Das barracas sem luz e água às casas dignas. Nesta viagem, explicamos o que mudou na habitação em 49 anos de democracia.
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Bairros de lata. Casas clandestinas, sobrelotadas, sem luz, água potável ou saneamento básico, onde a saúde era colocada em risco e o conforto térmico era uma miragem. Assim vivia parte substancial da população em Portugal na época do 25 de abril de 1974, a data que marcou a Revolução dos Cravos, pela democracia e liberdade de expressão. E abriu também o caminho para o início da reivindicação pelo direito à habitação, numa altura em que quase tudo estava por fazer ao nível político e social. De lá para cá, o país evoluiu e a qualidade de vida e das casas também. Mas, quase cinco décadas depois, milhares de portugueses continuam a viver em condições indignas, em situação de pobreza energética. E, com os preços das casas em alta e a falta de oferta, o acesso à habitação por parte da classe média voltou para o centro do debate público com o Mais Habitação. Nesta viagem entre o passado e o presente, o idealista/news explica como era a habitação em Portugal no 25 de abril e o que mudou (ou não) em cerca de 50 anos de democracia.

Na altura do 25 de abril de 1974, “as condições habitacionais eram, em grande medida, muito precárias para parte substancial da população portuguesa”, começa por explicar Gonçalo Antunes, professor e investigador na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (NOVA FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, ao idealista/news. Milhões de pessoas viviam em barracas, muitas vezes sobrelotadas, e não tinham acesso a luz, água potável ou saneamento básico. Esta era uma realidade especialmente visível nas grandes cidades, como Lisboa e o Porto.

Desde então, o país evoluiu em várias dimensões, inclusive no domínio da habitação. “Na década de 1970 não tínhamos habitações suficientes para o número de famílias, hoje temos mais dois milhões de habitações do que famílias”, destaca Gonçalo Antunes. Além disso, hoje as famílias vivem com maior conforto: “A ausência de eletricidade, água canalizada ou saneamento básico são questões que se colocam de forma muito pontual, ao contrário do problema generalizado que ainda persistia em meados da década de 1970 e que afetava milhões de portugueses. Do ponto de vista habitacional, vivemos, certamente, muito melhor”, avalia o professor da NOVA FCSH.

A qualidade das casas em Portugal melhorou muito ao longo dos últimos 50 anos. Mas “a urgência de resposta ao direito à habitação, consagrado na Constituição de 1976, volta a colocar-se” nos nossos dias, aponta Paulo Tormenta Pinto, arquiteto e professor catedrático no ISCTE, em declarações ao idealista/news. Isto porque, hoje, há vários problemas ao nível da habitação que se mantêm, embora a sua dimensão possa ser diferente:

  • Há 67 mil famílias a viver em condições indignas em 80% dos municípios portugueses, de acordo com as estratégias locais de habitação desenvolvidas no âmbito do programa 1º Direito até ao início de abril;
  • Entre 1,2 e 2,3 milhões de portugueses vivem em situação de pobreza energética moderada e entre 660 e 740 mil pessoas encontram-se numa situação de pobreza energética extrema, apontam os dados da Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2021-2050, partilhados pelo Portal da Construção Sustentável;
  • Acesso a habitação própria pela classe média continua difícil: “Na época do 25 de abril, o acesso ao crédito habitação era difícil, em grande medida devido às proibitivas taxas de juro que se praticavam e que limitavam logo à partida este serviço bancário a uma minoria de famílias com rendimentos mais elevados”, explica Gonçalo Antunes. Hoje, a oferta de casas a preços acessíveis à classe média portuguesa continua escassa e o crédito habitação também está cada vez mais caro (e menos acessível) dada a subida a pique dos juros.

Na época do 25 de abril, ter casa própria não estava ao alcance de todos. Mas importa não esquecer que a legislação da propriedade horizontal só surgiu em 1955, pelo que o acesso a casa própria em prédios multifamiliares estava a dar os primeiros passos. E o mercado de financiamento para a compra de casa também. Paulo Tormenta Pinto recorda isso mesmo, dando nota que "a época do 25 de abril marca também uma época de generalização do acesso ao crédito, incentivando-se a aquisição de casas em regime de propriedade horizontal”. Em contrapartida, hoje maioria dos portugueses possui casa própria (78%), segundo o Eurostat.

Na década de 70, a maioria das pessoas nos centros urbanos viviam em casas arrendadas. “Nas grandes cidades [como Lisboa e o Porto], o arrendamento era maioritário, o que não é necessariamente verdade em territórios menos urbanos e menos densos”, explica o professor da NOVA FCSH. Após a revolução do 25 de abril, "as medidas de congelamento de rendas, aplicadas ainda no período do Estado Novo às principais cidades de Lisboa e Porto, foram também aplicadas a todos o território nacional", lembra Paulo Tormenta Pinto.

Atualmente, o que se verifica é que há uma maior atração pelas casas para arrendar, dada a flexibilidade deste mercado e pelo facto de o acesso a casa própria estar dificultado devido aos altos preços das casas e à subida das taxas de juro nos empréstimos habitação, a par do agravamento do custo de vida que dificulta a poupança. Mas também as rendas das casas estão a ficar cada vez mais caras, dada a alta procura para a baixa oferta, o que pressiona ainda mais os orçamentos familiares esmagados pela alta inflação que se faz sentir no país. "Hoje, debate-se o incentivo ao arrendamento e a propriedade pública em regime de renda acessível, procurando-se corrigir a baixa oferta de casas para classe média, penalizada pelos baixos salários e pela especulação imobiliária”, aponta ainda o arquiteto Paulo Pinto.

Acesso à habitação no 25 de abril
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Políticas públicas de habitação no abril de 1974? "Estava quase tudo por fazer"

“No 25 de abril de 1974, quase tudo estava por fazer no que respeita às políticas de habitação”, resume o professor da NOVA FCSH. Na década de 70, “existia um claro problema de oferta de habitações, ou seja, a procura era demasiado elevada para o parque habitacional existente, o que era especialmente visível nos locais particularmente pressionados, como Lisboa”, aponta. Este cenário foi gerado pelo “acentuado êxodo rural, que se caracterizou pela procura de oportunidades [de trabalho] nas principais cidades portuguesas”, lembra o arquiteto e professor catedrático do ISCTE.

Foi neste contexto de elevada pressão sobre as grandes cidades portuguesas, como Lisboa e o Porto, que começaram a proliferar os chamados bairros de barracas (ou de lata), assim como bairros clandestinos, que surgiam nas periferias. “Nestes locais, em particular nos bairros de barracas, as condições de vida eram reconhecidamente difíceis, em casas abarracadas sobrelotadas, construídas pelos próprios moradores, sem eletricidade, saneamento básico ou água potável”, descreve Gonçalo Antunes, que também é investigador responsável do projeto HOUSING&COVID, que estuda o mercado de habitação em Portugal.

As más condições de habitabilidade colocaram em causa a saúde de muitos portugueses na década de 70. Nessa altura, “persistiam significativos surtos de cólera nestes locais, que levavam à morte de dezenas de pessoas”, apontou ainda o professor da NOVA FCSH. “Em ambiente rural o cenário não era muito melhor, antes pelo contrário”, observa ainda.

“Quando chegámos a 1974, o problema habitacional tinha um enorme impacto social, e o Estado tinha reduzidos mecanismos para poder ultrapassar o avolumar de bairros precários, nomeadamente nas franjas de Lisboa e Porto, sendo que no caso do Porto a situação tinha impacto na sobreocupação das 'ilhas' existentes nas traseiras da cidade burguesa”, explica ao idealista/news Paulo Tormenta Pinto também diretor do Dinâmia’Cet – ISCTE (Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território). 

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Da reivindicação pelo direito à habitação em Portugal nascem políticas públicas

Com o 25 de abril de 1974, a liberdade de expressão ganhou forma e os portugueses começaram a fazer-se ouvir e a reivindicar o direito à habitação. “Casas sim, barracas não!” foi o slogan das manifestações na altura, que exigiam casas dignas para as suas famílias, com acesso a água, luz e saneamento básico.

O período que se seguiu à Revolução dos Cravos “é marcado pela implementação, entre o primeiro e o terceiro governos provisórios, pelo programa SAAL - Serviço de Apoio Ambulatório Local, lançado pelo arquiteto Nuno Portas, enquanto Secretário de Estado da Habitação”, recorda Paulo Tormenta Pinto, destacando que este foi um programa estatal “inovador” que permitiu juntar arquitetos e comissões de moradores de forma a colmatar as necessidades habitacionais das famílias mais desfavorecidas.

Dois anos depois do 25 de abril, em 1976, dá-se um passo importante na história de Portugal: entra em vigor a Constituição da República Portuguesa e a consagração do direito à habitação. “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, lê-se no artigo 65º da Constituição que incumbe ainda o Estado de levar a cabo uma política de habitação que garantisse este direito.

“Infelizmente, esse princípio constitucional teve alguma dificuldade de passar da teoria para a prática ao longo das últimas cinco décadas”, considera o investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA). Isto porque só passados vinte anos depois do 25 de abril, nomeadamente em 1993, é que surge Programa Especial de Realojamento (PER) com o objetivo de realojar a população que vivia nos bairros de barracas que existiam nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Ao abrigo do PER, na Grande Lisboa foram contratualizadas mais de 33 mil habitações.

Habitação no 25 de abril de 74
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O que mudou nas políticas públicas em Portugal em 50 anos?

Ao longo dos últimos quase 50 anos de democracia, as políticas de habitação foram acompanhando a evolução da própria sociedade, “o que é particularmente visível na promoção do acesso à propriedade e da casa própria, com passagem pelo quase inevitável crédito habitação”, aponta Gonçalo Antunes.

“A principal alteração reside nas políticas públicas, menos centradas na emergência da erradicação de barracas e mais centradas no acesso à habitação das comunidades imigrantes e da classe média. Maior preocupação na reabilitação urbana e na sustentabilidade da construção como forma de poupança energética”, destaca Paulo Tormenta, acrescentando que existe ainda uma “mudança de mentalidades em relação à propriedade privada, que se traduz no desejo de reintrodução dos mecanismos de cooperativa ou outros que possibilitem um ajustamento da casa às mudanças que se colocam ao longo da vida dos cidadãos”.

Hoje, o Governo tem vários programas em marcha que visam corrigir o difícil acesso à habitação digna, como é o caso do 1º Direito, os programas de arrendamento acessível, a construção de casas para 26.000 famílias que vivem hoje em condições indignas com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), sem esquecer do Programa Edifícios + Eficientes, o Vale Eficiência, o Porta 65- Jovem e as medidas mais recentes incluídas no programa Mais Habitação, que está agora no Parlamento para ser discutido e aprovado.

“Seria importante que os atuais programas de promoção de habitação conseguissem estabelecer uma visão panorâmica que permitisse dar sequência àquilo que foram ganhos teóricos e operativos alcançados ao longo dos últimos 50 anos de democracia - de outra forma o radicalismo da urgência poderá turvar o necessário olhar crítico, impedindo que esta oportunidade, integrada no PRR, sirva para construir, mais que habitação, um habitat de cidadania”, conclui Paulo Tormenta.

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