussão acerca dos resultados<br />
É possível observar que o recorte social feito nessas propagandas – por veicular a<br />
associação do sucesso, das conquistas e das realizações pessoais possíveis à proficiência na<br />
língua inglesa – acaba ainda veiculando e legitimando uma relação desigual de poder entre<br />
língua e cultura local e língua e cultura alvo. O público alvo de tais propagandas crê,<br />
compartilha, e é levado a auxiliar na legitimação da ideologia <strong>em</strong> questão. Trabalham-se,<br />
portanto, os modelos cognitivos individuais e a cognição social. Pode-se dizer que, de fato, há<br />
motivações político-econômicas tangenciando a forma como os discursos dessas propagandas<br />
são construídos, constituindo então um reflexo da dominação política-econômica-cultural<br />
existente no mundo globalizado.<br />
Um dos ideais difundidos pelos próprios estabelecimentos de ensino de língua inglesa<br />
<strong>em</strong> seus discursos midiáticos, e aceito com naturalidade por seus receptores, é precisamente a<br />
relação íntima entre a proficiência na língua inglesa e o sucesso profissional do indivíduo.<br />
Acredita-se na necessidade de se frequentar regularmente um curso de idiomas, a fim, não só<br />
de ampliar o currículo de habilidades pessoais, mas ainda de atender a uma forte exigência<br />
estabelecida pelo mercado de trabalho brasileiro e aceita pelos futuros trabalhadores. Todavia<br />
a reflexão proposta mediante esse quadro é: “O aprendizado da língua inglesa se apresenta<br />
realmente necessário para que se alcance o sucesso profissional?”. E a resposta é negativa.<br />
Quantos não são os profissionais b<strong>em</strong> sucedidos, entre eles autônomos, micro<strong>em</strong>presários e<br />
outros trabalhadores de diversos segmentos nos quais não há necessidade do uso, contínuo ou<br />
esporádico, da língua inglesa?<br />
385
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Tornou-se hábito crer nessa falácia graças aos status dos países envolvidos, cuja<br />
língua inglesa é a língua mãe. Os países chamados de primeiro mundo representam um<br />
sucesso ideológico ainda maior do que o “simples” sucesso profissional cotidiano. Não basta<br />
conquistar um bom trabalho, um bom salário. Diss<strong>em</strong>ina-se a necessidade das roupas mais<br />
caras, das inúmeras viagens executivas, dos mais atuais equipamentos eletrônicos. E, além da<br />
contaminação por esse ideal, ocorre a subsequente, que é a crença de que tal ideal só pode ser<br />
alcançado mediante a proficiência do indivíduo na língua inglesa, por ser através de seu uso<br />
que “todas as portas pod<strong>em</strong> ser abertas”.<br />
6) Conclusão<br />
Feita a <strong>análise</strong> crítica do corpus selecionado, obt<strong>em</strong>-se a ratificação da hipótese<br />
apresentada. Há, nesses discursos midiáticos, a presença identificável de estratégias – tanto<br />
relacionadas ao campo lexical quanto a representação visual dos atores sociais – visando à<br />
instauração e legitimação de ideologias, entre elas o ideal de que há a necessidade de que<br />
brasileiros sejam proficientes na língua inglesa a fim de alcançar o sucesso. Uma vez que são<br />
encontradas tais estratégias, percebe-se que não somente é feita a venda do ensino de língua<br />
inglesa como também a difusão e manutenção desse ideal, quando já instaurado, ainda que<br />
falacioso, uma vez que não há real necessidade dessa proficiência para o sucesso profissional<br />
<strong>em</strong> diversas áreas.<br />
O ponto central a ser discutido é a aceitação pelos receptores de uma dominação<br />
ideológica que passa despercebida aos olhos desatentos. Graças à Legitimação e Reificação<br />
do status adquirido pela língua inglesa, b<strong>em</strong> como pelos países <strong>em</strong> que a mesma é a língua<br />
mãe, tal crença passa a fazer parte do coletivo, um pressuposto compartilhado <strong>em</strong> larga escala.<br />
O que se apresenta, então, é a representação na materialidade discursiva de um quadro<br />
político-econômico-social <strong>em</strong> que língua portuguesa e cultura brasileira encontram-se <strong>em</strong> um<br />
plano inferior à língua e cultura inglesas (e/ou norte-americanas).<br />
Referências<br />
FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. London: Longman, 1989.<br />
_______. Critical Discourse Analysis: The Critical Study of Language. London: Longman, 1995.<br />
LEAL, Maria Christina Diniz. “O discurso jornalístico sobre privatizações e protestos nas ruas”.<br />
DELTA.vol.21, no.spe. São Paulo, 2005. Disponível <strong>em</strong>: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=0102-<br />
445020050003&script=sci_issuetoc. Accesso <strong>em</strong> Nov<strong>em</strong>bro, 2010.<br />
LUKE, Allan. "Introduction: Theory and Practice in Critical Discourse Analysis". L. Saha (ed)<br />
International Encyclopaedia of the Sociology of Education. Elsevier Science Ltd. 1995. Disponível<br />
<strong>em</strong>: http://gseis.ucla.edu/faculty/kellner/ed270/Luke/SAHA6.html/ Accesso <strong>em</strong> Nov<strong>em</strong>bro, 2010.<br />
386
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
MURILLO, Luis Felipe Rosado. Uma proposta de interface entre dois domínios da <strong>análise</strong> de<br />
discurso: a linha francesa e a sua relação com a <strong>teoria</strong> crítica do discurso. Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://www.discurso.ufrgs.br/. Acesso <strong>em</strong>: Nov<strong>em</strong>bro, 2010.<br />
PEDRO, Emília Ribeiro. (org.) Análise critica do discurso - uma perspectiva sociopolítica e funcional.<br />
Lisboa: Caminho, 1997.<br />
RESENDE, Viviane Ramalho. Análise do Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006.<br />
THOMPSON, John Brookshire. Ideology and modern culture. London: Stanford University Press,<br />
1990.<br />
van DIJK, Teun Adrianus. Principles of Critical Discourse Analysis – Discourse and Society. London:<br />
Routleged and Kegan Paul, 1993.<br />
van LEEUWEN, Theo. Discourse and Practice. New York: Oxford University Press, 2008.<br />
WODAK, Ruth. “Do que trata a ACD – Um resumo de sua história, conceitos importantes e seus<br />
desenvolvimentos”. Revista <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong> (Dis)curso, Tubarão, v.4, n.esp, 2004. pp. 223-243.<br />
Anexos<br />
Figura 1 a Figura 1 b<br />
387
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
388
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 2 a Figura 2 b<br />
Figura 3 a Figura 3 b<br />
389
Figura 4 a Figura 4 b<br />
Figura 4 c Figura 4 d<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
390
Figura 4 e Figura 4 f<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 5 a<br />
391
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 5 b<br />
Figura 5 c Figura 5 d<br />
392
Figura 6 a Figura 6 b<br />
Figura 7 a Figura 7 b<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
393
Figura 7 c Figura 7 d<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
394
Figura 7 e Figura 7 f<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Figura 7 g Figura 8<br />
395
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A Ideologia e suas representações na perspectiva da ACD e da LSF: uma<br />
<strong>análise</strong> do discurso do aluno enquanto sujeito curricular<br />
Silvia Adélia Henrique Guimarães (UERJ) 1<br />
RESUMO: Apesar dos muitos debates acerca do Currículo Educacional nos últimos anos (Arroyo, 2008) sobre a<br />
relação <strong>teoria</strong>-prática educacional, permanec<strong>em</strong> alguns <strong>em</strong>bates: “Como aplicar <strong>teoria</strong>s cristalizadas a um<br />
público tão heterogêneo?” ou “Como alimentar o prescrito <strong>em</strong> uma prática que foge ao controle, por ser<br />
dinâmica?”. De natureza exploratória (Alvez-Mazzotti, 1999), este trabalho investiga como o discurso do aluno<br />
pode ser ferramenta de (re)encaminhamento das ações metodológicas do professor, a fim de evitar tal<br />
discrepância. Conduzida pelas postagens de meus alunos no blog que publica algumas atividades realizadas <strong>em</strong><br />
sala de aula, pesquisei o que as postagens sinalizavam - ou denunciavam - das <strong>teoria</strong>s do currículo. Tratei o<br />
corpus pelo Sist<strong>em</strong>a de Avaliatividade, concentrando-me no subsist<strong>em</strong>a da atitude, realizado s<strong>em</strong>anticamente no<br />
afeto, julgamento e apreciação (White, 2004). Os resultados suger<strong>em</strong> que o aluno enquanto sujeito curricular t<strong>em</strong><br />
voz: que resiste e que reproduz as relações de poder, mas que também se cala. Esse silêncio, d<strong>em</strong>onstrado pela<br />
ausência de muitos alunos no blog, re-encaminhou o trabalho e, após pesquisa d<strong>em</strong>ográfica, sinalizou outras<br />
representações ideológicas: o oprimido que não t<strong>em</strong> acesso à tecnologia e às formas de globalização,<br />
continuando, assim, excluído: o que me levou ao referencial teórico da Análise Crítica do Discurso, do discurso<br />
enquanto prática social (Fairclough, 1997). Além das contribuições para a prática pedagógica interacional e<br />
contextualizada, fica um convite para outras pesquisas sobre o t<strong>em</strong>a: o discurso do aluno como ferramenta para<br />
uma prática educacional aplicável, fomentando pesquisas que de<strong>em</strong> voz ao aluno da escola real (Mollica, 2002).<br />
PALAVRAS-CHAVE: Cotidiano Escolar; Luta heg<strong>em</strong>ônica; ACD; Sist<strong>em</strong>a de Avaliatividade.<br />
1) Introdução<br />
“Águas profundas são as palavras da boca do hom<strong>em</strong>, e ribeiro<br />
transbordante é a fonte da sabedoria” (Provérbios de Salomão, cap.<br />
18. Vers.4, in Bíblia Sagrada).<br />
A lacuna existente nos estudos sobre a atuação do professor da educação básica <strong>em</strong><br />
situações que fog<strong>em</strong> ao prescrito nas diversas <strong>teoria</strong>s, seja nas grandes áreas, como as ciências<br />
sociais, seja nas áreas específicas da prática docente, levaram-me a ouvir a voz do professor<br />
que atua com alunos de periferia, através das perguntas: “Como aplicar <strong>teoria</strong>s cristalizadas a<br />
um público tão heterogêneo?” e “Como retroalimentar o prescrito <strong>em</strong> uma prática que foge ao<br />
controle, por ser dinâmica?”.<br />
Tal trabalho, desenvolvido a partir de uma entrevista-piloto com professores de escolas<br />
de periferia do município do Rio de Janeiro 2 , teve início no meu interesse pela educação <strong>em</strong><br />
situações de interação. Os resultados, de forma geral e resumida, apresentaram identidades<br />
incorporadas (Hall, 2001) de professores que sugeriam uma certa frustração por não ver<strong>em</strong> na<br />
prática aquilo a que haviam sido preparados <strong>em</strong> sua formação inicial e por não encontrar<strong>em</strong><br />
1<br />
Orientadora: Profa. Dra. Gisele de Carvalho.<br />
2<br />
Parte dele pode ser encontrada <strong>em</strong>: SIGNUM: Estud. Ling., Londrina, n. 13/2, p. 275-294, dez. 2010; Anais do<br />
VII Congresso Internacional da Abralin. Curitiba, 2011. p. 4030-4044.<br />
396
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
apoio para redefinir<strong>em</strong> suas ações ao longo de suas carreiras, vislumbrando poucas mudanças<br />
positivas para o futuro educacional.<br />
Ouvir a voz desses cinco professores chamou minha atenção para o que teria a dizer<br />
uma outra voz, a dos alunos. Isto porque o resultado das <strong>análise</strong>s levou-me à pergunta: “como<br />
os alunos, também sujeitos nessa dinâmica e nesse currículo, se representam na dinâmica<br />
curricular?”. Foi a partir daí que vislumbrei, do projeto da construção de um blog com alunos<br />
de periferia, a possibilidade de prestar atenção ao que suas vozes sinalizavam sobre o modelo<br />
educacional do qual faziam parte. Procurei saber, <strong>em</strong> ampliação à pergunta anterior, como o<br />
discurso do aluno pode ser ferramenta de (re)encaminhamento das ações metodológicas do<br />
professor.<br />
Filiada à linha teórica da Análise Crítica do Discurso (ACD), que procura desvelar a<br />
relação entre linguag<strong>em</strong> e sociedade, tenho utilizado o referencial metodológico da<br />
Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) nos trabalhos por mim desenvolvidos: por ter <strong>em</strong><br />
comum com a ACD a linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> uso e pela ferramenta de <strong>análise</strong> eficiente que t<strong>em</strong><br />
d<strong>em</strong>onstrado ser. A partir dessa <strong>análise</strong> linguística, procuro observar a relação microssocial e<br />
macrossocial no discurso dos participantes, interessada principalmente nas representações<br />
ideológicas e na luta heg<strong>em</strong>ônica.<br />
Neste estudo, optei pela <strong>análise</strong> linguística a partir do Sist<strong>em</strong>a de Avaliatividade,<br />
surgido do aporte teórico-metodológico da Linguística Sistêmico-Funcional. Isto porque me<br />
propus a observar se os resultados, quando vistos pelos conceitos da ACD, levariam às<br />
mesmas possibilidades interpretativas das <strong>análise</strong>s já realizadas com os recortes dessa turma<br />
pelo Sist<strong>em</strong>a de Transitividade da metafunção ideacional da LSF.<br />
O trabalho foi estruturado de forma a situar o leitor <strong>em</strong> uma discussão teórica,<br />
metodológica e prática. Por isso, <strong>em</strong> primeiro momento, trouxe uma discussão teórica tanto<br />
sobre o Sist<strong>em</strong>a de Avaliatividade, quanto sobre a ACD e alguns conceitos educacionais. Em<br />
seguida, contextualizei metodologicamente a pesquisa para, finalmente, trazer os dados para<br />
discussão. Por ser um tipo de pesquisa que não se conclui, por seu teor dinâmico, finalizei<br />
esta contribuição com algumas implicações e encaminhamentos, tanto para a prática<br />
pedagógica quanto para futuras pesquisas, reforçando o Sist<strong>em</strong>a de Avaliatividade como um<br />
aporte teórico eficiente para exploração e interessante para a aplicação dos conceitos da ACD.<br />
2) Aporte teórico<br />
2.1) A Linguística Sistêmico-Funcional<br />
Para a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), os falantes de uma língua têm direito a<br />
escolhas, a partir de uma gama de opções disponíveis no momento da comunicação. É a partir<br />
dessas escolhas, <strong>em</strong> detrimento de outras, que os significados são criados, cumprindo, assim,<br />
um propósito comunicativo. Conscient<strong>em</strong>ente ou não, tais escolhas são intencionais, e<br />
“abertas a mudanças socialmente orientadas” (Lima & Santos, 2009, p. 38).<br />
Essa gramática é sistêmica porque define a língua por seu princípio organizacional, pela<br />
representação teórica das relações paradigmáticas e sintagmáticas; é funcional porque estuda<br />
o uso da língua <strong>em</strong> situações sociais. Para a LSF, todo conteúdo s<strong>em</strong>iótico é léxico-gramatical<br />
e s<strong>em</strong>ântico, permitindo que a linguag<strong>em</strong> se expanda. Portanto, é a partir do uso da linguag<strong>em</strong><br />
397
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
que as pessoas dão sentido às suas experiências e interag<strong>em</strong> com os outros, ligando, assim, a<br />
linguag<strong>em</strong> e o mundo, tanto no nível acima (<strong>em</strong> nível de alguma <strong>teoria</strong> social geral ou <strong>teoria</strong><br />
do comportamento) quanto no nível abaixo (no nível dos el<strong>em</strong>entos da léxico-gramática), não<br />
podendo, portanto, tratar texto e contexto separadamente (Meurer, 2004). Assim, duas<br />
perguntas são essenciais ao se analisar um texto: por que o texto t<strong>em</strong> o significado que t<strong>em</strong>; e<br />
o que o texto revela sobre o sist<strong>em</strong>a de linguag<strong>em</strong> no qual é produzido.<br />
Para a LSF, o sist<strong>em</strong>a linguístico divide-se <strong>em</strong> três subsist<strong>em</strong>as: o s<strong>em</strong>ântico, o léxicogramatical<br />
e o fonológico. É no subsist<strong>em</strong>a s<strong>em</strong>ântico que se organizam as três metafunções<br />
sugeridas por Halliday: a textual, que envolve o uso da linguag<strong>em</strong> para a organização textual;<br />
a interpessoal, que possibilita interação entre as pessoas <strong>em</strong> determinados papeis sociais e na<br />
expressão de sentimentos, atitudes e julgamento; e a ideacional, cuja função é representar a<br />
organização, compreensão e a expressão das percepções que o falante t<strong>em</strong> do mundo. Esta<br />
última, que t<strong>em</strong> dado apoio teórico-metodológico às <strong>análise</strong>s linguísticas dos meus estudos,<br />
divide-se, no subsist<strong>em</strong>a léxico-gramatical, e <strong>em</strong> três outros subsist<strong>em</strong>as: o sist<strong>em</strong>a de<br />
transitividade, o sist<strong>em</strong>a t<strong>em</strong>a-r<strong>em</strong>a e o sist<strong>em</strong>a de modo-modalidade (Ikeda e Vian Jr, 2006;<br />
Taveira, 2009).<br />
Assim, resumidamente, a metafunção ideacional opera no sist<strong>em</strong>a de transitividade e<br />
nas relações léxico-s<strong>em</strong>ânticas, através dos processos material, mental e relacional. Os<br />
materiais relacionam-se às ações do falante no mundo, sendo concretizados fisicamente. Os<br />
mentais refer<strong>em</strong>-se ao mundo interior do falante, representado simbolicamente por ele. Já os<br />
relacionais refer<strong>em</strong>-se às entidades envolvidas no discurso. Contextualizo, teóricometodologicamente,<br />
os trabalhos por mim realizados, para que o leitor do presente trabalho<br />
perceba meu objetivo de verificar, através de uma outra ferramenta de <strong>análise</strong>, como<br />
<strong>em</strong>erg<strong>em</strong>, a partir das escolhas linguísticas, representações ideológicas e luta heg<strong>em</strong>ônica no<br />
discurso desses alunos.<br />
2.2) A <strong>teoria</strong> da Avaliatividade<br />
Sendo a língua sistêmica e funcional, o falante t<strong>em</strong> opções também quando atribui<br />
avaliações aos diversos aspectos das suas experiências, crenças e relações. Martin e White<br />
categorizaram as ocorrências dessas avaliações, estabelecendo o Sist<strong>em</strong>a de Avaliatividade<br />
(White, 2004).<br />
A <strong>teoria</strong> da Avaliatividade surgiu a partir de pesquisas realizadas no campo da<br />
linguística educacional, na Austrália, no final dos anos 1980, com trabalhos de letramento,<br />
envolvendo gêneros. Nesses programas, pensaram-se técnicas que analisass<strong>em</strong> de forma<br />
sist<strong>em</strong>ática a avaliação e a perspectiva, e como estas operavam <strong>em</strong> textos, foss<strong>em</strong> únicos, mas<br />
completos, ou <strong>em</strong> grupos de textos. Assim, os sentimentos e as posições desses<br />
falantes/produtores individuais foram vistos “como meios que permit<strong>em</strong> que os indivíduos<br />
adot<strong>em</strong> posições de valor determinadas socialmente, e assim se fili<strong>em</strong>, ou se distanci<strong>em</strong>, das<br />
comunidades de interesse associadas ao contexto comunicacional <strong>em</strong> questão.” (ibid<strong>em</strong>, p.<br />
177 3 )<br />
3 Sugiro a leitura completa do artigo, para os detalhes do desenvolvimento histórico da <strong>teoria</strong>.<br />
398
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Do original appraisal, este termo foi traduzido para <strong>teoria</strong> da valoração 4 . Utilizo aqui,<br />
entretanto, <strong>teoria</strong> da avaliatividade 5 , por concordar com os argumentos de Vian Jr (2009, p.<br />
102). Segundo o autor,<br />
Quanto à valoração, t<strong>em</strong>, primariamente, o sentido de ‘atribuir valor a<br />
algo’, o que reduz significativamente o escopo envolvido na avaliação, uma<br />
vez que, juntamente ao valor, agregam-se crenças, <strong>em</strong>oções, afeto, relações<br />
sociais e tantos outros aspectos; e ainda pelo fato de, no subsist<strong>em</strong>a de<br />
apreciação, haver o termo inglês valuation, que, <strong>em</strong> determinados casos,<br />
também poderia ser traduzido por valoração.<br />
O Sist<strong>em</strong>a de Avaliatividade divide-se <strong>em</strong> três campos de interação: Atitude,<br />
Engajamento e Gradação. Atitude relaciona-se a sentimentos: como algo toca alguém. Aqui,<br />
inclu<strong>em</strong>-se reações <strong>em</strong>ocionais, julgamentos sobre pessoas ou comportamentos e apreciação<br />
de coisas. Engajamento trata a fonte das atitudes: como as vozes interag<strong>em</strong> <strong>em</strong> torno das<br />
opiniões do discurso. Gradação refere-se à atenuação ou ampliação de sentimentos e<br />
categorias (Almeida, 2010, p. 39).<br />
Aqui, concentrei-me no campo Atitude, a fim de observar nos comentários dos alunos<br />
como as atividades os tocavam e que atitudes os mesmos tinham <strong>em</strong> relação a elas: se de<br />
afeto, de julgamento ou de apreciação. O afeto refere-se aos el<strong>em</strong>entos atitudinais<br />
relacionados à <strong>em</strong>oção. O julgamento produz significados que r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> à aceitabilidade social<br />
do comportamento humano, sendo feito a partir de normas sociais previamente estabelecidas<br />
e compartilhadas. A apreciação associa-se a significados de avaliações de fenômenos<br />
s<strong>em</strong>ióticos e naturais. T<strong>em</strong> a ver com qualidades estéticas a partir de referências a seu valor<br />
<strong>em</strong> um campo específico. Esses sist<strong>em</strong>as pod<strong>em</strong> ser ativados de forma explícita – claramente<br />
revelados no texto – ou de forma implícita, que causam mais dificuldades na <strong>análise</strong> do texto,<br />
pelo teor subjetivo que pode despertar.<br />
• Afeto: o afeto classifica-se a partir da resposta a seis perguntas: os sentimentos 1) são<br />
construídos pela cultura popular como positivos ou negativos? 2) são representados através de<br />
manifestações externas ou como experiência interna? 3) relacionam-se a algum estímulo<br />
<strong>em</strong>ocional específico ou como estado de espírito geral? 4) são classificados <strong>em</strong> escala de<br />
baixa, média ou alta intensidade? 5) envolv<strong>em</strong> intenção ou reação? 6) as <strong>em</strong>oções estão<br />
reunidas <strong>em</strong> qual dos três grandes grupos ligados à in/felicidade, in/segurança e in/satisfação?<br />
(White, 2004, p. 186)<br />
AFETO (+) (-)<br />
Direto Felicidade (3) eu ri muiito nesta aula . eu gosteei Estou triste,<br />
Segurança (14) “Concordo com você” Estou ansiosa<br />
Satisfação (5) “adoro as coisas que a senhora fala” Fiquei entediada<br />
Implícito (23) “parabééns” Não faça raiva!<br />
Figura 1: Quadro-síntese com ex<strong>em</strong>plos de afeto 6<br />
4 Termo aprovado pelo grupo de discussão gsf<strong>em</strong>portugues@egroups.com, <strong>em</strong> outubro de 2004.<br />
5 Mantenho, entretanto, o termo “valoração” quando utilizado pelos autores das citações por mim utilizadas.<br />
6 Para os ex<strong>em</strong>plos que não aparec<strong>em</strong> no corpus, utilizei ex<strong>em</strong>plos criados (White, 2004, p. 187)<br />
399
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
• Julgamento: Os falantes constro<strong>em</strong> suas posições <strong>em</strong> relação ao comportamento<br />
humano, seja na aprovação ou reprovação desse comportamento, a partir das referências<br />
socialmente aceitas e difundidas. Assim, no campo da Atitude, os julgamentos foram<br />
sist<strong>em</strong>aticamente divididos <strong>em</strong> dois grupos: estima social e sanção social. O primeiro envolve<br />
avaliações que pod<strong>em</strong> elevar ou rebaixar o indivíduo na estima da comunidade, “vistos como<br />
disfuncionais ou inapropriados, ou algo que deve ser desencorajado” (ibid<strong>em</strong>, p.188), mas não<br />
chegando a ser legal ou moralmente implicado. Aqui, por ex<strong>em</strong>plo, as redes sociais do dia a<br />
dia, como relações familiares e de amizades, são formadas. O segundo grupo inclui regras e<br />
regulamentos explicitados pela cultura. Assim, “os julgamentos de sanção social envolv<strong>em</strong><br />
questões de legalidade e moralidade” (ibid<strong>em</strong>), sendo vistas, quando sobrepujadas, como<br />
crime ou pecado, dependendo da perspectiva.<br />
Os julgamentos de estima social se divid<strong>em</strong> <strong>em</strong>: (1) de normalidade (quão usual ou<br />
estranho alguém é); (2) de capacidade (quão capaz é esse alguém); (3) de tenacidade (quão<br />
determinado ele é). Já os julgamentos de sanção social relacionam-se à (1) veracidade (quão<br />
sincero alguém é) e à (2) propriedade (quão ético ele é). O quadro abaixo apresenta uma<br />
síntese deste sist<strong>em</strong>a, com a maioria dos ex<strong>em</strong>plos inventados, já que no corpus apareceram<br />
apenas capacidade (+) e propriedade (-)<br />
Estima<br />
Social<br />
Sanção<br />
Social<br />
JULGAMENTO (+) (-)<br />
Normalidade (costume) Essa professora é elegante Essa professora é estranha<br />
Capacidade (competência) (5) você explicamuito b<strong>em</strong> Eles são desajeitados com as<br />
tarefas<br />
Tenacidade (resolução) A turma é bastante confiável Os alunos estavam dispersos<br />
Veracidade (verdade) Os alunos foram verdadeiros Um dos grupos foi desonesto<br />
Propriedade (ética) Todos respeitaram os prazos (20) Se todos pensass<strong>em</strong> assim<br />
seria muito bom<br />
APRECIAÇÃO (+) (-)<br />
Reação Impacto (10) Essa entrevista foi a que todo<br />
mundo gostou<br />
Figura 2: quadro-síntese com ex<strong>em</strong>plos de julgamento<br />
Este trabalho foi cansativo<br />
Qualidade (7) Foi bacana as intrevistas O anúncio ficou feio<br />
Composição Equilíbrio (15) ficou ótima essa redação As linhas ficaram tortas<br />
Complexida<br />
de<br />
Essa matéria ficou clara (28) Achei esse muito difícil<br />
Valorização (28) é difícil mas também é bom que<br />
assim aprende mais.”<br />
• Apreciação: avalia produtos, sejam do trabalho humano, de fenômenos naturais ou<br />
de estados de coisas. Neste subsist<strong>em</strong>a “Os sujeitos humanos também pod<strong>em</strong> ser ‘apreciados’<br />
400
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ao invés de ‘julgados’, mas somente naqueles casos nos quais suas qualidades estéticas estão<br />
sendo discutidas, e não a aceitabilidade social de seus comportamentos” (id<strong>em</strong>, 191).<br />
Este subsist<strong>em</strong>a é subdividido <strong>em</strong> 1) reação (como o falante reage às coisas); 2)<br />
composição (qual o grau de equilíbrio e complexidade da coisa) e 3) valorização (como são<br />
essas coisas: autênticas, eficazes, significativas...). A reação ainda pode ser subdividida <strong>em</strong><br />
reação de impacto (como isso mexeu comigo?) e reação de qualidade (eu gostei disso?). A<br />
composição pode ser subdividida <strong>em</strong> equilíbrio (isso parece b<strong>em</strong> elaborado?) e complexidade<br />
(isso foi difícil entender/fazer?). Já a valorização tenta responder a pergunta “isso valeu a<br />
pena?” (White, 2004, p. 191). O quadro abaixo sintetiza esses conceitos e os aplica com<br />
ex<strong>em</strong>plos, <strong>em</strong> sua maioria, retirados do corpus, sendo criados ex<strong>em</strong>plos para impacto (-),<br />
qualidade (-) e equilíbrio (-); e para complexidade (+).<br />
2.3) A Análise Crítica do Discurso (ACD)<br />
Em linhas gerais, a Análise Crítica do Discurso (ACD) entende o discurso como uma forma de<br />
prática social, valorizando a palavra enquanto ação, e não apenas como uma forma de representação<br />
do mundo. Nessa perspectiva, ao falar ou escrever, o indivíduo faz algo, age no mundo e/ou sobre o<br />
mundo, existindo, assim, uma relação interna e dialética entre linguag<strong>em</strong> e sociedade (Fairclough,<br />
2001).<br />
Para sist<strong>em</strong>atizar essa relação, Fairclough (ibid<strong>em</strong>) propôs uma concepção<br />
tridimensional do discurso, defendendo que todo evento discursivo pode ser considerado<br />
simultaneamente um texto (aborda aspectos linguísticos), uma prática discursiva (trata a<br />
produção, distribuição e consumo dos textos; considera os aspectos sócio-institucionais da<br />
leitura/interpretação dos textos) e uma prática social (abarca orientações econômicas,<br />
políticas, culturais, ideológicas; trata do que os sujeitos faz<strong>em</strong> efetivamente). As três<br />
dimensões sist<strong>em</strong>atizadas por Fairclough são sociais e, portanto, assim como para a<br />
Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), é de essencial importância a explicitação dos<br />
ambientes particulares <strong>em</strong> que os textos foram produzidos (Meurer, 2004; Lima & Santos,<br />
2009).<br />
S<strong>em</strong> minimizar a importância das duas primeiras, Fairclough t<strong>em</strong> se dedicado à última<br />
dimensão por entender que as práticas discursivas, enquanto materialização de ideologias,<br />
“contribu<strong>em</strong> para manter ou reestruturar as relações de poder” (Fairclough, 2001, p. 121).<br />
Fairclough define heg<strong>em</strong>onia como “liderança tanto quanto dominação nos domínios<br />
econômico, político, cultural e ideológico de uma sociedade” (ibid<strong>em</strong>, p. 122), <strong>em</strong> que uma<br />
das classes, economicamente definida como fundamental às d<strong>em</strong>ais, exerce poder sobre a<br />
sociedade como um todo. Tal relação assimétrica de poder, entretanto, é exercida <strong>em</strong> alianças,<br />
e não pela imposição. Daí a importância das construções discursivas, ditas e reproduzidas,<br />
materializando como naturais certos conceitos, crenças e valores como bons e importantes<br />
para toda a sociedade – que aceita e segue.<br />
Contudo, para Fairclough, é mais produtivo falar de heg<strong>em</strong>onia se for de forma a pensar<br />
na resistência a certas formas de manifestação de poder. Nessa perspectiva, os focos de luta<br />
estão “sobre os pontos de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter ou<br />
romper alianças e relações de dominação/subordinação, que assume formas econômicas,<br />
políticas e ideológicas” (ibid<strong>em</strong>). É, pois, pelo amplo alcance da heg<strong>em</strong>onia, que a luta<br />
heg<strong>em</strong>ônica pode se dar também de maneira ampla nas instituições da sociedade civil: no<br />
401
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
setor da educação, nas famílias, nos sindicatos, os quais materializam desigualdade entre<br />
diferentes níveis e domínios.<br />
Assim, o grande desafio da ACD é desnaturalizar os discursos amplamente difundidos<br />
na sociedade, de forma que a criticidade promova possibilidade de encontrar os pontos de<br />
instabilidade, rompendo as relações de poder pré-estabelecidas, já que é pela naturalização<br />
dos discursos, e pelo consenso, que as relações assimétricas de poder são estabelecidas e<br />
consolidadas, perpetuando a heg<strong>em</strong>onia.<br />
Essa resistência, contudo, precisa ser pensada cuidadosamente, pois<br />
Mesmo quando nossa prática pode ser interpretada como de resistência,<br />
contribuindo para a mudança ideológica, não estamos necessariamente<br />
conscientes dos detalhes de sua significação ideológica. Essa é uma razão<br />
para se defender uma modalidade de educação linguística que enfatize a<br />
consciência crítica dos processos ideológicos no discurso, para que as<br />
pessoas possam tornar-se mais conscientes de sua própria prática e mais<br />
críticas do discurso investidos ideologicamente a que são submetidas<br />
(ibid<strong>em</strong>, p. 120).<br />
Aqui, portanto, cab<strong>em</strong> as práticas docentes como possibilidades para a desnaturalização<br />
de certas crenças manifestadas discursivamente. Foi nesse sentido que, a partir do resultado<br />
de uma pesquisa etnográfica, <strong>em</strong> que acompanhou uma professora <strong>em</strong> ação pedagógica, Papa<br />
(2008) reforçou que “a prática educativa crítica deveria conectar os trabalhos de sala de aula<br />
com o contexto social mais amplo. T<strong>em</strong>as com enfoque nos probl<strong>em</strong>as sociais da escola e da<br />
comunidade, por ex<strong>em</strong>plo” (ibid<strong>em</strong>, 2008, p. 33).<br />
Aplicando tais conceitos ao contexto deste trabalho, defendo que quando um aluno<br />
representa discursivamente o impacto das atividades pedagógicas sobre si, pode estar agindo<br />
no sentido de sinalizar aos outros agentes educacionais, sejam professores ou representantes<br />
administrativos, a eficácia de determinada atuação; a necessidade do redirecionamento de<br />
certas estratégias; ou, mais, que certas crenças teórico-pedagógicas já foram ultrapassadas na<br />
prática, continuando, contudo, cristalizadas apenas no discurso, ainda que ele não saiba quão<br />
ideológico seja seu discurso. É com este aporte, inclusive, que consigo associar as <strong>teoria</strong>s<br />
linguísticas da Teoria da Avaliatividade aos conceitos curriculares: pela relação entre questões<br />
micro e macro, possível para a ACD.<br />
2.4) Teorias Curriculares<br />
Os currículos não são documentos prontos e acabados que determinam as ações práticas<br />
de uma determinada unidade escolar. Sendo a escola uma soma de culturas, políticas e<br />
sociedades específicas, abarcam também questões microssociais do seu entorno. Por isso, o<br />
valor paramétrico dos documentos que reg<strong>em</strong> a educação no Brasil. E por isso eles são<br />
passíveis de aplicabilidades diferenciadas nas regiões e culturas específicas das diversas<br />
realidades brasileiras 7 .<br />
7<br />
Cite-se, por ex<strong>em</strong>plo, o Artigo 26 da LDB 9394/96: “Os currículos do ensino fundamental e médio dev<strong>em</strong> ter<br />
uma base nacional comum, a ser compl<strong>em</strong>entada, <strong>em</strong> cada sist<strong>em</strong>a de ensino e estabelecimento escolar, por uma<br />
parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da<br />
clientela”.<br />
402
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Essas questões micro, abarcadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira<br />
(LDB), de 1996, revelam-se filosoficamente satisfatórias. Politicamente, contudo, exatamente<br />
pelas possibilidades <strong>em</strong>ergentes das diferenças, são alvos de algumas críticas (Saviani, 1997).<br />
Olhar a LDB e os d<strong>em</strong>ais documentos que reg<strong>em</strong> a educação brasileira pela ótica material do<br />
documento restringe a prática educacional e aprisiona os alunos. Isso porque serão vistos pelo<br />
prisma do aluno idealizado, o do papel. E os alunos com práticas, realidades e culturas<br />
específicas?<br />
Os grupos minoritários, por ex<strong>em</strong>plo, são s<strong>em</strong>pre citados nos documentos oficiais, mas<br />
pouco representados nas mídias. Eles raramente faz<strong>em</strong> parte do nosso contexto específico,<br />
tornando-se, assim, terreno desconhecido, abarcado apenas nos grupos especializados,<br />
interessados por eles e, portanto, <strong>em</strong> trabalhos sedimentados e pouco divulgados.<br />
Aqui entra a importância de se olhar as questões educacionais pelas lentes<br />
macrossociais de uma formação cunhada na realidade do mundo cont<strong>em</strong>porâneo (Shiroma,<br />
2007; Frigotto, 2008). Essa escola, ao mesmo t<strong>em</strong>po que constituída de valores específicos,<br />
está inserida <strong>em</strong> um contexto macrossocial. Dessa forma, mais do que apenas local, os<br />
currículos expressam o equilíbrio dos interesses e forças que atuam no entorno do sist<strong>em</strong>a<br />
educacional e são determinados a partir de valores sociais e históricos (Sacristán, 1998).<br />
Portanto, os currículos não contêm apenas os contextos micro específicos, mas todos os<br />
desafios de um novo mundo: o da pós-modernidade. Com ele, a globalização, as novas<br />
tecnologias, a ressignificação do trabalho, as novas formações identitárias desse “cidadão do<br />
mundo”.<br />
Por outro lado, formar um sujeito capaz de se adequar a novas posições no mundo,<br />
também molda suas posições na própria escola: ele necessita, dentro mesmo da escola, de<br />
interagir com atividades e com profissionais que possibilit<strong>em</strong> a promoção de saberes de<br />
mundo, e não mais dos conteúdos específicos e compartimentalizados; que o ajud<strong>em</strong> a olhar<br />
para o outro e para as necessidades do planeta, e não mais apenas para o seu b<strong>em</strong> estar<br />
individual; a compreender os fundamentos científicos e tecnológicos, e não mais só os<br />
processos de repetição e de reprodução. O aluno do novo milênio torna-se, então, agente, já<br />
desde sua formação. E como fazer isso com os grupos excluídos?<br />
Assim, mais do que trabalhar a relação <strong>teoria</strong>/prática, o grande desafio da educação,<br />
marcado no currículo, é relacionar a <strong>teoria</strong> com a prática da vida real. O que sinaliza uma<br />
trajetória teórica mais incipiente para os educadores: uma escola que forme para o contexto<br />
que a insere; <strong>em</strong> um contexto específico de alunos e alunas que partilham apenas <strong>em</strong> parte dos<br />
benefícios dessa globalização (que neste caso <strong>em</strong> estudo não têm recursos financeiros e<br />
materiais para aplicar tais novos conhecimentos); um mundo globalizado, capitalista – e <strong>em</strong><br />
crise (Kuenzer, 2008, p. 60) e com profissionais que não estão inseridos nessa realidade. A<br />
pesquisadora diz que<br />
É preciso observar, contudo, que esta identidade não é um “estado”, algo<br />
já dado, mas um processo, <strong>em</strong> que continuamente a realidade objetiva t<strong>em</strong><br />
que ser transformada <strong>em</strong> leis do pensamento, ou seja, <strong>em</strong> conhecimento. E<br />
isto se dá através do método, que se desencadeia a partir das finalidades da<br />
produção do conhecimento; se estas finalidades estiver<strong>em</strong> definidas a partir<br />
da intenção de transformar a realidade, de enfrentar as questões concretas<br />
da educação dos trabalhadores, então, é preciso que o conhecimento<br />
403
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
produzido tome por base o conhecimento da realidade que se quer<br />
transformar.<br />
Aqui, comento dois pontos. Primeiro, as “finalidades” da produção do conhecimento: a<br />
formação identitária dos profissionais da educação, b<strong>em</strong> como as representações ideológicas<br />
marcadas <strong>em</strong> seus discursos e ação são fatores importantes nessa prática (a qu<strong>em</strong> serve este<br />
professor, à reprodução ou à transformação?). Segundo: conhecer o contexto específico <strong>em</strong><br />
que se está atuando.<br />
Adequar nossa prática ao contexto específico de atuação, entendendo o currículo, b<strong>em</strong><br />
como suas diretrizes, bases e parâmetros como auxílios que norteiam, não que engessam<br />
nossa prática, faz com que entendamos como ferramenta amolada os sujeitos incluídos nessa<br />
prática: colegas de trabalho, comunidade escolar e os alunos. Olhando por esse prisma, a ação<br />
do aluno pode ser de co-construção do currículo, ainda não acabado, podendo, portando, ser<br />
uma ferramenta para que nossas ações pedagógicas se redirecion<strong>em</strong>, ainda que num primeiro<br />
momento de forma incipiente, ainda que especial e exclusivamente para eles <strong>em</strong> suas<br />
realidades particulares.<br />
Pensar assim parece colocar o aluno no papel de contribuinte para o processo de ensinoaprendizag<strong>em</strong><br />
de natureza crítica; faz do aluno um sujeito agente sobre esse mundo: seja para<br />
reproduzi-lo; seja para aumentar as diferenças; seja para denunciar sua exclusão; seja para<br />
transformar suas ações. Nesta pesquisa, possibilitar ao aluno co-construir aqueles saberes,<br />
permitiu ver, a partir de seus discursos, como isso tocou suas ações.<br />
3) Metodologia e Contextualização<br />
Este estudo de caso (Alves-Mazzotti, 1999) é resultado de uma série de atividades<br />
realizadas <strong>em</strong> aulas de língua materna, <strong>em</strong> uma escola municipal da Zona Norte do Rio de<br />
Janeiro, com alunos <strong>em</strong> situação de desvantag<strong>em</strong> sócio-econômica. No início do ano letivo,<br />
<strong>em</strong> que os professores, <strong>em</strong> parceria com a Coordenação do Colégio, sugeriram projetos para<br />
desenvolver com os alunos, propus o “blog da 1701”. O objetivo central do trabalho era<br />
desenvolver atividades significativas com os alunos: a partir dos conteúdos propostos para o<br />
sétimo ano do ensino fundamental, direcionaria as aulas <strong>em</strong> torno de grupos de interesses.<br />
Assim, foram distribuídos t<strong>em</strong>as gerais: natureza, esporte, informática, desenho e escrita e os<br />
alunos se inscreviam nesses grupos.<br />
A cada s<strong>em</strong>ana, de acordo com o t<strong>em</strong>a desenvolvido na aula, eu lançava um desafio aos<br />
alunos. Assim, ao trabalhar linguag<strong>em</strong> verbal e não-verbal, solicitei que o grupo de desenho<br />
transformasse <strong>em</strong> imagens os textos lidos, só para citar um ex<strong>em</strong>plo. Para a culminância do<br />
Projeto, alguns trabalhos foram selecionados, postados no blog criado pelo grupo da<br />
informática e apresentados a outras turmas na sala de informática do Colégio, o que marcou o<br />
início da divulgação e utilização do blog.<br />
Com a estreia do blog, os alunos que o acessavam começaram a postar comentários às<br />
atividades publicadas. Esses posts, repletos de avaliação, motivaram-me a uma <strong>análise</strong> do<br />
corpus pelo Sist<strong>em</strong>a de Avaliatividade. Perguntei, então, como a Avaliatividade poderia<br />
apontar nos recortes discursivos representações de ideologias e de poder; e se as respostas<br />
encontradas confirmariam, negariam ou ampliariam as já encontradas por mim a partir do<br />
Sist<strong>em</strong>a de Transitividade da metafunção ideacional da LSF.<br />
404
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O silêncio – que nomeei apagamento das vozes - d<strong>em</strong>onstrado pela ausência de muitos<br />
alunos no blog, re-encaminhou o trabalho, já que, durante as aulas, os alunos participavam<br />
com entusiasmo das atividades, mas pouquíssimos deles visitavam o blog. Nesse momento,<br />
utilizei um questionário d<strong>em</strong>ográfico que revelou que a realidade econômica dos adolescentes<br />
estava interferindo no referido projeto.<br />
A realidade financeira dos alunos dessa escola é, de forma geral, precária: seus pais<br />
receb<strong>em</strong> baixos salários, contando, muitas vezes, com trabalhos informais no CEASA 8 ou,<br />
ainda, com as sobras dos alimentos de lá; muitos deles contam apenas com o auxílio do<br />
programa bolsa-família, oferecido pelo Governo Federal; não têm acesso a formas de cultura<br />
privilegiadas, como teatros, centros culturais e até mesmo cin<strong>em</strong>as. O que lhes<br />
impossibilitava também, muitas vezes, ter computador e acesso à internet.<br />
Ao todo, foram analisados vinte e oito comentários acerca de cinco atividades realizadas<br />
pelos alunos <strong>em</strong> sala. O critério de seleção das atividades foi o maior número de comentários<br />
avaliativos por atividade. Assim, foram excluídos cerca de dezessete comentários deste<br />
corpus.<br />
Na sessão <strong>análise</strong> e discussão dos dados, optei por me referir aos comentários referentes<br />
à minha prática ou a minha pessoa <strong>em</strong> terceira pessoa, a fim de me distanciar, ainda que<br />
apenas textualmente, de uma <strong>análise</strong> contaminada da minha visão sobre as atividades. Isto<br />
porque, <strong>em</strong> uma pesquisa etnográfica, torna-se difícil esse distanciamento (Denzin & Lincoln,<br />
2006).<br />
O corpus completo, que consta do anexo, refere-se às seguintes atividades: a) um<br />
desenho que recontava o conto Chapeuzinho Vermelho: comentários de (1) a (6); b) uma<br />
entrevista realizada com o diretor da unidade escolar: comentários de (7) a (11); c) leitura<br />
crítica de uma charge: de (12) a (14); d) uma produção textual sobre a violência: de (15) a<br />
(20); e) uma entrevista realizada com um aluno esportista, aluno este avaliado negativamente<br />
antes de começar a praticar esportes: de (21) a (27); e f) um texto sobre a natureza, analisado a<br />
partir de modos verbais (28).<br />
4) Análise e discussão dos dados<br />
Como uma forma de organização textual, os comentários foram analisados a partir dos<br />
subsist<strong>em</strong>as Afeto, Apreciação e Julgamento. Tendo <strong>em</strong> vista que um mesmo comentário<br />
avaliasse por um ou mais subsist<strong>em</strong>as, alguns recortes apareceram mais de uma vez.<br />
4.1) Como as atividades tocaram os alunos?<br />
O recorte discursivo (3) “foi maneiro rs ! vimos três versões da história : Chapeuzinho<br />
Vermelho . uma <strong>em</strong> forma de canção *-* eu ri muiito nesta aula . eu gosteei” (grifos meus),<br />
<strong>em</strong> que a aluna cita as aulas realizadas a partir das três versões do tradicional conto<br />
Chapeuzinho Vermelho, “eu gostei” sugere um afeto positivo <strong>em</strong> relação ao desenvolvimento<br />
da aula. Ao avaliar, esta aluna parece transferir afeto direto à dinâmica de interação entre o<br />
8 Centrais de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro S/A, o qual atua <strong>em</strong> nível de atacado, de produção, de<br />
varejo e com programas sociais.<br />
405
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
grupo e a professora, o que é observado também nas escolhas lexicais “vimos” (no plural) e<br />
“ri muito nessa aula” (referindo-se ao encontro de forma geral):<br />
Os outros comentários também parec<strong>em</strong> revelar afeto positivo <strong>em</strong> relação às produções<br />
dos colegas e à atuação da professora, como <strong>em</strong> (5) “Parabéns Lud. E parabéns aprof” e (23)<br />
“parabééns continue assim”. Tais recortes pod<strong>em</strong> ser pistas para entender que quando<br />
envolvidos <strong>em</strong>ocionalmente com pessoas, os alunos tent<strong>em</strong> a responder mais positivamente às<br />
atividades, como nos recortes seguintes com grifos meus: (5) “adoro as coisas que a senhora<br />
fala”; (14) “Concordo com você”; (22) “TOMARA Q VC SEJA UM GRANDE LUTADOR”<br />
e (25) “Kii vc ganhe muitas medalhas”<br />
Em alguns recortes <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> também avaliações implícitas, como <strong>em</strong> (16) e <strong>em</strong> (21),<br />
que apesar de não dizer<strong>em</strong> claramente, a felicitação parece conseqüência de ter tocado<br />
afetivamente os comentaristas: (16) “Parabéns Alexandro ficou ótima essa redação” e (21)<br />
“Parabéns Diogo , sucesso para você !”<br />
Das doze avaliações que transmit<strong>em</strong> afeto, todas elas são positivas, sugerindo que<br />
quando o aluno é inserido <strong>em</strong> uma atividade significativa, seja pela valorização de suas<br />
potencialidades, seja pela possibilidade de construção conjunta de conhecimento, na relação<br />
com seus pares e/ou na dinâmica da atividade, há afeto positivo. Assim, nas aulas interativas,<br />
que valorizam os alunos enquanto sujeitos construtores do conhecimento (como na<br />
participação ativa dos alunos nas aulas de linguag<strong>em</strong> verbal e não verbal, na entrevista que<br />
realizaram, ou ainda na possibilidade de ver<strong>em</strong> a produção b<strong>em</strong> sucedida de um de seus pares,<br />
como no caso da redação do colega), prevaleceu o afeto (+).<br />
Afeto (+) (-)<br />
12 12 0<br />
Quadro 1) Resumo do subsist<strong>em</strong>a afeto nas avaliações.<br />
TOTAL 12<br />
4.2) Como os alunos julgaram os comportamentos desvelados nas atividades?<br />
Poucos foram os comentários que desvelaram julgamento (quatro), se considerado o<br />
número total de postagens (vinte e oito). Desses, dois julgaram a sociedade e dois, a<br />
professora.<br />
Para os autores dos comentários, a professora, <strong>em</strong> suas ideias de atividades e<br />
explicações que parec<strong>em</strong> fugir ao padrão tradicional, é julgada como “capaz”, como apontam<br />
os recortes (20) “achei ótimo a ideia das redações” e (5) “você explicamuito b<strong>em</strong>”.<br />
Quando julgam as ações da professora <strong>em</strong> atividades integradoras e reflexivas, com<br />
estima social positiva, suger<strong>em</strong> valor mais social do que legal a esse tipo de construção do<br />
saber. Parece que optar por realizá-las assim, toca positivamente os alunos, fazendo-lhes<br />
colocar a professora <strong>em</strong> estima social positiva.<br />
Aponto, contudo, que esses tipos de atividades (integradoras e reflexivas) constam da<br />
Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96, sendo, portanto, legalmente amparadas, e, portanto, de<br />
cunho inclusive sancional para os servidores. Ex<strong>em</strong>plos disso são o Artigo 3, que visa, entre<br />
406
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
outros princípios, “valorização da experiência extra-escolar” (inciso X) e “vinculação entre a<br />
educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.” (inciso XI) e o Artigo 27, que diz que “os<br />
conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes: I - a<br />
difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de<br />
respeito ao b<strong>em</strong> comum e à ord<strong>em</strong> d<strong>em</strong>ocrática(...)”. Isso parece desvelar que para os alunos,<br />
mais do que as bases legais, as relações com a aprendizag<strong>em</strong> fundamentam-se nas bases<br />
relacionais que promovam saber.<br />
Os recortes discursivos (18) “Se cada pessoa pensasse pelo menos um pouquinho sobre<br />
a violência e os males que ela causa (ainda que seja só brincadeira)” e (20) “Se todos<br />
pensass<strong>em</strong> assim seria muito bom” são produtos de comentários sobre uma redação que<br />
critica a atitude das pessoas violentas 9 . Eles suger<strong>em</strong> falta de ética na atitude dessas pessoas<br />
(representadas, no contexto, pelos policiais omissos, pelas escolas que não preparam<br />
adequadamente, pela sociedade “má”). Assim sendo, os grupos representativos (seja a escola,<br />
a sociedade ou o mundo) são julgados negativamente.<br />
Tal efeito pode ser pista, inclusive, para a resistência que têm a propostas e provas<br />
“prontas” que lhes são enviadas, as quais n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre receb<strong>em</strong> sua adesão, como as provas e<br />
projetos dos órgãos superiores, por ex<strong>em</strong>plo.<br />
A <strong>análise</strong> desses julgamentos possibilita a interpretação de que a motivação do aluno<br />
está na aprendizag<strong>em</strong> contextualizada ao seu tipo de realidade, integrada e significativa –<br />
vista nos comentários que estimam a ação da professora e sancionam a ação das pessoas s<strong>em</strong><br />
reflexibilidade. O valor de resistência no discurso desses alunos parece residir, aqui, na crítica<br />
à população de forma geral que não assume um papel ativo contra as causas das diversas<br />
violências citadas no texto, desvelando uma luta heg<strong>em</strong>ônica contra o poder do senso comum<br />
(Fairclough, 1997; 2001).<br />
Veja a presença do julgamento nos comentários resumida no quadro abaixo:<br />
Julgamento (+) (-)<br />
Estima social Capacidade 2<br />
Tenacidade<br />
normalidade<br />
Sanção social Propriedade 2<br />
Veracidade<br />
Quadro 2: Resumo do Subsist<strong>em</strong>a Julgamento<br />
TOTAL 4<br />
9 Análise detalhada desta redação encontra-se nos Anais do 3º Colóquio de S<strong>em</strong>iótica da UERJ, ano 2010,<br />
intitulado “As escolhas s<strong>em</strong>ióticas no funcionalismo da linguag<strong>em</strong> humana: Um pouco sobre luta heg<strong>em</strong>ônica no<br />
discurso do aluno da periferia.”<br />
407
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
4.3) Como os alunos apreciaram os trabalhos realizados por seus pares? O subsist<strong>em</strong>a<br />
apreciação<br />
Esta categoria concentra-se na <strong>análise</strong> das produções humanas. Aqui, há uma<br />
preocupação estética, avaliando-se, portanto, a forma, composição, aparência...Sendo o<br />
subsist<strong>em</strong>a de maior incidência nos comentários dos alunos, optei por mostrar primeiramente<br />
o quadro geral para, <strong>em</strong> seguida, proceder à analise.<br />
APRECIAÇÃO (+) (-)<br />
Reação (9) Impacto 5<br />
Qualidade 4<br />
Composição (7) Equilíbrio 6<br />
Complexidade 1<br />
Valorização (5) 5<br />
Quadro 3: Resumo do subsist<strong>em</strong>a nas apreciações nas avaliações<br />
TOTAL 21<br />
Os comentários abaixo revelam a reação que os trabalhos causaram nos alunos. Pela<br />
Avaliatividade, a reação pode ser de impacto (isso me toca?) e de qualidade (eu gostei disso?).<br />
Vejamos:<br />
Tanto as aulas que se transformavam <strong>em</strong> conhecimento causavam-lhes impacto, como<br />
<strong>em</strong> (3) “foi maneiro rs!” e <strong>em</strong> (13) “No dia desta aula foi legal”, quanto as atividades<br />
produtivas, que permitiam que eles trabalhass<strong>em</strong> de forma autônoma, como <strong>em</strong> (24) “Adorei<br />
quando fiz<strong>em</strong>os esta entrevista”. A realização da entrevista, representação de uma segunda<br />
etapa das perguntas formuladas por um dos grupos, também foi avaliada nos posts, como <strong>em</strong><br />
(10) “Essa entrevista foi a que todo mundo gostou” e <strong>em</strong> (11) “Adorei essa entrevista”. Estes<br />
comentários suger<strong>em</strong>, então, que aulas que consideram o aluno um agente na promoção do<br />
saber tocam os alunos.<br />
Outra avaliação possível, nesse sist<strong>em</strong>a de apreciação, refere-se à qualidade da<br />
coisa/objeto avaliado. Assim, os comentários revelaram avaliação dos trabalhos dos pares<br />
através da qualidade (+), como <strong>em</strong> (20) “Gostei muito da redação”, <strong>em</strong> (8) “Foi bacana as<br />
intrevistas ,” <strong>em</strong> (10) Foi interessante e <strong>em</strong> (27) “Adorei esta entrevista”. Através da reação<br />
qualidade, foram avaliados os trabalhos dos seus pares. Por outro lado, esta talvez seja uma<br />
pista para a relação dos alunos com os representantes <strong>em</strong>poderados: nenhum comentário se<br />
referiu, por ex<strong>em</strong>plo, a algo produzido pela professora, ou ao diretor da unidade escolar<br />
entrevistado.<br />
Houve apenas uma apreciação negativa no corpus <strong>em</strong> <strong>análise</strong>, <strong>em</strong> (29) “Achei esse<br />
muito difícil”, e esta se referia a uma produção textual a partir de modos verbais, que lancei<br />
como desafio. Já a composição equilíbrio recebeu avaliações positivas. Essas apreciações<br />
também se refer<strong>em</strong> ao produto dos trabalhos dos pares, sugerindo tanto uma consciência<br />
crítica e conteudista das propostas feitas <strong>em</strong> sala de aula: (28) “ficou b<strong>em</strong> legal mas n<strong>em</strong><br />
queria fazer” (16) “Fiko frenetiko” (17) “ficou ótima essa redação” (18) “Muito bom este<br />
408
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
texto!”, como de conhecimento enciclopédico:(19) “teve traços de Humor..” (10) “perguntas<br />
criativas..xD ..” (grifos meus)<br />
A valorização, que responde a pergunta “Isso valeu a pena?”, apareceu <strong>em</strong> cinco<br />
comentários. Os produtos desses comentários foram: a tarefa passada para eles, como <strong>em</strong><br />
(29) “é difícil mas também é bom que assim aprende mais.” e <strong>em</strong> (10) “Bom isso foi uma<br />
ótima forma de aproximação de alunos com o diretor."; as conversas que a professora tinha<br />
com eles, com <strong>em</strong> (3) “ajudando a gente a ser alguém na vida .”; e os conteúdos trabalhados<br />
com esses alunos, como <strong>em</strong> (20) “nossoportuguês vai ficando cada vez melhor” e <strong>em</strong> (13) “é<br />
s<strong>em</strong>pre bom aprender :)”. Essas apreciações, voltadas para a importância social do produto<br />
analisado, suger<strong>em</strong> um valor também social para as aulas que tenham propostas de interação<br />
entre os alunos e o saber, incitando-os a uma participação ativa.<br />
4.4) O que o silêncio pode dizer<br />
Chamei de silêncio a algo mais do que o não verbalizar. Chamou-me a atenção uma<br />
turma com quarenta e sete alunos inscritos, que eram atuantes durante as aulas e que diziam<br />
gostar de internet, mas não aderiram ao blog que era construção de sua própria turma, não o<br />
tendo como seu.<br />
Perguntei-me o que aquela ausência no blog, que chamei de silêncio, poderia revelar.<br />
A pesquisa d<strong>em</strong>ográfica que realizei nesta segunda etapa revelou que dos 47 alunos, 21 não<br />
tinham computador <strong>em</strong> casa. Desses, 12 acessavam a internet através de banda larga e 9<br />
tinham acesso discado. Assim, a proposta de relacionar atividades de sala de aula às suas<br />
realidades extraclasse (como correção on-line de exercícios e provas, <strong>em</strong> interação virtual)<br />
não poderia ser desenvolvida – o que é inclusive proposto nos manuais.<br />
Além d esta ausência das atividades, o silêncio nas representações de suas necessidades<br />
também foi um dado encontrado. No contexto <strong>em</strong> <strong>análise</strong>, ao realizar certas atividades com os<br />
grupos, probl<strong>em</strong>atizava as situações encontradas nos textos, recontextualizando-os à realidade<br />
daqueles alunos. Das discussões, pedia que eles sugeriss<strong>em</strong> o que poderia ser feito que<br />
pudesse mudar certos pontos que eles reclamavam de sua realidade, e como poderiam<br />
desenvolver estratégias para isso. E rediscutíamos o assunto no nível do realizável.<br />
Ex<strong>em</strong>plo disso foi a discussão sobre o que eles mudariam na escola. Apesar do apoio da<br />
direção e da coordenação a todos os projetos sugeridos pelos professores, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre a<br />
realidade material da unidade escolar era favorável. Neste caso, a mesma dispunha apenas de<br />
vinte computadores – para todas as turmas – que contavam com uma conexão muito lenta. O<br />
que era percebido pelos alunos.<br />
Em um dos debates, reclamaram dessa dificuldade que impossibilitava o acesso da<br />
turma ao blog. Desdobrando o t<strong>em</strong>a, a segunda queixa foi a inviabilidade de falar com o<br />
diretor 10 . Sugeri que eles criass<strong>em</strong> formas alternativas para que suas sugestões chegar<strong>em</strong> a<br />
esses responsáveis: uns citaram caixinha de sugestões; outros, recados através dos<br />
professores; outros, ainda, sugeriram que os representantes de turma levass<strong>em</strong> os<br />
questionamentos da turma. Apesar dessas sugestões, os alunos não se mobilizaram, mesmo<br />
com o meu apoio, dicas e insistências, para fazer<strong>em</strong> chegar ao diretor sua reivindicação sobre<br />
a baixa velocidade da rede na sala de informática.<br />
10 Sinalizo que o diretor da referida escola parece ser bastante acessível e pronto a atender as pessoas que o<br />
procuram. Parece tratar-se de uma crença desses alunos sobre a imag<strong>em</strong> de um diretor de escola.<br />
409
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Sim, pode ser que eles precisass<strong>em</strong> se sentir representados; ou que ainda não tivess<strong>em</strong><br />
idade para certas práticas autônomas (eram alunos e alunas com idades entre doze e trezes<br />
anos). Insisto, contudo, que tinham o meu suporte e, ainda assim, não se sentiram<br />
<strong>em</strong>poderados.<br />
Entendo esse silêncio, representado nos dois episódios como sinalizador de questões<br />
mais amplas e sociais: alunos que não se perceb<strong>em</strong> <strong>em</strong> um papel ativo, sugerindo necessidade<br />
de representação de vozes já <strong>em</strong>poderadas, como as autoridades escolares ou mesmo de seus<br />
responsáveis. Além disso, tal fato sugere que muitos desses alunos não chegam a ser ouvidos<br />
porque suas vozes não chegam a lugares de destaque, como o – para eles – privilegiado<br />
mundo da Grande Rede.<br />
Por questões de ord<strong>em</strong> sócio-econômicas, como o caso de não postar<strong>em</strong> comentários<br />
por não ter<strong>em</strong> computadores e/ou acesso à internet, atividades que parec<strong>em</strong> mínimas não<br />
foram plenamente desenvolvidas como seriam <strong>em</strong> outra realidade social.<br />
5) Algumas considerações<br />
Os resultados desta <strong>análise</strong> corroboram a proposta teórica de que a Avaliatividade<br />
perpassa questões ideológicas (White, 2004). Em seus comentários, repletos de pessoalidade –<br />
afeto, julgamento e apreciação – os alunos parec<strong>em</strong> reiterar relações assimétricas de poder e<br />
ratificam o discurso de heg<strong>em</strong>onia, como quando avaliam positivamente seus superiores<br />
diretos s<strong>em</strong> nenhuma crítica direta (que apareciam no contexto de sala de aula). Mas revelam,<br />
também, focos de resistência <strong>em</strong> seu discurso (como nos discursos sobre a violência, que<br />
fugiam ao senso comum).<br />
Comentados via ACD, os recortes suger<strong>em</strong> reflexões sobre nossa prática, tanto como<br />
professores quanto como pesquisadores. Primeiro porque nos desafia a práticas reflexivas<br />
com nossos alunos <strong>em</strong> sala de aula; segundo, porque reitera a gama de possibilidades para<br />
novas pesquisas com o suporte do Sist<strong>em</strong>a de Avaliatividade.<br />
Quanto à presença da Avaliatividade nos recortes discursivos, o maior número de<br />
avaliações destinou-se às atividades que foram realizadas com a participação ativa deles para<br />
a construção do conhecimento, o que me levou a concluir, da micro<strong>análise</strong>, que o que impele<br />
o aluno à aprendizag<strong>em</strong> é o seu envolvimento com o próprio processo de aprendizag<strong>em</strong>.<br />
A pesquisa d<strong>em</strong>ográfica sinalizou algumas materializações das práticas sociais do pósmodernismo:<br />
o oprimido que não t<strong>em</strong> acesso à tecnologia e às formas de globalização,<br />
continuando, assim, excluído, visto no apagamento discursivo dos alunos no blog. O que<br />
parece sugerir que o aluno enquanto sujeito curricular t<strong>em</strong> voz que resiste ou que reproduz as<br />
relações assimétricas de poder, mas que também se cala – silêncio que pode ser revelador –<br />
não apenas quando não participa do blog, mas quando não julga, por ex<strong>em</strong>plo, a veracidade<br />
dos seus superiores, ou dos representantes do Sist<strong>em</strong>a quanto àquilo que lhes ensinam<br />
A aplicabilidade desta <strong>análise</strong> para os estudos <strong>em</strong> educação reside no incentivo a uma<br />
prática pedagógica interacional e contextualizada com resultados concretos; e para os estudos<br />
<strong>em</strong> linguag<strong>em</strong>, na possibilidade de avaliar o discurso do aluno como ferramenta para uma<br />
prática educacional aplicável, retroalimentando <strong>teoria</strong>s de outras áreas. Sendo assim, fica o<br />
convite para outras pesquisas que de<strong>em</strong> voz ao aluno da escola real (Mollica, 2002), como<br />
sujeito realmente construtor do currículo.<br />
410
Referências<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ALMEIDA, F. S. D. P. Avaliação na linguag<strong>em</strong>. Os el<strong>em</strong>entos de atitude no discurso do professor -<br />
um exercício <strong>em</strong> <strong>análise</strong> do discurso sistêmico-funcional. São Carlos: Pedro & João editores, 2010.<br />
ALVEZ-MAZZOTI, A. J. O debate cont<strong>em</strong>porâneo sobre os paradigmas. In: ______. O método nas<br />
ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 1999.<br />
ANDRADE, L. A. C; TAVEIRA, V. R. Introdução à gramática sistêmico-funcional. In: LIMA, C. H.<br />
P; PIMENTA, S. M. O; AZEVEDO, A. M. T. Incursões s<strong>em</strong>ióticas: <strong>teoria</strong> e prática de gramática<br />
sistêmico-funcional, multimodalidade, s<strong>em</strong>iótica social e <strong>análise</strong> crítica do discurso. Rio de Janeiro:<br />
Livre Expressão, 2009. p. 48-54.<br />
ARROYO, M. G. Trabalho – Educação e <strong>teoria</strong> pedagógica. In Educação e crise do trabalho:<br />
perspectivas de final de século. 9 ed. São Paulo: Vozes, 2008<br />
BRENT, G. R. Análise crítica do discurso: uma proposta transdisciplinar para a investigação crítica da<br />
linguag<strong>em</strong>. In: LIMA, C. H. P; PIMENTA, S. M. O; AZEVEDO, A. M. T. Incursões s<strong>em</strong>ióticas:<br />
<strong>teoria</strong> e prática de gramática sistêmico-funcional, multimodalidade, s<strong>em</strong>iótica social e <strong>análise</strong> crítica<br />
do discurso. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009. p. 118-138.<br />
DENZIN, N. K; LINCOLN, I. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: <strong>teoria</strong>s e abordagens. 2. ed.<br />
Porto Alegre: Artes Médicas, 2006.<br />
FAIRCLOUGH, N. Discurso, mudança e heg<strong>em</strong>onia. In: PEDRO, E.R. (Org.). Análise crítica do<br />
discurso: uma perspectiva sociopolítica e Funcional. Lisboa: Editorial Caminho, 1997.<br />
______.Teoria social do discurso. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001. p. 89-131.<br />
FRIGOTTO, Gaudêncio (org). Educação e crise do trabalho: perspectivas e final de século. 9 ed.<br />
Petrópolis: Vozes, 2008.<br />
GUIMARÃES, S.A.H. As escolhas s<strong>em</strong>ióticas no funcionalismo da linguag<strong>em</strong> humana: um pouco<br />
sobre luta heg<strong>em</strong>ônica no discurso do aluno da periferia. 3º Colóquio de S<strong>em</strong>iótica, UERJ, 2010. No<br />
prelo.<br />
________________Qual a cartilha do professor? Algumas contribuições do Paradigma Qualitativo e<br />
da Análise Crítica do Discurso para a formação continuada. SIGNUM: Estud. Ling., Londrina, n.<br />
13/2, p. 275-294, dez. 2010.<br />
_______________ De professor-aprendente a professor-ensinante: de que saber(es)? A construção do<br />
discurso do professor de alunos de periferia. Anais do VII Congresso Internacional da Abralin. 2011.<br />
P. 4030-4044.<br />
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 2 ed. Rio de Janeiro: DP&A editora, 1998.<br />
IKEDA, S. N; VIAN, O. A <strong>análise</strong> do discurso pela perspectiva sistêmico funcional. In: LEFFA, V. J.<br />
Pesquisa <strong>em</strong> Lingüística Aplicada: T<strong>em</strong>as e métodos. Pelotas: Educat, 2006.<br />
KUENSER, A. Z. Desafios teórico-metodológicos da relação trabalho-educação. In: FRIGOTTO, G.<br />
Educação e crise do trabalho: perspectivas e final de século. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.<br />
411
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
LIMA, C. H. P; SANTOS, Z. B. Contextualizando o contexto: um conceito fundamental da s<strong>em</strong>iótica<br />
social. In: LIMA, C. H. P; PIMENTA, S. M. O; AZEVEDO, A. M. T. Incursões s<strong>em</strong>ióticas: <strong>teoria</strong> e<br />
prática de gramática sistêmico-funcional, multimodalidade, s<strong>em</strong>iótica social e <strong>análise</strong> crítica do<br />
discurso. Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2009. p. 30-47.<br />
MEURER, J. L. Ampliando a noção de contexto na linguística sistêmico-funcional e na <strong>análise</strong> crítica<br />
do discurso. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong> (Dis)curso - L<strong>em</strong>D, Tubarão, v. 4, n.esp, p. 133-157, 2004.<br />
MOLLICA, M. C. Diversidade lingüística e mobilidade social. Nov. 2002. Disponível <strong>em</strong>: <<br />
http://www.collconsultoria.com>. Acesso <strong>em</strong>: 11 abr. 2010.<br />
PAPA, S.M. de B.I. Prática Pedagógica <strong>em</strong>ancipatória: o professor reflexivo <strong>em</strong> processo de<br />
mudança – um exercício <strong>em</strong> <strong>análise</strong> crítica do discurso. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008.<br />
SACRISTÁN, J.G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.<br />
SAVIANI, D. LDB. A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. Campinas: Autores<br />
Associados, 1997.<br />
SHIROMA, E; MORAES, M. C. de, EVANGELISTA, O. Política educacional. Rio de Janeiro:<br />
Lamparina, 2007.<br />
TAVEIRA, V. R. Gramática sistêmico-funcional: a metafunção ideacional. In: LIMA, C. H. P;<br />
PIMENTA, S. M. O; AZEVEDO, A. M. T. Incursões s<strong>em</strong>ióticas: <strong>teoria</strong> e prática de gramática<br />
sistêmico-funcional, multimodalidade, s<strong>em</strong>iótica social e <strong>análise</strong> crítica do discurso. Rio de Janeiro:<br />
Livre Expressão, 2009. p. 74-85.<br />
VIAN Jr., O. O sist<strong>em</strong>a de avaliatividade e os recursos para gradação <strong>em</strong> língua portuguesa: questões<br />
terminológicas e de instanciação. DELTA. 25: 1. 2009. p. 99-129.<br />
WHITE, P. Valoração: a linguag<strong>em</strong> da avaliação e da perspectiva. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong> (Dis)curso - L<strong>em</strong>D,<br />
Tubarão, v. 4, n.esp, p. 178-205, 2004.<br />
412
Anexo: Corpus de <strong>análise</strong><br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(1) migah!!adorei seu desenho,ficou de mais!!!i love you!!!beijos<br />
(2) lud,ficou lindo voc arrasou no desenho aameei continue assim qe voc vai longe!! bjus<br />
(3) foi maneiro rs ! vimos três versões da história : Chapeuzinho Vermelho . uma <strong>em</strong> forma<br />
de canção *-* eu ri muiito nesta aula . eu gosteei .<br />
(4) Aprendii muito com esse trabalho ..E fico muito show os desenhos ..Ludimila fico show<br />
..<br />
(5) Aprendi muito nessa aula também. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> verbal e não verbal.<br />
Parabéns Lud..E parabéns aprof. também você explicamuito b<strong>em</strong> e adoro as coisas que<br />
a senhora fala dando muita liçãode moral ajudando a gente a ser alguém na vida.<br />
(6) Nesse dia foi muito bom,eu aprendi muitas coisas no dia dessa aula.<br />
(7) Foi bacana as intrevistas , por que é uma forma de aproximação entre alunos<br />
,Professores e Diretores !<br />
(8) Eu ameeei as perguntas que foram dadas ao prof° Jorge . Biia você foi d + *--*<br />
(9) eu que entrevistei oo Diretor Jorge *------* é s<strong>em</strong>pre bom saber mais dos outros . D.J é<br />
muito bacana :D<br />
(10) Essa entrevista foi a que todo mundo gostou ..Foi interessante e teve traços de Humor<br />
..Parabens Beatriz pelas perguntas criativas ..xD ..<br />
(11) Adorei essa entrevista concordo com voce Igor.<br />
Bom isso foi uma ótima forma de aproximação de alunos com o diretor.Também quero<br />
agradecer ao seu Jorge por estar nos apoiando muiito com o nosso blog.<br />
(12) Pow é Da Paz !<br />
(13) No dia desta aula foi legal , pois EU descobri coisas que não sabia e é s<strong>em</strong>pre bom<br />
aprender :)<br />
(14) Concordo com você eu n<strong>em</strong> sabia o que era "charge". Rsrrss<br />
(15) fiko frenetiko vlw alexandrooooooo<br />
(16) Parabéns Alexandro ficou ótima essa redação<br />
(17) Alexandro o seu texto ficou super d<strong>em</strong>ais , parabéns *-*<br />
(18) Muito bom este texto! Se cada pessoa pensasse pelo menos um pouquinho sobre a<br />
violência e os males que ela causa (ainda que seja só brincadeira), teríamos uma escola<br />
muito melhor, uma sociedade ótima e um mundo maravilhoso!<br />
(19) Esse texto foii muito interessante pois fala sobre a violencia urbana ..Parabens<br />
Alexandre ..<br />
(20) Gostei muito da redação.Se todos pensass<strong>em</strong> assim seria muito bom,teríamos um<br />
mundo melhor. Bom mais falando sobre esse trabalhoeu achei ótimo a ideia das<br />
redações acho que assim o nossoportuguês vai ficando cada vez melhor pois a prof. fala<br />
o erro e assimvamos melhorando o nosso português.<br />
(21) Também acho , que se não estudar-mos não ser<strong>em</strong>os ninguém na vida ! . Parabéns<br />
Diogo , sucesso para você !<br />
(22) PARABENS TOMARA Q VC SEJA UM GRANDE LUTADOR E SAIBA Q VC TEM<br />
TODO MEU APOIO<br />
(23) parabééns continue assim ! voc vai longe.<br />
(24) Adorei quando fiz<strong>em</strong>os esta entrevista , foi tão legal !<br />
(25) Parabens !! Kii vc ganhe muitas medalhas e va paras Olimpiadas de 2016 ..<br />
(26) Tbm acho qe se não esturdarmos não ser<strong>em</strong>os ninguém na viida.<br />
Boa Sorte pra vc Diogo e parabéns conta comigo.<br />
413
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(27) Adorei esta entrevista com o Diogo,pois fiquei sabendo de uma luta que eu nunca tinha<br />
ouvido falar que é a greco-romana.Estou torcendo para o Diogo possa nos representar o<br />
estado do Rio de Janeiro <strong>em</strong> 2016 com as OLIMPÍADAS.<br />
(28) Achei esse muito difícil ficou b<strong>em</strong> legal mas n<strong>em</strong> queria fazer,é difícil mas também é<br />
bom que assim aprende mais. Parabéns Carol.<br />
414
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
NÓS E ELES: A REPRESENTAÇÃO DOS ATORES SOCIAIS EM UM<br />
TEXTO MULTIMODAL<br />
Carla Cristina de Souza (UERJ) 1<br />
Resumo: Sabendo da importância do papel dos meios de comunicação na construção e manutenção de<br />
ideologias, torna-se imperioso que a escola promova o debate de t<strong>em</strong>as utilizados na mídia a fim de desenvolver<br />
o letramento de seus alunos, contribuindo para a formação de cidadãos críticos e reflexivos. Entretanto, muitas<br />
vezes observam-se práticas nas aulas de línguas <strong>em</strong> que a leitura ainda é tratada apenas como decodificação de<br />
informações, sendo os textos comumente usados somente para ensinar vocabulário e tópicos gramaticais e as<br />
imagens ignoradas na interpretação do texto. Poucos são os trabalhos que cont<strong>em</strong>plam a leitura crítica <strong>em</strong> língua<br />
estrangeira e a integração de linguag<strong>em</strong> e imag<strong>em</strong> na produção de sentidos. Buscando trazer uma contribuição<br />
para o ensino de Inglês no ensino médio, esse trabalho t<strong>em</strong> como principal objetivo analisar um texto multimodal<br />
que pode ser usado didaticamente e levantar dados que pod<strong>em</strong> ser utilizados na construção de atividades para<br />
uma leitura mais profunda do texto, levando os alunos a negociar significados, questionar e tomar uma posição<br />
mais ativa diante dos discursos a que têm acesso. Para tanto, me proponho aqui a verificar como os atores sociais<br />
são retratados <strong>em</strong> um artigo de revista, tanto na linguag<strong>em</strong> verbal como na imag<strong>em</strong>, a fim de resgatar as<br />
mensagens veiculadas por tais escolhas e então comparar e contrastar os resultados do exame dessas duas<br />
s<strong>em</strong>ioses. Utilizei, para esse fim, as categorias sócio-s<strong>em</strong>ânticas para a representação de atores sociais na<br />
linguag<strong>em</strong>, proposta por Van Leeuwen (1997). Para o exame das imagens, usei ferramental teórico desse mesmo<br />
autor sobre a representação visual dos atores sociais (Van Leeuwen, 2008). O texto tomado foi um artigo da<br />
revista Newsweek sobre como o Brasil parou durante os jogos da Copa. A partir dos dados levantados conclui-se<br />
que a mensag<strong>em</strong> veiculada pelo texto pode ser resumida da seguinte forma: os brasileiros são diferentes de “nós”<br />
(comunidade leitora e o autor, que são estrangeiros). Pode-se dizer ainda que as representações dos brasileiros no<br />
texto contribu<strong>em</strong> para a naturalização da visão de um povo desorganizado e preguiçoso e para a consequente<br />
desvalorização do mesmo. Os resultados da <strong>análise</strong> também apontam para uma congruência entre as duas<br />
s<strong>em</strong>ioses estudadas, daí ser possível concluir que o todo texto-imag<strong>em</strong> é coeso e coerente. O breve exame<br />
proposto neste trabalho mostra tipos de informações que um texto pode nos oferecer se soubermos interrogá-lo.<br />
Espero que essa pesquisa possa servir de ex<strong>em</strong>plo para a criação de atividades que explor<strong>em</strong> a leitura como uma<br />
prática social, b<strong>em</strong> como para incentivar o uso de diferentes recursos s<strong>em</strong>ióticos no ensino de língua estrangeira.<br />
1) Introdução<br />
No contexto da cont<strong>em</strong>poraneidade, os meios de comunicação exerc<strong>em</strong> um papel<br />
importante na construção e manutenção de ideologias, já que os discursos a que t<strong>em</strong>os acesso<br />
não só descrev<strong>em</strong> a realidade, como também a representam a partir de perspectivas<br />
particulares. Buscando trazer tal discussão para as aulas de leitura crítica <strong>em</strong> inglês, me<br />
propus a analisar neste trabalho como os atores sociais são representados <strong>em</strong> um artigo sobre<br />
o Brasil na Copa do Mundo, retirado de uma revista informativa s<strong>em</strong>anal nessa língua, a fim<br />
de levantar dados que poderão ser usados na criação de atividades pedagógicas.<br />
Tal pesquisa se justifica pelo fato de que, apesar de haver algumas referências quanto à<br />
habilidade de leitura <strong>em</strong> Inglês Instrumental (Ramos, 2004; Bambirra, 2007; Vian Jr., 2009) e,<br />
por outro lado, pesquisas quanto à leitura de imagens e ensino (Sardelich, 2006: Oliveira,<br />
2006), poucos são os trabalhos que cont<strong>em</strong>plam a leitura crítica <strong>em</strong> língua estrangeira e a<br />
integração de linguag<strong>em</strong> e imag<strong>em</strong> na produção de sentidos. Entretanto, me restringirei aqui à<br />
exploração do artigo The World Cup's Bad Influence para investigar como brasileiros e<br />
estrangeiros são representados nesse texto multimodal e à indicação de aspectos que pod<strong>em</strong><br />
ser trabalhados nas aulas. O principal objetivo desta pesquisa é verificar como tais<br />
1 Orientadora Profa. Dra. Gisele de Carvalho<br />
415
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
representações estão estruturadas no artigo, a fim de resgatar as mensagens veiculadas pela<br />
forma como os atores sociais são retratados nas imagens e nas escolhas lingüísticas e então<br />
comparar e contrastar os resultados do exame dessas duas s<strong>em</strong>ioses. Portanto, viso responder<br />
as seguintes perguntas:<br />
1. Como os atores sociais são representados na linguag<strong>em</strong> do texto analisado? E na<br />
imag<strong>em</strong>?<br />
2. O que os resultados da <strong>análise</strong> da representação dos atores sociais nos revelam sobre<br />
a mensag<strong>em</strong> veiculada?<br />
3. As imagens corroboram tal mensag<strong>em</strong>?<br />
Para esclarecer tais questões, tomei como base os pressupostos da Análise Crítica do<br />
Discurso (Fairclough, 2003; Resende & Ramalho, 2006) e da Linguística Sistêmico-funcional<br />
(Halliday e Matthiessen, 2004), assumindo que linguag<strong>em</strong> e contexto estão interligados. No<br />
intuito de recuperar as marcas lingüísticas, utilizei as categorias sócio-s<strong>em</strong>ânticas para a<br />
representação de atores sociais proposta por Van Leeuwen (1997) e para o exame das<br />
imagens, ferramental teórico desse mesmo autor para a <strong>análise</strong> da representação visual dos<br />
atores sociais (Van Leeuwen, 2008).<br />
Este trabalho é organizado <strong>em</strong> quatro seções. Primeiramente, apresento o referencial<br />
teórico e as categorias para a <strong>análise</strong> da linguag<strong>em</strong> e da imag<strong>em</strong> do corpus. A seguir, descrevo<br />
brev<strong>em</strong>ente o corpus e a metodologia para a <strong>análise</strong> do mesmo, para então, na terceira seção,<br />
me voltar para o exame das representações dos atores sociais no texto e a discussão dos<br />
resultados. Finalmente, apresento as considerações finais da pesquisa.<br />
2) Fundamentação Teórica<br />
Esta pesquisa t<strong>em</strong> como base a Análise Crítica do Discurso, doravante ACD, entendida<br />
como um campo de estudos interessado na conexão entre as relações entre poder e linguag<strong>em</strong>. Já<br />
que um dos objetivos é entender como os atores sociais são representados <strong>em</strong> um texto<br />
multimodal, recorri ao ferramental teórico oferecido pela Linguistica Sistêmico-Funcional,<br />
que toma como base a noção de que as realizações lingüísticas e visuais são fruto de um<br />
sist<strong>em</strong>a de escolhas e apresenta categorias para a sua <strong>análise</strong>.<br />
As formas como atores sociais são representados <strong>em</strong> textos pod<strong>em</strong> indicar<br />
posicionamentos ideológicos <strong>em</strong> relação a eles e suas atividades e é necessário observar como<br />
isso é feito e que efeitos tais representações têm para desvelar essas ideologias. Para tanto, a<br />
perspectiva aqui assumida são as propostas <strong>em</strong> trabalhos de Van Leeuwen (1996, 1997 e<br />
2008), de base hallidayana, mas que também constitu<strong>em</strong> abordagens da ACD, para a leitura<br />
crítica de textos e imagens. Apresento, a seguir, as categorias para a <strong>análise</strong> do artigo de<br />
revista segundo esse autor.<br />
2.1) A representação de atores sociais na linguag<strong>em</strong><br />
Van Leeuwen (1997) faz o levantamento dos modos possíveis de se representar atores<br />
sociais para estabelecer categorias de relevância sociológica e crítica que se realizam na<br />
linguag<strong>em</strong>. Primeiramente, o autor divide as possíveis formas de representar os atores sociais<br />
<strong>em</strong> dois grandes grupos: os excluídos e os incluídos. A exclusão pode acontecer por<br />
416
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
supressão, quando os atores sociais não são mencionados <strong>em</strong> nenhuma parte do texto, ou por<br />
representação <strong>em</strong> segundo plano, quando os atores pod<strong>em</strong> ser inferidos, pois são<br />
mencionados <strong>em</strong> outra parte do texto. A exclusão de atores sociais pode ocorrer porque se<br />
pressupõe que o que está ausente já é compartilhado pelo interlocutor pretendido ou pode ser<br />
interpretada como uma forma de bloquear ou dificultar o acesso a certas informações.<br />
Já a inclusão pode ser feita de diversas formas, mas serão abordadas nesse trabalho<br />
apenas as seguintes subdivisões: ativação, apassivação, generalização, especificação,<br />
nomeação e categorização. A figura 1 sintetiza as categorias de inclusão consideradas para a<br />
<strong>análise</strong> do artigo:<br />
Figura 1 – Categorias para a representação dos atores sociais na linguag<strong>em</strong><br />
A primeira subdivisão dentro de inclusão refere-se à atribuição de papéis sociais,<br />
diferenciando os participantes representados como agentes (por ativação) ou pacientes (por<br />
apassivação). Os atores ativos são representados como forças dinâmicas através de estruturas<br />
de transitividade como o ator <strong>em</strong> processos materiais, o comportado <strong>em</strong> processos<br />
comportamentais, o perceptivo <strong>em</strong> processos mentais, o dizente <strong>em</strong> processos verbais ou o<br />
atribuidor <strong>em</strong> processos relacionais (cf. Halliday). Mas a ativação também pode realizar-se<br />
de outras formas, como pelo uso de sintagmas preposicionais com por (por parte) e de (por<br />
circunstancialização) ou pela pré ou pós modificação de nominalizações e processos<br />
(possessivação). A apassivação ocorre quando os indivíduos receb<strong>em</strong> a ação, sendo<br />
417
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
beneficiados positiva ou negativamente (beneficiamento), ou se submet<strong>em</strong> a ela, sendo<br />
tratados como objetos nas representações (sujeição).<br />
A segunda subdivisão a ser considerada é a diferença entre a pessoalização (atores<br />
representados como seres humanos) e a impessoalização. A impessoalização pode ocorrer por<br />
abstração, quando os indivíduos são representados por meio de uma qualidade dada a eles, ou<br />
por objetivação, quando são representados pelo lugar com que são identificados, com o<br />
enunciado (ex. a pesquisa, o relatório), o instrumento com o qual realizam alguma atividade<br />
ou pela referência a alguma parte de seu corpo (somatização). As categorias descritas nas<br />
próximas linhas estão dentro de pessoalização.<br />
Segundo Van Leeuwen, deve-se observar também se os atores sociais são nomeados ou<br />
categorizados. Os atores são nomeados quando representados <strong>em</strong> termos de identidade única<br />
ou são categorizados quando identificados <strong>em</strong> termos de função ou identidade que partilham<br />
com outros. Essas nomeações ou categorizações são escolhas linguísticas que determinam<br />
aspectos ideológicos dos discursos. A nomeação se subdivide <strong>em</strong> formal, s<strong>em</strong>i-formal,<br />
informal, titulação e destitulação, já a categorização se subdivide <strong>em</strong> funcionalização,<br />
identificação (relacional, física e classificatória) e valoração. Às vezes, também pod<strong>em</strong>os<br />
encontrar personagens ficcionais citados no meio do texto,como é o caso do artigo que vamos<br />
analisar, o que seria um caso de simbolização.<br />
Cabe ainda estabelecer o contraste entre generalização e especificação. Na<br />
generalização, os atores sociais são representados como uma classe indistinta e na<br />
especificação, eles são representados como indivíduos ou como grupos identificáveis e pod<strong>em</strong><br />
ser apresentados por individualização (pelo uso de pronomes pessoais no singular), ou por<br />
assimilação, que pode se dar por coletivização ou por agregação (quantifica grupos como<br />
dados estatísticos; é usada para regulamentar práticas e para produzir consensos).<br />
2.2) A representação dos atores sociais nas imagens<br />
Como na linguag<strong>em</strong> verbal, as imagens também são escolhidas para mostrar certo ponto<br />
de vista e são, portanto, componentes essenciais na negociação de significados com o leitor.<br />
Segundo Kress e Van Leeuwen (2001), qualquer tipo de imag<strong>em</strong> pertence à esfera das<br />
realizações e instanciações da ideologia e há uma necessidade urgente de tornar disponíveis os<br />
meios para se entender as articulações do poder <strong>em</strong> qualquer lugar, <strong>em</strong> qualquer forma.<br />
Seguindo a perspectiva hallidayana, esses autores afirmam que o uso de imagens t<strong>em</strong><br />
três funções principais: a metafunção ideacional, para representar o mundo à nossa volta, a<br />
metafunção interpessoal, para estabelecer modos de relação com o leitor, contribuindo para<br />
uma maior aproximação ou afastamento com o mesmo e a metafunção textual, para se<br />
organizar de forma coerente tanto internamente quanto externamente, com seu contexto de<br />
produção. Neste trabalho somente a metafunção ideacional será examinada, visto que t<strong>em</strong>os<br />
como foco investigar a representação dos atores sociais no corpus.<br />
O trabalho de Van Leeuwen (2008) presta-se a atender a necessidade de fornecer os<br />
instrumentos para a <strong>análise</strong> das imagens com pessoas e discussão de seus possíveis<br />
significados. Segundo este autor, as características mais gerais <strong>em</strong> imagens são a exclusão e a<br />
inclusão de indivíduos ou grupos sociais. Ao privilegiar a presença de alguns e apagar ou<br />
desprezar a existência de outros que ocupam um papel naquele espaço e momento sóciohistórico,<br />
as imagens representam simbolicamente uma forma de exclusão social.<br />
418
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Já dentro de inclusão pod<strong>em</strong>os também perceber recortes selecionados que nos<br />
revelam movimentos ideológicos. A primeira subdivisão <strong>em</strong> foco são os papéis atribuídos aos<br />
atores sociais incluídos, que pod<strong>em</strong> ser mostrados como agentes ou pacientes de ações<br />
condenadas ou aprovadas segundo convenções sociais e morais.<br />
Pode-se também expor as pessoas de forma genérica ou específica. Quando elas são<br />
vistas como um grupo indistinto, representado por categorização cultural (roupa, acessórios e<br />
objetos) ou biológica (tipos físicos padronizados) que pod<strong>em</strong> imprimir estereótipos que<br />
agregam valores positivos ou negativos a certos grupos socioculturais. A representação<br />
específica, por outro lado, exprime a idéia de que o indivíduo é único, singular.<br />
Concluindo sua categorização de recursos visuais que realizam significados<br />
experienciais, Van Leeuwen (2008) define a escolha entre a representação individual ou<br />
grupal, sendo que essa última pode ser feita de duas formas. Pode-se destacar um dos<br />
participantes representados, dando a ele maior importância, o que se constitui <strong>em</strong> uma<br />
diferenciação, ou caracterizar um grupo como uma massa de pessoas cujas características<br />
individuais são apagadas por homogenização. A figura 2 resume as categorias usadas para a<br />
representação visual dos atores sociais:<br />
Figura 2 – Categorias para a representação dos atores sociais na imag<strong>em</strong><br />
3) Metodologia<br />
O texto analisado neste trabalho é um artigo retirado da revista Newsweek do dia 14 de<br />
junho de 2010 sobre o comportamento dos brasileiros durante os jogos do Brasil na Copa do<br />
Mundo. Esse texto foi escolhido porque aborda um t<strong>em</strong>a de interesse para os alunos (por<br />
ser<strong>em</strong> brasileiros e na sua maioria gostar<strong>em</strong> de futebol e de assuntos relacionados à Copa do<br />
Mundo) e poderá ser usado para o desenvolvimento de atividades de leitura crítica nas aulas<br />
de inglês. A forma como os brasileiros e estrangeiros são representados na linguag<strong>em</strong> e na<br />
419
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
imag<strong>em</strong> é o principal foco dessa pesquisa, mas trago também algumas considerações sobre<br />
alguns outros atores introduzidos no texto.<br />
O artigo é intitulado The World Cup's Bad Influence, e se apresenta como uma mistura<br />
entre informação impregnada da visão de mundo da comunidade leitora, que nesse caso seria<br />
principalmente a estrangeira. Trata-se de um gênero opinativo (Melo, 2003) e, para entender<br />
melhor <strong>em</strong> que contexto ele está inserido, vou distingui-lo pelas três variáveis propostas pelo<br />
modelo hallidayano: campo, relações e modo.<br />
Quanto ao campo, o artigo t<strong>em</strong> como propósito veicular uma notícia recente (o efeito da<br />
Copa do Mundo no Brasil), mostrando um ângulo ainda não explorado, ajustando o foco de<br />
acordo com seu público (a exploração do tópico na visão de um estrangeiro que está morando<br />
no Brasil). Quanto às relações, observa-se que a autoria desse gênero é explicitada e nesse<br />
artigo é mostrada nitidamente a voz do americano Mac Margolis, que trata seu leitor de forma<br />
mais íntima, como numa conversa, como evidenciado pela expressão Mind you no primeiro<br />
parágrafo. Apesar da possibilidade de ser acessado na internet por qualquer pessoa, esse texto<br />
parece se destinar a leitores não-brasileiros, posto que há uma diferenciação entre here (aqui,<br />
no Brasil, onde o autor trabalha no momento), que contrasta com aí, onde o provável leitor<br />
está. Quanto ao modo, esse gênero se constitui de uma combinação entre canal gráfico e<br />
infografia (títulos, gráficos e outras informações visuais) que é a porta de entrada para o texto<br />
(Scalzo, 2003).<br />
Pass<strong>em</strong>os, agora, à <strong>análise</strong> do artigo. Ela será apresentada <strong>em</strong> duas partes, tomando<br />
primeiramente a imag<strong>em</strong> e logo abaixo a linguag<strong>em</strong>, sendo esta última <strong>em</strong> um quadro,<br />
seguidas de interpretações possíveis.<br />
4) Análise e discussão<br />
Como pod<strong>em</strong>os perceber pelo título do artigo, o foco do autor é o fato de todos parar<strong>em</strong><br />
para assistir aos jogos da Copa do Mundo, o que é classificado no texto como algo ruim, a má<br />
influência do evento. A foto mostra um grupo de pessoas que sofr<strong>em</strong> essa influência,<br />
brasileiros estáticos, na sua maior parte sentados na praia para ver o jogo, como pode ser visto<br />
na figura 3:<br />
420
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
The World Cup's Bad Influence<br />
What does it mean that so many in the global workforce grind to a halt during the<br />
most-watched sports event in the world?<br />
Figura 3 – A imag<strong>em</strong><br />
Nesta imag<strong>em</strong>, os brasileiros são categorizados culturalmente pelas bandeiras e roupas<br />
com as cores do país, formando um grupo que se reúne para ficar parado <strong>em</strong> frente a uma tela,<br />
sendo representados como atores sociais passivos. Não há como diferenciar essas pessoas, já<br />
que não há nenhum traço de individualidade. Elas são retratadas como um grupo homogêneo,<br />
o que pode ser interpretado como se brasileiros foss<strong>em</strong> “todos iguais”. L<strong>em</strong>os aqui o que a<br />
foto nos diz sobre essas pessoas: Não importa aqui qu<strong>em</strong> cada um é, mas sim que são um tipo<br />
característico de grupo (os brasileiros), que t<strong>em</strong> um papel desvalorizado pela notícia por<br />
estar<strong>em</strong> parados.<br />
Apesar de não ser a interpessoalidade o foco desta pesquisa, cabe ressaltar ainda que há<br />
um afastamento desse grupo quanto ao leitor (o estrangeiro), visto que eles são mostrados de<br />
tal distância que é possível vê-los quase que por inteiro. Além disso, os brasileiros estão de<br />
costas para o leitor, o que, juntamente com todas as <strong>análise</strong>s desses dois últimos parágrafos,<br />
exprime e reforça a idéia do brasileiro como “o outro”, diferente de mim (leitor). Tais<br />
observações se tornam relevantes devido ao fato de que nos interessa contrastar a visão do<br />
brasileiro pelo estrangeiro, veiculada pelo texto. Como poder<strong>em</strong>os ver a seguir, as<br />
características mostradas na linguag<strong>em</strong> também parec<strong>em</strong> mostrar os brasileiros como “os<br />
outros”. Observ<strong>em</strong>os, então, como os atores sociais são representados na linguag<strong>em</strong>, como<br />
mostra o quadro 1:<br />
421
A QUEM SE<br />
REFERE<br />
COMO O ATOR É<br />
REPRESENTADO<br />
Autor My<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
REALIZAÇÃO CATEGORIAS<br />
The sign taped to the teller’s window<br />
at my local bank<br />
Ativação<br />
Autor My My daughter’s school Ativação<br />
Brasileiros<br />
Brasileiros<br />
Brasileiros<br />
Brasileiros<br />
the Brazilian<br />
national team<br />
the green and<br />
yellow<br />
the five-time<br />
World Cup<br />
champions,<br />
gap-toothed boys<br />
from the favelas<br />
Estrangeiros British gentl<strong>em</strong>an<br />
Brasileiros<br />
Brasileiros<br />
nation of<br />
aficionados<br />
millions<br />
their team<br />
Brasileiros merchants<br />
Brasileiros the locals<br />
Brasileiros<br />
Warring drug<br />
traffickers<br />
Brasileiros Brazil<br />
Brasileiros Brazilians<br />
When the Brazilian national team<br />
meets North Korea<br />
if the green and yellow make it to<br />
the playoff round<br />
Brazil, home of the five-time World<br />
Cup champions,<br />
…where gap-toothed boys (1) from<br />
the favelas (2) turned a 19th-century<br />
pastime for British gentl<strong>em</strong>an into<br />
21st-century ballet on grass<br />
…turned a 19th-century pastime for<br />
British gentl<strong>em</strong>an<br />
compelling this nation (1) of<br />
aficionados (2) to shutter shops,<br />
<strong>em</strong>pty schools, slow down industry,<br />
and snarl traffic<br />
as millions (1) scramble for home or<br />
to the nearest pub in time to cheer for<br />
their team (2) .<br />
Many merchants have decided to<br />
lock up for the afternoon<br />
God may be Brazilian, as the locals<br />
are fond of saying,<br />
Even the warring (1) drug<br />
traffickers (2) in Rio’s hillsides will<br />
likely call a truce when the ball is<br />
rolling,<br />
though stray bullets might be a<br />
probl<strong>em</strong> if Brazil scores.<br />
the running joke is that Brazilians<br />
will take 2015 off.<br />
Coletivização<br />
Impessoalização<br />
(instrumentalização)<br />
Categorização<br />
(valoração)<br />
Categorização<br />
(Identificação)<br />
(1) física<br />
(2) classificatória<br />
Categorização<br />
(valoração)<br />
(1) Impessoalização<br />
(espaço)<br />
(2) Categorização<br />
(valoração)<br />
(1) Agregação<br />
(2) Categorização<br />
(identificação<br />
relacional)<br />
Categorização<br />
(Funcionalização)<br />
Impessoalização<br />
(espaço)<br />
(1) Categorização<br />
(valoração)<br />
(2) Categorização<br />
(Funcionalização)<br />
Impessoalização<br />
(espaço)<br />
Coletivização<br />
422
Brasileiros the Brazilians<br />
Um<br />
pesquisador<br />
Personag<strong>em</strong><br />
da ficção<br />
Will<strong>em</strong> Smit, a<br />
researcher at the<br />
prestigious Institute<br />
for Manag<strong>em</strong>ent<br />
Development<br />
(IMD) in<br />
Lausanne,<br />
Switzerland<br />
a soccer Scrooge<br />
Brasileiros Brazil<br />
Brasileiros workers<br />
Brasileiros<br />
reason the land of<br />
Robinho and<br />
Kaká<br />
Brasileiros Brazilian workers<br />
Estrangeiros<br />
Outro<br />
pesquisador<br />
Brasileiros<br />
European<br />
counterparts<br />
Karsten Jonse<br />
Brazil<br />
a “nation<br />
in cleats”<br />
Brasileiros fans<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
No one knows just how much this<br />
kind of football obsession will cost<br />
the Brazilians,<br />
Most recently, Will<strong>em</strong> Smit, a<br />
researcher at the prestigious<br />
Institute for Manag<strong>em</strong>ent<br />
Development (IMD) in Lausanne,<br />
Switzerland, flashed a red card at<br />
the whole Cup culture.<br />
Such figures se<strong>em</strong> drastic, if not the<br />
work of a soccer Scrooge<br />
Close on their heels is Brazil, which<br />
stands to lose $1.2 billion,<br />
as its workers abandon their desks<br />
for the bar stool.<br />
The only reason the land of<br />
Robinho and Kaká won’t lose more<br />
revenue<br />
…is because Brazilian workers<br />
simply don’t generate as much<br />
wealth per hour of labor as their<br />
European counterparts<br />
Brazilian workers simply don’t<br />
generate as much wealth per hour of<br />
labor as their European<br />
counterparts<br />
Karsten Jonsen, also of IMD,<br />
argues that the World Cup will bring<br />
a wealth of construction jobs<br />
That is no news to Brazil (1) , long a<br />
“nation (1) in cleats (2) ”, as national<br />
folklore has it.<br />
And if the overall economy may sag<br />
as fans take time<br />
Brasileiros their side to watch their side in action,<br />
Coletivização<br />
Nomeação e<br />
Categorização por<br />
funcionalização<br />
Simbolização<br />
Impessoalização<br />
(espaço)<br />
Categorização<br />
(Funcionalização)<br />
Impessoalização<br />
(espaço)<br />
Categorização<br />
(Funcionalização)<br />
Diferenciação<br />
Nomeação<br />
Categorização por<br />
funcionalização<br />
(1) Impessoalização<br />
(espaço)<br />
(2) Impessoalização<br />
(instrumentalização)<br />
Categorização<br />
(identificação<br />
relacional)<br />
Categorização<br />
(identificação<br />
relacional)<br />
423
Jogador<br />
representado<br />
como um<br />
personag<strong>em</strong><br />
Brasileiros<br />
Pelé<br />
Electronics<br />
retailers<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
some sectors are still making out like<br />
Pelé in the goal area..<br />
Electronics retailers here have seen<br />
a run on flat-screen televisions<br />
Brasileiros brewers while brewers reckon they will sell<br />
Personag<strong>em</strong><br />
da ficção<br />
a soccer Scrooge<br />
Those are numbers even a soccer<br />
Scrooge could appreciate<br />
Quadro 1 – Análise da representação dos atores sociais na linguag<strong>em</strong><br />
Simbolização<br />
Categorização<br />
(Funcionalização)<br />
Categorização<br />
(Funcionalização)<br />
Simbolização<br />
Pode-se depreender dessa <strong>análise</strong> que os brasileiros são citados <strong>em</strong> 65% das ocorrências<br />
analisadas, sendo o foco da notícia, e são representados de quatro formas principalmente: por<br />
impessoalização (delegando para segundo plano suas identidades), por categorização<br />
funcional (que indica o que eles faz<strong>em</strong>, ao invés de qu<strong>em</strong> eles são), por agregação e por<br />
coletivização (que, como na foto, faz com que o grupo pareça um todo homogêneo, que se<br />
comporta do mesmo jeito). Pode-se perceber ainda que o texto não traz nenhuma vez a voz de<br />
brasileiros para discutir o assunto. São os estrangeiros (o autor e dois pesquisadores) os atores<br />
de processos verbais e mentais. Tal escolha lhes confere poder, que é reforçado pelo fato<br />
desses pesquisadores ser<strong>em</strong> mencionados por nomeação formal e categorização funcional<br />
ligada a um lugar valorizado no texto (o IMD, de grande prestígio segundo o autor), o que<br />
confere a essas pessoas um status privilegiado.<br />
Outros ex<strong>em</strong>plos <strong>em</strong> que estrangeiros são citados pod<strong>em</strong> ser interpretados como<br />
tendenciosos, visto que esses atores sociais são diferenciados e valorizados positivamente ao<br />
longo do texto. Aos brasileiros, ao contrário, agrega-se vocabulário negativo como as<br />
menções dos “meninos desdentados das favelas” (que são os grandes representantes de nossos<br />
melhores jogadores) e dos traficantes, além de sermos classificados como uma nação<br />
obcecada pelo futebol, aficionados que não vê<strong>em</strong> quanto dinheiro estão perdendo com isso.<br />
Além de brasileiros e estrangeiros, t<strong>em</strong>os duas ocorrências de um personag<strong>em</strong> ficcional<br />
(Scrooge) além do jogador conhecido como o rei do futebol (Pelé), interpretado aqui também<br />
como um personag<strong>em</strong>. O efeito da menção desses personagens é o de delimitar ainda mais<br />
para qu<strong>em</strong> esse texto foi escrito, visto que é necessário ter o conhecimento de qu<strong>em</strong> eles são<br />
para poder entender o que o autor quis dizer.<br />
Outro aspecto a ser observado é que os brasileiros são s<strong>em</strong>pre representados por<br />
ativação, como pode ser visto no texto por inteiro <strong>em</strong> anexo. Entretanto, a maior parte de suas<br />
ações t<strong>em</strong> conotação negativa. Os brasileiros “fecham lojas, esvaziam escolas, desaceleram a<br />
produção <strong>em</strong> indústrias, causam confusão no trânsito, dão tiros quando o Brasil faz um gol,<br />
abandonam seu trabalho para ir para o bar torcer pelo time, vão tirar o ano de folga <strong>em</strong> 2015”,<br />
que estão entre outras ações citadas no texto que são desvalorizadas e vistas como<br />
424
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
socialmente inaceitáveis pelo autor. Portanto, pod<strong>em</strong>os dizer que o autor critica o<br />
comportamento dos brasileiros, o que é retratado tanto na imag<strong>em</strong> quanto na linguag<strong>em</strong>, e<br />
valoriza os estrangeiros, grupo do qual ele faz parte.<br />
5) Considerações Finais<br />
Os resultados da <strong>análise</strong> apontam para uma congruência entre as duas s<strong>em</strong>ioses<br />
estudadas, já que a mensag<strong>em</strong> veiculada pela imag<strong>em</strong> é desenvolvida na linguag<strong>em</strong> e então<br />
pod<strong>em</strong>os concluir que o texto é coeso. Sabendo que “a luta heg<strong>em</strong>ônica entre forças políticas<br />
pode ser vista, <strong>em</strong> parte, como disputa pela sustentação de um status universal para<br />
representações particulares do mundo” (Fairclough, 2003, p. 45), me parece que o artigo <strong>em</strong><br />
<strong>análise</strong> contribui para a naturalização da visão dos brasileiros como um povo desorganizado e<br />
preguiçoso, que t<strong>em</strong> como alguns representantes grupos socialmente desvalorizados como<br />
traficantes e favelados. A representação do Brasil é sustentada ainda como se fosse a única<br />
possível, visto que os brasileiros são mostrados como um grupo homogêneo tanto na<br />
linguag<strong>em</strong> como na imag<strong>em</strong>. Pode-se concluir ainda que há um afastamento entre esse grupo<br />
(os brasileiros) tanto quanto com relação ao autor, como com sua comunidade leitora. Os<br />
brasileiros pod<strong>em</strong> ser lidos nesse texto como “os outros”, “diferentes de nós estrangeiros”.<br />
Ao analisar esse único texto quanto à representação dos atores sociais, v<strong>em</strong>os o quanto<br />
as escolhas léxico-gramaticais e visuais afetam nossa interpretação geral, e como o que está<br />
por trás dessas escolhas pode passar despercebido pelo leitor. É necessário então, encontrar<br />
meios de trazer discussões como as propostas neste trabalho para as nossas salas de aula, com<br />
o propósito de resgatar os motivos que jaz<strong>em</strong> <strong>em</strong> tais escolhas.<br />
O ferramental teórico proposto por Van Leeuwen para a <strong>análise</strong> dos atores na imag<strong>em</strong> e<br />
na linguag<strong>em</strong> se mostra como um generoso ponto de partida para o desenvolvimento da<br />
leitura crítica, posto que nos permite desvelar ideologias veiculadas como “verdades”,<br />
influenciando a nossa opinião sobre os assuntos. Este breve exame de apenas um texto levanta<br />
muitas questões relevantes para ser<strong>em</strong> trabalhadas nas aulas de leitura <strong>em</strong> língua estrangeira.<br />
Assim, espero que no futuro esta pesquisa possa servir de base para o desenvolvimento de<br />
atividades que ampli<strong>em</strong> os limites conceituais dos alunos, a fim de prepará-los para ler textos<br />
multimodais criticamente.<br />
REFERÊNCIAS<br />
BAMBIRRA, Maria Raquel. Uma abordag<strong>em</strong> via gêneros textuais para o ensino da habilidade de<br />
leitura, no ‘inglês instrumental’. The ESPecialist, v.28, nº 2., p.137-157, 2007.<br />
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: UNB, 2001.<br />
FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge,<br />
2003<br />
HALLIDAY, M & MATTHIESSEN, C. An introduction to functional grammar. 3 ed. London:<br />
Edward Arnold, 2004.<br />
425
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
KRESS, G.R. and VAN LEEUWEN, T. Reading Images: the grammar of graphic design. London:<br />
Routledge, 2001.<br />
MARGOLIS, Mac. The World Cup's Bad Influence. Newsweek, 14 de junho de 2010. (Disponível<br />
<strong>em</strong>: Acesso <strong>em</strong>: 16 de<br />
junho de 2010).<br />
MELO, José Marques. Jornalismo opinativo – gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3ª. Edição.<br />
São Paulo: Mantiqueira, 2003.<br />
OLIVEIRA, Sara. Texto visual e leitura crítica: o dito, o omitido, o sugerido. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> e Ensino,<br />
v.9, n.1, p. 15-39. 2006<br />
RAMOS, R. C. G. Gêneros textuais: uma proposta de aplicação <strong>em</strong> cursos de inglês para fins<br />
específicos. the ESPecialist, v. 25, n. 2, p. 107-129, 2004.<br />
RESENDE, V & RAMALHO, V. Análise de Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006. (pp. 55 -<br />
90).<br />
SARDELICH, Maria Emilia. Leitura de imagens, cultura visual e prática educativa. Cadernos de<br />
Pesquisa, v.36, n.128, p. 451-472, 2006.<br />
SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003.<br />
VAN LEEUWEN, Theo. A representação de actores sociais. In: PEDRO, Emilia Ribeiro (org.)<br />
Análise Crítica do Discurso. Lisboa: Editora Caminho S.A., 1997. pp. 169-222.<br />
VAN LEEUWEN, Theo. Discourse and Practice – new tools for critical discourse analysis. New<br />
York: Oxford University Press, 2008. Pp 136-148<br />
VAN LEEUWEN, Theo. The representation of social actors. In: CALDAS-COULTHARD, C. R &<br />
COULTHARD, M. (eds) Texts and Practices – Reading in Critical Discourse Analysis. London:<br />
Routledge, 1996. pp 32-70.<br />
VIAN JR. Estruturas potenciais de gêneros na <strong>análise</strong> textual e no ensino de línguas. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> <strong>em</strong><br />
(Dis)curso, v.9, n.2, 387-410,2009.<br />
426
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
REPETIÇÕES E PERGUNTAS COMO ESTRATÉGIAS DE<br />
PROCESSAMENTO DISCURSIVO NO PORTUGUÊS FALADO NA<br />
REGIÃO DE MURIAÉ, MG<br />
Amitza Torres Vieira (FAFISM)<br />
Alessandra Maria Custódio (FAFISM)<br />
Vinícius Martins Galvão (FAFISM)<br />
Resumo: Este trabalho faz parte de um projeto maior de organização de um banco de dados anotado do<br />
português falado na microrregião de Muriaé, na Zona da Mata Mineira. A perspectiva teórica t<strong>em</strong> como enfoque<br />
principal o uso da língua <strong>em</strong> seu contexto social, especialmente identificada com as orientações da Análise da<br />
Conversação (Marcuschi, 2000; Koch, 2001) e da Sociolinguística Interacional (Gumperz, 1982). As anotações<br />
no campo de pesquisa foram realizadas segundo a abordag<strong>em</strong> da Etnometodologia (Coulon, 1995). O presente<br />
estudo t<strong>em</strong> como objetivos apresentar os corpora coletados nos municípios de Muriaé e Miradouro, no ano de<br />
2010, e explicitar estratégias usadas pelos falantes no processamento discursivo. São focalizadas as repetições e<br />
as perguntas, com o objetivo de identificar seus tipos e funções a partir dos trabalhos de Marcuschi (2002),<br />
Hilgert (2001) e Fávero et al (2002). As amostras de interação, gravadas <strong>em</strong> MP3 e transcritas de acordo com as<br />
normas propostas por Sacks, Schegloff & Jefferson (1974) e Atkinson & Heritage (1984), abarcam conversas<br />
espontâneas <strong>em</strong> situações familiares. Os resultados da <strong>análise</strong> mostram heterorrepetições lexicais, que<br />
contribu<strong>em</strong> para a continuidade tópica, a interatividade e a ratificação; heterorrepetições de estruturas sintáticas<br />
oracionais que atuam reafirmando e confirmando informações; e heterorrepetiçoes parafrásticas, que funcionam<br />
especificando ou compl<strong>em</strong>entando o termo parafraseado. Os seguintes tipos de perguntas foram identificados:<br />
pedidos de informação, de confirmação e de esclarecimento. No que tange à função, a <strong>análise</strong> aponta para a<br />
atuação das perguntas no processamento da fala, funcionando na introdução, continuidade e mudança do tópico<br />
discursivo.<br />
1) Introdução<br />
Este trabalho faz parte de um projeto maior de organização de um banco de dados<br />
anotado do português falado na microrregião de Muriaé, na Zona da Mata de Minas Gerais,<br />
constituindo material importante para a compreensão da fala mineira, cujas características<br />
ainda são pouco conhecidas de seus usuários. As amostras de interação coletadas e transcritas<br />
abarcam o contar de “casos”, recurso usado pelas famílias mineiras das cidades menores<br />
como estratégia de interação verbal.<br />
A perspectiva teórica t<strong>em</strong> como enfoque principal o uso da língua <strong>em</strong> seu contexto<br />
social, especialmente identificada com as orientações da Análise da Conversação (Marcuschi,<br />
2000; Koch, 2001) e da Sociolinguística Interacional (Gumperz, 1982), sendo as anotações no<br />
campo de pesquisa realizadas segundo a abordag<strong>em</strong> da Etnometodologia (Coulon, 1995).<br />
O presente estudo t<strong>em</strong> como objetivo explicitar estratégias usadas pelos falantes no<br />
processamento discursivo nos corpora coletados nos municípios de Muriaé e Miradouro no<br />
ano de 2010. Mais especificamente, serão analisadas a natureza e a função das repetições,<br />
paráfrases e perguntas nas amostras de interação selecionadas. Para tanto, esta pesquisa<br />
fundamentar-se-á nos trabalhos de Marcuschi (2002) e Hilgert (2001), no que tange à<br />
investigação das repetições e paráfrases, e na pesquisa de Fávero et al (2002), no tocante à<br />
formulação de perguntas.<br />
427
2) Fundamentação Teórica<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Com o intuito de facilitar o processamento do texto e agir interativamente, o falante<br />
utiliza, com frequência, estratégias metaformulativas. Dentre essas estratégias de formulação<br />
textual, a repetição é uma das atividades mais presentes na oralidade, contribuindo para a<br />
composição textual e a organização tópica. Em estudo realizado com dados do português<br />
falado na cidade de São Paulo, Marcuschi (2002) mostra que a repetição atua tanto no plano<br />
da textualização (relações cotextuais) quanto no plano discursivo (relações sócio-contextuais),<br />
podendo assumir um variado conjunto de funções. Dentre elas, pode-se destacar a sua<br />
colaboração para a compreensão sequencial e a continuidade tópica, b<strong>em</strong> como a condução da<br />
argumentação e promoção da interatividade.<br />
O autor ainda distingue entre autorrepetições (produzidas pelo próprio falante) e<br />
heterorrepetições (o interlocutor repete algum segmento dito pelo locutor), denominando<br />
matriz (M) à primeira entrada do segmento discursivo que logo será construído à sua<br />
s<strong>em</strong>elhança ou identidade pela repetição (R).<br />
Além das repetições, são também consideradas atividades formulativas, a correção e a<br />
paráfrase. Esta última foi estudada por Hilgert (2001), que define a atividade de parafrasear<br />
como uma atividade linguística “por meio da qual se estabelece entre um enunciado de<br />
orig<strong>em</strong> e um enunciado reformulador uma relação de equivalência s<strong>em</strong>ântica responsável por<br />
deslocamentos de sentidos que impulsionam a progressividade textual” (p.114). O autor<br />
identifica a repetição parafrástica como uma estratégia à qual o falante recorre para reformular<br />
sua fala, no intuito de promover e assegurar a intercompreensão e a progressividade<br />
conversacionais.<br />
No que tange às perguntas, este estudo fundamenta-se no trabalho de Fávero et al (2002)<br />
<strong>em</strong> conversas espontâneas e nos inquéritos do tipo D2 (diálogos entre dois falantes) do<br />
Projeto de Gramática do Português Falado. Adotando uma perspectiva discursiva, as autoras<br />
notam que, de acordo com os objetivos dos interactantes e com as relações engendradas na<br />
conversação, ocorr<strong>em</strong> jogos interacionais de caráter pragmático. Tais jogos direcionam a<br />
coerência e são evidenciados por meio de uma organização sequenciada que se instaura a<br />
partir do par dialógico Pergunta-Resposta (P-R). Fávero et al (2002) focalizam esse par tanto<br />
no que se refere à função quanto à natureza e à forma. Em relação às perguntas, as autoras<br />
identificam as funções de introdução, continuidade, redirecionamento e mudança de tópico.<br />
Quanto à natureza, as perguntas pod<strong>em</strong> ser categorizadas como pergunta retórica, pedido de<br />
informação, de confirmação e de esclarecimento. O trabalho das autoras evidencia também<br />
que as perguntas funcionam na interação como estratégias para a realização dos objetivos<br />
interacionais, sendo de grande importância para a coerência do texto falado.<br />
3) Metodologia<br />
Os dados para <strong>análise</strong> pertenc<strong>em</strong> ao acervo do Projeto “Português falado na região de<br />
Muriaé e arredores: constituição de um banco de dados anotados”, desenvolvido, desde 2006,<br />
sob a coordenação da Profa. Dra. Amitza Torres Vieira, no Programa de Iniciação Científica<br />
da Faculdade de F.C.L. Santa Marcelina (FAFISM) 1 . As amostras de interação, gravadas <strong>em</strong><br />
1 O Projeto atualmente conta com um acervo de 13 arquivos de áudio, sendo 10 de situações de compra e venda,<br />
1 de situação de atendimento ao público no setor de saúde e 2 arquivos de conversas familiares, totalizando 2<br />
428
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
MP3 e transcritas de acordo com as normas propostas por Sacks, Schegloff & Jefferson<br />
(1974) e Atkinson & Heritage (1984), abarcam conversas espontâneas <strong>em</strong> situações<br />
familiares, nas quais os m<strong>em</strong>bros da coletividade utilizam “casos” como ponto de partida de<br />
uma interação familiar e social mais ampla. Os objetivos da pesquisa foram claramente<br />
fornecidos aos informantes, que estavam cientes de que o material não seria objeto de<br />
qualquer tipo de avaliação social, tendo-lhes sido garantido o anonimato na divulgação dos<br />
resultados.<br />
A transcrição dos dados foi realizada <strong>em</strong> três etapas: rascunho, refinamento 1 e<br />
refinamento 2. No rascunho, foi realizada a primeira transcrição do áudio, sendo apenas<br />
transposta a fala para a escrita. No refinamento 1, foram focalizados o volume de voz, as<br />
pausas e os alongamentos de vogais. No refinamento 2, foram observadas as sobreposições, a<br />
entoação e os d<strong>em</strong>ais fenômenos propostos pelo modelo de transcrição.<br />
São duas as interações selecionadas para <strong>análise</strong>: a primeira, coletada <strong>em</strong> Miradouro,<br />
perfaz um total de 51min35 de gravação com três informantes, sogro, genro e amigo comum;<br />
a outra, coletada <strong>em</strong> Muriaé, perfaz um total de 16min40 de gravação com dois informantes,<br />
um hom<strong>em</strong> e uma mulher amigos de longa data.<br />
Tendo <strong>em</strong> vista a maior ocorrência de repetições nos dados coletados <strong>em</strong> Miradouro, a<br />
<strong>análise</strong> desse fenômeno focalizará especificamente essa amostra de interação, ficando a<br />
investigação sobre a natureza e a função das perguntas restrita aos dados coletados <strong>em</strong><br />
Muriaé.<br />
4) Natureza e função das repetições e paráfrases<br />
Foram identificados, nos dados coletados <strong>em</strong> Miradouro, os seguintes tipos de<br />
heterorrepetições: lexical, com as funções de ratificação, interatividade e continuidade tópica;<br />
e oracional, com as funções de confirmação e reafirmação. Foram encontradas também<br />
heterorrepetições parafrásticas, com as funções de compl<strong>em</strong>entação e especificação. Os itens<br />
seguintes descrev<strong>em</strong> essas ocorrências.<br />
4.1) Heterorrepetição lexical<br />
Neste caso, o interlocutor repete o it<strong>em</strong> lexical formulado pelo locutor no turno<br />
adjacente imediatamente anterior, tal como acontece nas linhas 127-128.<br />
horas e 34 minutos de gravações transcritas, com um total de 36 informantes catalogados. Os dados refinados e<br />
digitalizados encontram-se disponíveis no link “Projeto UAI” na página da FAFISM: www.fafism.com.br.<br />
429
Excerto (1)<br />
a) Função: ratificação<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(4:123-128)<br />
No excerto (1), ocorre a heterorrepetição lexical do it<strong>em</strong> “grama” com a função de<br />
ratificar o que havia sido dito no turno adjacente. Os participantes conversam sobre um<br />
material usado para roçar o pasto, denominado roçadeira. N<strong>em</strong> afirma a seus interlocutores<br />
(linhas 123 a 126 ) os danos causados pelo uso desse material, utilizando o pronome<br />
d<strong>em</strong>onstrativo “aquilo” para se referir à roçadeira. Nas linhas 127 e 128, Éder e José ratificam<br />
o tipo de vegetação para o qual a roçadeira é adequada: “grama”, pois esta não apresenta<br />
tantos obstáculos como o pasto que possui o solo cheio de surpresas ao ser roçado.<br />
b) Função: interatividade<br />
No excerto (2), a heterorrepetição lexical da palavra “xangueiro” contribui para o fluxo<br />
interativo. A matriz ocorre na linha 440 e a repetição aparece imediatamente adjacente na<br />
linha 441, <strong>em</strong> sobreposição à fala.<br />
Excerto (2)<br />
123 N<strong>em</strong>: se tivé um toco ou uma pedra purimz<strong>em</strong>pro:: se o pasto<br />
124 tive muito sujo:: esbarra num troço daquele:: aí ela vai<br />
125 quebrá... e ainda machucá a pessoa:: vai t<strong>em</strong> uns pasto<br />
126 que ocê:: aquilo é próprio [prá:: ]<br />
127 Eder: [grama]<br />
128 José: [grama]<br />
440 José: T<strong>em</strong> cara aí que é xanguero aí:: fala é:: é:: [xanguero::]<br />
441 Eder: é [xanguero ] 442 m<strong>em</strong>o:: chapa::<br />
(12: 440-442)<br />
A palavra “xangueiro” pertence a uma variedade social utilizada pelo comércio varejista<br />
para designar o trabalhador que descarrega cargas, braçalmente, nas portas dos comércios.<br />
Como os participantes têm esse conhecimento partilhado, Eder mostra com a repetição da<br />
palavra (linha 441) seu entendimento sobre o tópico discursivo, além de acrescentar ainda<br />
430
outra palavra para designar esse tipo de trabalhador: “chapa”.<br />
c) Função: continuidade tópica<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A repetição do sintagma nominal “poço artesiano”, no excerto (3), orienta a<br />
continuidade do tópico: a construção do poço artesiano que servirá para armazenag<strong>em</strong> de<br />
água. A matriz aparece na linha 1099, sendo retomada três vezes pelos participantes (linhas<br />
1101, 1104 e 1106) que, dessa forma, mostram um foco de atenção único no tópico<br />
discursivo.<br />
Excerto (3)<br />
4.2) Heterorrepetição oracional<br />
(34: 1099-1106)<br />
No caso da heterorrepetição oracional, o material repetido pelo interlocutor é um<br />
segmento discursivo que contém um verbo.<br />
a) Função: confirmação<br />
A repetição, no excerto (4), atua no sentido de confirmar a matriz “a educação num CAba”<br />
(linha 3). O interlocutor José, ao perceber que o seu locutor N<strong>em</strong> enfatiza a importância da<br />
educação para o filho, confirma essa asserção (linha 5).<br />
Excerto (4)<br />
1099 José: pra fazê um poço artesiano ali:: fica por 600 o<br />
1100 poço:: pra fazê o poço::<br />
1101 Eder: mas o poço artesiano não:: quê faz é aquele::<br />
1102 poço furado com negócio [né::]<br />
1103 José: [éh::]não é não<br />
1104 Eder: poço artesiano não::<br />
1105 José: não é não:: com a:: rodano::<br />
1106 Eder: cê bota aquele:: fica caro:: poço artesiano mesmo::<br />
(1: 3-5)<br />
431
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
3 N<strong>em</strong>: ô:: meu fi:: num caba:: a educação num CAba:: a educação cabe<br />
4 <strong>em</strong> qualqué lugá::<br />
5 José: a educação num caba::<br />
b) Função: reafirmação<br />
No excerto a seguir, o locutor N<strong>em</strong> (linha 58 ) afirma que seu filho estudou no primeiro<br />
ano do segundo grau que, atualmente, é o primeiro ano do ensino médio. Como ele fica <strong>em</strong><br />
dúvida se é o primeiro ou segundo grau, Eder reafirma a fala de N<strong>em</strong>: “é o primeiro ano do<br />
segundo grau” (linhas 61-62), fazendo uso de uma heterorrepetição oracional, identificada pela<br />
presença da cópula.<br />
Excerto (5)<br />
58 N<strong>em</strong>: ºele estudô é o primeiro ano não é:: do segundo grau:: aí<br />
59 o segundo<br />
60 não:: o [primeiro::]º<br />
mesmo:: é o primeiro ano do<br />
62 segundo grau::<br />
4.3) Heterorrepetição parafrástica<br />
61 Eder: [é:: ] isso<br />
(2: 58-62)<br />
As paráfrases constitu<strong>em</strong> material repetido pelo interlocutor, mas não idêntico ao dito<br />
no turno imediatamente anterior, pois funcionam como uma extensão s<strong>em</strong>ântica da fala<br />
precedente.<br />
a) Função: compl<strong>em</strong>entação<br />
No excerto seguinte, Eder compl<strong>em</strong>enta a informação sobre a palavra “xangueiro”,<br />
adicionando mais um sinônimo à profissão de carregador: “chapa”.<br />
Excerto (6)<br />
432
440 José: t<strong>em</strong> cara aí que é xanguero aí:: fala é:: é:: [xanguero::]<br />
441 Eder: é [xanguero ] 442 m<strong>em</strong>o:: chapa::<br />
b) Função: especificação<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(12: 440-442)<br />
Em (7), N<strong>em</strong> utiliza a expressão “com os de fora” para se referir àqueles que não<br />
possu<strong>em</strong> grau de parentesco com sua família. Em seguida, Eder especifica melhor essa<br />
informação, fazendo uso da expressão “com os estranho” (linha 20).<br />
Excerto (7)<br />
16 N<strong>em</strong>: eu fiquei chateado:: uê:: porque perto de mim ele falá com 17 o minino:: mas é o QUÊ:: é<br />
bão que:: com o pai num aprende:: 18 aprende com os de fora ::<br />
19 [né::]<br />
20 Eder: [é::] o pai fala isso:: com os estranho:: aprende com os 21 estranho:: ((risos))<br />
5) Natureza das perguntas<br />
(1:16-21)<br />
Os dados investigados permit<strong>em</strong> reconhecer, quanto à natureza, a seguinte tipologia:<br />
pergunta retórica, pedido de informação e pedido de esclarecimento.<br />
5.1) Pergunta retórica<br />
As perguntas retóricas são elaboradas s<strong>em</strong> que haja obrigatoriedade de uma resposta por<br />
parte do interlocutor. Isso acontece quando o locutor já t<strong>em</strong> conhecimento da resposta e utiliza<br />
essa estratégia para manter o turno de fala, tal como ocorre no excerto (8).<br />
Excerto (8)<br />
88 Ana: agora eu acho meio estranh- TU:↑do errado,<br />
89 sabe o que que eu acho erra:do? ele menTI pra mim, ele<br />
90 arrumô o trabalho e tá mentindo pra mim (...).<br />
(3: 88-90)<br />
Na linha 89, Ana formula a pergunta com o intuito de que Silas não responda, porque<br />
433
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ela já conhece a resposta e usa esse tipo de pergunta como recurso para manter o turno da<br />
conversa, visto que sua fala continua corrente, s<strong>em</strong> interrupção, ao descrever a atitude de seu<br />
companheiro no relacionamento.<br />
5.2) Pedido de informação<br />
O pedido de informação pode ser conceituado como algo que o interlocutor necessita<br />
saber para que a conversação prossiga com plena compreensão para os interactantes.<br />
Excerto (9)<br />
151 Silas: aí daí dois dias ele chegô aqui ué.<br />
152 Ana: aí ela perdoou E:le a traição?<br />
153 Silas: aí resolveu.<br />
154 Ana: t<strong>em</strong> que perdoá↑, ué ele é-é: ela é casada com ele (...).<br />
(5:151-154)<br />
Na linha 151, Silas conta que seu genro viera se reconciliar, após dois dias da chegada<br />
da filha à casa paterna. Na linha 152, Ana interrompe o turno de Silas <strong>em</strong> busca de uma<br />
informação que ele não havia fornecido: a filha perdoara ou não o marido. Silas responde “aí<br />
resolveu”, e Ana entende que houve o perdão por parte da filha de Silas.<br />
5.3) Pedido de esclarecimento<br />
O pedido de esclarecimento ocorre quando uma explicação é solicitada <strong>em</strong> relação ao<br />
enunciado imediatamente anterior ao do interlocutor. No excerto (3), a seguir, Ana interrompe<br />
o turno de Silas, que lhe contava o caso da traição que sua filha sofrera, para solicitar-lhe um<br />
esclarecimento que julgava ser necessário para a continuidade do tópico discursivo.<br />
Excerto (10)<br />
145 Silas: ( ) encontrô: ele com outra mulé lá<br />
146 (1.33) ô::: aí ele... porque- que que ele fez... ele<br />
147 che- ele pegô e fez o seguinte (1.24), é::: (2.35)<br />
434
148 ela enfezo lá, largô pegô o carro, botô os menino<br />
149 no carro e veio parar aqui.<br />
150 Ana: hum, ai ele veio atrás?<br />
151 Silas: aí daí dois dias ele chegô aqui ué.<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(5:145-151)<br />
Na linha 150, Ana formula um pedido de esclarecimento referente à ação do marido ao<br />
saber que a esposa o havia abandonado após o adultério, já que Silas, <strong>em</strong> sua fala, atém-se a<br />
descrever as ações da filha, não se referindo ao genro.<br />
6) Função das perguntas<br />
As perguntas pod<strong>em</strong> exercer as seguintes funções <strong>em</strong> relação ao tópico discursivo:<br />
continuidade, mudança, introdução e redirecionamento.<br />
6.1) Continuidade de tópico<br />
As perguntas pod<strong>em</strong> ser utilizadas pelos interlocutores para dar prosseguimento ao<br />
tópico discursivo. No ex<strong>em</strong>plo a seguir, Silas usa esse recurso para dar continuidade ao tópico<br />
“Relação do casal”, <strong>em</strong> que se discute a relação amorosa de Ana com seu parceiro mais<br />
jov<strong>em</strong>.<br />
Excerto (11)<br />
114 Silas: ué, você t<strong>em</strong> que procurá o que é ME↑lho pra você ué,<br />
115 você t<strong>em</strong> que procurá a::: sua situação de- do SEu la↑do,<br />
116 agora dele E↑le t<strong>em</strong> que pro↑curá o lado DEle ué, agora o<br />
117 lado dele é o [( )]<br />
118 Ana: [agora qu<strong>em</strong> tá saindo prejudi-] ºqu<strong>em</strong> tá<br />
119 sendo prejudicada é eu uéº.<br />
120 Silas: é claro ué, que futuro, que futuro t<strong>em</strong>?<br />
435
121 Ana: e E ↑ le ta SÓ↑ [subindo na vida]<br />
122 Silas: [que futuro]?<br />
123 Ana: ele comprou teRRE↑no, construiu CAsa de cinco anos pra cá,<br />
124 eu tô com ele vai fazer nove, ele construiu ca↑sa de cinco<br />
125 anos pra cá ué (...).<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(4:114-125)<br />
Nas linhas 120 e 122, Silas incentiva Ana a continuar o tópico, argumentando que não<br />
há futuro <strong>em</strong> um tipo de relacionamento no qual um dos parceiros é individualista, isto é, só<br />
pensa <strong>em</strong> si. Dessa forma, Silas contribui para a continuidade do tópico discursivo iniciado<br />
por Ana.<br />
6.2) Mudança de tópico<br />
A pergunta que funciona como estratégia para mudança de tópico pode ser verificada no<br />
excerto a seguir. Ana utiliza-se desse recurso para mudar o tópico discursivo “Relação do<br />
casal” para “Relação da filha de Silas com o marido”.<br />
Excerto (12)<br />
125 Ana: ...depois que ele tá comigo é que ele tá-tá- a<br />
126 situação financeira dele melhorou ué, porque<br />
127 ele t<strong>em</strong> uma mulé que num- ele gasta NA:da<br />
128 comi↑go ué.<br />
129 Silas: é claro ué, (1,43) a despesa DEle é mí↑nima.<br />
130 Ana: mínima, num vê a sua filha lá <strong>em</strong> BraSÍlia? sua filha<br />
131 sua filha saiu daQUI, foi <strong>em</strong>bora pra BraSÍlia, arrumou aquele<br />
132 senhô lá que faz TU↑do pra ela, caSOu com ela,<br />
436
133 assumi- assumiu um filho que num era de- dele, né.<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(4:125-133)<br />
No excerto (12), Ana introduz uma pergunta (linha 130) no intuito de comparar seu<br />
relacionamento ao da filha de Silas que “arrumou aquele senhô lá que faz TU↑do pra ela,<br />
caSOu com ela, assumi- assumiu um filho que num era de- dele, né”. Essa estratégia de Ana<br />
faz com que o tópico discursivo se desloque para uma relação considerada por ela como ideal.<br />
6.3) Introdução de tópico<br />
Ana utiliza uma pergunta (linha 177) e, a partir dela, começa o novo tópico discursivo:<br />
“Profissão do marido da filha de Silas”.<br />
Excerto (13)<br />
175 Ana: não é agreSSI:vo.<br />
176 Silas: não.<br />
177 Ana: ele é aSSEsso↑r do-do-do governo lá <strong>em</strong> Brasília né?<br />
178 Silas: ele é trabalha pro:: Zé Sarney lá (...)<br />
(6:175-178)<br />
Ana continua a comparar sua relação com a da filha do interlocutor, mostrando que o<br />
genro de Silas é b<strong>em</strong> colocado profissionalmente, ao contrário de seu companheiro. Ao<br />
formular a pergunta, ela introduz um novo tópico discursivo.<br />
6.4) Redirecionamento de tópico<br />
Os tópicos pod<strong>em</strong> ser recursivos, ou seja, pod<strong>em</strong> agir prospectiva e retroativamente. No<br />
excerto (14), ao perceber que houve uma mudança do tópico original “Relação do casal”, Ana<br />
o reintroduz por meio de uma pergunta, na linha 207. Essa pergunta retórica de Ana t<strong>em</strong> a<br />
função de redirecionamento para o tópico que lhe interessa mais especificamente: “Relação<br />
do casal”.<br />
Excerto (14)<br />
437
204 Ana: casou com ele t<strong>em</strong> que atulerá né Silas, ele é bom<br />
205 pra ela, ah chifre num mata não, quando o marido é<br />
206 bom a gente t<strong>em</strong> que perdoá o chifre porque chifre num mata não, né<br />
207 quando o marido é bom, agora no meu caso que que adianta?<br />
208 eu tô com hom<strong>em</strong> que não faz nada pra mim<br />
209 né, frequenta a minha casa, dorme comigo, eu<br />
210 respeito ele como MArido né, ando na rua com ele de<br />
211 mão da:da, respeito como meu marido.<br />
7) Considerações Finais<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(7: 204-207)<br />
Este estudo se propôs a mostrar a natureza e a função das repetições e das perguntas <strong>em</strong><br />
dados do português falado no interior do estado de Minas Gerais, mas especificamente das<br />
cidades de Muriaé e Miradouro. Para tanto, foram utilizados pressupostos advindos de<br />
pesquisas realizadas por Marcuschi (2002), Hilgert (2001) e Fávero et al (2002) <strong>em</strong> dados da<br />
fala culta da cidade de São Paulo.<br />
Os resultados da <strong>análise</strong> do corpus de Miradouro mostram heterorrepetições lexicais<br />
que contribu<strong>em</strong> para a continuidade tópica, a interatividade e a ratificação; heterorrepetições<br />
de estruturas sintáticas oracionais que atuam reafirmando e confirmando informações; e<br />
heterorrepetições parafrásticas que funcionam especificando ou compl<strong>em</strong>entando o termo<br />
parafraseado.<br />
Nos dados coletados <strong>em</strong> Muriaé, foram examinadas as perguntas e identificadas suas<br />
natureza e função na organização tópica. As ocorrências permit<strong>em</strong> registrar os seguintes tipos<br />
de perguntas: pedidos de informação, de confirmação e de esclarecimento. No que tange à<br />
função, a <strong>análise</strong> inicial aponta para a atuação das perguntas no processamento da fala,<br />
funcionando na introdução, continuidade e mudança do tópico discursivo.<br />
Embora inicial, espera-se que este estudo contribua para a elucidação de estratégias<br />
discursivas realizadas pelos falantes mineiros <strong>em</strong> suas interações familiares fora do espaço<br />
geográfico de Belo Horizonte, possibilitando a compreensão do uso linguístico atual na Zona<br />
da Mata Mineira.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ATKINSON, J. M.; HERITAGE, J. (Org.). Structures of social action: studies in conversation analysis.<br />
438
Cambridge: Cambridge University Press, 1984.<br />
COULON, Alain. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 1995.<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
GUMPERZ, J. J. (edit.). Language and social identity. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.<br />
FÁVERO, L. L.; ANDRADE, M. L. da C. V. de O.; AQUINO, Z. G. O. de. Perguntas e respostas<br />
como mecanismos de coesão e coerência no texto falado. In: CASTILHO, A. T. de; BASÍLIO, M.<br />
(Org.). Gramática do português falado. IV: Estudos descritivos. 4. 2. ed. Campinas, SP: Editora da<br />
UNICAMP, 2002.<br />
HILGERT, J. G. Procedimentos de reformulação: a paráfrase. In: PRETI, D. (Org.). Análise de textos<br />
orais. 5. ed. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2001.<br />
KOCH, I. G. A inter-ação pela linguag<strong>em</strong>. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2001.<br />
MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 5. ed. São Paulo: Ática, 2000.<br />
MARCUSCHI, Antônio Luiz. A repetição na língua falada como estratégia de formulação textual. In:<br />
KOCH, J.V. (Org.). Gramática do Português falado. VI: Desenvolvimentos. 2 ed. Campinas, SP:<br />
Editora da UNICAMP, 2002.<br />
SACKS, H.; SCHEGLOFF, E. A.; JEFFERSON, G. A simplest syst<strong>em</strong>atics for the organization of<br />
turn- taking for conversation. Language, 50, 1974, p. 696-735.<br />
ANEXO<br />
CONVENÇÕES ADOTADAS PARA TRANSCRIÇÃO DOS DADOS 2<br />
Ocorrências Sinais<br />
(0.4) pausa <strong>em</strong> décimos de segundo, medida com cronômetro<br />
(2.8) pausa <strong>em</strong> segundos, medida com cronômetro<br />
[ início de sobreposição de fala<br />
] finalização de sobreposição de fala<br />
= ausência de pausa entre a fala de dois falantes distintos<br />
. entonação descendente, indicando finalização do enunciado<br />
, entonação contínua, indicando prosseguimento da fala<br />
? enunciado com entonação de pergunta<br />
2 Cf. Sacks, Schegloff & Jefferson (1974) e Atkinson & Heritage (1984).<br />
439
↑ subida no contorno prosódico<br />
↓ descida no contorno prosódico<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
:: alongamento de vogal (quanto mais :, maior o alongamento)<br />
– corte na fala ou auto-interrupção<br />
sublinhado acento ou ênfase no volume da voz<br />
MAIÚSCULA forte acento no volume da voz<br />
“palavras” trecho entre aspas indica fala relatada<br />
th estalar de língua<br />
(( )) comentários do analista<br />
(palavras) transcrição duvidosa<br />
( ) transcrição impossível<br />
°palavras° trecho marcadamente mais suave ou devagar que o restante da fala<br />
ao redor; duplicação dos símbolos indica maior intensidade do<br />
fenômeno<br />
>palavras< fala comprimida ou acelerada; duplicação dos símbolos indica maior<br />
intensidade do fenômeno<br />
440
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A MODALIZAÇÃO DEÔNTICA EM ARTIGOS DE OPINIÃO<br />
Tatiana Jardim Gonçalves (UFF)<br />
RESUMO: A língua concebida como lugar de troca, de interação, <strong>em</strong> que os participantes do ato enunciativo<br />
expressam sua forma particular de ver o mundo, dispõe de categorias, de el<strong>em</strong>entos que veiculam da forma mais<br />
eficiente tal subjetividade. Nesse sentido, o produtor de um enunciado pode ou não se comprometer com o que<br />
diz e, para isso, escolhe el<strong>em</strong>entos que melhor marqu<strong>em</strong> o seu posicionamento. Alguns desses el<strong>em</strong>entos são os<br />
modalizadores, que alud<strong>em</strong> ao modo como o que se diz é dito. Nesse viés, pode-se dizer que um enunciado<br />
assume eixos argumentativos diferenciados. Dessa forma, este trabalho analisou a manifestação da modalização<br />
deôntica <strong>em</strong> artigos de opinião. A pesquisa, de cunho s<strong>em</strong>ântico-pragmático, baseou-se <strong>em</strong> Ducrot (1987) e<br />
Koch (1984), Koch (2003) . Na <strong>análise</strong>, verificou-se que os modalizadores expressos pelos predicados<br />
cristalizados contribu<strong>em</strong> para o viés argumentativo de um enunciado, para a expressão do ponto de vista do<br />
enunciador; entretanto, pelo fato de não possuír<strong>em</strong> marca de pessoa, provocam um apagamento desse<br />
enunciador, nesse caso, é o s<strong>em</strong>a do recurso lingüístico (adjetivo componente do predicado cristalizado) o<br />
el<strong>em</strong>ento colaborador do viés argumentativo, o que pode ser <strong>em</strong>basado pela tese de Ducrot (1987) para qu<strong>em</strong> a<br />
argumentação está inscrita na língua. O estudo da modalização extrapola, pois, o campo linguístico e entra no<br />
campo dos juízos de valor e porque não dizer no campo das intenções das próprias esferas comunicativas, visto<br />
que qu<strong>em</strong> está ligado a uma dessas esferas produz seu enunciado <strong>em</strong> consonância com os objetivos desta.<br />
1) Introdução<br />
A língua não é só instrumento de comunicação. Por ela, o hom<strong>em</strong> interage, se<br />
representa no seio da sociedade e se relaciona com o mundo. Nesse sentido, a língua é<br />
concebida como lugar de troca, de interação, <strong>em</strong> que os participantes do ato comunicativo<br />
expressam sua forma particular de ver o mundo, o hom<strong>em</strong> se insere nos enunciados e<br />
manifesta sua subjetividade.<br />
Assim, o produtor de um enunciado pode se comprometer <strong>em</strong> maior ou menor grau com<br />
o seu dito e, para isso, escolhe el<strong>em</strong>entos que melhor marqu<strong>em</strong> o seu posicionamento. Entre<br />
esses el<strong>em</strong>entos estão os modalizadores, que alud<strong>em</strong> ao modo como o que se diz é dito.<br />
Assim, um enunciado institui sentidos diversos, ocasionando eixos argumentativos também<br />
diversos.<br />
Este trabalho analisou a manifestação da modalização deôntica <strong>em</strong> artigos de opinião.<br />
Tal <strong>análise</strong> foi realizada a partir dos postulados de Ducrot (1976,1987 e 1989) e Koch (2003,<br />
2009) o que enquadra o trabalho na perspectiva s<strong>em</strong>ântico-pragmática da linguag<strong>em</strong>.<br />
2) Da língua ao discurso<br />
O hom<strong>em</strong> é, s<strong>em</strong> dúvida, um ser de língua e da língua. Pela língua, veicula suas<br />
ideias, nomeia, faz referência. Todavia, o uso da língua, faz com que a mesma passe a ser<br />
fator de interação e assim, assumida como exercício pelo indivíduo 1 , é transformada e passa<br />
de língua a discurso.<br />
1 Benveniste (2005)<br />
441
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Esse discurso gera sentidos, pois, ao se apropriar da língua, o hom<strong>em</strong> se posiciona e<br />
imprime nos enunciados que produz a sua marca. Dá-se, então, a subjetividade, capacidade de<br />
o locutor se posicionar como sujeito do seu discurso, instaura-se o eu, mas instaura-se<br />
também o tu, visto que só é possível haver subjetividade quando nos dirigimos a alguém.<br />
Sobre isso Benveniste (2005, p. 285) afirma que “Não atingimos jamais o hom<strong>em</strong> reduzido a<br />
si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um hom<strong>em</strong> falando que<br />
encontramos no mundo, um hom<strong>em</strong> falando com outro hom<strong>em</strong>, e a linguag<strong>em</strong> ensina a<br />
própria definição do hom<strong>em</strong>.” Assim, essa troca só é possível porque ao <strong>em</strong>pregar a língua, o<br />
outro, necessariamente, é evocado, a intersubjetividade é, portanto, condição da subjetividade.<br />
Dessa forma, há o processo de s<strong>em</strong>antização da língua como denomina Benveniste<br />
(2005). A língua passa a ser discurso, porque o sujeito confere sentido às suas palavras, ao seu<br />
dizer, a partir do uso, a partir da apropriação que faz das formas da língua e a partir da relação<br />
com outro. O discurso, sob este prisma, é a linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> uso que produz efeitos de sentido a<br />
cada momento, é a relação do locutor com a língua. Discurso é cada uso único, irrepetível que<br />
o hom<strong>em</strong> faz da língua. Esses usos são o limiar da enunciação, ou seja, integram o processo<br />
de produção dos enunciados. A enunciação é o colocar a língua <strong>em</strong> funcionamento por um ato<br />
individual de utilização.<br />
Enunciar é apropriar-se da língua e constituir-se enquanto sujeito, mas um sujeito<br />
linguístico que pode ser identificado e recuperado através das marcas que deixa no produto de<br />
sua enunciação, isto é, no enunciado. A enunciação é, então, um ato único, irrepetível,<br />
oriundo do exercício da língua, o discurso.<br />
3) A linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> ação<br />
Como mencionado anteriormente, ao colocar a língua <strong>em</strong> uso, o locutor se institui como<br />
eu, mas também institui um tu, o alocutário. A esse respeito diz Benveniste (2005, p. 286) “A<br />
consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste. Eu não <strong>em</strong>prego eu a<br />
não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu”. Então, no uso da língua, é<br />
impossível não nos dirigirmos ao outro, mesmo que imaginário, o interlocutor está presente<br />
na enunciação, é parte indissociável desse processo.<br />
Assim, considerar a língua como atividade entre sujeitos, supõe considerar também que<br />
esta atividade provoca determinados efeitos. Esses efeitos, gerados pela interação do hom<strong>em</strong><br />
com a língua e deste com o mundo, são incluídos nos chamados aspectos s<strong>em</strong>ânticopragmáticos<br />
da linguag<strong>em</strong>. Esses aspectos estão incluídos na pragmática linguística que “visa<br />
à utilização da linguag<strong>em</strong>, sua apropriação por um enunciador que se dirige a um interlocutor<br />
<strong>em</strong> um contexto determinado. Ela está preocupada com a linguag<strong>em</strong> enquanto ação, atividade<br />
humana e as relações de interlocução aí estabelecidas”. (Brandão, 2001, p.164)<br />
Sob esse prisma, a linguag<strong>em</strong>, ao compor um enunciado, é ação não porque o locutor e<br />
o alocutário faz<strong>em</strong> com que ela seja ação; mas porque a própria linguag<strong>em</strong>, quando usada,<br />
desencadeia efeitos diversos.<br />
Nesse ponto, é necessário mencinoar o fator intencionalidade. Entretanto, na concepção<br />
de língua aqui adotada, a intenção não é psicológica, interior ao indivíduo, mas linguística; é<br />
um fator que pod<strong>em</strong>os recuperar através das marcas linguísticas presentes no enunciado. A<br />
esse respeito Koch (2009, p.22) afirma que a intenção “se deixa representar de uma certa<br />
442
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
forma no enunciado, por meio do qual se estabelece entre os interlocutores um jogo de<br />
representaçãoes, que pode corresponder ou não a uma realidade psicológica ou social”.<br />
Destarte, esses el<strong>em</strong>entos — a intenção, o locutor, o interlocutor e a situação<br />
comunicativa — engendram sentidos que manifestam conclusões, direcionamentos diversos<br />
que constitu<strong>em</strong> o próprio jogo da linguag<strong>em</strong>. Nesse ponto, já estamos falando <strong>em</strong><br />
argumentação, argumentação constituída na e pela linguag<strong>em</strong>.<br />
Nesse viés, a linguag<strong>em</strong> <strong>em</strong> ação é a atividade que locutor e interlocutor realizam no<br />
discurso. Tal atividade institui relações que part<strong>em</strong> do interior da língua para o exterior da<br />
mesma, o que possibilita perceber os tipos de relação entre hom<strong>em</strong>, linguag<strong>em</strong> e mundo.<br />
4) A argumentação na língua<br />
4.1) Sobre argumentação<br />
É pela linguag<strong>em</strong> que nos representamos enquanto seres sociais, por meio dela nos<br />
comunicamos, veiculamos nossas ideias e interagimos. Esta interatividade é constituída de<br />
uma intenção, de um propósito que são expressos de maneira a influenciar o outro. Nesse<br />
sentido, ao colocarmos a língua <strong>em</strong> uso, estamos argumentando.<br />
Falara <strong>em</strong> argumentação, entretanto, é fazer menção à antiguidade clássica e à Retórica.<br />
A Retórica floresceu na Grécia, <strong>em</strong> virtude da solidificação das atividades políticas. Foi<br />
Aristóteles qu<strong>em</strong> a sist<strong>em</strong>atizou. Vista pelo prisma dele, a argumentação corresponde a uma<br />
técnica de organização dos discursos de modo a melhor expressar os pontos de vista do<br />
enunciador.<br />
Tratando ainda da trajetória dos estudos referentes à argumentação, convém mencionar<br />
Perelman e Tyteca (1996) que atualizaram os estudos retóricos. Estes autores ajustaram à<br />
nossa época os conceitos propostos por Aristóteles e suscitaram uma discussão acerca do ato<br />
de convencer e do ato de persuadir que são os dois vértices da argumentação.<br />
Convencer, nessa perspectiva, é falar à razão do outro dirigindo-se a um auditório<br />
universal, ao passo que persuadir é falar à <strong>em</strong>oção do outro, dirigindo-se a um auditório<br />
particular. Um auditório particular é aquele composto por indivíduos de uma determinada<br />
classe, a classe médica, por ex<strong>em</strong>plo. Em contrapartida, um auditório universal é aquele<br />
composto por indivíduos de qualquer classe desde que sejam racionais. Todavia, cabe<br />
observar que uma argumentação, independent<strong>em</strong>ente do auditório ou público ao qual se<br />
destine, t<strong>em</strong> uma intenção e, muitas vezes, é esta intenção que, atrelada aos argumentos, às<br />
marcas linguísticas e a outros fatores, irá culminar <strong>em</strong> convicção ou persuasão.<br />
Independent<strong>em</strong>ente, da época ou da ótica, a organização, o raciocínio, o ato de<br />
convencer ou de persuadir se efetivam no uso da língua. Desse modo, há outra forma de<br />
conceber a argumentação, isto é, se considerarmos a perspectiva linguística, pod<strong>em</strong>os dizer<br />
que a escolha de uma palavra já é el<strong>em</strong>ento constitutivo de argumentatividade. Sobre isso<br />
Ducrot (1989, p. 18), a partir da noção de frase, postula que “A significação de certas frases<br />
contém instruções que determinam a intenção argumentativa a ser atribuída a seus<br />
enunciados: a frase indica como se pode, e como não se pode argumentar a partir de seus<br />
enunciados”.<br />
Na língua há, portanto, pistas que encaminham os enunciados para determinados<br />
objetivos. Tais pistas são designadas marcas linguísticas da argumentação e pod<strong>em</strong> ser<br />
443
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
representadas por vários el<strong>em</strong>entos da língua, tais como: as pressuposições, os implícitos, os<br />
operadores argumentativos, certos modos e t<strong>em</strong>pos verbais e, finalmente, os modalizadores<br />
entre outros.<br />
Cada marca introduz no enunciado <strong>em</strong> que está inserida uma determinada orientação,<br />
uma determinada instrução de sentido. Assim, o locutor se posiciona como eu e o interlocutor<br />
interpreta esse posicionamento. Então, “a linguag<strong>em</strong> passa a ser encarada como forma de<br />
ação, ação sobre o mundo dotada de intencionalidade, veiculadora de ideologia,<br />
caracterizando-se, portanto, pela argumentatividade”. (Koch, 2009:15)<br />
A argumentação é, então, fator basilar <strong>em</strong> uma língua, através da argumentação os<br />
sentidos são apreendidos pelos participantes do ato enunciativo A argumentação é, pois,<br />
inerente à língua. Marcamos nossos enunciados, deixamos neles nossas impressões,<br />
indicamos nosso grau de comprometimento. As escolhas linguísticas que faz<strong>em</strong>os mostram<br />
nossos pontos de vista, institu<strong>em</strong> sentidos. Portanto, à argumentação na língua, resulta do<br />
hom<strong>em</strong> agindo através desta língua e tentando fazer agir por ela. Conceber argumentação no<br />
âmbito linguístico é abordar, portanto, o aspecto s<strong>em</strong>ântico-pragmático da língua.<br />
4.2) As marcas linguísticas da argumentação<br />
Partindo da pr<strong>em</strong>issa de que a argumentação é inerente à língua e estrutura todo<br />
discurso, cumpre saber como isso se dá, como essa argumentação se manifesta na<br />
materialidade linguística. Em conformidade com Koch (2009), explanar<strong>em</strong>os sobre as marcas<br />
linguísticas da argumentação.<br />
Pod<strong>em</strong>os citar, inicialmente, as pressuposições, que pertenc<strong>em</strong> ao grupo das formas<br />
implícitas, ou seja, das informações não declaradas. Estão ligadas à sintaxe da língua, isto é,<br />
são linguisticamente marcadas.<br />
Outra marca linguística da argumentação é o subentendido. Este não está inscrito na<br />
língua, não é possível identificá-lo através da estrutura do enunciado. O subentendido deve<br />
ser decifrado pelo outro, pelo interlocutor.<br />
Entre os recursos linguísticos que materializam a argumentação estão também os<br />
operadores argumentativos, termo cunhado por Ducrot, para designar recursos da língua que<br />
têm a finalidade de indicar a força argumentativa dos enunciados. Estes operadores são: os<br />
conectivos mas (o operador argumentativo por excelência segundo Ducrot), porém, <strong>em</strong>bora,<br />
já que, pois, aliás, até, além do mais.<br />
Outra marca linguística da argumentação, a polifionia, refere-se a um fenômeno através<br />
do qual se faz<strong>em</strong> ouvir, no mesmo enunciado, diversas vozes, que falam de perspectivas, de<br />
pontos de vista diferentes. O locutor pode ou não se identificar com esses pontos de vista,<br />
entretanto a sua ocorrência <strong>em</strong> um enunciado provoca encadeamentos discursivos distintos,<br />
pois, recorrendo a diferentes vozes, o locutor pode se eximir de certa reponsabilidade, ou pode<br />
respaldar o conteúdo do seu enunciado.<br />
Citamos, finalmente, os modalizadores são indicadores do grau de engajamento, de<br />
comprometimento do locutor com o seu enunciado. São a lexicalização, a materialização<br />
linguística das modalidades e pod<strong>em</strong> ser representados por advérbios (provavelmente,<br />
possivelmente, necessariamente, certamente), auxiliares modais ( dever, poder, querer,<br />
precisar), verbos de atitude do campo proposicional (eu creio, eu sei, eu acho, eu duvido),<br />
444
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
modos e t<strong>em</strong>pos verbais (uso do futuro do pretérito com valor de probabilidade, uso do<br />
imperativo, do subjuntivo, predicados cristalizados: é preciso, é necessário, é inaceitável, é<br />
incocebível etc.<br />
Essas são, então, as principais marcas linguísticas da argumentação. Marcas que<br />
comprovam a tese de Ducrot de que a argumentação está inscrita na língua. Interessou-nos<br />
apresentar, sucintamente, os meandros da língua e, especialmente, o aspecto argumentativo<br />
inerente à língua e à condição humana, uma vez que, na produção de nossos textos, ainda que<br />
afirm<strong>em</strong>os o contrário, nosso intuito é um só: levar o outro a aderir aos nossos pontos de<br />
vista.<br />
5) Modalização<br />
Ao produzirmos nossos enunciados, não o faz<strong>em</strong>os de forma neutra, descompromissada.<br />
Os enunciados que produzimos estão impregnados das nossas impressões, dos nossos juízos.<br />
Assim, pod<strong>em</strong>os dizer algo de uma certa forma, de um certo modo. Esse modo indica o nosso<br />
grau de comprometimento com o que diz<strong>em</strong>os, pod<strong>em</strong>os nos comprometer mais ou menos<br />
com o que diz<strong>em</strong>os, mas s<strong>em</strong>pre nos implicamos <strong>em</strong> nossos enunciados. Assim, dá-se a<br />
modalidade, cujo começou a ser feito pelos lógicos, que reconheceram três tipos básicos de<br />
modalidade: a modalidade alética, que se relaciona com a verdade do conteúdo proposicional;<br />
a modalidade epistêmica, referente ao eixo da crença, do conhecimento, que transmite noções<br />
como as de certo, provável, possível; e a modalidade deôntica, que diz respeito ao eixo da<br />
conduta, da normas, e transmite noções como as de necessidade, obrigatoriedade e proibição.<br />
O estudo de tais noções estenderam-se para o âmbito linguístico, todavia as<br />
investigações sobre a modalidade se diferenciam dos estudos supracitados pelo cunho<br />
subjetivo. Assim, segundo Coracini (1991, p.113) a modalidade “é a expressão da<br />
subjetividade de um enunciador que assume com maior ou menor força o que enuncia”.<br />
A modalidade, quando é colocada <strong>em</strong> ação, ganha um aspecto discursivo e é expressa<br />
pela língua. T<strong>em</strong>os então, a modalização, que é a estratégia veiculadora dos posicionamentos<br />
e graus de engajamentos do enunciador. A modalização refere-se, então, ao uso da<br />
modalidade. Segundo Cabral (2010) a modalização diz respeito à aplicação dos conceitos da<br />
modalidade ao ato enunciativo. Ou seja, a modalização é a operacionalização, a lexicalização<br />
dos conceitos da modalidade. De acordo com Koch (2009), a modalidade pode ser expressa<br />
por vários recursos linguísticos, alguns são: auxiliares modais (poder, dever, precisar,<br />
querer), advérbios modalizadores (certamente, provavelmente etc.), predicados cristalizados<br />
(é preciso, é necessário, é provável etc.)<br />
Sobre a modalização deôntica, objeto deste trabalho, cumpre mencionar que ela veicula<br />
no enunciado uma relação de poder. Como está ligada ao eixo da conduta, visa provocar no<br />
outro uma mudança de comportamento. Para que isso ocorra, o locutor deve ser, ou acreditar<br />
que é, alguém com legitimidade para impor determinado tipo de comportamento. Nesse<br />
sentido, apesar de a modalização ser um fator desencadeado pela interação e de podermos<br />
recuperá-la por meio dos recursos linguísticos que a representam, há também um componente<br />
extralinguístico que influencia seu uso e os efeitos que ele provoca.<br />
6) Os gêneros textuais<br />
445
6.1) Conceituação<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
O hom<strong>em</strong> é um ser social e, nessa condição, comunica-se, interage. Tais ações não se<br />
dão através de frase isoladas, mas através de textos que se materializam <strong>em</strong> gêneros. Os<br />
gêneros são tipos de texto, orais ou escritos, que circulam na sociedade, possu<strong>em</strong><br />
características estruturais peculiares e variáveis e visam atingir determinados fins sociais e<br />
comunicativos.<br />
Exist<strong>em</strong> diversas perspectivas que tentam definir gênero, mas não há uma<br />
categorização, uma conceituação definitiva. Cabe, então, tratar os gêneros de acordo com as<br />
reflexões que melhor explicit<strong>em</strong> o que estes representam para e na sociedade.<br />
Segundo Bazerman (2006), os gêneros são fenômenos de reconhecimento psicossocial,<br />
isto é, ao usarmos um gênero o faz<strong>em</strong>os por reconhecermos nele um fato social, por sabermos<br />
que este molda, direciona, organiza nossas atividades. Reconhec<strong>em</strong>os um gênero pelas<br />
particularidades que acenam para sua função sócio-comunicativa, ou seja, reconhec<strong>em</strong>os os<br />
traços que garant<strong>em</strong> o cumprimento de sua finalidade.<br />
Nesse viés, é relevante ressaltar uma noção concernente aos gêneros que é denominada<br />
domínio discursivo. Segundo Marcuschi (2002), essa expressão é usada para indicar uma<br />
instância da atividade humana que propicia a produção e o reconhecimento de determinados<br />
gêneros textuais. Sob esta perspectiva t<strong>em</strong>os o domínio religioso, o domínio jurídico, o<br />
domínio político, o domínio acadêmico, o domínio jornalístico entre outros. Em cada uma<br />
dessas esferas encontramos textos típicos de uma rotina comunicativa.<br />
Não obstante, os gêneros tenham suas regularidades estruturais, não são formas<br />
engessadas, estratificadas. De acordo com Bakthin (1997, p. 279), são tipos relativamente<br />
estáveis, pois pod<strong>em</strong> ter a sua configuração modificada <strong>em</strong> benefício das atividades e das<br />
necessidades comunicativas.<br />
Diante dessas explanações, concordamos com Bazerman (2006) para qu<strong>em</strong><br />
dominar e produzir determinado gênero é agir. Dessa forma, internalizar um gênero e<br />
compreender o seu funcionamento é movimentar-se na sociedade e saber exercer os diversos<br />
papéis que esta propõe.<br />
6.2) O gênero textual artigo de opinião<br />
Os gêneros textuais são produzidos a partir de domínios discursivos, que são esferas da<br />
atividade humana. Mencionamos, anteriormente, os domínios jurídico, político, acadêmico,<br />
jornalístico, etc. Nesse último, são produzidos textos com funções diversas, e por isso<br />
pertencentes a gêneros diferentes. Cit<strong>em</strong>os alguns deles, e suas respectivas funções: notícia,<br />
gênero de cunho informativo; carta de leitor, que traz<strong>em</strong> a opinião do leitor no que se refere a<br />
fatos sociais ou matérias publicadas pelo jornal; classificados, que têm a função básica de<br />
atrair potenciais compradores de imóveis e de carros, ou candidatos a <strong>em</strong>pregos; editorial, que<br />
traz a opinião da instituição que o veicula; artigo de opinião, que visa a veicular uma opinião<br />
particular acerca de t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> voga na sociedade.<br />
446
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Em se tratando do gênero que é objeto de <strong>análise</strong> deste trabalho, pode-se dizer que é um<br />
gênero textual do domínio jornalístico, de cunho opinativo, que discute probl<strong>em</strong>as de natureza<br />
política, religiosa, social, educacional etc., ou seja, probl<strong>em</strong>as relevantes para a sociedade. O<br />
produtor deste gênero é o articulista, profissional que pode ou não pertencer ao quadro<br />
funcional da instituição para a qual escreve. É alguém que, para a sociedade, exerce um papel<br />
considerado relevante na área da discussão, é, portanto, um potencial formador de opinião.<br />
Segundo Rabaça e Barbosa (2001), o artigo é um texto jornalístico interpretativo e<br />
opinativo, mais ou menos extenso que desenvolve um ideia ou comenta um assunto a partir de<br />
determinada fundamentação. Como este gênero circula <strong>em</strong> jornais e revistas e debate t<strong>em</strong>as<br />
conflitantes para a sociedade, era de se esperar que uma grande parcela da população o lesse<br />
assiduamente, porém:<br />
Os leitores do artigo de opinião, de modo geral, são pessoas que<br />
frequent<strong>em</strong>ente le<strong>em</strong> determinado jornal ou revista e estão, de algumas<br />
forma, interessadas na questão polêmica por ele abordada , ou porque as<br />
afeta de maneira direta, ou porque se interessam pela discussão dos assuntos<br />
<strong>em</strong> pauta no meio social. No Brasil, país <strong>em</strong> que a leitura é um hábito de<br />
poucos cidadãos, pode-se afirmar que os leitores de artigos de opinião<br />
constitu<strong>em</strong> uma elite sociocultural. (Silva, 2008, p.70)<br />
Um gênero textual organiza, direciona nossas atividades. Nesse sentido, o artigo de<br />
opinião pelo seu conteúdo t<strong>em</strong>ático, pelo seu enunciador e pelo seu tom opinativo pode<br />
contribuir para algumas ações dos leitores, tais como: refletir sobre determinado fato, alterar<br />
um conceito referente à dada circunstância social, provocar uma tomada de posição no que<br />
concerne a um candidato; entre outras. Trata-se de um gênero que possibilita ao cidadão se<br />
posicionar; isso, na perspectiva sócio-retórica, é um fazer.<br />
Para concluir as reflexões sobre o gênero <strong>em</strong> pauta, cabe mencionar que os textos que<br />
nele se enquadram desse gênero pod<strong>em</strong> influenciar milhares de cidadãos. Assim, vale a pena<br />
estudar e analisar os seus aspectos composicionais, linguísticos e pragmáticos, a fim de que<br />
suas peculiaridades enunciativas sejam percebidas como um dos componentes essenciais para<br />
o seu funcionamento.<br />
7) A modalidade <strong>em</strong> ação<br />
Mostrar<strong>em</strong>os agora alguns efeitos de sentido provocados pela modalização deôntica<br />
encontrada no gênero artigo de opinião, objeto de estudo deste trabalho. A modalização<br />
escolhida é a expressa por predicados cristalizados do tipo é+adjetivo.<br />
O primeiro artigo: “Maus hábitos”, publicado <strong>em</strong> 12 de janeiro de 2009 no Jornal O<br />
Globo, traz uma discussão acerca dos hábitos alimentares do hom<strong>em</strong> na sociedade atual. No<br />
sexto parágrafo (vide anexo 1) lança mão da seguinte declaração introduzida pelo predicado<br />
cristalizado:<br />
(1) É fundamental encontrar um novo equilíbrio alimentar (...)<br />
447
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Esse uso enfatiza a necessidade da adoção de uma nova postura diante do quadro de<br />
obesidade que de desenrola no Brasil e no mundo. Tal uso inscreve-se no eixo da conduta, ou<br />
seja, é uma modalização deôntica Aliado a este predicado está um fator s<strong>em</strong>ântico, observa-se<br />
que a escolha do adjetivo fundamental evidencia a questão da boa saúde, pois fundamental é o<br />
mesmo que essencial e a saúde o é.<br />
O segundo artigo intitulado Por uma ord<strong>em</strong> justa, publicado no Jornal O Dia <strong>em</strong> 09 de<br />
janeiro de 2009, aborda os efeitos da ação “Choque de Ord<strong>em</strong>” realizada pela prefeitura do<br />
Rio de Janeiro. O artigo questiona a ação pelo fato desta não focalizar os verdadeiros<br />
probl<strong>em</strong>as, que são os sociais. Lê-se logo no primeiro parágrafo do artigo:<br />
(2) é preciso ter cuidado ao implantar a chamada “ord<strong>em</strong> urbana”. (...)<br />
Essa expressão modalizadora se inscreve no eixo da conduta, está ligada aos valores<br />
morais. O articulista recomenda à prefeitura equilíbrio <strong>em</strong> suas ações, usando argumentos de<br />
cunho social. Embora esse uso veicule a noção de necessidade, veicula também um tom de<br />
aconselhamento. O articulista aconselha a prefeitura a ponderar suas ações. É possível notar,<br />
portanto, as relações de poder e de saber. Ou seja, o enunciador, como cidadão que também é,<br />
sabe o que a população considera melhor, e como articulista t<strong>em</strong> legitimidade para enunciar<br />
no campo valores morais.<br />
O terceiro artigo analisado, “Nossos erros já nos bastam”, faz uma abordag<strong>em</strong> sobre a<br />
crise econômica que ocorreu no início de 2009. O artigo encontra-se no jornal O Globo do dia<br />
09.04.2009, e apresenta uma peculiaridade: lança sobre o t<strong>em</strong>a crise um olhar humano, sai do<br />
campo econômico para apontar, através de argumentos de cunho social, as verdadeiras causas<br />
da crise. O articulista usa uma expressão modalizadora no seguinte trecho, encontrado já no<br />
primeiro parágrafo:<br />
(3) (...) para que algo falhe é preciso que não atinja o objetivo para o qual foi projetado (...).<br />
O predicado cristalizado expressa a modalização deôntica inscrita no eixo da conduta.<br />
Transmite a noção de necessidade.<br />
No mesmo artigo encontramos as seguintes ocorrências:<br />
(4) “(...) as sociedades capitalistas necessitam de um estado que defenda a vida, a liberdade e<br />
a propriedade dos cidadãos (...) por outro lado, para que floresçam, é preciso reprimir com<br />
vigor a frequente compulsão legiferante e o ativismo intervencionista de qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> o poder<br />
nas mãos e, não raro, a pretensão de querer controlar os homens como qu<strong>em</strong> mexe as peças<br />
inanimadas de um grande tabuleiro de xadrez”.<br />
A expressão modalizadora <strong>em</strong> destaque enfatiza a tese do articulista, que não acredita na<br />
simples intervenção do governo como solução para a crise econômica. Para o articulista, a<br />
compulsão pela criação de leis e a “intervenção” do governo dev<strong>em</strong> ser contidas, a fim de que<br />
as crises econômicas não sejam pretextos para os governos exercer<strong>em</strong> sua prepotência. Pelo<br />
arcabouço do texto, é possível perceber que o enunciador considera a atuação do governo<br />
prejudicial à situação crítica, uma vez que este estaria despreparado.<br />
8) Considerações Finais<br />
Diante das descrições acima realizadas, foi possível verificar que, no tocante à<br />
modalização deôntica, especificamente àquela expressa por predicados cristalizados, observa-<br />
448
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
se que seu uso, <strong>em</strong> um texto, institui sentidos, mostra o ponto de vista do enunciador, mas<br />
também o retira da cena, pois é uma expressão impessoal. Observamos também que o nome<br />
ou a forma nominal do verbo que compõe o predicado cristalizado é fator relevante para a<br />
constituição do sentido, uma vez que o s<strong>em</strong>a de cada palavra abarca uma série de conceitos e<br />
valores.<br />
Interessa, ainda, observar que este tipo de modalização, quando encontrada <strong>em</strong> artigos<br />
de opinião, age como um comando, isto é, como o artigo de opinião é um gênero textual que<br />
t<strong>em</strong> a finalidade de veicular uma opinião particular acerca de assuntos conflitantes para<br />
sociedade, este recurso linguístico funciona como um dispositivo para tentar fazer o leitor<br />
refletir sobre os t<strong>em</strong>as propostos. Na perspectiva pragmática da linguag<strong>em</strong>, é um fazer<br />
cognitivo.<br />
Pretendeu-se, com este trabalho, verificar a ocorrência da modalização supracitada no<br />
gênero artigo de opinião a fim de perceber os efeitos que esta provocava e, principalmente,<br />
que sentido acrescentava ao discurso. As explanações aqui feitas objetivaram pôr mais um<br />
acento nos estudos sobre a modalização e, especificamente, na modalização deôntica, visto<br />
que este campo é ainda passível de muitas discussões.<br />
REFERÊNCIAS<br />
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução feita a partir do<br />
francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira revisão da tradução Marina Appenzellerl. 2.ed. São<br />
Paulo: Martins Fontes, 1997.<br />
BAZERMAN, Charles. Gêneros Textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2006, 3. ed.<br />
BENVENISTE, Émile. Probl<strong>em</strong>as de Lingüística Geral I. 5.ed.Trad. Maria Glória Novak e Maria<br />
Luisa Neri. Campinas, SP: Pontes Editores, 2005.<br />
BRANDÃO, Helena Nagamine Brandão. Pragmática Linguística: Delimitações e Objetivos. In:<br />
Retóricas de Ont<strong>em</strong> e de Hoje. Lineide do Lago Salvador Mosca (org.) 2. ed. São Paulo: Associação<br />
Editorial Humanitas, 2001, p. 161-182.<br />
CABRAL, Ana Lúcia Tinoco. A força das palavras: dizer e argumentar. São Paulo: Contexto, 2010.<br />
CASTILHO, Ataliba T.; MORAES DE CASTILHO, Célia Maria. Advérbios Modalizadores. In:<br />
ILARI, Rodolfo (org.). Gramática do Português Falado. VII. Níveis de Análise Linguística.<br />
Campinas: Editora Unicamp/ Fapesp, 1996. P. 215-260.<br />
DUCROT, Oswald. Estruturalismo e Enunciação. In: Princípios de S<strong>em</strong>ântica Linguística. Trad.<br />
Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 291-317.<br />
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. (Tradução de Eduardo Guimarães)<br />
DUCROT, Oswald. Argumentação e ‘Topoi’ Argumentativos. In: GUIMARÃES, Eduardo (org.).<br />
História e sentido na linguag<strong>em</strong>. Campinas: Pontes, 1989.<br />
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e <strong>Linguag<strong>em</strong></strong>. 12 ed. São Paulo: Cortez, 2009.<br />
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A inter-ação pela linguag<strong>em</strong>.8.ed.São Paulo: Contexto, 2003.<br />
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Os gêneros do discurso. In: –––. Desvendando os segredos do<br />
texto, São Paulo: Cortez, 2002, p. 53-60.<br />
449
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
MARCUSCHI, Luiz Antônio. “Gêneros textuais: definição e funcionalidade”. In: DIONISIO, Angela<br />
e outros (org). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p.19-36.<br />
NEVES, Maria Helena de Moura. ”A modalidade”. In: Ingedore G. V. Koch (org.). Gramática do<br />
Português Falado. vol. VI: desenvolvimentos.2.ed. ver. Campinas: Editora da UNICAMP/FAPESP,<br />
2002, p.171-209.<br />
NEVES, Maria Helena de Moura. Imprimir marcas no enunciado. Ou: A modalização na linguag<strong>em</strong>.<br />
In: Texto e Gramática. São Paulo, Contexto, 2006, p. 151-160.<br />
PERELMAN, C. & TYTECA, L. O. Tratado de Argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1996.<br />
RABAÇA, Carlos Alberto; BARBOSA, Gustavo Guimarães. Dicionário de Comunicação. Rio de<br />
Janeiro: Campus, 2001. 2. ed.<br />
SILVA, Antonio Ribeiro. Gênero Artigo de Opinião na perspectiva sócio-retórica. 2008. 153 f.<br />
Dissertação (mestrado <strong>em</strong> Língua Portuguesa) Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.<br />
Disponível<strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>:<br />
10/01/2009.<br />
ANEXOS<br />
ANEXO A<br />
450
ANEXO B<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
451
ANEXO C<br />
Chico Alencar: Por uma ord<strong>em</strong> justa<br />
Professor de História e deputado federal (PSOL-RJ)<br />
Rio - O l<strong>em</strong>a “Ord<strong>em</strong> e Progresso” t<strong>em</strong> significado “ord<strong>em</strong>” para os<br />
de baixo e “progresso” para os de cima. Por isso, é preciso ter<br />
cuidado ao implantar a chamada “ord<strong>em</strong> urbana”. Toda cidade<br />
precisa de regras coletivas que permitam convivência. Mas entender<br />
que “ord<strong>em</strong>” é só retirar mendigos e camelôs das calçadas é tratar de<br />
maneira superficial probl<strong>em</strong>as que são estruturais. E, de certa forma,<br />
“enxugar gelo”, pois os fatores que produz<strong>em</strong> moradores de rua e<br />
trabalhadores ambulantes – que são pessoas e não coisas! – não<br />
acabarão.<br />
Qu<strong>em</strong> mora na rua não está ali por gosto: chegou a essa degradação<br />
<strong>em</strong> função da falta de oportunidade de estudo e trabalho, por<br />
desajustes familiares ou foi expulso, por algum poder despótico, do<br />
lugar onde vivia. Qu<strong>em</strong> fica de sol a sol vendendo mercadorias não<br />
t<strong>em</strong> entusiasmo especial por este incerto ganha-pão. Preferiria a<br />
tranqüilidade de uma carteira assinada.<br />
Há raízes sociais que provocam essa “desord<strong>em</strong>”. Só um programa<br />
articulado com políticas sociais poderá reduzir, progressivamente, o<br />
drama da população vivendo nas ruas. Casas da acolhida, educação<br />
integral, recuperação dos laços familiares, atendimento continuado<br />
de saúde são fundamentais.<br />
Só o desenvolvimento econômico equilibrado, com investimento <strong>em</strong><br />
cursos profissionalizantes e abertura de postos de trabalho, reduzirá o<br />
comércio ilegal. Sua legalização, <strong>em</strong> mercados populares, s<strong>em</strong><br />
contrabando, alternativos ao monopólio dos shoppings, é o caminho.<br />
Desde 1992 há uma lei, jamais aplicada, que disciplina o comércio<br />
ambulante no Rio.<br />
Por fim, que se ataque a “desord<strong>em</strong>” dos poderosos, que avançam<br />
sobre calçadas, corromp<strong>em</strong> os agentes públicos e consideram que a<br />
cidade é só deles. O Rio é de todos!<br />
Disponível <strong>em</strong>:<br />
http://odia.terra.com.br/opiniao/htm/chico_alencar_por_uma_ord<strong>em</strong>_justa_222575.asp<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
452
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Que Copa é essa? Um breve exame discursivo sobre a imag<strong>em</strong> da África do<br />
Sul construída pela mídia nas vésperas da Copa 2010<br />
Fernando França Mendanha (UFOP) 1<br />
Resumo: O objetivo do presente artigo é mostrar como se dá a construção discursiva sobre a África do Sul, nas<br />
vésperas da Copa do Mundo FIFA 2010, realizada por edições especiais de revistas brasileiras sobre o t<strong>em</strong>a. Por<br />
meio de estratégias de persuasão e argumentação, o trabalho permeará os estudos da <strong>teoria</strong> da Análise do<br />
Discurso <strong>em</strong> uma de suas vertentes, a S<strong>em</strong>iolinguística. Dessa forma, será possível mostrar que, com o contrato<br />
comunicacional firmado, as revistas lançam mão de imaginários sócio-discursivos para apresentar, atrair e<br />
divertir o leitor, s<strong>em</strong> excluir suas d<strong>em</strong>andas comunicacional (de informar seu público) e mercadológica (de<br />
vender um produto).<br />
1) Introdução<br />
Os anos já não são mais os do período quinhentista e das caravelas de além-mar, e sim,<br />
os do tão aguardado século XXI. Mas n<strong>em</strong> por isso o mundo globalizado de hoje segue alheio<br />
a descoberta de “novas terras”, a novas formas de olhar e compreender os vários povos que o<br />
habitam. O exótico, o excêntrico, o diferente ou até mesmo o s<strong>em</strong>elhante, ainda sim, são<br />
capazes de exercer fascínio, aflorar sentimentos e despertar curiosidades sobre as relações<br />
humanas <strong>em</strong> diversos lugares, encontros e eventos, principalmente por meio da linguag<strong>em</strong>.<br />
Em meio a essa diversa aldeia global, o presente artigo <strong>em</strong>barca numa viag<strong>em</strong> com o expresso<br />
da bola mais famoso e conectado com todo o planeta dos últimos oitenta anos, chamado Copa<br />
do Mundo FIFA de Futebol, para uma <strong>análise</strong> de sua mais recente parada: o terceiro mundo.<br />
Após cinco competições seguidas <strong>em</strong> países de primeiro mundo – Itália 1990, Estados<br />
Unidos 1994, França 1998, Japão e Coreia do Sul 2002 e Al<strong>em</strong>anha 2006 –, pela primeira<br />
vez, <strong>em</strong> 2010, a Copa do Mundo chegou ao continente mais pobre do planeta, trazendo<br />
holofotes da mídia de diversos países para a África do Sul. Com isso, o país de Nelson<br />
Mandela ganhou manchetes nos cinco continentes, despertando a curiosidade e o imaginário<br />
das pessoas sobre o futebol e a cultura do país-sede. O Mundial de 2010 provocou uma série<br />
de manifestações e discursos socioculturais, ao colocar <strong>em</strong> questão a relação de poder entre<br />
países ricos e <strong>em</strong> desenvolvimento, numa proximidade como pouco se vê. Em debate, a<br />
predominância – seja ela correta, justificada ou meramente superficial e errônea – ou não de<br />
uma visão eurocêntrica e etnocentrista impressa por órgãos de comunicação de diversas partes<br />
do mundo <strong>em</strong> relação à nação sul-africana, tornando inevitáveis as comparações entre esta e a<br />
edição anterior do evento, na Al<strong>em</strong>anha.<br />
Em um país onde o futebol faz parte da cultura de seu povo, como o Brasil, a imprensa<br />
não foi diferente. Meses antes de a bola rolar nos gramados sul-africanos, muito já se<br />
comentava, questionava e projetava sobre como seria a Copa 2010. E, também, como seria<br />
essa África do Sul, um país às pressas <strong>em</strong> suas obras preparatórias para sediar um evento<br />
dessa grandeza. Nesse contexto, como parte da pesquisa de mestrado desenvolvida por este<br />
pesquisador, o artigo <strong>em</strong> questão selecionou sete revistas impressas de circulação nacional<br />
1<br />
Mestrando orientado pelo professor. Dr. William Augusto Menezes, no Programa de <strong>Pós</strong>-Graduação <strong>em</strong> <strong>Letras</strong>:<br />
Estudos da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> da Universidade Federal de Ouro Preto.<br />
453
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
(uma edição de cada), entre nov<strong>em</strong>bro de 2009 e junho de 2010, que se dedicaram a publicar<br />
reportagens exclusivas sobre o t<strong>em</strong>a apresentado acima. Foram escolhidas edições descritas<br />
por elas próprias como especiais, que atra<strong>em</strong> as atenções deste articulista para o viés esportivo<br />
e também para o político, o econômico e o sociocultural, construídos na cobertura dos<br />
preparativos para o evento. O objetivo aqui será examinar as práticas discursivas de tais<br />
periódicos brasileiros, com base na vertente S<strong>em</strong>iolinguística da <strong>teoria</strong> da Análise do<br />
Discurso, e seus el<strong>em</strong>entos que influenciam na construção do discurso sobre a África do Sul,<br />
enquanto país sede da Copa do Mundo FIFA 2010, às vésperas do evento. Análises a partir de<br />
conceitos como o contrato comunicacional, as restrições e as estratégias na argumentação e na<br />
construção do discurso, discutidos por Patrick Charaudeau, serão fundamentais para este<br />
breve exame sobre as publicações escolhidas.<br />
2) Um breve bate-bola entre globalização, futebol e África do Sul<br />
A escolha da abordag<strong>em</strong> da Copa do Mundo FIFA África do Sul 2010 e todo o contexto<br />
político que a envolve oferece a este pesquisador um estudo relevante e prazeroso sobre a<br />
globalização do esporte e da comunicação. Se há séculos a visão etnocêntrica europeia olhava<br />
para suas ex-colônias com certa perversidade, trabalhar com veículos brasileiros de tamanha<br />
relevância para a comunicação, contribui para pensar os “efeitos” dessa visão <strong>em</strong> relação às<br />
imagens do terceiro mundo nesta rede global hoje (Hobsbawm, 2007). Imagens estas<br />
construídas por revistas que buscam comunicar s<strong>em</strong> se deixar<strong>em</strong> comportar como <strong>em</strong>presas<br />
de mercado, envolvidos <strong>em</strong> uma dupla lógica de restrições e manobras, segundo Charaudeau<br />
(1996). Entre o jogo comunicativo de dever informar com clareza e legibilidade e o de<br />
escolher a melhor estrutura narrativa de acordo com suas intenções – dentre elas, a de fazer<br />
vender o produto-, a mídia se comunica e “encena” por meio de seus textos. Ou seja, “utiliza<br />
componentes do dispositivo de comunicação”, seja a narrativa, a descrição ou a<br />
argumentação, “<strong>em</strong> função dos efeitos de sentido que pretende produzir <strong>em</strong> seu interlocutor”<br />
(Charaudeau, 2009). É assim também que a mídia, de certa forma, mantém um papel<br />
importante na construção, desconstrução e ênfase de determinados saberes, crenças e<br />
representações sociais diss<strong>em</strong>inadas pela sociedade (Machado, 2001). O que não apenas nos<br />
autoriza, mas nos incentiva a conhecer os el<strong>em</strong>entos que cercam a situação comunicacional a<br />
ser estudada: o contexto e os fatores históricos levados <strong>em</strong> conta na produção e recepção de<br />
textos, na produção de significações e na construção discursiva, <strong>em</strong> relação ao futebol e a<br />
África do Sul.<br />
Ao colocarmos <strong>em</strong> <strong>análise</strong> edições especiais de sete revistas, abrang<strong>em</strong>os suas<br />
diferentes (ou s<strong>em</strong>elhantes) formas de narrar também como test<strong>em</strong>unhas das inúmeras<br />
transformações ocorridas por conta do avanço do capitalismo. Para Hobsbawm (2007), Brasil<br />
e África do Sul, países agora considerados não mais coadjuvantes, mas importantes atores<br />
globais, desenvolv<strong>em</strong>-se e cresc<strong>em</strong> economicamente, à medida que passam a incorporar e a<br />
consumir, de forma ainda mais incisiva, diversos produtos deste mundo capitalista<br />
interdependente e reconfigurado. E a Copa do Mundo FIFA de futebol, como campeonato<br />
mais importante do esporte mais popular do planeta, serve-nos como bom e peculiar ex<strong>em</strong>plo<br />
para entender melhor esse fenômeno.<br />
“A arte s<strong>em</strong>pre será produto da imaginação de uma pessoa. O futebol é parte da<br />
comunidade, da economia, da estrutura política. É um microcosmo singular”, explica o norteamericano<br />
Franklin Foer (2005), autor do livro Como o futebol explica o mundo. Tal como a<br />
454
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
religião, o futebol se mostra como um “repositório de tradições” (Foer, 2005) de comunidades<br />
<strong>em</strong> todo o planeta, porque “se presta maravilhosamente para consolidar vínculos de<br />
identidade plenos de carga afetiva” (Sevcenko, 1994). Jogado de forma coletiva, exige<br />
talentos e reflexos individuais específicos, mas que só funcionam b<strong>em</strong> se harmonizados num<br />
conjunto ordenado, o que favorece a identificação e a aproximação entre ídolos e torcedores.<br />
Uma paixão que “irmana estranhos”, fazendo seus adeptos “comungar<strong>em</strong> ideais, objetivos e<br />
sonhos, consolidando gigantescas famílias vestindo as mesmas cores” (Sevcenko, 1994). E é<br />
justamente esta a base para o êxito de sua difusão mundo afora.<br />
De carona, ou melhor, como carro-chefe desse sucesso, a FIFA (Fédération<br />
Internationale de Football Association), entidade máxima do futebol, é qu<strong>em</strong>, desde 1904,<br />
abre caminhos e fronteiras para a popularização e a industrialização do esporte, tendo hoje<br />
208 países e/ou territórios como associados (mais até que a ONU). A Copa do Mundo FIFA,<br />
disputa esportiva realizada a cada quatro anos entre 32 seleções nacionais 2 pela taça de<br />
melhor do planeta, durante 30 dias <strong>em</strong> um país-sede previamente escolhido, há 80 anos figura<br />
como a principal competição organizada pelo órgão 3 . Para o seu presidente, Joseph Blatter, “o<br />
futebol, por sua universalidade, é capaz de construir pontes entre os povos e, da mesma<br />
maneira, transmitir à sociedade valores como a solidariedade, o respeito, a esportividade e o<br />
jogo limpo. E a FIFA sabe perfeitamente que t<strong>em</strong> a obrigação de mostrar estes valores” (Guia<br />
Oficial FIFA, 2010).<br />
Contudo, n<strong>em</strong> só de belos valores e ideologias vive o esporte. “Os estreitos vínculos<br />
entre futebol, política e economia s<strong>em</strong>pre acompanharam os destinos e a realização das Copas<br />
do Mundo”, ressalta o historiador Hilário Franco Júnior (2010). A competição da FIFA já se<br />
consagrou há t<strong>em</strong>pos como produto de consumo da indústria cultural, altamente rentável e<br />
com uma necessidade mercadológica que ultrapassa a concepção de ser uma mera reunião<br />
esportiva. Isso justifica, por ex<strong>em</strong>plo, o fato de América do Sul e Europa se revezar<strong>em</strong> como<br />
sedes desde as primeiras disputas. A popularidade do futebol e o mínimo de infraestrutura<br />
compatível para sua prática <strong>em</strong> tais regiões arrastavam multidões para os estádios e fizeram<br />
da venda de ingressos a principal fonte de renda para os organizadores. Com o t<strong>em</strong>po, as<br />
placas de publicidade de patrocinadores do evento e o licenciamento de produtos começaram<br />
a surgir como alternativas de renda nos estádios 4 . Até a chegada da televisão, que consolidou<br />
a transformação do futebol <strong>em</strong> espetáculo global e a competição <strong>em</strong> um grande apelo<br />
mercadológico.<br />
Com o desenvolvimento tecnológico (...) qu<strong>em</strong> estava <strong>em</strong> casa, no bar ou no<br />
restaurante, passou a acompanhar a partida como se estivesse no estádio.<br />
Enquanto os jogadores corriam e os torcedores vibravam, os patrocinadores<br />
ocuparam todos os espaços disponíveis para propagandear seus produtos: na<br />
camisa, na bola, nas chuteiras, nos calções, no gramado, nas arquibancadas,<br />
na voz dos locutores, na tela. (Pinheiro, 2010)<br />
O futebol é uma prova de que nada escapou da nova configuração mundial das últimas<br />
décadas. Passou a carregar o “conflito essencial da globalização”, com “relações<br />
contraditórias entre o teor cada vez mais comercial do esporte e a fidelidade <strong>em</strong>ocional dos<br />
2<br />
Número de participantes nos moldes atuais, a partir da edição de 1998.<br />
3<br />
Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 10 de mar. 2011, às 20h14.<br />
4<br />
Disponível <strong>em</strong> . Acesso <strong>em</strong>: 13 de mar. 2011, às 15h44.<br />
455
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
torcedores” (Pinheiro, 2010). O avanço tecnológico com a globalização acentuou<br />
disparidades, mas também integrou povos, entrelaçou nações. As corporações privadas,<br />
grande parte patrocinadoras do futebol, passaram não só a impulsionar o desenvolvimento<br />
econômico, mas também a influenciar nas questões políticas, a ponto de levantar<br />
questionamentos pertinentes. Afinal, o que muda com essa nova ord<strong>em</strong>? E quais as chances<br />
reais de um país subdesenvolvido voltar a sediar o Mundial? “O último Mundial <strong>em</strong> um país<br />
do Terceiro Mundo ocorrera no México, <strong>em</strong> 1986, quando uma Copa ainda não custava os<br />
US$ 6 bilhões estimados hoje” (Fontenelle e Sorg, 2010).<br />
Foi com essa enorme responsabilidade que a África do Sul recebeu a missão de sediar o<br />
“maior espetáculo da Terra 5 ”. E foi com um misto de alegria, desconfiança e apreensão que o<br />
mundo interpretou a notícia. Para o país mais rico do continente africano, a aposta na Copa<br />
está <strong>em</strong> se firmar como um importante player no mercado global à medida que o investimento<br />
realizado se transformasse no retorno esperado ao longo dos anos. Afinal, nas últimas<br />
décadas, as grandes competições esportivas passaram a ser vistas também como grandes<br />
oportunidades de recuperação de cidades, difusão da imag<strong>em</strong> do país sede, incr<strong>em</strong>ento do<br />
turismo a médio e longo prazo e atração para novos investimentos. A obrigação de organizar<br />
o torneio num período determinado e curto, de certa forma, impulsiona obras e intervenções<br />
urbanas benéficas para a população, gerando <strong>em</strong>pregos e aumentando a autoestima da<br />
população local (Pinheiro, 2010). População, aliás, majoritariamente negra, segregada e<br />
<strong>em</strong>pobrecida.<br />
A África do Sul do pós-apartheid é um país com todas as carências de uma<br />
nação ainda distante dos níveis de qualidade de vida do Primeiro Mundo.<br />
Abarrotadas favelas concentram boa parte da população nas grandes<br />
cidades, há precariedade nos serviços básicos de saneamento, saúde e<br />
educação, a infraestrutura de transportes, principalmente a urbana, é caótica,<br />
e os índices de contaminação por HIV são alarmantes. Cerca de 18% de<br />
todos os habitantes da África do Sul estão contaminados pelo vírus causador<br />
da Aids. Além disso, o país t<strong>em</strong> um dos maiores índices de homicídio do<br />
mundo. A cada ano, cerca de 68 sul-africanos são assassinados, para cada<br />
grupo de 100 mil habitantes. Por conta disso, a expectativa de vida na África<br />
do Sul é de apenas 51 anos. (Boechat, 2010)<br />
A história da África do Sul ainda reflete <strong>em</strong> sua sociedade atual, após séculos de<br />
disputas coloniais europeias, exploração econômica e segregação racial. A descoberta de terra<br />
fértil e diamantes, além de sua localização geográfica estratégica, provocaram migração <strong>em</strong><br />
massa de europeus de diferentes nacionalidades para lá, que, denominados africâners, se<br />
instalaram a partir do século XV, travaram diversas disputas com os nativos por terra e gado,<br />
até proclamar<strong>em</strong> a União Sul-africana, <strong>em</strong> 1910 (Pinheiro, 2010).<br />
Com o território dominado (por) africâneres e britânicos (...) foram<br />
promulgadas as primeiras leis de segregação racial, como o passaporte que<br />
restringia o ir e vir dos negros e os proibia de comprar terras fora das<br />
reservas tribais. Mas foi só no final da década de 1940, quando o Partido<br />
Nacional ganhou as eleições, que se montou o regime do apartheid, da<br />
separação racial. O casamento inter-racial virou crime. As escolas e bairros<br />
5 Disponível <strong>em</strong> . Acesso <strong>em</strong> 13 de mar. 2011,<br />
às 16h12.<br />
456
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
foram divididos. Os negros perderam o direito de votar, ter propriedades e<br />
de frequentar praias, piscinas, cin<strong>em</strong>as e hospitais destinados aos brancos. O<br />
Partido Nacional criou também os bantustões - dez nações tribais<br />
pretensamente autônomas, instaladas <strong>em</strong> áreas descontínuas<br />
correspondentes a apenas 13% do território nacional. (...) Na África do Sul,<br />
os africâneres foram minoria populacional e classe dominante por quase 350<br />
anos. Não se consideravam um poder exterior porque não tinham para onde<br />
retornar. A integração racial, no seu modo de ver, significava suicídio.<br />
(Pinheiro, 2010)<br />
A visão etnocentrista européia durante os séculos XIX e XX pairava não apenas sobre o<br />
país, como também <strong>em</strong> toda a África, retratando um continente com inúmeras tribos<br />
primitivas vivendo <strong>em</strong> contato com a natureza, s<strong>em</strong> tecnologia avançada, s<strong>em</strong> proteção bélica<br />
e s<strong>em</strong> uma cultura à altura do seu intelecto (Vicentino e Dorigo, 2001). Os europeus, por meio<br />
de sua entidade máxima no período entre as guerras mundiais, a Sociedade das Nações,<br />
antecessora da ONU, classificavam os povos africanos como “incapazes de se dirigir por si<br />
mesmos nas condições particularmente difíceis no mundo moderno”. Daí a tutela recebida<br />
para manter<strong>em</strong> as colônias sob o domínio imperialista até que pudess<strong>em</strong> caminhar sozinhas,<br />
firmando “o princípio de que a relação entre colonizador e colonizado não era um fim <strong>em</strong> si<br />
mesmo, mas um caminho que preparava os povos africanos para sua independência” (Villa,<br />
2010).<br />
Em oposição a esse pensamento, o século XX, contudo, viu surgir um dos maiores<br />
líderes de resistência ao regime do apartheid na África do Sul e que mudaria os rumos do<br />
país: Nelson Mandela. M<strong>em</strong>bro do Congresso Nacional Africano (CNA), partido de oposição<br />
ao governo, ele comandou manifestações sindicais, táticas de desobediência civil, ataques de<br />
luta armada e foi bastante perseguido, até ser preso e condenado à prisão perpétua, nos anos<br />
de 1960. Na cadeia, jamais se entregou. Continuou líder da militância e tornou-se símbolo de<br />
uma resistência e, 27 anos depois da prisão, seria libertado e conduziria profundas mudanças<br />
sociais com o fim do apartheid, na então República da África do Sul, que renasceu nos anos<br />
de 1990.<br />
S<strong>em</strong> a liderança firme e equilibrada de Mandela, o país teria entrado <strong>em</strong><br />
guerra civil. Os brancos ainda tinham o dinheiro e as armas e os negros<br />
queriam vingança. (...) Obteve conquistas importantes, como tirar da<br />
legislação o ranço segregacionista e, com uma nova constituição, consolidar<br />
a d<strong>em</strong>ocracia. Promoveu reformas econômicas essenciais e profissionalizou<br />
o turismo e a mineração. Conseguiu reduzir significativamente as favelas e<br />
ampliar o acesso a saneamento básico e energia elétrica. Ao deixar o posto<br />
após um só mandato, <strong>em</strong> 1999, manteve-se como um s<strong>em</strong>ideus para os<br />
conterrâneos. (Cordeiro, 2010)<br />
A África do Sul de hoje ainda não é uma nação considerada de primeiro mundo, hábil<br />
para integrar e acolher, numa mesma terra, ampla diversidade étnico-cultural de maneira mais<br />
equânime. Mandela e seus sucessores desenvolveram um país que se industrializa, urbaniza e<br />
cria bases até mesmo para sediar grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo<br />
FIFA, mas que ainda sim, não conseguiu “transpor o abismo social entre brancos e negros.<br />
Nesse ponto, brancos acham que perderam d<strong>em</strong>ais e negros que ganharam de menos”<br />
(Pinheiro, 2010). O que v<strong>em</strong> permitindo até, nos últimos t<strong>em</strong>pos, o surgimento também de<br />
uma espécie de “racismo às avessas”. “A desconfiança do ‘outro’ e um senso de posse dos<br />
457
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
recursos naturais, baseados mais na identidade social que na contribuição que seu trabalho<br />
oferece à sociedade”, mostra a brutalidade com que o apartheid aplicava a “hipersegregação<br />
racial a todas as facetas imagináveis da vida” (Fuller, 2010).<br />
3) Na tabelinha entre o contrato e o discurso<br />
Para entrarmos no campo das <strong>análise</strong>s, é preciso entender a situação de comunicação como<br />
uma partida de futebol, munida com suas restrições de espaço, de t<strong>em</strong>po, de relações, de<br />
palavras, na qual se encenam trocas sociais e aquilo que constitui seu valor simbólico<br />
(Charaudeau, 2006). Dessa forma, o presente artigo pisa no gramado da Análise do Discurso<br />
e da S<strong>em</strong>iolinguística trazendo um apanhado de sete revistas brasileiras de circulação<br />
nacional 6 , publicadas entre nov<strong>em</strong>bro de 2009 e junho de 2010, cujo conteúdo foi produzido<br />
de forma especial com foco na preparação da África do Sul para a Copa do Mundo. A partir<br />
daí, far<strong>em</strong>os recortes <strong>em</strong> títulos, chamadas, editoriais e reportagens, extraindo trechos –<br />
destacados <strong>em</strong> itálico, tamanho 12 e de forma centralizada na página – que atend<strong>em</strong> aos<br />
objetivos desta <strong>análise</strong> e aos preceitos teóricos utilizados.<br />
A contextualização histórica sobre a África do Sul e a Copa do Mundo, descrita no<br />
tópico anterior, aparece como um importante suporte na compreensão do corpus. É o que<br />
Charaudeau (1996) chama de el<strong>em</strong>ento situacional, ou seja, faz parte do contexto no qual os<br />
sujeitos comunicantes estão inseridos e seus comportamentos. Juntamente com outro<br />
el<strong>em</strong>ento, a língua e suas características próprias na estruturação do diálogo, eles compõ<strong>em</strong> a<br />
chamada Significação Discursiva, essencial no processo de comunicação dos sujeitos e<br />
produção de discursos.<br />
Já a palavra ‘discurso’ aqui estudada, não deve ser confundida com texto, muito menos<br />
um conjunto de frases desvinculado de um contexto. Giani Silva (2008) explica a dimensão<br />
aplicada deste termo na Análise do Discurso <strong>em</strong> dois sentidos:<br />
O discurso relacionado a ‘encenação’ do ato de linguag<strong>em</strong>, analisada pela<br />
sua inserção no circuito externo, representando o espaço psicossocial do<br />
FAZER, o situacional, e um espaço interno, que representa o espaço de<br />
organização do DIZER. O termo discurso estará reservado para o domínio<br />
do DIZER; <strong>em</strong> segundo lugar, o discurso pode estar referido a um conjunto<br />
de ‘savoirs partagés’ (saberes partilhados), construído por indivíduos de um<br />
grupo social. Esses discursos sociais, ou imaginários sociais, são<br />
test<strong>em</strong>unhos das representações de práticas sociais <strong>em</strong> um determinado<br />
contexto socio-cultural. (Silva, 2008)<br />
Desse modo, as relações discursivas surg<strong>em</strong> da interação entre um sujeito EU<br />
comunicador e um TU destinatário acerca de uma tese inserida num contexto. A referência ao<br />
mundo (situacional) está subordinada à intersubjetividade dos interlocutores (relacional).<br />
Cria-se, então, segundo Charaudeau (1996), uma relação entre os próprios parceiros, entre os<br />
6<br />
O corpus aqui analisado foi retirado das revistas: Veja (edição 2167 – ano 43 – nº 22, editora Abril), Istoé (nº<br />
2117, ano 34, junho 2010, editora Três), Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar – Especial África do Sul (edição 169-B,<br />
nov<strong>em</strong>bro de 2009, editora Abril), Época África do Sul 2010 – Edição Especial (maio de 2010 – editora Globo),<br />
Placar - Especial África do Sul 2010 (parte integrante da revista Placar edição 1342 – editora Abril), Aventuras<br />
na História (edição 83, junho de 2010 – editora Abril), Revista ESPN (nº 8, junho de 2010 – Spring editoraprodutora).<br />
458
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
parceiros e o discurso e entre os parceiros e o mundo. Um jogo entre os espaços internos e<br />
externos da cena que faz<strong>em</strong> com que as intenções de uma realidade mais ampla que a<br />
lingüística, a enunciação, se sobreponha ao enunciado, ao conjunto de frases proferidas.<br />
Assim, a S<strong>em</strong>iolingüística analisa as características psicossociais que penetram na<br />
língua para novas construções discursivas e as características lingüísticas que se entrelaçam<br />
no discurso para construção de novos signos. O social, ao mesmo t<strong>em</strong>po configurado pela<br />
atuação do discurso, ajuda também na construção de outros discursos.<br />
O sujeito que tinha um mundo a ser significado a sua volta passa a ser influenciado por<br />
um outro sujeito na interação, fazendo com que ele se torne um interpretante-destinatário<br />
inserido nesse projeto ou agente de transformação do mesmo e não um sujeito passivo.<br />
Porém, este não é um processo simples no qual o discurso surge de qualquer ato e de<br />
qualquer sujeito. É necessário que ele construa uma atividade linguageira marcada por<br />
regularidades sócio-comunicativas. Há três el<strong>em</strong>entos previamente pensados e estruturados da<br />
melhor maneira possível para se alcançar o sucesso no que Charaudeau (1996) chama de<br />
Contrato Comunicacional: “a noção de contrato pressupõe que os indivíduos pertencentes a<br />
um mesmo corpo de práticas sociais sejam suscetíveis de estar<strong>em</strong> de acordo sobre as<br />
representações dessas práticas sociais”, pois “todo ato de comunicação é interacional e<br />
contratual” (Charaudeau, 1996).<br />
É com o Contrato de Comunicação pré-definido que o sujeito enunciador consegue<br />
definir e articular seu discurso da melhor maneira possível e se posicionar devidamente frente<br />
ao seu público, a fim de alcançar o sucesso no seu ato de comunicação. No caso das revistas<br />
<strong>em</strong> <strong>análise</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, mesmo tendo projetos editoriais diferentes e sendo destinadas a<br />
públicos heterogêneos, todas elas firmaram um Contrato de maneira s<strong>em</strong>elhante com seus<br />
públicos-alvos. A de que o leitor também se interessa pelo evento Copa do Mundo que será<br />
realizado na África. Ou seja, saber sobre o que falar, <strong>em</strong> nome de qu<strong>em</strong> falar, para qu<strong>em</strong> falar<br />
e como falar, é sinal de que o primeiro el<strong>em</strong>ento do contrato, o comunicacional – responsável<br />
por articular os el<strong>em</strong>entos discursivos do ato, está sendo utilizado, como nos ex<strong>em</strong>plos<br />
abaixo.<br />
“COPA Tudo o que você precisa saber para acompanhar os jogos na África<br />
do Sul.” (Istoé)<br />
“Piores que nós?” (Época África do Sul 2010)<br />
“África do Sul: as melhores atrações para curtir no mais novo país do<br />
futebol.” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
“Qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> medo da África?” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
Já a parte situacional do contrato diz respeito às percepções que os parceiros da<br />
comunicação têm uns dos outros, baseado no seu universo de crenças; os saberes, as<br />
representações e as visões de mundo partilhadas pelos sujeitos daquele contexto. Tais<br />
representações serão determinantes na relação entre os parceiros do ato de comunicação. É<br />
por isso que, sabendo que a história da África do Sul ou da Copa do Mundo ou de ambas<br />
interessam a seus leitores, os autores das matérias se apropriam de expressões populares ou<br />
analogias de acordo com conhecimento do seu público-alvo, com el<strong>em</strong>entos do cotidiano.<br />
“A miséria de lá l<strong>em</strong>bra as favelas do Rio ou de Salvador.” (Viag<strong>em</strong> e<br />
Turismo e Placar)<br />
459
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
“Andei por uma espécie de Cohab de Port Elizabeth.” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e<br />
Placar)<br />
“Durante o dia, Durban se ass<strong>em</strong>elha a Salvador, Johannesburgo a São<br />
Paulo, a Cidade do Cabo l<strong>em</strong>bra o Rio pela beleza.” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e<br />
Placar)<br />
“A organização metódica <strong>em</strong> um estilo quase prussiano dos germânicos<br />
dará lugar à improvisação.” (Istoé)<br />
Leitores estes que formam a clientela das revistas. E como elas também são<br />
‘mercadorias’ que precisam ser vendidas como um produto de <strong>em</strong>presas, as editoras, o<br />
aspecto intencional do Contrato Comunicacional é determinante para que o leitor compre o<br />
produto e leia as matérias das revistas. “Qu<strong>em</strong> narra t<strong>em</strong> algum propósito ao narrar, pois<br />
nenhuma narrativa é ingênua”, diz Motta (2005). Neste caso, a intencionalidade do jornalista<br />
está justamente no objetivo proposto pelo ato de comunicação, o que ele visa, e que já começa<br />
a ficar explícito logo no início das matérias, nos títulos e subtítulos.<br />
“Nesta África não t<strong>em</strong> zebra” (Revista ESPN)<br />
“Mandela: o lado polêmico do ex-guerrilheiro que virou pacifista e mudou<br />
o destino da África do Sul” (Aventuras na História)<br />
“O que não se fala de Mandela (Aventuras na História)<br />
“A vitória da África” (Época África do Sul 2010)<br />
Bola na selva (Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
4) O toque de craque na argumentação<br />
Como o contrato é um jogo comunicativo detentor de uma dupla lógica de restrições e<br />
manobras, ele impõe a essas publicações jornalísticas tanto o dever (como mídia impressa) de<br />
informar, acrescentar um conteúdo apurado com clareza e legibilidade, quanto também a<br />
possibilidade de o jornalista escolher e estruturar a sua narrativa da melhor forma como achar<br />
conveniente e de acordo com sua intenção, dispondo-se de estratégias discursivas e utilizando<br />
de idéias socialmente partilhadas de determinado contexto e de suas maneiras peculiares de<br />
contar determinada estória.<br />
Essas constantes manobras de equilíbrio e de ajustamento entre as normas de um dado<br />
discurso e as margens de manobras permitidas pelo mesmo visam buscar os melhores<br />
argumentos para um sujeito convencer o outro sobre determinada tese. É por isso que o<br />
discurso no modo de argumentação da S<strong>em</strong>iolingüística se desenvolve <strong>em</strong> três atividades<br />
cognitivas, a saber: a probl<strong>em</strong>atização consiste no fazer-saber, informar ao destinatário algo<br />
que lhe seja desconhecido e que o faça refletir sobre, como os títulos e subtítulos abaixo;<br />
“A vitória da África – Qualquer que seja o resultado, organizar a Copa do<br />
Mundo pela primeira vez é um triunfo para o mais pobre dos continentes.”<br />
(Época África do Sul 2010)<br />
460
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
“África no centro do mundo – Todas as Copas se parec<strong>em</strong>, mas a primeira<br />
edição do torneio no mais pobre dos continentes promete ser diferente das<br />
outras.” (Época África do Sul 2010)<br />
“Mandela, o ator que ensina.” (Guia Oficial FIFA)<br />
“Que Copa é essa?” (Placar)<br />
“Selva de concreto” (Placar)<br />
“A primeira vez da África – Depois de 80 anos e 18 edições, a Copa do<br />
Mundo chega à África. E a África do Sul, maior economia do continente,<br />
quer mostrar que pode realizar o evento tão b<strong>em</strong> quanto qualquer nação<br />
desenvolvida” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
A elucidação t<strong>em</strong> a sua importância para fazer o outro compreender os fatos expostos,<br />
juntamente com suas possíveis causas e conseqüências, ilustrada nos seguintes ex<strong>em</strong>plos;<br />
“Um país se sente europeu, estuda <strong>em</strong> universidades caras, dirige carros de<br />
marca e gasta dinheiro <strong>em</strong> shoppings. Era só “branco”, mas hoje abriga<br />
também 2 milhões de negros que ascenderam da pobreza às classes média e<br />
alta. Outro país é africano, rural e com poligamia. Os dois se chamam<br />
África do Sul, um país de 49 milhões de habitantes. (...) O próprio<br />
presidente, Jacob Zuma, é assumidamente poligâmico, uma tradição dos<br />
zulus prevista <strong>em</strong> lei. Quando Nelson Mandela prometeu criar uma “nação<br />
arco-íris”após o apartheid, ele se referia a um país com uma das maiores<br />
diversidades culturais e étnicas do planeta. Vista de fora, a África do Sul é<br />
dividida entre brancos e negros. Isso é uma simplificação.” (Viag<strong>em</strong> e<br />
Turismo e Placar)<br />
“O Mundial 2010 será, acima de tudo, complicado. O país-sede é a África<br />
do Sul. Uma nação que ainda não superou o trauma do apartheid, que t<strong>em</strong><br />
um transporte público caótico, que t<strong>em</strong> índices preocupantes. A caravana<br />
do futebol está mal acostumada, v<strong>em</strong> de Mundiais <strong>em</strong> países desenvolvidos<br />
como Al<strong>em</strong>anha, Japão, Coreia do Sul, França, Estados Unidos e Itália.<br />
Cinco Copas e 20 anos de trens rápidos, organização impecável, conforto<br />
para torcedores.” (Placar)<br />
E por último as provas, com a intenção de fazer-crer o sujeito das elucidações<br />
propostas, a fim de julgá-las e tomar uma posição (Menezes 2001).<br />
“Soa como um chavão dizer que esta não será uma Copa como as outras,<br />
mas no caso deste mundial não poderia ser mais verdade. Uma amostra do<br />
que ver<strong>em</strong>os foi dada no ano passado, na Copa das Confederações, quando<br />
a torcida majoritariamente negra ensurdeceu jogadores, jornalistas e<br />
turistas com suas vuvuzelas – nome tão sonoro quanto as cornetas que<br />
designam e que entrou imediatamente para o vocabulário mundial. (Época<br />
África do Sul 2010)<br />
461
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
“Certo, já se sabe que o número de torcedores da própria África nas<br />
arquibancadas dos dez estádios da Copa será pequeno – houve mais<br />
pedidos de ingressos do Canadá, país que n<strong>em</strong> vai disputar o torneio, que<br />
da Nigéria ou da Argélia, estes classificados.” (Época África do Sul 2010)<br />
É com a definição desta construção e do Contrato Comunicacional que a<br />
argumentação é definida. A argumentação na S<strong>em</strong>iolingüística, como o próprio Charaudeau<br />
(1996) reconhece, também visa a ganhar a adesão de um auditório com um enunciado<br />
qualquer. Desde a antiguidade, a argumentação t<strong>em</strong> o seu lugar cativo no discurso, graças a<br />
pensadores como Aristóteles. Para ele, “o produto da argumentação é aquilo que se crê” –<br />
uma racionalidade que corresponde à maioria das motivações humanas no cotidiano, mas que<br />
não poderia nunca se abster do critério da prova (Meyer, 2007). E para convencer e promover<br />
a <strong>em</strong>oção <strong>em</strong> seu auditório, Aristóteles focava o uso de estratégias que faziam parte dos topos,<br />
os saberes partilhados por todos, a fim de cativá-los. Assim a retórica aristotélica era a<br />
faculdade de considerar, <strong>em</strong> cada questão, o que poderia ser próprio a persuadir, seja lançando<br />
mão do ethos (as características e as virtudes do orador, sua credibilidade perante o público),<br />
ilustrada no trecho abaixo;<br />
““Não saia à noite!”. “Jamais ande sozinho!”. Não foram poucos os avisos<br />
que recebi antes de <strong>em</strong>barcar para a África do Sul, durante a Copa das<br />
Confederações. Visitei Johannesburgo, Pretória, Cidade do cabo, Port<br />
Elizabeth e Durban. Andei de carro, táxi, avião e bati um bocado de perna.<br />
Conversei com muita gente. Compreendi a razão de todos os alertas, mas<br />
não senti a insegurança toda que deveria sentir. Talvez por ser brasileiro.”<br />
(Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
do phatos (as paixões do público que pod<strong>em</strong> ser suscitadas pra ganhar sua adesão);<br />
“O clichê de miséria africana não se aplica ao país mais próspero do<br />
continente. Em muitos aspectos, a África do Sul l<strong>em</strong>bra o Brasil.” (Viag<strong>em</strong><br />
e Turismo e Placar)<br />
“O transporte de pontualidade britânica tão admirada pelos al<strong>em</strong>ães será<br />
substituído por um trânsito muito parecido com o de São Paulo nas<br />
vésperas do feriado.” (Istoé)<br />
ou do logos (pensando na melhor estrutura discursiva a ser usada).<br />
“Cerca de 18% de todos os habitantes da África do Sul estão contaminados<br />
pelo vírus causador da Aids. Além disso, o país t<strong>em</strong> um dos maiores índices<br />
de homicídios do mundo. A cada ano, cerca de 68 sul-africanos são<br />
assassinados, para cada grupo de 100 mil habitantes. Por conta disso, a<br />
expectativa de vida na África do Sul é de apenas 51 anos.” (Istoé)<br />
Estratégias estas que, além de fazer-crer o leitor, contribu<strong>em</strong> para a legitimação do<br />
discurso do veículo e para a credibilidade de qu<strong>em</strong> o divulga.<br />
462
5) Saberes, estereótipos e imaginários sócio-discursivos<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Em toda formação social com a qual as pessoas se identificam, há s<strong>em</strong>pre certos<br />
conceitos, saberes, que são compartilhados por todos e que reforçam os laços culturais que os<br />
un<strong>em</strong>, os imaginários sócio-discursivos que passam pela cabeça das pessoas. Ao falar da<br />
Rússia, por ex<strong>em</strong>plo, para muitos v<strong>em</strong> a ideia de um povo frio como o seu clima, branco, e<br />
apaixonado por vodca. Numa descrição de uma jov<strong>em</strong> russa, por ex<strong>em</strong>plo, logo se r<strong>em</strong>ete<br />
uma construção preestruturada, a partir de um saber comum: uma loira, alta, como a tenista<br />
russa Sharapova, e não uma negra apaixonada por café e que saiba sambar, mas que, no<br />
entanto, poderia existir. Em muitos casos, as crenças sobre determinado comportamento ou<br />
modo de a pessoa se comportar torna-se tão peculiar, tão estereotipado, que a Análise do<br />
Discurso chama a atenção para a discussão desse e outros conceitos.<br />
Falar <strong>em</strong> estereótipo “é considerar a pr<strong>em</strong>ência de um dizer anterior inevitável na<br />
elaboração de ‘novos’ dizeres; é uma questão de entendimento prévio que viabilize e garanta<br />
uma compreensão mínima entre sujeitos historicamente instanciados”, segundo Dylia<br />
Lysardo-Dias (2007). Numa dimensão preexistente ao acontecimento discursivo, o estereótipo<br />
funciona como um discurso social amplamente difundido que é renovado, atualizado e<br />
solidificado <strong>em</strong> cada situação de uso. E é constant<strong>em</strong>ente utilizado como uma estratégia<br />
argumentativa capaz de interagir e instaurar universos comuns de referência que<br />
correspond<strong>em</strong> a valores socialmente instituídos e partilhados. Entretanto, o estereótipo pode<br />
transformar-se numa armadilha, ao distanciar uma situação, um fato ou sujeito da “realidade”,<br />
quando sua orig<strong>em</strong> se dá por meio de prejulgamentos, rótulos de um determinado grupo ou<br />
uma crença desprovida de senso crítico que leva à simplificação ou generalização s<strong>em</strong><br />
fundamento. (Lysardo-Dias, 2007)<br />
Essa conotação pejorativa, que r<strong>em</strong>ete muitas vezes a uma “falsa verdade”, a<br />
“preconceitos” e ao “lugar comum”, também é apontada por Charaudeau (2007) como crítica<br />
ao conceito. Em seu lugar, o autor propõe a utilização de um termo mais amplo, cunhado<br />
“imaginários sócio-discursivos”, explicando-o passo a passo. Para ele, “a imaginação é um<br />
modo de apreender o mundo, vindo da mecânica das representações sociais, capaz de<br />
construir o significado dos objetos no mundo, os fenômenos que ocorr<strong>em</strong>, os seres humanos e<br />
seus comportamentos, transformando a realidade <strong>em</strong> significados reais” (tradução nossa). É<br />
resultado de um processo de simbolização do mundo de ord<strong>em</strong> afetivo-racional através da<br />
intersubjetividade das relações humanas, e se depositando na m<strong>em</strong>ória coletiva. Assim, o<br />
imaginário t<strong>em</strong> uma função dupla de criação de valores e de justificativa da ação.<br />
Este imaginário passa a ser descrito também como social à medida <strong>em</strong> que a atividade<br />
de representação simbólica do mundo está <strong>em</strong> um domínio de prática social (artística, política,<br />
jurídica, religiosa, educacional, etc.) determinado para “dar coerência às relações entre a<br />
ord<strong>em</strong> social e de conduta, e para cimentar os laços sociais usados como dispositivos de<br />
controle que são as instituições” (tradução nossa). E, finalmente, os imaginários são descritos<br />
por Charaudeau (2007) como sócio-discursivos por estar<strong>em</strong> enraizados no discurso, ou seja, a<br />
instituição de verdades é feita através da sedimentação de narrativas e argumentações sobre a<br />
descrição e explicação de fenômenos do mundo e do comportamento humano. E tais<br />
construções pod<strong>em</strong> surgir de saberes advindos do pathos (de um saber que o afeta), do ethos<br />
(da auto-imag<strong>em</strong>) ou do logos (do conhecimento como um argumento racional). “Assim, os<br />
imaginários são gerados pelo discurso que circulam nos grupos sociais, organizando-se <strong>em</strong><br />
463
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
sist<strong>em</strong>as de pensamento coerentes e criadores de valores, atuando como uma justificativa para<br />
a ação social e depositado na m<strong>em</strong>ória coletiva” (tradução nossa). É desse entrelaçado<br />
movimento entre língua, discurso e sociedade, passando pelos imaginários sócio-discursivos,<br />
que se chega a construção de identidades de um sujeito, de um povo, de uma nação.<br />
Nas <strong>análise</strong>s deste artigo, percebe-se nos textos ser comum a adoção de alguns<br />
imaginários sócio-discursivos sobre a África do Sul como forma estratégia de captação do<br />
leitor.<br />
“LADUUUUUUUUUUA!* (*Gooooooooool no idioma zulu).” (Veja)<br />
“A população negra adora o esporte de Pelé.” (Veja)<br />
“Assim como os alegres, coloridos e por vezes espalhafatosos torcedores<br />
dos Bafana Bafana, a seleção anfitriã. Em um país que congrega 11 línguas<br />
oficiais, não haverá de faltar uma variedade de costumes, culinária e<br />
estilos.” (Istoé)<br />
“Nesta África não t<strong>em</strong> zebra.” (Revista ESPN)<br />
“A toque de vuvuzela – o som das cornetas esquenta o país para o Mundial,<br />
cujas obras estão atrasadas.” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
“White Power – o dia <strong>em</strong> que Mandela juntou-se aos brancos virou filme”<br />
(Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
“África loira - B<strong>em</strong>-vindo a Orania, uma comunidade de 700 habitantes<br />
descendentes de colonizadores holandeses que chegaram à África do Sul no<br />
século 17, os bôeres. Suas ruas calmas, casinhas com terraço, plantações<br />
de trigo e crianças loirinhas a brincar dão o ar de uma utopia branca <strong>em</strong><br />
pleno continente negro.” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
“Torre de Babel – B<strong>em</strong>-vindo à nação das muitas etnias e dos 11 idiomas”<br />
(Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
“O clichê da miséria africana não se aplica ao país mais próspero do<br />
continente. Em muitos aspectos, a África do Sul l<strong>em</strong>bra o Brasil. A começar<br />
pela desigualdade.” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
“Na Copa, o torcedor europeu vai andar assustado, olhando para os lados.<br />
Está acostumado a Mundiais no primeiro mundo. Dessa vez terá de encarar<br />
o terceiro. (...) Já o torcedor brasileiro não deverá experimentar sensação<br />
parecida. Afinal, miséria, desigualdade e insegurança são velhos<br />
conhecidos nossos.” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
“Fla-Flu africano – Kaiser Chiefs x Orlando Pirates é o maior clássico de<br />
Soweto e de todo o país.” (Viag<strong>em</strong> e Turismo e Placar)<br />
464
6) Conclusões<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
As revistas analisadas são importantes el<strong>em</strong>entos para desconstruir e, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />
enfatizar os saberes e crenças diss<strong>em</strong>inadas pela sociedade, b<strong>em</strong> como a construção de novas<br />
representações sociais, como um país que não apresenta apenas vontade, mas bases sólidas<br />
para evoluir. N<strong>em</strong> rico e n<strong>em</strong> miserável e faminto, como a tradicional l<strong>em</strong>brança que vinha à<br />
mente s<strong>em</strong>pre que se falava no continente mais pobre do mundo, t<strong>em</strong>pos atrás.<br />
Com o contrato firmado pelas revistas, todas almejam vender seus produtos ao públicoalvo,<br />
com a intenção de expor um conteúdo, uma informação relevante e ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />
apresentá-la de maneira atraente e prazerosa, que <strong>em</strong>polgue e divirta o leitor com as<br />
expressões populares e analogias difundidas no imaginário social. Para isso, tais revistas<br />
lançam mão de saberes e representações socialmente partilhadas e estratégias argumentativas,<br />
s<strong>em</strong> deixar de lado o conhecimento e os fatos devidamente apurados e confiáveis, criando<br />
uma maior proximidade com o leitor e reformulando os saberes difundidos sobre o país sede<br />
da Copa.<br />
As conclusões a que chegamos são que as revistas analisadas traz<strong>em</strong> um discurso<br />
similar, <strong>em</strong> sintonia, e tentam passar uma África do Sul b<strong>em</strong> próxima da realidade brasileira,<br />
com todas as suas riquezas e mazelas sociais, probl<strong>em</strong>as de infraestrutura e uma necessidade<br />
urgente de se afirmar para o mundo. Um país ainda inacabado, <strong>em</strong> um contínuo e longo<br />
processo de formação e consolidação de sua cultura. Contudo, uma nação que acordou a<br />
t<strong>em</strong>po para o compromisso assumido de produzir o maior espetáculo da terra <strong>em</strong> seu<br />
território. Um espelho que, por hora, parece refletir a imag<strong>em</strong> de um outro país <strong>em</strong><br />
desenvolvimento a abrigar uma Copa do Mundo, o Brasil, dando seus ex<strong>em</strong>plos e<br />
experiências a entender como um chamamento para este gigante sulamericano que ainda<br />
cochila e que, se não acordar a t<strong>em</strong>po, por enfrentar probl<strong>em</strong>as ainda piores que os da África<br />
do Sul, daqui a quatro anos, será ainda mais decepcionante, na visão das revistas analisadas.<br />
REFERÊNCIAS<br />
BOECHAT, Yan. Uma Copa com outra cara. No Mundial da África do Sul o futebol terá como palco<br />
um país com a sua cara: colorido, barulhento e, por vezes, imprevisível. IstoÉ. São Paulo: editora Três,<br />
09 de jun. 2010. p. 76-79.<br />
CHARAUDEAU, Patrick. Les stéréotypes, c’est bien. Les imaginaires, c’est mieux. In: Boyer H.<br />
(dir.), Stéréotypage, stéréotypes : fonctionn<strong>em</strong>ents ordinaires et mises en scène. Paris: L’Harmattan,<br />
2007. Disponível <strong>em</strong> < http://www.patrick-charaudeau.com/Les-stereotypes-c-est-bien-Les,98.html>.<br />
Acesso <strong>em</strong> 21 de mar. 2011, às 00h39.<br />
CHARAUDEAU, Patrick. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> e discurso: modos de organização. CORRÊA Ângela Maria da<br />
Silva; MACHADO, Ida Lúcia (Org.). 1 ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.<br />
CHARAUDEAU, Patrick. Para uma nova <strong>análise</strong> do discurso. In: CARNEIRO, Agostinho Dias (Org).<br />
O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996. p. 05-43.<br />
CORDEIRO, Tiago. O que não se fala de Nelson Mandela. Aventuras na História, edição 83, junho de<br />
2010. São Paulo: editora Abril, 2010. p. 26-33.<br />
465
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
FONTENELLE, André; SORG, Letícia. Piores que nós? Uma comparação entre o Brasil e a África do<br />
Sul mostra que a Copa de 2014 não será necessariamente melhor que a deste ano. Época África do Sul<br />
2010. São Paulo: editora Globo. Edição Especial, mai. 2010. p.24-27.<br />
FOER, Franklin. Como o futebol explica o mundo – um olhar inesperado sobre a globalização. Trad.<br />
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.<br />
FRANCO JÚNIOR, Hilário. 2006 a Copa imita a vida. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 de mai. 2010.<br />
Caderno Especial: 3 Histórias – Capítulo 3, O mundo, a África e o futebol de 1986 a 2006. p. 1-8.<br />
FULLER, Alexandra. Os filhos de Mandela. National Geographic Brasil. São Paulo: National<br />
Geographic, jun. 2010, ano 11, n o 123. p. 52-81.<br />
GUIA OFICIAL FIFA: Copa do Mundo África do Sul 2010. São Paulo: Duetto Editorial, 2010. ISBN<br />
978-607-7636-12-0.<br />
HOBSBAWM, Eric. Globalização d<strong>em</strong>ocracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das <strong>Letras</strong>, 2007.<br />
viraram uma coisa só, o que a África do Sul ganhou e perdeu com a Copa – e o que o Brasil<br />
LYSARDO-DIAS, Dylia. A construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileira.<br />
In: Stockholm Review of Latin American Studies. Issue n o 2. Nov. 2007. p. 25-35. Disponível <strong>em</strong>:<br />
. Acesso <strong>em</strong><br />
20 de mar. 2011, às 22h53.<br />
MACHADO, Ida Lúcia. S<strong>em</strong>iolingüística; uma <strong>teoria</strong> de Análise do Discurso. In: MARI, Hugo;<br />
CARNEIRO, Agostinho Dias; MACHADO, Ida Lúcia (Org.). Fundamentos e práticas da Análise do<br />
Discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2001. p. 39-61.<br />
MEYER, Michel. A retórica. São Paulo: Ática, 2007.<br />
PINHEIRO, Daniela. A Copa do Cabo ao Rio. Numa época <strong>em</strong> que futebol e televisão pretende fazer<br />
até 2014. In: Revista Piauí. Edição 44, 2010. Disponível <strong>em</strong>:<br />
.<br />
Acesso <strong>em</strong>: 17 de nov. 2010, às 19h07.<br />
SEVCENKO, Nicolau. Futebol, metrópoles e desatinos. In: Revista USP: Dossiê Futebol. Número 22,<br />
p. 30-37, 1994. Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 10 de<br />
mar. 2011, às 22h39.<br />
SILVA, Giani David. A Análise s<strong>em</strong>iolingüística do discurso de informação midiático. In: Revista<br />
Kaleidoscópio. Vol.1 2008. Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 21 de mar. de 2011, às 00h44.<br />
VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História para ensino médio: história geral e do Brasil:<br />
volume único. São Paulo: Scipione, 2001 – (Série Parâmetros).<br />
VILLA, Marco Antônio. 1930 Um torneio abalado pela depressão. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18<br />
de abr. 2010. Caderno Especial: 3 Histórias – Capítulo 1, O mundo, a África e o futebol de 1930 a<br />
1958. p. 1-8.<br />
466
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
UM ESTUDO DE CARTAS DE LEITORES DE JORNAL PARA O<br />
TRABALHO COM ARGUMENTAÇÃO NA ESCOLA<br />
Solange Nascimento da Silva (UERJ) 1<br />
RESUMO: Nos jornais, de modo geral há um espaço reservado para manifestação do público, que envia cartas e<br />
e-mails com opiniões, críticas, reivindicações, elogios etc. sobre t<strong>em</strong>as e fatos do cotidiano. As cartas<br />
selecionadas para esta pesquisa foram retiradas da seção Cartas dos Leitores, do caderno Opinião, do jornal O<br />
Globo, <strong>em</strong> seu formato impresso. Esse tipo de texto configura-se como um gênero de natureza argumentativa.<br />
Neste trabalho, pretende-se expor: a) os fatores que delimitam as cartas de leitores de jornal como um gênero<br />
textual específico de caráter argumentativo; b) algumas possibilidades para o estudo desses textos <strong>em</strong> sala de<br />
aula do ensino médio. Considerando essa abordag<strong>em</strong>, após <strong>análise</strong> de um grupo de cartas, indicamos alguns<br />
el<strong>em</strong>entos próprios do texto argumentativo <strong>em</strong> sua macroestrutura, destacando tese e argumentos, assim como<br />
<strong>em</strong> seu contexto de produção, levando <strong>em</strong> conta os propósitos comunicativos. Por fim, relacionamos a <strong>análise</strong> a<br />
uma aplicabilidade do trabalho com esse tipo de cartas no ensino médio, como estratégia produtiva para leitura e<br />
produção textual. Essa perspectiva pode favorecer a formação de alunos leitores mais reflexivos e produtores de<br />
texto mais eficientes e eficazes. Para isso, as cartas são um bom material, na medida <strong>em</strong> que o estudante pode<br />
interpretar e discutir diferentes pontos de vista sobre t<strong>em</strong>as ligados à sua realidade, assim como formar suas<br />
próprias opiniões diante dela, como um exercício de argumentação e cidadania.<br />
1) Argumentação<br />
Iniciar<strong>em</strong>os este trabalho com algumas observações relativas ao estudo da natureza e da<br />
estrutura do texto argumentativo, destacando alguns conceitos e <strong>teoria</strong>s. A seleção destes foi<br />
condicionada à <strong>análise</strong> do nosso corpus – cartas de leitores de jornal – , procurando não<br />
perder de vista os aspectos que pod<strong>em</strong> funcionar melhor como suporte para o trabalho com<br />
argumentação no ensino médio.<br />
1.1) Intenção comunicativa e argumentação<br />
Uma das definições mais comuns para a argumentação como modalidade textual se<br />
refere à questão da intenção comunicativa. Desse modo, argumentar seria defender um ponto<br />
de vista <strong>em</strong> contraste com outros possíveis, convencer o receptor de que se está com a razão,<br />
persuadi-lo ou influenciá-lo, mediante apresentação de razões, dados, ex<strong>em</strong>plos, organizados<br />
de maneira coerente e consistente.<br />
O conceito básico de argumentação apresentado <strong>em</strong> muitas obras é: argumentar é<br />
convencer ou persuadir alguém sobre algo.<br />
Argumentar é, pois, <strong>em</strong> última <strong>análise</strong>, a arte de, gerenciando informação,<br />
convencer o outro de alguma coisa no plano das idéias e de, gerenciando<br />
1 Orientada pelo professor Helênio Fonseca de Oliveira (UERJ).<br />
467
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
relação, persuadi-lo, no plano das <strong>em</strong>oções, a fazer alguma coisa que nós<br />
desejamos que ele faça (Abreu, 2006, p. 26).<br />
Desse modo, a primeira relação estabelecida para o conceito t<strong>em</strong> como base as noções<br />
de convencer e persuadir. A primeira normalmente é associada à razão; a segunda, à <strong>em</strong>oção e<br />
à ação.<br />
Do ponto de vista histórico, essa distinção (razão versus <strong>em</strong>oção) vai acompanhar a<br />
trajetória dos estudos sobre argumentação, r<strong>em</strong>ontando à Antiguidade clássica:<br />
Os gregos já eram conscientes de que “ter influência sobre outr<strong>em</strong>” não era<br />
apanágio da razão, pois o ser humano é igualmente feito de paixões. É por<br />
isso que, desde aquela época, distinguia-se o que derivava da pura “ratio”,<br />
para a qual devia existir uma técnica d<strong>em</strong>onstrativa suscetível de “dizer a<br />
verdade”, daquilo que derivava da “interação dos espíritos”, para a qual<br />
devia existir uma técnica expressiva suscetível de “comover e captar” o<br />
interesse de um auditório (Charaudeau, 2008, p. 202).<br />
Entretanto, é discutível uma distinção rigorosa entre convencer e persuadir, já que<br />
muitas vezes não é simples separar nitidamente razão e <strong>em</strong>oção. Perelman comenta o<br />
probl<strong>em</strong>a de considerar sob essa perspectiva uma distinção entre convencimento e persuasão<br />
no discurso argumentativo.<br />
Alguns pretenderam opor o discurso que visa convencer ao discurso que<br />
visa persuadir [...]. Mas esta maneira de ver supõe uma psicologia das<br />
faculdades tornadas obsoletas, a qual consideraria que a razão, a vontade e<br />
as <strong>em</strong>oções estão nitidamente separadas no hom<strong>em</strong> (Perelman, 1987, p.<br />
239).<br />
Para Perelman (1987, p. 234-5), o que merece ser destacado no conceito de<br />
argumentação é o caráter de pessoalidade do discurso e a condição dela ser dirigida a<br />
indivíduos (o auditório), dos quais se busca obter a adesão a uma tese, considerando que essa<br />
adesão possa acontecer <strong>em</strong> níveis variados. Nesse sentido, uma argumentação só acontece<br />
numa relação entre sujeitos, <strong>em</strong> que um queira, por meio da linguag<strong>em</strong>, exercer uma ação<br />
sobre o outro.<br />
Além dessas questões, pod<strong>em</strong>os tomar o aspecto da intencionalidade comunicativa no<br />
sentido de atuar sobre o outro de formas diferentes, elaboradas de forma consciente ou não.<br />
Nesse caso, não basta tomar apenas como base para interpretação “o que foi dito”, mas<br />
também “o como foi dito”. Para esse tipo de <strong>análise</strong>, dev<strong>em</strong>-se levar <strong>em</strong> consideração os<br />
sentidos explícitos e implícitos constituintes do texto/discurso.<br />
É fundamental deixar claro aqui também que o conceito de “intenção” não se prende<br />
somente a um caráter psicológico, mas, principalmente, a um caráter linguístico: a intenção<br />
deve ser depreendida por uma interpretação, por meio de marcas e de pistas deixadas no texto.<br />
468
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Uma argumentação pode ser totalmente construída com base de pressupostos. Para<br />
haver entendimento sobre eles, é preciso tomar ciência do contexto de produção e de recepção<br />
do texto, por meio dos el<strong>em</strong>entos linguísticos, como sintaxe e léxico, que levam de alguma<br />
forma aos sentidos pressupostos. Na argumentação, isso pode ser usado como indução ao<br />
leitor, que poderá tomar os dados pressupostos como incontestáveis para as ideias<br />
apresentadas.<br />
Há ainda outros recursos <strong>em</strong>pregados com uma finalidade retórica, destacando<br />
informações ou intenções subentendidas no texto, tais como perguntas retóricas, reiterações,<br />
reticências, aspas, negrito ou itálico, travessões etc.<br />
Relacionando essa questão com o estudo das cartas dos leitores, pod<strong>em</strong>os afirmar que<br />
esse tipo de texto é bastante propício a confirmar isso, já que o texto com intenção de<br />
convencer, persuadir ou influenciar tenderia a trabalhar mais com o recurso dos implícitos, de<br />
forma “consciente” ou não. Isso se refletiria ou seria acarretado pela escolha das palavras.<br />
1.2) Argumentação e dissertação<br />
Muitas obras tradicionais, didáticas ou não, que abordam o tópico argumentação não<br />
estabelec<strong>em</strong> diferença entre argumentação e dissertação; outras, sim. Iniciar<strong>em</strong>os o tratamento<br />
relacionado à distinção entre argumentação e dissertação com a contribuição de Garcia, no<br />
clássico Comunicação <strong>em</strong> prosa moderna (Garcia, 1998, p. 370):<br />
Nossos compêndios e manuais de língua portuguesa não costumam<br />
distinguir a dissertação da argumentação, considerando esta apenas<br />
“momentos” daquela. No entanto, uma e outra têm características próprias.<br />
Se a primeira t<strong>em</strong> como propósito principal expor ou explanar, explicar ou<br />
interpretar idéias, a segunda visa sobretudo a convencer, persuadir ou<br />
influenciar o leitor ou ouvinte.<br />
Para Garcia, na dissertação, apenas externamos ideias sobre um assunto, enquanto na<br />
argumentação, há um objetivo para além disso: formar ou transformar a opinião do outro. No<br />
primeiro caso, não haveria a intenção de combater as ideias do outro. No segundo, pretende-se<br />
mostrar, por justificativas, fatos, dados, ex<strong>em</strong>plos etc., que a razão está com o <strong>em</strong>issor, a fim<br />
de influenciar uma outra opinião. Portanto, essencialmente na argumentação t<strong>em</strong>os polêmica,<br />
na dissertação, não.<br />
Garcia apresenta um ex<strong>em</strong>plo para ilustrar o conceito de dissertação:<br />
Um professor de filosofia pode fazer uma explanação sobre o<br />
existencialismo ou o marxismo com absoluta isenção, dando dessas doutrinas<br />
uma idéia exata, fiel, s<strong>em</strong> tentar convencer seus alunos das verdades ou<br />
falsidades numa ou noutra contidas, s<strong>em</strong> tentar formar-lhes a opinião,<br />
deixando-os, ao contrário, <strong>em</strong> inteira liberdade de se decidir<strong>em</strong> por qualquer<br />
delas (Id<strong>em</strong>, Ibid<strong>em</strong>, grifos nossos).<br />
469
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
A primeira questão que se coloca sobre isso é: será que essa “neutralidade” – no que se<br />
refere a não ter intenções comunicativas de ação sobre um leitor – na dissertação é realmente,<br />
ou completamente, possível? Será que, quando se expõe uma ideia, necessariamente não se<br />
estaria contrapondo <strong>em</strong> certa medida um ponto de vista <strong>em</strong> relação a outros, a partir de<br />
escolhas? Nesse caso, é preciso situar quais termos estamos considerando para o conceito de<br />
argumentação.<br />
É possível considerar a situação de tentativa de neutralidade <strong>em</strong> um determinado<br />
discurso. Talvez seja provavelmente essa a perspectiva do ex<strong>em</strong>plo anterior. Porém, a<br />
neutralidade absoluta não existe, apesar de se achar <strong>em</strong> alguns casos o contrário. Isso quer<br />
dizer que, quando se opta por algo no discurso, se descarta um tanto de outras considerações<br />
possíveis. Pod<strong>em</strong>os nos perguntar: Por que determinadas ideias são descartadas? Elas<br />
estariam erradas? Seriam menos adequadas? Seriam incompletas? Não atenderiam aos<br />
propósitos da situação comunicativa? Essas questões pod<strong>em</strong> estar implícitas <strong>em</strong> qualquer<br />
discurso, gerando muitos sentidos subentendidos e refletindo uma ideologia.<br />
A partir disso, com base <strong>em</strong> Koch (2008, p. 17), o ato de argumentar seria o “ato<br />
lingüístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção<br />
mais ampla do termo”. A simples escolha de determinada palavra já pode revelar isso.<br />
Por isso, concordamos com Koch, quando ela defende o caráter desnecessário da<br />
distinção entre dissertação e argumentação:<br />
A neutralidade é apenas um mito.<br />
[...]<br />
A aceitação desse postulado faz cair por terra a distinção entre o que<br />
tradicionalmente se costuma chamar de dissertação e de argumentação, visto<br />
que a primeira teria de limitar-se, apenas, à exposição de idéias alheias, s<strong>em</strong><br />
nenhum posicionamento pessoal. Ocorre, porém, que a simples seleção das<br />
opiniões a ser<strong>em</strong> reproduzidas já implica, por si mesma, uma opção.<br />
Também nos textos denominados narrativos e descritivos, a<br />
argumentatividade se faz presente <strong>em</strong> maior ou menor grau. (Koch, 2008, p.<br />
17-18) 2<br />
Portanto, essa distinção não parece fundamental neste trabalho, já que essas cartas<br />
expõ<strong>em</strong> ideias e, de uma forma ou de outra, apresentam pontos de vista, adotados como<br />
corretos pelo autor ao <strong>em</strong>itir a mensag<strong>em</strong> ao leitor.<br />
1.3) Argumentação e argumentatividade<br />
Na citação anterior, de Koch, menciona-se o termo “argumentatividade”, como um<br />
el<strong>em</strong>ento que pode apresentar-se, inclusive, <strong>em</strong> outras modalidades que não só a<br />
argumentação.<br />
2 A noção de argumentatividade será tratada na próxima subseção.<br />
470
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Por argumentação entend<strong>em</strong>os uma modalidade de composição textual, com condições e<br />
características próprias, com propósitos comunicacionais específicos. Em relação à<br />
argumentatividade, pod<strong>em</strong>os destacar o caráter pessoal e intencional do <strong>em</strong>issor na escolha de<br />
determinadas formas, construções e palavras, que expõe, <strong>em</strong> diferenciados graus, seu<br />
posicionamento <strong>em</strong> relação ao que é tratado. Como na construção de um texto estamos<br />
s<strong>em</strong>pre fazendo escolhas, a argumentatividade está presente, <strong>em</strong> diferentes níveis, nos textos<br />
de maneira geral, porque é própria dos processos comunicativos.<br />
Quando interagimos através da linguag<strong>em</strong> (...), t<strong>em</strong>os s<strong>em</strong>pre objetivos, fins<br />
a ser<strong>em</strong> atingidos; há relações que desejamos estabelecer, efeitos que<br />
pretend<strong>em</strong>os causar, comportamentos que quer<strong>em</strong>os ver desencadeados, isto<br />
é, pretend<strong>em</strong>os atuar sobre o(s) outro(s) de determinada maneira, obter<br />
dele(s) determinadas reações (...). É por isso que se pode afirmar que o uso<br />
da linguag<strong>em</strong> é essencialmente argumentativo: pretend<strong>em</strong>os orientar os<br />
enunciados que produzimos no sentido de determinadas conclusões (com<br />
exclusão de outras). Em outras palavras, procuramos dotar nossos<br />
enunciados de determinada força argumentativa (Koch, 2001, p. 29).<br />
Os indivíduos estão constant<strong>em</strong>ente avaliando, julgando, criticando, criando e expondo<br />
juízos de valor, de forma explícita ou não. Por meio do discurso, o enunciador expõe<br />
intenções e pontos de vista. Isso pode ser depreendido nos textos através de marcas<br />
linguísticas, que funcionam como “pistas” para os sentidos, e do contexto comunicativo.<br />
Entretanto, supomos que, <strong>em</strong> textos na modalidade de argumentação, a<br />
argumentatividade se destaca <strong>em</strong> maior nível, pela própria natureza da composição. Nas<br />
cartas dos leitores, por ex<strong>em</strong>plo, isso é muito significativo, por ex<strong>em</strong>plo, manifestando-se nas<br />
escolhas lexicais, com uso frequente de sentidos figurados e pejorativos, no uso de ironia, etc.<br />
Portanto, se considerarmos que as escolhas e combinações lexicais e a progressão<br />
textual por articulações entre enunciados visam a uma intencionalidade (caráter<br />
argumentativo), configurando fatores de coesão e de coerência textuais por meio de marcas<br />
linguísticas, chegar<strong>em</strong>os à ideia de que a argumentatividade está inscrita na própria língua, de<br />
acordo com o que propõe a S<strong>em</strong>ântica Argumentativa. 3<br />
Nessa área de estudo, a linguag<strong>em</strong> é uma forma de ação, é uma atividade determinante<br />
para a construção da argumentatividade. Nesse sentido, a própria linguag<strong>em</strong> já é<br />
argumentativa por si mesma. Portanto, a argumentação, desse modo, é atividade estruturante<br />
de qualquer discurso.<br />
1.4) Condições para argumentação<br />
É importante também explicitarmos quais são as condições necessárias para haver<br />
argumentação, e se essas são atendidas de modo satisfatório nas cartas de leitores de jornal, a<br />
3<br />
Em termos básicos, a S<strong>em</strong>ântica Argumentativa se preocupa <strong>em</strong> analisar a macroestrutura textual, associando<br />
os níveis sintático e s<strong>em</strong>ântico, e considerando também a <strong>análise</strong> pragmática interligada à descrição linguística.<br />
471
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
ponto de caracterizá-las como texto argumentativo. Para isso, nos baseamos no estudo de<br />
Charaudeau (2008).<br />
Em primeiro lugar, é importante levar <strong>em</strong> conta duas perspectivas distintas: uma que<br />
considera el<strong>em</strong>entos extratextuais, e outra que considera el<strong>em</strong>entos intratextuais.<br />
De acordo com a primeira perspectiva, para haver argumentação são necessários:<br />
a) Uma proposta polêmica, que provoque questionamento quanto à sua legitimidade.<br />
b) Um argumentador, que, por meio de um raciocínio desenvolvido, busque convencer<br />
ou influenciar alguém, tomando uma posição acerca da proposta.<br />
c) Um sujeito-alvo (ou público-alvo), a qu<strong>em</strong> se queira convencer ou influenciar. Este<br />
pode aceitar ou rejeitar, parcial ou totalmente, a argumentação apresentada.<br />
O caráter argumentativo é fundamentado no estatuto da dúvida, do questionamento. S<strong>em</strong><br />
isso, não há argumentação. O que pode ser provado, ou aquilo sobre o qual se t<strong>em</strong> certeza,<br />
não pod<strong>em</strong> ser argumentado. “Para as <strong>teoria</strong>s dialógicas, o ‘estopim’ da atividade<br />
argumentativa é a dúvida lançada sobre um ponto de vista, que obriga o interlocutor a<br />
justificá-lo” (Charaudeau; Maingueneau, 2004, p. 55).<br />
Nesse sentido, a proposta, sobre a qual se constituirá uma tomada de posição do<br />
argumentador a fim de convencer e/ou persuadir o destinatário, é o el<strong>em</strong>ento primordial para a<br />
existência do texto argumentativo. Essa proposta poderia ser entendida como uma<br />
probl<strong>em</strong>ática, que suscite pelo menos dois lados, posições ou opiniões diferentes.<br />
Assim, de acordo com Charaudeau (2008, p. 206-207), o sujeito argumentante parte <strong>em</strong><br />
busca de uma racionalidade – que tende a um ideal de verdade – e <strong>em</strong> uma busca de uma<br />
influência – que tende a um ideal de persuasão. Nas cartas de leitores, esse ideal de verdade<br />
estará condicionado a representações socioculturais, experiências e conhecimentos, como<br />
normalmente acontec<strong>em</strong> <strong>em</strong> qualquer produção textual, e a influência se constituirá como um<br />
contexto de compartilhar ideias e opiniões com um outro, a fim de que este as aceite e as tome<br />
para si também.<br />
Considerando a segunda perspectiva de condição para argumentação, o texto deve<br />
apresentar:<br />
a) Uma tese, explícita ou implícita.<br />
b) Um ou mais argumentos.<br />
c) Uma conclusão.<br />
A tese 4 é o enunciado (ou enunciados) que apresenta o ponto de vista do sujeito<br />
argumentador sobre a proposta, a probl<strong>em</strong>ática ou o tópico polêmico. Para justificá-la ou<br />
defendê-la, ele precisa apresentar argumentos (razões, justificativas, ex<strong>em</strong>plos, dados etc.),<br />
que conduzirão a uma conclusão.<br />
4 Na próxima subseção, será tratada a distinção entre t<strong>em</strong>a e tese.<br />
472
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Do ponto de vista da <strong>teoria</strong> do conhecimento, a condição de validade<br />
fundamental de uma argumentação é que ela seja expressa por uma<br />
seqüência coordenada “argumento + conclusão”. A conclusão não é uma<br />
reformulação do argumento, pois os dois enunciados são separadamente<br />
distintos e avaliáveis (Charaudeau; Maingueneau, 2004, p. 55).<br />
Sobre outros aspectos, Charaudeau (2008, p. 220-221) trata da questão da “encenação<br />
argumentativa”, <strong>em</strong> que se configuram determinados componentes para configurar uma<br />
“razão persuasiva”, <strong>em</strong> contraposição a uma “razão d<strong>em</strong>onstrativa” (ligada à lógica<br />
argumentativa).<br />
Essa razão persuasiva depende de um sujeito que toma uma posição acerca de certo<br />
questionamento, e de uma situação que reflete uma proposta sobre o mundo (tese) inscrita <strong>em</strong><br />
um quadro de questionamento, configurando assim o “ato de persuasão”. Nesse contexto, o<br />
sujeito fará uso de procedimentos discursivos e de recursos linguísticos para atingir seu<br />
objetivo de persuasão.<br />
O ato de persuasão, segundo Charaudeau (ibid<strong>em</strong>), a partir de uma ou mais propostas,<br />
será composto, portanto, de uma proposição – tomada de posição de um sujeito argumentante,<br />
que pode concordar ou não com a proposta, total ou parcialmente, – e de uma justificativa<br />
dessa posição – ato de persuasão. Assim, o autor definirá o “dispositivo argumentativo”,<br />
composto de: proposta, proposição e persuasão.<br />
O sujeito argumentante também pode mostrar uma posição mais próxima a uma<br />
“neutralidade”, <strong>em</strong> relação a uma não tomada de posição clara, <strong>em</strong> que o <strong>em</strong>issor apenas<br />
apresenta o quadro de questionamento, s<strong>em</strong> expor explicitamente seu ponto de vista, somente<br />
ponderando sobre prós e contras (Charaudeau, 2008, p. 223-224).<br />
Nesse caso, trata-se de “argumentação ponderada”, quando ele não concorda n<strong>em</strong><br />
discorda explicitamente, ele apenas pondera sobre a questão. Isso pode dizer respeito a uma<br />
situação <strong>em</strong> que o <strong>em</strong>issor “confessa” sua “ignorância” sobre o assunto – pelo menos de<br />
forma estratégica – ou uma <strong>em</strong> que o autor deixa a escolha de decisão para o receptor, com<br />
base no que é apresentado (Oliveira, 1995).<br />
Charaudeau (2008) destaca que, além de uma tomada de posição <strong>em</strong> relação a uma<br />
proposta – o que acarretaria a apresentação de uma tese –, o sujeito pode apresentar uma<br />
posição acerca de sua própria forma de argumentação. Dessa forma, o autor pode apresentar<br />
no texto uma linguag<strong>em</strong> que d<strong>em</strong>onstra um engajamento pessoal explícito, com valorização<br />
de aspectos subjetivos, como a ironia, por ex<strong>em</strong>plo, ou o uso de termos conotativos; ou pode<br />
se afastar desse tipo de engajamento, adotando uma postura mais objetiva, com uso de frases<br />
mais impessoais, com argumentos fundamentados teoricamente, como citações de autoridades<br />
no assunto, por ex<strong>em</strong>plo. Esse segundo caso diz respeito à constituição de textos acadêmicocientíficos<br />
ou didáticos, por ex<strong>em</strong>plo; o primeiro se relaciona mais especificamente com o<br />
corpus deste trabalho.<br />
As cartas de leitores de jornal manifestam vários traços linguísticos de subjetividade e<br />
de engajamento pessoal explícito, principalmente no que concerne à escolha do léxico e à<br />
estruturação de enunciados, <strong>em</strong>bora também haja relações implícitas de sentido. Apresentamse<br />
como uma argumentação mais <strong>em</strong>ocional e mais informal, <strong>em</strong> contraste com o formato<br />
473
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
mais “racional” e mais formal que ocorre <strong>em</strong> editoriais ou textos acadêmico-científicos, por<br />
ex<strong>em</strong>plo.<br />
1.5) T<strong>em</strong>a e tese<br />
De acordo com Abreu (2001, p. 32), “um texto argumentativo implica s<strong>em</strong>pre,<br />
inicialmente, um t<strong>em</strong>a e um probl<strong>em</strong>a”. O autor explica que o t<strong>em</strong>a teria correspondência com<br />
o assunto tratado no texto, e o probl<strong>em</strong>a se relaciona com um questionamento, dentre vários<br />
possíveis, a respeito de algum aspecto desse assunto.<br />
Oliveira 5 trata essa questão com outra perspectiva. Para ele, a relação estabelecida no<br />
texto argumentativo, prioritariamente, é probl<strong>em</strong>a/solução, <strong>em</strong> que o primeiro se refere ao<br />
t<strong>em</strong>a, e o segundo, à tese. Desse modo, a probl<strong>em</strong>ática seria um enunciado, explícito ou não,<br />
que traz a polêmica do texto; e a solução seria a tese do argumentador, que apresenta sua<br />
opinião ou proposta de resolução para a questão.<br />
Nas cartas de leitores, também é possível considerar t<strong>em</strong>a o probl<strong>em</strong>a. A tese seria<br />
relacionada ou com a opinião sobre a questão ou com a sugestão de solução para o probl<strong>em</strong>a<br />
apresentada pelo <strong>em</strong>issor do texto.<br />
Com isso, não estamos querendo dizer estritamente que t<strong>em</strong>a e probl<strong>em</strong>a são exatamente<br />
o mesmo, estamos apenas “associando” os dois. O primeiro se relaciona com o assunto<br />
tratado, com abordag<strong>em</strong> específica que configurará o probl<strong>em</strong>a; o segundo é apresentado no<br />
texto como enunciado, explícito ou não, sobre o qual será desenvolvido o quadro de<br />
argumentação. Porém, muitas vezes, não é possível distinguir os dois de forma explícita no<br />
texto.<br />
Oliveira (2000, p. 177) elucida essa questão:<br />
[...] a proposta é [...] uma entidade teórica, não realizada concretamente no<br />
texto, não sendo relevante identificar-lhe a orientação argumentativa, ou<br />
seja, quando implícita, ela se confundiria com o t<strong>em</strong>a do texto, podendo por<br />
isso verbalizar-se na <strong>análise</strong> textual sob a forma de um sintagma nominal<br />
[...]. Um dos sentidos de propos <strong>em</strong> francês é precisamente o de “t<strong>em</strong>a”. À<br />
propos de X significa “a respeito de X”, “sobre o t<strong>em</strong>a X”.<br />
A tese refletirá o caráter polêmico e dialógico da argumentação, ao apresentar um ponto<br />
de vista sobre uma questão (t<strong>em</strong>a/probl<strong>em</strong>a) que suscita necessariamente outros pontos de<br />
vista diferenciados.<br />
Tese é uma assertiva de cuja veracidade o argumentador deseja persuadir<br />
outra pessoa. Para que uma assertiva seja uma tese – e por conseguinte para<br />
que exista argumentação – é preciso que o argumentador a veja como algo<br />
polêmico (Charaudeau, 1992, p. 783 apud Oliveira, 1999).<br />
5<br />
A ideia reportada a Oliveira diz respeito a estudo desenvolvido com turma do Doutorado <strong>em</strong> Língua Portuguesa<br />
na UERJ, na disciplina Descrição do Português Cont<strong>em</strong>porâneo, <strong>em</strong> 2008.<br />
474
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
No desenvolvimento desse “quadro argumentativo”, pod<strong>em</strong> entrar concessões, que<br />
reflet<strong>em</strong> esses pontos de vista, diferenciados da tese do argumentador, mas que são<br />
neutralizadas pelas restrições, que se apresentam como argumentos a favor da tese do<br />
argumentador.<br />
1.6) Argumento<br />
A base para a argumentação é a fundamentação de um ponto de vista por meio de<br />
argumentos. A coerência e a consistência dos argumentos resid<strong>em</strong> essencialmente na<br />
evidência. Para Garcia (1998), essa evidência seria uma certeza a que se chega pelo raciocínio<br />
ou pela apresentação de “provas”. Para o autor, seriam cinco tipos básicos de “provas”: fatos,<br />
ex<strong>em</strong>plos, ilustrações, dados estatísticos e test<strong>em</strong>unho de autoridade.<br />
Nas cartas dos leitores, os fatos são comumente utilizados nos textos como argumentos<br />
para determinadas ideias, até porque muitos desses textos tratam de fatos ou situações<br />
noticiadas no jornal. Eles funcionam como argumentos por conta de sua inquestionabilidade,<br />
como evidência e acontecimento. Porém, a interpretação e a organização desse tipo de<br />
el<strong>em</strong>ento pod<strong>em</strong> ser trabalhadas como estratégias para induzir o leitor à determinada<br />
conclusão.<br />
O argumento é enunciado com vistas a uma conclusão (ou tese), como já explicitado,<br />
que é sua razão de existir, <strong>em</strong> uma relação indissociável, configurando a argumentação, de<br />
acordo com Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 53):<br />
Seja uma seqüência de enunciados {E1, E2}. Essa seqüência é<br />
argumentativa se pod<strong>em</strong>os parafraseá-la por pelo menos um ou vários dos<br />
enunciados seguintes “E1 apóia, sustenta, motiva, justifica... E2”; “E1,<br />
portanto, donde... E2”; “E2, visto que, sendo dado que... “E1”.<br />
Nesse sentido, o argumento apresenta-se na forma de um enunciado que legitima outro,<br />
o qual constitui a conclusão.<br />
No processo de argumentação, determinado argumento pode ser contestado. Nesse caso,<br />
ele próprio precisa ser defendido, adquirindo status de tese ou conclusão e sendo defendido<br />
por subargumentos <strong>em</strong> relação à tese inicial. Essa estrutura pode ser depreendida na forma de<br />
um esqu<strong>em</strong>a de hierarquias de teses no corpo do texto, <strong>em</strong> que um segmento pode funcionar<br />
ao mesmo t<strong>em</strong>po como tese para um outro e como argumento para um terceiro.<br />
Uma noção também utilizada <strong>em</strong> relação à construção do texto argumentativo diz<br />
respeito à ideia de força. Os argumentos seriam, assim, dotados de uma força, sendo mais<br />
fortes e mais fracos. Em vista disso, traçam-se estratégias argumentativas, como finalizar o<br />
texto com o argumento mais forte, com o objetivo de defender a ideia de forma definitiva,<br />
para causar impacto no outro, a fim de convencê-lo mais facilmente. Porém, essa ideia é<br />
imprecisa e relativa, pois esse valor se delimita <strong>em</strong> um contexto, que levará <strong>em</strong> conta muitas<br />
variáveis, de acordo com o auditório e com o objetivo.<br />
475
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Esta [a força dos argumentos] é certamente vinculada, de um lado, à<br />
intensidade de adesão do ouvinte às pr<strong>em</strong>issas, inclusive às ligações<br />
utilizadas, de outro, à relevância dos argumentos no debate <strong>em</strong> curso. Mas a<br />
intensidade de adesão e, também, a relevância, estão à mercê de uma<br />
argumentação que viria combatê-las. Por isso a força de um argumento se<br />
manifesta tanto pela dificuldade que haveria para refutá-lo como por suas<br />
qualidades próprias (Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2005, p. 524).<br />
Relacionada à noção de força, estabelece-se de forma fundamental a noção de ord<strong>em</strong>. A<br />
questão da ord<strong>em</strong> dos argumentos, sob diversos pontos de vista, t<strong>em</strong> preocupado teóricos há<br />
muito t<strong>em</strong>po. Pois, muitas vezes, não é simplesmente o valor de cada argumento por si só que<br />
torna a argumentação eficiente, mas, fundamentalmente, sua disposição no texto, por isso ela<br />
nunca é indiferente.<br />
Pensando que, <strong>em</strong> essência, a ord<strong>em</strong> dos argumentos é pensada <strong>em</strong> vista de um<br />
auditório, é preciso levar <strong>em</strong> conta os aspectos favoráveis a este.<br />
Três pontos de vista, pelo menos, pod<strong>em</strong> ser adotados na escolha da ord<strong>em</strong><br />
persuasiva: o da situação argumentativa, ou seja, da influência que terão,<br />
sobre as possibilidades argumentativas de um orador, as etapas anteriores da<br />
discussão; o do condicionamento do auditório, ou seja, das modificações de<br />
atitude geradas pelo discurso; enfim, o das relações suscitadas, no auditório,<br />
pela apreensão de uma ord<strong>em</strong> no discurso (Id<strong>em</strong>, 2005, p. 556-557).<br />
Determinadas marcas linguísticas e escolhas lexicais vão ajudar a compor essa ord<strong>em</strong> e<br />
as ênfases necessárias, colaborando para a construção da força argumentativa. Esses<br />
el<strong>em</strong>entos colaborariam para “sublinhar certos momentos do desenvolvimento argumentativo<br />
para estabelecer uma hierarquia nos argumentos [...] e, por conseguinte, despertar a atenção<br />
do locutor [...]” (Charaudeau, 2008, p. 246). Citamos alguns ex<strong>em</strong>plos:<br />
* “É preciso ressaltar que...”<br />
* “Um outro ponto merece atenção...”<br />
* “Não poderíamos deixar de destacar...”<br />
* “Reconheçam que esse ponto é surpreendente e que...” (Id<strong>em</strong>, Ibid<strong>em</strong>)<br />
Os argumentos, nesse sentido, comporiam uma escala, com uma gradação, para<br />
composição da orientação argumentativa.<br />
2) Cartas de leitores como gênero textual argumentativo<br />
Nas cartas dos leitores, mesmo que haja um ou outro enunciado descritivo ou uma breve<br />
narração de um fato, de modo geral percebe-se um propósito argumentativo, já que o leitor<br />
que escreve t<strong>em</strong> o intuito de apresentar seu ponto de vista, defendendo-o <strong>em</strong> relação a outros<br />
possíveis.<br />
476
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Um aspecto importante na contextualização desse tipo de produção diz respeito à<br />
identificação dos el<strong>em</strong>entos que caracterizam as cartas de leitores do jornal como um gênero<br />
textual específico, diferente da carta comum. Considerando seu formato geral, alguns aspectos<br />
já a diferenciam da carta propriamente dita, tais como: não há identificação de cidade e data<br />
no alto do texto; o texto pode apresentar ou não um título; não há indicação de destinatário; ao<br />
final, além do nome, vêm a cidade e a data de orig<strong>em</strong>. Além disso, procuramos identificar<br />
outros el<strong>em</strong>entos, como o estatuto dos participantes, o quadro de espaço e t<strong>em</strong>po, o meio, a<br />
t<strong>em</strong>ática e a função, privilegiando os dois últimos.<br />
Algumas considerações são importantes para compor o caráter histórico e social que irá<br />
situar o gênero: o produtor do texto, o receptor, o lugar, a época, a função do texto, o meio.<br />
No caso das cartas, t<strong>em</strong>os a figura do produtor, um leitor que se posiciona <strong>em</strong> relação a algum<br />
t<strong>em</strong>a; o receptor, que pode abarcar todos os leitores do jornal como também uma autoridade<br />
ou personalidade específica; o lugar, no caso o Brasil ou o estado; a época, o momento atual –<br />
normalmente as cartas se reportam a t<strong>em</strong>as noticiados na s<strong>em</strong>ana –; a função, que pode ser<br />
reclamar, denunciar, discordar, apoiar, elogiar, parabenizar etc.; o meio (canal), o jornal<br />
impresso.<br />
Além desses el<strong>em</strong>entos, marcas linguísticas também dev<strong>em</strong> ser consideradas na <strong>análise</strong><br />
de um gênero, até porque essas marcas (organização dos enunciados, estruturas sintáticas,<br />
léxico etc.) são indissociáveis de uma caracterização ligada ao gênero, e também à função do<br />
texto e ao tipo de discurso.<br />
Nesse gênero fica clara a relação entre produtor e receptor do texto. Há determinação de<br />
qu<strong>em</strong> fala (com o nome divulgado ao final da carta, como é comum mesmo já no gênero<br />
carta) e a qu<strong>em</strong> se fala (que pod<strong>em</strong> ser os leitores de maneira geral ou a pessoa envolvida no<br />
fato ou no t<strong>em</strong>a comentado). Os “direitos e deveres” dos interlocutores correspond<strong>em</strong>,<br />
juntamente com determinados “saberes”, a papéis: o do r<strong>em</strong>etente, que é o de participar da<br />
discussão, apresentando um ponto de vista, contribuindo para a reflexão a respeito de algo; e<br />
o do leitor, que também é o de participar da discussão, mas se informando, se conscientizando<br />
sobre esse algo. “Falar de papel é insistir no fato de que cada gênero de discurso implica os<br />
parceiros sob a ótica de uma condição determinada e não de todas as suas determinações<br />
possíveis” (Maingueneau, 2004, p. 70).<br />
Isso também t<strong>em</strong> relação direta com o atendimento de certas expectativas<br />
comunicacionais. Assim, por ex<strong>em</strong>plo, não se espera que, no espaço das cartas no jornal, o<br />
leitor dê uma receita ou faça uma descrição detalhada do fato discutido ou ensine algo;<br />
também não se espera que se comente um fato particular da vida do leitor ou de um fato<br />
ocorrido há dez anos; não é muito comum a discussão de t<strong>em</strong>as que não sejam ligados ao<br />
nosso cotidiano político, econômico ou social. Essas expectativas colaboram para facilitar a<br />
interpretação dos textos.<br />
3) As cartas de leitores <strong>em</strong> sala de aula do Ensino Médio<br />
Estudar e produzir textos argumentativos com base <strong>em</strong> diferentes gêneros textuais é<br />
fundamental para que o estudante tenha condições de entrar <strong>em</strong> contato com formas<br />
diferenciadas de defender um ponto de vista e entender seu mundo de maneira mais reflexiva,<br />
como também de se posicionar diante de sua realidade como indivíduo social, como cidadão.<br />
477
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Uma das formas significativas <strong>em</strong> que se pode verificar um posicionamento linguístico<br />
do cidadão frente ao mundo é no espaço do jornal dedicado à publicação de cartas dos<br />
leitores, onde eles pod<strong>em</strong> se manifestar textualmente sobre e para a sociedade <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>.<br />
Fazer com que os alunos analis<strong>em</strong> esse tipo de texto propicia que eles tom<strong>em</strong> conhecimento<br />
de uma oportunidade de cidadania e d<strong>em</strong>ocracia, com a possibilidade de atuação direta sobre<br />
a realidade pela linguag<strong>em</strong>.<br />
É possível sugerir duas atividades básicas para o trabalho com esse material <strong>em</strong> sala de<br />
aula. Uma atividade prática <strong>em</strong> sala de aula no ensino médio seria a <strong>análise</strong> do texto de forma<br />
geral, sua função, sua organização e os propósitos do autor, com destaque para a delimitação<br />
social do gênero, identificando seus el<strong>em</strong>entos constituintes. Assim, após o momento de<br />
tomar ciência do fato e/ou da ideia discutidos nas cartas dos leitores, ou seja, de se informar<br />
sobre o t<strong>em</strong>a debatido, o aluno faria uma leitura orientada dos textos com o professor,<br />
participando de discussões sobre os pontos de vista apresentados e sobre as formas<br />
diferenciadas de apresentação do mesmo.<br />
Após isso, a turma poderia enumerar os el<strong>em</strong>entos colaborativos para o sentido dos<br />
textos: o papel dos interlocutores na situação comunicativa, a função do texto, o quadro de<br />
espaço e t<strong>em</strong>po delimitado, o meio de divulgação. O objetivo, com isso, seria o aluno<br />
desenvolver a capacidade leitora, a partir de uma perspectiva do conceito do gênero,<br />
ampliando, assim, as possibilidades de interpretação textual com atenção à construção do<br />
espírito crítico.<br />
Com isso, ele se torna capaz de discutir sobre os diversos papéis na sociedade e a<br />
construção de si próprio como cidadão, capaz de opinar, questionar, argumentar etc., atuando<br />
efetivamente <strong>em</strong> seu mundo, tendo a linguag<strong>em</strong> como uma poderosa ferramenta.<br />
Outra atividade que poderia ser desenvolvida dá ênfase à habilidade de produção<br />
textual, a partir da discussão prévia, da formação de opiniões e da organização de ideias,<br />
priorizando a fase de planejamento do texto anterior à escrita propriamente dita.<br />
Após tomar conhecimento do fato ou da notícia, os alunos poderiam ler e discutir as<br />
cartas de leitores sobre um assunto específico <strong>em</strong> comum, grifando os trechos que traduziriam<br />
o t<strong>em</strong>a, a tese e os enunciados relativos à fundamentação do ponto de vista do autor do texto,<br />
não deixando de analisar também a forma como isso é apresentado, assim como a escolha das<br />
palavras utilizadas. Um exercício possível também seria a substituição de algumas palavras<br />
por sinônimos e a discussão sobre os efeitos de sentido gerados, considerando a questão da<br />
adequação vocabular <strong>em</strong> contextos discursivos diversos.<br />
Após isso, deveria ser feita uma pesquisa sobre o t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> outros jornais ou na internet,<br />
para que os alunos possam formar sua opinião com base <strong>em</strong> diferentes abordagens. Por fim,<br />
após ter acesso a fontes de informação variadas e diversos pontos de vista, eles teriam<br />
condições de produzir cartas posicionando-se acerca do t<strong>em</strong>a, que poderiam, inclusive, ser<br />
enviadas ao jornal.<br />
O objetivo desse exercício seria praticar a produção de texto argumentativo de maneira<br />
mais fundamentada, consciente e crítica, menos automatizada, conforme modelos de redação<br />
tradicionais trabalhados na escola, <strong>em</strong> muitos casos esvaziados de sentido. Com isso, não se<br />
quer dizer que é improdutivo trabalhar puramente com os modos de organização textual<br />
(descrição, narração e dissertação). Pelo contrário, um trabalho não deve substituir o outro.<br />
478
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: <strong>teoria</strong>, <strong>análise</strong> e <strong>aplicações</strong> (6) 2011<br />
Como defende Oliveira (2007), dev<strong>em</strong> ser analisados e produzidos <strong>em</strong> sala de aula,<br />
conjuntamente, gêneros e modos de organização textual, de forma equilibrada e crítica.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ABREU, Antônio Suárez. Curso de redação. 11. ed. São Paulo: Ática, 2001.<br />
______. A arte de argumentar: gerenciando razão e <strong>em</strong>oção. 9. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2006.<br />
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de <strong>análise</strong> do discurso. São<br />
Paulo: Contexto, 2004.<br />
CHARAUDEAU, Patrick. <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> e discurso: modos de organização. Coord. da equipe de<br />
tradução: Angela M. S. Corrêa e Ida Lúcia Machado. São Paulo: Contexto, 2008.<br />
GARCIA, Othon Moacir. Comunicação <strong>em</strong> prosa moderna: aprenda a escrever, aprendendo a pensar.<br />
17. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.<br />
KOCH, Ingedore G. Villaça. A inter-ação pela linguag<strong>em</strong>. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2001.<br />
______. Argumentação e linguag<strong>em</strong>. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2008.<br />
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Tradução de Cecília P. de Souza-e-<br />
Silva; Décio Rocha. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2004.<br />
OLIVEIRA, Helênio Fonseca. “Prós” e “contras” ou a argumentação ponderada. Congresso da<br />
Associação dos Estudos da <strong>Linguag<strong>em</strong></strong> do Rio de Janeiro (ASSEL/RIO). 3º, 1994. Anais..., Rio de<br />
Janeiro, ASSEL/RIO, 1995.<br />
______. Categorias do modo argumentativo de organização do discurso. In: GÄRTNER, Eberhard et.<br />
al. (Eds.). Estudos de linguística textual do português. Frankfurt: TFM, 2000.<br />
______. Conjunções e argumentação <strong>em</strong> português. Rio de Janeiro, 1999. (Trabalho utilizado como<br />
material didático <strong>em</strong> um minicurso ministrado na UERJ <strong>em</strong> 2001.)<br />
______. Gêneros textuais e conceitos afins: <strong>teoria</strong>. In: VALENTE, A. (Org.). Língua portuguesa e<br />
identidade: marcas culturais. Rio de Janeiro: Caetés, 2007.<br />
PERELMAN, Chaïm. Argumentação. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da<br />
Moeda, 1987. v. 11.<br />
______; OLBRECHTS-TYTECA. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria<br />
Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />
479
CRÉDITOS<br />
Título original:<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong>: Teoria, Análise e Aplicações (6)<br />
Organizadoras:<br />
Sandra Bernardo (UERJ)<br />
Marina R.A. Augusto (UERJ)<br />
Zinda Vasconcellos (UERJ)<br />
Assistentes de Editoração<br />
Sílvia Adélia Guimarães<br />
Juliana Santos<br />
Formatação<br />
Nathália Gouvêa<br />
Design e impl<strong>em</strong>entação computacional<br />
Elir Ferrari<br />
Universidade do Estado do Rio de<br />
Janeiro<br />
http://www.uerj.br<br />
Instituto de <strong>Letras</strong><br />
http://www.institutodeletras.uerj.br<br />
Programa de <strong>Pós</strong>-Graduação Stricto<br />
Sensu <strong>em</strong> <strong>Letras</strong> - Estudos da<br />
<strong>Linguag<strong>em</strong></strong><br />
http://www.pgletras.uerj.br/index.htm<br />
VI Jornadas de Estudos Linguísticos<br />
http://www.pgletras.uerj.br/linguistica/jel