História passada a limpo: brasileiros pesquisam mais na Torre do Tombo em Lisboa


Cultura

José Venâncio de Resende, de Lisboa0

Prédio atual da Torre do Tombo em Lisboa (Foto José Venâncio)

Os livros “A hidra de sete bocas” (Coleção Lajeana), de Francisco Eduardo Pinto, e “Travessias Inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício…” (Fino Traço Editora), de um grupo de autores, são exemplos recentes de publicações que utilizaram como fontes de pesquisas o Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa. Este arquivo reúne milhares de documentos sobre a história de Portugal, parte deles sobre os 285 anos de funcionamento do Tribunal do Santo Ofício, entre 1536 e 1821.

Numa visita à Torre do Tombo, este repórter teve a rara oportunidade de conhecer valiosos originais guardados na “Casa Forte”, como uma espécie de antigo “diário oficial” bilíngue do Reino (latim e português), o Tratado das Tordesilhas, a carta de Pêro Vaz de Caminha, um dos oito volumes de uma bíblia do século 15 - presente de casamento ao rei D. Manuel - e mapas e atlas magnificamente ilustrados (convergência da cartografia náutica portuguesa e da antiga arte da iluminura) da época dos descobrimentos.

Quando a monarquia se instalou definitivamente em Lisboa, documentos históricos (livros dos tombos, documentos reais, de administração do Reino etc.) passaram a ser guardados na Torre Albarrã do Castelo São Jorge (mais conhecida por Torre do Tombo). Com o terremoto em 1755, a torre ruiu. A documentação foi recuperada e, em 1757, transferida para o Mosteiro de São Bento (atual Palácio de São Bento onde funciona a Assembléia Nacional). No século 19, com a extinção das ordens religiosas, os bens e o acervo da Inquisição foram incorporados pelo Estado, tendo sido os documentos enviados para a Torre do Tombo. Com a inauguração do novo edifício em 1990, a documentação foi transferida para a atual sede da Torre do Tombo.

Interesse dos brasileiros

A partir dos anos 1960 e 1970, aumentou muito o interesse dos pesquisadores preocupados em compreender o Brasil dos primeiros séculos através das fontes do Santo Ofício, diz Angelo Adriano Faria de Assis no artigo “A Torá nos caminhos do ouro: cristãos novos e criptojudeus em Minas”. Ele é um dos autores do livro Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XV-XVIII), Fino Traço Editora, Belo Horizonte, 2013, organizado por Júnia Ferreira Furtado e Maria Leônia Chaves de Resende.

Hoje, um novo olhar sobre a história do Brasil já é possível, a partir de consultas a documentos relativos à Inquisição portuguesa, como confissões, denúncias, correspondências, negociações com a Igreja e a Coroa, cadernos do promotor, livros de visitações, listas de Autos da Fé, regimentos do Santo Ofício e milhares de processos movidos contra os réus (judeus cristãos-novos, por exemplo) pelo “braço da Misericórdia e Justiça”, de acordo com Angelo Assis.

“Em linhas gerais, estes trabalhos abordam a presença e atuação inquisitorial na América portuguesa a partir dos indivíduos denunciados e dos que procuravam demonstrar boa vontade com o tribunal ao confessar seus erros ou delatar terceiros”, explica o autor. “E aqueles que mais preencheram as páginas inquisitoriais foram as principais vítimas da Inquisição portuguesa – os cristãos-novos, insistentemente acusados durante as visitações iniciais ao Brasil.”

Torre do Tombo

A documentação (fontes históricas primárias) do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) é relevante para a história mundial, principalmente para os países de língua oficial portuguesa, diz José Maria Furtado, chefe da Divisão de Sistemas de Informação, Estatística e Qualidade da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB). “A Unesco classificou como patrimônio Memória do Mundo bens arquivísticos do ANTT como a Carta de Pêro Vaz de Caminha (2005), o Tratado de Tordesilhas (2007) e, ainda, a coleção Corpo Cronológico (cerca de 82 mil documentos)”, disponíveis em http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/registo-da-memoria-da-mundo/. “Os originais dos documentos mais antigos do acervo do ANTT remontam ao século IX.”

José Furtado considera difícil quantificar o número de documentos existentes. “A contagem do acervo à guarda do Arquivo mede-se em metros lineares de documentação. Os cerca de 100.000 metros (100 kms) de documentação existentes no ANTT correspondem a 1.513 fundos e coleções.” Desse total, “encontram-se disponibilizados em linha, na Base Digitarq do ANTT, cerca de 146.676 documentos, com representação digital associada a registos descritivos, que correspondem a cerca de 6.238.031 de imagens”.

Além do ANTT, a rede DGLAB de Arquivos compreende os Arquivos Distritais e o Centro Português de Fotografia. Estas unidades descentralizadas reúnem cerca de 325.018 documentos com representação digital associada a registos descritivos, o que corresponde a 8,02 milhões de imagens digitalizadas. “No total, a rede DGLAB de Arquivos possui 471.694 documentos com representação digital associada a registos descritivos, que representam 14.254.896 de imagens disponíveis online.” Em termos relativos, apenas cerca de 0,6% do acervo documental do ANTT se encontra digitalizado, informa José Furtado.

Nos últimos cinco anos, cerca de 17,2 mil leitores presenciais (a maioria pesquisadores) consultaram, anualmente, os documentos do ANTT. Foram 58.967 documentos consultados em média por ano. “Importa referir que o incremento do número de acessos via online tem implicado diminuição de número de leitores presenciais nas salas de leitura do ANTT, mas, por outro lado, promovido um maior aumento e democratização de acesso à informação”, diz José Furtado.

Cerca de 124,8 mil documentos foram consultados online (Google Analytics), o que correspondem a 2,539 milhões de visualizações de páginas online (Google Analytics).

O maior interesse pela Torre do Tombo nas últimas décadas, por parte de pesquisadores brasileiros, deve-se, fundamentalmente, à “partilha de uma língua e história comuns”, observa José Furtado. “Nesta última década, tem-se verificado um incremento do número de investigadores brasileiros graças ao desenvolvimento econômico do Brasil e aos programas de investigação suportados por bolsas promovidas pelo Estado brasileiro.”

Além do ANTT, a DGLAB engloba ainda os seguintes arquivos: o Centro Português de Fotografia e os arquivos distritais do Porto; de Aveiro; de Beja; de Bragança; de Castelo Branco; de Évora; de Faro; da Guarda; de Leiria; de Portalegre; de Santarém; e de Setúbal. O conjunto dos acervos documentais constituintes do ANTT, bem como parte dos documentos digitalizados, pode ser consultado gratuitamente em http://digitarq.arquivos.pt/

Cristãos novos em Minas

O Brasil, cujo início efetivo do processo de colonização coincidiu com o momento de instauração da Inquisição em Portugal, rapidamente se transformaria num dos destinos preferidos dos judeus cristãos-novos, segundo Angelo de Assis. A procura pelo ouro levou para as Minas cristãos-novos da Bahia e de outras regiões do Nordeste, bem como de São Paulo, Espírito Santo, do Rio de Janeiro e de outras partes do vasto império português.

“Atuavam não apenas na exploração mineral, mas também no seu entorno, com o suprimento de mantimentos, produtos, ferramentas e carências outras… Trabalhavam como médicos, advogados, professores, eram artesãos, homens de negócio e comerciantes, proporcionavam crédito, traficavam escravos e animais para transporte e lida, criavam gado, porcos, galinhas e demais animálias para consumo, desenvolviam lavouras de subsistência onde produziam mandioca, feijão, arroz, milho, cana-de-açúcar, hortaliças e outros alimentos; contribuíram na criação daquilo que viria a transformar-se na tradicional e renomada culinária e doçaria mineiras.” 

Assim, contribuíram para erguer-se, “nas Minas, uma sociedade de múltiplas características…”, assinala Angelo de Assis.

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