O típico gibi

17/05/2019

Foto: iStock/ Getty Images

 

O típico gibi norte-americano, ou comic book, apareceu em 1933. Tinha 36 páginas na proporção de 1/16 de uma folha de jornal da época — ou uma folha de jornal aberta, dobrada quatro vezes — e juntava um monte de tiras. Em 1934, saíram 79 gibis mais ou menos que nem aquele primeiro. Em 2014, foram 6.174. Nos 81 anos entre os dois pontos, os EUA publicaram 203.747 comic books.

Esta é a primeira conta curiosa a sair do What Were Comics, projeto de três professores de universidades norte-americanas: Bart Beaty (Universidade de Calgary), Nick Sousanis (da San Francisco State University) e Benjamin Woo (Carleton University), financiado pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Humanas do Canadá.

Os três são bem conhecidos de quem lê sobre HQ: Beaty tem dezessete livros sobre quadrinhos, desde trabalhos sobre o mercado europeu até um belo ensaio sobre os pontos de contato e contraste entre HQ e arte, Comics versus Art. Sousanis ganhou fama ao produzir em quadrinhos sua tese de doutorado, que virou o livro Desaplanar. E Woo assinou com Beaty o livro The Greatest Comic Book of All Time (“o melhor gibi de todos os tempos”) — um estudo sobre o que leva alguns quadrinhos a serem mais comentados que outros, ou sobre o “capital cultural” de certas HQs.

O Greatest Comic Book de Woo e Beaty foi um dos motivadores do What Were Comics. Se você pega uma lista de trabalhos acadêmicos sobre quadrinhos, a impressão é que metade deles trata de Watchmen e a outra metade trata de Maus. Há literalmente outros 203.700 gibis que passam ao largo do interesse de pesquisadores, críticos ou mesmo das rodas de papo do leitores. Mas muito do que define que Watchmen, Maus — e Fun Home e Jimmy Corrigan e Cavaleiro das Trevas e mais meia dúzia — são extraordinários é que existem os 203.700 ordinários. Só se sabe o que aqueles poucos têm de extra a partir do que os muitos têm de comum. Mas o que é esse comum, esse ordinário, esse usual — esse típico gibi?

É o que o projeto pretende descobrir. E não vai ser fácil.

Até que se ensine uma inteligência artificial a ler gibi, não dá para usar big data. Os pesquisadores trabalham com amostragens: 2% dos gibis publicados em cada ano de 1934 a 2014. A lista do total de gibis de cada ano passou por um programa que criou uma amostragem aleatória. No final das contas, eles têm que analisar 3.563 gibis.

 

Fonte: What Were Comics Blog

 

Bom, mesmo que se ensinasse uma inteligência artificial a ler gibis, você ainda teria que ter os gibis. Só para conseguir os 3.563 selecionados, foram três anos e meio de caça em lojas físicas, online e no eBay. Encontrar gibis das décadas de 1930 e 1940 foi um percalço: muito nem existem à venda, e os que existem fogem do orçamento de um projeto com verba pública. Uma Action Comics #17, de 1939, por exemplo, custa US$ 2700 (R$ 10.700). O programa de amostragem teve que rodar mais umas vezes até se chegar em gibis de aquisição possível, mas os 3.563 felizmente já ocupam as prateleiras de uma sala na Universidade de Calgary.

O que vai se ver nos gibis? Tudo. Com um bando de assistentes de pesquisa e um bom software para fazer as correlações, os 3.563 gibis serão digitalizados e codificados nos aspectos formato, história, página, quadro e paratextos (anúncios, seções de cartas, editoriais). O que significa codificar? Conferir número de páginas, número de quadros por página, desenho dos quadros, número de balões, número de palavras por balão, tipos de transição de quadro, gênero narrativo, estilo do desenho e vários, vários etc.

“No nível História, temos o número de páginas, se a história tem ou não tem título, onde o título aparece na história (início, fim ou outro lugar), se a história tem créditos, que tipo de créditos aparecem, onde aparecem e assim por diante”, diz Beaty em entrevista por e-mail. “Isso é o básico. Mais à frente vamos passar ao complicado. Até uma coisa que parece simples – qual é o gênero da história? – vira um problemão. Se tem cavalos e caubóis, podemos dizer que é western. Mas existem vários tipos de western, incluindo o western romântico e o western humorístico, e isso é subjetivo. Se quisermos codificar o gênero sexual dos personagens, por exemplo, nem sempre é claro qual o gênero de cada um em gibi com bichinho falante.”

Para quem quer entender melhor, vale a pena ler os posts no blog do projeto sobre Fun Home e Watchmen n. 1 (sim, eles se renderam aos hors concours, mas só para fins de exemplo). No caso do último: “Watchmen costuma ser louvada como um quadrinho realista porque não tem balões de pensamento nem onomatopeias, e se sabe que no rastro de Watchmen muitos quadrinistas abandonaram estes recursos. Temos como demonstrar isto com dados? No mais, se voltamos no tempo, vamos notar que a maioria dos gibis do Archie nos anos 1960 não tinham balão de pensamento nem onomatopeia. Watchmen seria radical por usar a mesma estilística de Archie?”

No momento, os pesquisadores estão fazendo a codificação dos paratextos. Beaty diz que “algumas dúzias” de assistentes de pesquisa já passaram pelo projeto e que, quando chegarem na análise de cada página, provavelmente serão de oito a dez assistentes trabalhando simultaneamente. A verba vai até 2021. Pelos planos, até lá o What Were Comics vai responder o que é o típico comic book.

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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

 

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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