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O artista sem-abrigo do coração de Lisboa

As suas obras são efémeras, mas hoje correm o mundo nas fotos de milhares turistas que visitaram Lisboa. Júlio, 45 anos, fez da cidade abandonada a sua casa e a sua tela. Paredes meias com o Castelo de São Jorge e o mais luxuoso hotel do centro da capital portuguesa, há ruínas que se cobrem de pinturas e de instalações, de cor e de corações. Retrato de um sem-abrigo e da sua inexplicável urgência de criar.

 "O coração é tudo", diz Júlio, artista sem-abrigo.
"O coração é tudo", diz Júlio, artista sem-abrigo. © Créditos: Francisco Colaço Pedro

“Bem-vindos ao meu castelo!”, atira o artista ao reboliço constante de turistas. Estamos em pleno coração de Lisboa, a dois passos do Castelo de São Jorge. Foi aqui, no devoluto Pátio de Dom Fradique, de olhos no Tejo, que Júlio Bernardino de Oliveira, 45 anos, encontrou o mais recente espaço para se expressar. “Sou artista sem-abrigo”, lê quem passa, gravado numa madeira, “reciclo lixo que encontro nas ruas e transformo-o em obras de arte.”

As muletas não o impedem de se esgueirar por janelas e trepar fachadas, limpar lixo e dejetos de cão, transportar pedras, espelhos, cadeiras, molduras, estilhaços de azulejos – inusitados tesouros que encontra por Lisboa e guarda em casas abandonadas, esconderijos só dele conhecidos.

Depois dos anos de estático abandono, quem agora aqui vem e volta a vir nunca encontra um Pátio de Dom Fradique igual. E quem pára e repara num muro vê sempre algo novo, de tal forma abundam pormenores por este labirinto de arte viva. O terreno, que inclui troços das muralhas da Alcáçova e da Cerca Moura e onde até há pouco havia humildes casas e oficinas, foi expropriado pela Câmara de Lisboa no final dos anos 1990, com vista a uma reabilitação que nunca chegou a acontecer. Hoje é cobiçado pelo proprietário francês do vizinho Palácio Belmonte: mesmo ao lado da arte reciclada de Júlio, estão as dez suites de luxo de um dos mais conceituados hotéis de charme de Lisboa. Onde uma só noite pode custar três mil euros.

Sem-abrigo por opção

“Sou sem-abrigo por opção. Ninguém me chateia. Não peço nada a ninguém. Eu dou à sociedade.” Há três anos que Júlio faz da cidade em ruínas a sua galeria de arte a céu aberto. “Vejo uma ruína e ponho-me logo a imaginar o que tenho de fazer ali. Sou autodidata, aprendi tudo na rua.” O seu poiso mais duradouro foram as ruínas do número 8 da Calçada da Graça, a que deu vida durante cinco intensos meses. Foi ali que Véro descobriu o seu trabalho. “Fiquei maravilhada por todas as cores, todos os objetos. Podias simplesmente ficar a olhar para aquilo durante minutos a fio”, recorda. Antropóloga visual e guia das “Lisbon Street Art Tours”, Véro propõe aos turistas descobrir Lisboa pela leitura das suas paredes, em vez dos livros e monumentos. “Percebi que tudo o que preenchia aquela fachada fora encontrado na rua. Júlio é um artista de alma e coração. Um artista que torna visível aquilo que deixou de ser visível. Sinto admiração e respeito pela forma como cria arte para acordar e sensibilizar as pessoas”, diz a jovem belga que escolheu viver em Lisboa depois de descobrir vários países.

À porta do edifício, os transeuntes tinham uma tela onde se lhes pedia que deixassem opiniões, e um jarro onde podiam colocar qualquer tipo de donativo. “A minha ideia era fazer uma galeria a céu aberto para artistas exporem as suas peças, tudo em material reciclado”, recorda Júlio. “É uma zona muito turística, os turistas podiam passar e contribuir, e os artistas assim terem um rendimento.” “Em vez de pedir dinheiro ou depender de organizações, ele encontra a sua própria forma de sobreviver. Não vai a uma loja de artes, não espera por um instituto que o patrocine. E tanto turistas como populares ficam admirados e inspirados por o que ele faz, chama muito a atenção”, testemunha Véro.

Tanto que estava a acabar o seu projeto – “era só acabar uns degraus, assim as pessoas entravam e subiam e viam tudo o que tinha feito lá dentro” – e os proprietários apareceram. Júlio pediu só mais um tempo. Os proprietários, que durante décadas deixaram derrocar o teto e o edifício reduzir-se a escombros, não hesitaram a expulsá-lo e emparedar janelas e porta. “Estava a um dia de acabar o meu projeto…” , recorda. Ver o seu esforço destruído não é novidade para Júlio: “Já por dez vezes a polícia ou funcionários da junta de freguesia vieram estragar e roubar o que eu tinha feito. Ando a subir e a descer, a pôr as fachadas e os jardins bonitos para toda a gente, sem pedir nada a ninguém, e eles vêm e destroem tudo. Sinto raiva, sou humano… Mas sei que o que faço é em prol do bem. Sei que lhes falta sensibilidade, não foram capazes de trabalhar a afetividade, o carinho, e mostram a sua fraqueza. Já passei por isso também.”

O Largo Rodrigo de Freitas reúne um rol de edifícios abandonados por onde a imaginação de Júlio pôde voar. Num deles desenhou em tecido um enorme coração nos andaimes. “Como estou coxo, trepo com os braços. A fachada estava toda decorada com pinturas minhas. Aquele foi o meu quarto durante uns meses.” No prédio ao lado foi onde nasceu São João de Brito, onde funcionou durante anos o Museu da Marioneta e para onde a câmara chegou curiosamente a anunciar a instalação de um centro para pessoas sem-abrigo. Entretanto, apesar de vários protestos, a autarquia manteve o edifício devoluto e procurou vendê-lo em hasta pública por mais de um milhão de euros. “É uma forma bela e simples de sensibilizar as pessoas e chamar a atenção para este outro lado de Lisboa. Numa altura em que casas incríveis estão a ser renovadas com dinheiro estrangeiro e para estrangeiros, é interessante uma pessoa sem-abrigo usar o cenário lisboeta em decadência, e fazer arte a partir dele.”

Júlio vive e trabalha bem no epicentro daquilo a que tantos têm vindo a chamar um “terramoto turístico”. Deixe-se os números relativos apenas a esta freguesia de Santa Maria Maior falar por si: menos 11% de população em três anos, 11 mil habitantes restantes, 200 mil visitantes por dia, e 2.251 anúncios de casas disponíveis para turismo na plataforma Airbnb. “Transformam pequenas garagens e mercearias em quartos e alugam por 500 euros”, conta Júlio. A cada três semanas abre um novo hotel no centro da cidade. “Mas para nós há menos casas”, dispara o artista plástico. “Hoje há tantas pessoas a dormir na rua como dantes”.

“Optei pela alegria”

Através da arte, conta Júlio, saem sentimentos recalcados durante a infância. “Venho de uma família complicada. Éramos 10 irmãos. Dois deles morreram nos meus braços. Já em criança gostava de pintar, mas o ambiente era mau para criar. Na escola não tinha cabeça, só fiz a quarta classe. Chegava a casa e não tinha afeto nem carinho.”

O refúgio era fechar-se no quarto ou ir pelas matas, apanhar pássaros e ninhos. Ou ir à pesca. Apanhava camarão e caranguejo, na Praça do Comércio, em Santa Apolónia, no Poço do Bispo... “Era um modo de vida. Ninguém se preocupava comigo.” Numa cidade que empurra os habitantes para o subúrbio, Júlio fez o percurso inverso. Trocou a casa da família nos Olivais pelas ruas e becos do centro histórico. “Adoro Lisboa! O fado, o sol, o cheiro a sardinhas… Estas são congeladas”, diz a propósito do odor que a brisa traz desde algum restaurante vizinho. “Comecei na feira da ladra a vender o que tinha e o que encontrava por aí. Depois passei a restaurar móveis que vendia pela rua e aos restaurantes.” Numa casa abandonada guardava verniz, óleo de cedro, lixa, pregos, buchas, vidro partido. “Dava para fazer tudo. Nunca tive um ateliê, restaurava na rua. Reciclo tudo.” Então veio a arte. “Cheguei a uma conclusão: tenho muita imaginação para dar. E gosto de ver as pessoas sorrir. Não é pelo dinheiro que faço isto.” “Estou cansado de negatividade, pensamentos negativos. As emoções servem para nos chamar à atenção. Queria abrir a consciência. Optei pela alegria – mas tive de ir à conquista dela”, diz.

“É a arte que comunica para um público muito mais vasto do que aquela que está num museu”, observa Véro. “Faz muitas pessoas falar, reagir. Toca naquilo que está a acontecer a Lisboa neste momento. Quebra a rotina. Quebra esta noção daquilo que é e não é permitido fazer. Quebra as fronteiras do que é a arte e a arte de rua. Quebra estereótipos daquilo que as pessoas assumem ser uma pessoa sem-abrigo. Só pode tocar as pessoas e fazê-las acordar da sua própria bolha, ou da bolha que a sociedade criou para nós.”

“As pessoas do bairro chateiam-se comigo: ‘tem mas é juízo, podias estar a dormir aí sossegadinho, porque é que te pões a pintar paredes e pendurar coisas?’” Sem telemóvel, televisão ou rádio, Júlio vive Lisboa como uma aldeia. Ali ao lado tem o IN-Mouraria, um pequeno centro para pessoas que usam ou usaram drogas, que tem permitido a centenas de pessoas a viver na rua e marginalizadas pela sociedade o acesso a serviços sociais e de saúde, a comida, telefone e internet. Perante a perna em claro mau estado, a médica do centro disse-lhe que tinha de parar, deixar de transportar coisas, de caminhar. Mas Júlio lamenta: “Não consigo. Eu todos os dias tenho de fazer algo.”

Recentemente vendeu uma tela, comprou um telemóvel e, com o apoio da equipa do INMouraria, cumpriu um anseio antigo: criar uma página na internet onde junta as fotos que os turistas tiram, e assim dá a conhecer a sua obra e consegue mesmo vender criações suas. “Mas não assino os meus trabalhos”, diz. Aponta para as mãos, os braços, as botas, o corpo – pele e roupa perenemente cobertos de tinta. “Esta é a minha assinatura.”

Francisco Colaço Pedro

(Artigo publicado em maio de 2017 na edição em papel do Contacto. O artista em causa faleceu no passado mês de abril e aqui é recordado sob a forma de homenagem)

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