A lenda de Francesca Woodman

A lenda de Francesca Woodman

Em 19 de janeiro de 1981, uma jovem fotógrafa atirou-se da janela de um edifício do Lower East Side de Nova York. O corpo atingiu o concreto com tanta violência que deixou o seu rosto completamente desfigurado. O evento marcou o fim da curta vida (22 anos) de Francesca Woodman e o início de sua lenda.

Francesca começou a fotografar aos 13 anos quando seu pai, George Woodman, lhe deu de presente uma Yashica. Arte era um assunto levado muito a sério na casa dos Woodmans, o pai era ceramista, pintor e fotógrafo; a mãe, Betty Woodman, ceramista e escultora. Esse ambiente repleto de incentivos se mostrou perfeito para que a jovem pudesse, ao longo de 9 anos, “dizer o indizível” através de suas fotografias.

Em 19 de janeiro de 1981, uma jovem fotógrafa atirou-se da janela de um edifício do Lower East Side de Nova York. O corpo atingiu o concreto com tanta violência que deixou o seu rosto completamente desfigurado. O evento marcou o fim da curta vida (22 anos) de Francesca Woodman e o início de sua lenda. Francesca começou a fotografar aos 13 anos quando seu pai, George Woodman, lhe deu de presente uma Yashica. Arte era um assunto levado muito a sério na casa dos Woodmans, o pai era ceramista, pintor e fotógrafo; a mãe, Betty Woodman, ceramista e escultora.
© George and Betty Woodman

Assim, em menos de uma década, a prolífica artista deixou uma obra que conta com mais de 800 fotos impressas e alguns vídeos. Nesses registros, Francesca aparece ora nua — total ou parcialmente — ora trajando um vestido que tem qualquer coisa de barroco. Um olhar atento sobre as fotos revela que sua nudez não era gratuita. Utilizando-se engenhosamente de espelhos e de jogos de luz, Woodman fundia o próprio corpo à realidade circundante, transformando-o numa figura espectral — e eu quase dizia “feérica” — que aparece e desaparece, que está, mas não está completamente. Dizendo de outro modo, a impressão que as fotografias deixam é que a artista não aderiu completamente à sua existência.

Vistas em sequência, algumas fotos deixam a impressão de constituírem vários “capítulos” de uma história que a artista está tentando nos contar. Uma história tão íntima que torna tortuosa qualquer tentativa de interpretação. Assim, em todos os registros imagéticos — mesmo nos mais lúdicos, como na foto em que Francesca aparece segurando as patas de um gato, dando a impressão de estarem dançando — jaz uma aura enigmática.

Vilém Flusser (1920-1991) nos ensina que a fotografia não é um mero espelhamento ou um decalque da realidade, mas sim o resultado de um gesto consciente de “dar significado” (“sinngebung” — expressão husserliana) ao mundo. Dessa forma, é como se Woodman nos convidasse, em cada fotografia monocromática, a adentrar no seu universo particular, onde o seu corpo nu, uma cadeira, uma cortina e uma parede ganham uma nova camada de significação. E o resultado é de uma beleza assustadora.

Embora Francesca Woodman tenha tirado fotos de outras pessoas e de quartos vazios, o seu grande tema, o seu objeto artístico por excelência, tal como um Henry Miller, sempre foi ela mesma. Dizendo de outro modo, Francesca era a sua própria musa, revelando suas virtudes, seus sonhos e seu inferno interior em cada “frame”. Toda obra de arte é, de certa forma, autobiográfica, o sujeito coloca na boca de um personagem diálogos que teve consigo mesmo durante o banho; “A Noite Estrelada” (1889) diz mais sobre Van Gogh do que sobre a vista do céu pela janela do quarto do hospício de Saint-Rémy-de-Provence. A diferença, no caso de Woodman, é que ela dispensa, na maior parte das vezes, um tema intermediário. Sua corajosa obra consiste nela mesma em relação ao mundo. É como se o corpo de Francesca Woodman dissesse por ela o que só ela é capaz de dizer, havendo uma identidade completa entre “a criadora” e “a criação”.

© George and Betty Woodman

Francesca compilou a maioria das suas fotos em oito cadernos confeccionados de forma artesanal. No fim dos anos 70, enquanto estudava na Rhode Island School of Design, passou um ano em Roma (especula-se que da cidade imperial vieram as ressonâncias clássicas em sua obra, fruto das frequentes visitas à “Librería Maldoror”). Nessa época, comprou vários cadernos escolares usados de folhas amarelas nas feiras locais, com o objetivo de colar suas fotografias. Assim, de forma bastante poética, em algumas páginas de “Portraits, Friends, Equations” (1977-78) vemos autorretratos de Woodman — descrevendo a relação entre corpo e espaço — dividindo a folha com equações geométricas ou poemas escritos por algum secundarista italiano. Os oito cadernos foram compilados em um único volume e publicados recentemente com título de “Francesca Woodman: The Artist’s Books”.

Praticamente uma desconhecida durante a sua curta existência – tendo, inclusive, sido rejeitado o seu pedido de bolsa ao “Fundo Nacional Para as Artes” (NEA) —, Woodman ganhou fama colossal nos anos após o seu suicídio em 1981. Seus vídeos foram exibidos no Museu de Arte de Helsinki, na “Tate Modern”, de Londres, e no Museu de Arte Moderna de São Francisco. Suas fotografias foram exibidas em inúmeros museus de arte pelo mundo, além de serem publicadas em livros, e dois documentários foram produzidos: “The Fancy” (2000), de Elisabeth Subrin, e o aclamado “The Woodmans” (2010), de Scott Willis.

Erra quem pensar que o seu sucesso póstumo decorreu apenas da curiosidade pública inerente ao suicídio de uma bela e jovem artista. Se assim fosse, sua obra não seria até hoje objeto de estudo acadêmicos como o de Claire Raymons em “Francesca Woodman’s Dark Gaze” (2016), nem teria reconhecida influência no trabalho de outros fotógrafos como Nan Goldin, Cindy Sherman e Sophie Calle.

Francesca Woodman
© George and Betty Woodman

De qualquer modo, o suicídio precoce de Francesca Woodman conferiu à sua vida, pelo menos no imaginário popular, uma estrutura quase mítica, como um Aquiles que é abençoado com um grande poder, mas que está fadado a morrer cedo. O seu talento é fatal. É o que traz sentido para a sua existência ao mesmo tempo em que a consome. Vendo por outro ângulo, talvez esse seja o risco de ser a sua própria musa. Tudo vai bem enquanto a musa vem posar para as fotos tiradas por ela mesma, mas e quando a musa se cansa de posar? E quando a musa não está num dia bom? Não é só uma artista sem inspiração. É, então, uma artista que se vê castrada do seu objeto artístico. E isso é pior do que o inferno.

No documentário “The Woodmans”, seu pai deu a entender que os motivos do suicídio foram dois: a recusa da bolsa de estudos e o término de um relacionamento. Francesca teria tentado se matar cinco meses antes de “conseguir”. Seja como for, especular sobre o suicídio de Francesca Woodman é tão infrutífero quanto tentar descobrir o real significado de sua obra. É um terreno ao qual, infelizmente, apenas a jovem artista tinha acesso. Ela pode não estar mais entre nós, mas a sua obra — testemunho máximo de sua bela existência — continuará despertando o interesse das gerações.