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Rosana Araujo Viveiros A DEIFICAÇÃO DO SER HUMANO À LUZ DO PENSAMENTO DE PAUL EVDOKIMOV: APORTE PARA UMA ANTROPOLOGIA CRISTÃ Dissertação de Mestrado em Teologia Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori Apoio CAPES BELO HORIZONTE FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2013 Rosana Araujo Viveiros A DEIFICAÇÃO DO SER HUMANO À LUZ DO PENSAMENTO DE PAUL EVDOKIMOV: APORTE PARA UMA ANTROPOLOGIA CRISTÃ Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisição parcial à obtenção do título de Mestre em Teologia. Área de concentração: Teologia sistemática Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori Apoio CAPES BELO HORIZONTE FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2013 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia V857d Viveiros, Rosana Araujo A deificação do ser humano à luz do pensamento de Paul Evdokimov: aporte para uma antropologia cristã / Rosana Araujo Viveiros. - Belo Horizonte, 2013. 149 f. Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz de Mori Dissertação (Mestrado) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Departamento de Teologia. 1. Ser humano (Teologia). 2. Humanização. 3. Trindade. 4. Theōsis. 4. Evdokimov, Paul. I. De Mori, Geraldo Luiz. II. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Departamento de Teologia. III. Título CDU 233 Aos que creem em Jesus Cristo, sobretudo os pobres, que se deixam guiar pelo Espírito para viver e acolher o amor do Pai. E, aos que ainda não creem em Jesus Cristo, mas que também são destinatários da filantropia divina, a fim de que acolham a moção do Espírito em suas vidas. Ao Deus uno e trino que nos cria, recria e deifica. Aos meus pais: Antônio e Luíza pelo testemunho de amor e de fé. Aos meus irmãos, cunhados e sobrinhos pelo exemplo de fraternidade e determinação. À madre Neuza Cota da Silva, Superiora Geral da Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade e a todas as Irmãs pela confiança, apoio e incentivo para que este trabalho pudesse ser realizado e, sobretudo, pelo exemplo de cada irmã no viver o auxílio e a piedade a serviço dos mortos-vivos, os crucificados de nossa história, à espera da ressurreição. A meu orientador, o professor Dr. Geraldo Luiz De Mori, pelo incentivo e confiança. Aos professores que muito me ajudaram na busca do material bibliográfico: Dr. Nédio Pertille, o padre ortodoxo Alexis Peña-Alfaro e o Dr. Manuel Hurtado. Esta colaboração foi imprescindível para o bom andamento da pesquisa. Ao professor Paulo!Augusto da Silva pelas aulas de francês e apoio incondicional durante a realização da pesquisa. Foi de fato uma experiência do “sacramento do irmão”. Ao professor Délio Raslan pela colaboração generosa. E, ao professor Luís Henrique Eloy e Silva pelos diálogos elucidativos. A todos os professores, funcionários e colegas da FAJE pela boa convivência e partilha de conhecimentos. De modo especial, os funcionários da biblioteca e as bibliotecárias Zita Mendes Rocha e Vanda Lúcia Abreu Bettio. Às pessoas que partilham comigo sua relação com Deus. A todas as pessoas que, de uma forma ou de outra, contribuíram com a realização desse trabalho. À CAPES pelo financiamento de meus estudos. No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. [...] E o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,1.14a). “A humanização de Deus e a deificação do ser humano são eventos correlativos. [...] Decifra-se a verdade do ser humano, falando não apenas de Deus ou apenas do homem, mas do Deus-Homem”. (Paul Evdokimov, Le Christ dans la pensée russe). RESUMO Este trabalho tem como escopo explicitar a doutrina da theōsis como aporte para a humanização do ser humano. No intuito de perscrutar tal temática, escolhemos a tradição oriental, em sua versão russa, o teólogo e filósofo, Paul Evdokimov, um dos maiores representantes da ortodoxia no século XX. A theōsis está presente na Sagrada Escritura sob a noção de santidade, adoção filial, imagem de Deus, participação na vida divina, imitação, seguimento e conformação com Jesus Cristo. Por seu desenvolvimento doutrinal está também presente na patrística, pelo fato de sua compreensão ser essencial à fé cristã. O ser humano, colocado por último na narrativa da criação, aparece como seu coroamento e com a vocação à comunhão da vida de Deus. Segue-se daí que a vocação do ser humano, encontrada no seu ser criado à imagem e semelhança de Deus, é o chamado à deificação. Nossa metodologia consiste numa pesquisa bibliográfica das principais obras de Paul Evdokimov, seguida por uma hermenêutica e uma organização sistemática a partir do objeto da pesquisa. Revisitando a teologia dos Padres, perpassando a teologia russa dos séculos XIX e XX, descobrimos que, para Evdokimov, o ser humano inicia seu processo de deificação por meio da incorporação ao Corpo de Cristo, pelos sacramentos da iniciação cristã. Uma vez que se toma consciência de que se tornou nova criatura, ele segue seu caminho de conformação a Cristo, que o faz viver como filho, no Filho, pelo Espírito, conforme desejo salvífico do Pai. Esta vida nova, na verdade, é seu processo de humanização, cujo ponto culminante é a theōsis, união íntima com a Trindade, por meio das energias divinas. Palavras-chave: Theōsis, Ser Humano, Humanização, Trindade, Paul Evdokimov. ABSTRACT The scope of this study is to clarify the doctrine of theōsis as a contribution to the humanization of the human being. In order to examine this theme, we chose the Eastern tradition, in its Russian version, the theologian and philosopher, Paul Evdokimov, one of the greatest representatives of orthodoxy in the twentieth century. The theōsis is present in Holy Scripture under the notion of holiness, filial adoption, image of God, participation in the divine life, imitation, following and configuration with Jesus Christ. Through its doctrinal development it is also present in the patristic tradition, because its understanding is essential to the Christian faith. The human being, placed last in the creation narrative, appears as its crowning achievement and with the vocation of communion in the life of God. It follows then that the vocation of the human being, found in his being created in the image and likeness of God, is the call to deification. Our methodology consists of a bibliographical research of the main works of Paul Evdokimov, followed by a hermeneutic and a systematic organization from the object of our investigation. Revisiting the theology of the Fathers, passing through the Russian theology of the 19th and 20th centuries, we find that, for Evdokimov, the human being begins its process of deification through the incorporation into the body of Christ, through the sacraments of Christian initiation. Once it becomes aware that it has turned into a new creature, it follows its path of configuration to Christ, which makes him live as a child, in the Son, through the Spirit, in accordance with the salvific desire of the Father. This new life, in truth, is his process of humanization, whose culminationis a theōsis, the intimate union with the Trinity, through divine power. Keywords: Theōsis, Human being, Humanization, Trinity, Paul Evdokimov. ! ABREVIAÇÕES Ort L’Orthodoxie MSM A mulher e a salvação do mundo ESTO O Espírito Santo na tradição ortodoxa CPR Le Christ dans la pensée russe CDTO La connaissance de Dieu selon la tradition orientale. l'enseignement patristique liturgique et iconographique EVE Las edades de la vida espiritual: de los padres del desierto a nuestros dias SAD O silêncio amoroso de Deus SA O sacramento do amor AI El arte del icono: teologia de la belleza NE La nouveauté de l’Esprit: études de spiritualité VS La vie spirituelle dans la ville VOTM Une vision orthodoxe de la théologie morale: Dieu dans vie des hommes ETBD Paul Evdokimov: testemunho da Beleza de Deus PG Patrologia Grega PL Patrologia Latina DCrT Dicionário crítico de teologia DPAC Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs SC Sources Chrétiennes DH Denzinger-Hünermann SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 A DOUTRINA DA THEŌSIS: APORTE PARA UMA ANTROPOLOGIA CRISTÃ .... 17 1 Fundamento e dimensões da teologia oriental ....................................................................... 20 1.1 Dimensão apofática ............................................................................................................ 22 1.2 Dimensão catafática ............................................................................................................ 24 2 Theōsis : a doutrina da deificação nas tradições cristãs ......................................................... 25 2.1 Percurso histórico da doutrina da theōsis ........................................................................... 26 2.1.1 A theōsis do ser humano na Sagrada Escritura ................................................................ 26 2.1.2 Raízes da theōsis na filosofia grega ................................................................................. 28 2.1.3 As raízes teológicas da theōsis na patrística .................................................................... 29 2.1.4 O influxo da doutrina da theōsis na teologia ortodoxa contemporânea .......................... 37 3 A doutrina da theōsis no pensamento de Paul Evdokimov ................................................... 38 3.1 A vida de Paul Evdokimov ................................................................................................. 38 3.2 A obra de Paul Evdokimov ................................................................................................. 42 3.3 A theōsis no pensamento de Paul Evdokimov .................................................................... 44 4 À guisa de conclusão ............................................................................................................. 46 4.1 Pertinência da doutrina da theōsis para os dias atuais ........................................................ 46 CAPÍTULO 2 JESUS CRISTO: LUGAR DA HUMANIZAÇÃO DE DEUS E DA DEIFICAÇÃO DO SER HUMANO ........................................................................... 49 1 A perspectiva cristológica na patrística grega ....................................................................... 50 1.1 Os quatro primeiros Concílios ecumênicos ........................................................................ 54 1.1.1 Concílio de Niceia, 325: Jesus é o Filho de Deus e é Deus ............................................. 54 1.1.2 Concílio de Constantinopla I, 381: a humanidade de Jesus ............................................ 55 1.1.3 Concílio de Éfeso, 431: União hipostática ...................................................................... 56 1.1.4 Concílio de Calcedônia, 451. Jesus Cristo: Uma Pessoa com duas naturezas ................ 58 2 A perspectiva cristológica na teologia russa dos séculos XIX e XX ..................................... 59 2.1 Influência da filosofia religiosa russa no pensamento de Paul Evdokimov ....................... 62 2.2 A cristologia no pensamento russo ..................................................................................... 66 3 A perspectiva cristológica em Paul Evdokimov .................................................................... 68 3.1 O Verbo encarnado: lugar da comunhão do divino com o humano ................................... 69 3.2 A doutrina do Deus-Homem: arquétipo da nova criatura ................................................... 71 3.2.1 O mistério do ser pessoa .................................................................................................. 73 3.3 A deificação do ser humano na perspectiva de Paul Evdokimov ....................................... 74 ! 10 3.3.1 O ser humano criado deiforme: Imagem e Semelhança de Deus .................................... 76 3.3.2 O mistério da liberdade humana ...................................................................................... 81 4 À guisa de conclusão ............................................................................................................. 83 CAPÍTULO 3 A VIDA NOVA: PROCESSO DE DEIFICAÇÃO DO SER HUMANO, NO ESPÍRITO SANTO ......................................................................................................... 87 1 A vida nova, nova criatura em Cristo, no Espírito Santo ...................................................... 87 1.1 A vida eclesial: lugar da transformação do ser humano ..................................................... 88 1.1.1 Dimensão trinitária .......................................................................................................... 89 1.1.1.1 Dimensão cristológica .................................................................................................. 90 1.1.1.2 Dimensão pneumatológica ........................................................................................... 91 1.1.2 Dimensão mariológica ..................................................................................................... 93 1.1.3 Dimensão cósmica ........................................................................................................... 94 1.2 A vida da Igreja: presença de transfiguração no mundo .................................................... 95 1.3 A liturgia e o dinamismo da vida cristã .............................................................................. 99 2 A vida sacramental: nossa participação na vida do Cristo, no Espírito Santo ..................... 101 2.1 Os sacramentos da iniciação cristã ................................................................................... 103 2.1.1 O Batismo: vida nova, em Cristo, no Espírito Santo ..................................................... 103 2.1.2 A Unção crismal: sacramento do sacerdócio universal ................................................. 106 2.1.3 A Eucaristia: constituição do Corpo de Cristo .............................................................. 109 2.2 Os sacramentos de cura: Penitência e Unção dos Enfermos ............................................ 111 2.3 Matrimônio: o sacramento do amor .................................................................................. 113 2.4 O sacramento da ordem .................................................................................................... 113 3 A vida espiritual: comunhão com Cristo, no “sacramento do irmão” ................................. 114 3.1 A vida mística: a união íntima com Deus ......................................................................... 117 3.1.1 A oração e ascese ...........................................................................................................119 3.1.2 O processo da kathársis ................................................................................................. 122 3.1.3 A busca do único necessário .......................................................................................... 123 3.2 O ser humano: um ser litúrgico desde a criação ............................................................... 126 3.3 A vocação universal ao monacato interiorizado ............................................................... 127 4 À guisa de conclusão ........................................................................................................... 129 CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 132 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 137 BIBLIOGRAFIA GERAL ................................................................................................... 144 INTRODUÇÃO O escopo desta pesquisa consiste em explicitar o processo da deificação do ser humano à luz do pensamento de Paul Evdokimov, processo que, na verdade, coincide com o de sua humanização. Não se trata de exaurir a temática sobre a theōsis, que tem uma fulgurante trajetória histórica. Nem tampouco se trata de fazer uma exposição completa da história do humanismo ou de explicitar suas concepções antropológicas. Trata-se de aproximarmo-nos do pensamento de um autor ortodoxo, Paul Evdokimov, no que concerne à temática da theōsis, pois ele nos oferece uma reflexão teológica enraizada na vida concreta. Muito já se falou sobre o ser humano. Intriga-nos o fato de ele ser dotado de muitas possibilidades: criativas e destrutivas; sonhador da paz, mas também construtor da guerra. O desenvolvimento tecnológico e científico tem possibilitado grandes avanços na conquista de dias melhores. Porém, percebe-se que a pessoa, em meio a tanto desenvolvimento, sente-se vazia, embora locupletada de coisas. Outras buscam na técnica a solução para tudo, e enveredam-se no ceticismo. Cresce também, na relação interpessoal, a desconfiança de uns para com os outros. A experiência religiosa, muitas vezes da forma como é vivida, não mais interage com a vida do crente na sociedade, aparecendo antes como um a mais, e por vezes descartável, entre os itens de consumo. É bem este nosso ponto de interrogação. Seria o homem um item a mais no contexto do cosmo ou é possível ainda considerá-lo como co-criador, guardião da criação (Gn 2,15)? Em que sentido é possível viver o que em nós foi insuflado no ato da criação (Gn 2,7)? Como fazer teologia frente aos desafios nos quais estamos imergidos? Em que consiste o fato de termos sido criados à imagem e semelhança do Criador (Gn 1,26-27)? A escolha de Paul Evdokimov para esta pesquisa deve-se ao fato de que, em sua obra, teologia e espiritualidade são inseparáveis. Seu pensamento é herdeiro da filosofia religiosa russa e da síntese neo-patrística, e aborda múltiplas áreas da teologia cristã, numa tentativa de diálogo com a sociedade moderna. Em sua reflexão, nem o cristomonismo nem o pneumatocentrismo predominam, mas há um equilíbrio teológico que apresenta a imersão das Três Pessoas Divinas na história da humanidade. Com este aporte, tentaremos ver que o ! 12 caminho para responder às questões que acabamos de colocar passa pela noção de deificação do ser humano que, como dissemos, coincide com sua humanização. Ou seja, a “marca original” do ser humano, seu fundo ontológico derradeiro, é ser imago Dei, que é condição de possibilidade da theōsis. Com isso, não se pretende esquivar do “drama da queda”, mas compreendê-lo como interrupção do que estava no projeto inicial da criação: a comunhão do ser humano com Deus, sua participação na vida divina (2Pd 1,4). A perspectiva do pecado original, que marcou a tradição ocidental, deu origem a uma experiência jurídica da redenção, a uma teologia da culpa, do medo e da paralisia moralizante na experiência religiosa. É como se, “em lugar do Reino, que dirige a marcha da história, falássemos do paraíso perdido” (MSM, p. 65). Há outra perspectiva espiritual e teológica que aborda esta questão: a do Oriente cristão, na qual a criação e a encarnação estão implicadas uma na outra. Parte-se da experiência da união com Deus, plantada no coração humano pelo próprio Criador. Evdokimov mostra-nos que, nos escritos dos Padres, a destinação primeira é que conduz o ser humano a viver sua vocação, entrar no processo de sua deificação. Portanto, a regra áurea da patrística: “Deus torna-se homem para que o homem torne-se deus”, é determinante na antropologia de Evdokimov, que apresenta a deificação do ser humano como objetivo da economia salvífica. Para ele, a deificação consiste em adquirir, não a natureza divina, pois isto é impossível, mas a maneira divina de ser homem, isto é, de ser pessoa em comunhão com Deus o que, segundo os Padres, é a “participação na natureza divina” (2Pd 1,4). O trabalho pretende contribuir com uma reflexão teológica mais aberta, sensível ao Mistério revelado e acolhido na vida dos cristãos, sem com isso deixar de ser interpelado pela racionalidade da tradição ocidental. Propõe-se a ser uma ponte, na qual o ser humano seja re-colocado no plano original de sua existência: criado à imagem de Deus, ele tende à semelhança divina, que é a deificação, conforme afirma nosso autor. Ultimamente temos percebido a necessidade de uma orientação sobre a vida cristã que nos conduza a viver nosso batismo de forma livre, madura e adulta. Se por um lado vemos cristãos “perdidos”, sem saber em qual Igreja professar e viver sua fé, por outro lado, assistimos ao crescimento de movimentos que se deliram em longas celebrações, cheias de adereços e canções, mas desconectadas do mistério do Senhor e da vida do povo. Isso tem provocado a proliferação de movimentos, de ramificações de algumas Igrejas e seitas, provocando a inércia no viver a fé. Há também aqueles que simplesmente não creem mais. ! 13 A necessidade de abertura ao diálogo, do conhecimento das fontes de nossa fé cristã e, sobretudo, de não fazer uma teologia especulativa, mas uma teologia que diz respeito a um conhecimento-vida reforçou a escolha do autor. Trata-se de conjugar simultaneamente teologia e espiritualidade, pois intriga-nos ver essa realidade única, dividida. Paul Evdokimov é alguém que não aceita proselitismo, mas tenta viver sua fé de forma coerente, aberto aos outros que creem diferente, porém, sem abrir mão do cerne de sua fé. Ele consegue dialogar. O teólogo russo dá testemunho da presença transformadora do Espírito Santo no mundo e na vida das pessoas. À luz da transfiguração do Senhor, ele conclama à transfiguração humana e do cosmo. A transfiguração humana refere-se à deificação do ser humano e, a do cosmo, à sua transformação em Reino de Deus. Tudo é possibilitado pelas energias divinas e realizado com o concurso da liberdade humana. Num dos discursos proferidos nas exéquias de Evdokimov, o professor Nikos Nissiotis, secretário geral do Conselho Ecumênico das Igrejas e diretor do Instituto Ecumênico de Bossey, ressaltou que nosso autor “foi um diácono carismático”, cuja vida “foi uma oferenda espiritual”. E ainda, ele ressalta que Evdokimov encarna o adágio patrístico que se refere ao ser do teólogo, afirmando que “ele rezava teologizando e teologizava rezando”1. Eis, portanto, a razão de nossa escolha deste autor. Alguém que uniu sua vida ao que pronunciava. Diante da atual carência de uma mística que conjugue fé e vida, a reflexão evdokimoviana nos ofereceuma abordagem que merece ser considerada. Ela apresenta a complementaridade da missão do Filho e do Espírito, que nos permite um equilíbrio não só no âmbito eclesial, mas também em nossa relação pessoal com Deus e com os irmãos. Nesse sentido, a definição calcedoniana é sempre evocada ao longo da apresentação do pensamento de nosso autor. De fato, o relacionar-se dos homens com Deus, depende para ser e para se compreender, da realidade própria Daquele que a fé nos diz ser verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, sem confusão, nem separação, sem mudança, nem divisão. Utilizaremos como método a pesquisa bibliográfica das principais obras do autor escolhido. Além desta pesquisa faremos uma interpretação hermenêutica, numa organização sistemática a partir do objeto de nosso estudo. Ressaltamos que não se trata de uma pesquisa !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1 CLÉMENT, Olivier. Paul Evdokimov, témoin de la beauté de Dieu. Contacts, Paris, t. 23, n. 73-74, 1971. p. 219. O número desta revista foi publicado em homenagem a nosso autor por ocasião de seu falecimento. ! 14 sobre a antropologia oriental, nem sobre a mística oriental, pois a theōsis, além de ser o coração da antropologia oriental é também o cerne de sua espiritualidade. Trata-se de uma aproximação e reflexão sobre a theōsis do ser humano à luz do pensamento de Paul Evdokimov, como aporte para o processo de humanização do ser humano. Descobrimos que esta temática, a theōsis do ser humano, é verdadeiramente decisiva para este momento cultural (poderíamos dizer multicultural), caracterizado pela secularização. O escopo da reflexão ganhou então o estatuto e o ânimo de dar passos em direção ao estudo da theōsis como aporte para a uma antropologia cristã que permita ao cristão assumir sua fé de forma livre e adulta, para acolher e testemunhar a presença do Reino de Deus nesta sociedade em que vivemos. Nossa sociedade é profundamente marcada por grandes descobertas e avanços, mas igualmente carente do único necessário, muitas vezes ausente de suas reflexões e opções. Visamos, pois, mergulhar não tanto num discurso especulativo, mas numa contemplação ativa do mistério divino e humano, sem confusão e sem separação. Há uma correlação entre a humanização de Deus e a deificação do ser humano. Segundo Evdokimov, “Deus encarna-se no homem e o homem espiritualiza-se em Deus. À encarnação, humanização de Deus, responde a pneumatização, a deificação do homem” (Ort, p. 251). O conhecimento da pessoa de Jesus Cristo é que nos permite entrar nesta dinâmica da encarnação. Pois Ele, pela ação do Espírito, revela-nos o rosto humano do Pai e, ao mesmo tempo, revela-nos o rosto humano do próprio ser humano. O processo de deificação supõe, pois, a incorporação à vida de Jesus Cristo. A vida eclesial torna-se então, o lugar da transformação humana que acolhe a vida nova, tornando-se nova criatura. É um cristianismo vivido à luz da ressurreição, inserido na história, mas sabedor de sua realidade para além da história, ou seja, do seu destino último. Assim pensado, o cristianismo requer a união da graça e da liberdade. Elas são as duas asas nas quais o ser humano alça voo rumo à theōsis. O ser humano não está pronto. Ele é tarefa. Evento. E aqui recordamos as palavras de Guimarães Rosa: “O Senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão”2. O processo da deificação é justamente essa dinâmica da vida, ora caminhamos na graça, ora não damos conta de acolhê-la na liberdade, mas a oferta gratuita de Deus se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 2 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 9. ! 15 mantém. A ação do Espírito é que nos ajuda a viver cada dia mais nossa conformação à vida de Jesus e assim, progredir em direção à nossa vocação de ser filhos, no Filho, isto é, ir sendo deificados. Somos conscientes de que o desenvolvimento desse nosso trabalho poderá suscitar encantos e desencantos. Encantos, porque o ser humano traz em si o desejo do alto. “Tu nos fizeste para ti e os nossos corações inquietos só descansarão quando Te encontrarem” (Agostinho, Confissões I, 1). Desencantos, porque, movidos pela efervescência do novo, estamos imersos num universo em que a linguagem tem que ser agradável aos ouvidos. Sabemos que o antigo necessita de interpretação e reinterpretação para atualizar sua mensagem libertadora. Mas muito mais que discutir termos aqui empregados, o anseio é instigar, descobrir, pela via da contemplação, o coração da antropologia oriental, a theōsis. Acreditamos que esta descoberta pode nos ajudar a compreender nossa própria fé e a vivê-la de tal forma que sejamos capazes de acolher o diferente e dialogar com os que pensam e creem diferentemente de nós. No primeiro capítulo apresentamos, brevemente, a doutrina da theōsis: aporte para uma antropologia cristã. Verificaremos que o termo theōsis está presente desde a Sagrada Escritura, mas ganha desenvolvimento doutrinal ao longo do transcorrer histórico da teologia. Não nos deteremos no período medieval, mas ressaltamos que nele também a theōsis se faz presente. O salto se justifica pelo fato de que Evdokimov, ao elaborar seu pensamento, remonta à Escritura, à síntese neo-patrística e à contribuição da filosofia russa moderna, bem como à teologia desenvolvida nos séculos XIX e XX, na Rússia. Feito o percurso histórico, apontamos a pertinência do tema para a atualidade e contextualizamos nosso autor: sua vida e obra. Nesta última parte, ressaltamos, de forma sucinta, o que concerne à deificação do ser humano no pensamento de Paul Evdokimov. Todo o pensamento de Evdokimov, no que concerne à deificação, conflui na doutrina do Deus-Homem. Por isso, no segundo capítulo, demonstraremos que Jesus Cristo é o lugar da humanização de Deus e da deificação do ser humano. No rosto humano de Jesus, Deus se manifesta a nós e, ao mesmo tempo, nos mostra o que somos para Ele: filhos no Filho, co-herdeiros da promessa (Ez 36,26).!Olhando para a vida de Jesus, o cristão pode verificar a finalidade da vida humana relacionada à vida de Deus. Explicitaremos a cristologia de Evdokimov, que nos conduz a compreender os dois pilares sobre os quais ela se centrou. Um foi o desenvolvimento cristológico dos primeiros séculos, que culminou nas definições ! 16 dogmáticos dos quatro primeiros concílios ecumênicos. O outro pilar refere-se à síntese neo- patrística, entrelaçada com a filosofia religiosa russa do século XIX e XX. E, finalmente, no terceiro capítulo, apresentaremos a vida nova, que é o processo da deificação do ser humano, o qual acontece pela ação do Espírito Santo e pela livre adesão à esta nova vida oferecida por Cristo e em Cristo. Nesta perspectiva, a Igreja aparece como o lugar da transformação do cristão que, sacramentalmente, participa da vida de Jesus Cristo. O entrelaçamento da vida eclesial e sacramental ajudar-nos-á a perceber que a vida nova é dom de Deus, mas também tarefa humana. Evdokimov identifica a vida mística com a vida cristã. Isto nos reporta a um dos maiores teólogos católicos do séc. XX, Karl Rahner, que afirmou que “o cristão do futuro seria místico, ou não seria cristão”. A mística é uma questão de vida. “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”3. É com o impulso desta frase de GuimarãesRosa, que a empreitada da escrita deste trabalho se arrisca a desenvolver-se, bem como, somos convidados a adentra-nos nela por meio de uma leitura contemplativa para acolher as intuições que fluem deste texto. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 3 Ibid., p. 318. CAPÍTULO 1 A DOUTRINA DA THEŌSIS: APORTE PARA UMA ANTROPOLOGIA CRISTÃ Theōsis, divinização e deificação são vocábulos sinônimos e dizem respeito à pneumatização do ser humano, sua santificação, pela ação do Espírito Santo. Este processo constitui, segundo os Padres orientais, entre eles Irineu e Atanásio, o fim último da encarnação. Ao longo da tradição cristã os termos foram usados de forma diversa, mas sua significação permanece a mesma: participação do ser humano na vida divina (2Pd 1,4). Quando apresentarmos nossa reflexão sobre essa doutrina à luz do pensamento de Paul Evdokimov, autor de nossa pesquisa, daremos preferência ao termo deificação, pelo fato de que, em suas obras, seja o termo empregado por ele. Na teologia cristã oriental, o fim último do ser humano é a união com Deus, a “theōsis”, deificação. Este fim, conforme explicitam os Padres da Igreja, é a transformação da criatura humana em Cristo, no Espírito Santo, em nova criatura. Este tema perpassou, conforme veremos logo a seguir, toda a história do desenvolvimento teológico cristão, seja no Oriente, locus de nossa reflexão, seja no Ocidente, no qual não nos deteremos devido ao recorte feito para efeitos de nossa pesquisa. Por que perscrutar uma tradição na qual não vivemos? Em que sentido o Oriente cristão contribui para uma vivência de fé adulta e madura? Para embrenharmos nesta busca somos convidados a fazer uma leitura hermenêutica das obras do autor escolhido, com disposições para encontrarmo-nos num horizonte diferente do nosso, a teologia oriental. E, a partir desta aproximação, auferir algumas contribuições desta tradição que nos enriqueçam em nossa própria tradição e, que ao mesmo tempo, nos estimulem e orientem a viver a fé cristã, em seu dinamismo transformador da realidade em Reino de Deus, correspondendo ao processo de nossa deificação/humanização. Segundo Volodemer Koubetch1, o interesse pela reflexão teológica das Igrejas orientais, tanto a das unidas a Roma como a das ortodoxas, aumentou consideravelmente nas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1 Dom Volodemer Koubetch, osbm, é bispo coadjutor da Eparquia de São João Batista dos Ucranianos Católicos no Brasil, com sede em Curitiba. Membro da Província de São José, da Ordem de São ! 18 últimas décadas. Para ele, este interesse se dá, seja por causa do Vaticano II e do esforço ecumênico feito no diálogo com os ortodoxos, seja em virtude das condições históricas, que libertaram as Igrejas orientais da opressão política e possibilitaram uma aproximação efetiva entre o Oriente e o Ocidente. Na América Latina e no Brasil, o interesse pela teologia oriental é de ordem vital para a Igreja e para o povo cristão, e não somente de ordem intelectual, para os acadêmicos. Há um grande número de fiéis ortodoxos que vivem no Brasil. Se, por um lado, percebe-se que a teologia oriental, sua liturgia, espiritualidade, arte iconográfica ainda são desconhecidas pelos fiéis ocidentais, por outro, percebe-se a busca de conhecimento da fonte do cristianismo, o Oriente cristão. Teólogos latino-americanos como Víctor Codina2 e José Comblin3, entre outros, mostram a riqueza teológica desta tradição e a necessidade de conhecê-la para que haja um enriquecimento mútuo. O Concílio Vaticano II dedicou à tradição oriental um Decreto sobre as Igrejas orientais em comunhão com Roma intitulado Orientalium Ecclesiarum (OE), além de ter elogiado esta tradição no Decreto sobre o ecumenismo Unitatis Redintegratio (UR 14-18). Este último documento refere-se ao Oriente ortodoxo numa perspectiva ecumênica. Trata-se !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Basílio, o Grande, é mestre em Teologia Moral pela Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção (São Paulo) e doutor em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Católica (Rio de Janeiro). Destacamos o título de sua tese doutoral por se referir ao autor que pesquisamos: “Espírito e salvação em Paul Evdokimov”. Sobre o interesse pela teologia oriental que mencionamos acima, foi extraído de sua obra: Da criação à parusia: Linhas mestras da teologia cristã oriental. São Paulo: Paulinas, 2004. Este livro é uma adaptação de sua tese de doutorado. 2 Codina é sacerdote jesuíta e teólogo, nascido na Catalunha. Trabalha desde 1982 na Bolívia. Despertou seu interesse pela teologia oriental ao sentir falta de integração entre teologia e espiritualidade. Durante o ano sabático aproximou, por meio de estudo em Paris, da riqueza da tradição oriental e a partir daí escreveu sobre suas impressões acerca da teologia oriental. Ele percebeu que há uma relação profunda entre a teologia oriental e a teologia da América Latina. A partir daí escreveu um artigo sobre esta relação, afirmando que ambas partem da vida e contêm as dimensões litúrgica e do Espírito. Depois escreveu outro artigo no qual se interroga sobre o que teria acontecido se a América Latina tivesse sido evangelizada pelos autores, pelos teólogos e pastores da Igreja oriental. Para ele, teria tido mais respeito pela cultura, pelas religiões, pela terra e pela religiosidade popular. Disponível em: <http://www.san-pablo.com.ar/vidapastoral/?seccion=articulos&id=85>. Acesso em: 08 jul. 2013. Encontramos também em suas obras uma reflexão de cunho oriental. Aqui ressaltamos as obras que nortearam nossa proposição sobre o interesse pela teologia oriental na América Latina e no Brasil: Los caminos del oriente cristiano. Santander: Sal Terrae, 1997 e “Não extingais o Espírito” (1Ts 5,19): iniciação à pneumatologia. São Paulo: Paulinas, 2010. 3 José Comblin, teólogo e sacerdote belga de vasta experiência, lecionou no Equador, Chile e Brasil. Sua obra é vasta e polêmica, com um forte caráter profético. Comblin estava convencido de que a fé deveria ser refletida criticamente a partir da realidade dos pobres. Foi considerado um dos maiores expoentes da Teologia da Libertação vivendo no Brasil. Juntamente com outros teólogos latino- americanos, Comblin dirigiu a coleção “A oração dos pobres” que se refere à teologia oriental. ! 19 de respirar ou ativar em nossa inspiração, um dos pulmões esquecido da Igreja, o Oriente cristão4, visto que, nós ocidentais, diante da crise que nos assolapa, às vezes buscamos, fora, riquezas que se encontram dentro da tradição cristã. Segundo Víctor Codina, ... muitas aspirações da modernidade e da pós-modernidade podem encontrar na tradição cristã oriental resposta plena às suas ânsias de experiência espiritual, de integração holística e de perspectiva ecológica. O Oriente nos oferece um caminho espiritual de excepcional riqueza” [...] “Olhar os caminhos da Igreja do Oriente é voltar à tradição genuína da Igreja católica” ou seja, “sair ao encontro de uma tradição viva da Igreja de ontem e de hoje”5. Não entraremos nas discussões que concernem às divergências dogmáticas das duas tradições: oriental e ocidental. O intuito é escutar, ecumenicamente, a voz do Oriente no que concerne ao processo de deificação do ser humano, sobretudo à luz do pensamento de Paul Evdokimov, objeto de nossa pesquisa. Sobre o autor, falaremos mais adiante. Portanto, mais que explicitar um pensamento, somos convidados a contemplar, neste trabalho, a relação do Deus Uno e Trino que se revela e se autodoaao ser humano, sua imagem e semelhança, chamado a participar da vida divina (2Pd 1,4). É necessário retirar os possíveis empecilhos que nos impedem de ver e acolher a novidade (antiga) da teologia oriental, a fim de experimentar a beleza da fé cristã que daí emerge. No livro do Gênesis encontramos a afirmação de que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus (1,26-27). Em que consiste este mistério da criação? Qual é a constituição do ser humano? Qual o caminho para o ser humano viver o que nele foi insuflado no ato da criação (Gn 2,7)? Na concepção oriental, a antropologia e o destino histórico são !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 4 Aqui fazemos alusão à expressão empregada por João Paulo II em sua encíclica Slavorum Apostoli (1985), ao convidar os cristãos a que respirassem com os dois pulmões da Igreja: o ocidental e o oriental. Dom Volodemer, em sua homilia de encerramento da XXXIII Semana Teológica do Studium Theologicum, que tratou sobre Teologia Litúrgica Oriental e Ocidental nas raízes de uma só fé nas duas tradições: a tradição oriental bizantino-ucraniana e a tradição ocidental dita latina, afirmou que “essa expressão foi utilizada pela primeira vez pelo poeta e filósofo russo ortodoxo Vjacieslav Ivanov (1866-1949), o qual, desejando pertencer à plenitude da Igreja, aderiu à Igreja Católica, em 1926, sem abandonar, todavia, as riquezas do Cristianismo Oriental (D. HUGO DA SILVA CAVALCANTE, OSB: Introdução ao estudo do Código de Cânones das Igrejas Orientais. Loyola, São Paulo, 2009, p. 26)”. Homilia proferida na catedral São João Batista, em Curitiba, 15 de setembro de 2011. Disponível em: <http://www.eparquiaucraniana.com.br >. Na sessão homilias. Acesso em: 19 mar. 2013. 5 CODINA, Víctor. Los caminos del oriente cristiano: iniciación a la teología oriental. Santander: Sal Terrae, 1997, p. 8-9. ! 20 esclarecidos pelo estado paradisíaco, porque o alfa já inclui o ômega e o define profeticamente: sou o princípio e o fim (Ap 21,6)6. Procuraremos compreender que, na encarnação, Deus não é mais somente Deus. Ele é Deus-Homem. O homem também não é mais somente homem, mas homem-deus, ser deificado (cf. Ort, p. 77; SA, p. 64). Portanto, no Oriente, a antropologia é ontológica. “Ela é ontologia da deificação” (MSM, p. 86). É theōsis, processo de humanização do ser humano, sua pneumatização pelas energias divinas. Faz-se necessário, antes de adentrarmos no desenvolvimento do percurso histórico da doutrina da theōsis, elucidar em que consiste a teologia oriental. Será feita uma breve exposição acerca do fundamento teológico desta tradição. 1 Fundamento e dimensões da teologia oriental A teologia oriental não se preocupa em elaborar sínteses, mas utiliza, com liberdade, os elementos culturais de seu tempo para expressar os dados da fé. É um pensamento amplo, fluido e muito livre, portanto, difícil de ser sintetizado. A teologia oriental é essencialmente mística. Ela coloca como objetivo da vida cristã a participação do ser humano na vida de Deus (2Pd 1,4), isto é, a theōsis. Supõe contemplação dos mistérios divinos. Deus se revela e aguarda a resposta humana. Há uma sinergia entre a ação de Deus e a ação do ser humano, que salvaguarda a liberdade e a diferença entre ambos, Criador e criatura. Percebe-se que há um modo de fazer teológico próprio a cada tradição que incide diretamente na concepção espiritual de cada uma. Codina explicita claramente o modo de se fazer teologia no Oriente e sua incidência na concepção espiritual, de forma que, ao mesmo tempo, ele oferece-nos a diferença do fazer teológico do Ocidente e, consequentemente, a espiritualidade que emerge desta concepção teológica. Tanto uma tradição, como a outra, num contato mútuo podem enriquecer-se. [...] A teologia no Ocidente separou-se da espiritualidade. A síntese bíblica e patrística centrada na Escritura se rompe. Por um lado, cresce uma teologia racional e especulativa e, por outro lado, surge uma espiritualidade individualista, moralizante, pouco teológica, sem raízes eclesiais e sem !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 6 MCPARTLAN, Paul. Santidade. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2004. p. 1613. ! 21 fundamento dogmático. No Oriente, ao contrário, manteve-se a união entre teologia e espiritualidade, entre teologia e vida, entre teologia e mística. No Oriente, a teologia é doxologia (louvor), contemplação, liturgia, mística, adoração, eucaristia, experiência espiritual...7 Este modo oriental de fazer teologia não significa que o ser humano não reflita e não dê razões de sua fé, mas que ele o faz mediante a metanoia da inteligência, que opera uma conversão pela fé, no batismo, isto é, uma nova integração de todo o ser. Evdokimov vê neste itinerário o viés para a iniciação do processo de deificação do ser humano, sua humanização. Pois, uma vez nascida pela graça do batismo, a razão pode servir-se de filosofia, ciência, pois ela torna-se iluminada, transfigurada pela fé8. Não será um mero humanismo, mas um humanismo conjugado com a cristologia e a pneumatologia cristãs: um humanismo cristo- pneumatológico. A teologia oriental é mística e existencial. Mística por ser uma experiência pneumática e espiritual que o ser humano faz do mistério cristão. Existencial por se tratar de uma teologia experimental, viva e vivificante. O ser humano é inserido no evento Cristo. Participa deste evento. Sendo mística, ela é também mistagógica, enquanto é conhecimento que inicia e conduz o ser humano ao mistério trinitário. Assim como na Bíblia, o cristão oriental pensa com o coração9 e não simplesmente com seus recursos cerebrais. O sentido bíblico de pensar com o coração revela o mais secreto do ser humano, onde se encontram a fidelidade, a abertura a Deus ou o endurecimento diante do amor divino. É o homo cordis absconditus (1Pd 3,4), pois é no coração que se encontra a profundeza do ser humano, sua incognoscibilidade. “Ao Deus absconditus responde o homo absconditus, à teologia apofática corresponde a antropologia !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 7 CODINA, Víctor. Los caminos del oriente cristiano: iniciación a la teología oriental. Santander: Sal Terrae, 1997, p. 31. 8 Ibid., p. 33. 9 Evdokimov, ao falar da constituição do ser humano, reporta-se à noção bíblica do coração (leb (hebraico) e kardia (grego). O coração é concebido como “o centro que irradia e penetra o todo do ser humano”, embora permaneça escondido em sua misteriosa profundidade. Nesse sentido, Jeremias interroga: “Quem pode conhecer o coração?” e ele mesmo responde: “Deus sonda os corações e os rins” (Jr 17,9-10). Ao citar Agostinho: “É para ti que tu nos criaste, Senhor, e é só em ti que nosso coração encontra a paz” (Confissões I, 1), nosso autor afirma que “o coração tem uma intencionalidade original imantada como uma bússola de compasso” (cf. Ort, p. 66-68; MSM, p. 49s; SA, p. 58; CDTO, 30). O dicionário bíblico fala do coração como o centro principal da atividade emocional. O ser humano é o que é o seu coração. Para o NT, o coração “é a sede das operações divinas que transformam os cristãos” (Gl 4,6; Rm 5,5; 2Cor 1,22; Ef 3,17) (DB, p. 183s). ! 22 apofática” (Ort, p. 67). A teologia oriental suscita em nós mais inteligência e menos intelectualidade. Uma inteligência que passa pela metanoia evangélica, conforme já dissemos anteriormente. Evdokimov, ao reportar-se aos teólogos e padres do Concílio Vaticano II, afirma que a teologia, ultimamente, perdeu o sentido do mistério e, tornou-se, de certa forma, uma “especulação abstrata sobre Deus, deixando de serpensamento vivo em Deus” (SAD, p. 18).! Por isso, observa-se uma conduta cristã confortável, assentada de maneira tranquila sobre a cruz, com pouca ressonância sobre a sociedade contemporânea. É necessário o ultrapassamento da razão para atingir, pela inteligência do coração, a união com Deus, onde dogma e vida estejam coimplicados. Todo pensamento ortodoxo culmina e ultrapassa-se na antinomia apofática, aquela do Inacessível e do Crucificado. E, todo pensamento cristão é convidado a entrar nesta dinâmica das duas dimensões da teologia oriental: apofática e catafática. Elas possibilitam a reflexão-contemplação de Deus para não cair numa mera especulação abstrata sobre Deus e, consequentemente, sobre o ser humano. 1.1 Dimensão apofática O método teológico dos Padres parte do axioma “de Deus sabemos somente que ele é - o/(ti e)sti/n e não aquilo que ele é - ti/ e)stin” (Ort, p. 53). Voltada para Deus, a teologia oriental apresenta-se em primeiro lugar como uma teognose apofática, negação de toda definição humana. [...] Pois a essência de Deus está acima de todo nome, de toda palavra. [...] E mesmo quando dizemos infinito e não gerado, por essa forma negativa mesmo, nós confessamos e tocamos na apófase. [...] A teologia catafática só se aplica a seus atributos revelados, às manifestações de Deus no mundo (Ort, p. 53-54; SAD, p. 43). A teologia apofática ou negativa consiste na negação de toda definição sobre Deus. Ela considera inadequada toda tentativa de descrever o mistério absoluto de Deus, que supera todas as categorias. Em sentido absoluto, Deus é incomparável. Ele é totalmente incognoscível em sua essência. Segundo Evdokimov, ! 23 a “super-essência” divina é radicalmente transcendente ao homem e obriga a uma afirmação antinômica, mas jamais contraditória, da completa inacessibilidade de Deus em si e de suas manifestações imanentes no mundo. Deus “sai na frente” em suas energias e está totalmente presente nelas. [...] A energia nunca é uma parte de Deus, ela é Deus em sua revelação sem que ele perca nada da “não-saída” radical de sua essência (Ort, p. 26). Os conceitos, afirma Gregório de Nissa, criam ídolos, a Deus só se capta pelo silêncio e admiração (PG 44, 1028d)10. Por isso, a Ortodoxia não tem necessidade de formular conceitos a respeito de Deus, ao contrário, segundo Evdokimov, ela tem necessidade de não formular (cf. CPR, p. 35). “Em sua dimensão apofática, a teologia é a negação de toda definição humana. Definir é limitar” (ESTO, p. 22). Gregório Nazianzeno nos ajuda a compreender a dinâmica desta dimensão teológica, que se expressa em forma de oração e dirige-se ao Indizível: Tu, o mais além de tudo. Que outra coisa pode ser dita de ti? Que hino poderia dirigir-te a palavra? Não tem palavra que possa expressar-te. Onde te fixar a inteligência? Tu estás além de toda inteligência. Só tu és inefável, porque tudo o que se diz saiu de ti. Todos os seres, os que falam e os mudos, te proclamam. Só tu és incognoscível, porque tudo o que pensa saiu de ti. O desejo universal, o gemido de todo o universo, tende para ti. Tudo o que existe te adora e todo ser que pensa teu universo faz subir até ti um hino de silêncio. Tudo o que permanece, permanece em ti. Por ti subsiste o movimento de tudo. Tu és o fim de todos os seres. Tu és todo ser e não és nenhum. Tu não és um dos seres, nem és seu conjunto. Tu tens todos os membros. Como te nomearia eu a Ti, o único que não tem nome, o mais além de tudo? Não é isso tudo o que pode ser dito de ti? (PG 37, 507). Para Codina, o que faz com que a teologia seja apofática não é a onipotência de Deus, nem sua imensidade, mas seu amor que, segundo Nicolas Cabasilas (1320-1371)11, é o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 10 Evdokimov é quem nos oferece a referência à Patrologia Grega cf. Ort, p. 54. 11 Segundo Evdokimov, Nicolas Cabasilas foi um dos maiores liturgistas do séc XIV (SA, p. 132). Teólogo leigo, humanista e homem de alta cultura escreveu um tratado sobre os sacramentos intitulado La vie en Christ (A vida em Cristo). Discípulo de Gregório Palamas, recebe dele o princípio de uma participação real na vida divina utilizando-a para construir uma vigorosa espiritualidade para os leigos (CDTO, p. 72). O realismo litúrgico da participação do divino acessível a todos conduz os fieis à cristificação (CPR, p. 28). “A vida de todo homem em Jesus se identifica com a vida de Jesus no homem, com ‘a morada trina’ e a pneumatização do ser humano pelas energias divinas. O misticismo litúrgico, acessível a todos, encerra-se assim, com a vida de cada um no nível da fé histórica e pneumatófora da existência e conduz à incorporação muito concreta dos fieis em Cristo, à sua cristificação: ‘a fim de que o Cristo seja formado em vós’ (Gl 4,19)” (Ort, p. 28). Segue-se daí que o escopo escatológico da eucaristia “é o Reino de Deus dentro de nós” (CDTO, p. 72). ! 24 “louco amor de Deus” manifestado no escândalo da cruz12. Por isso, a via que nos conduz a Deus é a via do amor, da contemplação. A transcendência divina ensina-nos que não podemos jamais ir a Deus a não ser a partir dele mesmo, estando nele (cf. Ort, p. 50). “Deus é o eternamente procurado. Ele permanece escondido em sua própria epifania” (SAD, p. 44). 1.2 Dimensão catafática A dimensão catafática, também conhecida como positiva ou “simbólica”, refere-se aos atributos e manifestações reveladas de Deus no mundo (cf. ESTO, p. 22). Esta dimensão nos possibilita um conhecimento imperfeito de Deus. É um modo de ascender a Deus por meio de sua teofania na criação, na história e, sobretudo, em Cristo13. Vale ressaltar com Evdokimov a importância das duas dimensões: Pela via negativa, os Pais da Igreja ensinam que Deus é incomparável em sentido absoluto; nenhum nome o exprime adequadamente [...] A teologia positiva clássica não é depreciada, mas colocada diante de seus próprios limites. Ela se aplica apenas aos atributos revelados, manifestações de Deus no mundo. Ela os traduz de modo inteligível, mas essas traduções permanecem expressões cifradas, simbólicas, pois a realidade de Deus é absolutamente original, transcendente e irredutível a qualquer sistema de pensamento. Em torno do abismo abissal de Deus, a espada flamejante dos querubins havia traçado um círculo instransponível de silêncio (SAD, p. 25). Por isso, afirma Paul Evdokimov, a teologia apofática “realiza um ultrapassar, mas que nunca se desliga da sua base, a teologia positiva da Revelação bíblica. Quanto mais alta é construída a vertical celeste, tanto mais ela se encontra enraizada na horizontal terrestre, da história” (ESTO, p. 23). Pois não se trata de conhecer qualquer coisa sobre Deus, mas de ter Deus em si (cf. Ort, p. 50). Daí podemos dizer, com Evágrio Pôntico (345-399), no que consiste o fazer teológico: “Se tu és teólogo, tu oras verdadeiramente e se tu oras, tu és teólogo” (Traité de l’oraison, 60)14. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 12 CODINA, Los caminos del oriente cristiano, 1997, p. 35. 13 Ibid., p. 37. 14 Encontramos uma afirmação de Evdokimov sobre quem teria formulado a partir desta frase de Evágrio um adágio dos Padres. Ele diz que foi Santo Tikhon de Zadonsk que formulou o adágio: “Teólogo é aquele que sabe rezar”. Pois Zadonsk aspirava a uma teologia viva, conhecida como um conhecimento experimental de Deus. Este santo foi, conforme ainda afirma Evdokimov, o primeiro a ! 25 Segundo nosso autor, “ninguém é verdadeiro teólogo se sua fé não tem o caráter vivido da união pessoal com Deus” (CPR, p. 36). Assim, ele conjuga as duas dimensões, apofática e catafática, que geram a unidade do possívelconhecimento de Deus. Esse conhecimento inicia o teólogo na ardente aproximação de Deus e de seus mistérios. Supõe a vida de intimidade e comunhão que gera a união com o Senhor. 2 Theōsis: a doutrina da deificação nas tradições cristãs A tradição oriental conservou ao longo dos séculos a coerência e a firmeza de suas bases doutrinais. Ela bebe nas fontes da Revelação cristã e na tradição dos Padres, conservando o sabor dos grandes místicos da Igreja primitiva, mantendo assim, o exercício teológico com a experiência espiritual vinculados estreitamente. No que concerne à theōsis, encontramos um fundamento persistente que corrobora na reflexão sobre o ser humano e seu papel no mundo como “imagem e semelhança” do Criador (Gn 1,26-27). O tema da deificação não é uma novidade teológica. Ele perpassa todo o percurso teológico, desde os primórdios da vida cristã. Embora seu vocábulo não seja bíblico, sua sistematização recorre à Sagrada Escritura e à linguagem do tempo em que sua reflexão foi-se construindo. Não nos deteremos no desenvolvimento histórico concernente a este tema, mas faremos um breve esboço de como ele se fez e se faz presente na teologia tanto oriental como ocidental. Desta última, apenas elucidaremos alguns autores que desenvolveram uma reflexão acerca da deificação. Segundo o teólogo espanhol Pedro Urbano López de Meneses15, com a palavra “theōsis” encontramo-nos situados no coração da antropologia oriental. O ser humano, conforme nos ensinam os Padres, adquire seu pleno sentido na vocação a ser filho de Deus, em Cristo. Ele foi criado com este fim e só o alcançará pela graça que é o Espírito de Deus. É o processo da configuração a Cristo que, pela vida no Espírito, nos remete ao Pai. Trata-se de !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! pregar a dignidade do laicato como “monaquismo interiorizado” (cf. CPR, p. 49). O tema do monaquismo interiorizado será desenvolvido no capítulo 3, item 3.3. 15 Pedro Urbano López de Meneses, no intuito de corroborar a perspectiva ecumênica, publicou uma obra sobre a doutrina da graça: Theosis, la doctrina de la divinización en las tradiciones cristianas: fundamentos para una teología ecuménica de la gracia. Este trabalho foi fruto de sua tese doutoral, na Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra. Pamplona: EUNSA, 2001. ! 26 uma vida divinizada segundo a ordem interna das pessoas divinas, porque o ser humano não vive para si, senão só em Deus e para Deus16. O que queremos dizer quando falamos de deificação do cristão pela graça de Deus? Na resposta a esta questão encontramos a parte mais importante da doutrina da theōsis, bem como o ponto de partida para desenvolver qualquer reflexão teológica sobre o ser humano. A partir do Evangelho encontramos diversas formas de matizar a vida em Cristo. O sentido das palavras é matizado de forma diversa em cada tradição: oriental, ocidental, protestante etc., porém, o sentido de deificação permanece o mesmo. Vejamos, brevemente, como se iniciou esta doutrina, como ela se desenvolveu ao longo da história, bem como sua pertinência para os nossos dias17. 2.1 Percurso histórico da doutrina da theōsis Faremos uma breve apresentação do percurso histórico da doutrina da theōsis para averiguar que não se trata de uma novidade, mas que esta doutrina se fez presente desde a concepção bíblica do ser humano (2.1.1). As raízes da doutrina da theōsis perpassam a filosofia grega (2.1.2), bem como o desenvolvimento teológico da patrística (2.1.3). A partir deste arrazoado, verificaremos o influxo da doutrina da theōsis na teologia ortodoxa contemporânea (2.1.4). 2.1.1 A theōsis do ser humano na Sagrada Escritura Não encontramos o termo theōsis na linguagem da Sagrada Escritura, pois esta se preocupa em preservar o absoluto da transcendência divina. Porém, encontramos temas que conotam este termo. No início da Bíblia, segundo seu cânone definido, deparamos com a afirmação de que tudo foi criado conforme sua espécie, plantações, répteis, seres vivos, !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 16 LÓPEZ DE MENESES, Pedro Urbano. Theosis, la doctrina de la divinización en las tradiciones cristianas: fundamentos para una teología ecuménica de la gracia. Pamplona: EUNSA, 2001, p. 16. 17 Seguiremos como base principal para o desenvolvimento desta parte histórica: DALMAIS, Irénée- H. Divinisation. In: VILLER, Marcel (Ed.). Dictionnaire de spiritualité: ascétique et mystique, doctrine et histoire. v. 3. Paris: Beauchesne, 1957. p. 1370-1460; LARCHET, Jean-Claude. La divinisation de l’homme selon Saint Maxime Le Confesseur. Paris: Cerf, 1996. E, além da parte histórica recorreremos à obra de LÓPEZ DE MENESES, mencionada na nota 18 deste capítulo. ! 27 contudo, do ser humano se diz que ele foi criado à imagem e semelhança do Criador (cf. Gn 1,11.21.24.26-27). Em sua criação, o ser humano, permanecendo criatura, é colocado numa relação diferente com o Criador. Conforme afirma o Apóstolo Paulo, somos da raça de Deus, pois é nele que vivemos, nos movemos e existimos (At 17,28-29). E o salmista afirma: “vós sois deuses” (Sl 81,6), então somos chamados a participar de sua natureza divina (2Pd 1,4). Outros temas expressam ainda a realidade da theōsis tais como a adoção filial (Dt 14,1; Sl 81,6; Rm 8,14-17; Gl 3,26; 4,4-7) e a imitação de Deus e do Filho, Jesus Cristo (Mt 5,44-48). Nós nascemos de Deus, afirma João em sua primeira carta, para sermos filhos de Deus e de fato o somos (cf. 1Jo 3,1). Percebemos, nestes termos, o começo de um novo modo de existência já na vida presente, mas que encontrará sua perfeita manifestação na visão de Deus (1Cor 13,12; 1Jo 3,2) e na participação em sua incorruptível imortalidade (cf. 1Cor 15,52-53). Ser salvo é ser santificado para participar na vida de Deus (cf. 2 Pd 1,4). A santidade pertence somente a Deus, mas Ele chama seu povo a ser santo como Ele o é (Lv 19,1). Jesus, que é o “santo de Deus” (Mc 1,24), o “santo servo” de Deus (At 4,27), dirige sua oração ao Pai que é santo (Jo 17,11)18. E isto implica em sermos transformados (2Cor 3,18) pela renovação de nossa mente, o nous (cf. Rm 12,2; Ef 4,23;), para nos conformarmos a Cristo (cf. Rm 8,29; 1Cor 2,16; Fl 2,15; Sl 139,17) em seu seguimento, pelo Espírito. O ser humano é então admitido numa íntima comunhão com Deus, através de Cristo e pelo poder do Espírito Santo. O ponto máximo desta união é a identificação com o Cristo (cf. Gl 2,20). Cada um desses temas terá, no pensamento cristão, seu desenvolvimento próprio e eles serão o fundamento da doutrina que mais tarde se chamará theōsis19. Este termo traduz o caráter único da promessa e da oferta divinas feitas ao ser humano. Embora o termo theōsis não apareça como linguagem bíblica, ele encontra, conforme vimos, um sólido fundamento na Sagrada Escritura20. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 18 MCPARTLAN, Paul. Santidade. In: Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Loyola; Paulinas, 2004. p. 1609. 19 DALMAIS, Irénée-H. Divinisation. In: VILLER, Marcel (Ed.). Dictionnaire de spiritualité: ascétique et mystique, doctrine et histoire. v. 3. Paris: Beauchesne, 1957. p. 1376. 20 LARCHET, Jean-Claude. La divinisation de l’homme selon Saint Maxime Le Confesseur. Paris: Cerf, 1996. p. 21. ! 28 2.1.2 Raízes da theōsis na filosofia grega No pensamento religioso dos gregos percebe-se que a poesia, a filosofia, a religião dos mistérios exprimem, cada uma a sua maneira, uma crença profunda de que “oser humano é da raça dos deuses, filho dos deuses”. Segundo López de Meneses, “O ser humano é um ser que tem que se completar progressivamente. A filosofia helenística não contempla o homem nessa evolução, como um ser autônomo, portador em si mesmo da meta a que aspira. O fim do ser humano, para a tradição grega, é necessariamente divino porque nele encerra-se certo elemento celeste que chama a uma definitiva integração com o divino. A meta última está fora do ser humano, está em Deus”21. Segue-se daí que a antropologia, em seu núcleo, na filosofia grega, é teocêntrica. Portanto, entender o telos do ser humano como uma progressiva assimilação em Deus, como deificação, já é a marca das tradições filosóficas helenísticas, que entram em relação com o pensamento dos Padres: platonismo médio, estoicismo, neoplatonismo. Platão considera que o filósofo alcança, pela contemplação, a semelhança divina, que consiste em participar, ontologicamente, das propriedades divinas. Enquanto que, para os estoicos, a semelhança com Deus tem valor ético e significa alcançar a tranquilidade de ânimo, a ausência de paixão. Para os neoplatônicos, a semelhança com Deus tem valor ontológico até o extremo de que assimilar-se ao divino quer dizer divinizar-se realmente, ou seja, retornar à divindade de onde brota o ser e alcançar a união com ela22. A deificação, na concepção filosófica, é um ideal de vida. Ela é vista como um esforço natural do próprio ser humano, sem nenhuma mediação à ação divina no ser humano, que o capacite a isso. Ao passo que, como veremos, na doutrina cristã a deificação é graça concedida por Deus, pela mediação do Verbo e do Espírito. Não suprime a liberdade humana, ao contrário, é pelas energias divinas e na resposta humana que se dá o processo de deificação do ser humano. Vejamos a seguir as raízes teológicas da theōsis do ser humano. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 21 LÓPEZ DE MENESES, Theosis, 2001, p. 34. 22 Ibid., p. 35. ! 29 2.1.3 As raízes teológicas da theōsis na patrística A herança filosófica da theōsis é reformulada pelos Padres, graças ao novo horizonte da experiência neotestamentária. O tema da divinização do ser humano ocupa um lugar essencial na teologia dos Padres gregos e, ao mesmo tempo, esclarece a concepção da humanidade própria ao Oriente cristão. Nos Padres Apostólicos (séc. I-II) não aparece o termo theōsis, mas sua noção se faz presente. Para eles, a doutrina da graça caracteriza-se pela centralidade do Espírito. A theōsis do ser humano não forma parte fundamental de sua doutrina da graça. Eles insistem, sobretudo, na incorruptibilidade e na imortalidade como efeitos da salvação23. Na patrística oriental posterior, o tema da theōsis do ser humano consolida-se como centro da doutrina da graça. Ela desempenha um papel importante na antropologia e na cristologia, assim como também na doutrina trinitária, e servirá de eixo ao redor do qual se justificará a divindade do Filho e do Espírito. Inácio de Antioquia (35-110) utiliza expressões mais características à theōsis ao escrever a seus correspondentes dizendo-lhes que eles são “portadores de Deus”, “portadores do Cristo”, “participantes de Deus” (SC 10, p. 66). Encontra-se em Inácio a mística da união imediata com o Cristo, e por Ele, com Deus, o Pai e o Espírito Santo. Portanto, não se trata de uma simples união moral, por imitação. Em muitos textos do bispo de Antioquia, encontramos o eco da palavra de Paulo quando ele afirma que “já não sou eu que vivo, é Cristo quem vive em mim” (Gl 2,20)24. Em Justino (100-165), a theōsis é expressa em diversos temas tais como: a imitação de Deus, a participação nas qualidades divinas e a filiação (PG 6, 341a). Ao comentar o Sl 81, Justino ressalta que o ser humano, tornado semelhante a Deus, é por isso impassível e imortal com Ele, portanto julgado digno de ser chamado filho de Deus (PG 6, 765b)25. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 23 LARCHET, La divinisation de l’homme, 1996, p. 24. 24 Ibid., p. 24. 25 Larchet é quem nos ofereceu estas duas referências à PG que se encontram neste parágrafo. In: LARCHET, La divinisation de l’homme, 1996, p. 25. ! 30 Inácio de Antioquia insistirá mais sobre a criação do ser humano à imagem de Deus. Segue a linha de Justino e não hesita em usar o vocábulo theōsis e, para isso, ele retoma a palavra do Apóstolo Paulo para dizer que somos da raça de Deus (At 17, 28-29). Para Irineu de Lyon (130-202), a theōsis é a progressiva participação na incorruptibilidade divina, fruto da recapitulação aberta pelo Verbo encarnado, pois “quem é Filho de Deus se faz filho do homem para que o homem receba a adoção e torne-se filho de Deus” (Adv. Haer. V, 8,1). Ele não cessa de repetir que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, ou melhor, do Verbo encarnado, por isso, chama a atenção ao crescimento espiritual a que o ser humano é impelido a adquirir. Neste sentido, citando o Sl 81,6 Irineu explica que “nós não fomos feitos deuses desde o começo, mas primeiro homens e somente em seguida deuses” (SC 100, p. 960-961). Segundo Irineu, a razão da encarnação é para que o ser humano, misturando-se ao Verbo recebesse assim a adoção filial, tornando-se filho de Deus (SC 211, p. 374-375). Desta forma, o Verbo recapitula em si a humanidade inteira unindo-a à divindade e restituindo-lhe a semelhança com Deus. Ele sublinha o papel do Espírito Santo na realização da divinização do ser humano, embora esta esteja centralizada no mistério da encarnação. É pelo Espírito que o ser humano recebe a semelhança com Deus. A visão de Irineu constitui já uma doutrina da theōsis e marcará profundamente o pensamento de muitos Padres dos séculos seguintes26. Clemente de Alexandria (150-215) segue nesta linha dando um sentido da autêntica gnose cristã: “O Verbo de Deus se fez homem, a fim de que tu, ainda que sejas um homem, entendas como um homem pode tornar-se Deus” (SC 2, 104). É destas concepções que Atanásio (293-373) tirará a pedra angular de sua defesa em favor da divindade do Filho e do Espírito, bem como se formulará o adágio que ficará consagrado nos Padres a respeito da theōsis do ser humano: “O Verbo se fez homem para que o homem se tornasse deus” (PG 25,192 b)27. Em Clemente de Alexandria, a theōsis encontra-se concebida como o termo de uma pedagogia exercida por meio dos sacramentos: “Batizados nós somos iluminados, iluminados nós somos adotados como filhos; adotados nós somos feitos perfeitos; tornados perfeitos, nós recebemos a imortalidade. ‘Eu disse: vós todos sois deuses e filhos do !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 26 LARCHET, La divinisation de l’homme, 1996, p. 28. 27 Mcpartlan é quem nos ofereceu esta referência, cf. DCrT, 2004, p. 1611. A mesma referência encontra-se na obra de Evdokimov: Ort, p. 78. ! 31 Altíssimo’” (SC 70, p. 158). É uma gnose, não como no platonismo, pois não é o resultado do esforço humano; mas cristã, pois é a graça que vem de Deus, pelo seu Filho que realiza este conhecimento pela união com Deus. Ela é fonte de vida, pois “não conhecer o Pai é a morte, ao passo que conhecê-lo é a vida eterna”28. Para Orígenes (185-254), a theōsis do ser humano funda-se na encarnação, pois ela é operada pelo Verbo, não somente a título de iluminador das inteligências, mas porque em sua Encarnação “a natureza divina e a natureza humana começaram a se unir estreitamente, a fim de que, por sua comunhão com aquele que é mais divino, a natureza humana torne-se divina, não somente em Jesus, mas também em todos aqueles que, com a fé, abraçaram avida que Jesus ensinou e que conduz à amizade e à comunhão com Deus” (Contra Celsum 3,28; SC 136, p. 68). Vê-se aí a importância do cumprimento dos mandamentos e da vida virtuosa como etapa da theōsis humana que se cumpre no mais alto grau da vida espiritual, a contemplação. Portanto, a deificação do ser humano resulta de uma participação (metokhē) na divindade de Deus, que é um dom do Verbo (PG 13, 217a). Deus permanece Deus e o ser humano, partícipe de sua natureza, sem fusão, nem confusão, pois este não se identifica com Deus, mas, por Cristo, se une a Ele29. Orígenes escreve que “o nous é deificado (qeopoiei=tai) na medida em que contempla” (PG 14, 817c), culminando assim, na visão de Deus. Neste sentido, tanto para Orígenes como para Clemente, a contemplação deificante da gnose cristã consiste na união do ser humano com Deus. Por isso, esta gnose não é pura especulação, conforme já lembramos, pois para estes Padres conhecer é se misturar e se unir. Esta leitura dos Padres da Igreja vê a doutrina da theōsis como uma renovação da imagem de Deus no ser humano e, ao mesmo tempo, uma restauração do conhecimento de Deus na humanidade do Verbo, perfeita imagem do Pai, pelo qual o ser humano foi criado (cf. Cl 1,15-16). Atanásio integra o aporte de Irineu, Clemente e Orígenes para desenvolver a doutrina da theōsis: “O Verbo se encarnou, sarx egeneto, para que o homem se faça receptor !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 28 DALMAIS, Divinisation, 1957, p. 1378. 29 LARCHET, La divinisation de l’homme, 1996, p. 31. Ressaltamos que as duas referências à PG que se encontram neste parágrafo foram extraídas desta obra, p. 30. ! 32 idôneo da divindade, dektikon theou” (PG 26, 273)30. Para ele, o Verbo, imagem perfeita do Pai, pelo qual Deus criara o ser humano, agora recria a humanidade restaurando nela a imagem autêntica. Só a verdadeira Imagem pode refazer a imagem que se aniquilou em nós31. Atanásio afirmará que, de fato, o Verbo era verdadeiro Deus e, ao assumir a carne, ele é também verdadeiro Homem, por isso, desta perfeita união, é possível a deificação do ser humano, pois o Verbo assumiu a humanidade em sua totalidade. Daí se segue que suas formulações evoquem a pericorese, que até então não havia aparecido. Atanásio estabelece um paralelo entre a consubstancialidade dos homens e aquela das pessoas da Trindade32. O papel do Espírito Santo é também evocado na deificação do ser humano na concepção de Atanásio. Ele deduz do princípio trinitário que a nossa participação em Deus é participação no Verbo, pelo Espírito. Por esta razão, o Espírito Santo deve ser também Deus. Portanto, em Atanásio a theōsis do ser humano é apresentada como um argumento em favor da divindade do Filho e do Espírito Santo33. Basílio de Cesareia (329-379) segue a esteira do pensamento de Atanásio e realça o papel deificante do Espírito Santo, reforçando o aspecto intelectualista da theōsis. Concebe o ser humano, reportando a Gregório Nazianzeno (330-390), como criatura de Deus chamada a ser um deus34. Basílio se mostra reservado no uso do vocábulo, não escriturístico, da theōsis, enquanto que, Gregório Nazianzeno o usa com predileção. Para ambos, o papel do Espírito Santo na divinização do ser humano é determinante. Para Gregório Nazianzeno, considerado pelos Padres, o Teólogo, a theōsis, assegurada pela encarnação redentora do Verbo, estabelece “uma segunda comunhão mais magnífica que a primeira” (PG 38, 322a)35, pois nós nascemos para a theōsis (SC 309, p. 292). Porém, para cumpri-la, o ser humano deve primeiro praticar as virtudes. A correspondência entre a encarnação e a divinização é expressa pelo Nazianzeno de forma radical, pois ele diz: “é então homem por causa de ti, que tu te tornas deus por causa d’Ele” (SC 358, p. 306). Como Basílio e Atanásio, Gregório toma a theōsis do ser humano como !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 30 López de Meneses é quem nos ofereceu esta referência em sua obra Theosis, 2001, p. 46. 31 SANTO ATANÁSIO. Contra os pagãos; A encarnação do Verbo; Apologia ao imperador Constâncio; Apologia de sua fuga; Vida e conduta de S. Antão. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2010, p. 143. 32 LARCHET, La divinisation de l’homme, 1996, p. 33. 33 Ibid., p. 3. 34 Ibid., p. 39. 35 Dalmais é quem nos ofereceu esta referência, cf. DAMAIS, Divinisation, 1957, p. 1382. ! 33 argumento em favor da divindade do Espírito Santo, visto que a deificação é realizada pela ação do Espírito Santo36. Gregório de Nissa (330-394) prefere o termo “imagem”, para falar da vocação do ser humano, ao termo “theōsis”, para não cair no panteísmo inerente ao neoplatonismo. Nós não somos emanação de Deus. Por isso, Gregório de Nissa marca bem a diferença entre Criador e criatura. Deus, o Criador, é imutável (atreptos) e o ser humano, criatura, está em contínua mudança (treptos). Somos distintos d’Ele (en tō hypokeiménō), “na origem e no modo de ser”, embora, participemos, pela graça, da vida divina, pois somos imagem de Deus37. Segundo Gregório de Nissa, é pela prática progressiva das virtudes que a união do batizado cresce até atingir o cume da contemplação, onde no êxtase, ele alcança, pelo Espírito, um conhecimento inefável de Deus (SC 1, p. 202-214). E, é na visão de Deus que o ser humano se torna participante da natureza divina. Para ele, é a carne deificada do Cristo, sua humanidade, que deifica cada hypóstasis humana. Por isso, o niceno ressaltará o papel dos sacramentos no processo de deificação do ser humano, sobretudo o da Eucaristia. O sacramento da Eucaristia é central em João Crisóstomo (347-407), que o desenvolve segundo o tema da filiação adotiva. Cirilo de Alexandria (378-444) assimila a contribuição dos Capadócios e a integra em uma teologia mais ampla da theōsis no desenvolvimento da teologia sacramentária assinalada em Gregório de Nissa e em João Crisóstomo. Cirilo acentua o valor da eucaristia no processo da theōsis progressiva do cristão. Neste sentido, a carne do Cristo, deificada pela sua união com o Verbo, torna-se, por sua vez, instrumento da theōsis para a nossa carne. Cirilo apresenta a divinização como finalidade da encarnação: o Verbo “se fez o que nós somos a fim de nos tornar participantes do que Ele é” (SC 97, p. 328). Em Cirilo, conforme ressalta o teólogo e filósofo Jean-Claude Larchet38, o tema da filiação é largamente desenvolvido: unindo-se à natureza humana, o Verbo a introduz no parentesco divino. Irmãos do Cristo, nós somos associados a seus privilégios. Esta associação supõe uma união ao Cristo pela fé e pelos sacramentos. Pelo batismo, no qual recebemos o !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 36 Ibid., p. 42. 37 GRÉGOIRE DE NYSSA. La création de l´homme. Trad. Jean Laplace. Paris: Cerf, 1943. (Sources Chrétiennes, 6) p. 44. 38 LARCHET, La divinisation de l’homme, 1996, p. 47s. ! 34 dom do Espírito Santo e nos tornamos templos de Deus, inicia-se nosso processo de deificação. Cirilo desenvolve ainda o tema da inhabitação do Verbo, pelo Espírito em nós, associado ao tema da adoção filial. Para ele, nossa divinização pode realizar-se já nesta vida, mas ela atingirá sua perfeição após a ressurreição. Portanto, pode-se dizer que com Cirilo de Alexandria, a teologia da theōsis atinge seu pleno desenvolvimento. No início do séc. VI percebe-se que Pseudo Dionísio substitui a palavra theōsis por theopoiēsis. Sua doutrina segue o essencial das linhas tradicionais, mas num estilo que entrelaça os aspectos especificamente cristãos. A theōsis integra-se no esquema neoplatônico do retorno a Deus. Ela identifica-se com a assimilação
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