As suas análises políticas e a exposição de ideias suscitaram apreço e admiração ao longo de mais de 40 anos. É o reflexo dessa intervenção pública de destaque que se encontra em ‘José Medeiros Ferreira: A Liberdade Interventiva’ (ed. Tinta da China), um livro que reúne mais de 100 testemunhos e declarações de personalidades da política e do pensamento português. Três Presidentes da República e quatro presidentes da Assembleia da República ajudam a apresentar o retrato do homem que antecipou o papel dos militares no derrube da ditadura do Estado Novo e acabou a alertar sobre o perigo de deixar os tecnocratas decidirem pelos cidadãos nas questões europeias.
Pioneiro nos três D
Uma das histórias mais curiosas referida em vários testemunhos tem a ver com a comunicação que José Medeiros Ferreira, à altura refugiado na Suíça, enviou ao III Congresso da Oposição Democrática, realizado em abril de 1973 na cidade de Aveiro, conhecida pelas tradições democráticas de algumas das suas elites .
António Reis escreve que conheceu Medeiros Ferreira em outubro de 1968, em Genebra, e foi portador da sua ‘Carta Aberta ao Exército Português’, cuja impressão a Stencil e respetiva distribuição clandestina organizou com Luís Salgado de Matos. No testemunho, lembra ter assistido à leitura por Maria Emília Brederode Santos, mulher de Medeiros Ferreira, da sua famosa tese sobre os três D (Democratizar, Descolonizar, Desenvolver), na qual se antevia o papel histórico das Forças Armadas no derrube da ditadura. Forças Armadas que, adianta, "acabariam por fazer dos três D o guião do Programa do MFA".
"As Forças Armadas já deram ao Governo um período excecional para a resolução política do problema colonial", respiga da tese de Medeiros Ferreira outro testemunho, da autoria de Nuno Ribeiro e intitulado ‘Um Visionário’.
A citação da comunicação ‘Da Necessidade de um Plano para a Nação’ prossegue no seguinte modo: "E diga-
-se em abono da verdade que oferecer dez anos para resolver politicamente uma guerra é raríssimo nos tempos que correm."
A tese, construída a partir da leitura do livro ‘Por Uma Guiné Melhor’, publicado em 1970 com assinatura do então general António de Spínola, observava ainda: "O Exército é a instituição que mais se confunde com a Nação. E embora o Exército seja objetivamente um instrumento da política das classes dirigentes, a instituição, enquanto tal, é interclassista e nacional. Semelhante natureza decorre da existência de um serviço militar obrigatório que torna presentes todas as classes sociais no seio da instituição."
A História deu razão a Medeiros Ferreira 12 meses depois, com o derrube do Estado Novo a 25 de abril de 1974, mas a realidade é que a tese não foi de facto bem recebida e nem sequer foi considerada nas conclusões do congresso, percorrido por lutas internas sobre a posição perante as eleições de novembro de 1973 para a Assembleia Nacional. Esta falta de lucidez não impediu, porém, que Medeiros Ferreira prosseguisse no seu pioneiro trabalho académico ‘Ensaio Histórico sobre a Revolução do 25 de Abril’.
Após Mário Soares, rotinado nos contactos políticos internacionais, ter exercido funções de ministro dos Negócios Estrangeiros nos primeiros quatro governos provisórios e a diplomacia passar por período menos ativo nos V e VI executivos pré-constistucionais, o 1º Governo Constitucional, resultante das eleições de 25 de abril de 1976 teve Mário Soares como primeiro-ministro e Medeiros Ferreira à frente dos Negócios Estrangeiros.
O antigo presidente da Assembleia da República António Almeida Santos destaca no seu testemunho esta tarefa difícil ."José Medeiros Ferreira esteve à altura do desafio de substituir Mário Soares e houve-se nele com destacado mérito. A descolonização estava praticamente feita. O que estava por fazer era a integração de Portugal na Europa, a caminho de unida, do então presente e do próximo futuro." "Portugal começou por ser admitido no Conselho da Europa, cujo instrumento Medeiros Ferreira subscreveu, e a 28 de março de 1977 foi apresentado o pedido de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, para o qual Medeiros Ferreira tinha ajudado a conjugar condições."
Os pressupostos do pedido de adesão de Portugal à CEE, que concebeu como ministro dos Negócios Estrangeiros, foram mais tarde base de um artigo de opinião que José Medeiros Ferreira assinou em 19 de março de 1979, no nº 1 do então novo jornal ‘Correio da Manhã’, por convite do diretor e fundador Vítor Direito. A presença foi recordada por ele próprio, com acutilância, num número de aniversário do ‘CM’ em que destacou o seu propósito de sempre de "influenciar e tomar opinião" e deixou um aviso: "O pior que nos pode acontecer é deixar os tecnocratas à solta, para decidirem por nós nas questões europeias". Foi também colaborador da CMTV.
‘Senhor Europa’
A lucidez da visão de Medeiros Ferreira é matéria de numerosos testemunhos do novo livro de homenagem, em que se evoca a sua inteligência política. "Medeiros Ferreira foi um europeísta quando isso ainda era raro e, na sua qualidade de ministro responsável pela negociação, teve um papel destacado na improvável adesão portuguesa à Comunidade Económica Europeia", começa por escrever Francisco Louçã, que a seguir contrapõe: "Mas, por ser um europeísta lúcido, tornou-se cético, mesmo quando quase todos quiseram fechar os olhos, e sobretudo realista, porque sabia que ‘a União Europeia não é o território ideal para qualquer utopia’".
O epíteto de ‘Senhor Europa’ cola na perfeição ao político e pensador que em 1999 escreveu ‘A Nova Era Europeia – De Genebra a Amesterdão’ e, como observa o testemunho de António Reis, "fechou com chave de ouro a sua carreira de investigador", ao publicar o "magnífico e lúcido ensaio ‘Não Há Mapa Cor-de-Rosa’, sobre a questão europeia".
A inteligência da sua análise está explicada no texto de António Barreto, companheiro de exílio antes do 25 de Abril, ao lado de camaradas também presentes em ‘José Medeiros Ferreira: A Liberdade Interventiva’. Destaca António Barreto: "Medeiros Ferreira era um homem muito inteligente e culto e capaz de perceber muitos sinais dos tempos que para a maior parte das pessoas ainda eram incógnitas. Percebia as tendências e as possibilidades com muita antecipação. Como intelectual e como político, era excecionalmente perspicaz. A perceção que ele teve do papel dos militares no derrube da ditadura é fruto dessa perspicácia, mas também do facto de ele pensar livremente."
O mesmo António Barreto, companheiro de análises e do debate político, sublinha: "O que mais me faz falta é a alegria do Zé Medeiros. Noite passada com ele, almoço ou jantar, viagem de política ou de turismo, reunião ou festa, a sua presença era garantia de um sorriso firme, de uma gargalhada inesquecível e de um sentido de humor cortante e eficaz."
Nos mais de 100 testemunhos e declarações recolhidos nas mais de 400 páginas do novo livro de homenagem, o homem José Medeiros Ferreiros está sempre vivo na evocação das suas ideias e reflexões. Ele viveu a liberdade, como escreve o ex-Presidente da República Jorge Sampaio, com "inquebrantável otimismo e uma capacidade estratégica surpreendente".