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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA GLAUBER ATAIDE O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE, DE GEORG LUKÁCS Belo Horizonte 2020 2 GLAUBER ATAIDE O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE, DE GEORG LUKÁCS UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Orientador: Prof. Dr. Verlaine Freitas. Belo Horizonte 2020 3 4 5 Dedico essa dissertação à Geisa. 6 AGRADECIMENTOS À minha esposa e filhos, por compreenderem a presença-ausente que a confecção de uma dissertação requer. Tive que passar muitas e longas horas isolado em meu escritório, tal qual um Gregor Samsa alienado de todo convívio social. À minha professora de história do ensino médio que me emprestou, sem eu pedir, o Manifesto do partido comunista, de Marx e Engels. Talvez ela nunca leia isso e não saiba como influenciou parte de quem sou hoje. Aos diversos camaradas de lutas sociais, com quem muito aprendi tanto na teoria, quanto na prática. Combatemos juntos aos humilhados e ofendidos desta terra, juntos ao que não possuem casa, aos que não possuem emprego e também àqueles que, mesmo trabalhando, mal conseguem sobreviver com seu salário. Ao povo humilde, por me ensinarem a virtude da coragem ao realizar ocupações por moradias, a virtude da rebeldia ao cruzar os braços e realizar greves, e a virtude da solidariedade e do espírito comunitário ao se apoiarem mutuamente. Estes são os que mais sentem os efeitos da reificação e protestam contra ela. Aos companheiros de diretoria do sindicato, pelas lições e companhia em (quase) três gestões consecutivas, e em especial à Rosane Cordeiro. Sem sua intervenção eu não poderia, como proletário que sou, ter assistido às aulas da pós- graduação na UFMG, que acontecem apenas no período da tarde. Ao meu orientador, Verlaine Freitas, por ter me acompanhado desde o TCC, passando pela iniciação cientifica, chegando até ao mestrado. Aos colegas Veronica Campos e Rodrigo Pithon. Também ao Guilherme Malta, pelo companheirismo e pelas longas conversas sobre o idealismo alemão; ao Felipe Torres, pela ansiedade que compartilhamos para passar neste concurso de mestrado, e à Regina Sanches, que me deu muitas dicas sobre como chegar até aqui. 7 RESUMO Neste trabalho investigaremos inicialmente as categorias de totalidade e mediação, através das quais Lukács pensa todo o problema da reificação. Em segundo lugar, analisaremos a unidade mínima, nuclear, da qual se desdobra a estrutura da consciência reificada: a mercadoria. Na sequência, veremos de que maneira a troca de mercadorias, como forma dominante de intercâmbio entre os homens, afeta toda a estrutura de consciência, de modo a tornar o proletariado um híbrido bizarro de humano e inumano, a chamada “mercadoria consciente de si”. Por último, investigaremos como o proletariado, sendo o sujeito-objeto idêntico do processo histórico, pode superar o fenômeno da reificação através de uma práxis transformadora da realidade social. Palavras-chave: reificação, marxismo, idealismo alemão 8 ABSTRACT In this work we will initially investigate the category of totality, through which Lukács articulates the problem of reification. After that we will analyze the smallest and nuclear unit from which the structure of reification unfolds itself: the commodity. Next we will show how the commodity exchange, as the main form of interchange between human beings, affects the whole structure of their consciousness in such a way that it turns the proletarian into a bizarre hybrid of human and non-human, the so called “commodity conscious of itself”. Lastly, we will investigate how the proletariat, being the identical subject-object of the historical process, might overcome reification through a transforming praxis on the social reality. Keywords: reification, marxism, german idealism 9 ÍNDICE Introdução...................................................................................................... 10 Capítulo 1. As categoria de totalidade e mediação ....................................... 13 1.1 A perda da totalidade ............................................................................. 13 1.2 A totalidade em Kant ............................................................................. 15 1.3 A totalidade de Hegel a Marx ................................................................. 18 1.4 Totalidade e práxis ................................................................................. 27 1.5 A mediação ............................................................................................ 28 Capítulo 2. O núcleo originário da reificação ............................................... 34 2.1 O fetichismo da mercadoria ................................................................... 36 2.2 O fetichismo em Marx ........................................................................... 37 2.3 O fetichismo em Lukács ......................................................................... 42 2.4 Manifestações do fetichismo .................................................................. 46 Capítulo 3. A mercadoria consciente de si .................................................... 50 3.1 As classes sociais no marxismo .............................................................. 52 3.2 O desenvolvimento da consciência proletária ......................................... 61 Capítulo 4. O proletariado como sujeito-objeto idêntico ............................. 65 4.1 A constituição do sujeito histórico em Hegel .......................................... 65 4.2 O sujeito-objeto idêntico se efetiva na história ....................................... 74 4.3 As antinomias do pensamento burguês ................................................... 78 4.4 O primado da filosofia prática ................................................................ 82 4.5 Superação da reificação? ........................................................................ 87 Considerações finais ...................................................................................... 93 Referências ................................................................................................... 100 10 INTRODUÇÃO A reificação (Verdinglichung) é “a realidade imediata e necessária para todo homem que vive no capitalismo”1. Segundo Feenberg2, ela é uma forma de objetividade, e se refere à máscara conceitual que o mundo social assume na era burguesa ao se tentar compreendê-lo através de categorias racionais formais. Honneth3 resume o conceito, em sua forma mais básica, como um processo cognitivo através do qual algo que em si não possui propriedades de coisa — como, por exemplo, relações humanas — passa a ser visto como tal. O termo se origina, etimologicamente, do substantivo alemão Ding, que significa “coisa”. O prefixo ver- indica aqui um movimento de transformação, de modo que o verbo verdinglichen significa “coisificar”, e em sua forma substantivada — Verdinglichung —, “coisificação”. Em vários idiomas, como português, inglês, francês e espanhol, predomina a forma latina do termo,a partir do radical res, que tem o mesmo significado que Ding. Daí a tradução de Verdinglichung, nestas línguas, respectivamente como “reificação”, “reification”, “réification” e “reificación”. A forma acabada do conceito surgiu no contexto de uma crítica à ciência e à filosofia alemã no fim do século XIX e início do século XX. Este foi um período de rápido crescimento industrial, acompanhado pelo surgimento de uma ideologia cientificista que atingiu até mesmo a interpretação da obra de Marx dentro do movimento comunista internacional.4 História e consciência de classe, a obra de Lukács na qual ele publicou, pela primeira vez, o tema desta dissertação, polemiza contra tal tendência. A principal categoria filosófica utilizada anteriormente para tratar dos fenômenos que a reificação visa explicar era a alienação. Tratar deste tema sem relacioná-lo às suas determinações ou fundamentos sociais era parte do Zeitgeist5. Karl Marx, todavia, representa um ponto de ruptura. Mesmo abordando o tema de maneira breve ou marginal, apontou a relação dialética existente entre a base econômica e os 1 HCC, p. 391. 2 FEENBERG, 2011, p. 179. 3 HONNETH, 2005, p. 19. 4 FEENBERG, 2015, p. 492. 5 BLUMENTRITT, 1988. 11 fundamentos do conhecimento, entre a forma da mercadoria e a forma do pensamento. A alienação não era apenas uma categoria psicológica, mas uma categoria do real.6 Já no século XX, ao desenvolver este conceito em maior profundidade, Lukács também manterá este fundamento real — a estrutura da mercadoria — como ponto de partida de sua análise, investigando, daí em diante, os principais desdobramentos que a troca de mercadorias como forma generalizada de intercâmbio entre os homens imprime sobre a estrutura da consciência. O desenvolvimento da filosofia clássica alemã e da ciência moderna é analisado por Lukács também neste sentido, como desdobramento de uma estrutura de consciência já reificada. No caso da filosofia, essa estrutura se constitui como o limite intransponível das chamadas “antinomias do pensamento burguês”, cuja solução será buscada em uma prática pelo idealismo alemão. A trajetória intelectual de Lukács reproduziu, em um microcosmo, o percurso da própria filosofia alemã. Ele passou, inicialmente, por um ciclo de transição de Kant a Hegel — o chamado período de Heidelberg —, que foi seguido pela fase na qual ele caminha de Hegel a Marx. História e consciência de classe é uma obra deste segundo período, e por isso ele a chamou de “meu caminho para Marx”.7 Embora tendências aparentemente conflitantes possam coexistir lado a lado em um período de mudanças, Lukács enxerga uma linha de continuidade neste processo: a ética “impele à prática, ao ato e, assim, à política. Esta, por sua vez, impele à economia, o que leva a um aprofundamento teórico e, por fim, à filosofia do marxismo.”8 Por isso Lukács também caminha no sentido de buscar a superação das chamadas antinomias da razão — ou, mais exatamente, de sua causa originária, a reificação — em uma prática e, mais especificamente, na práxis do proletariado, o qual se constitui como o sujeito-objeto idêntico do processo histórico. Tanto esta práxis quanto este sujeito seriam, para o filósofo húngaro, a realização do programa inconcluso da filosofia clássica alemã, o qual se articularia em três pontos: 1) o princípio da prática, 2) o método dialético e 3) a história como realidade.9 Em nossa pesquisa buscamos compreender como Lukács articulou o conceito de reificação, demonstrando quais foram suas fontes, quais os conceitos auxiliares 6 LOTZ, 2013, p. 185. 7 HCC, p. 1. 8 HCC, p. 5. 9 FEENBERG, 2011, p. 186. 12 utilizados e quais os passos de sua reflexão. O olhar de nosso estudo se direciona, portanto, de Lukács para trás, não para frente.10 Em que pese a enorme influência do conceito de reificação para o surgimento do chamado marxismo ocidental e também da Escola de Frankfurt, nosso recorte não comporta estes desdobramentos. Refazer o percurso intelectual de Lukács revela-se uma tarefa complexa, instigante e enriquecedora, que possibilita compreender melhor não apenas os destinos de seu conceito, mas também sua atualidade. Ao discutirmos o conceito de totalidade no primeiro capítulo, nossa análise também se concentrará apenas em História e consciência de classe, deixando de lado tanto obras anteriores, como A teoria do romance (1916), quanto posteriores, como A particularidade do estético (1964) e Ontologia do ser social (1964-1971), nas quais o conceito também é discutido. A obra principal que estudamos neste trabalho, História e consciência de classe, aparece abreviada como HCC. Utilizamos principalmente a tradução brasileira de Rodnei Nascimento, mas sempre cotejando com o texto original, Geschichte und Klassenbewußtsein. As contribuições de comentadores em alemão, inglês e francês foram traduzidas por nós e incorporadas diretamente no corpo do texto. 10 Utilizamos também obras do próprio Lukács posteriores a HCC, redigidas pouco após a publicação desta obra e antes de sua ruptura conceitual com a mesma. 13 CAPÍTULO 1. AS CATEGORIA DE TOTALIDADE E MEDIAÇÃO A análise do conceito de reificação na obra de Lukács pressupõe um exame da categoria de totalidade.11 O surgimento deste fenômeno pode ser considerado, de certa forma, como uma perda da visão da totalidade12, e o seu desaparecimento, ou a desreificação, só pode se dar através de uma práxis específica também articulada a ela. Segundo Lukács, a totalidade é “um problema categorial e, mais precisamente, um problema da ação transformadora”13, sendo um elo entre a dialética e a reificação, seu horizonte metodológico e objeto de resolução.14 Em um prefácio de 1967 a História e consciência de classe, Lukács afirma que nesta obra a totalidade ocupou o centro do sistema, tendo mais importância que o próprio fator econômico. Isso aparece de maneira explícita em Rosa Luxemburgo como marxista, o segundo artigo de História e consciência de classe: “Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.”15 1.1 A perda da totalidade Considerada por Lukács um fator chave para o surgimento da reificação na sociedade capitalista, a perda da totalidade teve como base concreta a especialização do trabalho.16 A necessidade humana de apreender a totalidade nos leva a pensar que a própria ciência teria “despedaçado a totalidade da realidade”, isso é, perdido o sentido da totalidade justamente por força da especialização, pois, desde a era moderna, investiga fatias cada vez menores do real, de maneira cada vez mais vertical e profunda, de modo que quanto mais uma ciência progride, mais ela volta as costas aos problemas ontológicos. 11 CHARBONNIER, 1998, p. 31 12 CHARBONNIER, 1998, p. 20 13 HCC 392. 14 CHARBONNIER, 1998, p. 31 15 HCC 105 16 HCC 228 14 Segundo Lukács, esta perda progressiva da totalidade se manifestou também na história da filosofia moderna. A sociedade burguesa, ao mesmo tempo em que, com o desenvolvimento da ciência, dominava cada vez mais os detalhes de sua existência social, perdia a “possibilidade de dominar intelectualmente a sociedade enquanto totalidade.”17 A filosofia clássica alemã, em seu esforço para dominar a totalidade do mundo como autoprodução do sujeito do conhecimento, baseada na concepção de o pensamento ser capaz de compreender apenas o que ele mesmo produziu, “esbarrou contra a barreira intransponível do dado, da coisa em si. Se não quisesse renunciar à apreensão da totalidade, deveria tomar o caminho da interioridade.”18 A consequência inevitável deste princípio foi considerar possível a apreensão da totalidade através da arte. A partir da Crítica da faculdade do juízo, de Kant, surge na filosofia críticaalemã uma nova concepção de natureza, determinante do ser humano autêntico, em sua real essência, liberado das formas sociais falsas e mecanizantes, enquanto totalidade acabada, em que liberdade e necessidade coincidem.19 A importância sem precedentes da estética e da filosofia da arte para uma concepção total de mundo, a partir do século XVIII, não se deveria ao florescimento artístico, mas sim à função “teórica, sistemática e ideológica que o princípio da arte assume neste momento.”20 A realização da totalidade na arte foi uma tentativa de resolver de forma concreta as antinomias insolúveis no plano teórico. Uma ciência que tente unificar todos os campos do saber através da filosofia não pode alcançar a coesão do todo, à qual as ciências particulares “renunciaram conscientemente ao se distanciarem do substrato material do seu aparato conceitual.”21 Isso não seria possível por meio da filosofia que ainda não rompeu com a barreira do formalismo mergulhado na fragmentação e que tente, de maneira acidental, costurar os campos do saber considerados totalmente independentes uns dos outros, fechados em si mesmos e regidos por leis internas próprias. Para alcançar tal coesão seria necessária uma orientação radicalmente diferente, revelando “os fundamentos, a gênese e a necessidade desse formalismo”22, de modo a não ligar mecanicamente as ciências particulares, mas sim remodelá-las interiormente por um método filosófico capaz dessa 17 HCC 259 18 HCC 260 19 HCC 286 20 HCC 287 21 HCC 238 22 HCC 238 15 unificação. Isso somente é realizável fora do campo da filosofia burguesa, não pelo fato de inexistir um desejo de tal síntese, mas por isso ser impossível no terreno da sociedade capitalista.23 A história tem demonstrado que a filosofia continua apresentando como tendência fundamental “reconhecer os resultados e os métodos das ciências particulares como necessários [...], e atribuir à filosofia a tarefa de desvendar e justificar a base da validade dos conceitos assim formados.”24 Correntes filosóficas episódicas, como as que tentam abarcar todo o saber de maneira enciclopédica, ou que suspeitam do valor do conhecimento formal em relação à “vida viva” (como é o caso das filosofias irracionalistas), são exceções que apenas confirmam a regra. A atitude da filosofia em relação às ciências particulares é a mesma dessas em relação à realidade empírica. A conceituação formalista das ciências particulares torna-se, para a filosofia, um “substrato imutavelmente dado.”25 1.2 A totalidade em Kant A crítica de Lukács a Kant se dá no contexto de sua análise do formalismo na filosofia. Segundo Martin Jay26, foi a categoria de totalidade que permitiu a Lukács investigar e criticar as chamadas “antinomias do pensamento burguês” e uma de suas principais contradições: entre forma e conteúdo, característica do filósofo de Königsberg. A fonte dessas antinomias, de maneira geral, repousa na natureza contraditória da própria existência burguesa, e por isso o exame de Lukács, de perspectiva contextualista (considerando o marxismo uma forma de contextualismo), tem como ponto de partida o período de consolidação da burguesia enquanto classe social dominante, justamente quando Kant redigiu suas três críticas. Desenvolvendo a discussão de Marx sobre o fetichismo da mercadoria em O capital e valendo-se de contribuições de Bergson, Simmel e Weber, Lukács introduziu o conceito de reificação para “caracterizar a experiência fundamental da sociedade burguesa.” Este termo, Verdinglichung, não encontrado nas obras de Marx, significa “a 23 HCC 238 24 HCC 238 25 HCC 239 26 JAY, 1984, p. 109. 16 petrificação de processos vivos em coisas mortas, as quais aparecem como uma ‘segunda natureza’.”27 Segundo Charbonnier28, a totalidade é uma exigência prática da razão. Uma exigência “método-lógica” (méthodo-logique), pois a razão, como faculdade, visa compreender a realidade através de sua apropriação tanto sincrônica quanto diacrônica. Diante da crescente pulverização dos campos investigativos da realidade em setores cada vez mais autônomos, aumenta o tensionamento entre a apropriação da realidade (produzindo a cada dia mais questões e problemas) e a disponibilidade real de resultados (geralmente muito parciais). Faltaria uma articulação global dos diferentes campos de investigação do real, pois se as segmentações são, por um lado, cômodas, elas não têm, por outro, vocação à substancialidade. A totalidade, contudo, não pode ser compreendida em ato, como um objeto, capaz de produzir um conceito. Ela deve ser compreendida dialeticamente, ligando o pensamento à ação.29 Maurice Merleau-Ponty30 também argumenta neste sentido, afirmando que a totalidade em Lukács não é uma totalidade metafísica, do absoluto, de todos os seres possíveis e atuais, mas uma “totalidade da empiria”, a “reunião coerente de todos os fatos que conhecemos”: Quando o sujeito se reconhece na história e reconhece a história nele mesmo, não domina o todo como o filósofo hegeliano, mas está ao menos empenhado numa tarefa de totalização, sabe que para nós nenhum fato histórico adquirirá todo o seu sentido a menos que tenha sido ligado a todos aqueles que podemos conhecer, tenha sido inserido, a título de momento, numa única empresa que os reúne, inscrito numa história vertical, registro das tentativas que tinham um sentido, de suas implicações, de suas sequências concebíveis. Esta “totalidade da empiria” de que fala Merleau-Ponty, vale ressaltar, não significa abarcar todos os fatos materiais ou sociais, não é uma mera inversão de sinal da totalidade buscada pelo pensamento metafísico: “não podemos considerar um método como totalizante se ele trata do conteúdo de ‘todos os problemas’ (o que, evidentemente, é impossível)”.31 Centrais não apenas para o conceito de reificação, mas 27 JAY, loc. cit. 28 CHARBONNIER, 1998, p. 5. 29 Ibid., p. 6. 30 MERLEAU-PONTY, 2006, p. 33. 31 HCC 392 17 para a própria obra de Marx32, “a categoria de totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx recebeu de Hegel”, de modo que não seria, portanto, “o predomínio de motivos econômicos na explicação da história” o que distinguiria “de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.”33 Essa categoria constitui o princípio revolucionário não apenas na sociedade, mas também na ciência.34 No que diz respeito à transformação social, a totalidade é portadora de seu princípio revolucionário, pois determina o ponto de partida e de chegada do método dialético, seu pressuposto e suas exigências. Sem a categoria de totalidade, a revolução social passa a ser vista como um ato isolado, sem conexão com a evolução social, de modo que o aspecto revolucionário do marxismo se perde, passando a ser visto como uma recaída nas revoltas operárias primitivas ou no blanquismo.35 Outro aspecto que configura a totalidade como portadora do princípio revolucionário na ciência é que esta surge, na leitura de Marx, de uma necessidade ontológica objetiva do real. Daí a necessidade de forjar ferramentas categoriais capazes de apreender a pluralidade do real em múltiplos níveis ontológicos ou de objetividade. A categoria de totalidade tem como função e objeto precisamente a articulação dialética desta pluralidade.36 A abordagem marxiana difere qualitativamente daquela da tradição kantiana. Na Crítica da razão pura a categoria de totalidade é desenvolvida como um conceito puro do entendimento e aparece subsumida à classe de “quantidade” na “Tabela das categorias”. Lukács afirma que a dialética transcendental “gira sempre em torno da questão da totalidade”. “Deus” e “alma”, por exemplo, seriam apenas “expressões mitológicas para o sujeito unitário, ou, para o objeto unitário, da totalidade dos objetosdo conhecimento, pensado como acabado (e completamente conhecido).”37 A 32 HCC 20 33 No prefácio de 1967 a História e consciência de classe, em meio a diversas autocríticas sobre o seu trabalho lançado quatro décadas antes, Lukács ainda reconhecia, embora com algumas ressalvas, que um dos méritos desta sua obra foi “ter restituído à categoria de totalidade [...] a posição metodológica central que sempre ocupou nas obras de Marx” (HCC 21). 34 HCC 106 35 HCC 109. O blanquismo foi uma corrente de esquerda formada a partir das doutrinas do revolucionário francês Louis Auguste Blanqui. Os blanquistas acreditavam que a revolução seria obra apenas de um pequeno e seleto grupo de revolucionários, e que somente após a tomada do poder através de um Putsch, ou golpe, o povo seria envolvido. 36 CHARBONNIER, 1998, p. 28. 37 HCC 248 18 totalidade, em Kant, é uma categoria extensiva (quantitativa), e se aproxima da figura matemática da exaustão, sendo impossível conhecê-la. Uma das funções da coisa em si é limitadora justamente neste sentido, e expressa a “impossibilidade de apreender a totalidade a partir dos conceitos formados nos sistemas racionais parciais.”38 Já em Hegel, Marx e Engels, o acento recai sobre a dimensão intrinsecamente qualitativa da totalidade. Segundo Charbonnier39, ela é também uma categoria intensiva, propriamente ontológica, pois é dentro de uma totalidade que o conhecimento dos atos se torna possível enquanto conhecimento da realidade. Kant tentou, com a Crítica da razão prática, saltar rumo a uma práxis que não havia sido encontrada unicamente pela razão pura teórica. Sua solução permaneceu, no entanto, ainda formal e abstrata. A categoria de totalidade não desempenhou nenhum papel neste esforço de articulação entre teoria e práxis, o que viria a ser alcançado em Marx com a mediação de Hegel. 1.3 A totalidade de Hegel a Marx Hegel já havia afirmado que “a verdade é o todo”, ressaltando, com isso, o aspecto contraditório e histórico da realidade40. Por ser contraditória, ela não pode ser reduzida a nenhuma de suas partes e, por ser histórica, não se confunde com os seus diversos momentos. Desde Heráclito, o pensamento dialético confere prioridade ontológica do todo sobre as partes, “como uma característica própria da realidade, como realidade ‘mais real’ do que as partes que a integram”41. A totalidade em Hegel é dividida, fragmentada devido a sucessivas alienações do Espírito. O Espírito Absoluto, ao final do processo de alienação (Entfremdung), se reconcilia em uma totalidade harmoniosa em que as partes então se reconhecem em sua racionalidade como pertencentes ao todo. A falta de clareza dos escritos de Hegel, porém, permitiu uma leitura ora idealista, ora materialista, com as categorias derivando por vezes do pensamento e, em outras, da realidade42. 38 HCC 250 39 CHARBONNIER, 1998, p. 29. 40 FREDERICO, 1997, p. 39. 41 Ibid., p. 39. 42 Ibid., loc. cit. 19 Marx toma Hegel como ponto de partida43 mas, em lugar das peripécias do Espírito, tem-se agora a saga da vida social dos homens. O homem torna-se um ser ativo, desprendendo-se da natureza através do trabalho e fazendo dela o seu objeto. O mundo social também se torna um produto da atividade humana, reafirmando-se, com isso, uma visão monista e o primado da totalidade44. A história mundial, para Marx, era decifrável apenas quando suas interligações totalizantes surgiam objetivamente das condições do desenvolvimento e da concorrência capitalistas espalhadas por todo o globo. O capitalismo gerou um mundo à sua imagem e semelhança, destruindo a exclusividade natural anterior das nações individualizadas45. Foi somente com Marx que a categoria de totalidade, que se constitui na essência do método dialético para Lukács, se tornou de fato uma “álgebra da revolução”. Isso não ocorreu através de uma simples inversão materialista de Hegel, mas justamente porque a categoria de totalidade, isso é, “a consideração de todos os fenômenos parciais como elemento do todo, do processo dialético, que é apreendido na unidade do pensamento e da história”, foi mantido nessa inversão46. Isso se manifesta na forma como Marx articula a relação totalizante entre sujeito e objeto na tomada dos meios de produção pelo proletariado. Sendo o objeto, isso é, as forças produtivas, uma totalidade que existe apenas dentro de um intercâmbio universal, e sendo sua apropriação o desenvolvimento das capacidades individuais que correspondem aos instrumentos materiais de produção, apenas o proletariado poderia delas se apropriar. A apropriação de um objeto total pode se dar apenas por um sujeito também total47. Enquanto a ciência burguesa atribui ou “realidade”, com um realismo ingênuo, ou uma autonomia “crítica” àquelas abstrações que, por um lado, resultam de uma separação dos objetos de investigação, e por outro, de uma divisão do trabalho e 43 De acordo com Lukács, Marx nunca abandonou o método filosófico de Hegel, isso é, a posição dominante do conceito de totalidade. Mesmo a polêmica de Marx contra a visão “idealista” da história se dirigia muito mais aos discípulos de Hegel do que ao próprio mestre. A identidade hegeliana dialética de pensamento e ser, a concepção de sua unidade como unidade e totalidade de um processo também constitui a essência da filosofia da história do materialismo histórico (HCC 116). 44 FREDERICO, 1997, p. 39. 45 BOTTOMORE et al, 1983, p. 381. 46 HCC 106 47 BOTTOMORE et al, 1983, p. 381. 20 especialização, o marxismo supera (aufhebt) essas separações, tornando-as momentos dialéticos48. Um exemplo pode ser encontrado quando Marx critica a economia política inglesa como expressão da divisão do trabalho, do pensamento alienado. Marx exigia, pelo contrário, a reprodução conceitual do todo ao invés de conhecimentos parcelares que apenas reproduzem o esfacelamento do mundo burguês. A sociedade capitalista é totalidade viva e articulada, e não pode ser compreendida “pelas visões parciais do economista, do sociólogo, do historiador, etc.”.49 De acordo com Lukács50, neste isolamento das ciências em campos de pesquisa específicos, neste fatiamento artificial da realidade, o que importa é saber se este movimento é apenas um meio para o conhecimento do todo, sendo integrado “no contexto correto de conjunto que ele pressupõe e ao qual apela”, ou se conhecimento parcial e abstrato permanece isolado e um fim em si mesmo. É por essa razão que para o marxismo, não há áreas ou campos do saber isolados, como uma ciência jurídica, uma economia política ou uma história autônomas, por exemplo, mas apenas uma única “ciência histórico-dialética, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como totalidade”. Não apenas o objeto do conhecimento é determinado pelo ponto de vista da totalidade, mas também o próprio sujeito. Os fenômenos sociais são considerados pelas ciências burguesas sempre a partir do ponto de vista do indivíduo isolado, mas este ponto de vista é incapaz de abranger os fenômenos em um todo integrado. Ele pode, quando muito, levar a aspectos de um domínio parcial, mas quase sempre a algo apenas fragmentário, a fatos desconexos ou a leis parciais abstratas. A totalidade, para Lukács51, “só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar o objeto como totalidade.” Por essa razão, apenas as classes sociais, e não os indivíduos isolados, podem representar este ponto de vista na sociedade moderna. Esta perspectiva se apresenta também na obra de Marx através de sua concepção de que a superestrutura não tem história, isso é, que ela não possui uma história autônoma, independente, movida por leis próprias. Desta maneira, as artes, o direito e a 48 HCC 106 49 FREDERICO, 1997, p. 40. 50 HCC 107 51 HCC 107 21 religião,por exemplo, não se desenvolvem sozinhos, movidos por leis internas, mas expressam o movimento geral da sociedade52. A totalidade concreta é a reprodução conceitual da realidade, não sendo simplesmente um dado imediato para o pensamento53. Segundo Marx, “o concreto é concreto porque é uma síntese de muitos determinantes particulares, isso é, uma unidade de elementos diversos”54. Essa reprodução intelectual da totalidade, todavia, ainda não é a própria estrutura do real: “No pensamento, o concreto aparece como processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora ele seja o real ponto de partida e, por isso, também o ponto de partida da intuição e da representação”55. Esta reprodução da realidade não deve se confundir com sua própria construção. O conceito de totalidade, embora pareça colocar uma grande distância entre si e a realidade e reproduzi-la de maneira “não científica”, é a única categoria capaz de compreendê-la56. O concreto, no entanto, não pode ser encontrado, como pensa a ciência burguesa, no indivíduo empírico e histórico, quer se trate de uma pessoa, de uma classe ou mesmo de um povo. Quando pensa ter encontrado aí o mais concreto, é quando ela está mais longe dele: a sociedade como totalidade efetiva, isso é, “a organização da produção num determinado nível do desenvolvimento social e a divisão de classes que opera na sociedade”57. Ao não apreender o real dessa maneira, a ciência burguesa apreende como concreto algo de completamente abstrato. Este só pode aparecer na relação com a sociedade enquanto totalidade. Todo conhecimento da realidade é, antes de tudo, conhecimento de uma realidade determinada historicamente, espacialmente, etc., podendo ser decomposto em dois movimentos sucessivos: analítico e sintético. A partir da percepção de um concreto obtemos, analiticamente e partindo das entidades abstratas, as determinações mais simples; neste estado, então, é necessário fazer o caminho de volta, retornando sinteticamente ao concreto de onde se partiu. Este concreto, agora, não é mais o mesmo, mas está qualitativamente superior, sendo não mais apenas um concreto percebido, uma 52 FREDERICO, 1997, p. 40. 53 HCC 76 54 MARX, 1961, p. 632. 55 Ibid., loc. cit. 56 HCC 78 57 HCC 140 22 representação caótica de um todo, mas um concreto pensado, uma totalidade rica de múltiplas determinações e relações58. O conhecimento é um processo genético de reconstrução da totalidade real em uma totalidade pensada. A concepção marxiana da totalidade enquanto realidade pensada, enquanto concreto de pensamento, é um produto do ato de pensar, do conceber. O todo pensado, tal como aparece no espírito, é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível, mas de um modo que difere da apropriação espiritual do mundo artístico, religioso ou prático59. É importante notar que tal concepção de apropriação do real, como encontrada em Marx, é muito mais elaborada que a chamada “teoria do reflexo”, a qual seria uma simples duplicação do real no espírito, haja vista que esta totalidade concreta não é simplesmente dada ao pensamento. Dessa maneira, qualquer totalidade é necessariamente dialética, unidade da diversidade e diversidade da unidade60. Para Lukács, a totalidade é o verdadeiro ponto de partida para compreender, seja na vida social ou econômica, todas as partes. O momento particular não é uma parcela de uma totalidade mecânica que pode ser composta a partir de tais parcelas. Cada momento tem em si a possibilidade de desenvolver, a partir de si, toda a riqueza do conteúdo da totalidade, de modo que dentro de uma totalidade dialética, os momentos particulares carregam em si a estrutura da totalidade61. O benefício teórico da totalidade é imenso, seja de um ponto de vista global, da teoria do conhecimento, seja de um ponto de vista mais específico, para uma compreensão da evolução do modo de produção capitalista. “A fecundidade da totalidade se atesta precisamente em sua capacidade metodológica de pensar a realidade na abundante multiplicidade de suas facetas”62. Ela permite pensar a diversidade na unidade, sem isolar (hipostasiar) cada um de seus momentos. Ela também torna possível ligar, conectar dialeticamente o que pode parecer num primeiro momento desprovido de relação imediata, mas não se tornando um mero ajuntamento sem princípios. A dialética não é nem eclética, nem uma soma. 58 MARX, 1961, p. 632. 59 Ibid., loc. cit. 60 Ibid., p. 30. 61 Ibid., loc. cit. 62 Ibid., loc. cit. 23 A inovação de Lukács63 consiste em que, graças à totalidade, ele analisa a íntima conexão entre o fenômeno da reificação, que caracteriza o capitalismo de sua época, e uma metodologia científica que, participante desta reificação, a redobra. Isso lhe permite não apenas compreender a unidade dialética das contradições da sociedade burguesa e de seu modo de produção capitalista, mas também esclarecer sua significação e sua gênese. A utilização deficiente da categoria de totalidade impede o conhecimento real até mesmo de fenômenos isolados64. A integração na totalidade, cuja condição é admitir que a verdadeira realidade histórica é precisamente o todo do processo histórico, “muda não somente nosso julgamento sobre o fenômeno isolado de maneira decisiva, mas também provoca uma mudança fundamental no conteúdo desse fenômeno, enquanto fenômeno isolado.”65 A oposição entre a atitude que isola os fenômenos históricos e o ponto de vista da totalidade torna-se ainda mais nítida quando comparadas as concepções burguesa e marxiana da função da máquina: As contradições e os antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria não existem pelo fato de não nascerem da própria maquinaria, mas sim de sua utilização capitalista! Sendo assim, uma vez que a maquinaria, considerada isoladamente, encurta o tempo de trabalho, enquanto seu uso capitalista prolonga a jornada de trabalho; uma vez que, por si só, ameniza o trabalho, enquanto seu uso capitalista aumenta sua intensidade; uma vez que, por si só, representa uma vitória do homem sobre as forças da natureza, enquanto seu uso capitalista o coloca sob o jugo dessas forças; uma vez que, por si só, aumenta a riqueza dos produtores, enquanto seu uso capitalista os empobrece etc., o economista burguês explica que a consideração da maquinaria em si prova rigorosamente que todas essas contradições patentes não passam de uma aparência da realidade comum, mas que, em si, isto é, também na teoria, não existem.66 Do ponto de vista metodológico, a concepção burguesa considera a máquina de maneira isolada, em sua pura facticidade, como uma mônada. Sua função no processo 63 Ibid., p. 31. 64 HCC 313 65 HCC 314 66 MARX apud LUKÁCS, 2012, p. 314. Traducão alterada. Como o texto se mostra um pouco confuso na primeira frase, reproduzimos toda a citação no original: “Die von der kapitalistischen Anwendung der Maschinerie untrennbaren Widersprüche und Antagonismen existieren nicht, weil sie nicht aus der Maschinerie selbst erwachsen, sondern aus ihrer kapitalistischen Anwendung! Da also die Maschinerie an sich betrachtet die Arbeitszeit verkürzt, während sie kapitalistisch angewandt den Arbeitstag verlängert, an sich die Arbeit erleichtert, kapitalistisch angewandt ihre Intensität steigert, an sich ein Sieg des Menschen über die Naturkraft ist, kapitalistisch angewandt den Menschen durch die Naturkraft unterjocht, an sich den Reichtum des Produzenten vermehrt, kapitalistisch angewandt ihn verpaupert usw., erklärt der bürgerliche Ökonom einfach, das Ansichbetrachten der Maschinerie beweise haarscharf, daß alle jene handgreiflichen Widersprüche bloßer Schein der gemeinen Wirklichkeit, aber an sich, also auch in der Theorie gar nicht vorhanden sind.” (MARX, 1962, p. 465). 24 de produção capitalista é vista como eternae, assim como toda mônada, não interage com as outras. Nenhuma forma estrutural — seja uma máquina, uma grande personalidade ou uma época — pode ser apreendida de maneira imediata pelo historiador ou pelo indivíduo que a vive. Ela deve ser apreendida, antes, na dissolução dos objetos em processos, isso é, considerando o desenvolvimento histórico como totalidade67. Em cada parte da realidade apreendida dialeticamente está contida a totalidade, e aqui também a analogia com uma mônada se torna evidente. Isso só pode se dar, no entanto, se cada aspecto isolado for considerado como “ponto de passagem para a totalidade”, sem recair no imediatismo68. O método dialético pode se desenvolver a partir de cada aspecto do real, como demonstrado metodologicamente pela própria estrutura da Lógica, de Hegel, na qual o capítulo que trata do ser, do não-ser e do vir-a- ser contém em si toda a filosofia hegeliana. De forma semelhante, o capítulo sobre o fetichismo da mercadoria, em O capital, também oculta em si toda a obra de Marx, considerando que o proletariado é uma mercadoria e que isso implicaria, por consequência, o autoconhecimento do proletariado como conhecimento da sociedade capitalista69. Para Lukács70, “cada elemento comporta a estrutura do todo”, de modo que “o conhecimento de toda a sociedade pode ser desenvolvido a partir da estrutura da mercadoria.” A categoria de totalidade “não reduz [aufheben] seus vários elementos a uma uniformidade indiferenciada, a uma identidade”71. A aparente independência que os vários elementos do real possuem no modo capitalista de produção — como a máquina — é uma ilusão que pode ser desvelada como tal apenas à medida em que são colocados em uma relação dinâmico-dialética uns com os outros, à medida em que são percebidos como momentos de um todo igualmente dialético-dinâmico72. Um exemplo deste procedimento pode ser encontrado, segundo Marx, no fato de que na sociedade capitalista, produção, distribuição, troca e consumo não são idênticos, mas membros de uma totalidade, aspectos diferentes de uma unidade. Uma determinada forma de produção determina formas definidas de consumo, distribuição e troca, assim como 67 HCC 316 68 HCC 344 69 HCC 343 70 HCC 393 71 HCC 83 72 HCC 84 25 relações definidas entre estes diferentes elementos. Uma interação ocorre entre estes vários elementos, como é o caso com todo corpo orgânico73. As formas objetivas de todos os fenômenos sociais mudam constantemente no curso de suas incessantes interações dialéticas, de modo que a inteligibilidade dos objetos se desenvolve em proporção ao que conseguimos apreender de sua função na totalidade à qual pertencem. Esta é a razão pela qual apenas a categoria de totalidade possibilita a compreensão da realidade enquanto processo social. Ela pode dissolver as formas fetichistas produzidas necessariamente pelo modo capitalista de produção e possibilitar que sejam vistas como meras ilusões. A objetividade de um fenômeno pode ser percebida em seu caráter histórico, transitório, apenas em sua relação com a totalidade .74 A ilusão do fetichismo abarca todos os fenômenos da sociedade capitalista, mascarando seu caráter histórico, transitório. Esta ocultação só é possível pelo fato de que “todas as formas de objetividade, nas quais o mundo aparece necessária e imediatamente ao homem na sociedade capitalista, ocultam [...] as categorias econômicas”, de modo que elas apareçam como se fossem relações entre coisas quando, na verdade, dizem respeito a relações entre os homens. É apenas a partir do ponto de vista da totalidade do método dialético que se torna possível o “conhecimento real do que ocorre na sociedade”. A totalidade rompe o caráter reificado das categorias econômicas da sociedade capitalista75. O ponto de vista metódico do todo, que se constitui como o problema central e a condição primordial do conhecimento da realidade, é um produto da história em dois sentidos. No primeiro, somente com o surgimento histórico do proletariado — através das condições econômicas que o produziram —, a possibilidade objetiva e formal do materialismo histórico pôde surgir como conhecimento. No segundo, somente no curso da evolução do proletariado é que essa possibilidade formal se tornou real76. Esta evolução social, contudo, aumenta cada vez mais a tensão entre os momentos parciais e a totalidade. Enquanto, por um lado, o sentido imanente da realidade irradia com um brilho cada vez mais forte o sentido do devir, ela tem, por outro, uma ligação cada vez mais profunda com a vida cotidiana, de modo que a 73 MARX, 1961, p. 630. 74 HCC 85 75 HCC 87 76 HCC 100 26 totalidade “afunda-se nos aspectos momentâneos, espaciais e temporais dos fenômenos”77. Seja qual for o tema específico em discussão, a totalidade do processo histórico é sempre o problema principal de que trata o método dialético. A expressão literária ou científica de um problema aparece sempre como a expressão de uma totalidade social, de suas possibilidades e limites, de modo que “a história de um determinado problema torna-se efetivamente uma história dos problemas.”78 Lukács vê nas obras A acumulação do capital¸ de Rosa Luxemburgo, e O Estado e a revolução, de Lênin, dois exemplos de aplicação da categoria de totalidade na realidade social. Tanto Luxemburgo quanto Lênin teriam tecido uma exposição histórico-literária da gênese do problema a ser analisado, ressaltando o processo histórico cujo resultado “constitui sua abordagem e sua solução” (HCC 118). Tal procedimento, que pode ser identificado no jovem Marx, é o próprio conceito hegeliano. O conceito, para Hegel, não é uma representação mental, como o uso comum do termo pode sugerir, mas um objeto visto em sua lógica imanente de desenvolvimento. O conceito, na dialética, dissolve a rigidez dos objetos e os transforma em processos. É assim que Lênin e Luxemburgo analisam os objetos de suas obras. O abandono da categoria de totalidade de Hegel e Marx leva, inevitavelmente, de volta à “ética imperativa abstrata da escola kantiana”79. O individualismo metodológico, isso é, aquele método que parte do indivíduo isolado, é o lado subjetivo da ausência da categoria de totalidade, a qual deságua, por sua vez, no fatalismo. Para o indivíduo isolado, seja ele capitalista ou proletário, o mundo só pode ser visto como que subordinado a leis imutáveis e a um destino brutal e absurdo, completamente estranhos a ele. A própria realidade social também é vista como submetida a leis eternas, diante das quais o indivíduo que visa transformar o mundo tem apenas duas saídas, sendo ambas falsas e aparentes: 1) tentar manipular tais “leis eternas” através da técnica ou 2) transformar o interior do homem, a única esfera que permaneceu livre (ética). Como a mecanização do mundo, no entanto, mecaniza também o próprio homem, tal ética permanece abstrata e “apenas normativa, e não realmente ativa e criadora de objetos, mesmo em relação à totalidade do homem isolado do mundo”80. 77 HCC 103 78 HCC 117 79 HCC 124 80 Ibidem, loc. cit. 27 1.4 Totalidade e práxis O conceito de totalidade em Lukács tem forte influência hegeliana, sendo de importância central na obra de ambos. Em Hegel, a “totalidade concreta” constitui o início do progresso e do desenvolvimento, cujo resultado “é o ‘todo idêntico a si mesmo’ que recobre a imediatez original na forma de ‘determinação transcendente’ através do ‘sistema de totalidade’.81“ A fragmentação capitalista do processo de trabalho separou o produtor do processo global de produção, deixando de lado o caráter humano do trabalhador e desencadeando a atomização da sociedade em “indivíduos que produzem irrefletidamente, sem planejamento nem coerência82.” Isso trouxe reflexos não apenas sobre o pensamento, a ciência e a filosofia do capitalismo, mas também sobre a própriaconsciência do trabalhador individual. A reificação seria, neste sentido, uma perda da totalidade. O domínio da categoria de totalidade, isso é, a capacidade de apreender a totalidade da sociedade enquanto totalidade concreta histórica, é a única superioridade do proletariado sobre a burguesia e também seu instrumento de desreificação. A burguesia, enquanto for a classe dominante, sempre disporá de mais recursos, poder, formação, organização e conhecimento do que o proletariado. Através da categoria de totalidade, contudo, este pode “compreender as formas reificadas como processos entre os homens”, elevar à consciência o sentido imanente do desenvolvimento e transpô-lo para a prática83. Neste sentido, a totalidade leva a uma prática pois transforma não apenas o objeto do conhecimento, mas o próprio sujeito. Este não pode ser, contudo, apenas um indivíduo isolado. Este, quando muito, pode conhecer apenas aspectos de um domínio parcial, algo fragmentário como “fatos” desconexos ou leis parciais abstratas. O sujeito que tenta apreender a totalidade deve ser ele próprio uma totalidade, e isso somente as classes sociais podem ser84. 81 BOTTOMORE et al, 1983, p. 381. 82 HCC 105 83 HCC 390 84 HCC 107 28 A superação da reificação passa pela aplicação da categoria de totalidade à prática do proletariado, através de uma “referência concreta às contradições que se manifestam concretamente no desenvolvimento global, e com a conscientização do sentido imanente dessas contradições para a totalidade do desenvolvimento85.” Esta relação com a totalidade, no entanto, “não exige que a plenitude extensiva dos conteúdos esteja conscientemente integrada nos motivos e nos objetos da ação.” Antes, importa apenas que “haja uma intenção voltada para a totalidade, que a ação cumpra a função [...] na totalidade do processo”.86 De maneira geral, a totalidade dialética em Lukács não se limita à investigação da realidade. Ela é também um guia para a ação política, inseparável da reflexão teórica. A totalidade fornece um enorme ganho de inteligibilidade no que se refere à sociedade capitalista e sua história, relacionando todo momento particular à totalidade do processo histórico. Enquanto categoria, ela forma um entroncamento entre a dialética e a reificação, de modo que a análise da reificação pressupõe, logicamente, a categoria de totalidade, às vezes como horizonte metodológico e objetivo de resolução e, por outras, como uma terapia social, incluindo a superação do capitalismo87. 1.5 A mediação As categorias de totalidade e mediação estão de tal forma imbricadas que uma totalidade social sem mediação seria, segundo Mészáros88, como “liberdade sem igualdade”, um “postulado vazio e abstrato”. Segundo o discípulo de Lukács, “a ‘totalidade social’ existe por e nessas mediações multiformes, por meio das quais os complexos específicos – isto é, as ‘totalidades parciais’ – se ligam uns aos outros em um complexo dinâmico geral que se altera e modifica o tempo todo”.89 O culto direto da totalidade, sua mistificação como imediaticidade, sem as mediações, só poderia produzir um mito, e um mito perigoso, como provou o nazismo.90 Neste sentido, Konder91 chama a atenção para o fato de que “intuir o todo” sem a 85 HCC 391 86 HCC 392 87 Ibid., loc. cit. 88 MÉSZÁROS, 2013, p. 58. 89 Ibid., loc. cit. 90 Ibid., loc. cit. 91 KONDER, 1984, p. 46. 29 consideração pelas partes, sem as necessárias mediações, é irracionalismo, sendo este um dos pontos que Hegel criticava na perspectiva de totalidade (do absoluto) de Schelling, chamado-a de “uma noite na qual todas as vacas são pardas”.92 Não havia espaço para a imediaticidade no sistema de Hegel. Em sua Ciência da Lógica, ao discutir sobre o início da ciência, ele rejeita a ideia de que o ponto de partida deve ser algo externo ao próprio sistema, pois isso seria a afirmação de um princípio não-mediado, e todo e qualquer conceito é mediado. Ele sugere então tentar encontrar o princípio da filosofia em um conceito que parece imediato, ou que pelo menos temos a impressão de experimentar de forma imediata, e o que melhor se apresenta para este propósito é o conceito de Ser. Após examinar este princípio, todavia, Hegel percebe que este também se mostra afetado por uma série de determinações, de modo que sua imediaticidade era apenas aparente.93 Em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas ele apresenta, nos parágrafos 61 a 78, uma detalhada discussão sobre o conceito de mediação. Ela é aquilo que mantém a unidade do sistema e uma característica daquilo que pode ser apreendido através de categorias. Um objeto mediado é não-ilimitado, não-absoluto e não-independente. Categorias são sinônimos de conceitos, e compreender – pensar através de conceitos – significa apreender um objeto na forma de um condicionado e mediado. Se a mediação aponta para a natureza da relação entre conceitos dentro de uma totalidade, então a dialética é o elemento-chave para expor o todo. A dialética é a metodologia auxiliar com a qual a natureza mediada de nosso conhecimento é desvelada.94 Adorno afirma que a mediação, para Hegel, significa a transformação que se espera que um conceito sofra no momento em que se tenta apreendê-lo. Ela é o momento do tornar-se (Werden) colocado necessariamente em cada ser. Sendo a dialética a filosofia da mediação universal, isso significa que não existe nenhum ser que não seja ao mesmo tempo um vir-a-ser.95 Uma das definições de Lukács sobre a mediação é que esta seria a expressão pensada da própria estrutura dialética do ser, a qual se constitui de antagonismos e oposições dissolventes e produtoras de novos antagonismos. Ela é a forma lógica na qual podemos reproduzir no pensamento a processualidade dialética da existência (Sein) 92 Ibid., loc. cit. 93 SANDKÜHLER, 2005, p. 73. 94 Ibid., loc. cit. 95 ADORNO, 2017, p. 32. 30 e, com isso, cada resultado do processo realmente como resultado, e não como um produto metafisicamente enrijecido, solidificado.96 Marx percebeu a importância da categoria de mediação em Hegel e, na disputa entre Feuerbach e o filósofo de Jena nesta questão, ficou com este último. Em seu ensaio filosófico sobre Moses Hess e os problemas da dialética idealista, publicado pouco após HCC e ainda antes da ruptura conceitual que Lukács faria posteriormente com importantes aspectos desta obra, Lukács discute a questão da mediação e aponta os erros da crítica de Feuerbach a esta categoria. O solo metodológico equivocado do qual Moses Hess parte é sua rejeição feuerbachiana do conceito hegeliano de mediação. Feuerbach teve o cuidado de tentar diferenciar sua posição de tentativas anteriores de alcançar o conhecimento imediato, como a de Jacobi, por exemplo. Mesmo que ele tivesse tido razão, contudo, teria-se perdido aqui uma das principais conquistas da filosofia hegeliana, um dos pontos que continha em si a possibilidade de se desenvolver em uma dialética materialista: a possibilidade metodológica de apreender e reconhecer a realidade social do presente em sua efetividade e, mesmo assim, ter com ela uma relação crítica, no sentido de uma atividade prático-crítica. Certamente havia em Hegel apenas a possibilidade desta passagem, mas justamente aqui Marx se ligou diretamente a Hegel e rejeitou a crítica de Feuerbach.97 Os chamados “socialistas verdadeiros”, corrente que Marx e Engels criticam no Manifesto do partido comunista e da qual Moses Hess fazia parte, cometeram o erro de considerar Hegel, desde seu ponto de partida, um mero “idealista”, e converteram sua dialética objetiva do processo histórico em uma simples dialética do pensamento. Esta falsa concepção da obra hegeliana fez com que percebessem a crítica de Feuerbach como uma possível saída de seus impasses teóricos. O que Feuerbach e os jovens hegelianos – dos quais os “socialistasverdadeiros” também eram parte – tinham em comum era o fato de que todos tratavam a mediação como algo puramente da esfera do pensamento. Em seu Fundamentos da filosofia do futuro, Feuerbach afirma que “verdadeiro e divino é apenas aquilo que não precisa de provas, o que [...] fala por si de maneira imediata [...] Tudo é mediado, afirma a filosofia hegeliana. Mas algo é verdadeiro apenas quando não é mais mediado, mas imediato [...] 96 LUKÁCS, 2013, 668. 97 Ibid., p. 665. 31 Quem pode estabelecer a mediação como necessidade, como lei da verdade?”.98 A mediação, para Feuerbach, não passava de um meio formal para a comunicação do imediato e evidente conteúdo do pensamento.99 Em sua Crítica à filosofia hegeliana ele afirma claramente: O pensamento é uma atividade imediata, na medida em que é independente ... A demonstração não é nada mais do que mostrar que aquilo que eu falo é verdadeiro; nada mais do que o retorno da exteriorização do pensamento à fonte original do pensamento ... A demonstração tem agora apenas na atividade de mediação do pensamento para outros o seu fundamento. Quando quero provar alguma coisa, então eu o provo para outros ... Toda demonstração é, consequentemente, não uma mediação do pensamento em e para o pensamento mesmo, mas uma mediação através da linguagem, à medida que é minha, e ao pensamento dos outros, à medida que é deles ... À filosofia hegeliana falta unidade imediata, certeza imediata, verdade imediata.100 O idealismo de Hegel, ao contrário do que Feuerbach esperava com esta crítica, não foi superado. Lukács afirma que isso fez apenas com que o utopismo eticizante fosse elevado ao seu mais alto grau filosófico e que se estabelecesse o fundamento epistemológico deste, pois uma certeza imediata, uma verdade imediata evidente pode ser alcançada em apenas dois pontos. O primeiro é que as formas sociais de nosso presente nos são dadas de maneira imediata, e quanto mais sofisticadas e complexas (ou mediadas, para usar uma expressão hegeliana), mais imediatamente evidentes. No que diz respeito aos fundamentos econômicos sociais, esta imediaticidade é percebida como mera ilusão do ponto de vista do proletariado. Este ato de percepção, esta compreensão clara (Durchschauen), no entanto, não muda nada na certeza imediata, já que esta é a forma de existência de nosso presente. Ela pode, entretanto, dar uma direção ao nosso comportamento prático em relação a ela, o qual reage modificando o comportamento imediato. Lukács fornece dois exemplos para ilustrar este ponto: o primeiro é sobre nossa existência enquanto indivíduos isolados no capitalismo. Isso nos é simplesmente dado e conseguimos perceber de maneira imediata, mas também podemos apreendê-lo como resultado do desenvolvimento do capitalismo. Quando este é o caso, tal saber permanece como um mero fato teórico, e a estrutura individualista não é alterada, mas permanece em sua imóvel imediaticidade. Outro exemplo, mas que serve apenas como 98 FEUERBACH, 2016, p. 47. 99 LUKÁCS, 2013, p. 668. 100 FEUERBACH apud LUKÁCS, 2013, p. 668. 32 ilustração psicológica, ocorre também em relação ao nosso conhecimento da teoria copernicana e nossa experiencia diária imediata de que é o sol que nasce e se põe, e não que é a terra que gira. Apenas a tendência prática para a transformação dos fundamentos sociais desta própria imediaticidade – e também aquelas não tão obviamente visíveis – é capaz de causar uma comportamento transformador.101 Este problema estrutural influenciou tanto o pensamento de Hegel quanto o de Feuerbach. O primeiro tratou a questão como meramente lógica e teórica, e com isso as categorias de mediação se tornaram independentes e se tornaram “essências” (Wesenheiten), se separaram do processo histórico real, do solo de sua verdadeira inteligibilidade (Begreifbarkeit) e se enrijeceram em uma nova imediaticidade. Feuerbach, por sua vez, conduziu sua polêmica exclusivamente pelo aspecto problemático da solução hegeliana e deixou de perceber não só a correta colocação do problema por Hegel e o progresso que ele já tinha alcançado, mas também o próprio problema em si. Ele tratou toda a questão da mediação como um puro problema de lógica, que poderia ser solucionado em parte unicamente pela lógica, e em parte fazendo recurso à percepção imediata, à sensibilidade. O segundo ponto que Lukács menciona é a evidência imediata da utopia ética. Ela diz respeito ao fato de que as formas de objetividade do meio são dadas aos indivíduos imediatamente, e que o grau de sua evidência imediata não fornece, nem de longe, nenhuma medida de sua essência supra-histórica. Elas são, de um lado, a consequência das forças objetivas daqueles poderes econômicos que lhe causam e, por outro, o desdobramento dos interesses de classe decorrentes da situação social. A utopia só pode levar, por isso, à aparência de uma práxis, a uma pseudo-práxis que, ou deixa intocada a estrutura da realidade objetiva, ou que não é capaz de apresentar como problema concreto a transição da realidade presente para a realidade “transformada”. A nova realidade – a utopia - é apresentada como uma situação, como um estado, uma condição já pronta (Zustand) e contrastada com a presente realidade objetiva, sem apresentar o caminho que leva de uma à outra. 102 Entre presente e futuro falta a mediação real, pois nos elementos do presente, nas tendências que ela trouxe e tornou problemáticas, as forças reais para ir além de si não foram reconhecidas.103 Ao falarmos sobre a possibilidade de superação de reificação, mostraremos a relevância da categoria 101 Ibid., loc. cit. 102 Ibid., p. 670. 103 Ibid., p. 661. 33 de mediação para articular a relação entre teoria e práxis, entre consciência de classe e partido. 34 CAPÍTULO 2. O NÚCLEO ORIGINÁRIO DA REIFICAÇÃO A investigação lukácsiana do fenômeno da reificação tem seu ponto de partida na unidade nuclear, mínima, de todo e qualquer problema da objetividade e de suas respectivas formas correspondentes de subjetividade na sociedade capitalista: na estrutura da mercadoria. A “solução deste enigma”, isso é, da estrutura da mercadoria, seria uma exigência de todo problema nesse estágio de desenvolvimento da humanidade. Este procedimento, que parte de um elemento nuclear do qual se desdobram todas as características do objeto investigado, foi inspirado por Hegel e Marx. Lukács observa que assim como o capítulo da Lógica de Hegel sobre o ser, o não-ser e o vir-a- ser contém em si toda a filosofia hegeliana, poder-se-ia dizer talvez que o capítulo sobre o caráter fetichista da mercadoria, de forma semelhante, “oculta em si todo o materialismo histórico, todo o autoconhecimento do proletariado como conhecimento da sociedade capitalista”.104 A máxima de que “todo início é difícil” se aplica, segundo Marx, a todas as ciências, o que justificaria o fato de a análise da mercadoria apresentar as maiores dificuldades de compreensão em sua obra.105 A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista. Assim como é mais fácil estudar um corpo já inteiramente formado do que suas células, é mais fácil tentar compreender o capitalismo por inteiro do que investigar a forma mercadoria do produto do trabalho ou a forma do valor da mercadoria. Nem todo produto é uma mercadoria. Em sociedades primitivas, a produção é essencialmente para satisfazer necessidades de suas comunidades, sejam elas pequenas (famílias) ou grandes (tribos ou clãs). Os primeiros grandes impérios que tinham por base a agricultura não apresentavam grandes diferenças econômicas em relação aos posteriores. O rei da Babilônia, por exemplo, era chamado de “Camponês da Babilônia” e “Pastor de homens”. No Egito, o faraó e sua administração eram chamados de Pr’o, que significava algo como “a grande casa”. A totalidade do estadoeconômico dessas 104 HCC 343 105 MARX, 1962, p. 11. 35 sociedades era como um grande Estado produzindo valores de uso para satisfazer suas necessidades.106 Com o surgimento das profissões independentes, as quais não requeriam um esforço coletivo para sua realização (como a agricultura, por exemplo), aparece um novo tipo de produção. Antes, camponeses-artesãos que moravam em comunidades traziam ao mercado apenas o excedente de sua produção, aquilo que restava depois de satisfeitas as necessidades de suas famílias e comunidades. Agora, o artesão especialista, não mais ligado a nenhuma comunidade, tais como o ferreiro ou oleiro itinerantes, por exemplo, não mais produz valor de uso para satisfazer suas necessidades, mas a totalidade de sua produção é voltada para a troca. Ele só pode adquirir seus meios de subsistência (como roupas, alimentação, etc.) através da troca de seus produtos. O artesão separado da comunidade não produz mais produtos, mas apenas valores de uso, mercadorias destinadas ao mercado.107 Este artesão, contudo, ainda é o proprietário de seus próprios meios de produção. Nestes sistemas simples de produção podia-se encontrar de tudo à venda no mercado: leite, pão, matérias-primas, botas, etc., mas não uma mercadoria especial que só apareceu no capitalismo: a força de trabalho. Esta não era vendida, pois seu possuidor, o artesão, era dono de suas próprias ferramentas. Ele trabalhava sozinho, era dono de sua própria indústria. Será apenas no capitalismo que o possuidor da força de trabalho não mais possuirá os meios de produção, sendo incapaz de aplicar sua força de trabalho ao seu próprio negócio. Para não morrer de fome, ele deve vender esta mercadoria especial, a força de trabalho, ao capitalista. Agora, no mercado, ao lado de lã, queijo e máquinas, aparece uma nova mercadoria: a força de trabalho.108 Todas as mercadorias são trocadas por seu valor real, o qual é calculado através do tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-las. Num primeiro momento tem-se a impressão de que o capitalista se enriquece ao vender a mercadoria por um preço maior que seu valor real, mas isso é apenas aparente. O preço da mercadoria para o consumidor final corresponde ao preço real da mercadoria, e o lucro do empresário consiste no fato de os custos de produção da mercadoria serem menores que seu valor real. Isso só é possível devido a uma propriedade específica da força de trabalho: uma vez consumida, ela gera um valor maior que o seu próprio. Todas as mercadorias, ao 106 MANDEL, 1976, p. 58. 107 Ibid., loc. cit. 108 BUCHARIN, 1921, p. 17. 36 serem consumidas, se deterioram, mas a mercadoria força de trabalho produz um valor a mais, um Mehrwert, comumente chamado de mais-valia. A mercadoria é composta por duas porções de riqueza: uma diz respeito ao seu custo de produção, e a outra corresponde ao valor a mais que lhe foi transferida pelo trabalhador no momento de sua produção. Estas duas partes são indissociáveis, de modo que só é possível separá-las 1) destruindo a própria mercadoria ou 2) trocando-lhe por dinheiro. Neste segundo caso, a riqueza contida na mercadoria é decomposta e pode ser dividida em partes: uma quantidade é devolvida ao trabalhador sob a forma de salário, outra é destinada a cobrir os custos de produção com maquinário, energia, matéria prima, etc., e uma outra parte, aquela do valor a mais da mercadoria (mais-valia) é embolsada pelo capitalista.109 Marx não parte, vale ressaltar, de um conceito básico, como o valor, por exemplo, mas sim de um fenômeno material elementar, que é a mercadoria, a base do sistema capitalista. Segundo Mandel110, seria incorreto afirmar que o método de Marx consiste em partir do abstrato para o concreto. Ele parte, na verdade, de elementos do concreto material em direção ao abstrato teórico, para então reproduzir a totalidade concreta em sua análise teórica. O concreto, em toda sua riqueza, é sempre a combinação de inúmeras abstrações teóricas, mas o concreto material, isso é, a sociedade burguesa, já existe antes desta empreitada científica, determinando-a em última instância e permanecendo como um ponto de referência para testar a validade da teoria. 2.1 O fetichismo da mercadoria A análise do fetichismo da mercadoria é essencial para se compreender o fenômeno da reificação. Segundo O’Kane111, a reificação em Lukács é uma tentativa de ampliar, de continuar, de estender a teoria marxista, de modo que ela também seja aplicável em importantes facetas da realidade sociocultural contemporânea que não estavam originalmente incluídas na crítica da economia política de Marx. Tais aspectos incluem instituições tais como o Estado e a burocracia, além de alguns específicos modos de consciência. O fetichismo da mercadoria, ademais, também será importante 109 TONET; LESSA, 2012, p. 30. 110 MANDEL, 1976, p. 20. 111 O'KANE, 2013, p. 83. 37 para compreender a unidade sujeito-objeto do proletariado de que vamos tratar no quarto capítulo desta dissertação, pois na seção de O capital que trata sobre no fetichismo da mercadoria está contido todo o materialismo histórico, todo o autoconhecimento do proletariado enquanto conhecimento da sociedade capitalista.112 2.2 O fetichismo em Marx O termo “fetiche” deriva do francês “fétiche”, o qual remete ao latim “facticius”, isso é “artificial”, “fictício”. Uma das definições de fetiche lhe designa como um objeto de culto das civilizações primitivas, um objeto ao qual se atribui poderes mágicos ou benéficos.113 A analogia religiosa parece ser mesmo o que Marx tinha em mente ao abordá-lo em O capital, haja vista que nela encontraremos uma relação entre a mercadoria e a religião e também um comentário sobre o cristianismo como a religião mais apropriada ao capitalismo. É um trecho repleto de referências a magia, mistério e necromancia.114 Paul Ricoeur115 afirmou que Marx era um dos “mestres da suspeita”, ou mestre da escola da suspeição. Segundo o filósofo francês, o método de Marx é de desmistificação. Ele parte de uma suspeita em relação às ilusões da consciência e emprega um estratagema para decifrá-la, para mostrar o que jaz oculto, fora do alcance da aparência imediata. Este é o procedimento que ele emprega na seção em que analisa o fetiche da mercadoria, no primeiro capítulo de O capital. Marx começa dizendo que a mercadoria parece, num primeiro momento, algo extremamente simples, mas que seu exame revelará toda uma complexidade insuspeita. Considerada do ponto de vista de seu valor de uso, isso é, que através de suas propriedades ela satisfaz necessidades humanas ou que essas propriedades são produtos do trabalho humano, ela não possui nada de misterioso. É muito claro que o homem, através de sua atividade, transforma a matéria natural de uma maneira que lhe seja útil, como a madeira que é transformada em uma mesa, por exemplo. O argumento de Marx se concentra, num primeiro momento, em identificar como surge o fetichismo e como ele é um aspecto fundamental e inevitável no 112 HCC 343 113 FLECK, p. 143. 114 HARVEY, 2010, p. 38. 115 RICOEUR, 1970, p. 32. 38 capitalismo. O caráter místico da mercadoria não emerge nem do seu valor de uso e nem do conteúdo da determinação do valor, e isso por duas razões. Primeiro pelo fato de que, sejam quais forem as variadas formas de trabalho ou de atividades produtivas, é uma verdade fisiológica que estas são funções do organismo humano e que cada uma dessas funções são sempre o gasto ou o consumo do cérebro, dos nervos, dos órgãos, dos sentidos, etc. Em segundo lugar, o que jaz na raiz da determinação do valor, que é o tempo de duração deste gasto ou a quantidade de trabalho, é claramente distinguível da qualidade do trabalho. Em todos os casos, este tempo de trabalho, que custa a produção dos meios de vida, deve interessar aoshomens, embora não de maneira uniforme. E, finalmente, à medida que os homens trabalham uns para os outros, o seu trabalho toma uma forma também social.116 A forma misteriosa da mercadoria surge da própria forma da mercadoria, e isso de três maneiras: 1) a igualdade entre os diversos tipos de trabalho humano assume a forma física da igual objetividade do valor dos produtos do trabalho; 2) a medida do gasto da força de trabalho humano através de sua duração assume a forma da grandeza do valor dos produtos do trabalho; e 3) as relações dos produtores assume a forma de uma relação entre os produtos do trabalho. O misterioso caráter da forma-mercadoria consiste “simplesmente no fato de que a mercadoria reflete as características sociais do próprio trabalho dos homens como características objetivas dos próprios produtos do trabalho.”117 Ela também reflete a relação social entre os produtores e a soma total de trabalho (Gesamtarbeit) como uma relação entre coisas, fora das relações sociais existentes. A fim de esclarecer as sutilezas metafísicas no processo de transformação dos produtos do trabalho em mercadorias, Marx traça uma analogia entre a mercadoria e a religião. Na religião, os produtos do cérebro humano aparecem como figuras autônomas, hipostasiadas e possuindo uma vida própria, e nessa forma entram em relação com os homens e também entre si. No mundo das mercadorias acontece o mesmo. Inicialmente oriundas dos próprios homens, as mercadorias se separam destes e se relacionam tanto entre si quanto com estes. No mundo da religião, assim como no mundo das mercadorias, opera o processo de alienação, no sentido de que há uma 116 MARX, 1962, p. 85. 117 MARX, 1962, p. 86. 39 exteriorização do homem em objetos nos quais ele posteriormente não mais se reconhece. Neste trecho é clara a influência de Feuerbach sobre Marx. Em sua principal obra, A essência do cristianismo, Feuerbach pretende demonstrar que o cristianismo é a forma mística e alienada do próprio homem: “o segredo da teologia é a antropologia”. Feuerbach faz a religião retroceder ao firme solo da experiência, mostrando que Deus é uma projeção das maiores qualidades do gênero humano (entendido como Gattungswesen). O conhecimento de Deus é o autoconhecimento do homem. O movimento de Marx aqui também vai neste sentido: o segredo da mercadoria são as relações sociais entre os homens. Os homens não percebem, entretanto, as relações entre si. O contato dos homens uns com os outros se dá através das mercadorias. As relações dos diferentes tipos de trabalho só aparecem mediante a troca dos produtos de seu trabalho, inicialmente objetos de uso, tornados mercadorias. Os produtores não percebem as relações sociais de seu trabalho social como o que realmente são, isso é, como relações sociais imediatas entre os indivíduos. Tudo aparece invertido: as relações entre as pessoas são relações coisificadas, e as relações entre as coisas, relações sociais.118 Este relacionamento entre os produtores, tornado oculto pelas mercadorias, fica mais claro ao compreendermos, por exemplo, a origem do que consumimos cotidianamente. Num primeiro momento, ao tentarmos explicar a origem de um simples pão francês, poderíamos dizer que ele veio de uma padaria, adquirido através de uma troca em dinheiro: o comerciante nos forneceu o pão em troca de algumas moedas. Mas devemos levar a questão mais a fundo: como o pão foi produzido? De onde vieram seus ingredientes? Seguindo nesta trilha de investigação vamos descobrir toda uma complexa cadeia produtiva que nos remeterá do padeiro ao agricultor na produção do trigo, o qual, por seu turno, fez uso de máquinas e ferramentas que, por sua vez, também foram produzidas por outros trabalhadores em uma fábrica metalúrgica. Nesta fábrica o processo se repete: o aço, o minério, o cobre e outras matérias primas também foram extraídas da natureza por outros trabalhadores, de modo que a cadeia parece não ter fim. Cada um dos trabalhadores que encontramos neste processo também consome, por sua 118 MARX, 1962, p. 87. 40 vez, aquele mesmo pão francês do qual partiu nossa investigação. Marx e Engels119 afirmam que o capital é um produto social e que, em última análise, só pode ser colocado em movimento pela atividade de todos os membros da sociedade. A mercadoria manifesta suas duas faces no ato de troca: a de coisa útil e de coisa de troca. Esta separação, contudo, se torna prática apenas quando este processo já se expandiu de tal forma e com tal importância que coisas úteis passam a ser produzidas especificamente para a troca, de modo que o valor é levado em consideração já no momento da produção. A partir de então o trabalho privado dos produtores toma também um duplo caráter social: por um lado ele deve, como trabalho útil determinado, satisfazer determinadas necessidades sociais que não são suas e se tornar parte da soma total de trabalho (Gesamtarbeit), da divisão social do trabalho. Por outro, este trabalho deve satisfazer as múltiplas necessidades dos próprios produtores, de modo que cada trabalho privado útil seja intercambiável. Esta igualdade entre os diferentes tipos de trabalho, contudo, só pode se dar através de uma abstração de sua desigualdade efetiva.120 Esta abstração é a redução ao caráter comum de todo tipo de trabalho, que é o gasto ou consumo de força de trabalho. Este duplo caráter social do trabalho privado é refletido ou espelhado no cérebro do indivíduo, tendo em sua consciência a mesma forma que apresenta no processo social de troca dos produtos. O caráter socialmente útil de seu trabalho privado aparece na forma de que o produto do trabalho deve ser útil para outros, e o caráter social da igualdade dos diversos tipos de trabalho se reflete em sua consciência na forma do caráter comum, enquanto valores, dessas diversas coisas materiais, que são os produtos do trabalho.121 Ao trocarem seus produtos uns com os outros, os homens não os relacionam enquanto valores, pois essas coisas são, para eles, apenas um tegumento, uma casca, um invólucro material que envolve trabalho humano igual, homogêneo, equivalente. O que acontece no processo de troca é justamente o contrário.122 No momento em que os produtores igualam seus produtos na troca enquanto valores, o que eles estão fazendo é igualar seus diversos tipos de trabalho enquanto trabalho humano. É nesta passagem que 119 MARX, ENGELS, 1977b, p. 475. 120 MARX, 1962, p. 87. 121 MARX, 1962, p. 88. 122 MARX, 1962, p. 88. 41 Marx, como um psicanalista das relações sociais no capitalismo, faz a emblemática afirmação: “eles não sabem, mas o fazem” (“Sie wissen das nicht, aber sie tun es”). O valor, continua Marx, não traz escrito em sua testa o que ele é. Ele transforma cada produto em um hieróglifo social, de modo a esconder, camuflar, escamotear sua essência. Os homens tentam, posteriormente, fazer o caminho reverso para decifrar este enigma, para chegar ao que está por trás do segredo de seus próprios produtos sociais, pois “a determinação dos objetos de uso enquanto valores são, para eles, um produto social assim como a linguagem”123. A descoberta científica de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são apenas expressões materiais (sachliche) do trabalho humano gasto (verausgabten) em sua produção, embora faça época no desenvolvimento humano da humanidade, não é capaz, contudo, de afastar a forma objetiva (gegenständlichen) do caráter social do trabalho. O produtor se interessa agora pela quantidade de produtos que pode trocar pelo seu. A proporção pela qual é possível trocar um produto por outros parece emanar da própria natureza do produto, da mesma forma que uma tonelada de ferro equivale, em valor, a três gramas de ouro, por exemplo, ou uma tonelada de ferro equivale a uma tonelada de ouro quanto ao peso, embora sejam diferentes em todas
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