O costume da mumificação no Egipto é provavelmente produto das condições climáticas e geográficas do país. As múmias mais antigas datam de finais do IV milénio antes de Cristo e são aquilo que se pode chamar múmias naturais. Naquela altura, os corpos eram enterrados no deserto onde a areia quente actuava como um poderoso agente exsicante que eliminava a humidade e, portanto, travava a putrefacção do corpo. A mumificação artificial surgiu quando os cadáveres passaram a ser colocados dentro de um caixão e num túmulo, perdendo assim ocontacto com aterra, o que levou ao desenvolvimento de métodos para obter a preservação dos corpos.

Este empenho estava relacionado com as crenças religiosas dos egípcios. Para eles, o ser humano era uma amálgama de elementos, uns materiais e outros associados ao espírito supraterreno, como o ka ou energia cósmica recebida ao nascer, o ankh ou energia vital, e o ba, a personalidade ou psique. A morte significava a separação desses elementos, mas esta era apenas momentânea, pois o indivíduo renascia na vida além-túmulo e recuperava as energias originais. A mumificação servia precisamente para conservar o corpo no seu sepulcro ou “morada da eternidade”, de modo que o seu ba pudesse reencontrá-lo e reconhecê-lo.

Tarefa de profissionais

A mumificação estava a cargo dos embalsamadores, profissionais altamente qualificados. Como tinham de cumprir uma série de rituais, faziam parte de uma classe social de sacerdotes e provavelmente mantinham ligação estreita com os médicos. Vários papiros dão informações sobre as personagens que participavam na operação. Uma das mais destacadas era o chamado “Senhor dos Mistérios”, que executava os rituais com uma máscara de Anúbis, deus do embalsamamento. Esta divindade dirigia o ritual e tratava da cabeça do defunto com as suas próprias mãos. Também havia sacerdotes leitores, que pronunciavam as instruções do ritual, assim como as recitações mágicas à medida que as faixas eram enroladas. Em contrapartida, os embalsamadores incumbidos de fazer a incisão no cadáver e de extrair as vísceras tinham o estatuto social mais baixo, devido ao carácter impuro do ritual. De facto, os testemunhos da época grega contam que, por vezes, estes trabalhadores viam-se obrigados a fugir da tenda de embalsamamento perante a chuva de pedras que os colegas lhes atiravam.

A montanha Tebana. Esta região na margem ocidental do Nilo foi o local de sepultamento de reis e nobres durante o Império Novo. Em primeiro plano, o templo funerário da rainha Hatchepsut em Deir el-Bahari; ao seu lado, o templo do faraó Mentuhotep II.

Durante os Impérios Antigo e Médio, havia apenas um grupo de embalsamadores reais que se encarregava da mumificação dos membros da família do faraó e dos cortesãos e oficiais aos quais o monarca concedia esse privilégio. Quando a mumificação se generalizou, surgiu um grande número de oficinas independentes, muito embora a qualidade do seu trabalho fosse variável e não pudesse ser comparada com a das oficinas reais.

Ritos de purificação

Os embalsamadores realizavam a sua tarefa durante o longo período que mediava entre a morte e o enterro, normalmente de cerca de setenta dias, embora existam referências a casos de até 274 dias (Túmulo de Meresankh em Guiza, da IV dinastia). O historiador grego Heródoto contava que, depois do luto, o defunto era entregue aos embalsamadores que “mostram a quem o trouxe modelos de cadáveres de madeira, copiados do natural”, uns mais caros do que outros. Uma vez acordado o tipo de embalsamamento e o preço, a família voltava para casa e tinha início o trabalho do embalsamador.

A primeira fase desenrolava-se com certa rapidez, pois o calor do Egipto acelerava a decomposição. O primeiro passo era o ritual de purificação do defunto que decorria durante três dias numa estrutura temporária onde se realizava a lavagem do corpo. Quando o corpo estava purificado, era levado para a uabet (“lugar puro”) ou per nefer (“a casa bela”), onde durante 70 dias se procedia à mumificação propriamente dita. Segundo Heródoto, os embalsamadores começavam o seu trabalho esvaziando a cavidade craniana do cadáver. Para os antigos egípcios, o cérebro não tinha importância como sede da razão e do pensamento, pelo que não costumavam realizar qualquer esforço para preservá-lo. De acordo com o historiador grego, vertia-se um líquido resinoso no crânio já vazio, que ao arrefecer solidificava.

Múmias

Passos para “fazer” uma múmia

Para conseguir a múmia perfeita, imprescindível para que a alma do defunto gozasse a vida no Além, os egípcios utilizavam uma gama diversificada de produtos, embora os egiptólogos ainda não tenham conseguido identificá-los todos com segurança.

1. NATRÃO E UNGUENTOS Além do natrão como ingrediente para a desidratação do corpo, utilizava-se óleo de cedro, apesar de hoje alguns conjecturarem que talvez se tratasse de óleo de zimbro.

2. RESINA Um texto do Império Antigo já refere a resina: “Hoje ninguém navega ao norte de Biblos. O que podemos fazer para obter os pinheiros para as nossas múmias?”

3. LÍQUENES E CEBOLAS Os líquenes enchiam as cavidades do corpo; as múmias de Siptah e Ramsés IV tinham líquenes secos no abdómen. As cebolas foram usadas como olhos falsos e enchimento corporal.

4. SERRADURA, PALHA, FARRAPOS Estes materiais eram utilizados para preencher as cavidades corporais durante a XXI dinastia. Também era espalhada serradura sobre a pele para ajudar ao processo de dessecação.

5. ESPECIARIAS A utilização de especiarias na mumificação não foi demonstrada cientificamente. Heródoto e Diodoro Sículo aludem à cássia e à canela provenientes da Índia, do Ceilão e da China.

6. CERA DE ABELHAS Encontrou-se cera a cobrir a boca, os orifícios do nariz e outras cavidades em múmias do Império Novo e da Época Baixa. As abelhas eram insectos apreciados pelo seu valor mágico.

7. INCENSO E MIRRA A mirra da Somália e do Sul da Arábia servia para encher e massajar o corpo e foi muito valorizada pela sua fragrância. O incenso era usado para fumigar o corpo e em ritos funerários.

8. VINHO DE PALMA Heródoto e Diodoro afirmam que, para limpar as cavidades corporais e as vísceras, utilizava-se vinho de palma, embora os especialistas não tenham conseguido confirmá-lo.

De seguida, extraíam-se os órgãos internos através de uma incisão lateral que, segundo os estudos efectuados, era quase sempre feita no lado esquerdo do abdómen. 

O coração, sede da sabedoria, era deliberadamente deixado no sítio: as recitações 27, 28 e 29 do Livro dos Mortos expressam a importância de manter este órgão unido ao corpo, motivo pelo qual o defunto se defende de quem queira despojá-lo: “Não me tireis este coração que é o meu, não critiqueis a víscera do meu coração! Que o meu coração não dê lugar a repreensões, pois [é] o meu coração.”

Um passo decisivo no processo de embalsamamento era a eliminação da humidade do corpo, pelo que era necessário um agente desidratante que o secasse e, ao mesmo tempo, o deixasse flexível.

O material eleito foi o natrão em estado sólido, uma substância natural de carbonato de sódio e bicarbonato de sódio que, tal como a areia quente, era um poderoso exsicante. Cobria-se o corpo com este produto dos pés à cabeça. Segundo as fontes documentais, tinha de estar em contacto directo com estes sais durante cerca de quarenta dias.

Múmias

Um bom banho de natrão

Os estudos realizados confirmam que o corpo era desidratado tanto exterior como interiormente. Há indicações de que, após a extracção dos órgãos internos, preenchia-se a cavidade torácica com pequenos sacos de natrão para que o corpo secasse também por dentro. A quantidade de natrão utilizada multiplicava várias vezes o volume do corpo. Na experiência efectuada pelos egiptólogos Bob Brier e Ronald Wade, em 1994, com um cadáver humano, comprovou-se que eram precisos 264 quilogramas de natrão para cobri-lo totalmente e poder, assim, dessecá-lo sem margem para erro.

Múmias

A paixão pelas múmias egípcias

Ao longo dos séculos, as múmias foram objecto de saque e curiosidade. Na Europa do século XIX, surgiu uma verdadeira febre pelo Egipto e o desenrolamento de múmias converteu-se num acontecimento social. Um especialista dava palestras sobre o processo de mumificação ao mesmo tempo que se procedia ao desenrolamento da múmia, danificando-a irreparavelmente. Até os grandes faraós foram alvo deste procedimento descuidado. Em 1881, Gastón Maspero, director de Antiguidades Egípcias, abriu as faixas que envolviam o corpo de Tutmés III da cabeça aos pés para expô-lo perante uma audiência de curiosos. O corpo estava num estado lastimoso e as várias partes estavam unidas apenas pelas faixas. Perante o desastre, Maspero voltou a coser o envoltório e a amálgama foi guardada num armazém.

Na imagem membros da sociedade francesa de egiptologia examinam a múmia de uma sacerdotisa de amon em 1891. Óleo de Paul Dominique Philippoteaux.

Após a desidratação, o corpo era untado com vários óleos e resina líquida para que recuperasse a elasticidade. O processo talvez contribuísse também para evitar ou atrasar o ataque de insectos e camuflar os maus cheiros da decomposição produzidos durante a mumificação. Diodoro Sículo descreve o processo assim: “Globalmente, tratam o cadáver com um cuidado escrupuloso durante mais de trinta dias, primeiro com óleo de cedro e outros produtos, depois com mirra, canela e substâncias que podem proporcionar uma conservação prolongada e dar bom cheiro.”

A última viagem

O envolvimento da múmia tinha grande relevância religiosa e estava definido com minúcia. Enquanto na maioria dos casos os defuntos eram amortalhados com linho comum, os cadáveres reais eram cobertos com tecidos de linho especial. Os embalsamadores necessitavam de quinze dias para enrolar o corpo e cada acto era minuciosamente prescrito e acompanhado da recitação mágica apropriada.

Múmias

A  viagem para o túmulo

Uma vez concluída a mumificação, o defunto era transferido para a sua última morada, na margem ocidental do Nilo. Um grande cortejo saía de casa encabeçado por carregadoresdeoferendasdealimentos, flores, mobiliário… carregadas por criados e familiares. Uma espécie de barca transportava a arca com os vasos canopos contendo as vísceras do defunto e outra levava o caixão com a múmia.

Após atravessar o rio e chegar ao túmulo, o cortejo era recebido por bailarinos e a múmia colocada de pé em frente da sepultura, segura por um sacerdote com cabeça de Anúbis. Antes de realizar o enterro, um sacerdote funerário pronunciava a seguinte invocação: “A tua boca está apta a funcionar, pois abri a tua boca para ti, abri os teus olhos para ti, com o cinzel de metal.”

Na imagem Sacerdotes oficiam a cerimónia de abertura da boca sobre a múmia do defunto, em frente do seu túmulo.

As diferentes partes do corpo eram envolvidas em separado e, por último, todo o corpo era enfaixado de forma compacta. O número de camadas usadas costuma variar de múmia para múmia. Muitas vezes, as faixas eram propriedade do morto e eram marcadas com o seu nome para distingui-las das faixas pertencentes à oficina de mumificação. O custo elevado dos tecidos era a causa principal para, muitas vezes, o corpo ser vestido com peças e tecidos descartados, que se cortavam em tiras. Para proporcionar maior protecção, colocavam-se amuletos de diferentes tipos e papiros com recitações e textos mágicos sobre a múmia e entre as faixas.

Uma vez concluído o trabalho dos embalsamadores, tinha lugar o funeral. Caso se tratasse de um membro da elite, a múmia era coberta com uma máscara e colocada num caixão sumptuoso que era, por sua vez, inserido num sarcófago. Uma procissão fúnebre constituída por familiares, amigos e criados levava o sarcófago para o sepulcro, a “casa da eternidade”, onde o defunto renasceria para gozar a vida eterna.

Oficina mumificação

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