Em 1504, o jovem Miguel Ângelo Buonarroti causou espanto aos florentinos ao apresentar uma estátua de mármore com mais de cinco metros de altura. Não se via nada assim desde a antiguidade.

A história de David de Miguel Ângelo começou quarenta anos antes de o artista colocar mãos à obra. Em 1463, as autoridades da Obrada Catedralde Santa Maria del Fiore em Florença encomendaram ao escultor Agostino di Duccio uma grande estátua que deveria ser colocada no exterior da catedral, sobre os contrafortes. Ali figuraria perto das de outros dois profetas que Donatello e Nanni di Banco tinham homenageado em efígie meio século antes. No enquanto, essas eram de terracota, a de Di Duccio teria de ser em mármore.

O artista deslocou-se às pedreiras de Carrara para seleccionar um bloco de mármore adequado e até chegou a desbastá-lo parcialmente in situ com o objectivo de o tornar mais leve antes da sua transferência para Florença. Porém, três anos depois, renunciou à tarefa, considerando-a superior às suas forças, e abandonou na oficina da catedral o bloco de mármore parcialmente trabalhado. O bloco permaneceu ali quase quarenta anos, sem que nenhum dos escultores, cerca de uma dezena, a quem tinha sido oferecido se achasse capaz de esculpir nela qualquer figura, grande ou pequena.

David de Miguel Ângelo

Preparado para o combate. O seu rosto franzido e o olhar inquieto reflectem a famosa terribilità das estátuas de Miguel Ângelo. O herói prepara a sua funda com a mão esquerda prestes a atacar o gigante Golias. Galeria da Academia, Florença.

Herói adolescente

Em 1501, os responsáveis da catedral florentina decidiram retomar o projecto e consultaram para o efeito vários artistas, incluindo Leonardo da Vinci, sobre a possibilidade de criar uma obra de arte a partir do mármore desfigurado com quase seis metros de altura. Miguel Ângelo Buonarroti, um jovem escultor com 26 anos, foi o único que assegurou conseguir fazê-lo sem necessidade de acrescentar mais pedra ao bloco já existente. O mestre tinha a capacidade especial de “ver” a forma encerrada no bloco. Costumava aliás dizer que uma escultura se fazia apenas ao retirar o mármore que sobrava e que era tarefa de um escultor “libertar” a figura da sua prisão de pedra. Em Agosto de 1501, assinou o contrato para executar David e, no mês seguinte, começou o trabalho. O artista construiu uma estrutura de tábuas com vários metros de altura para esconder a peça e poder trabalhar na solidão e evitar que a obra fosse vista antes de a acabar. O tema da luta entre David, o jovem pastor de 16 anos e futuro rei de Israel, e o gigante Golias foi um dos mais populares na arte medieval. O Antigo Testamento conta que o guerreiro filisteu se ria da infantil envergadura e do pobre armamento de David, mas o jovem conseguiu derrubá-lo com uma pedra lançada pela sua funda. Depois, decapitou o gigante com a sua própria espada.

David de Miguel Ângelo

Estudo para a estátua de David. Museu do Louvre, Paris.

Durante o Renascimento, o tema manteve a sua popularidade, embora adoptasse traços inovadores, tal como fica mostrado na escultura florentina do século XV. Donatello foi o primeiro a representar David como uma figura nua e isenta, completamente independente da arquitectura, numa estátua de bronze realizada em 1440 que quebrou os estereótipos da imagem medieval de David como um rei barbudo, escritor e músico.

O mestre florentino apresentou o herói com um corpo juvenil e porte orgulhoso, com o pé esquerdo apoiado sobre a cabeça mutilada do seu descomunal inimigo. A estátua foi uma referência para os posteriores David renascentistas, que se viram impregnados da sua sensualidade e adoptaram também a sua posição característica em contraposto, ou seja, equilibrando a inclinação das ancas com a deslocação dos ombros para o lado contrário, com o qual se evitava a frontalidade e se garantiam o movimento e a harmonia da figura.

Piéta

A Pietà do Vaticano. Em 1498, ainda muito jovem, quando Miguel Ângelo terminou a Pietà e alguns colocaram em dúvida a sua autoria, o artista gravou na faixa que cruza o peito da Virgem: “Miguel Ângelo Buonarroti, florentino, fê-lo.”

Trinta anos mais tarde, em 1473, Andrea del Verrocchio fez outro David de bronze. Este eminente escultor, mestre de Leonardo e Botticelli, desenvolveu a ideia de Donatello ao mostrar o jovem pastor triunfante sobre a cabeça de Golias, mas o seu rosto é ainda mais altivo e a sua anatomia mais frágil e andrógina. David volta a aparecer numa idade quase infantil, embora com um aspecto idealizado com a sua couraça de couro decorada. A estátua de Verrocchio foi considerada pelos seus contemporâneos como uma metáfora das virtudes cívicas que se atribuíam à cidade-estado florentina, mais pequena do que outras como Roma e Milão, mas mais forte e heróica para resistir aos seus inimigos.

Um David diferente

Miguel Ângelo prolongou esta tradição artística florentina, embora ao mesmo tempo concebesse uma obra completamente distinta. A novidade mais evidente em relação aos seus predecessores é a escala: contra os 1,58 metros de altura do bronze de Donatello e dos 1,25 metros de Verrocchio, a escultura de Buonarroti superava cinco metros: 5,17m precisamente. O mármore de Buonarroti transformava o adolescente da Bíblia num gigante.

Miguel Ângelo

Miguel Ângelo Buonarroti. Retrato de Andrea Commodi. Século XVI. Casa Buonarroti, Florença.

David de Miguel Ângelo é um homem atlético na plenitude da sua vida e não o adolescente representado por Verrocchio e Donatello. A principal inovação da sua estátua reside, não obstante, na concepção do tema, já que Miguel Ângelo decidiu apresentar o momento anterior ao combate, quando o jovem se prepara para o duelo desigual, em vez da vitória final. Pela primeira vez, Golias desaparece da cena da sua própria morte. Esta ideia só pôde ser levada a cabo graças à prodigiosa habilidade do escultor, que conseguiu dotar a figura de um aspecto contido e expectante, com um corpo em tensão a ponto de lançar-se à lide.

À primeira vista, David aparece numa atitude serena e reflexiva, mas essa calma aparente fica desmentida pela tensão dos músculos e pela inquietação do olhar, que revelam que o herói está prestes a deslizar o braço direito por detrás das costas para colocar a pedra na funda e assim conseguir lançar o projéctil com a esquerda.

O elegante contraposto da figura permite que todo o peso seja descarregado sobre o tornozelo direito, algo que, com o tempo, provocou fendas e que actualmente ameaça partir-se.

David de Miguel Ângelo

Na obra, destacam-se a perfeita definição de cada músculo, osso ou tendão e a segurança na sua modelação, algo que documenta o estudo aprofundado de dissecações de cadáveres feito por Miguel Ângelo. A dificuldade acrescentada do uso de um bloco já desbastado e a grande escala usada tornam ainda mais espantosa a compreensão da anatomia humana mostrada por um artista tão jovem. No entanto, o aspecto mais extraordinário desta figura é a capacidade de expressar a energia reprimida.

À tensão dos músculos, une-se o rictus do nariz, que sugere uma respiração contida e as veias em relevo pelas quais corre o sangue do guerreiro. A intensa expressão dos olhos, penetrante e cheia de ira, levou os seus contemporâneos a cunhar o conceito de terribilità de Miguel Ângelo.

David de Miguel Ângelo

David de Miguel Ângelo com os genitais tapados por uma parra, tal como foi exibido durante alguns tempos e se vê na imagem.

O artista passou vinte e um meses em cima do andaime a cinzelar o bloco, sem ajuda de assistentes. O jovem escultor dedicava grande parte do dia ao seu trabalho em completa entrega, algo que se tornou uma constante na sua vida e que o levaria a afirmar anos mais tarde: “Se soubessem a quantidade de trabalho que há nele, não o apelidariam de genial.”

No dia 23 de Junho de 1503, quando a estátua estava quase terminada, desmontou-se a estrutura que a encerrava com tanto zelo para a mostrar aos florentinos, causando profunda impressão.

Símbolo da nova República

Apesar de a encomenda ser proveniente dos responsáveis pela Obra da catedral, Miguel Ângelo concebeu desde o início a sua estátua como uma alegoria política, um emblema da república florentina que se estabelecera depois da expulsão em 1494 dos Médici, a família que a governara durante os sessenta anos anteriores. Miguel Ângelo identificou-se com o novo regime florentino e manteve estreita relação com Piero Soderni, gonfaloniere (magistrado comunal) vitalício de justiça de Florença desde 1502, o qual agiria como seu protector.

pedreiras

As pedreiras de Carrara, na Toscana. Foi daqui que saiu o mármore com o qual Miguel Ângelo esculpiu o seu David.

O seu David, representado no momento prévio ao combate, encarnava a coragem de um povo que iniciava um novo percurso, que conseguira expulsar os corruptos Médici e propunha-se agora recuperar Pisa.

Este significado político da estátua explica a sua localização final. Tal como se assinalou, inicialmente estava previsto ser colocada nos contrafortes da catedral, um local secundário onde não poderia ser vista de todos os ângulos. Por isso, no início de 1504, criou-se um comité formado por cerca de trinta peritos (entre os quais Leonardo da Vinci, Sandro Botticelli e Filippino Lippi) incumbido de decidir a localização mais apropriada. Embora alguns membros propusessem situá-la em frente da catedral, a maioria escolheu a Praça da Senhoria, perto do Palácio Vecchio. Muitos consideraram que a localização mais apropriada era na loggia ou galeria aberta situada nesta praça, onde se faziam os julgamentos e onde já existiam várias estátuas, mas no final foi colocada a céu aberto em frente do palácio, num local de grande destaque, substituindo o grupo de Judite e Holofernes de Donatello.

O triunfo de um símbolo

A transferência da estátua para a praça foi uma operação complexa. Mais de trinta homens carregaram David através de uma espécie de castelo de madeira que deslizava sobre troncos untados com sebo. Embora a distância fosse de apenas 600 metros, demorou quatro dias. Durante a transferência, a peça sofreu um ataque durante a noite por parte de alguns partidários dos Médici, que lhe atiraram pedras, um sinal claro de que era já considerada um importante símbolo do novo governo.

David de Miguel Ângelo

A segunda transferência de David. Quase 370 anos depois da sua colocação na Praça da Senhoria, David foi transferido em 1873 para a Galeria da Academia para o proteger das intempéries e do vandalismo. Na imagem, a estátua na estrutura de madeira usada para o seu transporte.

Embora a República de Florença tivesse tido vida curta (foi suprimida em 1512 para renascer somente durante um breve período, entre 1527 e 1530), a estátua permaneceu na Praça da Senhoria até 1873, ano em que se decidiu protegê-la das inclemências do tempo, pelo que foi transferida para a Galeria da Academia, onde ainda hoje permanece. A réplica de tamanho real que foi colocada no local original em 1910 relembra aos florentinos o símbolo mais emblemático da sua cidade.

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