Academia.eduAcademia.edu
CIDADANIA, POLÍTICA, SEGURANÇA E CULTURA CIENTÍFICA CITIZENSHIP, POLITICS, SECURITY AND SCIENTIFIC CULTURE Maria Manuela Tavares Ribeiro Isabel Maria Freitas Valente Maria Fernanda Rollo Alice Cunha (Coords.) TÍTULO / TITLE Cidadania, Política, Segurança e Cultura Científica Citizenship, Politics, Security and Scientific Culture COORDENAÇÃO / EDITOR Maria Manuela Tavares Ribeiro; Isabel Maria Freitas Valente; Maria Fernanda Rollo; Alice Cunha EDIÇÃO / EDITION Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra – CEIS20 ISBN DIGITAL 978-972-8627-78-2 Março 2018 © Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem a prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infrator. SUMÁRIO Nota Prévia ........................................................................................... 5 União Europeia – A Comunidade de Direito e pelo Direito …? ............ 7 Eduardo R Lopes Rodrigues Acerca da Confiança dos cidadãos nas instituições nacionais e da União Europeia.............................................................................................. 55 José Manuel Caetano & António Bento Caleiro Herança Cultural Europeia. O passado e o futuro da Europa............... 85 Isabel Baltazar O realismo da governação e a europeização do PS (1976-1985) ......... 113 Dina Sebastião O federalismo europeu na perspectiva dos governos de Cavaco Silva e António Guterres .............................................................................. 149 Paulo Carvalho Vicente Revisão da Estratégia Europeia de Segurança – a Hora das Escolhas . 189 Liliana Reis Ferreira A projecção internacional de normas europeias através da condicionalidade: ocaso da República da Macedónia .......................... 221 Pascoal Santos Pereira A União Europeia e os BRICS: Parcerias Estratégicas para uma nova ordem mundial? ................................................................................. 237 José Manuel Caetano e Marco António Batista Martins The Cold War and the USSR: perceptions and interactions with Europe .............................................................................................. 271 Vanda Amaro Dias Le choix difficile entre communauté européenne et communauté atlantique : l’exemple du nucléaire ...................................................... 289 Aurélia Jandot Crise soberana e financeirização do capital: a periferia da Europa e a América Latina sob os auspícios de Hayek. ........................................ 307 Mayra Goulart O europeu Ribeiro Sanches e a medicina portuguesa de finais do século XVIII: sugestões para o ensino médico e farmacêutico ...................... 329 João Rui Pita Caminhos batidos de um peregrino do saber: Ricardo Jorge no contexto científico europeu ............................................................... 345 Rui Manuel Pinto Costa NOTA PRÉVIA O processo de construção europeia é um fenómeno que se insere numa evolução que nunca foi linear nem consensual, mas historicamente inevitável. Após a Segunda Guerra Mundial, a Europa está em pleno declínio. Nesta situação difícil, intensifica-se o confronto entre as duas Europas. Frente ao expansionismo soviético, os países da Europa Ocidental voltam-se para os Estados Unidos, que lhes confere ajuda económica e protecção militar. A reconstrução da Europa é então objecto de um vasto debate. Os acontecimentos de 1989, fazendo deste ano um lugar de memória europeu, conduziram a profundas mutações, não só na Europa Central e Oriental, mas também, na Europa Ocidental. O ano de 1989 levantou, com particular acuidade, a questão dos laços reais entre integração europeia e democratização. Com o presente E-book pretende-se pensar e reflectir sobre projectos de ordem política, económica, social e cultural e também pensar o seu futuro, o seu posicionamento estratégico, o seu papel no Mundo. Aos Autores, o nosso vivo agradecimento pela sua frutuosa colaboração. À Marlene Taveira, agradecemos a sua inestimável colaboração e disponibilidade de sempre. 5 UNIÃO EUROPEIA – A COMUNIDADE DE DIREITO E PELO DIREITO …? Eduardo R Lopes Rodrigues1 Resumo: Procura-se explorar a temporalidade dos Valores Comuns enquanto elementos constitutivos de base da Comunidade de Direito e, pelo Direito, e que presidiram aos Tratados Fundacionais, perante as vicissitudes dominantes dos últimos anos, nas suas diversificadas naturezas. Refletir-se-á sobre o cidadão enquanto centro de direito e seu destinatário através da exploração dos atributos autónomos da ordem jurídica comunitária. Colocar-se-ão em equação as tendências mais poderosas e crescentes do intergovernamentalismo tendo presente a multidimen-sionalidade do Direito e da Justiça, como perspetiva de reinvenção da Europa para o segundo quartel do sec. XXI. Inscreve-se uma referência ao projeto da Comissão Europeia de desencadear o debate sobre o FUTURO da EUROPA, no horizonte das eleições para o Parlamento Europeu de 2019. 1 Professor Associado, com agregação. Coordenador da Escola de Estudos Europeus. ISCSP, Universidade de Lisboa. Vice-Presidente do CA/AMT – Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (Regulador Económico Independente, nos termos da Lei-quadro nº 67/2013, de 28 de agosto, e dos seus Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei nº 78/2014, de 14 de maio). 7 NOTAS PRÉVIAS A. Queria naturalmente começar por felicitar as Instituições da UNIVERSIDADE de COIMBRA que substantivam a Organização deste II Colóquio Internacional da Revista DEBATER a EUROPA, e, em particular, a sua Comissão Cientifica, as Professoras Doutoras Maria Manuela Tavares Ribeiro e Isabel Valente. B. Queria ainda congratular-me com a data escolhida, i. e., num mês carregado de marcas simbólicas (10 anos do T. de Lisboa; 25 do T. Maastricht e 60 do T. Roma), em Portugal, há que dar relevo, ainda, a 28 de março de 1977, em que o então Primeiro Ministro Mário Soares, em cumprimento do Programa do I Governo Constitucional, assinou o pedido de adesão de Portugal às CE, depois do mesmo ter sido apresentado à Assembleia da República, onde foi aprovado com votos do PS/PSD, e, CDS, tendo-se registado 29 votos contra do PCP, da UDP, e, de 2 deputados independentes. C. Nesse debate na Assembleia da República, o Dr. Mário Soares defendeu que a integração de Portugal constitui “O prosseguimento lógico (…) da Revolução de Abril, e, da definitiva institucionalização da Democracia em Portugal” D. Ora, 40 anos volvidos, neste mesmo mês de março, o Presidente JUNCKER elenca cinco cenários de Futuros possíveis para a União … e, Portugal, sendo agora uma DEMOCRACIA soberanamente institucionalizada e, já com provas dadas, incluindo no âmbito do processo da Construção Europeia, carece de participar nesse debate assumindo uma oportunidade de dar mais um avanço significativo na sua QUALIDADE INTRINSECA. Seguramente que este II Colóquio Internacional da Revista Debater a Europa vai constituir um contributo assinalável nesse sentido. 8 I- INTRODUÇÃO 1. Com esta comunicação pretende-se dar relevo ao facto de o Sistema das Comunidades e da União Europeia ter sido desenhado inicialmente pela formatação jurídica da Vontade Política de seis Estados através de regras que, elas próprias, criaram dinâmicas para produzir autonomamente outras regras, sendo que a Ordem Jurídica daí adveniente começou por ser uma linha geopolítica de contenção da Guerra, e, hoje, é igualmente um paradigma civilizacional centrado na Dignidade da Pessoa. Todavia … nada garante que a União continue a evoluir neste sentido. Aliás, há que reconhecer frontalmente o insucesso desta Ordem Jurídica na sua contribuição para que a UNIÃO e os ESTADOS membros não tenham ainda conseguido superar as sequelas da sucessão de crises em que foram mergulhando, e, dos estragos advenientes de populismos de geometria variável, da extrema direita à extrema esquerda. A procura de originalidade desta Comunicação reside neste reconhecimento, e, sobretudo num exercício de prospetiva das potencialidades da ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA para reverter esta situação assumindo a ambição de refletir sobre os dois conceitos da matriz de base lhe está subjacente i.e. “Direito” e “Justiça”, sobretudo no contexto problematizante e, cada vez mais fraturado, dos futuros possíveis, da União Europeia como “Uma Comunidade de Direito e, pelo Direito”.2 A ideia de Europa3, já milenar, assumiu, logo no designado processo de Construção Europeia, VALORES COMUNS, i. e. a PAZ, a LIBERDADE, a DIGNIDADE da PESSOA e, o ESTADO de DIREITO DEMOCRÁTICO, que aqui, genericamente, se qualificam como sendo a 2 Recorda-se o antigo Presidente da Comissão Europeia, Walter HALLSTEIN (1958-1967) quando afirmou que a Comunidade desenvolveu-se sem ter nem exército nem policia, nos anos 60/séc. XX. 3 AAVV TAVARES RIBEIRO, Maria Manuela (coord) in “IDEIAS da EUROPA: Que Fronteiras”, Coimbra: Quarteto Editora, 2004, em que sobre diversos pontos de vista, se aprofundam temas que refletem esta diversidade de democracias, à volta da questão central autonomizada na seguinte questão que a Coordenadora enuncia: “Que fronteiras? (…) se a União Europeia conheceu novo e importante alargamento, como consolidar o seu aprofundamento?”. 9 UTOPIA COMUNITÁRIA, desenhada – contrariamente ao que possa parecer – numa gramática jurídica, e que estavam na base de ambiciosos OBJETIVOS POLÍTICOS. Desde os remotos anos de 1949-1951, com relevo para a Declaração Schuman (9. mai.1950) e o Tratado de Paris (1951) até à contemporaneidade do Tratado de Maastricht (1.11.1993), a Construção Europeia foi sendo efetivada como uma resposta jurídica vinculativa a questões geopolíticas de Guerra e de Paz4. Assim se foi desenhando uma PAUTA AXIOLÓGICA de VALORES, constitutiva dessa COMUNIDADE, sendo que esta também gerava novas respostas jurídicas vinculativas, justificando desse modo o qualificativo de “Comunidade … pelo Direito”, que está espelhado no titulo desta Comunicação. Todavia esta realidade foi-se tornando cada vez mais difícil numa Europa permanentemente em transformação, e confrontada com dinâmicas heterogéneas de Globalização, que só de forma muito cosmética e epidérmica nos aproximam, e, nos fazem crer que somos cidadãos do Mundo, quando, na realidade, nos isolam em “ilhas” de génese e de natureza muito variável…”pois não alcançamos o que de facto se passa, nem apuramos quem realmente determina “(Dom Manuel Clemente, 2016:54).5 2. Poder-se-á dizer que, quer o “Direito” quer a “Justiça”, são ignorados pelas Forças que, no terreno, têm vindo, recentemente, a reconfigurar a União Europeia?6 Essas Forças têm produzido o esquecimento, em largos segmentos de População – jovens e adultos – sobre a razão de ser de muitos elementos do nosso quotidiano. Na verdade, quem conhece as principais racionalida- 4 FONTAINE, Pascal, “Uma Ideia Nova para a Europa, A declaração Schuman 19502000”, 2.ª ed., COMISSÃO EUROPEIA, Bruxelas, 2000. 5 CLEMENTE, Dom Manuel, “Joga-se aqui o Essencial, um olhar sobre o que somos”, Porto: Assírio e Alvim, 2016. 6 A União Europeia, em sentido jurídico e político nasceu com o Tratado de Maastricht assinado a 7 de fev. de 1992 – efeméride que há pouco registou 25 anos de existência, sem ter dado azo a celebrações mediáticas -, tendo entrado em vigor a 1.11.1993. 10 des de um Tratado (1) abriu caminho à mais importante transferência de soberania7 operada dos Estados para as instituições Europeias, designadamente o Banco Central Europeu, em paralelo com o que já havia ocorrido relativamente à Comissão Europeia e ao Tribunal de Justiça; (2) reforçou a Cidadania8 Europeia; (3) intensificou a impregnação das Políticas Comunitárias com alguns VALORES COMUNS, entre os quais, o da PAZ, o do ESTADO de DIREITO DEMOCRÁTICO, e, o da JUSTIÇA? Quem conhece que a Construção Europeia, na formulação contemporânea dos Tratados de Paris (1951) e de Roma (1957) foi orientada por uma UTOPIA desenhada numa simbiose entre o ORDOLIBERALISMO e a DOUTRINA SOCIAL da IGREJA CATÓLICA? Quem, na gente nova de hoje, sabe que o Pensamento ordoliberal foi-se desenvolvendo na Universidade de Freiburg, na clandestinidade face à Tirania criminosa do Regime Nazi, mas também hostil ao Estatismo da então URSS e, começou por inspirar a reconstrução da Alemanha, concretamente através da designada economia social de mercado, do chanceler KONRAD ADENAUER, cujos alicerces têm sobretudo a visibilidade do economista Walter EUCKEN, 9 e da jurista Franz BÖHM? E que desta equipa se desenvolveram novas “pontes” entre a Justiça e o Direito? E quantos Portugueses conhecem qualquer coisa minimamente relevante sobre o Tratado de Lisboa?10 7 Para alguns autores, operou-se uma atribuição de competências soberanas, e, não uma transferência. Qualquer que seja a posição doutrinária a este propósito, o facto relevante é que passaram a ser instituições supraestaduais a ter competência para exercer estes Poderes. 8 MOURA RAMOS, Rui Manuel, “Da Livre Circulação de Pessoas à Cidadania Europeia”, in ALMEIDA, M. T. e PIÇARRA, N. (coord.) “50 anos Tratado de Roma”, Lisboa: Âncora Editora 2008. Claramente a Cidadania Europeia vem contribuir para um aumento sustentado da MOBILIDADE no interior da EUROPA, o que vem corresponder a uma condição para o sucesso das Zonas Ótimas. 9 Ver tradução portuguesa da sua obra mais importante, “Os Fundamentos da Economia Política” publicada pela GULBENKIAN, 1998. Entre os nomes do Ordoliberalismo, destacam-se GROSMANN-DOERTH; MULLER-ARMAK; RUSTOW e RÖPKE. 10 Ver p. ex.: GORJÃO-HENRIQUES Miguel (org.), Tratado de Lisboa, (6.ª edição) Coimbra: Almedina, 2015; 11 Saberão ao menos que ele é uma espécie – perdoar-me-ão a falta de rigor – de “segunda Constituição material do País”, construída à imagem da Constituição para a União Europeia que não chegou a ser aprovado?11 I.1- Objeto 3. A presente Comunicação ainda que numa linguagem quase telegráfica, visa:  Refletir sobre os VALORES COMUNS que inspiram o processo de CONSTRUÇÃO EUROPEIA.  Recuperar as forças motrizes geopolíticas fundamentais do processo de Construção Europeia para concluir que, não obstante as vicissitudes fraturantes, este processo vai prosseguir os seus caminhos plurais, rumo à sua escatologia de UTOPIA.  Valorizar o Direito e a Justiça nessa odisseia.  Acentuar as potencialidades da apologia da ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA para o reforço da Posição da UNIÃO EUROPEIA não só perante os EUROPEUS, mas também no MUNDO. 4. Os maiores desafios que o Direito em geral, e, também, na multiplicidade dos seus ramos, é convidado a saber superar com sucesso, residem na forma como os seus normativos devem evoluir em ordem a assegurar a efetividade dos direitos das Pessoas, na sua dignidade intrínseca e irrepetível, em paralelo com os direitos das empresas e os interesses dos Estados. PIRIS, Jean-Claude, “The Lisbon Treaty, Alegal and Political Analysis”, Cambridge: Cambridge University Press, 2010, pp. 7 e segs. 11 Referência ao Tratado que estabelecia uma Constituição para a Europa, elaborado na sequência do método convencional (2002-2003), seguido da clássica Conferência Intergovernamental (4.10.2003-2004), assinado a 29.out.2004 e, que não chegou a entrar em vigor, por não ter sido ratificado (através do procedimento referendário) em França e, na Holanda, não obstante ter sido ratificado por muitos outros Estados membro. 12 Neste sentido, estes desafios identificam-se com os “momentos fractais da ideia constitucional”12 de que fala o Professor GOMES CANOTILHO, corporizando o movimento do constitucionalismo, enquanto “princípio do Governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade”. Esta realidade abre portas para que seja possível escolher como indicador da presença do Direito a designada norma de Reconhecimento: O Direito é aquilo que é reconhecido como tal, com a função estabilizadora de uma dada comunidade.13 Aqui reside precisamente o caminho para identificar a característica ontológica que distingue as Comunidades Europeias14 e a União Europeia de qualquer outra Organização Internacional na História e no Mundo Contemporâneo, ou seja, a singularidade única da sua Ordem Jurídica. CANOTILHO, J. J. Gomes, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Coimbra: Almedina 7.ª ed., 14.ª reimp., pp. 51 13 HESPANHA, António Manuel, “O Caleidoscópio do Direito. O Direito e a Justiça nos Dias e no Mundo de Hoje” Coimbra: Almedina, 2009 14 Como se sabe este processo começou em 1951 com o Tratado de Paris, seguindo-se em 1957 com os Tratados de Roma, um, relativo à CEE, e, outro à EURATOM. O Tratado de Roma CEE, foi objeto de diversos desenvolvimentos, os mais importantes dos quais foram o Acto Único Europeu (que entrou em vigor em 1987); O Tratado de Maastricht (1993); o de Amesterdão (1999); o de Nice (2003); seguindo-se depois um novo Tratado, o de Lisboa (2009). 12 13 Na verdade, o conjunto de atributos/valores que definem esta Ordem Jurídica15, desde a autonomia ao primado16, da aplicação direta ao efeito direto17 15 LOUIS, Jean-Victor, “Ordem Jurídica Comunitária”, Comissão Europeia, Perspetivas Europeias, 5.ª ed. Revista e atualizada, Bruxelas: 1994. 16 JORGE MIRANDA, “A Constituição Europeia e, a ordem jurídica Portuguesa”, in UC, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, Colóquio Ibérico: Constituição Europeia. Homenagem ao Doutor FRANCISCO LUCAS PIRES, 2005, pp.537, recorda “os pontos nucleares da orientação do Tribunal de Justiça: 1.º Os tratados europeus criaram uma ordem jurídica a se, que envolve as ordens jurídicas dos Estados membros; 2ºAs normas jurídicas comunitárias têm aplicação imediata nos Estados membros e vinculam todos os seus órgãos, sendo inadmissível a necessidade de mediação de leis internas; 3.º Eles têm efeito direto, podendo ser invocáveis enquanto tais em tribunal; 4º A validade das normas jurídicas comunitárias não depende das ordens jurídicas nacionais, não podendo, na sua interpretação e na sua aplicação, ser tidas em conta as regras e as noções destas ordens jurídicas; 5.º Pela sua própria razão de ser e por um princípio de igualdade entre os cidadãos, as empresas e os Estados, as normas comunitárias têm de receber aplicação uniforme em todos os Estados membros; 6.º A incorporação das normas comunitárias na ordem interna de cada Estado membro, aceite na base da reciprocidade, impede quaisquer medidas unilaterais que ele possa adoptar; 7.º A validade das normas e dos actos dimanados de órgãos comunitários só pode ser apreciada à luz do Direito comunitário; 8.º As normas comunitárias tornam inaplicáveis de pleno direito as normas contrárias decretadas pelos Estados membros, sejam previgentes ou subsequentes à sua formação; 9.º Por esse mesmo postulado de congruência estrutural, nem sequer se lhes pode opor normas constitucionais internas; 10.º Donde, o primado do Direito comunitário; 11.º Órgãos de aplicação do Direito comunitário tanto são o Tribunal de Justiça e o Tribunal de 1ª Instância das Comunidades como os tribunais dos Estados membros, enquanto decidam segundo normas comunitárias; 12.º No entanto, para garantia ainda da aplicação uniforme do Direito comunitário, cabe ao Tribunal de Justiça proceder à sua interpretação, mediante o mecanismo de reenvio prejudicial a que estão adstritos os tribunais nacionais; 13.º A acção por incumprimento, a propor pela Comissão contra os Estados, é uma garantia complementar da execução do Direito comunitário.” 17 Os atos mais emblemáticos e, verdadeiramente pioneiros do Tribunal de Justiça são: o acórdão Costa-ENEL, de 15 de julho de 1964; o acórdão Internationale Handelsgesshschaft, de 17 de dezembro de 1970; o acórdão Simenthal, de 9 de março de 1978. Ver, por ex: MARIA ISABEL JALLES, “Primado do Direito Comunitário sobre o Direito nacional”, in “Documentação e Direito Comparado”, nº 4, 1980, págs. 13 e segs.; ROBERT KOVAR, “As relações entre o Direito Comunitário e os Direitos nacionais”, in 14 horizontal e vertical, não têm paralelo conhecido nem na História nem no Mundo. E, é reconhecido como tal, pela generalidade dos Estados, das Organizações Internacionais e, das individualidades mais relevantes dos meios científicos, académicos, filosóficos e culturais. 5. Por sua vez, os maiores desafios que a Justiça é convidada a superar com sucesso podem ou devem ser vistas a partir de diversas abordagens de filosofia política até desaguarem em teorias de maior ou menor pendor “construtivista”, assumidas por autores famosos e incontornáveis como John RAWLS18 e Jürgen HABERMAS.19 Aqui dir-se-á apenas que se a Justiça é o “Fim e o Fundamento do PODER”,20 e nesse sentido ela é sempre uma bússola imperativa para o Estado, e, para a União Europeia, enquanto Centros de Poder Político. Em termos mais operacionais adotar-se-á como referência o imperativo categórico do “inevitável”21 KANT, ou seja: “Tratar a Pessoa como um fim em si mesmo, e, nunca instrumento de um qualquer outro objetivo ou desígnio.” A este propósito é sempre oportuno recordar SANTO AGOSTINHO quando teoriza que um Estado sem Justiça é um bando organizado de ladrões, 22 sendo certo que diria o mesmo relativamente à União Europeia, se, porventura a tivesse conhecido. “Trinta Anos de Direito Comunitário”, obra colectiva, Bruxelas-Luxemburgo, 1981, págs. 115 e segs.; MARTINS, Ana M. Guerra, in “Curso de Direito Constitucional da União Europeia”, Coimbra: Almedina, 2004. 18 RAWLS, John, “A Theory of Justice”, Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1971. 19 HABERMAS, Jürgen, “The inclusion of the Other: Studies in Political Theory”, Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1998. 20 OTERO, Paulo, “Direito Constitucional Português”, vol. II “Organização do Poder Político”, Coimbra: Almedina p. 198. 21 Parafraseando o qualificativo que lhe é atribuído por diversos autores, mas em particular por João J. VILA-CHÃ, in Revista Portuguesa de Filosofia, Tomo 61, Fasc.2, 2005. 22 SANTO AGOSTINHO, “A Cidade de Deus”, Livro XIX, cap. XXI (III vol.), Lisboa: F. C. Gulbenkian, 1995, pp 1942. 15 Neste contexto a problemática da Despesa Justa teorizada recentemente entre nós por Maria d’Oliveira MARTINS tem enorme atualidade23 e, daí devem extrair-se perspetivas que permitam tornar a presença da “justiça” mais percecionável aos olhos dos cidadãos. Estas perspetivas abrem espaço para conhecer as Políticas de Regulação na União Europeia sobre a Despesa Pública Justa, que deve ser ponderada no possível financiamento dos Bens de Mérito24, e, dos Serviços Públicos Essenciais,25cuja escolha é matéria exclusiva da Soberania dos Estados, tal como reconhece o Acórdão Altmark,26 mas cuja execução já è da competência exclusiva de algumas instituições da UNIÃO, desenhando-se no seu conjunto, concretamente, uma REGULAÇÃO de ELEVADA QUALIDADE, assumida pelo PODER POLÍTICO transversal aos ESTADOS e às INSTITUIÇÕES da UNIÃO, que estão vinculados pelo objetivo consagrado no artigo 3.º do Tratado da UNIÃO com a redação de LISBOA (2009) de uma ECONOMIA SOCIAL de MERCADO ALTAMENTE COMPETITIVA, ao serviço das PESSOAS, e, neste sentido, esse PODER POLÍTICO é aqui qualificado como “ESTADO27 REGULADOR SUBLIMADOR”28. MARTINS, Maria d’Oliveira, “A Despesa Pública Justa” Coimbra: Almedina, pp. 44 e segs. Sobre esta temática, ver também: MORENO, Carlos Moreno, “Como o Estado gasta o nosso dinheiro”, Lisboa: Leya, 2010; FERREIRA, José Gomes, “O meu programa de Governo”, 2.ª ed. Lisboa: Livros d’Hoje, 2013. 24 MUSGRAVE, R.A., “The theory of Public Finance”, New York: MC Grawhill, 1959; MUSGRAVE, R.A. and MUSGRAVE, Peggy B., “Public Finance in Theory and Practice”, New York: Mc Graw-Hill, 1989. PEREIRA, P.T., AFONSO, A., ARCANJO, M. e SANTOS, José C.G., “Economia e Finanças Públicas”, Lisboa: Escolar Editora, 2.ª ed. 25 LOPES RODRIGUES, E. R., “O Paradigma Político da União Europeia e os Serviços de Interesse Económico Geral: Um desafio à Criatividade Concorrencial dos Estados.”, Revista Portuguesa de Management, Lisboa, n.º 1, pp. 31-48, 2007. 26 Acórdão do TRIBUNAL de JUSTIÇA de 24 de julho de 2003, abreviadamente “ALTMARK”, Processo C-280/00, col. 2003, pp. 7747. 27 Aqui o termo “ESTADO” pretende significar “PODER POLÍTICO” seja ele de natureza estadual ou da União Europeia. 28 O qualificativo de “SUBLIMADOR” exprime, como se verá adiante, a exigência que impende sobre o exercício do PODER POLÍTICO de otimizar o desempenho do DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL na sua trilogia de Produção de Riqueza; Inclusão Social; e, Proteção da Natureza. 23 16 I.2- Metodologia 6. Reflexão crítica multidisciplinar focada em Questões Polares: QP 1.- Que VALORES COMUNS? QP 2.- Que Forças Motrizes inspiradoras atualmente do processo de CONSTRUÇÃO EUROPEIA? QP 3.- Que panorama INTERGOVERNAMENTAL e SUPRA ESTADUAL? QP 4.- Que futuro para a EUROPA? Para tentar conciliar a vastidão e a diversidade dos temas suscitados, com a exiguidade do espaço e do tempo que nos é atribuído, forçoso é recorrer a uma linguagem relativamente sincopada. 7. Note-se que Direito e Justiça não são categorias que se legitimem necessariamente entre si, tudo dependendo da geografia concorrencial29 concreta em que a questão se coloque. Nas geografias mais centradas na PESSOA, e, na sua dignidade intrínseca e irrepetível, o Direito deve ser justo, sendo certo que a realidade revela-nos que nem sempre é assim. Conforme se sublinha numa obra de referência na doutrina especializada no Reino Unido30 e também noutros Países, a ideia de Justiça estabelece uma “ponte” entre o Direito e a Ética, sobretudo nos termos de que “a justiça é simultaneamente uma virtude especialmente apropriada ao direito e a mais jurídica das virtudes”. I.3- Contexto 8. Nos últimos anos, as instituições mais envolvidas nas estratégias políticas e financeiras mais vocacionadas para superar a sucessão de crises Conceito introduzido em LOPES RODRIGUES, E. R., (2007) “Políticas Públicas de Promoção de Concorrência”, Lisboa: ISCSP, pp 114 30 HART, Herbert L. A., “O Conceito de Direito”, Lisboa: F. C. Gulbenkian, 6.ª ed., 2011, pp. 12. 29 17 têm-se esquecido de valorizar devidamente o Direito Comunitário, enquanto conquista civilizacional e elemento Cultural de primeira grandeza na construção da Identidade Europeia31. Entretanto o ano de 2017 tem vindo a revelar um contexto caracterizado por: (1) Uma convergência de riscos de incertezas eleitorais que ameaçam o projeto europeu32; (2) Um crescimento assaz moderado (inferior a 2%), revelador da persistência da alta de investimento33; (3) O orçamento para 2017 situa-se nos 157.86 biliões de euros, representando apenas 2% do total de despesa pública na União Europeia, e aproximadamente 1% do Rendimento Bruto Nacional. Esta situação assume uma maior acutilância uma vez que a Política monetária do BCE, com taxas de juro próximas do zero, já não tem grandes virtualidades, quando por razões decorrentes do controlo da dívida pública e do défice, as políticas orçamentais dos Estados estão circunscritas a configurações pouco Keynesianas; (4) A singularidade deste contexto é ampliada pelo facto objetivo de o processo de Construção Europeia, cuja energia lhe advém dos VALORES COMUNS, incluindo a democracia liberal ter suscitado a convergência destrutiva dos registos de TRUMP34 e, de PUTIN35; MOURA, Vasco Graça, “A identidade cultural europeia”, Lisboa: FFMS, 2013. Ano de eleições em França, (Marine Le Pen, extrema direita 7 de maio) na Holanda (Geert Wilders, populista anti-islâmico 15 de março, que contudo foi superado pela vitória do atual Primeiro Ministro em exercício, Mark RUTTE, do Centro de Direita, e, que celebrou a vitória com uma expressão que ficou desde logo célebre, “a Holanda rejeitou the bad sort of populism”, in the Economist 1824 march.) e na Alemanha (risco de grande valorização da extrema direita setembro) que são determinantes par o futuro da Europa. 33 PARLAMENTO EUROPEU, EPRS, ”Economic and Budgetary outlook for the European Union 2017, jan. 2017, pp1 34 ROGEIRO, Nuno, “O Pacto Donald TRUMP, Novo Contrato com a América, ou Fraude?”, Lisboa: Dom Quixote, 2017. 35 Um dos sonhos ilusionistas mais perigosos de Donald TRUMP é a rota de negociação com Vladimir PUTIN na base de um alegado Mundo Bipolar que formalmente desde 1989-1999 simplesmente deixou de existir. Estamos cada vez mais entranhados num Mundo Pluricêntrico e Multipolar apesar do americano médio encantado com a sua imensa continentalidade por vezes parece que ainda não o compreendeu. De uma forma muito diferente os anteriores Presidentes dos EUA tentaram estabelecer as bases do relacionamento com o Presidente da Federação Russa na base do direito internacional, mas para referir apenas, o antecedente próximo, Barack 31 32 18 (5) Também como consequência da nova política norte americana avolumam-se riscos de uma “guerra comercial”, e de fragmentação multilateral do tecido estabelecido no contexto da Organização Mundial do Comércio. A ideia de cultivar na Rússia um aliado contra a expansão da CHINA, fora das regras do direito internacional, e dos VALORES do PATRIMÓNIO COMUM da HUMANIDADE, é uma armadilha e uma ameaça à PAZ.36 II- Que VALORES COMUNS? 9. A ideia de VALORES COMUNS tem raízes Históricas muito antigas, conheceu diversas temporalidades, e, tem sido assumida por instituições diversas, quer nascidas da tradição intergovernamental, quer ainda das inovações disruptivas de natureza supra estadual. Uma Comunidade Política define-se pelos seus Valores, por quem nela exerce o seu Poder Político, e pela noção clara de quem lhe pertence, em contraponto com quem não lhe pertence. Significa isto que o Direito que dá vida a essas comunidades é, ainda que em termos embrionários, verdadeiramente a sua CONSTITUIÇÃO, ainda que, por ventura, não formalizado em nenhum texto ou documento, com esse nome. Por alguma razão os Estados Membro concordaram em transferir competências soberanas para as instituições supraestaduais, mas não concordaram em conferir a essas novas entidades um qualquer PODER CONSTITUINTE. Na ausência desse PODER CONSTITUINTE, há que, contudo, ter presente que a FORMALIZAÇÃO JURÍDICA dos VALORES FUNDAMENTAIS em paralelo com os REGULAMENTOS e a JURISPRUDÊNCIA que os operacionaliza, muito dificilmente poderá ser revertida. OBAMA, o saldo que este conseguiu no final do seu segundo mandato, foi a passividade efetiva perante a anexação da CRIMEIA. 36 Ver The Economist, 11 fev. 2017, pp7, “Courting Russia”. 19 Nesse sentido, a Comunidade Política, adquire uma sustentabilidade intergeracional, pelo DIREITO que ela própria cria, ou seja, é também aqui uma Comunidade … pelo Direto. 10. De qualquer modo a primeira formulação claramente assumida ocorreu numa organização intergovernamental, quando a Europa e o Mundo se procuravam erguer das ruínas das hecatombes indescritíveis dos epílogos de 3 guerras de dimensão global iniciadas em território europeu (1870,1914, e 1939), os VALORES COMUNS assumem uma temporalidade ontológica precisamente no ato constitutivo de uma organização intergovernamental, entrada em vigor na ordem internacional a 3 de agosto de 1949. Tratou-se do CONSELHO da EUROPA, em cujo Estatuto se pode ler que, os Governos dos Reinos da Bélgica, da Dinamarca, dos Países Baixos, da Noruega, da Suécia, do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda; das Repúblicas Francesas, Irlandesa; e, do Grão-Ducado do Luxemburgo, “reafirmam a sua adesão após VALORES ESPIRITUAIS e MORAIS que são o PATRIMONIO COMUM dos seus POVOS, e, que estão na origem dos Princípios da Liberdade Individual, Política, e, do PRIMADO do Direito, sobre os quais se funda qualquer verdadeira Democracia”. Na EUROPA COMUNITÁRIA só viria a ocorrer algo de paralelo com o Tratado de Amsterdão.37 11. Reconhece-se que, pelo menos formalmente38, as verdadeiras Democracias têm como fundamento, VALORES COMUNS, 37 MARTINS, Ana M. Guerra, “Manual de Direito da União Europeia”, 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2017 pp. 198-223 (Valores e Objetivos). Na pp. 198 “… é somente na revisão dos Tratados realizada em Amsterdão que se introduziu o antigo artigo 6.º, n.º 1, no TUE, do qual se inferiam, implicitamente os Valores da União, dado que a cada um dos princípios nele enunciados deveria corresponder um Valor.” 38 Parafraseando de certo modo o conceito de “pragmatismo esclarecido” utilizado nas metodologias habituais de análise pelo Professor Doutor ERNANI R. LOPES, Diretor do Instituto de Estudos Europeus da UCP, há que reconhecer que a Europa e as suas democracias ocidentais foram espraiando os seus Valores e a sua Cultura a todo o Continente, mesmo quando são contraditados, ver por exemplo “Europa: conceito cultural ou mera zona geográfica?” in CAPELOA GIL, Isabel (org.) Identidade Europeia Identidades na Europa; Lisboa: FCH/UCP, 2009, p. 27. 20 ESPIRITUAIS e MORAIS, que constituem o Património Comum dos Povos, e, são os alicerces inspiradores da Liberdade individual e Política. Todavia … os VALORES COMUNS, por mais edificantes que possam ser, apenas permitem orientar os comportamentos das pessoas e as decisões de empresas e de Estados se forem “comunicados” através de uma forma, que tenha o Poder da Glória, i. e. o Poder intrínseco de assumir a “forma” de regras vinculantes e coercivas39. Essa “forma” é o Direito emitido por entidades que de alguma forma exercem uma jurisdição supraestadual. Ora, é esta a diferença do Direito Comunitário, justamente quando comparado com a grande generalidade das Normas do Direito Internacional. Enquanto que este não tem qualquer Poder Legislativo, o Direito Comunitário emite normas que condicionam os Estados quer na sua esfera interna quer na externa. Claramente o roteiro para a densificação jurídica destas “normas” assumiu uma nova configuração entre supraestadual e o intergovernamental a partir da crise que permitiu sair do euroceticismo do final dos anos 80. Com a entrada em vigor do Ato Único Europeu (AUE,) a 1 de julho de 1987 adotou-se uma primeira referência explicita, ainda que exclusivamente no Preambulo, dos VALORES COMUNS. Afirma-se que os Estados membro estão dispostos a promover a democracia em conjunto, que se funda nos direitos fundamentais reconhecidos nas constituições dos EMs, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e, na Carta Social Europeia, nomeadamente, a Liberdade, a Igualdade e a Justiça Social40. No Preâmbulo do Tratado de Lisboa (2009) temos a seguinte referência: “Inspirando-se no Património cultural, religioso e humanista da Europa …”, e, no seu art.º 2.º estatui: Neste sentido, a União Europeia também é designada como “Ator Normativo”. Ver Ana Isabel Xavier, “O ator normativo na era do Nobel. Quo Vadis EU?” in Janus.net consultado em 27.2.2017. 40 AAVV MARTINS, Ana M. Guerra (coord) “Estudos de Direito Europeu e Internacional dos Direitos Humanos”, Coimbra: Almedina, 2005, e, “Constitucionalismo Europeu em crise? Estudos sobre a Constituição Europeia”, Lisboa: AAFDL, 2006. 39 21 “A União funda-se nos Valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e do Respeito pelos Direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias.” Este elenco de valores reproduz no essencial a Declaração sobre a identidade europeia (14 dez. 1973), acrescido do “inciso da democracia participativa”41 bem como no que mais adiante, pode ler-se “Nenhuma realidade nascida de plúrimos Estados jamais consignou, com tamanha amplitude, o leque de valores da identidade europeia”. Em termos mais injuntivos quanto à adesão e à permanência na União importa completar esta visão axiológica com os artigos 7.º e 49.º do TUE. O desrespeito por estes valores pode significar as sanções previstas no art.º 7.º, incluindo a suspensão de um dado E. M. da União42 enquanto que a sua verificação é uma condição de candidatura a ser membro da EU nos termos do art.º 47.º do TUE. 12. No Tratado de Lisboa, (TFUE, art.º 2.º) este Princípio tem uma consequência prática, na sequência de uma pressão política dos Länder Alemães com uma delimitação precisa das competências que são exclusivas da União face àquelas que são partilhadas com os Estados Membros, e, ainda relativamente àquelas que pertencendo de raiz aos Estados, são ainda objeto de competências de apoio por parte das Instituições da União Europeia. O Valor da DEMOCRACIA na UNIÃO EUROPEIA encontra-se substancialmente ampliado e respeitado na UNIÃO EUROPEIA, em conformidade com o Tratado de LISBOA. Sem ser exaustivo refiram-se apenas alguns novos “traços” do perfil político inovador do PARLAMENTO EUROPEU. É claramente a instituição que mais poderes adquiriu, e, para além disso a sua constituição reflete a diversidade de Povos Europeus através da fórmula do art.º 14.º do TUE (2009), “representantes dos cidadãos da União”, no seu conjunto. REBELO de SOUSA, Marcelo, “comentário ao artigo 2.º” do Tratado de Lisboa anotado e comentado (coord), Manuel PORTO e Gonçalo ANASTÁCIO, Coimbra: Almedina pp 27. 42 Em certa medida dando continuidade ao estabelecido no Tratado de Amesterdão que pela primeira vez consagrou o respeito pelos Direitos do Homem e da Democracia como uma condição de pertença à UNIÃO: 41 22 Significa isto que os deputados europeus muito embora sejam eleitos em círculos nacionais ou regionais representam todos os cidadãos da União. Exerce os poderes legislativos incluindo os do domínio orçamental juntamente com o Conselho, que representa os Estados e os seus Governos, através da generalização do designado processo “co-decisão”, que agora passou a ser designado “processo legislativo ordinário” (at.º 289 do TFUE. Mas para além disso recebeu também competências na nomeação e no controlo dos Titulares de Altos Cargos Políticos. Elege o Presidente da Comissão, sob proposta do Conselho, dá um voto de aprovação global à Comissão, elege o Provedor de Justiça Europeu, submete a audição parlamentar as pessoas indigitadas para cargos decisivos como o Presidente e Vice-Presidente do Banco Central Europeu. 13. Mas apesar dos fundamentos que lhes advém da respetiva PAUTA AXIOLÓGICA as democracias43 não são nem uma geração espontânea das sociedades, nem uma vez alcançadas formalmente, se tornam perenes. Ou se aprofundam aumentando a sua qualidade intrínseca, rumo à excelência, ou entram em declínio, e, rapidamente degeneram para formas perversas. Todavia, não obstante importa ter presente que as Democracias não se esgotam num formalismo de liberdades associadas ao ato de votar. Entre muitas outras realidades, exigem, - como é sabido – o controlo do Poder económico visando garantir uma efetiva liberdade de escolha dos cidadãos, sejam eles empreendedores, utilizadores/utentes/consumidores e contribuintes. Nesse sentido, a construção comunitária, singularizou-se desde logo, por ter adotado um “antídoto” contra essas “derivas” através de um 43 Ver por exemplo:  BOBBIO, Norberto, “O Futuro da Democracia” (1984) trad. São Paulo: Paz e Terra, 2000.  JONES, E. L., “O Milagre Europeu”, Cambridge University Press, 1981.  CASTELLS, M. e SERRA, N., (coord.) “Guerra e Paz no séc. XXI”, Fim de Século, 2003. 23 paradigma de concorrência, absolutamente inovador e disruptivo, qualificado pela expressão “não falseada”, que tanto se aplica aos Estados como às Empresas, e que ao longo de décadas tem vindo a funcionar como a Quinta liberdade em complemento das Quatro liberdades estruturais constitutivas do Mercado Comum. Por conseguinte, a Comunidade de Direito foi-se densificando pelo Direito desde logo através de um Perfil ontológico de Políticas da Concorrência e da Regulação,44 de forma a viabilizar o objetivo presente no artigo 3.º do novo TUE (2009) relativo a uma ECONOMIA SOCIAL de MERCADO ALTAMENTE COMPETITIVA. Ora, a realização deste objetivo axiológico só será exequível mediante a adoção generalizada de um mix de Políticas de Concorrência e, de Regulação que saibam ser capazes de se reforçarem mutuamente, e, de gerarem sinergias. Na verdade as Políticas de Concorrência e de Regulação podem evoluir no sentido de deixarem de ter objetivos conflituantes45, como ocorreu historicamente, e, continua a ocorrer em diversas geografias concorrenciais, para passarem a ter os mesmos objetivos, de promoção e de defesa de determinados bens públicos, e respeitando senão mesmo, aprofundando e desenvolvendo as distinções metodológicas tradicionais, ou seja, (1) intervenção ex-ante, para as Políticas de Regulação; e, (2) intervenção ex-post, para as Políticas de Concorrência46 44 Ver, por exemplo:  BELLAMY, G. e CHILD, G., “European Union Law of Competition”, 7.ª ed., Oxford: Oxford University Press, 2017.  GORJÃO-HENRIQUES, Miguel, “Direito da União, História, Direito, Cidadania, Mercado Interno e Concorrência”, Coimbra: Almedina, 6.ª ed., 2010, pp. 639-741.  LOPES RODRIGUES, E.R., “Boletim do Ministério Público nºs 113 e 114”, Lisboa: Procuradoria Geral da República, 2007.  CARLOS TAVARES, “Políticas Microeconómicas para Portugal. Fundamentos Histórias e Factos da Retoma Económica Editora, 2002-2004”, Lisboa: FUBU Editores, 2007 (que inclui o contexto e a problemática da escolha política da criação da Autoridade da Concorrência, pp. 87 e segs). 45 GERADIN, D., MUNOZ, R. and PETIT, R., “Regulation through Agencies in the EU – a new paradigm of european governance”, Massachusetts: Edward Elgar, 2005. 46 Presentemente a grande exceção a esta regra reside no controlo prévio das operações de fusão e de concentração de empresas, que desde um regulamento que o Conselho aprovou em 1989, dando sequência a uma proposta da Comissão 24 Para além do mais, sempre se poderá considerar que uma evolução normativa do direito aplicável, como a que é aqui sugerida, poderá ser também justificada pela premência do objetivo do INVESTIMENTO. Na verdade, o crescimento económico indispensável para a EUROPA COMUNITÁRIA voltar a congregar a CONFIANÇA dos EUROPEUS exige que a mesma seja objeto de fluxos continuados de Investimento público e privado, de caráter produtivo e estruturante. Sem que a evolução normativa sugerida seja uma condição suficiente, a verdade é que teria um efeito positivo, atentas as suas potencialidades de reduzir as incertezas regulatórias que dificultam sempre as decisões de investimento. 14. Um outro domínio completamente exterior ao objetivo político de economia Social de mercado altamente competitivo é a área do ESPAÇO, LIBERDADE e JUSTIÇA, ao ser substantivada como 2.º Pilar da União Europeia, no Tratado de Maastricht, e, ao ser muito densificada no Tratado de LISBOA é ela própria um espaço de acumulação civilizacional dos VALORES COMUNS. Neste domínio, António VITORINO equaciona as perspetivas presentes quando, na linha do que sempre defendeu enquanto Comissário Europeu, de que “sem segurança não subsiste Liberdade” nos propicia uma leitura inteligente do equilíbrio entre as Vontades Políticas de raiz intergovernamental e as de origem supra estadual no comentário que escreve relativamente ao artigo 68º do TFUE, sobre o Conselho Europeu.47 de 1972, são tratadas nas Autoridades de Concorrência, precedidas obrigatoriamente de parecer prévio, em regra não vinculativo das Autoridades Reguladoras Setoriais. Sobre a temática do controlo prévio das operações de concentração é incontornável não referir a decisão de Proibição da Comissão Europeia do projeto de fusão General Eletric – Honey well que já tinha sido autorizado pelas Autoridades Anti-Trust americanas e o apoio expresso do Presidente BUSH (2011). 47 ANTÓNIO VITORINO, na edição de Manuel PORTO e Gonçalo ANASTÁCIO do Tratado de LISBOA, anotado e comentado, 2012, Coimbra: Almedina, pp. 375. 25 15. Este “novíssimo Direito” obviamente aplicável a quaisquer domínios anteriormente delineados tinha uma força intrínseca que o obrigou a uma interpretação uniforme e mandatória em todos os Estados. É neste contexto que resulta claro que se queremos que os VALORES COMUNS dos Estados fundadores tenham repercussões idênticas na vida das empresas, das famílias e dos cidadãos, então é indispensável reconhecer o PRIMADO e a AUTONOMIA da novíssima Ordem Jurídica Comunitária. Como é evidente isto implica considerar que o Direito Comunitário é uma categoria paralela e, autónoma face ao Direito Internacional.48 Sobre a estrutura supraestadual da ordem jurídica comunitária é essencial ver Jean-Victor LOUIS49, em termos da globalidade das questões, e, em particular quando cita Guy HÉRAUD “… quando descreveu a supranacionalidade como a ordem das colectividades normativamente subordinadas.”50 Os VALORES COMUNS das Comunidades Europeias e da União Europeia também incluem os atributos que são os elementos ontológicos da sua ORDEM JURÍDICA que identificam o processo da Construção Europeia, com relevo para a proteção dos direitos dos Cidadãos51, e para o Poder Sancionatório52 relevante aos Estados Membro. Em bom rigor eles são a singularidade única da Europa Comunitária. Seguramente que é uma COMUNIDADE de DIREITO. Na realidade, foi com este conceito que o Presidente Walter HALLSTEIN qualificou a constelação de organizações internacionais criadas pelos Tratados de FAUSTO de QUADROS, “Direito da União Europeia”, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 319 e seguintes, sobre a caraterização do Direito Comunitário. 49 Ob. Cit. Ibidem p. 53. 50 HÉRAUD, Guy, “L’interétatique, Le Supranational et le Féderal”, in Archives de Philosophie du Droit, 1961, pp. 179 e segs., em especial, p. 182. 51 CRUZ VILAÇA, José Luis “A Evolução do Sistema Jurisdicional Comunitário no quadro da União Europeia”, in O Direito Comunitário e a Construção Europeia, Bol. Fac. Dir. Univ. Coimbra: Coimbra Editora, 1999 A Proteção dos Direitos dos Cidadãos no Espaço Comunitário, Coimbra Editora, 2010. O Tratado de Lisboa e a Política de Concorrência, in PIÇARRA, Nuno, (coord.) “A União Europeia Segundo o Tratado de Lisboa”, Coimbra: Almedina, 2011. 52 MESQUITA, Maria José Rangel de, “O Poder Sancionatório da União e das Comunidades Europeias sobre os Estados Membros”, Col. Teses, Coimbra Almedina. 48 26 Paris (1951) e de Roma (1957) por oposição ao Estado de Direito (“Rechtsstaat”). A “arma” da Comunidade é o Direito que cria, mas não se trata de um Direito qualquer, como o Direito internacional, que poderia ter múltiplas interpretações em função dos Estados que envolver53. Por tudo isto, não é muito compreensível porque razão, mesmo nos meios mais europeístas, esta marca identitária raramente é, hoje, enfatizada!! Esta singularidade única é justamente celebrada no quadro da designada identidade cultural Europeia.54 Ora um dos vetores com maiores potencialidades de resultados concretos desta Marca Cultural Identitária da Europa Comunitária, é precisamente o Direito que lhe confere uma operacionalidade intrínseca que a individualiza nos mosaicos geopolíticos do Mundo. Todavia, é absolutamente essencial ter consciência dos riscos que é compreensível associar a uma certa absolutização do curto prazo, e, a que aqui designamos pela “cultura do efémero”55,e adotar regras estruturantes de longo prazo nos diversos modelos de Regulação centrados em espelhar a regra imperativa de KANT, já referida. Com regras que sabem superar o fascínio desta “Cultura do Efémero” e transportar o imperativo Kantiano ao longo de gerações a Comunidade do Direito e pelo Direito otimiza a integração do binómio Direito e Justiça, disseminando as suas externalidades positivas por um mosaico de novos Centros de Poder no Mundo, assumindo, assim, uma prevalência iniludível. 53 Sobre os Princípios Gerais de Direito, e o seu contributo para a construção desta Comunidade de Direito, ver o estudo clássico do Professor P. PESCATORE, “Les droits de l’homme et l’intégration européenne”, in Cahiers de droit européenne, 1968, pp. 629 e segs. 54 Ver por ex. MATIAS, Joana M. S., “Identidade Cultural Europeia. Idealismo, Projeto ou Realidade?”. Tese de mestrado orientada pela Prof. Doutora Manuela Tavares Ribeiro, FLUC, 2009, GOOGLE, consultado em 27.2.2017. 55 Em termos do impacto potencial da “Cultura do Efémero” no desenho das Políticas de Regulação de Elevada Qualidade importa dar uma atenção muito cuidada à formatação jurídica de determinadas pulsões sociais, como é o caso do fascínio de consumir sem poupar, ou de despesa de serviços públicos sem impostos, mesmo que os seus objetivos sejam inquestionavelmente louváveis. 27 16. A ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA quando consegue ser “comunicada” de forma a ser compreensível, é um manancial de possibilidades da JUSTICA se afirmar a proteger “o elo mais fraco”. É justamente através desta compreensibilidade, no quotidiano dos cidadãos que é possível motivar a adesão lúcida e consciente de cidadãos e de famílias a uma Comunidade de Direito e pelo Direito, em que desde o início se conformou o Projeto Europeu. As Prioridades da Comissão Europeia para 2015-2019 referidas no ponto 23. Infra como as principais “forças motrizes” do processo de construção Europeia acolheu estas realidades em várias delas, designadamente no que tange às Prioridades “7” e “8” referidas à Justiça e Direitos Fundamentais e, aos Migrantes. 17. Esta Comunidade de Direito e pelo Direito é também enformada pelo PRINCIPIO da SUBSIDIARIEDADE.56 Ora esta inovação disruptiva não foi coeva de nenhum dos Tratados fundacionais de 1951 (Paris) ou de 1957 (Roma). Teve de aguardar pelo Tratado de Maastricht para ser reconhecido como um Princípio Geral do Direito Comunitário. E isto sucedeu precisamente na sequência da dialética entre o Intergovernamentalismo e o Supraestadualismo, com a criação do Banco Central Europeu. 18. Um sinal claríssimo da importância nuclear da presença da ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA, vem precisamente do “CADERNO de ENCARGOS” da PM do UK, Therese MAY relativamente às negociações para o seu “hard” BREXIT quando no seu ponto “2” escreve “Retomar o controlo sobre o direito britânico, acabando com a jurisdição do Tribunal de Justiça da União Europeia! 56 VILHENA, Maria do Rosário, “O Princípio da Subsidiariedade no Direito Comunitário”, Coimbra: Almedina Editora, 2002. Este Princípio da Subsidiariedade importado, da Doutrina Católica, de certa forma articula-se com frequência com outros Princípios como o da Proporcionalidade, e igualmente a Flexibilidade. Em bom rigor a conjugação destes princípios permite confirmar que a Europa Comunitária sempre tem vindo a ser construída a diversas velocidades. 28 Aliás a ameaça vinda de círculos altamente responsáveis do Reino Unido no sentido de que perante negociações que não lhe sejam favoráveis no contexto do BREXIT, poderiam transformar todo o Reino Unido57 num enorme Paraíso Fiscal, é bem eloquente da distância a que nos encontramos dos padrões mínimos de Justiça. Todas estas “assimetrias fiscais” com os eufemismos que comportam conduzem a descrenças no Projeto Europeu enquanto espaço de Coesão, de Competitividade e de Solidariedade, onde existe um enorme vazio de Justiça. Daqui decorre obviamente uma forte “pressão” para que cesse a megaconcorrência entre ESTADOS, através das assimetrias fiscais, que em múltiplas circunstancias são Auxílios de Estado que falseiam o paradigma comunitário, exportando “o desemprego” de um lado para outro. III- Que FORÇAS MOTRIZES inspiradoras do Processo de CONSTRUÇÃO EUROPEIA 19. Como se sabe, é tradicional fixar as forças motrizes que têm vindo a “alimentar” o processo de Construção Europeia nos 3 eixos clássicos: o do APROFUNDAMENTO, o do ALARGAMENTO e o da procura permanente da UTOPIA. Todavia, e, não obstante em determinados momentos históricos, os VALORES COMUNS terem consequências práticas, a verdade é que na generalidade das situações são os INTERESSES que comandam a marcha da HISTÓRIA, sobretudo num quadro geopolítico58 “LUSA, 16 de janeiro de 2017, com fotografia de Philip Hammond abre uma caixa com a epígrafe “REINO UNIDO admite tornar-se “Paraíso Fiscal da Europa” se não chegar a acordo com a UE” e, depois escreve, “O Reino Unido admite mudar de modelo económico e fiscal para se manter competitivo, se não tiver o acesso desejado ao Mercado Único Europeu, disse o ministro da economia britânico”. 58 Em termos específicos. Ver JEAN MONNET, Memórias, [Paris: Fayard, 1976], tradução de Alexandra Costa e Sousa e Nuno Fonseca, Lisboa: Ulisseia, 2004. Em termos gerais, ver (1) CHAUPRADE, Aymeric, “Geopolitique. Constantes et Changements dans l’Histoire”, 2.ª ed. Paris: Ellipses, 2003. (2) KISSINGER, Henry, “A Ordem Mundial”, Lisboa: ed. Quixote, tradução de José Mendonça Cruz, 2004. 57 29 Em cada um destes eixos a primeira força motriz é manifestamente a VONTADE POLÍTICA dos ESTADOS, que depois recebe a forma que o direito lhe consagra- regra geral - por saltos incrementais mínimos face aos desafios em presença, justificando assim plenamente a critica que Viriato SOROMENHO--MARQUES costuma elaborar59 sobretudo quando invetiva a generalidade dos Atores Políticos do processo de Construção Europeia de se refugiarem no “conforto” das teses funcionalistas60 em vez de assumirem que a solução da crise Europeia passa pela assunção de teses federalistas, suscetíveis de superar “as três questões chave que impedem a União Europeia de se assumir como uma «comunidade de destino»” (V. S. MARQUES, 2011:234), e que são (1) Falta de Identidade Política; (2) Orçamento Comunitário Irrisório; e (3) Falta de Liderança Comum. Mas temos de ter o pragmatismo de reconhecer o que está à vista de todos: Não têm existido pulsões societais para a emergência de VONTADES POLÍTICAS mais AMBICIOSAS e CREDÍVEIS e EFICAZES. Ora, quais serão essas pulsões societais? Sem necessidade de um estudo que, entre muitos outros, conclua que as variáveis em presença são infindas, parece verosímil concluir que essas pulsões societais emergem de um espectro de pulsões/motivações da “Pessoa” entre o máximo de liberdade individual e, o máximo de segurança, estabilidade ou “ordem”, que possa ser fixado pela Comunidade Política. Ora, a novidade política da DECLARAÇÃO SCHUMANN permanece hoje com enorme atualidade, e o método que ela preconizou das “solidariedades de facto circunscritas a temas concretos” ainda que claramente funcionalista, continua a ser a única via com probabilidade de eficácia assegurada. Dito de outro modo, essas pulsões societais conduzem à metodologia ORDOLIBERAL e, a partir daqui somos chegados a valorizar mais a 59 Em particular: SOROMENHO MARQUES, Viriato, “Tópicos de Filosofia e Ciência Política. Federalismo. Das Raízes Americanas aos Dilemas Europeus”. Lisboa: Esfera do Caos, 2011, pp. 234 e segs. 60 MITRANY, David, “Functional Federalism”. Common Cause.” A journal of one World, vol. 4, n.º 4, 1950 – pp 196-199. HAAS, E., “The Uniting of Europe, Political, Social and Economic Forces”, 1950-1957, 2.ª Ed. London – Stanford: Stanford University Press, 1960. 30 ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA enquanto singularidade única desta Organização, e, que vai formatar todas as forças motrizes que se desenvolvam ao longo dos eixos do ALARGAMENTO61 e do ENTROSAMENTO62. 20. Mas essa ORDEM JURÍDICA enquanto meio processual da dinâmica desses eixos tem sido praticamente invisível aos olhos dos cidadãos. Nem quando se fala de igualdade dos Estados alguém incorpora que a ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA, depois do Tratado de LISBOA incorpora – aliás, na sequência de proposta específica de Portugal, e de outros Estados em sede específica da Conferência Intergovernamental – o Princípio da Igualdade dos Estados perante os Tratados. Apesar da relutância dos Estados manifestamente mais poderosos veio a prevalecer a jurisprudência do Tribunal de Justiça no Processo que envolvia o Reino Unido e a Comissão63, e, assim se chegou à formulação do artigo 4 (2) do TEU (2009), em que a União “respeita” aquele Princípio. Nesse sentido não exerce o seu PODER DE ÂNCORA de ESTABILIDADE e, de ESPERANÇA que as populações precisam. Por isso, perante esse “vazio”, para muitos são os tecnocratas de Bruxelas, para outros é o Presidente da Comissão Europeia, e para outros ainda é a chanceler alemã. Os britânicos aproveitaram a decisão da roleta russa que desaguou no BREXIT e querem ter como única entidade soberana a Rainha no Parlamento e aparentemente como única jurisdição o seu Supremo Tribunal64. 61 Entre os Países candidatos, com negociações em curso há a referir apenas o MONTENEGRO e a SÉRVIA, já que os recentes acontecimentos com a TURQUIA tornam-na cada vez mais distante. 62 Trata-se naturalmente do eixo onde a profusão de Políticas, de Cooperações reforçadas, designadamente a relativa à UNIÃO ECONÓMICA e MONETÁRIA mais tem exigido da ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA. 63 Acórdão de 9.3.1979, caso 231/78, Comissão v. Reino Unido. 64 Sobre a singularidade do Direito Britânico ver HART ob. Cit. pp. 30, sobretudo quando citando S. E. Finer, Five Constitutions, 1979, Londres, pp. 40-41, refere que o “Parlamento é (…) a autoridade executiva, legislativa e judicial suprema (…) como uma fusão de Poderes”. 31 As Constituições da nossa contemporaneidade desde a dos EUA (1787) à da República Popular da China (1982) são contudo mais ambiciosas. São Reguladoras da trajetória Política das respetivas instituições de PODER, na justa medida em que elas refletem a existência de um PODER CONSTITUINTE. Todavia a UNIÃO EUROPEIA não é nada disso. É mais sensato e apropriado tentar compreendê-la como uma União evolutiva e resiliente65 dos POVOS e dos ESTADOS (modelo UERPE), sedimentada em VALORES COMUNS. Este modelo concebido pelo autor consiste em estudar 3 forças: Democratizante, Credibilizante e Federelizante, e avaliar a evolução do contradomínio destas funções em termos da Confiança dos Cidadãos, da Competitividade das Empresas e da Relevância dos Estados. Exige contudo uma imensidade de dados que só teoricamente será possível através do recurso às tecnologias Big Data, o que até à data não tem sido possível realizar. 21. Assim sendo, nem o BREXIT nem algo semelhante pode verdadeiramente afetar o ideal europeu enquanto paradigma civilizacional. Em qualquer dos cenários em que o BREXIT venha a desaguar – mais ou menos “hard” – o Reino Unido continuará a precisar da outra Europa e esta continuará a precisar do Reino Unido. MIRA AMARAL identifica com elevada precisão os primeiros impactos do anúncio do BREXIT nos Mercados Financeiros, do seguinte modo “(…) a depreciação da libra e uma elevada volatilidade nos mercados financeiros, com correcções significativas dos activos de risco e consequentes valorizações dos activos de refúgio, tais como a dívida pública americana, a dívida dos países europeus do centro e, ainda, do ouro. Apesar dessas fortes quedas nos primeiros momentos, os activos de risco acabaram por recuperar, para o que contribui em parte o suporte dos bancos centrais, designadamente Banco de Inglaterra (BOE) e BCE. LOPES RODRIGUES, E.R., “Que modelo de integração económica e política consideraria adequado à União Europeia”, in PAZ FERREIRA, Eduardo (coord) “25 Anos na União Europeia. 125 Reflexões”, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 157-170. 65 32 No que toca aos mercados emergentes (EM), espera-se também maior flexibilidade dos bancos centrais para acomodarem o choque, e isso é evidente na Reserva Federal Americana com a redução ou abrandamento do ciclo de subidas das taxas de juro que tinham começado, aliviando assim a pressão para a valorização do dólar. Neste contexto, os investidores tinham fugido das moedas ligadas aos emergentes e refugiaram-se em moedas como a norte-americana.”66 Todavia, ainda com a reserva de um juízo preliminar, relativamente ao fenómeno “TRUMP ECONOMICS” já não se pode dizer o mesmo, sobretudo no que encerra de rota para uma autarcia exacerbada de elementos de corrosão de tudo quanto significa, na filosofia política o termo “O OCIDENTE”67, no seu outro lado do ATLÂNTICO. 22. Assim sendo, as INSTITUIÇÕES carecem de saber suprir aquela lacuna de VONTADES POLÍTICAS CONSEQUENTES através do DIREITO dando azo a novas forças motrizes em áreas críticas:  Conduzir as negociações do “hard BREXIT”, subjacente ao discurso de Therese MAY.  Densificar a coesão interna das estruturas de formação de Decisão em resposta às críticas de Donald TRUMP.  Respostas credíveis às questões dos REFUGIADOS e à incompletude de MAASTRICHT no que tange à União Económica Monetária, em sintonia com uma das vias de Re-invenção da Europa identificada em LOPES RODRIGUES68 . Daqui decorre que a montante de todas estas novas forças motrizes deve persistir a força das forças, ou seja, a Ordem Jurídica Comunitária. Mas será suficiente? É uma questão sem resposta … 66 MIRA AMARAL, Luis “Um divórcio amigável de interesse mútuo”, SPI Sociedade Portuguesa de Inovação, 14.03.2017. 67 ADRIANO MOREIRA, “A Europa em Formação. (A Crise do Atlântico)”, Lisboa: ISCSP: 2004; e, “A Comunidade Internacional em Mudança”, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2007. 68 LOPES RODRIGUES, E. R., “HEURISTICA EUROPEIA. Uma presença do ISCSP na descoberta da EUROPA no MUNDO”, Lisboa: ISCSP, pp. 258 a 279. 33 23. As restantes forças motrizes deveriam estar substantivadas nas Dez Prioridades Políticas da Comissão para 2015-2019.69 “1. Trabalho, [Jobs] Crescimento e Investimento; 2. Mercado Único Digital; 3. União da Energia e Clima; 4. Mercado Interno; 5. União Económica e Monetária, “Deeper and Fairer”; 6. Acordo de Comércio Livre com os EUA; 7. Justiça e Direitos Fundamentais; 8. Migrantes; 9. Forte Ator Global; 10. Democracia”. Note-se desde já que a hierarquia destas prioridades não é despicienda, e deve ser ponderada, em ordem à sua melhor compreensão. Como é manifesto, são Prioridades muito importantes, para a superação dos desafios com que a Europa se confronta, mas que não têm sido devidamente percecionadas pela generalidade dos cidadãos. Falta-lhes claramente uma explicitação clara coerente e convincente do binómio Direito e Justiça, enquanto artífices voluntaristas da Comunidade pelo Direito… Em bom rigor há que reconhecer que a generalidade dos cidadãos está hoje como que “adormecida” quanto à existência destas realidades através de um conceito de “Cansaço da História”, veiculado num texto de Daniela Marques Cardoso, vencedor do Prémio Portugal – Europa, 30 anos70, (2015). Acresce que não só indispensável construir uma Democracia para o POVO … É igualmente importante, senão mesmo mais, desenhar e elaborar uma ORDEM JURÍDICA, enquanto um BEM PÚBLICO para o POVO …71 69 COMISSÃO EUROPEIA, site oficial, consultado a 21.2.2017. O texto tem o título “Geschichtsmude” – Portugal e o Cansaço da História – Como convidar a Europa para o seu significado?” e, o prémio foi atribuído por um júri presidido por ANTÓNIO VITORINO e integrando REBECA ABECASSIS e EDUARDO LOPES RODRIGUES, num concurso promovido pelo Gabinete do Secretário de Estado de Assuntos Europeus, chefiado por PAULA REDONDO PEREIRA, destacando-se o apoio do Centro de Informação Europeia Jacques Delors, dirigido pela CLOTILDE CÂMARA PESTANA. 71 Em certo sentido, está-se a sugerir que a Europa Comunitária siga um caminho idêntico, ou pelo menos, com efeitos semelhantes aos que tiveram de mais positivo na economia dos Estados Unidos os Federalist Papers, 85 artigos publicados entre 1787 e 1787 por Alexander HAMILTON, John JAY e James MADISON, sob p pseudónimo “PUBLIUS”. Ver “O Federalista”, com tradução, introdução e notas de Viriato SOROMENHO-MARQUES e João C. S. DUARTE, Lisboa: Edições COLIBRI, 2003. 70 34 Ainda no rigor das observações é legitimo dizer que apenas nas iniciativas que congregam o PLANO JUNCKER sobre o investimento e do Comissário Carlos MOEDAS na Política de Investigação Cientifica e Tecnológica, é que se respira “algo” que possa estar para além da nomenclatura formalista de conservar a inércia. 24. Como é reconhecido, a primeira destas prioridades manifesta-se no designado PLANO JUNCKER, que com os seus iniciais 300 biliões de Euros, tem vindo a promover o INVESTIMENTO em projetos críticos para o CRESCIMENTO ECONÓMICO e o EMPREGO, sendo que PORTUGAL tem revelado um desempenho invulgarmente positivo. Em 2016 registou 1030 milhões de euros em 18 operações de financiamento, sendo o oitavo país com maior volume de investimento. Nos 27 membros espera-se que sejam envolvidas 290 000 PMEs e que sejam criados mais de 100 000 postos de trabalho. Em setembro de 2016 foi-lhe associada uma nova iniciativa para apoiar investimentos em África e nos Países Vizinhos. O horizonte temporal do Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos72 foi já alargado para além dos 3 anos inicialmente previstos e espera-se que até 2020 impulsione a economia com 500 biliões de Euros, chegando aos 630, em 2022. Todavia, todo este esforço para dinamizar o INVESTIMENTO, o CRESCIMENTO e o EMPREGO não parece ter tido uma compreensão fácil por parte dos cidadãos. 25. O Mercado Único Digital para além de complexidades da sua “gramática” visa facilitar a vida dos cidadãos e das empresas aumentando extraordinariamente a qualidade da conectividade entre todos os europeus. É uma área onde Portugal tem tido uma participação muito desigual em termos das assimetrias entre os seus componentes. 72 Os atos legislativos basilares do Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos são os seguintes: Regulamento (UE) 2015/2017 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de junho de 2015, e, a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Banco Central Europeu, ao Comité Económico e Social Europeu, ao Comité das Regiões e ao Banco Europeu de Investimento “Um Plano de Investimento para a Europa”. 35 A variável critica reside na velocidade de acesso à internet de banda larga. Apenas a título de exemplo, da revolução silenciosa que está em curso refiram-se, os trabalhos relativos à nova vaga de Tecnologias Quânticas73. Não obstante terem um potencial enorme para introduzirem verdadeiras disrupções na vida de empresas, famílias e cidadãos, poder-se-á dizer que a sua presença tem passado completamente despercebida. Não sendo exequível toda a enorme profusão de iniciativas que a Comissão Europeia tem vindo a desenvolver o Mercado Único Digital, refira-se apenas o “estado da arte” recente relativamente a uma dessas iniciativas que se centra em aumentar a portabilidade dos serviços digitais, e que conheceu um impulso relevante recentemente através de novas regras que facilitam aos consumidores o acesso aos serviços disponíveis no seu País, quando estão num outro Estado Membro, sem nenhum acréscimo de custos. As assimetrias que neste domínio percorrem o espaço da União Europeia exigem uma Ação consequente do binómio Direito e Justiça, no mesmo sentido de insuflar vida à Comunidade pelo Direito. 26. A prioridade focada na Energia e no Clima tem hoje uma contemporaneidade altamente influenciada pela Conferência de Marraquexe (2016)74. Portugal encontra-se particularmente bem posicionado nas energias renováveis, mas tem ainda um longo caminho a percorrer no que concerne à construção de uma economia hipocarbónica, em particular no ecossistema da mobilidade e dos transportes.75 73 Estamos perante uma nova vaga de tecnologias verdadeiramente inovadoras que vai exercer funcionalidades imprevisíveis na competitividade industrial. Ver, por ex., (1) EUROPEAN COMMISSION, “Intermediate Report from the Quantum Flagship High-Level expert Group”, Brussels, 16 fev. 2017; (2) AZEVEDO, Virgílio “A Segunda Revolução Quântica”, in EXPRESSO, de 18 de março de 2017, pp. 23. Vazevedo@expresso.impresa.pt. 74 COP 22-22nd session of the Conference of the Parties to the UN Convention on Climate Change. 75 Os compromissos assumidos por Portugal em Marraquexe consistem em tornar o País neutro em emissões de dióxido de carbono em 2050 o que exige que 36 Estas políticas com o objetivo de atuar na Regulação da Energia e do Clima, são por conseguinte cada vez mais prementes.76 Esta prioridade assumida pela Comissão Europeia vem ao encontro de uma das vias identificadas pelo autor para a reinvenção da Europa.77 27. Apesar de maturidade da União Aduaneira e do Mercado Interno na generalidade dos Estados Membro apresentar ainda algumas “ilhas” de heterogeneidade e de concretização, a verdade é que em termos formais o que falta fazer para a conclusão do Mercado Interno (Recorde-se a meta de 1992 fixada no Acto Único Europeu, assinado no Luxemburgo, e que entrou em vigor a 1 de janeiro de 1987) se circunscreve aos setores então excluídos, aos transportes internacionais, sobretudo a ferrovia, aos serviços, e às indústrias de elevado conteúdo digital as assimetrias de regulação internas. Num estudo recente da BRUEGEL (2017:4)78 pode ler-se “European integration has led to a decline in trade costa cross EU countries and a subsequent increase in intra-EU competition is generally found to outstrip that seen in free trade areas. Still, trade between European countries is estimated to be about four times less than between US states once the influence of language and other facts distance and population have been corrected for.” estas emissões sejam completamente compensadas dentro de Portugal através do aumento da capacidade de captura do carbono, sobretudo através das florestas. Atendendo à estrutura proprietária das florestas em Portugal não é difícil perspetivar o longo caminho negocial e jurídico que é preciso percorrer. 76 SANTOS, Filipe Duarte, “Alterações Globais os Desafios e os Riscos Presentes e Futuros”, Lisboa: Fundação FMSantos, 2012 77 LOPES RODRIGUES, E. R., “HEURÍSTICA EUROPEIA. Uma presença do ISCSP na descoberta da EUROPA no MUNDO”, in VALORIZAR a TRADIÇÃO, Orações de Sapiência no ISCSP, Lisboa: ISCSP, (2016) pp. 258 a.279. 78 BRUEGEL, “Making the best of the European Single Market”, Public Contribution n.º 3, jan. 2017. 37 28. Por sua vez a prioridade centrada no aperfeiçoamento e na conclusão da UEM é uma necessidade reclamada por muitos quadrantes e especialistas, e vem também ao encontro de uma das vias de reinvenção da Europa na obra referenciada pelo autor.79 Sobre o desenho da UEM no Tratado de Maastricht é importante não ignorar que este avanço no processo de integração – aliás previsto em Roma 1957 – só foi possível pela queda do Muro de Berlim em 1989, que propiciou a reunificação da Alemanha. Como consequência, o novo Banco Central Europeu tem uma matriz e uma filosofia claramente inspirada no Bundesbank.80 Na verdade, trata-se de dar passos largos no sentido de suprir a manifesta incompletude do Tratado de Maastricht na arquitetura de União Económica e Monetária.81 Não sendo aqui exequível uma análise mais exaustiva refira-se apenas que os problemas basilares do funcionamento da UEM emergem de o 79 LOPES RODRIGUES, E. R., (2016) ibidem 273. GOULARD, S. e MONTI, M., “A Democracia na Europa, uma Perspetiva de Futuro”, Paris: Flammariou, 2012 trad. Maria Eduarda Colares (2013). Na sua p. 23, “Um país tão ligado à legitimação democrática como a Alemanha Federal inventou, e, exportou para a Europa, um modelo de Banco Central mais independente do que qualquer outro no Mundo e tolera que um Tribunal Constitucional, cujas decisões não são passiveis de recurso, esteja acima da vontade geral expressa pelo Bundestag.” 81 Ver: (1) “Six Pack” que inclui novos Regulamentos (2011) aperfeiçoando o antigo Pacto de Estabilidade e Crescimento (1997), estabelecendo uma coordenação mais rigorosa das políticas económicas dos Estados, através do mecanismo conhecido por “Semestre Europeu; (2) “Two Pack”, que integra o Regulamento 472/2013, EU, de 21 de maio Parlamento Europeu e do Conselho, relativo ao reforço da supervisão; E o Regulamento 473/2013, UE, que estabelece disposições comuns para o acompanhamento e a avaliação dos projetos de planos orçamentais e para a correção dos défices excessivos dos Estados da UEM.; Note-se que o Parlamento Europeu teve um papel decisivo no reforço destas regras, desde logo no “Six Pack”. (3) Tratado que estabelece o Mecanismo Europeu de Estabilidade, assinado a 1.2.2012 – segundo um mecanismo intergovernamental; (4) Tratado sobre a Estabilidade, a Coordenação e a Governação da UEM (Tratado Orçamental), assinado a 2.mar. 2012, entre 17 EMs (Euro), e mais outros 8 EMs, mas sem o Reino Unido e a República Checa, e que entrou em vigor a 1.jan.2013; (5) Regulamento 806/2014/EU, de 15/julho que estabelece as regras sobre a transferência e mutualização das Contribuições para o Fundo Único de Resolução. 80 38 seu desenho ter sido sobretudo focado na vertente monetária, esquecendo a dinâmica económica, e tudo isto ampliado pela rapidez histórica com que foi realizada: 6 anos contra cerca de 150 anos nos Estados Unidos da América. Esta arquitetura da UEM/Europa exprime o compromisso possível numa circunstância histórica muito precisa, decorrente da queda do Muro de Berlim, da implosão do império soviético, e da unificação alemã82. Sublinha-se que os 3 vetores estruturais da União Monetária (Moeda Única, Banco Central Europeu e Política Monetária Única) foram realizados nos EUA em cerca de 150 anos, e, tendo apenas uma soberania política, enquanto que, na Europa, com 12 soberanias políticas entre a data em entrada em vigor do Tratado de Maastricht (1.11.1993) e o arranque da UEM/Europa em 1.jan. 1999 mediaram apenas cerca de 6 anos. Não chega para desculpar a leveza com que se foi aceitando a incompletude mas permite compreendê-la melhor! É imperativo densificar com urgência a vertente “económica” e ser criativo e consequente em domínios como a União Bancária e a União dos Mercados de Capitais. Tudo isto exige um esforço assinalável do binómio Direito e Justiça, significando isto que ainda subsiste um longo caminho a percorrer, necessariamente … pelo Direito 29. Torna-se indispensável ultrapassar os slogans publicitários de “fairer and deeper” e chegar rapidamente ao “balcão” do sistema bancário, e, à “expressividade”, dos mercados de capitais onde cidadãos, famílias e empresas se encontram, e têm uma perspetiva bem diferente. Mas o que é verdadeiramente essencial é conseguir uma solução juridicamente consistente e, facilmente compreensível pelos cidadãos, para 3 problemas fundamentais para os quais António VITORINO chama a aten- 82 Sobre estas circunstâncias históricas, ver:  LOPES RODRIGUES, E. R. “A difícil tranquilidade do Euro. A Porta Estreita da Revolução”, Porto: Vida Económica, 2000.  ANDEMAS, M. (ed.), “European Economic and Monetary Union”, Kluwer, 1997. 39 ção: (I) Realismo no balanço entre austeridade e crescimento; (II) Melhorias substanciais das Relações entre os Povos Europeus; e, (III) Clarificação dos Poderes entre as instituições da UE e os Estados Membros.83 30. É neste contexto que se olha para as restantes Prioridades assumidas pela Comissão, que, é forçoso reconhecer, todas elas visam ir ao encontro de questões incontornáveis da nossa contemporaneidade. Relativamente aos MIGRANTES, aos REFUGIADOS, e, às TRAGÉDIAS HUMANAS que têm desfigurado a EUROPA enquanto paradigma de civilização humanista, centrado nas Pessoas, não subsistem quaisquer palavras que possam justificar a situação a que se chegou. Do ponto de vista estritamente político, nunca é demais enfatizar a importância da Chanceler Angela MERKEL84 na defesa das sociedades abertas, do acolhimento dos refugiados, e de promoção dos Valores Liberais, contrastando com as perigosas ilusões protecionistas e nacionalistas. Espera-se naturalmente que estes VALORES possam ser revestidos também de impulsões consistentes na designada grande coligação, nas próximas eleições. 31. Sem prejuízo de se reconhecer o imenso esforço que tem vindo a ser desenvolvido pelas estruturas de “SECURITY”, dos Estados Membros e da União Europeia, importa também reconhecer o imenso que ainda há a percorrer, em todas as vertentes que conduzam a soluções eficazes, desde a partilha de informação, à gestão das fronteiras, e ao financiamento do terrorismo. 32. Chegamos assim a um novo areópago de esperança de Justiça que reside no “Pilar Social”. É preciso voltar a acreditar nos mecanismos que conferem à União Europeia um rosto amigo de quem nasce na Europa, com uma elevada ANTÓNIO VITORINO, “The Economic Crisis: The Way Forward”, in MONIZ, Carlos Botelho e MELO, Pedro de Gouveia e, (eda), XXVII General Congress European Lawyers’Union Lisboa, June 2013, Bruylant, 2015. 84 Ver, p. ex., editorial do Financial Times, de 3/jan/2017. 83 40 esperança média de vida, e que tem trabalho em condições dignas e pensões que prestigiam quem as atribui. Tudo isto só é possível numa Comunidade de Direito e pelo Direito que inspire confiança aos Cidadãos e às Famílias. 33. As prioridades de natureza económica colocam desafios prementes às diversas Políticas de Regulação Setorial85, que ambicionam promover de forma sustentada a competitividade e a coesão, como realidades a montante da Política de Concorrência. Na sequência do referido no ponto 13 supra, umas e outras têm um denominador comum, rumo a um Sistema Político de Regulação e de Concorrência na base de um paradigma de Regulação Económica de Elevada Qualidade (REEQ), que inspire um POTENCIAL de CONFIANÇA em crescimento sustentado. Este Paradigma começa por pressupor um exercício de Compliance muito exigente, quer em termos qualitativos, quer na extensão diversificada dos ecossistemas a que se aplica, e depois multiplica-se em 3 pilares estratégicos A. Suprir as falhas de Mercado, sobretudo as identificadas ao longo de décadas de aplicação da Política Comunitária de Concorrência tendo em devida conta os ensinamentos associados ao exercício da Comissão Europeia relativo à celebração dos “10 anos do Reg. (CE) n.º 1/2003” B. Sem gerar falhas de Estado e/ou de Legislação e/ou de Regulamentação incluindo toda a galeria infinda de atos de natureza legislativa, regulamentar 85 LOPES RODRIGUES, E.R. “A Difícil Tranquilidade do Euro. A Porta Estreita da Relevância”, Porto: Vida Económica, 2002,pp. 295 e segs. Ver também a síntese desta temática, focada na crise de competitividade, no artigo publicado na revista “Estratégia” do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, 2º Sem /2002, com o título” O Euro e a Competitividade da Economia Portuguesa”, Lisboa: 2002, pp. 119144.Ver igualmente a Conferência proferida no ciclo de Seminários promovido pelo Centro Jacques DELORS, em 1999, no Funchal, “Portugal e os desafios da Moeda Única”, publicada nas Atas pelo CIEJD, Programa Comunitário Prince, Lisboa 2000,pp. 93-125. 41 administrativa, oriundos de instituições nacionais, regionais, locais e comunitárias que ferem os princípios da proporcionalidade, da eficiência, da transparência e da accountability, para além de serem claramente medidas de over regulation, zigzagueantes, e intrusivas da iniciativa e da criatividade competitiva, que não falseiam a concorrência. C. Promovendo equilíbrios dinâmicos e resilientes entre 3 racionalidades não aditivas, embora subsumíveis a uma Visão Holística C1. Investidores C2. Cidadãos C3. Contribuintes Esta Prioridade ao Investimento é acolhida neste modelo, sugerindo-se que a Comunidade … pelo Direito que também aqui está a ser construída possa mais concretamente internalizar a eliminação ou a redução de Falhas de Estado e/ou de Regulamentação Comunitária que desincentive ou bloqueie os investimentos. Seja-me permitido designar esta configuração de uma entidade política verdadeiramente inovadora por Sistema Político Regulador e Sublimador86, que exige também um salto Qualitativo no Direito e pelo Direito. 86 As Comunidades Europeias e a União Europeia têm vindo a protagonizar desde há muitos anos uma reforma do sistema regulatório, frequentemente designado pelas expressões “better regulation”, “smart regulation” e “high-quality regulation”. São abordagens teóricas e práticas nem sempre coerentes, que têm dado azo a um extenso acervo de doutrina especializada. Sem a possibilidade nem a pretensão de ser exaustivo refira-se:  MAJONE, Majone, “The Crisis of Community Regulation”, University of Pittsburg, 3 E 38 Forbes Quadrangle, Pittsburg, PA 15260.  GROENLEER, Martinj, “Regulatory governance in the European Union: the political struggle over comittes, agencies and networks”, in LEVI-FOUR, David, (ed.) Handbook on the Politics of Regulation, Cheltenham: Edward Elgar, 2011, pp. 548.  Na contemporaneidade, a Comissão Europeia tem estado a dar um novíssimo impulso, através do Comissário CARLOS MOEDAS, através da metodologia OPEN INNOVATION, OPEN SOCIETY, OPEN WORLD. Esta trilogia materializa os três grandes objetivos conceptuais da política de investigação cientifica e inovação da União Europeia, tendo em vista designadamente: 42 Em sentido convergentemente negativo registam-se os efeitos da “concorrência draconiana”87 que perpassa pela acutilância dos sistemas fiscais. Este paradigma de concorrência está verdadeiramente nos antípodas da concorrência não falseada preconizada pelo Tratado de Roma.88 Para tanto, a variável crítica emana do triangulo estratégico cujos vértices são empregabilidade, aprendizagem ao longo de toda a vida (naturalmente flexível face aos padrões de saúde) e, contratos flexíveis, seguros, e, competitivos. 34. O modelo de Regulação Económica de Elevada Qualidade (REEQ) subjacente ao paradigma explicitado no ponto anterior é desenvolvido através da Ciência mais desenvolvida e confirmada conhecida numa dada época, e atinente a todos os ramos do saber. Um possível Conselho de Inovação Europeia e criação de um Selo de Excelência que facilite a articulação entre o Horizonte 2020 e outros programas de financiamento; A materialização do desenvolvimento de uma “Nuvem de Ciência Europeia” e maior abertura à informação científica gerada pelos projetos do Horizonte 2020; Abertura ao mundo, incluindo a assinatura de Acordos de Associação num contexto internacional, seja no âmbito do Horizonte 2020, seja com outros países como a China e Países da América Latina. Envolve a atuação em diversos fatores chave para uma inovação de sucesso, tais como a regulação, o financiamento, o apoio público e o acesso ao mercado, potenciando o posicionamento da União Europeia relativamente a uma nova vaga de inovação que deverá ser suportada nas interfaces entre as tecnologias digital, física e biológica, entre as artes, negócios e ciência, e entre a informação, utilizadores e organizações. É neste panorama que o qualificativo “SUBLIMADOR” introduzido pelo autor em 2007, in “Políticas Públicas de Promoção da Concorrência”, ISCSP, exprime também uma UTOPIA de excelência, que se procura operacionalizar em termos práticos através de parâmetros relativos às falhas de Mercado, de Estado, e, à energia criativa das sociedades. 87 Trata-se de um paradigma “Próximo de concorrência selvagem, incluindo estratégias excludentes dos mercados”. 88 Sobre modalidades de concorrência fiscal entre Estados, ver p. ex.: (1) AAVV, “Planeamento e Concorrência Fiscal Internacional”, Lisboa: Fisco 2003; (2) CAMPOS AMORIM, José (coord.), “Planeamento e Evasão Fiscal”, Porto: Vida Económica, 2010; (3) PEREIRA, Paula Rosado “Princípios do Direito Fiscal Internacional, Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu”, Coimbra: Almedina, 2011. 43 Aqui, apenas uma referência para o que concerne à Ciência Política onde continua inteiramente válida a Teoria do interesse bem compreendido de Alexis de TOCQUEVILLE.89 35. A finalizar esta secção refira-se que todas as prioridades da Comissão, (2014-2019) revelam uma enorme interdependência entre si, e, todas elas contribuem potencialmente para consolidar a imagem da Europa Comunitária no Mundo. Começando na “Justiça e Direitos Fundamentais” e terminando na “Democracia”, todas elas com uma densa matriz no binómio Direito e Justiça. No entanto, também neste domínio ultra sensível parece subsistir uma estranha timidez de valorizar a singularidade jurídica desta realidade.90 Uma apreciação distinta deve, claramente, ser assumida, relativamente ao “EU Citizenship Report 2017 – Strengthening Citizens Rights in a Union of Democratic Change91” não só pela conceção mas sobretudo pela agenda pragmática de ações consequentes no domínio da vida dos cidadãos, das famílias, e, das empresas. Assumindo que estes objetivos devem ultrapassar o circulo da Comissão para serem “um esforço coletivo da União como um todo”, parece constituir uma abordagem com um impacto concreto muito significativo, na densificação da CIDADANIA EUROPEIA, desenhada através do binómio Direito e Justiça. TOCQUEVILLE, Alexis de, “Da Democracia na América”, Cascais: Principia, 2.ª ed. pp. 617 e segs. Nesta tradução usa-se a expressão “interesse melhor entendido” conforme é citado por TOCQUEVILLE expressão do “interesse melhor compreendido” já tinha sido utilizada por Etienne de CONDILLAC em 1798, Traité des Animaux, Vol. III p. 453. 90 As iniciativas explicitadas no documento da Comissão primeiro as relativas à proteção de dados e à privacidade, e depois quase como nota de pé de página “First Annual EU Colloquium on Fundamental Rights” (October 2015) e “Second Annual EU Colloquium (November 2016), o primeiro relativo a “Tolerance and respect: preventing and combating anti-Semitic and anti-Muslimhatred in Europe”, em paralelo com o segundo relativo a “Media Pluralism and Democracy”, terão tido um impacto marginal que tange ao objetivo proclamado de PROMOÇÃO dos DIREITOS FUNDAMENTAIS. 91 COMISSÃO EUROPEIA, Bruxelas, 2017, que inclui o follow-up de um Relatório análogo de 2013. 89 44 IV. Que panorama INTERGOVERNAMENTAL e SUPRA ESTADUAL 36. Como se sabe, a União Europeia é um sistema complexo em movimento, constituído por uma constelação de organizações, umas de natureza quase federal, outras de natureza intergovernamental, e, outras ainda de natureza híbrida incluindo uma forte componente supra estadual92, cujo processo de formação se iniciou em 1951, com o Tratado de Paris, circunscrito ao carvão e ao aço, e seis Estados fundadores, e que em 2016 se espraia por 2793 Países. 37. A 24 de junho de 2016 ocorreu o mais extenso, profundo, e de consequências ainda totalmente desconhecidas e imprevisíveis (sobretudo para aqueles que votaram no dito referendum) ---o resultado de um referendum quanto à saída (“leave”) ou permanência do Reino Unido (“Remain”) na União Europeia, resultante do cumprimento de uma promessa eleitoral feita pelo então Primeiro Ministro, o Leader do Partido Conservador, David CAMERON, um ano depois de ter conquistado a maioria absoluta, e de que resultou a vitória do Leave, simbolizada na palavra BREXIT. O melhor exemplo de intergovernamentalismo na nossa contemporaneidade exprime-se precisamente na Agenda BREXIT. 92 As Comunidades Europeias primeiro, e depois a União Europeia têm vindo a sedimentar uma natureza híbrida visto que no seu interior congregam motores de duas naturezas: intergovernamental e supra estadual. 93 Na sequência do referendo realizado a 24 de junho de 2016 sobre a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia, e, tendo vencido a opção do BREXIT, o PM David CAMERON do Partido Conservador que havia tido a ideia de submeter esta questão a referendum para salvar a sua liderança interna no seu partido, e tendo acabado por fazer a campanha pela opção do “remain”, acabou por apresentar a sua demissão, que foi prontamente aceite pela Rainha. Formouse, então, um novo Governo conservador liderado por Therese MAY, antiga Ministra da Administração Interna do Governo Conservador de David Cameron. Todavia o artigo 50.º do TUE ainda não foi acionado a 7 de março de 2017. Só depois se vão iniciar as negociações entre o Reino Unido e a Comissão para se fixarem os termos dessa rutura. Em todo o caso, nas reuniões do Conselho Europeu que entretanto correram só estiveram presentes 27 Estados Membro. 45 38. Os anos que seguiram à entrada em vigor do Tratado de Lisboa confrontaram a União Europeia, os seus Estados, os seus Povos, e, as suas Sociedades94 numa cascata de múltiplas crises95, cada qual de uma severidade inusitada, e, todas em conjunto, caraterizadas por um complexo de riscos reais e potenciais para os quais as instituições não tinham instrumentos nem concebidos, nem muito menos testados e calibrados, para os poderem superar com sucesso: a) estabilidade da zona euro, i. e. da União Europeia e Monetária (UEM/Europa) b) ceticismo de largas camadas das sociedades quanto à consistência e ao sucesso do projeto europeu c) capacidade efetiva das instituições europeias para enfrentar com sucesso os obstáculos existentes. Porventura a crise mais terrível, e, da qual porventura ainda não se saiu é aquela que o Professor de filosofia FERNANDO GIL, designa por “crise geral do sentido”96. Na verdade o denominador comum de todas estas crises é, e, em certo sentido ainda continua a ser, uma falta de confiança que se espalha como uma onda corrosiva por um extenso mosaico de sociedades. 39. Os desequilíbrios internos no âmago dos Países da UEM, onde alguns têm défices estruturais, e, outros excedentes estruturais, mas sem que nem uns nem outros vejam qualquer motivação para trabalharem numa matriz solidária de complementaridade são apenas um dos muitos PITTA e CUNHA, Paulo, “Integração Europeia, Estudos de Economia, Direito e Política Comunitária (1963-1993)”, 2ª Ed. Coimbra: Almedina 2004: “Na idade média, enquanto ainda não se haviam constituído os Estados nações, a homogeneidade prevaleceu sobre a diversidade (…). A sociedade europeia já existia antes de se estruturarem as sociedades nacionais (…). A unidade cultural do sec. XVIII constitui um fator da maior relevância para a história da sociedade europeia e para a definição do espírito europeu no plano filosófico. (…)” 95 VAN ROMPUY, Herman, “A Europa na Tempestade, Lições e Desafios”, Bruxelas, 2014, tradução de Luis Coimbra, Lisboa 2014. 96 RUI VILAR, Emílio, então Presidente da Fundação Gulbenkian, na apresentação da Conferência (25/10/2006) organizada pelo Professor FERNANDO GIL, e publicitada em “Que valores para este tempo? Lisboa: Gradiva e F C Gulbenkian, 2007. 94 46 obstáculos que as economias da zona Euro têm de revelar capacidade para superarem. JOÃO SALGUEIRO, entre nós, chamou em tempo oportuno a atenção para estes riscos escrevendo: “Desta vez, a navegação não tem mapa previamente definido. Nenhum dos países que passa à terceira fase da Moeda Única tem experiência destas mutações.”97 Alguns analistas defendem que este impasse só é suscetível de ser superado com uma nova reforma dos Tratados no sentido de reforçar a vertente política dos caminhos para o federalismo.98 Tudo isto tem vindo a desenhar um panorama de interações de natureza intergovernamental e supra estadual que corrói a Confiança dos EUROPEUS, a Competitividade das Economias e a Coesão interna entre regiões. V. LIVRO BRANCO sobre o FUTURO da EUROPA99 40. É neste ambiente de uma interação permanente entre as dinâmicas intergovernamental e supra estadual que o Presidente JUNCKER100 97 SALGUEIRO, João, “Lisboa 99: exigências de competitividade numa praça financeira europeia”, Revista da Banca, Out-Dez, 1996, citado em “A difícil Tranquilidade do Euro. A porta estreita da Relevância”, ob. cit., pp. 331. 98 PAUL de GRAUWE, “The Governance of a Fragile Euro Zone”, Centre for European Policy Studie (CEPS), Brussels, 4.5.2011. Martin WOLF, no Finantial Times de 1 de junho de 2011 escreveria: A euro zona tal como está falhou e, tem apenas duas opções, ou avança para uma união política mais estreita, ou regride chegando a uma dissolução parcial, segregando alguns dos atuais Estados Membros. (O sublinhado é nosso) 99 Recorrendo à metodologia tradicional dos “Livros Brancos”, a Comissão Europeia abre um debate, que se pretende o mais participado que seja possível sobre a encruzilhada em que se encontra o projeto da Europa Comunitária que em rigor já vai com 67 anos, tomando como ponto de partida a Declaração SCHUMAN, num mundo em transformação acelerada cada vez mais multipolar. 100 O Livro Branco desenha cinco cenários possíveis para a União Europeia em 2015, todos eles partindo do princípio de que “os 27 Estados avançam em conjunto, enquanto União”, considerando-os “meramente ilustrativos”, no sentido de não serem “planos pormenorizados nem decisões políticas”, enfatizando-se que existem múltiplas interseções entre os conjuntos de atribuições, competências e poderes subjacentes 47 assina a 1.Mar.de 2017 o kick-off do Processo do debate centrado no Livro Branco sobre o Futuro da Europa que vai desaguar nas novas eleições para o Parlamento Europeu de junho de 2019, inventariando 5 cenários para esse mesmo FUTURO. De alguma forma, este Livro Branco, tem potencialidades para exercer um papel ao que, mutatis mutandis, exerceu o Pacote Delors II à época, em termos de revitalizar o interesse dos europeus, e de Portugal101 em especial sobre a sua casa comum. Na verdade, a EUROPA precisa hoje, mais uma vez da VISÃO PRAGMÁTICA que tão maravilhosamente Jacques DELORS102 representa. No mesmo sentido aponta o Projeto EUROPA 2030, Desafios e oportunidades, ou seja, o Relatório de um Grupo de Sábios103 apresentado ao Conselho Europeu sobre o Futuro da União Europeia na perspetiva de 2030. 41. Por todos estes cenários, e, ainda, qualquer que seja a interseção de alguns e/ou de todos que venha a ser escolhida, perpassa, como necessidade incontornável, a sua inserção na ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA, assumida como um BEM PÚBLICO progressivamente enriquecido e diversificado. Mais uma vez vamos estar perante a função do DIREITO enquanto fonte inspiradora da arquitetura final desta constelação de organizações intergovernamentais e supraestaduais que é a UNIÃO EUROPEIA. aos cenários em causa, estando por conseguinte aberto a definição de um perfil da União Europeia que corresponda ao interesse geral dos cidadãos europeus. 101 Sobre a presença de Portugal na Construção Europeia, e, em particular na época marcada pelo PACOTE DELORS II, ver VITOR MARTINS, então Secretário de Estado da Integração Europeia, in 20 Anos de Integração Europeia, o Testemunho Português, ANDRESAN LEITÃO, Nicolau (org.) Lisboa: Editorial Cosmos, 2007 pp. 45 a 60. Ainda de VITOR MARTINS, sobre toda a temática da CONSTRUÇÃO EUROPEIA ver os seus “Encontros com a Europa” (I e II), Lisboa 1989 e 1995. 102 DELORS, Jacques, “Memórias”, Lisboa: Quetzal Editores 2004 103 FELIPE GONZALEZ, Márquez, Presidente deste Grupo, que integra nomes como MARIO MONTI e LECH WALESA. Relatório entregue em maio de 2010. 48 A nosso ver a porta estreita para o reencontro da EUROPA com a sua HISTÓRIA LUMINOSA está no cimo de uma escadaria que é preciso subir disseminando CONFIANÇA, o que exige o consumo massivo daquele BEM PÚBLICO. Mais uma vez, estaremos aqui perante uma Comunidade de e pelo Direito. 42. Mas também estaremos perante novos desafios de legitimação do Poder Democrático e da própria Definição da Democracia enquanto estrutura fundamental da UTOPIA Comunitária. Neste domínio, vão seguramente colocar-se desafios cruciais de REPRESENTAÇÃO POLÍTICA, estudados, entre nós, mais recentemente pelo Professor MANUEL MEIRINHO, focados sobretudo na natureza e estrutura dos sistemas eleitorais, das suas potencialidades e fragilidades.104 VI. CONCLUSÕES 43. A ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA é um bem público por excelência que tem possibilidades reais de multiplicar a competitividade, a coesão e a singularidade da Europa no Mundo. É um “bem” que pode ser utilizado indefinidamente, que é consumido individual e coletivamente, em relação ao qual não existe competição nem a possibilidade de eliminar outros concorrentes.105 44. Ora, é justamente com o Tratado de Lisboa, e o novo Tratado da União Europeia (2007), que entrou em vigor a 1.dez.2009, que este bem público assume uma versatilidade de excelência em termos dos MEIRINHO, Manuel Martins, “Representação Política, Eleições e Sistemas Eleitorais”, Lisboa: ISCSP, 2008. 105 As potencialidades e as caraterísticas Únicas dos Bens Públicos foram inicialmente descritas por SAMUELSON, e depois glosadas por uma galeria de insignes economistas e juristas. 104 49 VALORES COMUNS, incluindo os DIREITOS HUMANOS fundamentais, densificando a sua singularidade única desta ORDEM JURÍDICA. A propósito do Tratado de Lisboa, escreveu um conhecido autor americano, RIFKIN106 (2004), “It might be said that Human Rights are the heart and soul of the document”. 45. A ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA continua hoje a afirmar-se em termos geopolíticos à luz do princípio do PRIMADO, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, que remonta a 1964,107 e, é à luz deste princípio que assume também a apologia de uma DEMOCRACIA de elevada qualidade,108 integrando os seguintes vetores:  O funcionamento da União baseia-se na Democracia Representativa.  Os cidadãos estão diretamente representados, ao nível da União, no Parlamento Europeu  Os Estados-membros estão representados no Conselho Europeu pelo respetivo Chefe de Estado ou de Governo, e, no Conselho, pelos respetivos Governos eles próprios democraticamente responsáveis, quer perante os respetivos Parlamentos Nacionais, quer perante os seus Cidadãos.  Todos os Cidadãos têm o direito de participar na vida democrática da União  As decisões são tomadas de forma tão aberta e tão próxima dos cidadãos quanto possível  Todos os Estados são iguais perante os Tratados109 106 RIFKIN, Jeremy, The European Dream, New York: Jeremy P. Tarcher/Penguin, 212 107 Acórdãos COSTA/ENEL, Processo 6/64; SIMMENTAL, Processo 106/77. Tratado de Lisboa, 2009, artigos 9 a 12, com particular incidência no artigo 10.º cfr. MIGUEL GORJÃO-HENRIQUES, Tratado de Lisboa, (org.) 2015, 6.ª ed. Coimbra: Almedina, pp. 16. 109 Tratado de Lisboa, art.º 4.º (2). 108 50 Note-se que o termo “cidadãos” é muito mais amplo que a fórmula tradicional de “nacionais”, visto que a cidadania da União introduzida no Tratado de Maastricht corresponde de certo modo a uma condição para uma Zona Monetária ótima nos termos da teoria de ROBERT MUNDEL (Prémio Nobel, 1961), ou seja ao requisito da mobilidade fluida dos residentes nessa Zona. Deste modo, estão reunidas condições para que a UNIÃO EUROPEIA possa assumir claramente a sua caminhada no eixo da UTOPIA, em ordem a uma CIDADANIA EUROPEIA efetivamente consequente. 46. A Ordem Jurídica da União incorpora ainda o objetivo de estabelecer uma economia social de mercado altamente competitiva (artigo 3.º (2) do TUE (2009)), o que inclui vários elementos inovadores face ao tradicional “open market economy”, e, reproduz a fórmula desenvolvida na República Federal Alemã pelo ministro da economia Ludwig ERHARD, procurando também ir ao encontro das abordagens de inspiração ordoliberal, em que se procura compatibilizar a liberdade individual com os limites constitucionais ao Poder económico. Em paralelo, aspira igualmente desenvolver a política social com a política de concorrência, que, em tese, aprofunda o paradigma de “não falseada” 1957) com a variante “inclusiva”. Incorporando todas estas valências teremos um Sistema Político Regulador e Sublimador, com um novo paradigma de Regulação de Elevada Qualidade. Este paradigma desenvolve-se através de ideias focadas no aperfeiçoamento dos MERCADOS e das INSTITUIÇÔES PÚBLICAS com potencialidades claras de externalidades positivas para o futuro da EUROPA, através precisamente da otimização dos equilíbrios dinâmicos e resilientes entre as Racionalidades dos Investidores, dos Cidadãos e dos Contribuintes. 47. A UNIÃO EUROPEIA, e, a sua ORDEM JURÍDICA afirmase como um sistema em que a Democracia, a Economia Social de mercado 51 altamente competitiva, e, a Concorrência não falseada e inclusiva constituem as regras estruturantes da sua constituição material110 com a qual se apresentam aos Europeus e ao Mundo como um paradigma re-inventado de Civilização. 48. Tudo começa, em bom rigor, pela Cultura pela forma como esta reflete as Pulsões Societais mais operativas. Tal como em 1950 a Declaração SCHUMAN foi o “ato” CULTURAL que deu azo à ORDEM JURIDICA DISRUPTIVA que lançou o “Kick-off” do processo da Construção Europeia, também serão agora as novas Pulsões Societais que vão moldar uma nova CULTURA enformadora da mesma ORDEM JURIDICA que está a Reinventar a EUROPA, continuando a ser uma verdadeira Comunidade de Direito e pelo Direito. Apenas e só por uma nova CULTURA será possível na juventude de todas as idades desenvolver pulsões societais donde possa emergir a conclusão de que este bem público da Ordem Jurídica Comunitária é não só a garantia das Liberdades individuais e da dignidade da PESSOA, mas também o baluarte geopolítico para a sobrevivência da EUROPA num Mundo cada vez mais multipolar e competitivo. 49. Espera-se que o debate em curso associado ao Livro Branco sobre o Futuro da Europa venha a ser também demonstrativo desta realidade. Como refere a Representante da Comissão Europeia, em Portugal, SOFIA ALVES, “Um futuro só será comum se for partilhado e é para promover essa partilha que o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude JUNCKER lançou o presente debate.”111 Trata-se na realidade de um comentário rigorosamente exato. Para finalizar, um pouco como se começou ter-se-á que recorrer mais uma vez ao “inevitável” Immanuel KANT. Parafraseando a análise que 110110 Em certo sentido, estamos mais uma vez perante síntese harmoniosa da Doutrina Social da Igreja com a Escola de Freiburg e o Ordoliberalismo. Ver também GERBER, David J. “Constitutionalizing the Economy: German neoLiberalism, Competition Law, and the new Europe”, The American Journal of Comparative Law, vol. XLII, 1994, n.º 1. 111 ALVES, Sofia Colares, “Os Cinco Caminhos para o Futuro da Europa”, Observador, 2/3/2017. 52 Viriato SOROMENHO-MARQUES concluir-se-á o seguinte: Atendendo a que: 112 faz da sua “Para a Paz Perpétua” “• KANT destaca a necessidade de se encarar a Paz como fim último da doutrina do Direito • a PAZ implica como meio essencial a construção de uma ORDEM JURÌDICA entre ESTADOS. • nenhum direito, nomeadamente os direitos individuais inerentes à condição do cidadão estará absolutamente assegurado enquanto essa garantia não for Universal” então a ORDEM JURÍDICA COMUNITÁRIA é o bem público mais precioso que a EUROPA tem para ela própria se re-inventar, enquanto FUTURO competitivo para o MUNDO. Porque … a PAZ é, verdadeiramente, mais rentável do que a GUERRA. Assim se continuará a HISTÓRIA da EUROPA…113 SOROMENHO-MARQUES, Viriato “A Concepção Kantiana de Relações Internacionais em Para a Paz Perpétua”, in SANTOS (Leonel Ribeiros dos), “Kant em Portugal: 1974-2004”, Lisboa: CFUL, 2007, pp. 326 a 340. 113 Entre os imensos textos criativos sobre a EUROPA e a sua HISTÓRIA, que é ascendente no sentido de TEILLARD de CHARDIN, ver por ex.:  DAVIES, Norman, “Europe, a History”, Oxford: Oxford University Press, 1996  RATZINGER, Joseph, “A Europa de Bento, na Crise de Culturas”, Trad. António Rocha, Lisboa: Aletheia Editores, 2005. 112 53 ACERCA DA CONFIANÇA DOS CIDADÃOS NAS INSTITUIÇÕES NACIONAIS E DA UNIÃO EUROPEIA José Manuel Caetano & António Bento Caleiro (jcaetano@uevora.pt & caleiro@uevora.pt) Departamento de Economia Universidade de Évora Resumo: A União Europeia (UE) encontra-se numa fase decisiva quanto ao futuro do seu projeto de integração económica e política, o qual dependerá das decisões políticas das instituições comunitárias e dos governos dos estados-membros. Tais decisões, em última instância, deveriam refletir aquelas que são as visões e as expetativas dos cidadãos sobre a UE, em geral, e sobre as suas instituições, em particular. Assim, neste trabalho pretende-se entender como têm evoluído as perceções dos cidadãos dos diversos estados-membros no que respeita à confiança que manifestam nas instituições da UE, em confronto com o grau de confiança que os mesmos depositam nas próprias instituições a nível nacional. Palavras-chave: Confiança; Cidadãos; Instituições; União Europeia. Abstract: The European Union (EU) is at a decisive stage as to the future of its economic and political integration project, which will depend on the political decisions of the EU institutions and the governments of the Member States. Such decisions should ultimately reflect the views and expectations of citizens about the EU, in general, and, particularly, in its institutions. The aim of this paper is to understand how citizens’ perceptions of the different Member States have evolved in terms of their confidence in the EU institutions, compared to the degree of trust they place in the institutions at a national level. Keywords: Citizens; European Union; Institutions; Trust. 55 1. Introdução A União Europeia (UE) encontra-se numa fase decisiva quanto ao futuro do seu projeto de integração económica e política, o qual dependerá, no fundamental, das decisões das instituições comunitárias e dos governos dos seus estados-membros. Tais decisões, em última instância, deverão refletir aquelas que são as visões e as expetativas dos cidadãos sobre a UE, em geral, e sobre as suas instituições, em particular. Na realidade, a proliferação sistemática dos sentimentos nacionalistas, associada à consolidação dos movimentos populistas que de forma impressiva vão alastrando na Europa, poderá desencadear processos de fragmentação e de instabilidade na UE. Naturalmente a expressão destas tendências vem sendo cada vez mais percebida como o reflexo de um afastamento dos cidadãos em relação ao ideal comunitário e de uma quebra de confiança nas suas instituições e nos seus atores representativos. Deste modo, consideramos relevante conhecer com detalhe e profundidade como têm evoluído as perceções dos cidadãos dos diversos Estados-membros no que respeita à confiança que manifestam nas instituições da União Europeia, em comparação com o grau de confiança que os mesmos depositam nas próprias instituições a nível nacional. Adicionalmente, tendo em conta os efeitos económicos e sociais decorrentes das severas medidas de austeridade que têm vindo a fustigar alguns países da Zona Euro1, em especial na sequência da crise das Dívidas Soberanas e do avolumar dos níveis de endividamento público e dos seus efeitos económicos e sociais, abordaremos as atitudes reveladas pelos cidadãos dos países mais e menos afetados pela crise, expressas nas suas perceções sobre o nível de confiança nas instituições europeias e nacionais. A abordagem será suportada, entre outras fontes, nos relatórios do European Social Survey (disponíveis em www.europeansocialsurvey.org). 1 No período considerado neste estudo (2002-2014) podemos considerar que a UE foi confrontada com três crises de natureza distinta e naturalmente com impactos diferenciados nas atitudes dos cidadãos ao nível dos vários países. Assim, ocorre uma crise política com o fracasso do projeto de Constituição Europeia em 2005, verifica-se uma crise econômica a partir de 2007 devido aos níveis de endividamento público em países da Zona Euro e, mais recentemente, vem ocorrendo uma crise migratória que em alguns países atingiu grandes proporções. 56 Tendo em conta os objetivos do trabalho, este estrutura-se tal como de seguida se enuncia. Em termos de ‘antecedentes’, faz-se breve análise das dinâmicas do processo de integração europeia, assim como a referência a alguns impactos sociais da recente crise na UE, seguindo-se breves considerações sobre o papel económico das instituições e sobre a confiança dos cidadãos europeus nas instituições políticas. O corpo principal do trabalho ocupa-se da análise da confiança nos Parlamentos nacionais e europeu, a qual se complementa com breves observações sobre os sentimentos de confiança e de pertença dos cidadãos em relação à UE. Finalmente, em termos dos ‘consequentes’, chama-se a atenção para os números correspondentes à participação dos cidadãos nacionais nas eleições para o Parlamento Europeu e para os desafios que o quadro exposto neste trabalho representa para o futuro da UE. 2. As dinâmicas do processo de integração europeia A integração europeia no pós-guerra está estreitamente associada à criação da Comunidade Económica do Carvão e do Aço (CECA) e da Comunidade Económica Europeia (CEE)2 durante a década de 50 do passado século, as quais viabilizaram notáveis progressos na liberalização do comércio entre os estados-membros. Na década seguinte sucederam-se expressivos avanços a consolidação de algumas políticas comuns (agricultura e comércio externo) e a formação da União Aduaneira. A rápida expansão destas tendências motivou um ambiente de otimismo, o qual dinamizou o crescimento económico e esteve na base de novas iniciativas comunitárias em direção a um aprofundamento da integração europeia. Neste contexto favorável, em finais da década de 60 foi alvitrada a criação de uma União Económica e Monetária (UEM) na Europa, projeto 2 A CECA foi criada pelo Tratado de Paris em 1951, subscrito por França, Alemanha, Itália e países do Benelux, constituindo uma comunidade com o propósito liberalizar a circulação do carvão e do aço e coordenar a produção e o acesso às suas fontes. A CEE tem a sua base no Tratado de Roma que foi assinado em 25 de março de 1957, tendo por objetivo promover a integração e o crescimento económico dos seus membros (os mesmos que criaram a CECA) através do comércio, mormente pela criação de uma União Aduaneira e de um Mercado Comum. 57 ancorado no denominado relatório Werner. Todavia, a degradação da conjuntura económica internacional, após a derrocada do sistema monetário internacional baseado nos acordos de Bretton Woods e a ocorrência das crises petrolíferas na década de 70 vieram inviabilizar os avanços deste projeto. O ritmo da integração europeia esfriou, ressurgiu o espectro protecionista e acentuaram-se discordâncias políticas no seio da então CEE, as quais não obstaram a que em 1973 Reino Unido, Dinamarca e Irlanda tivessem aderido. Em resposta à volatilidade cambial, ocorreram precursoras tentativas de coordenação de políticas cambiais e monetárias, culminando com a criação do Sistema Monetário Europeu em 1979. Superada a fase mais incisiva da crise económica internacional nos primeiros anos da década de 80, houve condições políticas para o avanço da integração sob a liderança de Jacques Delors, Presidente da Comissão Europeia desde 1985, com papel decisivo na criação do Mercado Único Europeu (1993) e do Euro (1999). Estas duas realizações firmaram o propósito de que a um mercado deveria corresponder uma moeda, reconhecendo os efeitos nocivos dos entraves à livre circulação de bens, serviços e fatores na competitividade global da União Europeia3 e a necessidade de maior coordenação das políticas económicas. A instabilidade cambial e a fragmentação dos mercados, face à prevalência das normas nacionais, agravavam os custos de transação e não reforçavam as economias de escala, gerando deficiente afetação dos recursos no plano comunitário, levando à fraca posição competitiva das empresas europeias nos mercados globais. Este quadro incitou a reforma do Tratado de Roma com o Acto Único Europeu em 1986 e os posteriores progressos para a unificação do mercado, pela gradual eliminação das barreiras físicas, técnicas e fiscais, que criam em 1993 o Mercado Único Europeu. Em plena preparação do processo de liberalização dos mercados renasceu o projeto de criação de uma moeda única. 3 O Tratado de Maastricht que entrou em vigor em 1993 veio, entre outros aspetos alterar a denominação da Comunidade Económica Europeia para União Europeia. 58 A falta de coordenação das políticas fiscais e monetárias e de estabilidade cambial favorecia a incerteza, condicionando as decisões empresariais, não promovendo um clima propício ao investimento. Perante tal cenário, a criação de uma moeda única para facilitar a coordenação das políticas económicas obteve um novo impulso com o Relatório Delors em 1989, o qual veio a ser materializado no Tratado de Maastricht em 1992. Este Tratado ancora as fundações da UEM em 1999, ao consagrar as fases do processo, os critérios de convergência que autorizavam os países a integrar a zona monetária e a arquitetura legal para a gestão e supervisão do novo modelo da política monetária da moeda única. Desde aquela data, o Euro foi sucessivamente adotado por vários países da UE, circulando atualmente em 19 Estados-membros. Nesta retrospetiva breve sobre a integração económica europeia, iniciada em 1957 como a Zona de Comércio Livre, salientamos o despontar da moeda única em 1999. Como defendia Jean Monnet, arquiteto da integração europeia e primeiro presidente da CECA, a estratégia seguida passou por uma visão pragmática de "pequenos passos", assentes num permanente processo negocial, em busca de um estádio superior de integração. Foi ainda patente neste processo o primado dos aspetos económicos face à dimensão política. Deste modo, conteve as pouco consensuais transferências de soberania, relevantes face às disparidades dos países em causa, pelo que a componente económica tem constituído o pilar dominante da construção europeia, mas não garante que tal possa continuar a acontecer no futuro. 3. Acerca dos impactos sociais da crise das dívidas públicas na UE A crise económica espoletada pelo subprime4 gerou efeitos assimétricos sobre os países europeus, em especial sobre o que integram a Zona 4 Em setembro de 2008 ocorreu a falência de um dos maiores bancos nos Estados Unidos, o Lehman Brothers, provocando a designada crise do subprime, mas não se imaginavam as implicações que tal despoletaria. Assim, a subsequente crise económica que se instalou nos EUA rapidamente alastrou à Europa, provocando enorme volatilidade nos mercados financeiros mundiais que colocaram em causa a solidez e viabilidade de muitas instituições financeiras europeias detentoras de 59 Euro. A assimetria refletiu-se no contraste entre os países do Norte e do Sul da UE, já que os dois grupos de economias assentavam em modelos de crescimento distintos, os primeiros baseados nas exportações e os segundos ancorados na procura (Hall 2014). A forma como foi gerido o excesso de endividamento dos agentes levou a uma crise bancária global, reduzindo a confiança dos mercados financeiros. No contexto da crise, os mercados financeiros reavaliaram a exposição ao endividamento dos países da zona Euro que acumularam maiores défices orçamentais e externos e subiram os respetivos prémios de risco nos empréstimos, restringindo bastante o acesso destes países ao crédito. O setor privado deixou também de aceder ao crédito a taxas de juro baixas, o que gerou efeitos em cadeia sobre a estrutura produtiva e afetou o crescimento económico. A rápida subida dos custos de financiamento degradou as condições estabilidade das economias mais expostas, motivando alguns países a solicitar ajuda externa a entidades como o FMI e o BCE. Em maio de 2010 a Dívida Pública da Grécia foi colocado no patamar “default” (vulgarmente designado por “lixo”), a que se seguiram a Irlanda, Portugal e Chipre, o que fez disparar os custos de financiamento e levou estes países a recorrer a empréstimos externos. Assim, Grécia, Irlanda, Chipre e Portugal acordaram programas de financiamento com a troika5 e aplicaram amplas medidas de austeridade com o argumento de reforçar a competitividade e restabelecer a sua sustentabilidade orçamental. Em 2012, Espanha acordou também um programa de assistência financeira para a reestruturação e recapitalização do respetivo sistema bancário6. elevado volume de crédito de cobrança duvidosa e, ainda, com montantes significativos de crédito concedidos aos governos dos Estados-Membros da UE. 5 Troika é a designação atribuída à equipa de técnicos (consultores e economistas) do Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia que concederam os créditos aos países da EU no contexto da recente crise económico-financeira. 6 Além disso, Espanha e Itália tiveram que lidar com uma forma menos explícita de condicionalidade. Em 2011, o BCE solicitou reformas imediatas aos governos de Itália e Espanha, como contrapartida à aquisição das respetivas dívidas públicas no mercado secundário, na condição de que os pacotes de reformas fossem aplicados. 60 Em contrapartida, as economias do centro e norte da Zona Euro (Alemanha, Holanda, Bélgica e Finlândia) foram bastante menos fustigadas no crescimento económico e no emprego quando comparadas com as congéneres do sul da Europa, onde também a França passou por dificuldades. A crise atingiu ainda os países do centro e leste da Europa, os quais tinham beneficiado do afluxo de elevados montantes de capitais e de investimentos na última década, e que provocaram forte crescimento económico, mas também uma rápida expansão do crédito ao consumo e do consequente endividamento (GUARDIANCIH, 2012). A “Troika” tem sido acusada de falta de preparação para lidar com a situação de crise de dívidas soberanas na zona Euro PISANI-FERRY et. al. (2011), tendo permitido que os Estados, enquanto garante último da solvabilidade dos bancos sob sua jurisdição, tenham concentrado os riscos por estes assumidos. Em simultâneo, os bancos com carteiras de ativos pouco diversificadas acumularam riscos perante a eventual insolvência dos seus clientes, entre os quais o próprio Estado. Ora, como os países da Zona Euro emitem dívida numa moeda que não controlam, não puderam garantir aos credores o reembolso na maturidade, expondo os países a crises de liquidez que despoletaram quebra de confiança nos mercados (DE GRAUWE, 2011). Avolumaram-se as assimetrias entre países devedores e endividados na Zona Euro, revelando diferentes níveis de desempenho económico com efeitos de intensidade e amplitude variada. De facto, a capacidade de resposta à crise diferiu entre países, pois o regime da moeda única limitou a gama de opções orçamentais disponíveis para mitigar as consequências económicas e sociais da crise. À medida que os efeitos da crise se agravaram e as medidas de austeridade se intensificaram, redobraram os incitamentos de vários setores para que a UEM incluísse uma dimensão social, complementando as vertentes económicas, orçamental, bancária e política (CAETANO & RICO, 2014). A inclusão deste pilar reconhecia as lacunas no figurino institucional da UEM que não protegeu os agentes mais frágeis. Em consequência, os sistemas sociais dos países mais afetados pela crise foram postos em causa, ameaçando o bem-estar das populações. 61 Em suma, a crise afetou mais profundamente os países periféricos da zona Euro, pois as medidas de austeridade adotadas não foram eficazes para promover soluções para a crise financeira (FABRINI, 2013). As medidas de consolidação orçamental não projetaram a rápida recuperação económica, pelo que a severidade dos efeitos sociais poderá ter contribuído para atiçar sentimentos de desconfiança em relação à UE (ARMINGEON & GUTHMANN, 2014). Assim, é admissível que os cidadãos dos países mais afetados possam ter sentido que a adesão à UE e ao Euro não tenha sido benéfica para o seu bem-estar. O crescimento lento, o aumento da pobreza e do desemprego e a crescente polarização entre países devedores e credores, podem ter alimentado a emergência e consolidação de uma clivagem em termos de confiança nas instituições e de pertença à comunidade europeia. 4. Papel das instituições na economia e a confiança dos cidadãos nas instituições políticas Desde há cerca de duas décadas que alguns autores têm vindo a salientar a relevância das instituições no funcionamento das economias. De facto, a outorga em 1994 do Prémio Nobel da Economia a Douglass North pelo seu contributo decisivo no desenvolvimento da teoria da nova economia institucional, constituiu o reconhecimento explícito da importância efetiva das instituições no funcionamento e no desempenho das economias. O que são, então, instituições? Para North, as instituições constituem construções da mente humana, as quais naturalmente não se podem ver, sentir, tocar ou medir (TAVARES, 2004: pg. 50). De acordo com este autor, as instituições desempenham as funções de criar regras e zelar pela sua aplicabilidade, agregar informação e preferências, partilhar o risco e reduzir a incerteza, otimizar a utilização de recursos e influenciar a sua redistribuição. Já neste século tem vindo a ser salientada uma dita visão evolucionária da política económica, a qual pretende estudar a influência das insti- 62 tuições (e do carácter dos agentes económicos) sobre a dinâmica da economia. A importância dos enquadramentos institucionais, mormente o modo de funcionamento dos sistemas jurídico-legais tem vindo a ser, na verdade, um assunto bastante pesquisado por uma corrente atual de clara relevância na literatura da política económica (PERSSON & TABELLINI, 2000; 2004). As instituições, em geral, e os Parlamentos, em particular, são um assunto de óbvio interesse no atual processo de desenvolvimento que condicionará o futuro do projeto de integração europeia, onde se debatem aspetos como, por exemplo, a necessidade do criar uma Constituição Europeia, capaz de ombrear como os quadros constitucionais dos estados-membros. Neste contexto, assume especial interesse o conhecimento sobre a natureza da relação (conflitualidade versus complementaridade) entre os Parlamentos nacionais e o Parlamento Europeu (KATZ & WESSELS, 1999), sendo certo que o seu normal funcionamento depende, a mais ou menos breve trecho, do grau de Confiança depositada naquelas instituições por parte dos cidadãos. Para o presente trabalho resulta, assim, serem importantes as instituições e, em particular, a Confiança que nelas depositam os cidadãos dos Estados-membros da UE. Sendo a constituição dos Parlamentos nacionais e Europeu o resultado de um processo eleitoral, importa perceber, desde logo, o grau de confiança que os cidadãos depositam nestas instituições políticas. Tendo em conta os dados do World Values Survey (1999-2004), a OECD (2007) apurou que, em média, 38% dos indivíduos, no início dos anos 2000, reportaram um nível elevado de confiança no (seu) Parlamento, sendo este valor marginalmente inferior em relação ao Governo, mas estando também, aparentemente, correlacionada com uma proporção superior, em relação à administração pública mais próximo do cidadão [no original, civil service]. De acordo com a visão institucional exposta mais recentemente, alguns autores evocaram a relevância exercida pelo contexto na afirmação de um dado nível de confiança política (LISTHAUG & RINGDAL, 2008; ROSE et al., 2013). Em particular, LÜHISTE (2006) concluiu que, não é 63 apenas o desempenho dos sistemas económico e político que se revela explicativo da confiança manifestada pelos cidadãos nas suas instituições políticas, mas também o contexto cultural. Assim, por exemplo, é expectável que a confiança nos Parlamentos dependa, não só da perceção do seu desempenho pelos cidadãos, mas reflita também as próprias características culturais do país em causa, de acordo com o antes afirmado. Tendo, precisamente, em conta algumas características culturais dos países, ARNOLD et al. (2012) testaram, para os países da UE, duas hipóteses:  Hipótese da congruência: Existe uma associação positiva entre a confiança nas instituições nacionais e nas instituições da UE;  Hipótese da compensação: Existe uma associação negativa entre a confiança nas instituições nacionais e nas instituições da UE. De acordo com aqueles autores, a hipótese da congruência é a que se revela como aquela que, em termos de linha de base [por tradução de baseline] ou patamar de comparação, a mais aceitável, mas, quando a corrupção, enquanto característica parcialmente explicável por motivos culturais, é tida em conta, a hipótese deixa de se verificar, para todos os países. Em termos provisórios, ARNOLD et al. (2012) concluem que os cidadãos de países com baixos (resp. altos) níveis de corrupção tendem a confiar menos (resp. mais) nas instituições europeias. Em certa medida, as conclusões de BABOŠ (2014) são também concordantes com a hipótese da importância da corrupção no tipo de relação entre os diferentes níveis de confiança., Também as hipóteses da congruência e da compensação foram testadas por MUÑOZ et al. (2011), os quais concluíram igualmente que as duas hipóteses são válidas, de acordo com as características culturais do país de cidadania. Se as instituições do país são, normalmente, confiáveis, essa confiança tende a propagar-se à confiança nas instituições da UE (hipótese da congruência), ao mesmo tempo que, caso aquelas instituições políticas sejam entendidas como menos fiáveis, a confiança nas instituições europeias tenderá a ser superior à nacional. Por sua vez, considerando as características individuais de cada cidadão, i.e., o seu background no plano socioeconómico, DOTTI SANI & 64 MAGISTRO (2016) concluíram que a crise económica pós-2008 fez diminuir de forma mais expressiva os níveis de confiança dos cidadãos no Parlamento Europeu nos países periféricos mais afetados pela crise (Portugal, Itália, Irlanda, Chipre, Grécia e Espanha). Esta tendência foi sobretudo mais notória no caso dos cidadãos com estatuto social mais baixo, eventualmente também aqueles que foram mais penalizados pela crise e pelas medidas de austeridade subsequentes aos programas de ajustamento. 5. Sobre a Confiança dos cidadãos nos Parlamentos nacionais e Europeu Os dados usados neste ensaio correspondem ao nível de Confiança nos Parlamentos nacionais e no Parlamento Europeu que estão disponíveis no sítio do European Social Survey, apresentados em anexo, os quais estão categorizados em 11 níveis que variam entre 0 (confiança nula) e 10 (confiança absoluta). Consideram-se os dados disponíveis nos sete relatórios que cobrem os biénios entre 2002 e 2014. Para este período foram usados os dados para o conjunto dos Estados-membros países da UE, e, a título individual, para os seguintes países: Alemanha, Áustria, Chipre, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália e Portugal, sendo certo que não existe informação estatística para todos os países em todas as rondas; veja-se os dados disponíveis por país em http://www.europeansocialsurvey.org/data/country_index.html (acedido em Março 02, 2017). As tabelas que apresentamos têm a sua base nestes dados. Em termos metodológicos, dada a natureza dos dados e os objetivos do trabalho, consideraram-se, para além de métodos de estatística descritiva, a análise de correlação policórica e as tabelas de contingência. A tabela 1 inclui estes coeficientes para o total dos países e para cada país.7 O cálculo destes coeficientes foi feito recorrendo à rotina ‘polycor’ para R. (John Fox (2016). polycor: Polychoric and Polyserial Correlations. R package version 0.7-9. https://CRAN.R-project.org/package=polycor ). 7 65 Tabela 1. Correlação entre Confiança nos Parlamentos nacionais e no Parlamento Europeu 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 Total 0.5171 0.5174 0.5216 0.4990 0.5858 0.5422 0.5696 Conforme podemos observar nesta tabela, em termos do total dos países, as variáveis que correspondem à Confiança nas duas instituições (Parlamento nacional e Parlamento Europeu) estão positivamente correlacionadas, sendo esta bastante significativa do ponto de vista estatístico. O nível de correlação apresenta o valor mais baixo em 2008 e o valor mais alto em 2010, mas pode afirmar-se com segurança que, em termos gerais, o grau de correlação é semelhante ao longo do período em análise. Quanto à significância da associação entre as duas variáveis, recorrendo aos testes de Qui-quadrado, em todos os casos existe uma rejeição clara da hipótese de inexistência de associação, o que constitui um resultado esperado, dado o número extremamente elevado de observações, perante um nível de correlação (positivo) da magnitude apresentada na tabela 1.8 Procedemos depois a uma breve análise sobre evolução da confiança numa das instituições versus a outra, tal como se mostra na figura 1, onde consta a proporção de inquiridos que confiavam mais (a vermelho), igualmente (a violeta), e menos (a azul), no Parlamento nacional do que no Parlamento Europeu. A evolução patenteada na figura parece concordante com o seguinte: entre 2002 e 2008, houve uma diminuição da percentagem de pessoas que confiava mais nos Parlamentos nacionais do que no Parlamento Europeu acompanhada por um aumento da percentagem das pessoas que confiava mais nesta instituição do que naquelas. O ano de 2010 parece indicar uma inversão desta tendência, dado que a percentagem as pessoas que confiava mais nos Parlamentos nacionais do que no Parlamento Europeu atingiu o valor mais baixo. Eventualmente terá ocorrido uma penalização dos cidadãos em relação aos Deputados nacionais por não terem encontrado res- 8 Os valores da estatística do Qui-quadrado para cada um dos casos está disponível junto dos autores. 66 posta assertiva à crise, ou, ainda, por terem tido que aceitar e validar medidas de austeridade. Registou-se ainda um aumento da percentagem de cidadãos que referiram confiar igualmente em ambas as instituições. Figura 1. A evolução da confiança para o total dos países Da observação dos resultados de 2012 registamos o aumento da percentagem das pessoas que confiaram mais no Parlamento nacional do que no Parlamento Europeu, tendência que foi acompanhada pela diminuição da percentagem das pessoas que confiavam igualmente em ambas as instituições. Finalmente em 2014 já se assistiu a uma redução da percentagem dos que confiavam mais no Parlamento Europeu, tendo atingido o valor mais baixo no período tratado, o que poderá simbolizar o descrédito mais recente nas instituições europeias. Considerando agora o caso específico de Portugal, a figura 2 apresenta a situação respeitante à evolução do nível de confiança dos cidadãos portugueses nas duas instituições. Salientamos o facto de existir mais confiança no Parlamento europeu que no Parlamento português, não obstante em 2014 o nível de Confiança nesta instituição crescido, daí resultando uma percentagem semelhante de cidadãos que confiavam igualmente em ambas as instituições, face às que confiavam mais no Parlamento Europeu. 67 Figura 2. A evolução da confiança dos cidadãos portugueses Sendo Portugal um país não pertencente ao ‘núcleo central’ da União Europeia, torna-se interessante verificar como evoluiu a confiança nos Parlamentos, no caso de um país do dito núcleo, como é, seguramente, o caso da Alemanha. A figura 3 representa este caso, sendo o padrão de respostas ura claramente distinto do caso português. 68 Figura 3. A evolução da Confiança dos cidadãos alemães No caso alemão, os seus cidadãos confiavam mais no seu próprio Parlamento que no congénere europeu, sendo de salientar que este desnível se acentuou de forma significativa nos anos mais recentes, como resultado de trajetórias distintas nos níveis de confiança. De facto, verificou-se um acréscimo de confiança na instituição nacional (próximo de 60% no último ano) e uma diminuição da confiança no Parlamento Europeu. Considere-se de seguida o caso da Grécia9, seguramente o país da Zona Euro mais afetado pela crise das Dívidas soberanas pós-2008. A figura 4 é, em certa medida, semelhante à figura relativa a Portugal, o que significa que, tal como no nosso caso, os cidadãos gregos depositam maior confiança no Parlamento Europeu do que no seu próprio parlamento. 9 Para este país só existem dados para as rondas correspondentes a 2002, 2004, 2008 e 2010, o que limita a análise e não permite escrutinar com mais detalhe os efeitos da crise no grau de confiança dos cidadãos gregos nas instituições políticas. 69 Figura 4. A evolução da confiança dos cidadãos gregos Desejando considerar um país de referência, caracterizado por ter passado relativamente incólume pela crise económica internacional, ao contrário da Grécia e de Portugal, mas que não aparece tão associado ao ‘núcleo duro’ da União Europeia, como a Alemanha, expomos de seguida o comportamento dos cidadãos da Holanda em relação à Confiança nas instituições. Para este país, a figura 5 mostra como os cidadãos holandeses têm em particular consideração o seu próprio Parlamento, o qual se revelou mais confiável ainda após o ano de 2008. 70 Figura 5. A evolução da confiança dos cidadãos holandeses De seguida, procedemos à análise dos dados relativos à evolução da desconfiança (total), i.e. da confiança nula, numa instituição e/ou em ambas, para a totalidade dos países da UE, cujos resultados se expõem de seguida. Registe-se, desde já, que, tratando-se de uma escala de 11 categorias (entre 0 e 10), o valor intermédio na escala, i.e. o valor 5, regista o maior número de respostas, conforme seria de esperar, mas tal apenas se verifica até ao ano de 2008, dado que a partir de 2010 o maior número de respostas incide na confiança nula em ambas as instituições. Naturalmente, consideramos que este desvio é significativo. 71 Figura 6. A evolução da desconfiança para o total dos países De acordo com a figura 6, pode afirmar-se que, sendo certo que um nível de confiança nula envolve mais respostas do que o registo de um nível de confiança relativamente baixo – por motivos quase ideológicos, conhecido como o fenómeno ‘ser do contra’ – ainda assim a figura ostenta bem a gravidade da situação. Para além disso, parece evidente que a desconfiança total afeta mais os políticos/burocratas/deputados nacionais do que os europeus, mas da sua maior volatilidade parece transparecer também que é mais de natureza conjuntural, enquanto em relação aos congéneres europeus parece ter natureza mais estrutural. Assim, a desconfiança em relação ao Parlamento Europeu tem vindo gradualmente a crescer, atingindo o valor mais elevado em 2014, ano em que a desconfiança em relação aos Parlamentos nacionais até baixou, ficando esta abaixo daquela, como aconteceu em 2002 (embora, neste ano, a um nível inferior). A figura 7 reproduz a situação para Portugal, sendo evidente o avolumar da crise de confiança dos cidadãos portugueses nas duas instituições, em particular no Parlamento nacional. 72 Figura 7. A evolução da desconfiança dos cidadãos portugueses No caso da Alemanha, a figura 8 ilustra a desconfiança dos seus cidadãos, em relação às duas instituições, a qual evoluiu de forma similar, à exceção de 2014, em que a percentagem dos cidadãos que não confiavam no seu Parlamento baixou, tendo-se verificado um acréscimo significativo em relação ao Parlamento Europeu. Ainda assim, registe-se que, comparando com os valores registados em Portugal, os níveis de desconfiança alemães são significativamente mais baixos a partir de 2008, o que poderá indicar o avolumar do grau de descontentamento dos portugueses pela falta soluções para a crise pós-2008. 73 Figura 8. A evolução da desconfiança dos cidadãos alemães Tendo em conta que a recente crise terá afetado de forma mais intensa e severa a Grécia do que Portugal, construímos a figura 9, a qual mostra nitidamente os eventuais efeitos daquela crise sobre a o grau de desconfiança dos cidadãos gregos. Figura 9. A evolução da desconfiança dos cidadãos gregos 74 Registe-se que, sendo evidente o crescimento da desconfiança, entre 2008 e 2010, os gregos penalizaram de forma mais significativo o seu próprio Parlamento que o congénere europeu. A contrastar com os dois casos anteriores, mas em certa medida, de forma semelhante ao que ocorreu em Portugal, embora numa menor escala, os cidadãos holandeses amplificaram a sua desconfiança em relação ao Parlamento nacional e, em particular, ao Parlamento Europeu, a partir de 2008, conforme podemos observar na figura 10. Figura 10. A evolução da desconfiança dos cidadãos holandeses No que respeita à análise para o conjunto de países, podemos concluir que quando a evolução económica foi favorável, os Parlamentos nacionais, eventualmente por via dos Governos que suportam, foram considerados mais confiáveis. Por outro lado, quando ocorreram períodos com dinâmica económica adversa foram também as instituições nacionais as mais penalizadas, num primeiro momento, sendo a perceção de menor confiança posteriormente transferida para a instância europeia. Este comportamento indicia a ocorrência de um desvio temporal na quebra de confiança nas duas instituições, o que pode ser justificado pela maior proximidade das instituições nacionais às situações de cada país. Pudemos confir- 75 mar a elevada similaridade entre as atitudes dos cidadãos holandeses e alemães e, embora em sentido distinto, verificamos idêntica similitude nos comportamentos dos cidadãos em Portugal, Espanha e, talvez, na Grécia. 6. Sentimentos de Pertença e Confiança dos cidadãos e Participação Eleitoral A União Europeia tem registado enormes progressos na recolha periódica de informação que lhe permite dispor de um inventário global de estudos de opinião, os quais atestam as perceções dos cidadãos sobre aspetos tão relevantes como a confiança e a imagem das instituições ou o sentido pertença dos cidadãos ao projeto europeu. Vários indicadores têm sido considerados para avaliar a evolução da opinião dos cidadãos, através dos inquéritos regulares promovidos pelo Eurobarómetro, cujos resultados apresentamos nas figuras seguintes. Figura 11. A evolução do sentimento de pertença à União Europeia Fonte: Elaboração própria com dados das várias edições do Eurobarómetro, consultados em DEBOMY (2016) Assim, a figura 11 sobre a evolução do sentido de pertença ao projeto europeu durante a década (2005-2015) reflete a quebra do indicador 76 que ocorreu durante o período subsequente ao pico da crise económica, evidenciando a degradação do nível de envolvimento dos cidadãos e da sua credibilidade no projeto de integração. Figura 12. A evolução da imagem da União Europeia para os seus cidadãos Fonte: Elaboração própria com dados das várias edições do Eurobarómetro, consultados em DEBOMY (2016) No mesmo sentido verifica-se forte degradação da imagem da UE aos olhos dos seus cidadãos no período subsequente à crise, já que enquanto a perceção de imagem positiva revelava em 2007 mais do triplo do valor dos que consideravam a imagem da UE como negativa (49% e 14%, respetivamente), em 2013 aqueles valores aproximaram-se bastante (31% da imagem positiva e 29% da imagem negativa). A perda de credibilidade das instituições comunitárias pela forma como lidaram com as consequências sociais da crise refletiu-se na degradação da opinião dos europeus sobre a imagem da UE. Todavia, os comportamentos foram distintos nos diferentes países, refletindo eventualmente a severidade distinta dos impactos das medidas de ajustamento. Assim, construímos a figura 13 que expressa o comportamento dinâmico (valores de 2005 e 2015) das variáveis confiança e sentido 77 de pertença nos países que tinham aderido ao Euro antes do despoletar da aludida crise. Figura 13. A evolução do sentido de pertença e da confiança na União Europeia (2005-2015) Legenda: Alemanha (AL), Áustria (AT), Bélgica (BL), Chipre (CH), Finlândia (FI), França (FR), Espanha (ES), Holanda (NL), Grécia (GR), Irlanda (IR), Itália (IT), Luxemburgo (LX), Portugal (PT), União Europeia (UE), Zona Euro (ZE). Fonte: Elaboração própria com dados das várias edições do Eurobarómetro, consultados em DEBOMY (2016) A observação da figura 13 permite concluir que, enquanto a quebra da confiança na UE foi generalizada para quase todos os países, a diminuição do sentimento de pertença ao atual modelo de integração foi apenas registado nos países mais afetados pela crise económica, em especial os que tiveram que recorrer a financiamento externo para sustentar as finanças públicas (Grécia, Portugal, Irlanda, Chipre, Espanha e Itália). Ao invés, os cidadãos de países como a Alemanha, França, Finlândia, Bélgica e Luxemburgo expressaram o reforço do seu sentimento de pertença ao modelo de integração que está a ser construído. Cremos que estes indícios revelam duas tendências relevantes, das quais a continuidade do modelo de integração não pode alhear-se: por um lado, a quebra de confiança geral nas instituições comunitárias revela a premência de repensar o figurino institucional e as políticas comunitárias; por outro, a clivagem notória entre dois blocos bem definidos (periféricos e 78 centrais) face ao atual modelo de integração económica e monetária, mostra que aqueles se sentem cada vez mais excluídos e denotam desconforto com a forma como as instituições lidaram com a crise. As disparidades económicas e sociais aumentaram no contexto de uma crise aguda que, sendo propagada como global, afetou bastante mais uns países do que outros, confirmando a existência de choques assimétricos no seio da EU e ameaçando a sua coesão, o que deverá levar a uma reformulação do modelo de governação económica da moeda única. Uma das consequências mais evidentes do declínio no nível de confiança no Parlamento Europeu tem sido o consistente e generalizado aumento das taxas de abstenção nas eleições quinquenais para aquela instituição, fenómeno que ocorre desde os primeiros sufrágios diretos e universais para o órgão em 1979. Os dados da figura 11 mostram de forma eloquente este facto, com uma acentuada quebra na taxa de participação eleitoral [tradução de turnout], sendo particularmente significativas as descidas apuradas nas eleições realizadas os anos 1999 e 2004. Figura 14. A taxa de participação nas eleições para o Parlamento Europeu 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1979 1984 1989 1994 1999 2004 2009 2014 Fonte: Elaboração própria com base em http://www.europarl.europa.eu/elections2014-results/en/turnout.html (acedido em Março 31, 2017) 79 Naturalmente, os números apresentados na figura 14 são o corolário de diferentes realidades quando se consideram os diversos estados-membros, a título individual, mas não devem desvalorizar o facto de estar cada vez mais enraizado nas opiniões públicas dos vários países o distanciamento das instituições comunitárias em relação às realidades nacionais, o que questiona a legitimidade das próprias instituições, a sua representatividade face aos interesses dos cidadãos e, no limite, o alcance e eficácia das suas políticas. Neste aspeto, salientamos os aumentos na taxa de participação, que se verificaram entre 2009 e 2014 na Alemanha (43,3% para 48.1%), mas também, curiosamente, na Grécia (52,6 % para 60%). Todavia, a taxa de participação eleitoral baixou naquele período, em Espanha, Irlanda, Itália e Portugal. Em todos os casos, a participação eleitoral nas eleições para o Parlamento Europeu desceu em 2014, mesmo nos países onde esta instituição é mais confiável que os parlamentos nacionais, como nos mais afetados pela crise. Nos países onde os parlamentos nacionais recebem maior grau de confiança (Holanda e Alemanha), torna-se mais evidente o acréscimo da proporção dos que não confiam no Parlamento Europeu. Espanha é um caso interessante, pois o Parlamento nacional recolhe, ainda que ligeiramente, maior confiança do que o Parlamento Europeu, embora no póscrise exista a mesma tendência nos dois países Ibéricos, ou seja um decréscimo no nível de confiança, sobretudo nos Parlamentos nacionais, que em 2014 voltou a recuperar. 7. Considerações finais Este artigo avaliou a evolução da confiança depositada nas instituições políticas, no caso os Parlamentos nacionais e Europeu, no contexto da recente crise económica. Os resultados mostram de forma clara que ocorreu uma gradual perda de confiança na maioria dos países mais severamente afetados pela crise económica, à medida que o agravamento das condições sociais e o desempenho dos países se degradou. Tal aconteceu, em simultâneo, com a ampliação das desigualdades sociais no seio dos vários países e entre os Estados-membros da UE. 80 O declínio da confiança nas instituições nos países ocidentais tem constituído uma preocupação dos cientistas sociais nos últimos anos. Os argumentos de que a crise económica contribuiu para erodir a confiança institucional e o sentido de pertença, em especial nos países onde a crise mais incidiu, estão fundados em abundantes análises empíricas efetuadas. Quando os cidadãos estão descontentes com o desempenho económico e se sentem excluídos do processo de integração, o aumento da desconfiança é um fenómeno entendível. De facto, a crescente penúria de recursos para intervir no plano social pressiona os sistemas democráticos, face à ocorrência de avaliações negativas à capacidade de resposta política e à consequente diminuição da confiança dos cidadãos das instituições, pelo que a legitimidade e a sobrevivência destas podem estar em risco. Na realidade, a confiança nas instituições não só é essencial para o funcionamento democrático, como é uma mais-valia no plano individual. Os cidadãos que confiam nas suas instituições têm maior disponibilidade para serem politicamente ativos, buscando uma melhor posição social. Assim, as maiores perdas de confiança envolvendo grupos socialmente menos protegidos pode levar à sua alienação face ao quadro político, e mais grave, mobilizá-los para movimentos não democráticos e autoritários. Ora, este sentimento de indiferença das instituições europeias face aos problemas sociais decorrentes da crise económica tem constituído uma oportunidade para os Partidos populistas reforçarem a deriva nacionalista e as posições antieuropeias. Sem surpresa e com aparente resignação vamos observando que a gradual perda de confiança nas instituições europeias vai delapidando o ideal europeu, à medida que alastra uma surda vaga de insatisfação e, por vezes, de desinteresse pelo processo de integração, largamente afirmada nos mais recentes atos eleitorais em países da UE. O fenómeno é tanto mais grave quando no interior do próprio sistema se vão solidificando situações incompatíveis com os valores da democracia e da liberdade de expressão que sempre orientaram a matriz de integração europeia. Perante tão inusitada e perigosa situação, impõe-se uma reformulação do sistema da integração europeia, pois as pequenas reformas deixaram de ser suficientes. Torna-se indispensável avaliar de forma mais profunda 81 as raízes dos problemas, que naturalmente não se resumem apenas à deficiente arquitetura da Zona Euro e à sua incapacidade de resposta na recente crise, mas que deverá questionar o próprio modelo institucional da União Europeia, reorientando os seus objetivos e repensando a questão fulcral do ritmo e da amplitude do processo de integração. Neste contexto, cremos ser essencial compreender que sólidas instituições, plenamente articuladas nos vários níveis de intervenção, podem gerar melhores resultados na eficiência da afetação dos recursos, no equilíbrio da repartição dos rendimentos pelos agentes, com reflexos no nível do crescimento económico e do bem-estar dos cidadãos. Em suma, países com melhores instituições correspondem, em regra, a economias com maior potencial de crescimento, algo que a economia da União Europeia necessita para recuperar a confiança dos seus cidadãos e a credibilidade perante aqueles que um pouco por todo o mundo se habituaram a ver na integração europeia um modelo de paz e de prosperidade. Referências bibliográficas ARMINGEON, K.; GUTHMANN, K. (2014) - Democracy in crisis? The declining support for national democracy in European countries, 2007– 2011. European Journal of Political Research 53:3 (2014), 423-442. ARNOLD, C; SPIR, E.V.; ZAPRYANOVA (2012) - Trust in the institutions of the European Union: A cross-country examination, in Beaudonnet, L. Mauro; D.d. (eds) Beyond Euro-skepticism: Understanding attitudes towards the EU, European Integration online Papers (EIoP), Special Mini-Issue 2 (2012), 16:8. http://eiop.or.at/eiop/texte/2012-008a.htm. BABOŠ, P. - Trust in Political Institutions: The Effect of Corruption, Electoral Winners, and the Post-Communist Legacy. Polish Political Science Review 2:2 (2014), 41-57. CAETANO, J.M.; RICO, N.M. - A dimensão social da União Económica e Monetária Europeia: Das suas razões aos instrumentos de concretização. 82 Debater a Europa 11 (2014), 426-455. http://debatereuropa.europe-directaveiro.aeva.eu/images/n11/jcaetano.pdf DE GRAUWE, P. - The Governance of a Fragile Eurozone. CEPS . Working Document No. 346, (2011). https://www.ceps.eu/publications/governance-fragile-eurozone DEBOMY, D. - L'UE malgré tout ? Les opinions publiques européennes face aux crises (2005-2015), Institut Jacques Delors - Notre Europe, Études & Rapports, Juin (2016). http://www.astrid-online.it/static/upload/inst/institut-jdelors_ue-malgre-tout.pdf DOTTI SANI, G.M.; MAGISTRO, B. - Increasingly unequal? The economic crisis, social inequalities and trust in the European Parliament in 20 European countries. European Journal of Political Research 55 (2016), 246-264. ESS Rounds 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 - Norwegian Centre for Research Data, Norway – Data Archive and distributor of ESS data for ESS ERIC. FABBRINI, S. - Intergovernmentalism and its limits: Assessing the European Union’s answer to the euro crisis. Comparative Political Studies 46:9 (2013), 1003-1029. GUARDIANCICH, I. (ed.) - Recovering from the crisis through social dialogue in the new EU Member States: The case of Bulgaria, the Czech Republic, Poland and Slovenia. Budapest: International Labour Organisation, 2012. http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---europe/---rogeneva/---sro-budapest/documents/publication/wcms_203443.pdf HALL, P. - Varieties of capitalism and euro crisis. West European Politics 37:6 (2014), 1223-1243. KATZ, R.S.; WESSELS, B. - The European Parliament, the national parliaments, and European integration. Oxford University Press, 1999. LISTHAUG, O.; RINGDAL, K. - Trust in political institutions. In Nordic social attitudes in a European perspective, 131-151, 2008. 83 LÜHISTE, K. - Explaining trust in political institutions: Some illustrations from the Baltic states. Communist and post-communist studies, 39:4 (2006), 475496. MUÑOZ, J.; TORCAL, M.; BONET, E. - Institutional trust and multilevel government in the European Union: Congruence or compensation?. European Union Politics, 12:4 (2011), 551-574. OECD - Trust in Political Institutions, in Society at a Glance 2006: OECD Social Indicators, OECD Publishing, Paris, 2007. http://dx.doi.org/10.1787/soc_glance-2006-35-en (acedido em Março 02, 2017). PERSSON, T.; TABELLINI G. - Political Economics: Explaining Economic Policy. Massachusetts: MIT Press, 2000. PERSSON, T.; TABELLINI G. - Constitutions and Economic Policy. Journal of Economic Perspectives, 18: 1 (2004) 75-98. PISANI-FERRY, J.; SAPIR, A.; WOLFF, G. - An evaluation of IMF surveillance of the Euro Area, Blueprint 14, Brussels: Bruegel (2011). http://bruegel.org/wp-content/uploads/imported/publications/BP_14_IMF_website.pdf ROSE, R.; NEWTON, K., MARIEN, S.; BOLLOW, U.; BOVENS, M.; DEKKER, P.; van der MEER, T. - Political trust: Why context matters. ECPR Press (2013). TAVARES, J. - Institutions and economic growth in Portugal: a quantitative exploration. Portuguese Economic Journal, 3: 1 (2004), 49-79. 84 HERANÇA CULTURAL EUROPEIA. O PASSADO E O FUTURO DA EUROPA Isabel Baltazar A Europa deve conceber uma alma. A Europa tem de voltar a ser um Guia para a Humanidade. A Europa não é contra ninguém. A Europa Unida é um símbolo da solidariedade universal do futuro. Antes da Europa se tornar numa aliança militar ou numa unidade económica, terá de ser uma unidade cultural no mais pleno sentido da palavra. A unidade da Europa não se fará, nem unicamente nem principalmente, através de instituições europeias; a sua criação seguirá a evolução dos espíritos. (Robert Schuman, Pour l’ Europe) Resumo: O caminho para o futuro da União Europeia é regressar às suas origens. A crise actual que vivemos é uma crise económica, mas, sobretudo, uma crise de valores europeus. Dar uma “Alma à Europa” passa por reencontrar o Espírito Europeu que permaneceu ao longo da sua velha história. Este espírito europeu não pode fugir das raízes greco-romanas e cristãs da Europa que são a herança e futuro da Europa. Num momento complexo e labiríntico da construção europeia, é urgente reflectir sobre os fundamentos da Europa, os valores que estiveram na sua génese, e sobre o património e culturas comuns que unem a Europa, e nos unem enquanto europeus. Será este o caminho para os Estados Unidos da Europa? Palavras-chave: Europa; Cultura; Património; Ideia de Europa; Construção Europeia Summary: The path to the future of the European Union is returning to its origins. The current crisis we live is an economic crisis, but, above all, a 85 crisis of European values. Give a “Soul to Europe" is founding the European spirit that remained throughout its’ old story. This European spirit cannot escape the Greco-Roman and Christian roots of Europe which are the heritage and the future of Europe. In a complex and tortuous time of European construction, there is an urgent need to reflect on the foundations of Europe, the values that were in its’ origins and about the common heritage and cultures that unite Europe, and unite us as Europeans. Is this the way to the United States of Europe? Keywords: Europe – Culture – Heritage - idea of Europe - European integration 86 Palavras Prévias Este tema é de uma actualidade e pertinência para todos os tempos: pretende mostrar que o futuro da actual União Europeia só pode ser edificado a partir dos fundamentos que estiveram na sua origem, ou seja, dos 28 séculos de Europa que fizeram a sua história. É a partir destes fundamentos para uma Europa Unida que se podem arquitectar os Projectos para o século XXI. A crise actual que vivemos, uma crise económica, mas, sobretudo, uma crise de valores, levou a Europa a chegar a um abismo, a estar “ferida” de morte e a não encontrar um sentido para reescrever a sua história e um projecto com futuro. Ficamos a interrogar-nos porque se terá perdido esta harmonia e as razões profundas deste desconcerto europeu? Porque se desmoronou este edifício com alicerces e fomos parar a uma terra de ninguém, a uma Torre de Babel? A História mostra este processo de desagregação, apesar das constantes tentativas para reerguer a unidade europeia, expressas politicamente pelos sucessivos projectos de federação europeia de Dante a Kant, de Renan a Proudhon, entre outros. E este projecto político continua a ser uma realidade na actualidade, numa Europa que continua a ser, na expressão de Jacques Delors, um objecto político não identificado (OPNI). É preciso ir às raízes deste problema para constatar que não é possível uma unidade política, se antes não existir uma unidade cultural. A unidade europeia não se fará através de instituições ou de políticas comunitárias, se este corpo não se alimentar de uma alma que lhe garante a vida. Dar uma “Alma à Europa” passa por reencontrar o Espírito Europeu que permaneceu ao longo da sua velha história. E este espírito europeu não pode fugir das raízes greco-romanas e cristãs da Europa que são a herança e futuro da Europa. Num momento complexo e labiríntico da construção europeia, é urgente reflectir sobre os fundamentos da Europa, os valores que estiveram na sua génese e sobre o património e culturas comuns que unem a Europa e nos unem enquanto europeus. Será este o caminho para os Estados Unidos da Europa? 87 Pensar a Europa Estamos no tempo certo para pensar a Europa. Muito se tem discutido sobre o seu futuro, um futuro mais ou menos (in) certo, mas cujos sessenta anos de vida, são a prova do seu sucesso, cujo objectivo primordial foi o de salvaguardar a paz. O seu percurso não tem sido linear, com avanços e recuos, mas é uma história de maturidade. Esta maturidade permite compreender que há necessidade de preservar uma consciência europeia, muito anterior à construção europeia propriamente dita. É nesta consciência de um tempo histórico que se encontra a chave para antever um futuro para a Europa. Esta consciência perpassa toda a história da Europa, desde os seus fundamentos greco-romanos comuns até à experiência vivida de duas guerras mundiais. Sobrevivente de guerras, a Europa soube aprender as lições da História e preservar uma unidade para além da diversidade. É sobre essa unidade ontológica europeia que faz sentido continuar a reflectir sobre o projecto europeu e as perspectivas do seu futuro. O presente europeu mostra uma certa aproximação a uma Europa construída pela Cultura. A Europa como uma grande zona económica, um mercado único, dá sinais de crise, bem como a Europa social que também mostra o distanciamento dos Europeus em relação ao projecto europeu, e, em casos paradigmáticos como o Brexit, a leitura dos resultados do referendo, para além do não, evidencia uma forte abstenção e falta de um envolvimento dos Europeus na União Europeia. Por isso, ficou provado que esta Europa não aproxima muitos europeus e que é necessário combater o eurocepticismo com outras razões para acreditarem. É necessário dar voz aos intelectuais, historiadores e filósofos, como refere o texto “Uma Nova Narrativa para a Europa”1, iniciativa lançada pelo Presidente da Comissão Europeia em 2013, em resposta ao apelo do Parlamento Europeu e do Conselho. Diz Durão Barroso: «Porquê Uma Nova Narrativa para a Europa? “Não porque tenhamos deixado de ser fiéis àquilo que constitui a razão de ser da Comunidade Europeia e da União Europeia (...) mas porque penso que necessitamos, no início do século XXI, de continuar a contar a história da Europa, sobretudo às novas gerações, que já não se identificam muito com a actual 1 http://ec.europa.eu/debate-future-europe/new-narrative/, acedido a 21 de julho de 2014. 88 narrativa”2. O grande objectivo desta narrativa era a divulgação da história e da cultura europeia como grande impulsionadora para difundir os valores europeus e gerar a participação dos cidadãos no projecto europeu. É de referir que muito antes, Jacques Le Goff, tinha defendido esta Europa Cultural como o caminho a seguir, fundamentada na sua história comum. Diz o historiador: “Predomina a ideia de fazer da Europa, como quer a maioria dos ingleses, uma grande zona económica, quando a Europa unida deve ser acima de tudo cultural. A História mostra-nos que, em toda a Europa, da Escandinávia à Grécia e a Portugal, existem elementos fundamentais de uma mesma cultura e, também, de uma Europa política”3. Outros, como Edgar Morin, pensam a Europa, conscientes da dificuldade da sua essência: “Na origem da Europa não há um princípio fundador original. O princípio grego e o princípio latino vêm da sua periferia e são-lhe anteriores; o princípio cristão vem da Ásia e só desabrochará na Europa nos fins do seu primeiro milenário. Todos estes princípios terão de ser agitados, sacudidos, misturados, na barafunda dos povos invadidos, invasores, latinizados, germanizados,eslavizados, antes mesmo de se associarem e se oporem. Se procurarmos a essência da Europa, mais não encontraremos do que um espírito europeu evanescente e asseptizado. Acreditar desvendar o seu autêntico atributo é ocultar um atributo contrário, não menos europeu. Deste modo, se a Europa é o direito é também a força; se é a democracia, é também a opressão; se é a espiritualidade, é também a materialidade; se é a moderação, é também a ubris, a desmesura; se é a razão é também o mito, incluído no seio da ideia de razão. A Europa é uma noção incerta, nascida da barafunda, com fronteiras indefinidas, de geometria variável, sofrendo deslizes, rupturas, metamorfoses. 2 President BARROSO. Launch of New Narrative for Europe. Bozar - Brussels, 23 April 2013. 3, Jacques le Goff, “Por uma Europa Cultural”, in Jornal de Letras, 25 de Abril de 2007, p.9. 89 Trata-se, por conseguinte, de interrogar a ideia de Europa justamente naquilo que ela tem de incerto, de turvo, de contraditório, para tentar extrair daí a identidade complexa”4. Todos reconhecem a dificuldade de definir a Europa, de reconhecer a sua verdadeira identidade. O próprio conceito de Europa tem conhecido inúmeras definições, e tantas outras explicações, desde a sua origem mitológica à sua indefinição geográfica. Apesar das dificuldades, Lucien Febvre definiu-a como um “estado de sonho”: “Não chamo Europa a uma formação política definida, reconhecida, organizada, dotada de instituições fixas e permanentes, que assume, se se quiser, a forma de Estado ou de super-Estado, formação com que os Europeus, ou pelo menos certos europeus, podem muito bem ter sonhado por vezes, mas que nunca passou de um Estado de sonho, a qual, por conseguinte, devemos perguntar se está votada a tornar-se realidade ou condenada a permanecer como sonho;”5 Para este historiador, a Europa é uma unidade histórica, uma “incontestável inegável unidade histórica”6, construída em data fixa, precisamente na Idade Média. Esta unidade, “como todas as outras unidades históricas, se faz de diversidades, de pedaços, de restos arrancados a unidades históricas anteriores”7. Esta Europa, sede do mundo europeu, forma um corpo organizado, composto por um conjunto de países, de sociedades, de civilizações, não se definindo por limites geográficos rígidos. Os seus limites vêm de dentro “ define-se de dentro pelas suas próprias manifestações, pelas grandes correntes que não cessam de a atravessar e desde há muito tempo – correntes políticas, correntes económicas, correntes intelectuais, científicas, artísticas, correntes espirituais e religiosas”8. Outros pensadores, 4 Edgar Morin, Pensar a Europa, Lisboa, Publicações Europa-América, 1988, p.33. 5 Lucien Febre, A Europa. Génese de uma Civilização, Lisboa, Editorial Teorema, 1999, p.25-26. 6 Idem, ibidem. 7 Idem, Ibidem. 8 Idem Ibidem. 90 como Eduardo Lourenço, atrevem-se a duvidar da existência da Europa. À pergunta – “O que é a Europa?” –, o ensaísta responde – “Nada”9. No entanto, o próprio se confessa como europeu: “Eu sou muito europeu, como todos nós. Todos o somos, mais do que sabemos, mas só quando nos encontramos diante, ou no meio, de uma cultura que não seja europeia. Essa não-identidade, essa identidade virtual, feita apenas de negações, é um privilégio extraordinário, uma promessa de futuro. Significa que outros povos poderão partilhar a nossa não-identidade: todos aqueles que não acreditam na afirmação egoísta de si próprios, que é o vírus da História”10. A virtude da própria Europa é a sua não-identidade; ser um lugar de abertura. É esse modo singular de ser que lhe permite ser nada e ser tudo, como lembrava também em português, Fernando Pessoa, sendo a partir de Portugal que a Europa olhava o seu futuro11. O que é a Europa? Voltando a Eduardo Lourenço, a Europa é uma “utopia interessante”12 e, ao mesmo tempo, uma “casa da impotência”13. No entanto, “a Europa nunca foi mais Europa do que hoje”14. Falta-lhe ultrapassar uma “bem-sucedida colecção de egoísmos nacionais”15, conservando a sua utopia, a paixão e o mito: “uma utopia europeia assumida só é digna de ser vivida como vitória da Europa sobre a Europa, da ficção de si mesma que, consciente e inconscientemente, tem condicionado o seu destino contra a sua realidade”16.Afinal, a grandeza da Europa é a sua nãoidentidade. Resta-lhe o “triunfo da suasublime não-identidade sobre os fantasmas da sua alucinada identidade”17. Eduardo Lourenço, “O que é a Europa? Nada”, in Courrier Internacional, nº75, p.14. 10 Idem Ibidem. 11 Fernando Pessoa, “O dos Castelos”, Mensagem, Lisboa, Edições Ática, 1986, p.21. 12 Eduardo Lourenço, A Europa Desencantada, Lisboa, Gradiva, 2001, p.239. 13 Idem, Ibidem. 14 Idem, Ibidem. 15 Idem, Ibidem, p.240. 16 Idem, Ibidem. 17 Idem, Ibidem. 9 91 Uma Europa da Cultura Os Encontros Internacionais de Genebra merecem ser (re) lembrados. Pela sua referência histórica, por constituírem o primeiro momento de verdadeira reflexão sobre a unidade europeia pós-guerra, e pelo conjunto de figuras proeminentes que conseguiram aglutinar. São raros os momentos em que o futuro da história passa, também, pela voz dos intelectuais. Estes costumam antecipar o que, mais tarde, se torna, inevitavelmente, o caminho a seguir pelos políticos. A sua profunda reflexão permite-lhes discernir sobre a melhor solução para o seu tempo e, sobretudo, para os tempos futuros. Em Genebra, em 1946, como em Paris, nos Encontros para a Europa da Cultura, em 2005. Estes últimos reuniram em Paris, 800 artistas e intelectuais dos 25 países da União Europeia, para “afirmar a dimensão cultural da Europa”16. Todos reflectiram sobre a essencialidade da Europa, de- batendo temas como: “Em que se funda o espírito europeu? Que papel teve a cultura na formação de uma identidade europeia? A cultura não se herda, conquista-se”18. Sob o lema “Unidos na diversidade”, destes encontros sairia uma “Declaração a favor de uma Carta de Intenções para a Europa e a Cultura”18. Este texto expressa a ideia de que “a cultura está na origem da Europa onde vivemos”, e que, por isso mesmo, a cultura deve ser uma das prioridades da construção europeia. Estes Encontros para a Cultura na Europa vêm na sequência da Conferência de Berlim, realizada em novembro de 2004, intitulada “Dar uma alma à Europa”. Esta conferência, propunha mesmo a inclusão de uma Carta da Cultura à Constituição Europeia, então em debate. Essa carta deveria conter “elementos que fomentem a unidade para além da diversidade cultural”19, na sequência do preâmbulo da referida constituição que se referia expressamente à herança espiritual e aos valores comuns da Europa. Mais recentemente, a propósito dos 50 Anos da União Europeia, de novo, são afirmados os valores comuns europeus, na Declaração de Berlim: “A Cultura Europeia encontra-se em Paris”, in Jornal Público, 2 de Maio de 2005, p.32. 19 Idem, ibidem. 18 92 “A Europa foi durante séculos uma ideia, uma esperança de paz e de entendimento. A esperança tornou-se realidade. A unificação europeia trouxe-nos paz e bem-estar. Criou um sentiment de comunhão e venceu divergências. Foi com o contributo de cada um dos seus membros que a Europa se unificou e que a democracia e o Estado de direito foram reforçados. Se a divisão contra naturum da Europa está hoje definitivamente superada, é graças ao amor que os povos da Europa Central e Oriental nutrem pela Liberdade. A integração europeia é prova de que tirámos ensinamentos de um passado de conflitos sangrentos de uma História marcada pelo sofrimento. Vivemos hoje numa comunhão que antes se havia revelado impossível”20. A União Europeia tornou realidade os ideais europeus comuns. São os fundamentos históricos da Europa que tornam possíveis estes ideais, muitos já tornados realidade. A dimensão espiritual da Europa é a pedra lapidar para a construção europeia. Por isso, desde Genebra a Berlim, o percurso europeu tem como fio condutor o seu próprio espírito. Em Genebra, procurou discutir-se o “Espírito Europeu”, em Berlim, sob o lema “Dar uma Alma à Europa”, o fim é o mesmo, concretizado mais tarde nos Encontros de Paris, numa “Europa da Cultura”, e, finalmente, na assinatura, 50 anos depois dos Tratados de Roma, de uma Declaração que consigna os valores comuns europeus. É a consciência do caminho a percorrer. A Europa só pode ser unida a partir dos fundamentos históricos comuns, alicerces da construção europeia. Como lembra Eduardo Lourenço, é a própria Europa que desconfia de si própria, que é o seu próprio “cavalo de Tróia”21. Diz o autor: “A Europa, em termos culturais e literários, foi sempre uma colecção de pontos de vista sobre si mesma. Sobretudo, desde o momento em que a sua virtual unidade crista, onde a herança Greco-latina se declara de maneira original se fragmentou e as 20 Preâmbulo à Declaração por ocasião do 50º aniversário da assinatura dos Tratados de Roma, 25 de Março de 2007, p.1 21 Eduardo Lourenço, “Da Europa como cavalo de Tróia de si mesma”, in Cartas da Europa. O que é Europeu na literatura europeia?”, Lisboa, Fim de Século, 2005, pp.11-18. 93 nações, em sentido modern, assumiram, cada uma por conta das respectivas línguas, a antiga vocação unitária da Cristandade. Esta leitura perspectivista da Europa cultural e literária, de recorte orteguiano, parece mais adequada àquilo em que ela se tornou do que uma outra, esta de saber leibniziano que, mais optimista, a imagina como um só corpo em que cada uma das suas nações seria como uma mónada misteriosamente fechada sobre si mesma e não menos misteriosamente, cantando, por assim dizer, a uma só voz e em uníssono”22. Todo o destino europeu tem sido marcado por esta instabilidade essencial. Durante toda a sinfonia europeia, muitas vozes dissonantes têm desafinado aquela aparente unidade. Toda a História da Europa é caracterizada por momentos destes, evidenciados no século XIX pela agudização dos nacionalismos, atingindo o seu auge no século XX, em que os momentos de Guerra fazem despontar, também, “a cena cultural europeia numa sinfonia voluntariamente desconcertante”23. Este “desconcerto europeu é bem descrito pela literature, um barómetro por excelência para sentir o pulsar europeu. Muitas vezes, o pulso quase não se sente, à custa de tantos conflitos politicos evidentes e de um latent divórcio entre os povos europeus. É necessário escutar os poetas e os escritoreseuropeus, para perceber as causas desta tão grande desunião. Paradoxalmente, é o auge da desunião que provoca, também, o desejo de união entre os seus povos. São novamente os poetas e os escritores que melhor compreendem a realidade. São os politicos que procuram agir sobre essa realidade, muitas vezes, à margem dela. Daí o fracasso de muitas políticas e o recuo perante a realidade europeia enigmática. O motor europeu parece ser o seu próprio abismo. Só “in extremis” a Europa encontra um future para si própria e se descobre como “casa comum”: “Há século e meio que vivemos da meditação ou da invenção de saídas oníricas, como são todas as da literatura, de um passado vivido não só como suicídio da mais rica e brilhante sociedade que 22 23 Idem, Ibidem, p.11. Idem, Ibidem. 94 o mundo conheceu, como do apocalipse planetário que parecia antecipar. Como os hebreus à saída do Egipto voltámo-nos para a velha Europa – há apenas meio século em ruínas – como para uma nova terra de promissão. Descobrimo-la como casa comum e voltámos a encontrar-nos nela, de Lisboa a Moscovo, com a naturalidade com que o fazíamos antes da I Guerra Mundial. Tornarmonos europeus, como se nunca o tivéssemos sido, tornou-se, não só na ordem política ou turística, uma proeza de que nem sequer nos admiramos. Deixámos de nos discutir como europeus, pacíficos e pacificados à força pelos nossos desastres, e decidimos, de olhos abertos, construir uma Europa que, em muitos sentidos, bem o precisava para não desaparecer, se não do mapa, de uma memória digna de registo. Mas quando acordámos para esta decisão, já éramos outros. O mundo tinha vindo ter connosco”24. Uma Europa que se reconhece a partir de fora de si mesma. Uma Europa “ferida de morte” que se levanta a partir dos outros, os que de fora, acreditam na sua vitalidade. Uma vitalidade própria de antigos colonizadores, uma imagem passada que permanece sua. Uma Europa presente, a caminho da sua própria autodestruição, que continua a ser para o mundo uma imagem de construção. Uma Europa que vive de imagens perante uma realidade desgastada pelos tempos, pela sua própria história. Essa imagem que o mundo tem da Europa torna-se, afinal, o seu próprio orgão vital. Uma Europa, quase, virtual, para a própria Europa que não sabe bem definir-se. Uma Europa-realidade para o mundo e objecto não identificado para si própria. Uma Europa que vive da utopia? Os Encontros Internacionais de Genebra (1946) Os Encontros Internacionais de Genebra tiveram o seu início em setembro de 1946, e continuariam nos anos seguintes, reunindo alguns dos maiores expoentes do pensamento mundial, numa série de realizações culturais sobre temas da actualidade. Estas realizações culturais compreen- 24 Idem, Ibidem, p.12. 95 dem conferências e debates, mas, também, concertos e representações teatrais que, pela sua importância, teriam um grande impacto em todo o mundo. O primeiro destes encontros foi precisamente sobre “O Espírito Europeu”, num tempo imediatamente após-guerra, em que a Europa estava sob ruínas materiais e animicamente dilacerada. Que Espírito Europeu teria sobrevivido da guerra? Uma questão fundamental era pensada pelos mais representativos intelectuais da época, reunidos na cidade suíça com o propósito de pensar a Europa. Este encontro constitui uma tentativa pioneira de reflexão conjunta sobre a unidade europeia a seguir à segunda guerra, sendo, por isso, indispensável ser recordado. A par dos discursos políticos da época sobre a necessidade de reconstruir a Europa, como o famoso discurso de Churchill, estes encontros sobre “O Espírito Europeu” representam a voz dos melhores representantes do pensamento contemporâneo. Assim, conviveram personalidades tão eminentes como um Julien Benda, Georges Bernamos, Karl Jaspers, Spender, Guéhenno, Flora, Rougemont, Salis e Lukács que, para além de apresentarem conferências sobre o tema, debateram proficuamente os seus pontos de vista sobre o espírito europeu. a) A Europa nunca existiu Julien Bendaesforçar-se-iapormostrarquea Europaenquantoumtodonunca existiu. Não é possível encontrar uma consciência europeia que se sobreponha à diversidade das várias parcelas da Europa, à maneira de uns Estados Unidos da América. Por isso, Benda opõe-se ao manifesto da organização que diz: “Não é verdade que a Europa deva ser, na sua totalidade, considerada responsável pela catástrofe. Se os Europeus deram o exemplo de não poucas loucuras, não é menos certo que a Europa foi também, sem interrupção, durante séculos, a parte preciosa do universo, o 96 cérebro de um vasto corpo”25. Ao contrário de Paul Valéry, autor da expressão “a Europa foi o cérebro de um vasto corpo”, para Julien Benda a Europa nunca foi o cérebro de um corpo pela simples razão de que esse corpo não existe. Não existe nenhum corpo coeso e uno; existem uma diversidade de partes nessa Europa que nunca se entendeu, como mostra a sua história, e bem demonstrado pelo fracasso da Sociedade das Nações. A Europa é responsável pela catástrofe da guerra e nunca existiu uma unidade europeia enquanto tal, como pretende demonstrar o autor: “Mostrar-vos-ei que a Europa ignora a consciência da unidade em dois planos:1.º) no plano político, 2.º) no plano espiritual. E vou insistir nesta ausência de unidade europeia no passado porque é dela que vão emergir as dificuldades que iremos encontrar para construirmos, hoje em dia, essa unidade”26. Apesar de acreditar na formação da Europa no século XX, esta Europa é “filha da ira” que se opõe a qualquer unidade, como mostra o triunfo da Antieuropa que abre esse século. É artificial querer encontrar uma unidade política europeia, como artificial ou inexistente é uma História da Europa. AEuropa é um organismo heterogéneo e os europeus não desejam a homogeneidade. A única história possível seria: “História dos Europeus no seu desejo de não criarem uma Europa Una”27. Para Julien Benda, a Europa também não tem uma unidade espiritual, nunca existiu uma Ideia de Europa. Toda a História da Europa é uma história de desunião, de divisão em nações. Por isso, o passado europeu não aponta para qualquer ideia de Europa: “Os obstáculos que a ideia de Europa vai encontrar vêm justamente desse passado europeu compartimentado, cuja imagem acabo de vos recordar, e da marca profunda que ele deixa na alma dos povos do continente...Porque é que a Europa não havia, como a América, de ter também os seus Estados Unidos? Eis aqui uma assimilação muito superficial. A criação de uma unidade europeia vai conhecer dificuldades 25 Conferência de 2 de Setembro de 1946 pronunciada por Julien Benda, O Espírito Europeu. Encontros Internacionais de Genebra, Lisboa, Publicações EuropaAmérica, 1962. 26 Idem, Ibidem, p.13. 27 Idem, Ibidem, p.17. 97 que o grande continente de além-Atlântico ignorou. Vai conhecê-las do ponto de vista político e do ponto de vista espiritual”28. Como resolver o problema da unificação espiritual da Europa? Para Julien Benda existem três meios: uma reforma profunda no ensino da história, que compreenda uma inversão dos valores; uma campanha a favor de uma língua europeia que se sobreponha às línguas nacionais; uma prioridade dada à ciência, que é universal, sobre a literatura, que é local, à razão sobre o sentimento. Tais são os meios para criar um espírito europeu. b) O espírito europeu na história Francesco Flora acredita na existência de um espírito europeu. Ao contrário de Julien Benda, para o qual esse espírito é uma criação artificial, para Flora toda a história mostra esse espírito. Diz ele: “Não fomos buscar a imagem do espírito europeu que tencionamos propor-vos a uma qualquer geografia, mais ou menos histórica, nem mesmo uma geografia que ultrapasse as fronteiras que nos habituámos a considerar para a Europa”29. O espírito europeu encontra-se na própria história, ultrapassando a própria geografia: “O espírito europeu vive, pois, numa tradição que se desenvolveu naquelas paragens onde, num momento vital da história, se formou e se expandiu a civilização da Hélade e de Roma, que já, por sua vez, eram o resultado de precedentes sínteses”30. No entanto, não basta uma origem e um passado histórico europeu para reconhecer a presença do espírito europeu. Não poderemos chamar “europeia” à civilização americana que nasceu da Europa. Então, o que é o espírito europeu? O próprio historiador responde: “É o espírito órfico, o espírito da classicidade, nas palavras e nos costumes, o espírito do verdadeiro humanismo, que mais não significa que a própria liberdade humana, em que a absoluta sinceri- 28 Idem, Ibidem, p. 22. Conferência de 3 de Setembro de 1946 pronunciada por Francesco Flora, op. cit., p.39. 30 Idem, Ibidem, pp.41-42. 29 98 dade do homem e o carácter positivo da história universal se verificam”31. E mais adiante acrescentaria: “Espírito europeu significa, pois, o sentido trágico da história e da sua responsabilidade”32. É preciso discernir e encontrar na civilização europeia os traços europeus e os anti-europeus. É necessário encontrar o classicismo e o humanismo na civilização europeia. Aí está o espírito europeu. c) Os valores europeus Jean-R. De Salis tem como objectivo analisar a realidade europeia no quadro da geografia, da história e da economia. A Europa, esse “pequeno cabo do continente asiático”, na expressão de Paul Valéry, ficou marcada pelo seu passado greco-romano e cristão. Toda a Europa está impregnada de cristianismo que determinou o seu espírito, os seus valores humanistas: “Não se sabe o que é mais característico no espírito europeu: se a necessidade, constantemente renovada, de eximir o indivíduo e de fixá-lo e proteger os seus direitos fundamentais proclamados pelo direito natural, se essa outra necessidade de limitar, em nome da ordem social, os direitos do indivíduo”33. Este respeito pelos direitos do homem, este humanismo, ficou determinado pelo cristianismo. A Europa tem uma natureza espiritual: “Nunca esqueçamos que a Europa foi um farol de espiritualidade que fez dela o centro da humanidade pensante e actuante. Pertence às gerações futuras a tarefa e a honra de voltar a iluminar este farol”34. Jean Guéhenno considera que existe um espírito europeu, para além da vontade dos políticos, um espírito sentido pelos povos da Europa: “Espírito europeu? Sim existiu, existe. Esteve prestes a dar origem a uma nova pátria nos anos compreendidos entre 1910 e 1930. Depois de ter sido uma coisa de livros, uma abstracção de escritores, 31 Idem, Ibidem, p.47. Idem, Ibidem, p.49. 33 Conferência de 5 de Setembro de 1946 pronunciada por Jean-R. De Salis, op. cit., p.100. 34 Idem, Ibidem, p.108. 32 99 uma indução de historiadores, esteve quase a tornar-se uma realidade. Quase criou a Europa. Foi uma necessidade das massas, foi uma necessidade das nações europeias, dos povos europeus, tanto dos Alemães como dos Franceses, como dos Italianos. Nos anos de 1910 a 1914 quem não sentia, pois, que a Europa era, apesar de tudo, o seu destino? Esse destino era, sem dúvida, a França para um francês, a Alemanha para um alemão, a Itália para um italiano, mas era ao mesmo tempo a Europa, para os Italianos, para os Alemães, para os Franceses e para todos os outros. Mas aconteceu que os governos, as diplomacias, que estão sempre em atraso em relação às necessidades dos povos, foram, no entanto, os mais fortes. O passado foi o mais forte. Aos governos falta sempre presença de espírito”35. O espírito europeu sempre existiu e os povos europeus sempre sentiram esta unidade espiritual. Este sentimento não foi acompanhado pela vontade dos políticos. Só após a primeira guerra, tentaram construir a Europa mas, também, o mundo, através de uma Sociedade de Nações. Os políticos falharam, e, mais uma vez, foram os intelectuais a lembrarem a necessidade de criar uma Europa unida. Recordemos os discursos, em 1919, de Paul Valéry, a declaração de Romain Rolland pela independência do espírito ou a revista Europe, dirigida por Jean Guéhenno. A Europa era uma necessidade. Todas as grandes oportunidades de construir a Europa foram desperdiçadas, mas, o espírito europeu sobreviveu a todos os fracassos políticos. No entanto, também se encontra em crise, como o próprio humanismo que é a sua expressão: “Quero referirme à perda do espírito de verdade. É disso talvez que, moralmente, a Europa, o espírito europeu, pode morrer”36. A Europa parece ter renunciado à verdade, a essência do espírito europeu: “Posto isto, é bem evidente que, se quisermos restituir ao espírito europeu o seu génio e a sua força, teremos de sair de certas contradições. Creio que é necessário voltar ao espírito de verdade”37. O homem europeu, como bem definiu Descartes, é um 35 Conferência de 6 de Setembro de 1946 pronunciada por Jean Guéhenno, op. cit., pp.110-111. 36 Idem, Ibidem, p.115. 37 Idem, Ibidem, p.118. 100 juiz e recriador do mundo, um construtor da verdade. A salvação da Europa é aproveitar o contributo do pensamento europeu e conciliá--lo com a política da Europa. A Europa tem necessidade de conciliar a sua política com as ideias. É a vez de dar a voz aos intelectuais: “A quem cumpre restituir, efectivamente, ao espírito europeu o seu movimento, a sua força, etc.? Pois bem, minhas Senhoras e meus Senhores, apenas a nós próprios. E se este espírito morre, seremos pessoalmente responsáveis. A salvação da Europa? A salvação do espírito europeu? Apenas num humanismo militante”38. d) O problema da Europa Denis de Rougemont olha para a Europa após segunda guerra procurando a sua fisionomia original, apagada pelo tempo e pela guerra. Os antigos fundamentos europeus – judeu-cristianismo, herança grega e direito romano – foram substituídos por Hitler pela sua negação. A Europa transformou-se numa Anti-Europa constituída a partir do furor anti-cristão e anti-semita, pela negação dos direitos da pessoa, por um nacionalismo levado ás últimas consequências, por um fanatismo político muito mais perigoso do que o religioso. Mesmo a admirável resistência europeia entrou em decadência. Diz Rougemont: “Parece que a ideia de decadência,acarinhada antes da guerra por pensadores tão diversos, quais Spengler, Valéry e Huizinga, tem vindo gradualmente a substituir nos nossos espíritos a de progresso automático. Oriunda de análises e pressentimentos das nossas fraquezas internas, vê-se confirmada e como que objectivada pela rápida ascensão de dois impérios extra-europeus. Foram eles, e não nós, quem ganhou a guerra. Foram eles que retomaram consigo a fé no progresso. Nós ficámos com a herança de uma derrota, com a nossa inquieta e fatigada consciência, com o nosso lúcido cepticismo...”39 38 Idem, Ibidem, p.121. Conferência de 8 de Setembro de 1946 por Denis de Rougemont, op. cit., p.156. 39 101 Eis o retrato da Europa: uma Europa em ruínas, transformada num museu, uma Europa americanizada, por gosto, sovietizada, pela força, enfim, colonizada. Uma Europa ausente. Sobre esta realidade comenta Rougemont: “Imaginemos o mundo feliz, próspero, e poderosamente organizado à volta desta ausência que, para a maioria, seria insensível. Que perdia o mundo? Que perdiam os nossos filhos? É então que nos surge, como que desnudada por estas perguntas, uma resposta evidente e simples. Cabe numa pequenina palavra, vaga e pungente: a palavra alma. A Europa ausente, demissionária, colonizada, é um certo sentido da vida, uma certa consciência do humano, sim, é a alma de uma civilização que se perdia, e se perdia não somente para nós, mas para todos”40. O espírito europeu existe e tanto mais se define quando se defronta com dois novos impérios – o americano e o soviético. Perante esta realidade, a Europa tem valores específicos que precisam de ser salvaguardados para toda a humanidade. É preciso salvar a Europa evitando a guerra. Só com o federalismo isso é possível, já que o nacionalismo esmaga as diversidades enquanto o federalismo pretende unir e não unificar. O mundo precisa da Europa porque a Europa é a sua memória, “A Europa é a pátria da memória41“. Que fazer? Diz Rougemont: “O que temos de pedir e obter todos é que as nações europeias se abram primeiro umas às outras, suprimam em todos os planos fronteiras e vistos, renunciem ao dogma criminoso da soberania absoluta, assim criando uma atitude nova, uma confiança – que, simultaneamente, abra a Europa ao mundo”42. Esta federação europeia será o princípio de uma federação mundial. Outros conferencistas, como Georg Lukács , Stephen Spender ou Georges Bernanos, chamariam a atenção para a crise europeia e para a necessidade de um futuro espiritual da Europa. Karl Jaspers diz-nos que é preciso procurar a Europa. À pergunta – O Que é a Europa? - Responde: 40 Idem, Ibidem, p.160. Idem, Ibidem, p.169. 42 Idem, Ibidem, p.170. 41 102 “A Europa é a Bíblia e a Antiguidade. A Europa é Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, é Fídias, é Platão e Aristóteles e Plotino, é Virgílio e Horácio, é Dante e Shakespeare, é Goethe, Cervantes, Racine e Molière, é Leonardo, Rafael, Miguel Ângelo, Rembrandt, Velásquez, é Bach, Mozart, Beethoven, é St.º Agostinho, St.º Anselmo, S. Tomás, Nicolau de Cusa, Espinosa, Pascal, Rousseau, Kant, Hegel, é Cícero, Erasmo, Voltaire. A Europa está nas suas catedrais, seus palácios e suas rínas, é Jerusalém, Atenas, Roma, Paris, Oxford, Genebra, Weimar. A Europa é a democracia de Atenas, da Roma republicana, dos Suiços e dos Holandeses, dos Anglo-Saxões. Nunca acabaríamos se quiséssemos enumerar tudo o que é grato ao nosso coração, uma inesgotável riqueza de espírito, de moralidade, de fé”43. Em suma, a Europa é a sua cultura e o seu espírito, a Europa é a liberdade, a história e a ciência, a Europa é humanismo. Será isto um sonho? Voltamos a Karl Jaspers para dizer: “Se é um sonho, ouso responder que é talvez um daqueles sonhos que, em todos os tempos, fizeram nascer os valores humanos e pelos quais vale a pena viver”44. Seremos, então, “europeus se verdadeiramente nos tornarmos homens”45. A Europa chegou ao fim de um caminho, sem saída. A sua recuperação passa por voltar a olhar para os seus fundamentos históricos, o seu rejuvenescimento passa por voltar-se para os seus antigos valores, por recuperar a sua unidade espiritual, por encontrar, de novo, o seu espírito. Uma Europa à procura de si mesma, parece ter (re)encontrado na cultura europeia a sua verdadeira unidade. Até a própria Constituição Europeia, apesar da sua fragilidade, se deu conta dessa evidência. Uma unidade essencial representada na realidade por uma diversidade, que não desvirtua mas, antes, enriquece a União Europeia. É preciso não perder de vista que, para além de realidades distintas que lhe dão forma e colorido 43 Conferência de 13 de Setembro de 1946, pronunciada por Karl Jaspers, op. cit., p.304. 44 Idem, Ibidem, p.329. 45 Idem, Ibidem, p.330. 103 multicolor, a Europa precisa desesperadamente de reencontrar o seu próprio espírito. Esse espírito europeu não condiciona as várias realidades europeias. Esse espírito fundamenta e garante a unidade, não a unicidade. É, aliás, pela riqueza do seu espírito que a Europa aparece sob formas tão distintas de ser. É esse espírito europeu que fundamenta uma cultura europeia, apesar de todas as culturas que a integram. É esse espírito europeu que fundamenta e sustenta todas as identidades europeias permitindo, em última instância, identificar uma identidade europeia comum. Em todos os momentos de perturbação, foi o espírito europeu que garantiu à Europa erguer-se. Muito particularmente no século XX, após os grandes conflitos mundiais. Após a primeira grande guerra, com o despontar de todos os nacionalismos, a consciência da crise europeia foi profundamente sentida, não apenas como uma crise material mas, também, como uma “crise de l’esprit”, diagnosticada brilhantemente por Paul Valéry. Esta crise do espírito europeu só podia ser resolvida pela recuperação dos fundamentos comuns dessa consciência europeia. Afinal, todos tinham, agora, consciência da sua mortalidade. Como lembrava este pensador “Nous autres, civilisations, nous savons maintenant que nous sommes mortelles”46. Da mesma forma, seria pela tragédia que a Europa se lembraria, mais uma vez do seu espírito perdido. O «mal du siècle» causara profunda ruína material e um mal-estar espiritual profundo, que punha até em causa a própria Europa como um todo. Toda a conjuntura era de perturbação, de instabilidade e de precariedade. Parecia oculta qualquer identidade europeia e, ao mesmo tempo, todos a sentiam como uma necessidade vital. Era necessário recuperar o espírito europeu. Disso tinham consciência os intelectuais. Só as raízes humanistas podiam salvar a Europa das suas tragédias. Só um verdadeiro espírito europeu, visível pela cultura, podia sobreviver às feridas de morte do corpo europeu. No passado como no presente. A consciência europeia é uma consciência criadora, como mostra a sua própria literatura. É essa consciência que (so)brevive a todas as agonias da Europa. Para além de todas as crises europeias, o espírito europeu permanece. A própria Europa não o reconhece: é o enigma europeu. 46 Paul Valéry, “La crise de l’esprit”, Varieté, Paris, Folio, p.13. 104 Reflexões finais Foram os intelectuais, também portugueses, que deram alma a uma ideia que nunca mais desapareceria desde o momento da sua idealização, e que continua a ser pensada quando se discute o futuro da Europa. Estamos em crer que o futuro da Europa, tão incerto e até sombrio nos dias actuais, passa por recuperar a Ideia de Europa, presente ao longo da sua história e reservatório de inspiração para a construção europeia alcançada nos últimos cinquenta anos. Porque estará tão incerto o seu aprofundamento? Não será porque falta à Europa uma Ideia sobre si própria, e, esse vazio, torna tão estéril o seu futuro? O pessimismo europeu que se instalou na Europa só pode converter-se em optimismo, ou seja, na crença de um futuro europeu, se voltar ao passado, aos fundamentos da identidade europeia, às raízes comuns europeias, para construir a partir desses sólidos alicerces um edifício europeu mais seguro. O presente é elucidativo: uma construção europeia feita de interesses económicos e “legalizada” por tratados é artificial e, por isso mesmo, pouco sólida; um dos fundadores, Jean Monnet, viria a reconhecer isso mesmo, apesar da cautela do “método dos pequenos passos” seguido por Robert Schumann; esses passos foram dados seguindo o caminho mais seguro, a curto prazo, mas, também, com uma esperança de vida mais curta. As raízes da Europa são culturais. É a partir da cultura que será garantida a construção europeia e promissor o seu futuro. Foi essa a conclusão dos Encontros para a Cultura na Europa, em Paris (2005) , que pretenderam afirmar a dimensão cultural da Europa, na sequência da Conferência de Berlim do ano anterior, intitulada precisamente Dar uma alma à Europa. Foi o reconhecimento de que na hierarquia dos valores, a cultura está acima da economia, e, se esta é uma necessidade da vida, são os valores culturais que sustentam a verdadeira vida. Essa já tinha sido a conclusão dos subscritores do Apelo de Florença, convencidos que depois da unidade económica e monetária, tinha chegado a hora do pensamento europeu se pronunciar. Para construir uma Europa politicamente unida, antes de mais, era necessário a difusão de um forte pensamento sobre a Europa. 105 A Europa precisa de uma alma e, para alguns, de um rosto que represente a Europa e que responda a Henri Kissinger quando interpelava: “Se telefonar para a Europa, quem atende?”. Mas, também, muito curiosamente, a Europa tem duas imagens: a imagem de si própria, uma imagem de crise, talvez, de crescimento, e uma imagem que os outros têm de si própria: vista de fora, a Europa parece, quase, a Terra Prometida, ou, pelo menos, como um lugar de paz, cultura, civilização e prosperidade. Os europeus estão cansados da Europa e os não-europeus desejam a Europa e olham-na como uma longa História, de toda a humanidade, um paradigma de cultura e berço de civilização. A solução parece ser a de transferir para os europeus a imagem dos não-europeus. Criar nos europeus a consciência europeia. Dar vida à sua alma moribunda, talvez por excesso de políticas que tiraram a visibilidade à sociedade aberta que é a Europa, para George Soros, aos seus valores morais e políticos sentidos pelo resto do mundo. Menos pela Europa. É preciso recuperar a ideia de pertença à grande família europeia A Europa dos europeus não entusiasma e a Ideia de Europa mantém-se demasiado abstracta, um projecto idealista que toca os limites da utopia. Terá sido a hora dos políticos darem a voz aos intelectuais? É bom lembrar que foram os políticos que assumiram a necessidade cultural da Europa, propondo naquela Conferência de Berlim a elaboração de uma “Carta da Cultura”, em apêndice à própria constituição. Depois de Berlim, a ideia não morreu, com a assinatura de uma Declaração a Favor de uma Carta de Intenções para a Europa e a Cultura. Os seus signatários são unânimes em reconhecer que a “cultura está na origem da Europa onde vivemos”, e “comprometem-se a fazer da cultura uma prioridade da construção europeia”. Ainda que não saindo do domínio das intenções, é um bom princípio, ou, pelo menos o reconhecimento de que o processo de integração europeia, para chegar à maturidade, precisa da cultura como chave da sua identidade. Essa cultura não pode, apenas, ser herdada, precisando de ser continuada. É nela que se fundamenta o espírito europeu que não pode morrer, sob pena do fim da própria Europa. Sem as dimensões não materiais, essenciais à vida, a Europa seria um corpo morto, o continente decadente. Em suma, a alma da Europa é a sua cultura, um espírito animado por uma alma, um corpo pensante. 106 Para além de desesperadamente se procurar uma unidade na diversidade cultural europeia, tão presente em Fernando Pessoa, é o reconhecimento da cultura como elemento fundamental para definir a própria identidade europeia. Sob o lema “Unidos na Diversidade”, a Europa parece ter encontrado a âncora para a sua unidade. A expressão dessa unidade encontra-se na actual Declaração de Berlim que recorda os êxitos da UE, os seus valores e os desafios que se apresentam. Mais uma vez, a constatação de que não pode haver construção europeia sem uma Ideia de Europa. No seu preâmbulo, ficou registado o reconhecimento de que “A Europa foi durante séculos uma ideia, uma esperança de entendimento. A esperança tornou-se realidade. A unificação europeia trouxe-nos paz e bem-estar”. A história do passado foi aprendida para a união europeia futura: “A Europa é o nosso futuro comum”. A Declaração de Berlim, assinada a propósito das comemorações dos cinquenta anos de construção europeia, é um sinal do esforço apreciável dos responsáveis pela continuidade da Europa, e da sua intenção em aprofundarem a dimensão cultural da comunidade, ontem como hoje, edificada sob doze estrelas em círculo que simbolizam os princípios da unidade, solidariedade e harmonia entre os povos da Europa. É a constatação de que uma verdadeira unidade europeia tem fundamentos espirituais. A história, como lembra Jacques Le Goff, mostra que em toda a Europa, da Escandinávia à Grécia e a Portugal, existem traços fundamentais de uma mesma cultura e de uma Europa política, que os “eurocepticistas” preferem ignorar em nome de uma Europa económica. Sem dúvida de que esta economia comum europeia é importante para criar um peso comparável com os Estados Unidos e a China. No entanto, a Europa Unida não pode estar suportada sob razões tão materialistas, sob pena do resultado final ser pouco mais do que uma grande zona económica, que pode ser tão rápida a construir quanto a sua destruição. Os verdadeiros europeus olham para bem mais longe. Aliás, o lema “unida na diversidade”, não será o mesmo que Jacques Le Goff aspira quando faz a apologia de “Por uma Europa cultural”? Passaram sessenta anos após a assinatura dos Tratados de Roma, realizada a 25 de março de 1957, comemorados sob o slogan “Juntos desde 1957”, apelando à ideia de que, também juntos faremos a Europa. Um 107 bom momento para fazer o balanço do passado e para a União Europeia acreditar no futuro. O passado mostra que a História da Europa é uma História de sucesso, de paz alcançada, liberdade, democracia, unidade do continente e até prosperidade material. Mas foi um passado vivido por seis personagens, agora é necessário encontrar uma nova história. O presente tem sido de reflexão, quase uma pausa, para a Europa se (re)Pensar a si própria, motivada pelo aparente impasse da Constituição Europeia. A reflexão não deve ser estéril e, pelo menos, servir para o amadurecimento europeu, para a consciência da necessidade de uma verdadeira união/unidade europeia para juntos construirmos a Europa. Falta uma Ideia à Europa para ter confiança no seu futuro. A Ideia de Europa é feita a partir da sua cultura. Recuperada a Ideia, a Europa voltará a ter alma. Falta dar uma alma à Europa, parece ter sido, agora, descoberto e assumido pelos responsáveis pela actual construção europeia. Encontrada essa alma, o moribundo corpo europeu voltará a viver e a encontrar um futuro, um caminho com sentido para a construção europeia. A Europa precisa de uma Ideia. A ideia de “Estados Unidos da Europa” parece a única saída para o velho continente. Portugal olhou sempre com interesse para a Europa. Mesmo sem estar na Europa. No século XXI, esse interesse mantém-se e a preocupação “Por uma Europa Melhor” faz parte da agenda dos políticos portugueses que, agora, parecem acompanhar os intelectuais que, sempre, pensaram a Europa. Portugal integra-se no grupo dos países amigos da Constituição Europeia, ou seja, naqueles para quem a construção europeia deverá ser mais profunda. Construir a Europa significa, também, (re)construir Portugal, ou seja, a opção europeia condiciona as opções portuguesas sobre o seu futuro, abrindo, paralelamente um conjunto de novas oportunidades. Mais do que uma opção, a Europa é um destino, ou seja, uma realidade essencial para Portugal. Portugal é Europa, na sua identidade, história e cultura. Uma Construção Europeia sólida terá de partir destes fundamentos europeus, de uma Ideia de Europa. A visão dos intelectuais portugueses que pensaram a Europa parece de um idealismo utópico. Mas será que é possível viver sem um ideal e avançar sem uma utopia que impulsione? Como sempre acontece nas grandes realizações, o que é concretizado no futuro, no presente em que 108 eram idealizadas eram consideradas pelos mais realistas de “utopias”. É essa a mola impulsionadora da mudança: converter uma utopia em realidade, encontrar uma possibilidade no futuro para aquilo que naquele presente ainda não tinha lugar. A Europa actual precisa desesperadamente da(s) ideia(s) de Europa dos intelectuais, portugueses e estrangeiros. Em português também se faz a Europa. É necessário o contributo de todos os seus estados membros, num processo verdadeiramente democrático. A Europa encontra-se numa encruzilhada. Que caminho seguir? Uns pensam que há Europa a mais. Outros consideram que há Europa a menos. Todos procuram um futuro para a Europa. A construção europeia só poderá continuar se tiver como fundamento uma ideia, para além de todas as concretizações económicas ou jurídicas, que lhe garanta um futuro. É preciso ter confiança no futuro. As coisas grandes chegam pouco a pouco. Como reconhecia Jean Monnet, as raízes da comunidade já eram fortes no seu tempo, e acreditava que um dia os Estados Unidos da Europa seriam realidade. Não queria antecipar o futuro considerando a mudança imprevisível. Vivia no presente: “amanhã é outro dia... Bastam as dificuldades de cada dia”. Esse amanhã já chegou e os políticos perceberam, finalmente, que é preciso “dar uma alma à Europa”. Robert Schuman já tinha consciência dessa necessidade. Ainda não tinha chegado o tempo da Europa conceber uma alma e de voltar a ser um símbolo de solidariedade universal. A humanidade precisava de olhar para a Europa e reconhecer na sua unidade cultural, um modelo civilizacional, uma luz para o mundo. A Europa deverá voltar a estar em todo o mundo, agora que o mundo todo parece estar na Europa. Só a Europa há muito deixou de ser fortaleza de si propria: está ferida de morte. A Europa está em crise. Será, apenas, uma crise de crescimento? Entre sucessos e fracassos, avanços e recuos, a Europa nunca parou. Vinte e sete estados procuram desesperadamente, ou fingem procurar, na história comum, um novo sentido para o projecto europeu. De novo se ouvem os intelectuais que dizem: “É preciso relançar a Ideia Europeia”. De novo, são os intelectuais que tentam (re)inventar a Europa, afinal, uma “utopia interessante”, como reconhece Eduardo Lourenço, embora seja, também, a “casa da impotência”. A título de exemplo, refiram-se as propostas do cineasta Wim Wenders e do filósofo György Konrad que defendem relançar a ideia europeia pela cultura, 109 o escritor Georgi Gospodinov que julga necessário reiventar o “desejo de Europa”, ou o historiador Timothy Garton Ash que propõe que a nossa nova História seja tecida com seis fios, cada um deles representando um objectivo europeu comum. Estes fios são a paz, a liberdade, a diversidade, o direito, a solidariedade e a prosperidade. Estes fios parecem estar em curto-circuito, entre o desejo de uma super-Europa e a realidade de uma Europa impotente. Entre o sonho e a realidade. É tempo de (re)construir a Europa. Será o tempo dos Estados Unidos da Europa? Será o tempo da utopia? Bibliografia A.A.V.V., Cartas da Europa. O que é Europeu na literatura europeia?”, Lisboa, Fim de Século, 2005, ISBN: 9727542360 BARROSO, Durão Launch of New Narrative for Europe. Bozar - Brussels, 23 April 2013. Declaração por ocasião do 50º aniversário da assinatura dos Tratados de Roma, 25 de Março de 2007. FEBVRE, Lucien, A Europa. Génese de uma Civilização, Lisboa, Editorial Teorema, 1999, ISBN 9788574602226 LE GOFF, Jacques, “Por uma Europa Cultural”, in Jornal de Letras, 25 de Abril de 2007, p.9. LOURENÇO, Eduardo, A Europa Desencantada, Lisboa, Gradiva, 2001, 9789726627753 LOURENÇO, Eduardo, “O que é a Europa? Nada”, in Courrier Internacional, nº75, p.14. MORIN, Edgar, Pensar a Europa, Lisboa, Publicações Europa-América, 1988, ISBN 9788429728910 110 PESSOA, Fernando, Mensagem, Lisboa, Edições Ática, 1986, ISBN 9789726171751 O Espírito Europeu. Encontros Internacionais de Genebra, Lisboa, Publicações Europa-América, VALÉRY, Paul, Varieté, Paris, Folio, 1998, ISBN : 9782070405848 111 O REALISMO DA GOVERNAÇÃO E A EUROPEIZAÇÃO DO PS (19761985) Dina Sebastião Faculdade de Letras | Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX Universidade de Coimbra Resumo: Aborda-se aqui a forma como o Partido Socialista (PS) português justifica a sua opção pela adesão de Portugal à CEE, projeto de cariz liberal. O PS ambicionava uma Europa socialista, considerando que a concretização do socialismo português passava pela construção de um socialismo europeu, possível com a CEE. Mas de 1976 a 1985, o contexto económico e político nacional não vai ser propício a isso. Na oposição e no executivo, o partido irá gerir um discurso e atuação que tentam compatibilizar essa dicotomia, mas, no final de contas, estamos perante o partido europeizado. Palavras Chave: CEE, Portugal, europeização, Partido Socialista 113 Introdução: fundamentos da investigação e metodologia A Revolução 25 de Abril abriu um novo paradigma de política externa para Portugal, materializado com o fim de uma política colonialista e isolacionista, sendo uma das consequências a adesão às então Comunidades Europeias (CE). Embora o regime do Estado Novo já tivesse encetado formas de cooperação económica com a Europa - nomeadamente com a integração na OECE1 (e posterior aceitação de ajudas no âmbito do Plano Marshall), com a adesão à AECL2 e com o acordo comercial com a CEE, em 1972, a opção não era ditada por uma intenção política, de integração mais profunda, configurando apenas a resposta pragmática a uma necessidade da economia interna cada vez mais premente, que a prazo poderia colocar em causa o regime político. A opção pelo pedido de adesão, formalizada em 28 março de 1977 pelo primeiro governo constitucional após o 25 de Abril, subscrita pelos principais partidos que se consolidam no sistema democrático português (PS, PSD e CDS-PP), é eminentemente política, mas também suportada por argumentos económicos. Ora, o PS, partido socialista democrático, à data do período revolucionário e do pedido de adesão, de inspiração marxista e defensor de um forte intervencionismo estatal na economia, é um dos promotores e protagonista da adesão, sendo sob a sua presidência de governo que se inicia o processo diplomático português para o pedido de adesão e se dá a fase final decisiva das negociações (1983-1985). Neste artigo, pretende-se abordar a forma como o PS, após o fim da ditadura, resolveu a incompatibilidade entre a sua matriz ideológica, socialista, e a natureza liberal da CEE, à qual o partido estabelece como prioritária a adesão de Portugal. Para os socialistas portugueses, a opção europeia era já uma prioridade manifestada ainda durante o período da ditadura, nomeadamente durante o exílio de Mário Soares3, a partir de 1970. O português envolve-se a partir daí numa sólida campanha na Europa pela 1 Organização Europeia para a Cooperação Económica. Associação Europeia de Comércio Livre. 3 Mário Soares começa a gozar de uma projeção internacional considerável e vem a ser líder do PS, aquando da sua formação, em 1973, cerca de um ano antes do fim da ditadura em Portugal. 2 114 assunção da existência de uma oposição socialista democrática no país, contrapondo-se aos comunistas, defendendo a inserção de um futuro Portugal democrático no projeto comunitário que singrava na Europa ocidental4. Porém, os socialistas portugueses, designadamente Mário Soares, se por um lado se querem distinguir do PCP na Europa (para conquistar credibilidade junto da social-democracia europeia como alternativa à ditadura, para governo em Portugal), por outro pretendem cativar no país militantes dissidentes comunistas e simpatizantes mais à esquerda. Assim, reclamamse partidários de um socialismo democrático e, embora rejeitando-o como dogma, assumem o marxismo como inspiração teórica. Defendem um planeamento económico e intervencionismo estatal tendente a uma sociedade sem classes, que só pode ser construída através da edificação do poder dos trabalhadores num sistema de coletivização dos meios de produção. Esta base partidária definida em 19735 vai permanecer nos primeiros anos após a Revolução 25 de Abril. Ora, após o fim do período revolucionário da transição democrática, iniciado o período constitucional, a cujo primeiro governo o PS preside, e até finais de 1985, como vai o partido compatibilizar, durante os períodos de oposição e de governação6, a sua motivação política (consolidação da democracia portuguesa e desenvolvimento económico) para a adesão com a sua matriz ideológica socialista? Isto é, como a concilia com o cariz liberal do projeto comunitário? Será o PS a incutir propostas e ações socializantes à CEE? Ou será ele a deixar-se influenciar por aquela. Estaremos perante um PS europeizado ou será ele a ideologizar a Europa? Pretende-se neste artigo encontrar pistas de resposta a estas questões. Para SEBASTIÃO, Dina – Socialistas Ibéricos e a unidade europeia no pós-guerra: 1946-1974. [Em linha]. Revista Portuguesa de História. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, T XVL, p. 325-355. [Consult. 15.05.2017]. Disponível em WWW: http://dx.doi.org/10.14195/0870-4147_45_14 . 5 PS - Declaração de Princípios e Programa do Partido Socialista. Textos Portugal Socialista, setembro de 1973. p. 59, 60. 6 O PS assume a presidência do I Governo Constitucional de Abril de 1976 a janeiro de 1978, como único partido a governar, e no II Governo Constitucional de janeiro a agosto de 1978, em coligação com o CDS. Volta a governar de 1983 a 1985, na chefia do IX Governo Constitucional, em coligação com o PSD – sob o designado Bloco Central). Nos restantes períodos, o PS está na oposição. 4 115 isso, teremos como base de análise documental programas de base do partido, discursos e resoluções de congressos, manifestos eleitorais e alguns artigos do seu jornal oficial. Simultaneamente, far-se-á a confrontação deste discurso com o contexto histórico e os quadros teóricos da ciência política resultantes do estudo dos partidos políticos e a integração europeia. 1. Os argumentos para a adesão: consolidação política e desenvolvimento económico Será findo o período revolucionário da transição democrática, após a aprovação da Constituição da República Portuguesa e da convocação das primeiras eleições legislativas, para 25 de abril de 1976, iniciando-se o período constitucional, que o PS assumirá a sua opção pela adesão plena de Portugal às CE. O objetivo é apresentado na cimeira socialista no Porto, em março de 1976, perante vários líderes europeus do socialismo democrático7. “É nessa direção, com o auxílio da Europa [...], integrando-nos nesse grande movimento de marcha colectivo que é a integração europeia, que nós, socialistas, queremos caminhar. E tê-lo-emos se o povo português nos der uma vitória eleitoral expressiva.”8 O título da cimeira, a Europa Connosco, será também o slogan de campanha eleitoral, que evidencia a prioridade do partido para o país e está expressa também no manifesto elei- toral das legislativas de 1976: “[...] [O] governo socialista patrocinará a candidatura de Portugal a uma adesão plena à CEE – Comunidade Económica Europeia – iniciando para tanto as necessárias negociações, cujos resultados 7 De Áustria, Bélgica, Espanha, França, Holanda, Itália, Noruega, RFA, Suécia e o Secretário-Geral da Internacional Socialista. 8 SOARES, MÁRIO - A Europa Connosco. Dois discursos na cimeira socialista do Porto. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1976. p. 18. Noutro discurso, no mesmo evento, manifesta o desejo de Portugal contribuir para a integração europeia. “Repensar Portugal e o seu futuro passa pelo repensar da Europa em que Portugal se quer vir a integrar. [...] Repensar convosco o futuro da Europa e a inserção de Portugal no processo de construção europeia é tarefa altamente estimulante e enriquecedora para os camaradas portugueses e para mim, pessoalmente.” SOARES, Mário - A Europa Connosco [...] cit. p. 27, 30. 116 submeterá à Assembleia da República para decisão, tendo o cuidado de ressalvar a necessidade de garantir as condições especiais justificadas pela debilidade e atraso da nossa economia, aproveitando para tal o apoio que ao PS concedem os partidos de governo da maioria dos Estados da CEE, conforme ficou recentemente demonstrado na Cimeira Socialista do Porto.”9 Com a vitória nas legislativas, após formar governo, o líder socialista, Mário Soares, enceta a estratégia e cerca de um mês antes da entrega formal do pedido de adesão havia já realizado, com o Ministro dos Negócios Estrangeiros Medeiros Ferreira, um périplo pelos vários estados-membros, a sensibilizá-los para a necessidade da integração europeia da jovem democracia portuguesa. Dava-se concretização ao objetivo expresso no programa do Primeiro Governo Constitucional, de “acelerar a integração institucional de Portugal na CEE [...].”10 Enquanto isso não se concretizava, o governo tratou de aprofundar a cooperação económica iniciada ainda durante a ditadura, com a assinatura de um Protocolo Adicional ao Acordo Comercial de 1972, indo além do interesse estritamente económico do Estado Novo relativamente à Europa, integrando-se no Conselho da Europa e assinando a Convenção Europeia dos Direitos do Homem11. Na liderança do governo, o PS primou pela PS - “Programa para um governo PS.” Edição do Centro de Documentação do Partido Socialista (CTE/76), 1976. p. 21. 10 “Programa do I Governo Constitucional.” p. 127 [Em linha]. [Consult. 25.05.2017]. Disponível em WWW: < http://www.portugal.gov.pt/media/464012/GC01.pdf >. 11 O protocolo adicional foi assinado em 20 de setembro de 1976. Também inscrito no programa de governo, o pedido de integração no Conselho da Europa, foi feito em 20 de agosto, com desfecho positivo pouco mais de um mês depois. Em 22 de setembro, José Medeiros Ferreira, Ministro dos Negócios Estrangeiros, assina a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ato simbólico na afirmação da recentemente instaurada democracia portuguesa. ROLLO, Maria Fernanda, AMARAL, João Ferreira do, BRITO, José Maria Brandão de – Portugal e a Europa. Cronologia. Lisboa: Edições Tinta da China, 2011. p. 217-220. 9 117 orientação europeia de Portugal, como pilar estruturante da política externa do país12. Desta forma, o governo socialista (com apoio da maioria dos partidos no parlamento) afirmava e consumava a opção pela ocidentalização de Portugal, ultrapassando-se a indefinição dos governos provisórios em termos de política externa, e a inerente “tentação terceiromundista do período revolucionário”13 da transição democrática. Mas porquê um pedido de adesão tão imediato se as características económicas do país faziam prever dificuldades e efeitos negativos com a integração no MC? A opção europeia do PS é suportada por argumentos políticos, acima de tudo. Além de razões estruturais identitárias do país, como a sua pertença geográfica, histórica e civilizacional à Europa, movem-no também aspetos conjunturais, expressos na necessidade de consolidação da democracia portuguesa. Assume-se o pedido de adesão como “um acto de vontade política”, assim justificado: “Abre-se, [...] com a futura adesão de Portugal à CEE, um período de consolidação da jovem democracia portuguesa que passará por um projeto de reconstrução nacional em que cabem todas as forças políticas.”14 Nas diversas intervenções socialistas na Assembleia da República, neste período, o simbolismo democrático da adesão à CEE é constante, traduzindo-se uma visão instrumental da Europa ao serviço da consolidação democrática15. Note-se que este argumento permanece até ao final das negociações, voltando a ser vincado no momento da 12 “[F]aremos uma política diversificada, mas uma política que claramente faz uma opção europeia.” Exposição do Primeiro-ministro à Assembleia da República sobre o programa de governo. DAR. Nº 17 (03.08.1976) p. 406. 13 PINTO, António Costa, TEIXEIRA, Nuno Severiano – “Portugal e a integração europeia, 1945-1986.” In PINTO, António Costa, TEIXEIRA, Nuno Severiano (org.) – A Europa do Sul e a construção da União Europeia: 1945-2000. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. p. 34, 35. 14 Intervenção do deputado do PS Rodolfo Crespo. DAR. Nº 79 (25.02.1977) p. 2652, 2653. 15 “[...] [A]Europa não é vontade de expressão comercial, mas de uma vontade política, e que essa vontade coincide com as aspirações do povo português.” Intervenção do deputado do PS Rodolfo Crespo. DAR. Nº 84 (08.06.1978) p. 3030. A ideia de consolidação democrática é estendida a um âmbito mais lato da Europa, como relativamente à adesão ao Conselho da Europa: “Em primeiro lugar consi- 118 assinatura do Tratado de Adesão16, pois apesar de afastado o período periclitante do PREC (Processo Revolucionário em Curso), e de institucionalizada a democracia, a instabilidade governativa que se gerou até 1985 e a crise económica e financeira, que motivou duas vindas do FMI a Portugal, evidenciava dificuldades e fragilidades nos primeiros passos da democracia. E é essencialmente pela invocação da consolidação democrática que se justifica o pedido pela adesão plena, em vez de qualquer acordo prévio de associação, o que teria sido também possível17. Concretizada pelos socia- deramos que a adesão de Portugal ao Conselho da Europa representa uma contribuição para a consolidação das instituições democráticas, na medida em que a Europa das Comunidades tem da política exactamente as mesmas concepções que o Partido Socialista.” Intervenção de Rodolfo Crespo, deputado do PS. DAR. Nº 85 (09.06.1978) p. 3082. 16 “O 25 de Abril e a descolonização destruíram toda a lógica do sistema políticoeconómico criado pelo fascismo. Portugal regressou ao rectângulo continental. Foi então que se travou a luta entre aqueles que queriam recolocar Portugal na família das democracias representativas e os que almejavam transformar o nosso país na ponta-de-lança das democracias ditas populares no Ocidente Europeu. E essa luta ainda não terminou. A integração europeia de Portugal inviabilizará definitivamente a intenção daqueles que são contrários à CEE. [...]. No plano político, a adesão significará a participação portuguesa nas decisões comunitárias, o que nenhum estatuto de associação nos garantiria. E essa participação reforçará as nossas instituições democráticas, porque só um processo político de democracia representativa permite a articulação com as instituições europeias – Parlamento Europeu, Conselho de Ministros, Tribunal Europeu. [...]. Para uma democracia débil como a nossa, essa garantia não é despicienda.” Intervenção do deputado socialista Rodolfo Crespo. DAR. Nº 64 (29.03.1985) p. 2626. E ainda: “A integração numa forte estrutura política europeia e pluralista acentuará, a nível político, a irreversibilidade da nossa própria opção democrática.” Intervenção de Jaime Gama, Ministro dos Negócios Estrangeiros, pelo PS. DAR. Nº 106 (11.07.1985) p. 4052. Cf. “Um dos momentos mais significativos da história contemporânea portuguesa.” (Discurso de Mário Soares na assinatura do tratado de adesão). Acção Socialista. Nº 341 (13.06.1985) p. 8. 17 Seria possível como alternativa a invocação de uma cláusula evolutiva para a uma associação e a médio/ longo prazo para a entrada, ou uma associação imediata levando posteriormente a uma entrada. Contudo, considera João Cravinho, os acontecimentos políticos motivaram o pedido de adesão plena de Portugal, assim como também o interesse político da própria CEE na estabilização democrática do país. CRAVINHO, João – “Characteristics and motives for entry”. In 119 listas no governo, a opção provém das bases programáticas do PS, previamente apresentada na cimeira socialista e no Congresso de 1976, e reiterada em manifestos eleitorais posteriores. Mas a adesão significa também para os socialistas a aspiração pela modernidade das ideias políticas, em dicotomia com um passado isolacionista, colonialista e decadente18. A Europa do discurso socialista dota-se de um simbolismo de modernidade e vanguarda política: “a inserção definitiva do nosso país numa das correntes que seguem na vanguarda do Mundo.”19 O primado deste argumento político suplanta o carácter eminentemente económico que a CEE detinha então e é a evidência da mudança de paradigma que representa o pedido de adesão relativamente ao Estado Novo, e que Severiano Teixeira sublinha: “en tant que projet politique et non plus seulement dans une perspective purement économique, comme lors des accords d’association de 1972.”20 A reforçar esta ideia, sublinhe-se ainda que o europeísmo do PS convive com uma maioria de partidos integrantes do novo sistema democrático português favoráveis à adesão, e com as mesmas motivações políticas, como o PPD/PSD e o CDS, sendo o PCP o SAMPEDRO, José Luís; PAYNO, Juan Antonio (ed.) - The Enlargement of the European Community: case studies of Greece, Portugal and Spain. London: The Macmillan Press Ltd, 1983. p. 138. 18 “Nos períodos mais brilhantes da sua história Portugal abriu-se ao mundo, afirmando-se como autêntico representante da cultura e civilização europeia [...]. As fases de isolamento face à Europa corresponderam sempre em Portugal a um empobrecimento cultural e técnico, a decadência das estruturais sociais e a um marcado depauperamento ideológico.” SOARES, Mário - A Europa connosco [...] cit. p. 28. A ideia de fim do isolamento português é vincada noutros discursos, nomeadamente na AR, como é exemplo a intervenção do deputado socialista Carlos Lage: “Portugal não poderia ficar, sem nefastas consequências, à margem deste movimento, constituindo a plena integração na CEE um acontecimento histórico do plano interno, que transformará apenas em má recordação o isolamento político anterior ao 25 de Abril e contribuirá para atenuar os efeitos da situação periférica do país a que a geografia nos condenou.” DAR. Nº 69 (12.04.1985) p. 2837. 19 Comunicação do Primeiro-ministro Mário Soares à AR, sobre a projetada adesão à CEE. DAR. Nº 88 (19.03.1977) p. 3015. 20 TEIXEIRA, Nuno Severiano – La politique extérieure de la démocratie portugaise. Pôle Sud. Paris: Cairn.info, Nº 22 (2005/1).p. 70. 120 único com posição desfavorável21. Para o PS, a fase final das negociações para a adesão representou também a consolidação da sua linha europeísta e ocidental, já que nos primeiros anos da democracia, apesar da opção oficial assumida ser pela adesão plena à CEE, o partido enfrentava divisões internas quanto à questão, não só de caráter técnico mas também ideológico22.  O argumento económico Além das razões de ordem política, há também uma motivação de carácter económico para a adesão, o que incrementa a noção de incongruência ideológica em que o PS cai. Apesar das advertências internas quanto aos efeitos colaterais da integração económica no país, o partido fundamenta a adesão com uma perspetiva estruturante da economia nacional: “Ora, o nosso projeto europeu é inseparável do projecto de reconstrução da economia nacional [...].”23 Isto passaria pela definitiva quebra com o sistema de autarcia económica do regime anterior e de construção de um novo paradigma económico nacional: 21 Cf. BARROSO, Durão – Le système politique portugais face a l’intégration européenne. Partis politiques et opinion publique. Lisboa: Associação Portuguesa para o Estudo das Relações Internacionais, 1983. p. 133- 136. 22 Por um lado, levantavam-se objeções por causa das expectáveis consequências económicas negativas para Portugal com a inserção plena no MC, economia mais competitiva relativamente à nacional; por outro, coexistia, nos primeiros anos de democracia, uma ala mais ortodoxa no partido, provinda da cisão de Manuel Serra, que chega a candidatar-se à liderança contra Mário Soares. Cf. AVILLEZ, Maria João – Soares: democracia. Lisboa: Público, 1996. p. 56; SOUSA, Teresa - Os Grandes Líderes, Mário Soares. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988. p. 103; SOARES, Mário – Um político assume-se. Ensaio autobiográfico, político e ideológico. Lisboa: Temas e Debates, 2011. p. 205, 206, 231, 232. 23 SOARES, Mário - Relatório do Secretário-geral, Mário Soares, ao II Congresso Nacional na legalidade. Lisboa: Editorial Império, 1977. p. 33. 121 “[N]um país pequeno e com acentuadas dependências do exterior, o aprofundamento da democracia económica só pode ser atingido num quadro mais vasto do que o nacional e esse – feita a descolonização – não pode ser outro senão a Europa do Mercado Comum [...].”24 Esta ideia é reforçada no discurso à Assembleia da República a anunciar o pedido de adesão, em que face à descolonização, o país só poderá ultrapassar as suas dificuldades económicas com a abertura à Europa, abrindo-se assim um novo paradigma de desenvolvimento económico nacional25. Se no primeiro ano da transição democrática o PS, nomeadamente Mário Soares, enquanto ministro nos governos provisórios, colocava cautela no seu discurso relativamente à total abertura de Portugal ao MC (uma orientação estratégica devido à indefinição política dos governos provisórios e à viragem à esquerda da política no início da transição democrática), após a fase constitucional e iniciadas as funções governativas, os socialistas defendem a urgência de encontrar um projeto estrutural de desenvolvimento económico e social nacional, o que passaria pela integração europeia. Enquanto a declaração de princípios do partido de 1974 atentava à debilidade da economia portuguesa para acautelar os efeitos da adesão à CEE, a de 1976 inicia a transição para um discurso promissor de vantagens económicas da integração. A partir daqui, embora não se ignorando as fragilidades da economia portuguesa, defende-se o benefício da integração económica como estrutural para o país, que trará resultados a médio/longo prazo. Os socialistas no governo e no parlamento SOARES, Mário – “Entre Militantes. Política Externa.” Acção Socialista. Nº 8 (18.01.1979) p. 3. 25 “Nós hoje somos definitivamente um pequeno país desde o momento em que terminou o facto colonial. Somos um país com dificuldades económicas muito sérias e se ficarmos completamente isolados na Europa não será com uma política chamada, como se diz, eufemisticamente, de diversificação de relações diplomáticas que nos poderemos entender.” Comunicação à AR sobre a projetada adesão de Portugal à CEE. DAR. Nº 88 (19.03.1977) p. 3022. 24 122 apostam na “necessária preparação interna, sobretudo por parte dos sectores económicos”26 e apelam à consciência de que os proveitos da integração económica não se notarão a curto prazo27. Para mitigar aos efeitos negativos económicos da adesão, apostam nas negociações, que deverão acautelar a devida proteção da economia nacional e garantir ajudas de pré-adesão28. Embora este discurso seja mais contundente quando o PS está na oposição, ele marca toda a linha orientadora dos socialistas de 1976 a 1985, quer enquanto é partido de governo, quer de oposição, marcando as orientações internas partidárias29. Note-se que a preocupação com o impacto de uma plena adesão na economia portuguesa era também evidenciada pela própria Comissão Europeia, que alertava para a debilidade económica estrutural do país, além de que a democracia herdava uma situação de perda de mercado nacional na Europa, nas décadas de 60 e 70, para os países em vias de industrialização e para a Grécia e Espanha. Este cenário é agravado pelas medidas nacionais restritivas impostas pelo FMI para fazer face à crise financeira30. Mesmo perante este cenário, o PS não regrediu na intenção de adesão plena, crente da “Programa do I Governo Constitucional.” p. 127 [Em linha]. [Consult. 25.05.2017]. Disponível em WWW: < http://www.portugal.gov.pt/media/464012/GC01.pdf >. 27 Ver intervenção do deputado socialista Rodolfo Crespo. DAR. Nº 64 (29.03.1985) p. 2626. 28 “O PS [...] sempre se tem manifestado a favor da integração europeia de Portugal – mas não a qualquer preço [...]. Precisamos de arrancar da CEE garantias excepcionais de apoio financeiro e tecnológico ao seu desenvolvimento.” Discurso de Mário Soares, enquanto deputado socialista, na AR. “Este governo está cego para as realidades nacionais.” Acção Socialista. Nº 172 (11.03.1982) p. IV (suplemento). 29 Isto fica bem patente no encontro de reflexão “Debates sobre o futuro de Portugal”, organizado pelo Gabinete de Estudos do PS, em 1979, em que a perspectiva económica futura para Portugal é um dos assuntos em realce. “Debate aberto sobre o futuro de Portugal foi um sucesso sem precedentes.” Acção Socialista. Nº 12 (15.02.1979) p. 12. 30 Cf. CRAVINHO, João – Ob. cit. p. 140, 141. 26 123 necessidade de fazer entrar o país num novo paradigma de desenvolvimento económico, que, embora não considerados despicientes os efeitos negativos dessa opção, seria pelo choque da integração no modelo económico do MC que o país poderia encarreirar na linha do desenvolvimento europeu. A esta ânsia de abertura económica dos socialistas não será alheia a aprendizagem histórica pela experiência do Estado Novo, que face à evidência de que o território ultramarino não era suficiente para impulsionar a economia da metrópole, teve de fazer um desvio ao seu ideal de autarcia económica, para se integrar na OECE, aceitar o Plano Marshall, integrar a AECL e realizar o acordo comercial com a CEE, em 1972. Tais opções resultam de uma crescente necessidade interna do regime, que opta assim pelo pragmatismo político em fazer as cedências necessárias na área da cooperação económica europeia31, mantendo a natureza política do regime incólume. As lições da história económica portuguesa, o fim da colonização e a necessidade de encontrar um novo paradigma estruturante do desenvolvimento económico e social do país, aliado à visão da Europa como crucial para a consolidação democrática nacional, leva o PS a não vacilar perante os previstos efeitos negativos do impacto da integração económica e defender a plena adesão à CEE com base nos pressupostos efeitos positivos a médio/longo prazo. 2. A incongruência ideológica – a difícil justificação da opção pela CEE liberal? Cf. ROLLO, Fernanda – Portugal e a reconstrução económica do pós-guerra: O Plano Marshall e a economia portuguesa nos anos 50. Lisboa: Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2007. p. 196, 197, 200; SILVA, António M. da – Portugal entre a Europa e o Além Mar. Do plano Briand na SDN (1929) ao Acordo Comercial com a CEE (1973). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2000. p. 48-59. 31 124 Porém, esta acérrima defesa da adesão plena à CEE pelos socialistas, apoiando-se também em argumentos de ordem económica para suportar a ideia, coloca em confronto a matriz ideológica do partido com a natureza económica que representava o projeto comunitário, baseado num modelo liberal de mercado. Como geri o PS esta incompatibilidade de ideias?  A retórica: PS modula a CEE e não o contrário No início da transição democrática, o partido rege-se por um socialismo ortodoxo, pela defesa da organização de uma economia de base socialista, com forte intervencionismo do Estado. E é com base nisso, e no enviesamento à esquerda do contexto inicial da transição democrática, que o PS colocará reservas iniciais na possibilidade de uma adesão plena à CEE. Na declaração de princípios de 1974 defende o desenvolvimento de um socialismo democrático em Portugal, de modo a “fazer frente ao capital monopolista europeu, que sofre a crise de acumulação capitalista à escala mundial [...].”32 Aguardando cautelosamente a evolução política da revolução, primando por uma diferenciação do PCP, mas acompanhando a esquerdização que o período revolucionário imprimia a todos os partidos, o PS pretende, nesta fase, diferenciar-se da social-democracia, assumindo no 1º Congresso Nacional que Portugal não tem condições para aplicar a social-democracia típica dos países nórdicos33. O programa eleitoral de 1975, para a assembleia constituinte, ajusta-se a esta estratégia - de, por um lado, diferenciar-se do PCP, por outro, captar eleitorado à esquerda - , propondo o cooperativismo agrícola e a apropriação coletiva dos meios de 32 PS, 1974: Declaração de princípios, programa e estatutos do Partido Socialista. Lisboa: PS. Cit in. ÁLVAREZ-MIRANDA, Berta – El Sur de Europa y la adhesión a la Comunidad. Los Debates Políticos. Madrid: Siglo XXI de España Editores S.A., 1996. p. 133. 33 In “Relatório de Mário Soares no congresso do PS” (1974). In NOSTY, B. Diaz – Mário Soares, o chanceler. Lisboa: Liber (1975). p. 183. 125 produção como necessária para transformar definitivamente o modo de produção capitalista34. No programa de 1976, continua-se a expressar um socialismo, embora de índole democrática, de inspiração marxista, com o objetivo de “reorganizar a atividade económica e social ao serviço das classes trabalhadoras”. Parece, contudo, haver uma ligeira moderação das propostas, já não se apelando à apropriação coletiva dos meios de produção e salvaguardando-se que o papel de planeamento do Estado não pretende retrair a iniciativa privada, mas antes estimulá-la através de incentivos fiscais e políticas seletivas de crédito. Por outro lado, continua a propor-se a aplicação do cooperativismo, designadamente na agricultura, com a criação de formas legais de participação dos trabalhadores na vida coletiva das empresas35 – o que seguia o cumprimento da Constituição. Ora, esta base programática colide com a natureza da CEE e com as futuras exigências adaptativas da economia portuguesa para entrar no MC. Como irá o PS compatibilizar o seu discurso? Para os socialistas, a integração “não deve impedir a aplicação prudente mas firme” de uma “política de construção de uma sociedade socialista em liberdade [...].”36 Assim se justifica o partido no seu programa de 1976. Ou seja, a adesão não implicará que Portugal mude o seu projeto de desenvolvimento económico socialista. Pelo contrário. Será a adesão de Portugal que implicará a mudança da Europa de acordo com os preceitos socialistas para a economia portuguesa, conforme Mário Soares deixara expresso na cimeira socialista do Porto em 1976, perante os vários elementos da social-democracia europeia: “Repensar convosco o futuro da Europa e a inserção de Portugal no processo de construção europeia é tarefa altamente estimulante “Esta transformação não se dará enquanto não forem os trabalhadores a criar uma nova organização da produção e, em particular, novas relações de trabalho.” PS - “Alguns pontos do programa.” Centro de Documentação do Partido Socialista. 1975. p. 3. 35 PS - “Programa para um governo PS.” Edição do Centro de Documentação do Partido Socialista (CTE/76). 1976. p. 27, 28, 30-35. 36 Ibidem, p. 21. 34 126 e enriquecedora para os camaradas portugueses e para mim, pessoalmente. O Partido Socialista teve ocasião, em diversas oportunidades, de afirmar a necessidade de transformar a Europa – de forma a que deixe de ser a Europa dos trusts e passe a ser a Europa dos trabalhadores. Hoje, esta tomada de posição de princípio tem urgência em ser reafirmada, na medida em que certas forças políticas em Portugal se encaminham para defender a aproximação de Portugal às Comunidades Europeias numa perspectiva puramente capitalista que não corresponde aos verdadeiros interesses do povo português e se afasta dos imperativos de uma verdadeira independência nacional condicionando a transformação da sociedade portuguesa a caminho do socialismo.” 37 No programa eleitoral desse ano, o PS vinca a mesma intenção: construir “uma Europa unida, independente e socialista – a EUROPA DOS TRABALHADORES.”38 Encarando a CEE como modelo em evolução, a ser influenciado futuramente pelo socialismo, o líder do PS argumentava assim a compatibilidade do pedido de adesão com os preceitos ideológicos do partido, ao mesmo tempo que se diferenciava dos outros partidos portugueses igualmente apoiantes da adesão, como o PSD e CDS. Porém, se esta aspiração dominava as intenções do PS aquando das eleições legislativas e no início da governação, a realidade governativa irá colocar a retórica socialista à prova e fazer o partido enveredar no governo por uma estratégia pragmática de ajustamentos económicos e financeiros internos que contradirão este discurso. 3. O realismo da governação e a negação da retórica socialista Com a chegada ao governo, o PS enfrentará uma situação de crise económica e financeira que levará o partido a tomar medidas de emergência. Aliás, o programa eleitoral de 1976 é já demonstrativo de uma ligeira moderação de discurso, pois o conturbado período do PREC, o 37 SOARES, Mário - A Europa Connosco [...] cit. p. 30, 31. PS - “Programa para um governo PS.” Edição do Centro de Documentação do Partido Socialista (CTE/76). 1976. p. 21. 38 127 Verão Quente e o 11 de Novembro haviam gerado na sociedade portuguesa uma certa aversão à esquerda, manifesta nas preferências eleitorais do país. O impulso de moderação do partido será intensificado com as responsabilidades governativas assumidas em 1976. Qual o estado do país em 1976? A uma já diagnosticada estrutura económica obsoleta, herdada do fascismo, com uma produção nacional estagnada face ao aumento do consumo interno, agravada com a instabilidade dos governos provisórios, junta-se uma conjuntura preocupante: uma balança comercial deficitária, um alto endividamento público, a rondar os 95,4 milhões de contos, e cerca de 80% das reservas do país consumidas para fazer face às dificuldades económicas e a uma guerra colonial prolongada39. Responder a esta emergência económica e financeira para evitar a bancarrota era a prioridade, pelo que o governo de Mário Soares aplica medidas restritivas da despesa pública, corta em subsídios e outros apoios a empresas deficitárias, aumenta preços de bens, implementa medidas de controlo salarial no setor público e retrocede na posse estatal de empresas intervencionadas pelo estado40. Esta política de austeridade é acentuada com a intervenção do FMI em Portugal, em 1978, permitida graças ao acordo de governo com o CDS41. Adicionalmente, a conjuntura externa, a sofrer dos efeitos da crise energética e económica internacional dos anos 70, não favorece a recuperação da economia portuguesa. Ora, nesta altura, o PS regia-se ainda pela declaração de princípios de 1974, que se revelava incompatível com o pragmatismo político de que o partido aplicava no governo. De modo que, no segundo congresso nacional, o líder socialista já revela os constrangimentos governativos na aplicação do socialismo em Portugal, ressalvando que apesar de a meta ser essa, tem de ser aplicada “por fases, levando em conta as condições objetivas da realidade portuguesa actual.”42 Invocando a necessidade de 39 “Na hora da verdade.” Comunicação feita ao país pelo Primeiro-ministro Dr. Mário Soares. Secretaria de Estado da Comunicação Social. 1976. p. 6, 7. 40 Ibidem, p. 15-20. 41 TELO, António José – História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Atualidade. Vol. I. Lisboa: Editorial Presença, 2007. p. 198-206. 42 SOARES, Mário - Relatório do Secretário-geral, Mário Soares, ao II Congresso Nacional do PS na Legalidade. p. 22. 128 pragmatismo, Soares apela à união do partido em torno dos objetivos de governo: “Urge pois evitar, corajosamente, que a situação económica se deteriore mais e tomar medidas, mesmo impopulares, que levem à resolução dos problemas e não ao seu contínuo agravamento.”43 Na opinião de Telo, esta conduta da liderança socialista parece também refletir a sua verdadeira visão para o designado “socialismo democrático” em Portugal, que não passaria pela identificação com a propriedade estatal e a primazia dada ao setor público, mas em aproveitar as possibilidades da Constituição para corrigir algumas derivas do gonçalvismo e implementar um sistema de economia mista, um Estado-providência redistribuidor da riqueza44. Mas a aplicação de medidas de estabilização financeira parece não ser encarada como mera exceção de resposta a uma necessidade conjuntural, começando a ser integrada numa mudança de discurso dos socialistas, já não tão imbuídos da retórica marxista da rejeição do capitalismo, para começarem a revelar a aceitação de um capitalismo regulado pelo estado: “Com tudo isto se pretende reafirmar que se completará o quadro jurídico que clarifique a economia portuguesa como uma economia mista, de coexistência concorrencial entre diferentes sectores institucionais como modo de regulação assegurado por uma síntese entre os mecanismos de mercado e de planeamento, adequada à nossa futura inserção na CEE.” 45 Por esta assunção do Ministro das Finanças e do Plano, concebe-se a Europa como alavanca de mudança da conceção socialista para a economia portuguesa. Esta orientação é atestada pelo programa do segundo governo constitucional, a reconhecer “o mercado como fonte de dados importante para a racionalidade da economia portuguesa” e a declarar como objetivo da política económica "possibilitar o funcionamento dos mecanismos de mercado.”46 A orientação dos socialistas no governo será homologada pelo partido no 3º Congresso nacional, em 1979, com a aprovação do documento 43 Idem, ibidem, p. 24. TELO, António José – História Contemporânea de [...] Vol. I. Cit. p. 193. 45 Intervenção do Ministro das Finanças e do Plano, o socialista Vítor Constâncio. DAR. Nº 38 (22.02.1978) p. 1381. 46 “Programa do II Governo Constitucional.” p. 36 [Em linha]. [Consult. 25.05.2017]. Disponível em WWW: < http://www.portugal.gov.pt/media/464015/GC02.pdf >. 44 129 Dez Anos para Mudar Portugal, uma base programática para os anos 80, resultante de um amplo debate no partido47. Embora assumindo-se como um projeto do socialismo democrático, designação que Mário Soares diz preferir por se distinguir da experiência social-democrata típica dos países nórdicos48, o documento reflete no fundo orientações sociais-democratas, preparando o partido para a estratégia de oposição (o PS tinha saído do governo em meados de 1978), onde permanecerá até 1983. No Congresso, Mário Soares define o espaço político do PS como “de esquerda não comunista, num largo espectro ideológico que pode e deve englobar os sociais-democratas”, o que pretendia responder à necessidade de “aglutinar uma grande base social de apoio.”49 Este congresso marca o início da desmitificação de Mário Soares sobre as afinidades com a social-democracia e do fim das dissidências de esquerda no partido50, apaziguadas por uma liderança forte e tendências oligárquicas de gestão. A condição de partido de 47 “Como decorreu o grande debate do documento no interior do partido.” Acção Socialista. Nº 14 (01.03.1979) - Suplemento. p. II; “Documento dos anos 80 foi aprovado e a meta é o socialismo democrático.” Acção Socialista. Nº 15 (08.03.1979) p. 6. 48 Desde o 25 de Abril, nas várias intervenções feitas, Mário Soares negava a afetação do PS à social-democracia e distinguia o socialismo democrático como experiência inovadora, que não se guiaria por um mero controlo estatal do capitalismo, mas pela sua recusava necessária para implementar um verdadeiro socialismo em Portugal. Com as evidências da realidade e as necessidades pragmáticas do PS, o líder começou a abandonar esse discurso a partir de 1979, reconhecendo as afinidades com a social-democracia. Cf. CASTAÑO, David – Mário Soares e a Revolução. Alfragide: D. Quixote, 2013. p. 220-232. 49 “Temos os meios, os instrumentos e os homens capazes de transformar Portugal – afirmou Mário Soares no seu relatório ao III Congresso.” Acção Socialista. Nº 15 (08.03.1979) p. 4. 50 Depois da Revolução 25 de Abril, a primeira dissidência foi tentada por Manuel Serra, em 1974, que concorreu contra Mário Soares na liderança, mas perdeu. O PS ultrapassa ainda alguma dificuldade de gestão com a sua primeira experiência governativa, com o partido no parlamento a assumir frequentemente posições mais à esquerda do que o partido no governo. Ainda em 1977, um grupo de dirigentes sindicais concorre contra a lista soarista às eleições para a Comissão Nacional do Partido, mas sem sucesso, face à liderança forte e à tendência oligárquica do partido. Isto não acontece sem que haja outras contestações, nomeadamente contra a liderança personalizada de Mário Soares, o que resulta no abandono de elementos moderados, como Medeiros Ferreira, a quem se juntam, posteriormente, 130 oposição, a partir de 1978, leva-o a definir uma estratégia eleitoralista para voltar a conquistar o poder, seguindo a tendência que se verificava em finais da década de 70, de concentração do eleitorado nas posições centrais do eixo esquerda-direita51. A própria assunção do partido em congresso, da necessidade de acabar com o seu “complexo de direita”52 é disso reveladora. De acordo com Lisi, este sentido pragmático do PS, iniciado com a experiência governativa em 1976 e prolongado com a estratégia eleitoral durante a oposição que se seguiu (até 1983), revela uma “lenta e gradual deslocação para o centro. O PS abandonou progressivamente o legado de inspiração marxista que marcou o período da transição democrática para adotar posições moderadas e pragmáticas.”53 A tendência volta a intensificar-se em 1983, com o regresso do partido ao governo, novamente numa altura de emergência financeira nacional, início da fase decisiva das negociações para a adesão. Tendo ganhado as eleições legislativas em 1983, mas sem maioria absoluta, o PS vai governar em coligação com o PSD, constituindo o designado Bloco Central. Em resposta à grave crise, o primeiro-ministro socialista Mário Soares apresenta um plano de governo que tem como objetivos a “estabilização financeira e desenvolvimento económico”, incluindo “um programa de recuperação financeira e económica”, a criação de “condições sadias para o investimento” e, “um programa de modernização da economia portuguesa (de 4 anos), que terá obviamente em conta a adesão à CEE como elemento prioritário e presente em todos os aspetos setoriais relevantes.”54 Mário Mesquita e Vítor Cunha Rego. SABLOSKY, Juliet Antunes – O OS e a transição para a democracia. Lisboa: Editorial Notícias, 2000. p. 100-103; Cf. JALALI, Carlos – Partidos e Democracia em Portugal. Lisboa: Imprensa das Ciências Sociais, 2007. p. 150-152. 51 LISI, Marcos - Os partidos políticos em Portugal. Continuidade e transformação. Coimbra: Almedina, 2011. p. 40. Em consequência desta moderação do eleitorado, o “PS e o PPD viravam-se, assim, para estratégias eleitorais amplas e catch-all.” JALALI, Carlos - Ob. cit. p. 72. 52 “Documento dos anos 80 foi aprovado e a meta é o socialismo democrático.” Acção Socialista. Nº 15 (08.03.1979) p. 6. 53 LISI, Marcos - Os partidos políticos em Portugal [...] cit. p. 46, 47. 54 Apresentação do programa de governo pelo primeiro-ministro Mário Soares. DAR. Nº 6 (21.06.1983) p. 98. 131 Para responder à prioridade de concluir as negociações para a adesão à CEE, que implicava a necessária adaptação da estrutura interna económica às regras de competitividade que o MC acarretaria, Soares convida para Ministro das Finanças e do Plano Ernâni Lopes, antigo chefe da missão de Portugal nas CE, elemento do PSD. Ernâni Lopes vai aproveitar a margem aberta na coligação governamental55, sem definição sobre a liberalização de mercado, para, precisamente, impor as necessárias reformas para a adesão à CEE, o que pressupunha a “liberalização dos mecanismos financeiros e económicos”, e “uma política clássica de austeridade financeira, sem se pensar de momento em grandes investimentos públicos.”56 À necessárias medidas de adaptação da economia portuguesa à CEE juntavase a situação financeira interna do país, novamente a exigir uma intervenção do FMI, que leva a mais medidas de austeridade, tendo em vista a contenção do défice do Estado e do setor público administrativo e a reestruturação do sistema fiscal com aumento de impostos sobre a população.57 É ainda nesta fase que, como adaptação ao MC, se implementam reformas legislativas para permitir a entrada de iniciativa privada em setores vitais, que criarão novos grupos económicos no país.58 O PS pratica no governo uma política centrista, concretizando o que ficara indiciado no “Programa para os anos 80”. Esta orientação fica homologada no Congresso de 1983, sob duas claras diretrizes futuras - debelar a crise financeira e preparar o país para o mercado livre europeu: “Interessa não perder de vista que as medidas restritivas, destinadas a actuar sobre a conjuntura, são uma condição prévia, indispensável, à obra de transformação urgente e igualmente necessária da estrutura produtiva portuguesa. [...] [T]emos que saber tirar partido da nossa força de trabalho, da terra e do nosso génio e, ao mesmo 55 O PSD insistia na liberalização e o PS estava relutante. O acordo de governo foi fechado sem haver um acerto formal relativamente a este ponto, apenas com o comprometimento de colaboração. TELO, António José – História Contemporânea de [...] Vol. I. Cit. p. 234. 56 Idem, ibidem, p. 234. 57 “Programa do IX Governo Constitucional.” p. 38, 39 [Em linha]. [Consult. 23.05.2017). Disponível em WWW: < http://www.portugal.gov.pt/media/464033/GC09.pdf >. 58 TELO, António José – História Contemporânea de [...] Vol. I. Cit. p. 236. 132 tempo, que saber aproveitar a entrada no espaço europeu (CEE) para racionalizar, valorizar e modernizar a economia portuguesa, em termos realmente competitivos e de mercado. [...]Temos um horizonte de esperanças referido a 1985. Estaremos no bom caminho quando a conjuntura depressiva estiver vencida – restabelecidos os equilíbrios financeiros essenciais – e estivermos em pleno na aplicação de reformas estruturais indispensáveis, por forma a valorizar as riquezas nacionais em termos de competição externa e modernizar a Sociedade e o Estado, conferindo aos portugueses padrões de vida Europeus.”59 Apesar da declaração de princípios que sai deste 5º Congresso incluir como “objectivo de largo alcance a construção de uma Europa dos trabalhadores, institucionalizada e democrática”60, a prática governativa e a orientação política do partido será realizar no país as alterações estruturais necessárias para adaptar a economia portuguesa às regras da CEE, garantindo competitividade nacional para integrar o mercado concorrencial europeu.61 Esta visão permanece ao longo da governação 1983-85 e é reiterada pelo Primeiro-ministro na assinatura do tratado de adesão, em 198562. “Relatório do Secretário-geral: Juntos construiremos o futuro.” Acção Socialista. Nº 254 (06.10.1983) p. 6. 60 “Declaração de princípios e objectivos aprovada por esmagadora maioria.” Acção Socialista. Nº 254 (06.10.1983) p. 8. 61 “A próxima adesão de Portugal à CEE é hoje uma certeza. É, pois, necessário que a sociedade civil, no seu conjunto, se prepare para uma integração que implica profundas adaptações a nível económico, jurídico e social. É dever desta Assembleia alertar a opinião pública para a necessidade de nos repensarmos face às regras de funcionamento comunitárias que nos obrigarão em relação aos outros países membros, mas que obrigarão também estes em relação a Portugal. O Sr. Primeiro-Ministro afirmou, o que é um facto, que ‘o desenvolvimento a médio prazo da economia portuguesa fica, desde agora, ligado ao processo de integração europeia, ainda que – como ele próprio acrescentou – a integração não vá resolver os problemas imediatos conjunturais.’ Isto significa que devemos repensar não apenas o quadro do nosso desenvolvimento numa perspectiva macroeconómica, mas também sectorialmente em função do mercado alargado que se nos abre, das regras desse mercado e das novas concorrências que despontam.” Intervenção do deputado socialista Rodolfo Crespo. DAR. Nº 8 (31.10.1984) p. 259. 62 “Mas será no trabalho, na organização e na capacidade de adaptação a novas situações concorrenciais que os portugueses terão de encontrar a força necessária para a modernização das estruturas produtivas e, mais importante ainda, para a 59 133 Ora, este fluxo de influência é o contrário do pretenso discurso do PS veiculado desde 1974, relativamente ao futuro da CEE. Modernizar e adaptar Portugal às regras da Europa de que vai institucionalmente fazer parte é, agora, a ordem omnipresente. Esta prioridade é o oposto da intenção inicial. Assim, foi a Europa a influenciar a mudança em Portugal, com os socialistas a renderem-se à necessidade de adaptar as estruturas económicas nacionais às regras europeias de livre mercado, e não o socialismo a influenciar a Europa.  Apesar da realidade governativa, retórica socializante da CEE persiste Mesmo com a realidade governativa do PS a demonstrar o seu deslocamento ao centro, o PS continua com a sua retórica socializante para a Europa. O líder socialista assume este objetivo no congresso de 197663 e o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Medeiros Ferreira (do primeiro governo constitucional, liderado pelos socialistas), reitera-o no governo, considerando a Europa um “espaço privilegiado para a construção do socialismo [...].”64 O PS no governo é suportado pela bancada parlamentar socialista, a clamar também pela concretização de um socialismo europeu65. necessária reforma das mentalidades de que falava António Sérgio.” In “Um dos momentos mais significativos da história contemporânea portuguesa.” Acção Socialista. Nº 341 (13.06.1985) p. 9. 63 SOARES, Mário - Relatório do Secretário-geral, Mário Soares, ao II Congresso Nacional do PS na Legalidade. p. 34. 64 Intervenção do Ministro dos Negócios Estrangeiros, José Medeiros Ferreira. DAR. Nº 21 (11.08.1976) p. 554. 65 O Partido Socialista tem também consciência de que a presença na CEE da jovem democracia portuguesa, orientada no caminho da formação de uma sociedade socialista e democrática, será elemento dinâmico, de importância indiscutível, no impulso para a construção de uma verdadeira Europa dos trabalhadores, em que nós, socialistas, acreditamos e desejamos alcançar o mais breve possível. Intervenção do deputado socialista António Guterres. DAR. Nº 78 (19.02.1977) p. 2615. Intervenções com a mesma ideia continuam a ser feitas até final de 1977, concretamente aquando do pedido de adesão à CEE: “E na medida em que essa medida é possível no interior da CEE, na medida precisamente em que nós pensamos que o socialismo deve ser construído numa unidade económica 134 Este discurso é também uma resposta às críticas de esquerda, do PCP, e uma estratégia de diferenciação do PSD e CDS, que apoiavam igualmente o projeto de adesão à CEE. Porém, esta retórica apazigua-se com a entrada do FMI em Portugal, em 1978, e a necessidade de aplicar mais medidas restritivas e de reestruturação da economia, o que não só desvia o foco de atenções para a situação de emergência no país, como também tornava mais evidente a contradição dos socialistas. Por outro lado, a governar em coligação com o CDS, mesmo apesar de não haver um programa conjunto de governo, o PS tem de se pautar por consensos que viabilizem a aprovação parlamentar de medidas necessárias. A partir de 1979, os socialistas retomam o discurso socializante para a CEE, motivados pelo estatuto de oposição em que ficam e permanecem até 1983. [F]ica-nos um pouco a preocupação de o Governo estar satisfeito com a Europa que temos, e [...] poder estar resignado a uma Europa em que ainda hoje os grandes grupos económicos e as grandes empresas multinacionais impõem, de forma clara, a sua vontade aos parlamentos e aos Governos, afrontando, dessa forma, em tantas e tantas ocasiões relevantes, suficiente para garantir a sua independência, nessa mesma medida, pensamos que a via socialista portuguesa passa pela via europeia para o socialismo e que a nossa integração na CEE tem aí toda a razão de ser.” Intervenção do deputado socialista Rodolfo Crespo. DAR. Nº 79 (25.02.1977) p. 2655. “Nós falamos da Europa e, quando falamos da integração europeia, não prescindimos do nosso projecto socialista [...]. Portanto, a nossa política europeia não é contraditória com a nossa política rumo ao socialismo democrático. [...] [E] para que a Europa seja de facto a Europa dos trabalhadores – é uma forma que adoptamos e que subscrevemos -, é necessário que o nosso movimento sindical e o sindicalismo português não sejam isolacionistas em relação a todo o resto do movimento sindical europeu [...].” Intervenção do Primeiro-ministro Mário Soares. DAR. Nº 87 (18.03.1977) p. 3003, 3004. “[...] [É] no quadro da Europa e em contacto com outros movimentos sindicais europeus que nós podemos caminhar, para que a Europa deixe de ser uma Europa dos trusts, como se diz, e passe a ser a Europa que nós desejamos, que é a Europa dos trabalhadores.” Intervenção do primeiro-ministro Mário Soares. DAR. Nº 88 (19.03.1977) p. 3026. “A Europa do socialismo democrático, que os trabalhadores, os seus partidos e sindicatos estão a construir, a Europa do eurosocialismo, conta em Portugal com o apoio das classes trabalhadoras, com o apoio dos emigrantes portugueses e também com o apoio do Partido Socialista.” Intervenção do deputado socialista Jaime Gama. DAR. Nº 89 (23.03.1977) p. 3043. 135 a vontade democrática expressa pelo voto popular.”66 A propaganda desta ideia está omnipresente no jornal oficial do partido, não só através da intervenção de militantes em artigos de opinião, como também de apelos de socialistas europeus, de preocupações de centrais sindicais, à reprodução de entrevistas a membros socialistas da Comissão Europeia, de intervenções de eurodeputados e de conclusões de congressos da CPSCE67. Já no congresso de 1981, se por um lado se reproduz o chavão da “Europa dos trabalhadores”, por outro alerta-se para o choque económico que o país sofrerá com a integração na CEE68. Facto é que durante todo o período de 1976 a 1985, apesar da contradição da sua experiência governativa, o PS clama por uma futura CEE socialista, justificando assim a sua posição favorável à adesão de Portugal. Estamos perante a conceção da Europa como “uma ideia em permanente evolução”69, ou, como também observa Berta Álvarez-Miranda70, como 66 Intervenção do deputado socialista António Guterres. DAR. Nº 5 (16.01.1980) p. 87. As críticas ao governo da AD - Aliança Democrática (aliança pré-eleitoral formada pelo PSD e pelo CDS) acontecem noutros fóruns, como no encontro com um grupo de eurodeputados socialistas, em que Vítor Constâncio acusa o governo de interpretar mal o princípio da liberdade de estabelecimento da CEE, como meio para abrir todos os setores da economia portuguesa à iniciativa privada. “Reforço do PS nas eleições apressará a adesão à CEE.” Acção Socialista. Nº 94 (11.09.1980) p. 6. 67 “Debate vivo e participado do documento dos anos 80.” Acção Socialista. Nº 15 (08.03.1979) p. 8; CARTAXANA, Rui – “Europa sim- mas que Europa?” Acção Socialista. Nº 20 (12.04.1979) p. 3; “A Europa dos trabalhadores deve ser a meta final da integração na CEE.” Acção Socialista. Nº 70 (27.03.1980) s.p.; “Reforço do PS nas eleições apressará a adesão à CEE.” Acção Socialista. Nº 94 (11.09.1980) p. 6; “Forças políticas e parceiros sociais têm sido marginalizados pelo governo.” Acção Socialista. Nº 206 (04.11.1982) p. 4; “A Comissão pensa – e aí ela será intransigente – que não podemos ser responsáveis por uma política ignorando as consequências sociais dessa política.” Claude Chaysson em entrevista ao jornal L’Unité. In “Comunidade Europeia um gigante económico e um anão político.” Acção Socialista. Nº 115 (05.02.1981) p. 8; “A adesão de Portugal e da Espanha e o alargamento da CEE é um imperativo político urgente para os socialistas europeus.” Acção Socialista. Nº 209 (25.11.1982) p. 10, 11. 68 “Novo rumo para o PS – organizar, descentralizar, recuperar a iniciativa política e social.” Acção Socialista. Nº 120 (13.03.1981) p. 14, 15. 69 SOARES, Mário - A Europa connosco. [...] cit. p. 26, 27. 70 ÁLVAREZ-MIRANDA, Berta - Ob. cit. p. 169. 136 um projeto dinâmico, que permite ao partido justificar a compatibilidade da ideia socialista para Portugal com os preceitos ideológicos do MC. 4. Conclusão: CEE europeiza PS, PS não socializa Europa No final do período das negociações para a adesão de Portugal à CEE, o objetivo socializante do partido para as Comunidades resultou duplamente fracassado: nem a própria Europa (ainda sem os socialistas portugueses de 1974 a 1985) fez qualquer evolução nesse sentido (apesar do fim da era De Gaulle e do prometido relançamento europeu na Cimeira de Haia de 1969, do plano Werner para uma união económica e monetária que passaria pela união política, o máximo que se conseguiu foi a criação de um Sistema Monetário Europeu com cariz monetarista e uma Cooperação Política Europeia com base intergovernamental), nem no âmbito nacional o PS conseguiu implementar uma política socialista que pudesse influenciar a CEE. A intenção socializante do PS para as CE é herdada do período da 71 ditadura , mas é muito impulsionada com a intensificação da retórica marxista no partido, devido ao contexto do período revolucionário da transição democrática. A ambição de criar um partido de esquerda, em alternativa ao PCP na oposição à ditadura de Salazar, levou à definição do PS como partido do socialismo democrático, com inspiração marxista, conforme determinado na declaração de princípios do partido de 1973. Esta orientação permaneceu até aos primeiros anos da transição democrática, já que a estratégia continuava a ser destacar-se do comunismo, mas competir com o PCP. Acresce a isto o facto de no primeiro ano após o 25 de Abril de 1974 71 Antes de o PS ter sido criado, quando ainda os elementos socialistas portugueses estavam organizados como ASP (Ação Socialista Portuguesa) já, pela voz de Mário Soares, revelavam simpatia com a ideia de adesão de um futuro Portugal democrático à CEE, mas clamando pela transformação do projeto de construção europeia sob uma base socialista. Esta intenção fica, aliás, expressa, na declaração de princípios e programa do PS de 1973, aprovadas aquando da sua fundação. PS - Declaração de Princípios e Programa do Partido Socialista. Textos Portugal Socialista, setembro de 1973. p 62, 63. Cf. SEBASTIÃO, Dina – Socialistas Ibéricos e a unidade europeia no pós-guerra: 1946-1974. 137 se ter assistido a uma forte influência do PCP no rumo da transição democrática, o que vai influenciar os outros partidos, como o PS. “A significativa viragem à esquerda da revolução em 1975 enviesou os partidos e o sistema de partidos para a esquerda, pelo menos em termos nominais. Os partidos adoptaram programas, posições ideológicas e até designações que não reflectiam (nem reflectem) a sua verdadeira posição ideológica. [...] O discurso partidário foi igualmente afetado. O PS adoptou um discurso marxista radical durante a revolução, que posteriormente viria a moderar ou até mesmo abandonar.”72 De facto, já durante o exílio, a prática dos socialistas portugueses se aproximava mais da social-democracia europeia. É a estratégia política e a particularidade do contexto histórico nacional que levam Mário Soares a defender para o país o designado “socialismo democrático” – como explicava, uma espécie de experiência socialista inovadora para a Europa do sul, diferente da social-democracia típica do norte. É a partir de 1979 que começa a abandonar a ideia e a reconhecer afinidades com a social-democracia.73 Com a primeira experiência governamental, o PS vê-se perante a incapacidade de implementar o seu programa socialista74, usando um pragmatismo governativo que o distancia da esquerda, mudança que será atestada pelas bases do partido nos congressos de 1979, 1981 e 1983, e incrementada com a última responsabilidade governativa até à adesão (1983-85). 72 JALALI, Carlos - Ob. cit. p. 73, 74. Em entrevista, Mário Soares confessa que apesar de admirar as posições de Willy Brandt, Olof Palm e Pietro Nenni, não estava totalmente rendido. “Nenhuma delas me satisfazia totalmente. Mas apontavam um caminho – uma direção – por onde entendia que Portugal, reconquistada a liberdade perdida, deveria seguir, com os inevitáveis reajustamentos que se impusessem. A tradição portuguesa, desde o século XIX, não era trabalhista nem social-democrata. Por isso, nos reclamávamos do socialismo democrático ou humanista, como dizia León Blum.” In AVILLEZ, Maria João – Soares: ditadura e revolução. Entrevista a Mário Soares. Lisboa: Público, 1996. p. 139, 140. 74 Mário Soares reconhece as críticas por não ter implementado as reformas socialistas enquanto esteve no governo. “Os críticos, segundo ele, não conseguiram compreender que ‘a tarefa prioritária consistia em modernizar a sociedade e o Estado e consolidar o regime democrático’.” SABLOSKY, Juliet Ob. cit. p. 107. 73 138 Ao abandonar conceitos coletivistas e a primazia do planeamento económico estatal e ao começar a privilegiar a iniciativa privada e a competitividade de mercado como impulsionadores do desenvolvimento económico, embora assente numa regulação estatal, o PS regista um deslocamento para a direita. Não são apenas as contingências políticas e económicas do país de então, mas também a iminente entrada de Portugal na CEE - que obriga os governos a fazer uma adaptação económica aos mecanismos do MC - que influenciam esta transformação do partido. Um exemplo disso é a revisão constitucional de 1982, que foi feita com o objetivo de remover as cláusulas socializantes da Constituição de 1976 (elaborada em resultado de opções ideológicas e políticas do período revolucionário), de forma a “diminuir a carga ideológica” do texto constitucional e “flexibilizar o sistema económico”75 prescrito na lei fundamental do país com os princípios comunitários. Deste modo, e apesar de o PS não perder a retórica socializante para a Europa, a sua prática interna contrariou o ideal e ainda sofreu o inverso do pretendido, com as Comunidades a contribuir para moldar a prática socialista portuguesa à sua natureza, i.e., para europeizar o partido. Foi, portanto, a Europa a europeizar o PS e não este a socializar a Europa. Desde modo, também, o PS, apesar de só atuar no sistema político da CEE após 1986, ao contrário dos seus homólogos europeus que já eram estadosmembros, encontra-se perfeitamente em linha com eles, compartilhando da adesão ao processo liberal do MC. Mesmo proveniente de um contexto de oposição a uma ditadura de direita, ultrapassando um processo de transição democrática que imprimiu durante os primeiros tempos uma tendência de esquerda nos partidos, e atuando fora do sistema político comunitário até final de 1985, o PS aproxima-se da tendência dos partidos da socialdemocracia europeia que, a partir de finais dos anos 70, e particularmente a partir dos anos 80, seguem uma tendência neoliberal76. 75 “Revisões Constitucionais.” Parlamento.pt [Em linha]. [Consult. 24.05.2017]. Disponível em WWW: < https://www.parlamento.pt/RevisoesConstitucionais/Paginas/default.aspx >. 76 Como nota Moschonas, se na década de 80 os partidos da social-democracia viam a tendência neoliberal como imposição, na década de 90 passaram a encarála como elemento natural de governação, com as medidas keynesianas reduzidas ao mínimo. MOSCHONAS, Gerassimos – “On the verge of a fresh Start. The 139 Porém, o caso do PS destaca-se de um modelo de competição partidária, definido no âmbito de estudos da ciência política, que relaciona a clivagem esquerda/direita com a de intergovernamentalismo/supranacionalidade. Segundo os mesmos, considera-se que até finais dos anos 80, os partidos de centro/direita eram favoráveis à integração europeia e, portanto, à supranacionalidade, no sentido em que a transferência de competências políticas para o nível supranacional significava desregulamentar os mercados nacionais e liberalizar o mercado europeu, concluindo o projeto através da uniformização europeia de normas e de regras de comércio. Já a partir dos anos 90, com o Tratado de Maastricht e a inclusão na agenda política europeia de propostas de atuação na área social, i.e., da necessidade de complementar o mercado livre com normas sociais, de cidadania e de uma necessidade (re)reguladora do mercado a nível supranacional (para compensar as desregulações nacionais), os partidos de centro/direita opõem-se então à continuidade da integração, enquanto os partidos de centro/esquerda se mostram mais favoráveis à integração, uma vez que ela vai ao encontro das suas matrizes ideológicas, permitindo uma concretização do socialismo a nível europeu77. Porém, ao observarmos o caso do PS, no respeitante ao período em análise, 1975-1985, não verificamos essa suposta oposição à integração. Primeiro porque, desde a primeira hora, o partido manifestou-se a favor da adesão de Portugal ao projeto comunitário e nunca a questionou, porque estava em causa a sobreposição de um objetivo político primordial - consolidar a democracia. Apesar de o partido não se identificar discursivamente com a natureza liberal da CEE, não coloca a adesão em causa por isso. Segundo porque, apesar de retoricamente o partido continuar a apresentar um objetivo socializante para a CEE, na realidade ele vai incorporar great ideological and programmatic change in contemporary social democracy.” In DELWIT, Pascal – Social Democracy in Europe. (Trad. Eng). Bruxelles: Edition de l’Université de Bruxelles, 2005. p. 36 [Em linha]. [Consult. 03.12.2016]. Disponível em WWW: < http://digistore.bib.ulb.ac.be/2013/i9782800413419_000_f.pdf >. 77 STEENBERGEN, Marco R., MARKS, Gary – “Introduction: models of political conflict in the European Union.” In MARKS, Gary, STEENBERGEN, Marco R. (ed.) – European Integration and Political Conflict. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 9, 10. 140 mudanças ideológicas nas suas bases (constatadas nas declarações de princípios aprovadas em congressos) e uma prática governativa tendente à liberalização da economia, revelando uma aceitação pragmática dos preceitos ideológicos do projeto comunitário. Assim, e concluindo, nesta fase de aprofundamento liberal da CEE, em que observamos um PS a iniciar a democracia portuguesa sujeito a uma declaração de princípios de inspiração marxista, e que continua com uma retórica socialista para a Europa, constatamos a prática política de um partido que não se rege pela coerência ideológica. Isto leva também a concluir que é difícil aplicar modelos padronizados para o posicionamento dos partidos da mesma família política face à CEE/UE, como também conclui Simon Hix78. Apesar do racionalismo ideológico destes modelos, e da sua utilidade como quadros teóricos de avaliação dos comportamentos partidários, a herança histórica e a particularidade dos contextos nacionais acabam por moldar as perspetivas e orientações dos atores políticos79. Daí que 78 O autor considera não haver uma relação entre as clivagens esquerda/direita e a de intergovernamentalidade/supranacionalidade. Cf. HIX, Simon, HOYLAND, Bjorn – The Political System of the European Union, 3rd ed. Basingstoke: Palgrave Maccmillan, 2011. p. 138-141. 79 Note-se que, por um lado, os contextos nacionais atuam na diferenciação dos partidos dentro da mesma família política. Por exemplo, Daniel Seiler identifica, com base na teoria das clivagens de Rokkan, só na Europa ocidental, oito famílias correspondentes às quatro tipificações de clivagens partidárias, mas ressalva que elas não se repartem igualmente por todos os países, registando-se diferenças nacionais. E dá como exemplo que a esquerda no Reino Unido, Dinamarca ou Suécia é diferente da de Portugal, França ou Espanha, pertencentes à Europa latina, de cultura católica romana. Cf. SEILER, Daniel - Les Partis Politiques en Europe. Paris: Presses Universitaires de France, 1996. p. 11-90 ; SEILER, Daniel L. - L’Europe des Partis: paradoxes, contradiction et antinomies. [Em linha]. WP. Barcelona: Institut de Ciències Polítiques i Socials, 2006, nº 251. p. 4-10. [Consult. 31.01.2016]. http://www.icps.cat/archivos/WorkingPaDisponível em WWW < pers/wp251.pdf?noga=1 >. John Gaffney também chama atenção para o diferencial do contexto nacional, sendo que, por exemplo, o SPD alemão e o PSOE apesar de serem da mesma família política, a dos sociais-democratas, assumem muitos posicionamentos diferentes. GAFFNEY, John - Political Parties and the European Union. London: Routledge, 1996. p. 4. 141 alguns autores, como Featherstone e Ladrech80, alertem para a necessidade de conhecer o contexto nacional para compreender o posicionamento partidário face à UE. No caso português, não resta dúvida de que o simbolismo democrático da CEE se sobrepôs à desvantagem económica e à sua natureza liberal, considerando-se mesmo a nível económico que a integração permitiria superar o modelo autárcico do regime anterior. O facto de o Estado novo estar associado ao isolamento, à pobreza, regressão económica e social, levou Portugal, o PS a abraçar incondicionalmente a CEE, mesmo caindo na incoerência ideológica. Justifica esse desfasamento encarando a CEE como modelo dinâmico, a ser transformado pelo socialismo, mas o facto é que a sua prática política e a evolução das bases partidárias compartilham de um modelo mais liberal de economia do que o inicialmente preconizado. Documentação DAR – Diário da República Nº 17 (03.08.1976), Nº 21 (11.08.1976), Nº 78 (19.02.1977), Nº 79 (25.02.1977), Nº 79 (25.02.1977), Nº 88 (19.03.1977), Nº 38 (22.02.1978), Nº 87 (18.03.1977), Nº 88 (19.03.1977), Nº 89 (23.03.1977), Nº 84 (08.06.1978), Nº 85 (09.06.1978), Nº 6 (21.06.1983), Nº 8 (31.10.1984), Nº 5 (16.01.1980), Nº 94 (11.09.1980), Nº 64 (29.03.1985), Nº 69 (12.04.1985), Nº 106 (11.07.1985). Acção Socialista (Jornal) Nº 8 (18.01.1979) , Nº 12 (15.02.1979) , Nº 14 (01.03.1979), Nº 15 (08.03.1979), Nº 20 (12.04.1979) , Nº 70 (27.03.1980) , Nº 94 (11.09.1980), Nº 115 (05.02.1981), Nº 120 (13.03.1981), Nº 172 (11.03.1982), Nº 206 FEATHERSTONE, Kevin – Socialist Parties and European Integration: a comparative history. Oxford: Manchester University Press, 1988. p. 302-306; LADRECH, Robert - Social Democracy and the Challenge of the European Union. London: Lynne Rienner Publishers, 2000. p. 140, 141. 80 142 (04.11.1982), Nº 209 (25.11.1982) , Nº 254 (06.10.1983) , Nº 341 (13.06.1985). “Na hora da verdade.” Comunicação feita ao país pelo Primeiro-ministro Dr. Mário Soares. Secretaria de Estado da Comunicação Social. 1976. “Programa do I Governo Constitucional.” [Em linha]. [Consult. 25.05.2017]. Disponível em WWW: < http://www.portugal.gov.pt/media/464012/GC01.pdf >. “Programa do II Governo Constitucional.” [Em linha]. [Consult. 25.05.2017]. Disponível em WWW: < http://www.portugal.gov.pt/media/464015/GC02.pdf >. “Programa do IX Governo Constitucional.” [Em linha]. [Consult. 23.05.2017). Disponível em WWW: < http://www.portugal.gov.pt/media/464033/GC09.pdf >. PS - Declaração de Princípios e Programa do Partido Socialista. Textos Portugal Socialista, setembro de 1973. PS - “Alguns pontos do programa.” Centro de Documentação do Partido Socialista. 1975. PS - “Programa para um governo PS.” Edição do Centro de Documentação do Partido Socialista (CTE/76), 1976. “Revisões Constitucionais.” Parlamento.pt [Em linha]. [Consult. 24.05.2017]. Disponível em WWW: < https://www.parlamento.pt/RevisoesConstitucionais/Paginas/default.aspx >. SOARES, MÁRIO - A Europa Connosco. Dois discursos na cimeira socialista do Porto. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1976. 143 SOARES, Mário - Relatório do Secretário-geral, Mário Soares, ao II Congresso Nacional na legalidade. Lisboa: Editorial Império, 1977. Bibliografia ÁLVAREZ-MIRANDA, Berta – El Sur de Europa y la adhesión a la Comunidad. Los Debates Políticos. Madrid: Siglo XXI de España Editores S.A., 1996. ISBN: 84-7476-231-6. AVILLEZ, Maria João – Soares: ditadura e revolução. Entrevista a Mário Soares. Lisboa: Público, 1996. ISBN: 972-8179-11-1. AVILLEZ, Maria João – Soares: democracia. Lisboa: Público, 1996. ISBN: 972-42-1458-3 BARROSO, Durão – Le système politique portugais face a l’intégration européenne. Partis politiques et opinion publique. Lisboa: Associação Portuguesa para o Estudo das Relações Internacionais, 1983. S/ISBN. CASTAÑO, David – Mário Soares e a Revolução. Alfragide: D. Quixote, 2013. ISBN: 978-972-20-4971-9. CRAVINHO, João – “Characteristics and motives for entry”. In SAMPEDRO, José Luís; PAYNO, Juan Antonio (ed.) - The Enlargement of the European Community: case studies of Greece, Portugal and Spain. London: The Macmillan Press Ltd, 1983. ISBN: 0 333 34464 2. FEATHERSTONE, Kevin – Socialist Parties and European Integration: a comparative history. Oxford: Manchester University Press, 1988. ISBN: 0-71902673-3. GAFFNEY, John - Political Parties and the European Union. London: Routledge, 1996. ISBN: 0-415-09059-8. 144 HIX, Simon, HOYLAND, Bjorn – The Political System of the European Union, 3rd ed. Basingstoke: Palgrave Maccmillan, 2011. ISBN: 0-333-71695-7. JALALI, Carlos – Partidos e Democracia em Portugal. Lisboa: Imprensa das Ciências Sociais, 2007. ISBN: 9789726712077 LADRECH, Robert - Social Democracy and the Challenge of the European Union. London: Lynne Rienner Publishers, 2000. ISBN: 1-55587-902-0. LISI, Marcos - Os partidos políticos em Portugal. Continuidade e transformação. Coimbra: Almedina, 2011. ISBN: 9789724045955 MOSCHONAS, Gerassimos – “On the verge of a fresh Start. The great ideological and programmatic change in contemporary social democracy.” In DELWIT, Pascal – Social Democracy in Europe. (Trad. Eng). Bruxelles: Edition de l’Université de Bruxelles, 2005. p. 35-48. [Em linha]. [Consult. 03.12.2016]. Disponível em WWW: < http://digistore.bib.ulb.ac.be/2013/i9782800413419_000_f.pdf >. ISBN: 2-80041341-7. NOSTY, B. Diaz – Mário Soares, o chanceler. Lisboa: Liber (1975). S/ISBN. PINTO, António Costa, TEIXEIRA, Nuno Severiano – “Portugal e a integração europeia, 1945-1986.” In PINTO, António Costa, TEIXEIRA, Nuno Severiano (org.) – A Europa do Sul e a construção da União Europeia: 1945-2000. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005. ISBN: 972671155X. ROLLO, Maria Fernanda, AMARAL, João Ferreira do, BRITO, José Maria Brandão de – Portugal e a Europa. Cronologia. Lisboa: Edições Tinta da China, 2011. ISBN: 978-989-671-090-3. ROLLO, Fernanda – Portugal e a reconstrução económica do pós-guerra: O Plano Marshall e a economia portuguesa nos anos 50. Lisboa: Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2007. ISBN: 9789898140005. 145 SABLOSKY, Juliet Antunes – O OS e a transição para a democracia. Lisboa: Editorial Notícias, 2000. ISBN: 972-46-1134-5. SEBASTIÃO, Dina – Socialistas Ibéricos e a unidade europeia no pósguerra: 1946-1974. [Em linha]. Revista Portuguesa de História. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, ISSN: 0870-4147. 2014, T XVL. p. 325-355. [Consult. 15.05.2017] Disponível em WWW: < http://dx.doi.org/10.14195/0870-4147_45_14 >. SEILER, Daniel - Les Partis Politiques en Europe. Paris: Presses Universitaires de France, 1996. ISBN : 2130473180. SEILER, Daniel L. - L’Europe des Partis: paradoxes, contradiction et antinomies. [Em linha]. WP. Barcelona: Institut de Ciències Polítiques i Socials, ISSN: 1133-8962, 2006, nº 251. P. 1-57. [Consult. 31.01.2016]. Disponível em WWW < http://www.icps.cat/archivos/WorkingPapers/wp251.pdf?noga=1 >. SILVA, António M. da – Portugal entre a Europa e o Além Mar. Do plano Briand na SDN (1929) ao Acordo Comercial com a CEE (1973). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2000. ISBN: 9728318871. SOARES, Mário – Um político assume-se. Ensaio autobiográfico, político e ideológico. Lisboa: Temas e Debates, 2011. ISBN: 978-989-644-146-3. SOUSA, Teresa - Os Grandes Líderes, Mário Soares. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1988. S/ISBN. STEENBERGEN, Marco R., MARKS, Gary – “Introduction: models of political conflict in the European Union.” In MARKS, Gary, STEENBERGEN, Marco R. (ed.) – European Integration and Political Conflict. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p.1-12. ISBN: 13-978-0521-53505-2. TEIXEIRA, Nuno Severiano – La politique extérieure de la démocratie portugaise. Pôle Sud. Paris: Cairn.info, ISNN: 1262-1676, Nº 22 (2005/1). p. 63-74. 146 TELO, António José – História Contemporânea de Portugal. Do 25 de Abril à Atualidade. Vol. I. Lisboa: Editorial Presença, 2007. ISBN: 978-972-233720-5. 147 O FEDERALISMO EUROPEU NA PERSPECTIVA DOS GOVERNOS DE CAVACO SILVA E ANTÓNIO GUTERRES Paulo Carvalho Vicente Resumo: O federalismo é um tema que fomenta muita discussão e quando equacionado como um modelo político final para a Europa suscita amplo debate entre as elites e opiniões públicas. O federalismo europeu é matéria pouco consensual na Europa. Neste artigo começamos por discutir o carácter específico do federalismo para avançarmos no federalismo europeu até nos determos nas posições assumidas pelos governos de Cavaco Silva (1985-1995) e António Guterres (1995-2002) relativamente aos projectos de integração política em curso, de inspiração federal. No contexto do alargamento e de reforço do papel das instituições interessa averiguar o grau de compromisso dos governos portugueses. Palavras-chave: Federalismo; União Europeia; Portugal; Instituições Políticas; Alargamento. Abstract: Federalism is a topic that instigates a lot of discussion and when projected as a final political model for Europe it evokes a broad debate between elites and public opinions. European federalism is a less consensual matter in Europe. In this article we start by arguing the specific character of federalism to move forward in the European federalism until we focus on the assumed positions of the governments of Cavaco Silva (1985-1995) and António Guterres (1995-2002) regarding the ongoing political integration projects of federal inspiration. In the context of the enlargement and strengthening of the institution's role it's worth finding out the degree of commitment of the Portuguese governments. 149 Keywords: Federalism; European Union; Portugal; Political Institutions; Enlargement. Résumé: Fédéralisme est un thème qui favorise beaucoup de discussions et quand assimilée comme modèle politique finale pour l'Europe évoque un débat entre les elites et les opinions publiques. Le fédéralisme européen est peu question de consensus en Europe. Dans cet article, nous commençons par discuter la spécificité du fédéralisme pour avancer dans le fédéralisme européen, et en particulier dans les positions pris par les gouvernements de Cavaco Silva (1985-1995) et António Guterres (19952002) par rapport à la politique d'intégration des projets d'inspiration fédérale. Dans le contexte d'élargissement et le renforcement du rôle des institutions il est pertinent de déterminer le degré d'engagement des gouvernements portugais. Mots-clés: Fédéralisme; Union européenne; Portugal; Institutions politiques; Élargissement. 150 A análise do impacto do federalismo na construção europeia suscitou sempre reacções extremadas, uma vez que, e não raras vezes, a sua discussão se fez de um modo mais apaixonado do que rigoroso, imparcial ou científico. É redutor pensar numa futura federação europeia e de como esta poderá resultar na solução para os tremendos desafios que a União Europeia (UE) enfrenta na hora presente. Mais do que a forma do sistema político da UE importará antes verificar como o federalismo tem vindo a adquirir expressão política nos momentos de revisão dos tratados, nas políticas comuns em marcha ou nos posicionamentos dos líderes que muitas vezes não encontram assentimento nos demais actores e opiniões públicas. Neste artigo começamos por enunciar o significado político do federalismo para nos concentrarmos adiante no período de 1985 a 2002, correspondente aos anos de Cavaco Silva e António Guterres como chefes de governo, numa conjuntura de aceleração do processo de integração europeia e de reformas institucionais que visavam adaptar a UE às transformações geopolíticas em curso. Do federalismo ao federalismo europeu De um modo geral, o federalismo envolve a ligação dos indivíduos, grupos e entidades políticas em união última e limitada de maneira a promover a busca enérgica dos fins comuns enquanto que mantém as integridades respectivas de todos os partidos. Como princípio político, o federalismo tem a ver com a difusão constitucional do poder de tal forma que os elementos constituintes num arranjo constitucional partilham os processos políticos e administração comuns por direito enquanto que as actividades do governo comum são conduzidas de modo a manter as suas integridades respectivas. Os sistemas federais fazem isto pela distribuição constitucional de poder pelos corpos gerais e constituintes, cujo desenho tem por finalidade a protecção da existência e autoridade de todos. Num sistema federal, as políticas básicas são elaboradas e implementadas através da negociação de modo a que todos as possam partilhar nos processos de elaboração e execução de decisão no sistema. O ethos do federalismo não é para ser encontrado num número 151 particular de instituições, mas na institucionalização de relações particulares dos participantes na vida política. Com efeito, o federalismo é um fenómeno que concede muitas opções para a organização da autoridade política e poder. À medida que as próprias relações são criadas, uma variedade ampla de estruturas políticas podem ser desenvolvidas que são consistentes com princípios federais. A grande força do federalismo (incluindo a ideia federal e as estruturas e processos que derivam daí) assenta na sua flexibilidade (ou capacidade de adaptação), mas tal torna o federalismo de difícil discussão num plano teórico. Mesmo o argumento que o federalismo é particularmente flexível vai contra muita da discussão convencional sobre o assunto, o qual, numa compreensão jurídica do federalismo, enfatiza frequentemente divisões rígidas do poder. Apesar de determinados sistemas federais serem inflexíveis, o princípio federal tem sido empregue com sucesso de formas muito diferentes, sob várias circunstâncias, justificando facilmente a reivindicação da flexibilidade mesmo que pareça complicar a construção da teoria. A flexibilidade joga com a ambiguidade, a qual tem grandes vantagens operacionais mesmo criando severos problemas teoréticos1. Uma das característica do federalismo é o de gerar e manter quer a unidade quer a diversidade2. A diversidade é manifestada através da nacionalidade ou factores étnicos, religiosos, ideológicos, sociais e de interesses que podem ou não adquirir expressão política. Unidades consolidadas procuraram despolitizar ou limitar cuidadosamente os efeitos políticos da diversidade, relegando manifestações de diversidade para outras esferas. A unidade federal, por outro lado, não é somente confortável com a expressão política da diversidade, mas é desde as suas origens um meio para acomodar a diversidade como um elemento legítimo na entidade política. Assim, as entidades políticas consolidadas podem ser diversas, mas a diversidade não é considerada desejável per se, mesmo que a realidade exija a sua reconciliação no corpo político. A questão mantém-se 1ELAZAR, Daniel J. - Exploring Federalism. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 2006, p.38. ISBN: 0-8173-0575-0. 2KYMLICKA, Will – Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority-Rights. Oxford: Clarendon, 1995. ISBN: 0198290918. 152 em aberto sobre que novos tipos ou combinações de diversidade são compatíveis com a unidade federal e quais não são3. Os princípios federais estão preocupados com a combinação de selfrule e shared rule, isto é, a combinação de uma esfera de auto-governo com uma outra esfera de actuação conjunta, ou partilhada, com os restantes componentes do sistema federal. Daí que a questão da determinação das competências de actuação, para cada um dos níveis de intervenção, a chamada repartição vertical de competências, constituir uma questão vital nos sistemas de moldura federal4. A federação é erigida numa ordem pluralística que se constrói a si própria de baixo para cima erguendo os seus laços de autoridade e o processo de decisão política de acordo com o princípio de subsidiariedade. É o reverso do Estado centralizado; é o Estado baseado na dispersão territorial e funcional do poder com centralização limitada. A federação, neste sentido, constitui a única forma do Estado que pode logicamente satisfazer as exigências da ordem social. Se a subsidiariedade se aplica a toda a ordem social, o princípio federal da divisão de poderes e competências entre diferentes níveis de autoridade é o seu complemento lógico. Na encíclica papal Pacem in Terris, de 1963, o conceito de subsidiariedade alcança expressão global e é elevado ao debate das relações internacionais e ordem mundial5. O caso americano constitui um exemplo acabado da disputa dos vários contributos modernos da ideia federal. Com efeito, as tentativas sucedâneas de implementação de sistemas federais num qualquer Estado ou agrupamento humano têm por referência o exemplo americano, de onde a União Europeia igualmente se inspira. Nos artigos da confederação (1781) pode destacar-se a presença de três traços dominantes do federalismo pré-Filadélfia: a federação é 3RIKER; William H. - European Federalism. The Lessons of Past Experience. In HESSE, Joachim Jens; WRIGHT, Vincent (eds.) - Federalizing Europe? The costs, benefits, and preconditions of federal political systems. New York: Oxford University Press, 2000, pp. 9-24. ISBN: 0198279922. 4ELAZAR, Daniel J. (ed.) - Constitutional Design and Power-Sharing in the Post-Modern Epoch. New York: Lanham, 1991, p.XII. ISBN: 0819180955. 5BURGESS, Michael – Federalism and European Union. The Building of Europe, 19502000. London: Routledge, 2000, pp. 228-229. ISBN: 0-415-22647-3. 153 constituída por um corpo político central que não governa sobre cidadãos, mas sobre Estados-membros; o corpo central não trata de assuntos domésticos que dizem respeito aos cidadãos individuais (isso é um assunto interno dos Estados-membros). Limita-se a tratar de uma série limitada de assuntos externos e de interesse comum; cada Estado-membro tem direito a um voto, independentemente da sua população. O princípio básico é o da igualdade das soberanias6. É na natureza dual da Constituição norte-americana que reside a grande novidade: ela é, por um lado, republicana quanto à organização em departamentos distintos do sistema de governo; e, por outro, federal no que respeita à fragmentação pelo espaço geográfico dos diversos dispositivos e competências governamentais. Isto é, o republicanismo federal permitia, através da “república alargada” (extended republic), combater o risco da “tirania da maioria”, ao passo que o dispositivo da república composta (compound republic) tornava muito distante a ameaça de uma “tirania governamental” (governmental tyranny). A tentação da hegemonia quebra-se contra as protecções essenciais garantidas pela dupla cidadania, pela Constituição comum e pela soberania partilhada, ou seja, pelo facto de o sistema de poder das Uniões federais em qualquer circunstância poder abolir a esfera constitucional onde os Estados conservam todas as suas prerrogativas intocáveis. É o cidadão que se assume, em ambos os planos, como o guardião da ordem federal no seu conjunto. O destino da espécie humana, o desígnio da Natureza e o imperativo da razão têm o seu esplendor, de acordo com Kant, na realização de uma ordem jurídica e política de que constam três elementos organicamente interligados: a instituição de uma sociedade civil segundo princípios do direito e da liberdade sob leis comuns (o direito civil como base de cada Estado individualmente considerado), o que para Kant só pode ser realizado no contexto de uma constituição e regime republicanos; a constituição de uma ordem jurídica e política entre os vários Estados que impeça o risco permanente de mútua destruição em que se encontram – o 6SOROMENHO-MRQUES, Viriato – A Revolução Federal. Filosofia política e debate constitucional na fundação dos EUA. Lisboa: Edições Colibri, 2002, pp. 40-41. ISBN: 972-772-287-3. 154 direito das gentes (é aqui que se inscreve a ideia kantiana do federalismo); e a instituição de uma ordem jurídica cosmopolita segundo a qual todos os homens são considerados como cidadãos do mundo, independentemente do Estado a que pertençam. Em Para a paz perpétua (1795) de Kant estão implicados três programas: o programa republicano no interior de cada Estado; o programa federalista na relação entre Estados; e o programa cosmopolita na relação de todos os Estados com os cidadãos de qualquer Estado. Para o filósofo de Königsberg, republicanismo, federalismo e cosmopolitismo não só são aspectos de um mesmo projecto, como cada um depende de todos os outros. Os três devem ser postos em andamento ao mesmo tempo, num esforço de contínuo aperfeiçoamento. A recíproca dependência é orgânica e estrutural, e não mecânica ou temporal7. As grandes e novas forças transnacionais que se afirmam desde a Segunda Guerra Mundial são os blocos de poder regionais, corporações económicas transnacionais e outros fortes movimentos da população. É necessário criar um projecto de mobilização das vontades, sem mistificar as consequências. Esta observação é válida quer para a formação de um Estado social europeu quer para um regime político europeu. Para Teixeira Fernandes, o modelo a que chegará a Europa poderá determinar-se sob uma forma a encontrar entre a confederação de Estados e o Estado federal, como federalismo intergovernamental de Estados-Nação8. A CEE constituída em 1957 assumia-se mais como uma «confederação económica». O contexto federal da CEE sugeria que era primeiramente uma confederação económica, mas uma com características institucionais significativas que normalmente definem as confederações clássicas: a união política de Estados preocupada essencialmente com a defesa e a segurança. Até à ratificação do Acto Único Europeu, em 1987, a CEE manteve a sua identidade de cooperação económica. O COREPER manteve uma continuidade política real e, protegendo os interesses nacionais estabelecidos, reforçou o que se poderia chamar de «prática KANT, Immanuel – A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990. ISBN: 9789724415154. 8FERNANDES, António Teixeira – Nacionalismo e Federalismo em Portugal. Porto: Edições Afrontamento, 2008, p. 274. ISBN: 9789723609417. 7Cf. 155 confederal». O Tribunal de Justiça Europeu estava completamente absorvido pela lógica de um sistema confederal9. Todavia, a posição especial ocupada pela Comissão na estrutura institucional da CEE, a emergente base fiscal da União, as implicações das eleições directas do Parlamento Europeu (PE) e o carácter incerto do Conselho de Ministros combinaram seriamente para obscurecer o status da Comunidade como uma confederação económica. Estas características institucionais serviriam para contaminar a natureza confederal da CEE. Olhando de uma maneira diferente – a dos federalistas contemporâneos – a CEE também exibe elementos federais emergentes. De modo paralelo, mas não idêntica à posição de Alexander Hamilton em O Federalista, o objectivo dos federalistas consistia no fortalecimento das instituições políticas centrais da construção europeia10. O Tribunal de Justiça Europeu assume um carácter federal na sua capacidade judicial como vigilante de leis que eram supremas face às leis nacionais dos Estados-membros e ligadas aos seus cidadãos. O Parlamento Europeu assenta também numa categoria federal. O PE podia também reclamar que existia um povo europeu. A questão do povo europeu na construção europeia era, e permanece, conceptualmente problemática. Mas a ligação política crucial entre o indivíduo como um cidadão do Estado nacional e, simultaneamente, como um cidadão da UE foi formalmente estabelecida. Para os federalistas, isto era o que realmente importava. Richard Bellamy e Dario Castiglione apontam a União Europeia como o exemplo primário do “regresso” do modelo de império federal. A sua constitucionalização através da jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu, a aparente dispersão da soberania em resultado das competências sobrepostas aos níveis nacional e europeu e a natureza ambígua dos tratados que fizeram emergir a Comunidade e a União são factores que produziram uma complexa entidade política com uma estrutura elaborada 9BURGESS, Michael – Federalism and European Union. The Building of Europe, 19502000, p. 262. 10PINDER, John – European Community and nation state: a case for a neofederalism? International Affairs. 62 (January 1986), p. 53. DOI: 10.2307/2618066. Sobre o sistema político da União Europeia vide HIX, Simon – The Political System of the European Union, 2nd edition. London: Palgrave Macmillan, 2005. ISBN: 0333-96182-X. 156 de poderes legais e administrativos sem uma hierarquia e uma autoridade efectiva perante as quais todos os outros poderes são responsáveis. Mas os cosmopolitas defendem que a dissolução da soberania nacional em termos normativos reflecte desenvolvimentos pós-nacionais, em vez de progressos supranacionais. Não é somente a globalização e a diferenciação social que fazem a diferença. Os cosmopolitas observam estes processos como capazes de produzir as oportunidades, em vez das razões, para a rejeição do valor moral das ligações comunitárias. A crise do Estado-nação fez despoletar um grande número de outras questões nas quais os cosmopolitas contestam as concepções tradicionais da soberania legal e política11. Para Burgess, a UE procura atingir um patamar maior de acomodação imaginativa e flexível numa organização de interesses locais, regionais, nacionais, supranacionais e internacionais que os EUA. Enquanto um modelo de integração política e económica, o seu impulso tem sido posto em xeque, é menos centralizada e as suas características estatais são contrabalançadas por fontes rivais de autoridade política e legitimidade. Daniel Elazar constrói a UE como fazendo parte de uma rede vasta e em expansão de diferentes tipos de organizações federais. Isto inclui federações, Estados associados e áreas regionais de comércio livre, bem como novas confederações e a sua variedade reflecte muitas dimensões da mudança de paradigma12. A análise do que é e como evoluiu a UE, de acordo com Paulo Vila Maior, fornece dados de que os passos iniciais do confederalismo já estão ultrapassados, substituídos por elementos do federalismo; o federalismo cooperativo e o federalismo regulatório menosprezam uma importante dimensão do federalismo existente na UE, designadamente, os elementos de descentralização, um dos eixos da peculiaridade do federalismo europeu. Esclarecendo que é errado presumir que o produto do processo de federalização encetado na UE tem de ter o seu epílogo numa entidade Richard; CASTIGLIONE, Dario – Building the Union: The Nature of Sovereignty in the Political Architecture of Europe. In KARMIS, Dimitrios; NORMAN, Wayne (eds.) - Theories of Federalism. A Reader. New York: Palgrave Macmillan, 2005, pp. 298-299. ISBN: 0-312-29581-2. 12BURGESS, Michael – Federalism and European Union..., p. 43. 11BELLAMY, 157 semelhante a um Estado, o que ao aceitá-la entra em contradição com a especificidade da UE, a categoria que melhor se encaixa com o actual estádio de desenvolvimento da integração europeia é a de uma federação desprovida de Estado. Tal categoria contém elementos importantes que não podem ser marginalizados, mais concretamente a rejeição da dimensão estadual da UE, apontando numa direcção diferente, continuando a ter sempre em conta os elementos de especificidade que fazem da UE uma entidade diferente – uma federação de Estados, não um Estado federal13. No rescaldo da assinatura do Tratado de Maastricht, Maurice Duverger entendia que para a moeda comum, bem como para a segurança, a soberania dos Estados só colectivamente pode ser eficaz, através de órgãos de gestão baseados num neofederalismo original. Salvaguardando as proporções e o devido contexto, considerava que o Banco Central Europeu que vai gerir a moeda única é um pouco parecido com a Alta Autoridade14. Lamentava ainda que o PE não podia agir de modo contundente nos domínios de política interna, da justiça, da segurança e das relações internacionais, que dependem exclusivamente da cooperação. A lógica do neofederalismo comunitário, no entanto, exigiria que os membros de uma segunda câmara (Câmara de Estados) votassem por Estados, assentando assim a adopção de textos na conjugação de uma dupla maioria, à semelhança do que se passa no Conselho: a maioria de Estados e da população da União. Para Maurice Duverger, o Estado federal europeu não passa de um mito, de um monstro. Excepto, talvez, no inconsciente de pequenos países, que desejariam ver estilhaçar em pedaços igualmente pequenos as grandes potências cuja superioridade suportam mal. Para o politólogo francês, já é tempo de perceber que a refrega entre federalistas e confederalistas, entre partidários da supranacionalidade e partidários da cooperação, entre integracionistas e unionistas, só tem sentido se estiver relacionada com a organização empírica de cada sector específico da União Europeia15. MAIOR, Paulo – O Dédalo da União Europeia: entre integração e desintegração. Porto: Edições da Universidade Fernando Pessoa, 2007, pp. 58-59. ISBN: 978972-8830-83-0. 14DUVERGER, Maurice – Europa – o Estado da União. Lisboa: Editorial Notícias, 1996, p. 61. ISBN: 9789724607467. 15DUVERGER, Maurice – Europa – o Estado da União..., pp. 44-45. 13VILA 158 Os governos de Cavaco Silva e a aceleração da integração europeia O Acto Único Europeu entrou em vigor em Julho de 1987. É no fortalecimento do poder de decisão que podemos encontrar o traço decisivo do Acto Único, a sua preocupação com a realização da coesão institucional na Comunidade. Essa preocupação é manifesta, desde logo, nos passos dados no sentido de revalorizar a posição do Parlamento Europeu na vida da Comunidade. Por um lado, através da atribuição que lhe é feita de um verdadeiro poder de co-decisão em dois importantes, ainda que escassos, aspectos da vida comunitária: os da adesão e associação de novos Estados à Comunidade (artigos 8.º e 9.º do Acto Único). Por outro lado, através da institucionalização da sua participação no processo comunitário de decisão, lograda pelo mecanismo de cooperação com o Parlamento Europeu, este órgão ver ser reconhecida uma diversa e mais forte eficácia às posições que emita sobre os diversos actos normativos que careçam de ser aprovados por aquele processo – e que são previstos no artigo 6.º do Acto Único. De acordo com Moura Ramos, «qualquer uma destas vias concorre pois para acentuar o relevo da única instância comunitária directamente tributária da representação dos cidadãos europeus – o que não deixa de contribuir para o revigoramento do sistema institucional respectivo16». O mesmo alcance, de reforço do poder de direcção, tem o crescente recurso à maioria qualificada como forma de votação no seio do Conselho, forma esta cuja promoção é quase sempre feita – apenas com exclusão de uma hipótese: a do artigo 49.º, em que o mecanismo precedente era o de maioria simples – à custa da regra da unanimidade; a maior facilidade com que é possível assim obter decisões no seio do Conselho traduz uma preocupação de dinamizar a sua acção e de conseguir que ele seja em menor medida presa das contradições de interesses nacionais que por vezes embaraçam a sua acção. A estas reformas acresce a inovação principal que é justamente a cooperação política que, sem fazer parte da Comunidade Europeia, é justamente e ligada a ela pelas pontes que são o Conselho Europeu e o Rui Manuel Moura – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 191. 16RAMOS, 159 Conselho, bem como, de uma forma menos aparente, mas real, a Comissão, sem omitir o Parlamento Europeu17. O Conselho Europeu impõe-se como uma instituição central que orienta as actividades da Comunidade e afirma o seu papel fundamental no quadro da cooperação política, a avaliar pelos capítulos de actividade importante em que o Conselho Europeu não tenha assumido um papel decisivo. O Acto Único coloca os marcos institucionalizados da união política. Cavaco Silva mostra-se um defensor do mercado interno e dos seus efeitos, tendo sempre em consideração as futuras consequências para um país pequeno como Portugal. É por isso que sucessivamente regressa a este tema, como no Conselho Europeu de Londres, de Dezembro de 1986, ao salientar a importância da coesão económica e social. Cavaco Silva escreve: «Defendi o mercado interno como instrumento da expansão económica europeia e do combate ao desemprego, mas acrescentei que a sua realização sem sobressaltos requeria uma forte coesão política e uma convicção europeia de todos os estados membros, o que não era compatível com grandes disparidades de desenvolvimento entre as regiões. Para fazer da Europa um espaço de desenvolvimento e criação de emprego – tal como os Estados Unidos da América e o Japão – a Comunidade deve assumir o compromisso firme de realizar o mercado interno e avançar em paralelo na coesão económica e social18». Na frente política, o primeiro-ministro identifica a posição portuguesa relativamente ao futuro diálogo institucional, pois entende que o reforço dos poderes do PE não pode despojar a influência do Conselho: «Aceitamos como primeiro aspecto do aprofundamento da dimensão política a consolidação da legitimidade democrática, o que tem sido muitas vezes abordado na óptica do reforço dos poderes do Parlamento Europeu. Se porém, tal se concretizasse em prejuízo do Conselho, não poderia merecer o nosso acordo. Pois não será o Dusan – O Futuro Federalista da Europa. A Comunidade Europeia. Das Origens ao Tratado de Maastricht. Lisboa: Gradiva, 1996, p. 120. ISBN: 9789726624172. 18SILVA, Aníbal Cavaco – Autobiografia Política, vol.1 («O percurso até à maioria absoluta e a primeira fase da coabitação»), 3.ª edição. Lisboa: Temas e Debates, 2002, p. 179. ISBN: 9789727594894. 17SIDJANSKI, 160 Conselho a instituição comunitária onde se reúnem os representantes nacionais democraticamente eleitos e mais estritamente responsáveis perante o eleitorado? Não será o Conselho o órgão de decisão onde os pequenos países melhor defendem os seus interesses? Consideramos que a transferência de poderes dos Estados para a Comunidade não deve resultar no enfraquecimento do controlo democrático, mas não nos parece que tal possa ser conseguido diminuindo o papel do Conselho. O reforço do controlo democrático poderá conduzir a um maior envolvimento dos Parlamentos de cada um dos Estados membros na fiscalização do processo democrático da Comunidade, evolução que nos parece desejável e positiva. O segundo aspecto da união política prende-se com a eficiência e a eficácia da Comunidade e das suas instituições. Reconhecemos que há necessidade de uma maior operacionalidade das instituições e de garantir a sua adequada articulação, tendo em vista melhorar a capacidade de resposta da Comunidade às novas situações. Um terceiro aspecto da união política que merece o nosso acordo é o reforço da unidade e coerência da acção comunitária externa, que deverá conduzir a uma maior afirmação da Comunidade na cena internacional e uma melhor defesa dos seus interesses19». O desenho da política externa comum merece, da parte de Cavaco Silva, alguns reparos ao ponto de perguntar: «Não será mais sensato reconhecer um amplo campo em que cada Estado possa manter a sua visão específica do relacionamento internacional, de acordo com a melhor defesa dos seus interesses, as suas condições geográficas, a sua tradição histórica e a realidade da sua situação política, económica e social?» Cavaco critica as forças da oposição, que não se interrogam sobre as implicações de tal política, e «quando apressadamente aderem a teses federalistas». Rematando a sua posição: «(...) para uma adequada coerência da acção externa da Comunidade – que é fundamental – deveremos avançar de Aníbal Cavaco – Uma Europa unida na diversidade e no consenso. No encerramento do debate sobre a integração europeia, na Assembleia da República, em 19 de Junho de 1990. In SILVA, Aníbal Cavaco – Ganhar o Futuro (discursos proferidos durante a vigência do XI Governo Constitucional). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991, pp. 283-284. ISBN: 9789722704762. 19SILVA, 161 forma pragmática e gradual, procurando áreas de política externa e de segurança comuns que correspondam basicamente a interesses também comuns dos Estados membros20». O Secretário de Estado da Integração Europeia, Vítor Martins, secunda a posição do primeiro-ministro, referindo-se de modo taxativo à nova realidade europeia que: «(...) impõe que se caminhe progressivamente para um acrescido policentrismo político: é todavia, prematuro ponderar desde já se isso se assegurará melhor por via dos modelos federal, confederal ou outro, normalmente saídos da cópia precipitada de qualquer modelo ocorrido noutro tempo ou noutro sítio. Contudo, não deixaremos de acrescentar desde já que, em nosso entender, não parece fácil que o modelo federal possa dar resposta cabal aos desafios da integração política, em função da diversidade dos Estados e nações que integram a Comunidade e da própria originalidade do modelo institucional comunitário sedimentado em mais de três décadas de experiência21». Vítor Martins considera importante reduzir o impacto do sistema comitológico comunitário, que é pesado, complexo e mesmo contraditório, relevando os comités consultivos, «sem prejuízo de se encontrarem fórmulas que salvaguardem o controlo indirecto por parte do Conselho, de modo a que aos Estados seja dada voz para exprimir, em casos excepcionais, as dificuldades de especial envergadura e impacto com que possam debater-se22». Recusa uma Europa a várias velocidades ou de geometria variável, defende o método comunitário, o reforço dos poderes do Conselho Europeu e do Parlamento Europeu e o alargamento da votação por maioria qualificada23. 20SILVA, Aníbal Cavaco – Uma Europa unida na diversidade e no consenso. In SILVA, Aníbal Cavaco – Ganhar o Futuro..., p. 284. 21MARTINS, Vítor – Portugal e as Comunidades Europeias. Rumo à união europeia. Associação Industrial Portuguesa (AIP Informação). Ano XVI: Nº9 (Setembro 1990), p. 11. 22MARTINS, Vítor – Portugal e as Comunidades Europeias. Rumo à união europeia. Associação Industrial Portuguesa (AIP Informação)..., p. 12. 23MARTINS, Vítor – Portugal e as Comunidades Europeias. Rumo à união 162 No Conselho Europeu de Dublin (Junho de 1990), Cavaco Silva manifestou apoio aos objectivos globais propostos, para Portugal o«núcleo duro» da nova arquitectura europeia eram os doze Estados-membros (não obstante a posição de afirmação de Kohl e Mitterrand que pugnaram pela aceleração do processo de construção europeia) e salientou ainda a defesa de alguns princípios, tais como a salvaguarda da identidade nacional e o respeito pelas instituições democráticas de cada Estado-membro, a preservação do equilíbrio institucional existente na Comunidade, o respeito pelo princípio da subsidiariedade, «mas sempre associado ao princípio da solidariedade, formando duas faces da mesma moeda, como muito bem tinha sido sublinhado pelo papa Pio XI, na Encíclica «Quadragesimo Anno»24». Para o executivo, no avanço para uma nova dimensão política devem ser respeitados alguns princípios que garantam o sucesso das Comunidades Europeias. O primeiro dentre eles é o consenso, «por forma a excluir soluções que não sejam aceites pelos doze Estados membros ou que conduzam a uma Europa a duas ou várias velocidades, que categoricamente rejeitamos». A seguir, importa respeitar a diversidade das opções, das tradições e mesmo dos interesses dos Estados-membros, bem como das suas identidades nacionais e instituições fundamentais. De seguida, a preservação dos actuais equilíbrios institucionais, «já que o Tratado de Roma e o Acto Único apontam para um modelo de decisão, concertação e controlo que se tem revelado equilibrado e relativamente eficaz». Para o governo, a união política deve ser construída de forma gradual e flexível, com pragmatismo, «sem grandes saltos e sem uma programação rígida quanto à sua evolução futura, recolhendo lições à medida que se avança». É fundamental respeitar o princípio da subsidiariedade e concretizar o conceito de cidadania europeia, europeia. 24SILVA, Aníbal Cavaco – Autobiografia Política, vol.2 («Os anos de governo em maioria»), 2.ª edição. Lisboa: Temas e Debates, 2004, p. 187. ISBN: 9789727597185. O executivo português, por intermédio do ministro dos Negócios Estrangeiros, revê-se no modelo dos «círculos concêntricos» (conceito cunhado por Jacques Delors), na medida em que reforçaria a solidariedade intracomunitária e aproximaria a CEE de países periféricos e blocos regionais pela possibilidade de alargar a influência e maneira de estar europeias a outras áreas. Cf. PINHEIRO, João de Deus – Reflexões sobre a (nova) construção europeia. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1990, p. 10. 163 contribuindo assim para a «criação de uma identidade comunitária na qual as pessoas, paralelamente às suas nacionalidades, se revejam». Porém, para o governo de Cavaco Silva, muitas questões inerentes à união política carecem ainda de clarificação, a delimitação do seu alcance e a identificação dos seus benefícios25. Cavaco Silva evoca argumentos idiossincráticos, apelando a alguma razoabilidade, para se proceder com cautela em relação aos impulsos federalistas em voga naquele período. Nessa medida considera que: «a forte identidade nacional, a inexistência de minorias e a tradição histórica que o Povo português assume com particular nitidez desaconselham a adesão precipitada a soluções federais, que cerceariam a nossa soberania para além dos limites aceitáveis, criando situações irreversíveis que poderiam ser pesado encargo para as gerações futuras. Trata-se de matéria demasiado importante para admitir posições apressadas e pouco reflectidas26». O desejo de criar uma verdadeira identidade política europeia manifestado pelos chefes de Estado e de Governo dos «doze» em Maastricht constitui uma primeira resposta aos desafios que de vários pontos do globo lhes foram lançados desde que em 1989 a Comunidade surgiu à face do mundo como o principal ponto de referência e pólo de Aníbal Cavaco Silva – Uma Europa unida na diversidade e no consenso. No encerramento do debate sobre a integração europeia, na Assembleia da República, em 19 de Junho de 1990. In SILVA, Aníbal Cavaco – Ganhar o Futuro..., pp. 281-282. Itálicos no original. Ver Memorando da delegação portuguesa, A União Política na perspectiva da Conferência Intergovernamental (distribuído no Conselho de Assuntos Gerais, em Bruxelas, a 4 de Dezembro de 1990). É proposta a criação de um Congresso Europeu. Este seria uma formação conjunta a partir de órgãos existentes e não uma nova instituição, no qual se juntariam ambos os níveis de representação parlamentar e numa base duplamente paritária: entre o PE e os parlamentos nacionais; e entre as delegações de cada um dos Estados-membros. O Conselho Europeu seria o interlocutor privilegiado do Congresso. Este poderia sugerir recomendações ao Conselho Europeu do qual receberia periodicamente uma comunicação sobre o Estado da União. Consultámos a versão do documento inserta em Política Internacional. ISSN: 0873-6650. Vol. 1: Nº3 (Inverno de 1991), pp. 107-112. 26SILVA, Aníbal Cavaco – Uma Europa unida na diversidade e no consenso. In SILVA, Aníbal Cavaco – Ganhar o Futuro..., pp. 284-285. 25SILVA, 164 atracção sobretudo para os países do Leste europeu. O Tratado de Maastricht realizou um progresso qualitativo ao desenvolver a dinâmica comunitária em duas direcções principais: o estabelecimento da União Económica e Monetária (UEM) e o reforço da coesão económica e social. Esta dupla inovação constitui o eixo central do processo de integração no prolongamento da dinâmica do mercado interno e das políticas de acompanhamento. A UEM implica a criação de um banco central europeu e de uma moeda única e abre uma nova etapa da integração europeia, graças à transferência de soberanias monetárias dos Estadosmembros para a Comunidade. A união monetária será gerida por um sistema europeu de bancos centrais, cujo núcleo será constituído por um banco central europeu independente. Esta etapa impõe a convergência das políticas económicas nacionais e o respeito por uma disciplina orçamental comum. Segundo Sidjanski, «este conjunto de objectivos, de regras e de instituições atesta, de uma forma concreta, a vocação federal da União Europeia. Com efeito, a moeda única encarna um atributo de soberania de que são dotados os Estados federais27». Inscrevendo-se no prolongamento do Acto Único, o Tratado da União Europeia alarga o voto por maioria qualificada e reforça o papel do Parlamento Europeu, com a criação do processo de co-decisão (descrito no artigo 189.º-B do Tratado CE), o alargamento do âmbito da aplicação tanto do mecanismo da cooperação como do dos pareceres conformes, a intervenção na designação da Comissão e as acrescidas possibilidades de actuação em sede processual28. Procura tornar o funcionamento da Comunidade simultaneamente mais eficaz e mais democrático nos domínios económicos e sociais. Em contrapartida, revela-se claramente a clivagem entre a vertente económica, com uma dominante comunitária, e a vertente política, com predominância intergovernamental. Na verdade, em matéria de Política Externa e de Segurança Comum (PESC), que constitui a inovação mais importante da União, o Conselho Europeu e o Conselho de Ministros têm um papel predominante, enquanto a Comissão Dusan – O Futuro Federalista da Europa. A Comunidade Europeia. Das origens ao Tratado de Maastricht, p. 234. 28RAMOS, Rui Manuel Moura – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário, pp. 333-334. 27SIDJANSKI, 165 está reduzida a um papel bem mais apagado, embora o seu presidente seja membro do Conselho Europeu. Cavaco Silva punha como uma das questões fundamentais na concretização de Maastricht a aprovação das perspectivas financeiras da Comunidade para o período de 1993-1997, o chamado Pacote Delors II. Falou-se a este propósito da factura de Maastricht que, para o primeiroministro, «é uma noção bem errada. Maastricht é uma sementeira de progresso e não uma factura. O Tratado da União Europeia é sobretudo um projecto político, consensualmente aprovado, que resultou da consciência de que poderemos fazer melhor em conjunto naquilo que em muitos casos temos feito separada e desordenadamente e que só assim a Europa poderá defender e afirmar a sua posição no Mundo. O objectivo é o de maximizar a capacidade de intervenção da Comunidade e o de criar condições para um progresso económico e social equilibrado e duradouro, não só no espaço europeu, como também à escala mundial. Para o conseguir a Comunidade terá que desenvolver um conjunto alargado de acções e iniciativas que requerem adequado suporte financeiro. Sem meios não se pode esperar obter resultados compatíveis com as ambições expressas em Maastricht29». Em Janeiro de 1994, Cavaco Silva mostra-se satisfeito por já estar em marcha a cooperação reforçada nos domínios da Justiça e dos Assuntos Internos (terceiro pilar do Tratado de Maastricht) prevista no Tratado para assegurar a livre circulação das pessoas, num quadro de segurança acrescida para os cidadãos. Trata-se, para Cavaco, de um objectivo muito relevante da União, pois os problemas relativos à imigração legal, ao asilo, à droga, ao terrorismo, à criminalidade já não podem ser dirimidos a nível estritamente nacional. A resposta tem, então, de ser procurada pelos Aníbal Cavaco – Maastricht – uma sementeira de progresso. No jantar oferecido pela Caixa Geral de Depósitos por ocasião do início das actividades do Banco Luso-Espanhol, em 5 de Maio de 1992 (Madrid). In SILVA, Aníbal Cavaco – Afirmar Portugal no Mundo (discursos proferidos durante a vigência do XII Governo Constitucional). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993, p. 135. ISBN: 9789722705554. 29SILVA, 166 «doze». Sobre Schengen, o primeiro-ministro sustenta que é «um factor de impulsão, dentro da própria União, com vista à realização do objectivo da livre circulação das pessoas. Nos seus propósitos está o binómio mais liberdade de circulação – mais segurança. Ao contrário daquilo que tem sido erradamente propagado, não se trata de edificar uma fortaleza, fechando as portas da Europa. Schengen é sobretudo um exercício de supressão de fronteiras do qual beneficiarão, não só os nacionais dos Estados signatários, como também os cidadãos dos restantes Estados da Comunidade ou mesmo de países terceiros, desde que tenham regularmente entrado no seu território30». Estava em marcha o quarto alargamento e Cavaco entende-o como positivo para o projecto da União Europeia, quer do ponto de vista político quer do ponto de vista económico. Deste modo, escreve o primeiroministro: «(...) a adesão da Áustria, da Suécia, da Finlândia e da Noruega [que não se verificou] pode tornar a União Europeia mais forte. Não partilhamos dos receios daqueles que vêem neste alargamento o Cavalo de Tróia dos que ambicionavam travar o processo de construção europeia. Tão-pouco seguimos os que viram no alargamento apenas o álibi para reformar o sistema institucional, ensaiando a fuga para a frente. O alargamento tem, para nós, os seus méritos próprios e merece o nosso apoio, garantido que seja que os Estados da EFTA assumirão, sem ambiguidades, o projecto da União Europeia por inteiro31». Aníbal Cavaco – Uma participação activa na União Europeia. No debate parlamentar sobre a entrada em vigor do Tratado da União Europeia, em 19 de Janeiro de 1994. In SILVA, Aníbal Cavaco – Manter o Rumo (discursos proferidos durante a vigência do XII Governo Constitucional). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995, pp. 64-65. ISBN: 9789722707695. 31SILVA, Aníbal Cavaco – Uma participação activa na União Europeia. In SILVA, Aníbal Cavaco – Manter o Rumo, pp. 65-66. Ver no mesmo sentido BARROSO, José Manuel Durão – O quarto alargamento. Intervenção na Assembleia da República, por ocasião do debate para a aprovação do Tratado de Adesão da Áustria, Finlândia e Suécia, em 15 de Dezembro de 1994. In BARROSO, José Manuel Durão – A Política Externa Portuguesa. Selecção de discursos, conferências e 30SILVA, 167 Cavaco Silva sustenta que o futuro da integração europeia se pauta por valores fixados na década de 1950, tais como, o respeito pela democracia, pelos Direitos do Homem e pela economia de mercado, o gradualismo no avançar para o modelo final de organização política da Europa, mas que «consagrar, neste momento, qualquer solução de modelo final, seria tão inoportuno quanto inadequado32». Daqui em diante, o desafio maior será aperfeiçoar o legado de Maastricht. Os governos de António Guterres entre o alargamento e os desafios estratégicos da EU O Tratado de Maastricht assumiu-se, desde sempre, como uma fase transitória no processo de integração, tendo fixado um prazo para a sua revisão. De acordo com o artigo N, n.º2, deveria ser convocada uma conferência intergovernamental em 1996, com o fito de alterar certas disposições do Tratado, em relação às quais ou não se tinha conseguido chegar a um consenso em Maastricht ou não se tinha a certeza se o consenso a que se tinha chegado conseguiria funcionar na prática. Após mais de um ano de negociações, sob as presidências italiana e irlandesa, o Tratado de Amesterdão acabou por ser assinado durante a presidência holandesa, no dia 2 de Outubro de 1997, e entrou em vigor em 1 de Maio de 1999, após o depósito do último instrumento de ratificação pela França. O Tratado de Amesterdão contém elementos que contribuem para o reforço do carácter constitucional do Tratado. Se o modelo constitucional pressupõe um poder político supremo para além dos Estados; o exercício desse poder político sobre os cidadãos; a possibilidade de controlo do poder político por parte dos cidadãos e a existência de mecanismos de protecção dos cidadãos contra os abusos do poder, então toda e qualquer alteração que contribua para reforçar o poder político central, ou seja, o da entrevistas do Ministro dos Negócios Estrangeiros (1994-1995). Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1995, pp. 143-147. 32SILVA, Aníbal Cavaco – Portugal e a evolução da Europa. No European Institute, de Washington, em 12 de Outubro de 1994. In SILVA, Aníbal Cavaco – Manter o Rumo, p. 69. 168 União, bem como o papel dos cidadãos no seu seio deve ser encarada como uma manifestação constitucional33. Na revisão do Tratado efectuada em Amesterdão é evidente a preocupação de melhorar os pilares intergovernamentais através da sua aproximação ao pilar comunitário, iniciando-se um percurso, já anunciado em Maastricht, no sentido da unidade e coerência da União que se manifesta ao nível das fontes, dos órgãos e da fiscalização judicial dos actos. De acordo com Monar e Wessels34, os «grandes vencedores» da CIG 1996/97 e do Tratado de Amesterdão foram a Justiça e os Assuntos Internos, em resultado das significativas transformações que revolucionaram o terceiro pilar saído de Maastricht; se antes estávamos no domínio da intervenção tipicamente intergovernamental, com Amesterdão assistiu-se a uma comunitarização de várias matérias desse pilar. Questões relevantes como a concessão de vistos, as políticas de asilo e imigração, as regras respeitantes à cooperação judicial em matéria civil passaram a estar sob a alçada da UE constando de um novo título do TCE, designado por «Vistos, Asilo, imigração e outras políticas relativas à livre circulação de pessoas». Neste sentido, Amesterdão implicou a adopção de um novo método que, à simples cooperação intergovernamental, opôs uma participação alargada das instituições comunitárias, o controlo por parte do Tribunal de Justiça e a obrigação de a União actuar pela via legislativa (regulamentos e directivas em vez de convenções). Saliente-se que foi dado à Comissão o monopólio da iniciativa nos domínios acima mencionados, todavia os legisladores optaram por estabelecer um período de transição de cinco anos durante o qual o Conselho de Ministros deliberaria por unanimidade, sob proposta da Comissão, ou por iniciativa de um Estadomembro e mediante consulta ao Parlamento Europeu. A ideia de flexibilidade conheceu novos desenvolvimentos com o Tratado de Amesterdão. O resultado foi a inclusão de um novo título no TUE que consagra expressamente uma inovadora forma de flexibilidade – a cooperação reforçada. O objectivo principal do novo mecanismo é Ana Maria Guerra – A natureza jurídica da revisão do Tratado da União Europeia. Lisboa: Lex, 2000, p. 177. ISBN: 9789729495991. 34MONAR, J.; WESSELS, W. (eds.) - The European Union after the Treaty of Amsterdam. London: Continuum, 2001, p. 267. ISBN: 0826447708. 33MARTINS, 169 permitir aos Estados-membros instaurar entre si uma cooperação mais estreita, utilizando para tal o quadro institucional da UE. Desta forma, evita-se também a proliferação de subsistemas paralelos, como Schengen, fora do sistema comunitário. Assim sendo, esta nova abordagem procurou igualmente antecipar uma resposta aos inevitáveis problemas que um alargamento a larga escala provocaria ao nível das tomadas de decisão. Se o consenso a 15 se revelava já difícil e até frequentemente impossível, numa União a 25 ou 30 Estados seria seguramente bastante mais complicado. Já no que concerne ao segundo pilar, não foi explicitamente prevista a cooperação reforçada, muito embora tenha ficado consagrada uma «abstenção construtiva» que, se correctamente aplicada, poderia também facilitar os avanços da integração neste domínio. Ao excluir a PESC da cooperação reforçada, procurou-se, fundamentalmente, evitar que o seu uso neste campo pudesse pôr em risco a ainda frágil imagem de uma Europa unida. Contudo, ao estabelecerem a possibilidade de uma abstenção que não põe em causa a tomada de decisão, os negociadores deste tratado esforçaram-se por ultrapassar as de outro modo inevitáveis limitações impostas pela exigência de unanimidade neste domínio. Pelo potencial que encerra, não obstante os avanços modestos e, em algumas áreas, até decepcionantes, o Tratado de Amesterdão não deixa de ser o texto possível no presente estádio de integração europeia. Poderá ser entendido como um «precursor do futuro» que representa, como notaram Moravcsik e Nicolaidis, «the beginning of a new phase of flexible, pragmatic constitution-building in order to accommodate the diversity of a continent-wide polity35». O Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Francisco Seixas da Costa, lembra que no caminho para Amesterdão se procurou assegurar o cumprimento de três objectivos: rever o processo institucional à luz dos futuros alargamentos e das exigências de funcionalidade, de democracia e de transparência das instituições; encarar a possibilidade de estender a acção comunitária a novos domínios e tentar o aprofundamento de algumas políticas sectoriais menos desenvolvidas ou não equacionadas em Maastricht; e ainda procurar reflectir sobre os limites possíveis no esforço por BURGESS, Michael – Federalism and European Union. The Building of Europe..., p. 248. 35Cit. 170 para ultrapassar o híbrido equilíbrio intergovernamental/comunitário que o Tratado da União Europeia manteve em algumas áreas. Nesta CIG, Portugal precisava, segundo Seixas da Costa, ser mais ambicioso e impor um pensamento europeu dado que «a prevalência de uma agenda marcadamente voltada para uma perspectiva nacional, que foi evidente na condução de toda a negociação de Maastricht, redundou num défice de elaboração teórica interna e não ajudou a criar uma «massa crítica» coerente a nível de diversos departamentos da Administração Pública, susceptível de nela gerar e promover uma filosofia autónoma de intervenção europeia36». Quanto aos avanços no terceiro pilar (Justiça e Assuntos Internos), Seixas da Costa entende que constituem «um interessante caminho num domínio reconhecidamente de grande sensibilidade e delicadeza». Não tendo Portugal quaisquer receios em ceder em áreas vincadamente do domínio da sua soberania, continuará portanto a preservar sempre «um equilíbrio entre as dimensões de natureza securitária que lhes estão associadas e a permanente afirmação de uma cultura de protecção dos direitos dos cidadãos, na linha de uma ligação e desejo de participação no desenvolvimento de uma cultura europeia de liberdades37». O que o leva a considerar que «só um acto refundador da União, envolvendo não apenas os governos mas igualmente os Parlamentos Nacionais, poderia criar condições políticas para uma mutação institucional que permitisse tocar estas questões mais sensíveis38». 36COSTA, Francisco Seixas da – Para a história de uma negociação. In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia. Instituições, alargamento e o futuro da União. Lisboa: Dom Quixote, 2002, p. 65. ISBN: 9789722023092. António Guterres defenderá em várias ocasiões que «temos de estar sempre no centro de todos os aspectos do processo de construção europeia, mesmo quando elas não atingem o conjunto do nosso continente, ou mesmo o conjunto da União Europeia». GUTERRES, António – A Pensar em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1999, p. 73. ISBN: 9789722325493. 37COSTA, Francisco Seixas da – Liberdade, Segurança e Justiça. In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia. Instituições, alargamento e o futuro da União, p. 115. 38COSTA, Francisco Seixas da – A Reforma das Instituições. Baseado na 171 Seixas da Costa declara que Amesterdão foi uma «óbvia derrota para os maiores Estados, que não conseguiram fazer vingar a sua ideia de alargar, em termos do processo de decisão, a sua distância em relação a parceiros de inferior dimensão demográfica39». As Estratégias Comuns são um mecanismo para permitir que a PESC seja decidida por maioria qualificada, embora com uma cláusula de «interesse nacional vital», que nomeadamente Portugal conseguiu garantir em Amesterdão. Mas num contexto em que a unanimidade deixa de se aplicar, é evidente que os Estados mais fortes, que têm uma política externa e de segurança de grande visibilidade, considerem não poderem ser limitados em decisões que passam a comprometê-los perante o mundo externo. Assim se entende o interesse, igualmente na PESC, para um reforço da sua representação. Nesta medida, Seixas da Costa congratula-se com o crescente número de votações no quadro comunitário não sujeitas à unanimidade, não só porque a UE se confronta com a perspectiva do alargamento como uma Comunidade com cada vez mais membros precisa de agilizar processos de decisão que já não se coadunam inteiramente com aqueles para os quais foi criada. A perda da unanimidade, que caracterizava o modelo intergovernamental, não tem sido entretanto compensada pela instituição de processos de natureza mais federal – através de uma instituição onde os Estados «tenham representação idêntica e através de fórmulas de federalismo fiscal, que permitam desencadear reequilíbrios distributivos automáticos de natureza financeira40». A resposta ao desafio do alargamento passa, segundo o Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, por uma internacionalização agressiva e a rápida maturação dos nossos factores de competitividade, contribuindo assim para atenuar os seus impactos, similares, aliás, àqueles que a globalização tem vindo a desencadear. A pertença à zona euro, com as intervenção feita no seminário «Reforma Institucional e Democratização da União Europeia», organizado pela Fundação Mário Soares e pela Fundação Friedrich Ebert, em Lisboa, em 13 de Maio de 1998. In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., p. 207. 39COSTA, Francisco Seixas da – Uma Reforma Indispensável? In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., p. 222. 40COSTA, Francisco Seixas da – Uma Reforma Indispensável? In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., p. 231. 172 vantagens daí decorrentes em termos de optimização de custos e de segurança do investimento, «é um elemento compensador da maior importância e uma vantagem comparativa substancial de que Portugal passará a dispor». Como indicia a discussão em torno da Agenda 2000, os países candidatos à adesão, dado o seu baixo nível de desenvolvimento económico, tenderão a «a tornar-se os destinos privilegiados dos apoios comunitários, originando um «enriquecimento» estatístico do nosso país no novo contexto comunitário. É, aliás, a necessidade de garantir que o processo de apoio estrutural se manterá por algum tempo mais que constitui a linha de trabalho portuguesa no actual debate em torno do futuro quadro financeiro, procurando assegurar que o esforço de criação de infraestruturas e de acções de reconversão em curso têm um tempo mínimo de maturação, e que outras áreas do orçamento comunitário contribuam de forma equitativa para o encargo financeiro que o alargamento implica41». O executivo português pronunciou-se contra a flexibilização dos critérios e dos procedimentos de adesão, defendia a sua realização por etapas sucessivas, muito escalonadas no tempo e não excluía vetar indirectamente esse processo se não tivesse asseguradas as fórmulas de financiamento necessárias para manter as políticas de solidariedade42. A representação portuguesa passou a apresentar-se, desde 1996, como o seu primeiro defensor, considerando a expansão das fronteiras comunitárias uma obrigação histórica e uma necessidade estratégica43. Além disso, Francisco Seixas da – O Desafio do Alargamento. Baseado na intervenção feita no colóquio «O Desafio Europeu – Passado, Presente e Futuro», organizado pela Fundação de Serralves, no Porto, em 27 de Outubro de 1997. In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., p. 191. 42Ministério dos Negócios Estrangeiros – Portugal e a Conferência Intergovernamental para a Revisão do Tratado da União Europeia. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1996. Seguimos o texto em anexo in COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., p. 337. 43Ver a posição de Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, em GAMA, Jaime – Os Novos Desafios que se Colocam à Europa. Intervenção no seminário «Agenda 2000: que desafios para Portugal?», Centro Cultural de Belém, 12 de Janeiro de 1998. In GAMA, Jaime – A política externa portuguesa, 1995-1999. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2001, pp. 117-121. ISBN: 972-9245-34-7. 41COSTA, 173 reconheceu o acesso à UE como um direito a todas as democracias europeias, exprimindo a sua solidariedade com os candidatos póscomunistas em nome da experiência portuguesa, onde a estabilização democrática fora inseparável da integração. Sobre as limitações do Tratado de Amesterdão e o que exigirá da UE no futuro próximo, Seixas da Costa não tem dúvidas quando escreve que «Amesterdão é um compromisso de passagem entre dois tempos da Europa comunitária. E é também a consensualização possível da vontade média de integração em áreas que, para muitos, roçam já os limites da sua soberania tradicional. Além de outras óbvias virtualidades, comporta os elementos de esperança no aprofundamento em dimensões próximas de algumas das grandes preocupações dos cidadãos europeus, abre caminho ao reforço da vertente social que entendemos essencial para acompanhar o projecto de integração económico-monetária, facilita os instrumentos para a afirmação externa da União. Prolonga, contudo, a indecisão sobre o formato definitivo dos processos de decisão, esses mesmos entretanto mais simplificados. É um Tratado que fica à espera da UEM, do impulso desta para se determinar se é possível e necessário ir mais longe, na certeza de que qualquer evolução tem que se fazer para além do presente quadro institucional, de uma união híbrida de países onde a permanência dos excessos de intergovernamentalidade acaba frequentemente por agravar os riscos que, precisamente com a insistência nela, se pretendiam evitar 44». A 14 de Fevereiro de 2000, menos de um ano depois da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, a UE inicia uma nova ronda de negociações, agora com o propósito de encontrar uma solução para os chamados left-overs de Amesterdão. A agenda da CIG alargou-se a vários domínios, nomeadamente a dimensão e composição da Comissão, a ponderação de votos no Conselho, a extensão da votação por maioria qualificada e a «cooperação reforçada». Foi ainda incluído um conjunto de 44COSTA, Francisco Seixas da – Para além de Amesterdão. In Público, 2 de Outubro de 1997. 174 outras matérias, destacando-se o aumento dos poderes do Parlamento Europeu, a reforma do sistema jurisdicional, o avanço na Política Europeia de Segurança e Defesa e a adopção de uma Carta dos Direitos Fundamentais. Cumpridos os necessários processos de ratificação, as disposições do Tratado de Nice entram em vigor a 1 de Fevereiro de 2003. No que concerne à Comissão, o novo protocolo foi mais longe ao estabelecer a invalidação da regra de um comissário por Estado-membro a partir do momento em que a UE atingisse os 27 Estados-membros. Nessa altura, o número de comissários deveria ser inferior ao número de países, adoptando-se para sua designação um sistema de rotatividade baseado no princípio da igualdade. Os Estados encararam esta reforma como uma «ameaça» à sua capacidade representativa, acabando por se remeter para o Conselho, deliberando por unanimidade, a definição deste sistema, bem como o estabelecimento do número adequado de comissários. Permaneceu, então, pelo menos até a aplicação definitiva das alterações previstas, um forte sentimento de nacionalidade na composição da Comissão, contrariando a máxima de independência que os tratados estabelecem como característica fundamental deste órgão colegial e que seria o garante da sua supranacionalidade. A Comissão continuou a ver o seu papel e influência enfraquecido, tendência que se vislumbrava nos tratados anteriores, mas que Nice veio acentuar45. A introdução de dois novos elementos (maioria, ou dois terços, dos membros e critério populacional) tornariam as decisões no Conselho mais complexas e porventura menos transparentes. O que ficou consagrado neste novo compromisso foi, em primeiro lugar, o reconhecimento dos interesses nacionais, relegando, para segundo lugar, o indispensável aumento de legitimidade, representatividade e transparência do processo de tomada de decisão. No que respeita ao sistema judicial, ressalta-se a extensão dos direitos do PE como «litigante», que aparece agora em igualdade de circunstâncias com o Conselho, a Comissão e os Estados-membros. Foi 45Que seria, de facto, a «grande perdedora» desta cimeira, não fosse pelo assinalável reforço do papel do seu presidente. Cf. CAMISÃO, Isabel; LOBOFERNANDES, Luís – Construir a Europa. O processo de integração entre a a teoria e a história. Cascais: Principia, 2005, p. 129. ISBN: 9789728818524. 175 igualmente alargada ao PE a possibilidade, até então reservada a Conselho, Comissão e Estados-membros, de obter a opinião do Tribunal de Justiça sobre a compatibilidade com a lei comunitária de um acordo internacional a realizar entre a Comunidade e um país terceiro. Para Isabel Camisão e Luís Lobo-Fernandes, esta foi, porventura, a «grande reforma» de Nice, estendendo-se as suas repercussões para lá do sistema institucional propriamente dito, para se reflectirem também numa transformação significativa do sistema legal da União46. Desde Amesterdão têm sido dados passos importantes no domínio da segurança e defesa, contudo a grande maioria dos avanços foi realizada à margem da moldura institucional e dos procedimentos de decisão da União, não tendo sido consagrada em letra de tratado. Esta situação parece encontrar explicação em algumas divergências que opõem Estados como a França, defensor de uma capacidade de defesa europeia mais autónoma, a outros, como o Reino Unido, que continua a defender vigorosamente o papel insubstituível da NATO. Uma outra explicação residiria no facto de alguns membros da União continuarem a defender a manutenção do carácter intergovernamental do segundo pilar saído de Maastricht, pelo que os avanços só foram possíveis porque acordados à margem dos tratados sob a capa de uma «cooperação» que pouco mais implica do que uma parceria semelhante à promovida entre aliados no quadro tradicional das relações internacionais47. O resultado da cimeira de Nice culminaria, segundo Isabel Camisão e Luís Lobo-Fernandes, num desequilíbrio de poderes que favorece claramente «as grandes potências», com particular destaque para a Alemanha. Se Nice não foi o grande tratado reformador que muitos esperavam, provavelmente não merecerá também o rótulo de «fracasso completo» com que alguns o brindaram. Talvez a sua «exiguidade» tenha sido um prenúncio de que as grandes reformas exigem uma preparação cuidada e de que um grande número de conferências intergovernamentais pode não ser o método mais adequado para fazer avançar o projecto Isabel; LOBO-FERNANDES, Luís – Construir a Europa. O processo de integração entre a teoria e a história, p. 137. 47CAMISÃO, Isabel; LOBO-FERNANDES, Luís – Construir a Europa..., pp. 150151. 46CAMISÃO, 176 europeu. Tendo em conta a atmosfera de expectativa que rodeou a CIG de 2000 e a própria cimeira de Nice, Isabel Camisão e Lobo-Fernandes defendem que não existe qualquer dialéctica entre alargamento/aprofundamento: existe, antes, um complemento natural48. A CIG de 2000 arrancou na presidência portuguesa da UE. Seixas da Costa constata que se verificou que a preferência inicial da grande maioria dos Estados-membros ia para uma agenda limitada49, justificada pela necessidade de não tornar o exercício mais complexo e passível de ser concluído até Dezembro de 2000. Desta forma, a presidência centrou os seus esforços na inserção das Cooperações Reforçadas, iniciativa que foi então apenas apoiada pela Itália e pelo Benelux. A posição do executivo português dava preferência pelas fórmulas de «dupla maioria», onde o elemento populacional prevalecia, posição que, reconhecia-se, não isenta de algum risco, caso as variáveis concretas de tais fórmulas evoluíssem num sentido excessivo. O Secretário de Estado dos Assuntos Europeus confessa que algumas fórmulas de «dupla maioria» poderiam ir muito longe na consideração do factor populacional, ainda para mais quando não havia, à partida, certezas quanto à aceitação do critério da maioria dos Estados, que era uma salvaguarda compensatória essencial. Mas «sempre pensámos que a esperada rejeição deste modelo pelos «grandes» países (com excepção da Alemanha) acabaria por ser um factor decisivo para moderar os desejos de uma «reponderação simples» brutal. O que se viria a passar nas últimas horas de Nice mostrou que tínhamos razão50». Para Portugal, o compromisso de Nice era «satisfatório». Na Comissão, na maioria qualificada, nas Cooperações Reforçadas e no Parlamento Europeu obtivéramos excelentes resultados. Nos votos no 48Cf. CAMISÃO, Isabel; LOBO-FERNANDES, Luís – Construir a Europa..., pp. 153-155. Michael Burgess considera, aliás, que o alargamento constitui outro passo crucial na construção da Europa federal e que implicará o regresso quase pleno dos Estados-membros aos primeiros princípios que nortearam a integração europeia. BURGESS, Michael – Federalism and European Union..., p. 245. 49COSTA, Francisco Seixas da – A estratégia negocial em Nice. In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., pp. 251-252. 50COSTA, Francisco Seixas da – A estratégia negocial em Nice. In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., p. 266. 177 Conselho, a percentagem de poder que cabe a Portugal é melhor do que a de qualquer outro modelo discutido à mesa da CIG. A despeito de os limiares para a maioria qualificada terem subido, o que favorece, em princípio, a posição dos países mais populosos, sublinhe-se que, tornando as minorias de bloqueio mais pequenas, sobe teoricamente o peso potencial de Portugal dentro delas51. A CIG 2000, até então a única Conferência Intergovernamental em cuja direcção Portugal participou, conclui Seixas da Costa, «acabou por não ser o exercício de revolução radical das instituições em que alguns a pretendiam transformar, da mesma maneira que o seu resultado não terá sido totalmente inócuo face a certos equilíbrios que outros, como nós, entendiam dever preservar. Foi, contudo, o exercício do possível que permite à Europa continuar a caminhar e a Portugal participar nesse movimento com uma razoável capacidade de afirmação. Não era outro o nosso objectivo52». Seixas da Costa sustenta que a Europa construiu-se porque, com inteligência, raramente se discutiu o modelo final e sempre se avançou de forma gradual, passo a passo, assegurando que cada medida integradora era entendida por todos como pontualmente necessária, independentemente de poder haver divergências sobre o destino final. Jaime Gama partilha da mesma opinião: «é minha firme convicção que temos o dever de ultrapassar um debate balizado pelo federalismo dos “pais fundadores”, pelo “intergovernamentalismo”, pelas mensagens emanadas da burocracia comunitária e pelos projectos – na aparência inocentes – cujo objectivo é, tão-só, o reforço do peso relativo dos grandes Estados, embora a coberto de argumentos de eficiência redobrada. Devemos 51Cf. idem. Francisco Seixas da – A estratégia negocial em Nice. In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., p. 289. Ver no mesmo sentido GUTERRES, António – Os tratados europeus revisitados: qual o papel da Europa no mundo globalizado? Política Internacional. ISSN: 0873-6650. Vol.3: Nº23 (Primavera-Verão 2001), pp. 5-13. 52COSTA, 178 afastar uma discussão alegadamente orientada para o futuro mas que apenas se revê em tais sombras do passado. O que temos de fazer, isso sim, é estimular a reflexão sobre matérias de fundo e encontrar respostas para as perguntas verdadeiramente importantes», designadamente sobre qual o modelo institucional que se pretende para daqui a dez ou vinte anos, como garantir o envolvimento das opiniões públicas europeias neste empreendimento comum, como aprofundar os presentes níveis de integração sem que tal resulte na exclusão dos Estados candidatos e como encontrar um ponto de equilíbrio entre as identidades nacionais e o espírito comunitário53. Sobre o futuro, o Secretário de Estado dos Assuntos Europeus crê que o modelo europeu «ficará sempre muito longe das tipologias federalistas tradicionais que, na sua maioria, vêm mesmo já do século passado. Julgo poder prever que nunca teremos uns «Estados Unidos da Europa». A Europa terá de encontrar um modelo institucional atípico, onde os elementos supranacionais irão ter um papel cada vez mais relevante (a moeda única, a Comissão Europeia, os Tribunais Europeus), mas onde as componentes intergovernamentais terão sempre de estar presentes. Com efeito, não antevejo que em áreas como as políticas de Defesa ou em domínios muito sensíveis da Política Externa e de Segurança Comum, ou de Cooperação Judiciária em matéria penal, possamos conceber uma comunitarização do processo de decisão. Além disso, estou convicto de que os parlamentos nacionais, que nos últimos anos têm vindo a perder poderes para as instituições da União Europeia, vão, em breve, ter um papel de intervenção muito mais importante no contexto comunitário(...).» Jaime – Que reformas para a União Europeia do século XXI. O quadro geral da reforma institucional: o estado das negociações. XVII Jornadas Europeias de Páscoa, Castelo de Peralada, 12 de Junho de 2000. In GAMA, Jaime – A política externa portuguesa, 1999-2002. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2002, p. 107. ISBN: 972-9245-35-5. COSTA, Francisco Seixas da – A Europa em perspectiva. Tradução da conferência proferida no Instituto de Ciência Política da Universidade do Chile, Santiago do Chile, em 6 de Setembro de 2000. In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., p. 309. 53GAMA, 179 Seixas da Costa defende que este debate vai acelerar-se, podendo mesmo ser vivo «se acaso a negociação em curso na actual revisão do Tratado chegar a momentos de alguma tensão, como eu acho que vai acontecer. Nessa altura alguns poderão ameaçar optar por refundar um novo modelo europeu, mais homogéneo, onde se encontrem os que aparentemente partilham da mesma perspectiva e que não desejam ficar limitados pela vontade de outros de não ir mais além. É uma aposta arriscada, um projecto que pode ter como consequência quebrar a confiança dentro da Europa. E julgo que todos teríamos vantagens em evitá-lo. Na minha opinião, há ainda espaço para o compromisso54». Jaime Gama não se furta, contudo, de considerar que «uma Europa federal seria mais justa do que a actual. Teria, seguramente, alguns inconvenientes, mas seria, apesar de tudo, um modelo mais equilibrado do que o actual55». E em entrevista ao Público, meses depois, vai mais longe: «[sou mesmo] muito favorável à ideia de uma Constituição europeia, sem medo da palavra. Ou seja, de um diploma acordado por Tratado entre os seus membros, mediante o qual se estabeleça com clareza o parâmetro das responsabilidades que incumbem à União, aos Estados e às regiões. Por outro lado, a UE tem que determinar níveis de liderança e legitimidade. Só quando for possível realizar uma eleição competitiva em toda a Europa para a escolha de uma liderança central é que estará verdadeiramente consolidado o fenómeno europeu. Porque só através dela é que se geram responsáveis. Se estas questões não forem resolvidas a tempo e de uma forma clara, não é de excluir que o próprio carácter híbrido em que hoje assenta a UE não venha a gerar factores de corrosão ou até fortes antídotos. Ninguém imaginaria quando Portugal negociou a sua entrada na UE que um dia poderia haver uma política externa e de segurança comum com uma componente de defesa. Francisco Seixas da – A Europa em perspectiva. In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., pp. 316-317. 55Jaime Gama em entrevista ao Expresso, 30 de Dezembro de 1999. Entrevista conduzida por Luís Tibério. 54COSTA, 180 Ninguém conceberia que Portugal um dia abdicasse do escudo para entrar numa moeda única ou sequer que uma moeda única viesse a existir56». O Secretário de Estado dos Assuntos Europeus salienta que, ao contrário do modelo federal, e comentando posições de Joschka Fischer e Jacques Chirac produzidas em 2000 relativas à finalidade da integração europeia, estamos já sob a capa de um projecto de leitura do interesse europeu que se situa nas cercaduras de um modelo de puro «directório». Para o membro do governo português «concedemos que essa possa ser a fórmula mais operativa para a consagração permanente de um condomínio do continente, onde a França e alguns outros Estados possam realizar-se, provavelmente num quadro de progresso e de desenvolvimento com indiscutíveis virtualidades sectoriais, mas seguramente numa espécie de tutela paternal em que alguns entregariam a sua independência à sagesse de uma coligação de potências. Este não parece, definitivamente, um cenário que nos interessa considerar – como, aliás, estamos convictos de que não colherá o interesse de muitos 57». As preocupações do executivo não se esgotam evidentemente no modelo final de integração e nessa medida há que atender a um conjunto diversificado de elementos políticos e estruturais relevantes. Nesse sentido, Jaime Gama identifica a defesa de mais Europa nas políticas económicas e sociais, o reforço da competitividade, o aprofundamento da política regional e o apoio às regiões ultraperiféricas; a reunião de esforços para que a projecção e a credibilidade da União enquanto protagonista da comunidade internacional sejam reforçadas, conferindo-lhe meios para uma acção externa à altura do seu potencial e dos valores que prossegue; na criação de um espaço comum de liberdade, segurança e justiça que vá ao encontro das necessidades reais dos cidadãos europeus e de quantos 56Jaime Gama em entrevista ao Público, 30 de Junho de 2000. Entrevista conduzida por Teresa de Sousa. 57COSTA, Francisco Seixas da – Europa – o fim da história? In COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia..., p. 246. 181 procuram acolhimento no nosso país; mais Europa na edificação de um modelo institucional respeitador da igualdade entre os Estados e onde os cidadãos europeus se sintam efectivamente representados58. Conclusão A adesão à UE impôs a Portugal um compromisso extremamente exigente uma vez que requeria não só o cumprimento de metas económicas e financeiras como, para o período em estudo neste artigo, a demonstração de uma posição sobre a aceleração e aprofundamento da integração política na Europa comunitária, e de uma forma muito específica sobre o pensamento e acção federal, na sequência de um momento definidor e de viragem como a queda do Muro de Berlim e o Tratado de Maastricht59. Os anos de Cavaco Silva à frente do executivo coincidem com um período de fulgor da integração europeia. É durante o seu governo que Portugal assume pela primeira vez a presidência das Comunidades60, o Jaime – Debate sobre o futuro da Europa. Discurso proferido na Assembleia da República, a 22 de Junho de 2001. In GAMA, Jaime – A política externa portuguesa, 1999-2002. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2002, p. 150. 59Para uma visão estrutural da posição dos governos portugueses em relação ao federalismo europeu ver VICENTE, Paulo Jorge Carvalho dos Santos – Aqui Sopram os Ventos da Europa. Os governos portugueses perante o federalismo e a integração europeia (1960-2002). Tese de Doutoramento em Ciência Política. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2011. Sobre o esforço económico do país no sentido da convergência ver ALEXANDRE, Fernando et al. - A Economia Portuguesa na União Europeia: 19862010. Lisboa: Actual Editora, 2014. ISBN: 9789896940782. 60Portugal já assumiu por três vezes a presidência das Comunidades: a primeira vez ocorreu no primeiro semestre de 1992 (no terceiro governo de Cavaco Silva), a segunda vez no primeiro semestre de 2000 (segundo governo de António Guterres) e a terceira no segundo semestre de 2007 (primeiro governo de José Sócrates). Não escamoteamos a importância destas presidências para a projecção externa do país, cada uma delas com uma agenda política própria e prioridades definidas. Por razões de espaço e devido ao seu carácter muito específico, que merece da parte da diplomacia um compromisso muito aturado, optámos por não proceder ao seu estudo que, aliás, já outros o fizeram e de modo muito significativo ao fazer uso da literatura da Ciência Política, Relações Internacionais e História. 58GAMA, 182 executivo acompanha e opina sobre as políticas comunitárias mais importantes e que teriam um impacto profundo na vida do país. Todavia, Cavaco Silva não esconde o incómodo pelo processo de federalização na União Europeia, ainda que dê o seu aval à ideia de uma moeda única e de uma cidadania europeia; o primeiro-ministro é adepto do princípio da subsidiariedade (que se tornará consensual a nível comunitário), num período em que toma forma de modo consistente o multi-level governance; não se entrevia como poderia resultar na prática a proposta de um Congresso Europeu, faltando aqui uma reflexão de como essa estrutura, não se tratando de um novo órgão, poderia melhor fazer a ligação com as instituições europeias existentes. Os governos de António Guterres acompanham as propostas de reforma institucional na UE na senda dos processos de alargamento em marcha. O país entrava na segunda década de pertença à UE e apresentavase já com um lastro e uma experiência comunitária capazes de se traduzir num conjunto de posições mais assertivas quanto às transformações institucionais numa Europa alargada. Nos diferentes fóruns, quer políticos quer mediáticos, há uma vontade expressa de deixar clara uma posição sobre a integração política futura e, como se viu, Jaime Gama mostra-se inclusive adepto do federalismo europeu e das suas virtualidades. Não obstante um amadurecimento das posições dos diferentes governos acerca do projecto político europeu e do federalismo, julgamos que o empenhamento europeu é marcado pelo pragmatismo, quiçá na linha de uma tecnocracia muito vincada desde a década de 1980 e um pouco mais mitigada na década seguinte, sem numa perder de vista aquilo que Seixas da Costa acabaria por definir como um «europeísmo utilitário»61, dado que Portugal se apoiava nas políticas que pudessem beneficiar o país na distribuição de pacotes financeiros, o que era muitas vezes confundido com uma verdadeira vontade integradora. Cf. HERMENEGILDO, Reinaldo Saraiva – As Presidências Portuguesas da União Europeia. Lisboa: Fronteira do Caos, 2017. ISBN: 9789898647795. 61COSTA, Francisco Seixas da – Uma Segunda Opinião: Notas de Política Externa e Diplomacia. Lisboa: Dom Quixote, 2006, pp. 29-30. ISBN: 9789722031059. 183 Referências bibliográficas ALEXANDRE, Fernando et al. - A Economia Portuguesa na União Europeia: 1986-2010. Lisboa: Actual Editora, 2014. ISBN: 9789896940782. BARROSO, José Manuel Durão – A Política Externa Portuguesa. Selecção de discursos, conferências e entrevistas do Ministro dos Negócios Estrangeiros (19941995). Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1995. BELLAMY, Richard; CASTIGLIONE, Dario – Building the Union: The Nature of Sovereignty in the Political Architecture of Europe. In KARMIS, Dimitrios; NORMAN, Wayne (eds.) - Theories of Federalism. A Reader. New York: Palgrave Macmillan, 2005. ISBN: 0-312-29581-2. BURGESS, Michael – Federalism and European Union: The Building of Europe, 1950-2000. London: Routledge, 2000. ISBN: 0-415-22647-3. CAMISÃO, Isabel; LOBO-FERNANDES, Luís – Construir a Europa. O processo de integração entre a teoria e a história. Cascais: Principia, 2005. ISBN: 9789728818524. COSTA, Francisco Seixas da – Diplomacia Europeia. Instituições, alargamento e o futuro da União. Lisboa: Dom Quixote, 2002. ISBN: 9789722023092. COSTA, Francisco Seixas da – Uma Segunda Opinião: Notas de Política Externa e Diplomacia. Lisboa: Dom Quixote, 2006. ISBN: 9789722031059. DUVERGER, Maurice – Europa – O Estado da União. Lisboa: Editorial Notícias, 1996. ISBN : 9789724607467. ELAZAR, Daniel J. (ed.) - Constitutional Design and Power-Sharing in the PostModern Epoch. New York: Lanham, 1991. ISBN: 0819180955. ELAZAR, Daniel J. - Exploring Federalism. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 2006. ISBN: 0-8173-0575-0. FERNANDES, António Teixeira – Nacionalismo e Federalismo em Portugal. 184 Porto: Edições Afrontamento, 2008. ISBN: 9789723609417. GAMA, Jaime – A política externa portuguesa, 1995-1999. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2001. ISBN: 972-9245-34-7. GAMA, Jaime – A política externa portuguesa, 1999-2002. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2002. ISBN: 972-9245-35-5. GUTERRES, António – A Pensar em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1999. ISBN: 9789722325493. GUTERRES, António – Os tratados europeus revisitados: qual o papel da Europa no mundo globalizado? Política Internacional. ISSN: 0873-6650. Vol.3: N.º23 (Primavera-Verão 2001), pp. 5-13. HERMENEGILDO, Reinaldo Saraiva – As Presidências Portuguesas da União Europeia. Lisboa: Fronteira do Caos, 2017. ISBN: 9789898647795. HIX, Simon – The Political System of the European Union. Second Edition. London: Palgrave Macmillan, 2005. ISBN: 0-333-96182-X. KANT, Immanuel – A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990. ISBN: 9789724415154. KYMLICKA, Will – Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of MinorityRights. Oxford: Clarendon, 1995. ISBN: 0198290918. MARTINS, Ana Maria Guerra – A natureza jurídica da revisão do Tratado da União Europeia. Lisboa: Lex, 2000. ISBN: 9789729495991. MARTINS, Vítor – Portugal e as Comunidades Europeias. Rumo à união europeia. Associação Industrial Portuguesa (AIP Informação). Ano XVI/N.º9 (Setembro 1990), pp. 7-12, 14. MONAR, Jorg; WESSELS, Wolfgang (eds.) – The European Union after the Treaty of Amsterdam. London: Continuum, 2001. ISBN: 0826447708. 185 PINDER, John – European Community and nation state: a case for a neofederalism? International Affairs. DOI: 10.2307/2618066. N.º62 (January 1986), pp. 41-54. PINHEIRO, João de Deus – Reflexões sobre a (nova) construção europeia. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, 1990. RAMOS, Rui Manuel Moura – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. RIKER, William H. – European Federalism. The Lessons of Past Experience. In HESSE, Joachim Jens; WRIGHT, Vincent (eds.) Federalizing Europe? The costs, benefits, and preconditions of federal political systems. New York: Oxford University Press, 2000. ISBN: 0198279922. SIDJANSKI, Dusan – O futuro federalista da Europa. A Comunidade Europeia. Das origens ao Tratado de Maastricht. Lisboa: Gradiva, 1996. ISBN: 9789726624172. SILVA, Aníbal Cavaco – Ganhar o Futuro (discursos proferidos durante a vigência do XI Governo Constitucional). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991. ISBN: 9789722704762. SILVA, Aníbal Cavaco – Afirmar Portugal no Mundo (discursos proferidos durante a vigência do XII Governo Constitucional). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993. ISBN: 9789722705554. SILVA, Aníbal Cavaco – Manter o Rumo (discursos proferidos durante a vigência do XII Governo Constitucional). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995. ISBN: 9789722707695. SILVA, Aníbal Cavaco – Autobiografia Política, vol.1 («O percurso até à maioria absoluta e a primeira fase da coabitação»), 3ª edição. Lisboa: Temas e Debates, 2002. ISBN: 9789727594894. SILVA, Aníbal Cavaco – Autobiografia Política, vol.2 («Os anos de governo em maioria»), 2ª edição. Lisboa: Temas e Debates, 2004. ISBN: 186 9789727597185. SOROMENHO-MARQUES, Viriato – A Revolução Federal. Filosofia política e debate constitucional na fundação dos EUA. Lisboa: Edições Colibri, 2002. ISBN: 972-772-287-3. VICENTE, Paulo Jorge Carvalho dos Santos – Aqui Sopram os Ventos da Europa. Os governos portugueses perante o federalismo e a integração europeia (19602002). Tese de Doutoramento em Ciência Política. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2011. VILA MAIOR, Paulo – O Dédalo da União Europeia: entre integração e desintegração. Porto: Edições da Universidade Fernando Pessoa, 2007. ISBN: 978-972-8830-83-0. Documento A União Política na perspectiva da Conferência Intergovernamental. Política Internacional. ISSN: 0873-6650. Vol.1: N.º3 (Inverno de 1991), pp. 107-112. Imprensa COSTA, Francisco Seixas da – Para além de Amesterdão. In Público, 2 de Outubro de 1997. GAMA, Jaime – Entrevista ao Expresso, 30 de Dezembro de 1999. GAMA, Jaime – Entrevista ao Público, 30 de Junho de 2000. 187 REVISÃO DA ESTRATÉGIA EUROPEIA DE SEGURANÇA – A HORA DAS ESCOLHAS Liliana Reis Ferreira 1 "For most Europeans security is a top priority today. And they know far too well that, amidst the deep uncertainty that surrounds us, we are safer and stronger when we work together, as a true Union." Federica Mogherini, 2016 Resumo: A Estratégia Europeia de Segurança de 2003 representou um passo definitivo na construção da PCSD, constrangido por um processo de tomada de decisão intergovernamental, contudo as inovações introduzidas pelo tratado de Lisboa e a alteração do ambiente de segurança conduziram a uma necessidade de revisão das expectativas, ambições e ameaças da UE. Este artigo procura avaliar a revisão da Estratégia Europeia de Segurança, bem como apresentar as alterações introduzidas pela Estratégia Global para a Política Externa e de Segurança da União Europeia – “Visão partilhada, ação comum: uma Europa mais forte" e os esforços que têm sido desenvolvidos para a sua implementação. Palavras-Chave: União Europeia, Estratégia, Política Externa, Segurança, Defesa, Abstract: The 2003 European Security Strategy was a decisive step in the construction of the CSDP, constrained by an intergovernmental decisionmaking process. However, the innovations introduced by the Lisbon Treaty and the change in the security environment led to a need to revise 1 Professora Auxiliar na Universidade da Beira Interior. Diretora da Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais e do Mestrado em Relações da Universidade da Beira Interior. Investigadora do CICP. 189 expectations, ambitions and threats. This article seeks to assess the revision of the European Security Strategy and to present the changes introduced by the EU Global Strategy for the Foreign and Security Policy - "Shared vision, common action: a stronger Europe" and the efforts that have been made developed for its implementation. Key words: European Union, Strategy, Security, Foreign Policy, Security, Defense 190 1. Construção de uma Narrativa Desde a 21ª Cimeira franco-britânica em Saint-Malo, em Dezembro de 1998, que a UE começou a perfilhar uma política autónoma de segurança e defesa e a redefinir o seu papel enquanto ator global no seio das relações internacionais. Para a França, o uso eficiente da força, baseado no conceito de deterrence ou dissuasão, começava agora a esboçar uma aproximação e cooperação mais pragmática com a NATO e uma cooperação multinacional que se tornasse mais eficiente. Aos olhos dos britânicos a defesa europeia começava agora a adquirir valor adicional real. A linguagem usada na cimeira de Saint-Malo – referindo-se a uma “capacidade para ação autónoma” (British-French Summit St Malo Dezembro, 1998) – representa um acordo entre estes dois desenvolvimentos: a aproximação de Londres à Europa, tal como a concessão francesa à legitimidade atlântica. As Cimeiras de Colónia, Helsínquia e Nice, tal como as próprias modificações normativas no seio do Tratado da União Europeia, começavam a desenhar um modelo ímpar nos processos de integração regional e a construção de uma de potência singular e eclética. Contudo, a UE carecia de uma dimensão conceptual2 que conseguisse abranger as políticas externas e de defesa dos Estados-membros e pudesse servir como uma estrutura para uma abordagem 2 O único documento existente à data, era a Comunicação sobre a Prevenção de Conflitos de 2001, no qual a Comissão tinha proposto a identificação da raiz dos conflitos, através da promoção de uma “estabilidade estrutural” definida como “desenvolvimento económico sustentável, democracia e respeito pelos direitos humanos, estruturas políticas viáveis, saúde ambiental e condições sociais, com a capacidade de gerir as mudanças sem o recurso ao conflito”. Cumpre-nos sublinhar que este documento delineia pela primeira vez uma Estratégia da UE, referindo-se à força e ao poder de atração do modelo Europeu, nomeadamente através dos países vizinhos ao oferecer a perspectiva da integração europeia e através da listagem dos instrumentos, que a União Europeia direta ou indiretamente possui para a prevenção de conflitos, nomeadamente, cooperação para o desenvolvimento e assistência externa, cooperação económica e instrumentos de política comercial, ajuda humanitária, políticas sociais e ambientais, instrumentos diplomáticos tais como o diálogo político e a mediação, bem como sanções de caráter económico ou outro, e, por último, os novos instrumentos da política europeia de segurança e de defesa (incluindo a recolha de informação para a previsão antecipada de situações de risco potencial de conflitos e a fiscalização de acordos internacionais). Comissão Europeia. (2001). Comunicação da Comissão sobre 191 compreensiva e integrada. O ano de 2003, referido como “the crisis to catharsis”, por Anand Menon (2004) assinalaria importantes desenvolvimentos respeitantes a esta Política, não obstante a crise resultante das inúmeras divisões no seio da União devido à crise no Iraque e de não ser assunto em discussão, quer na Convenção quer na Conferência Intergovernamental. Este ano “provide grounds for optimism about the potential future effectiveness of ESDP”3. O forte dinamismo iniciado em 2003 não pode ser divorciado das consequências estruturais desencadeadas pelo 11 de Setembro, nomeadamente a luta contra o terrorismo e a percepção de que o mundo pós-Guerra Fria encetava agora novas ameaças. Assim, em Junho de 2003, é aprovada a Estratégia Europeia de Segurança, intitulada “Uma Europa Segura Num Mundo Melhor” cuja elaboração, fortemente condicionada pela incapacidade da UE se apresentar como uma frente unida e influente na guerra contra ao Iraque, representou a primeira tentativa de criar uma doutrina estratégica europeia adaptada ao novo contexto de segurança internacional, e um esforço de gerar uma visão comum da ordem internacional que se impunha construir para assegurar a paz e a segurança, bem como do papel que a UE deveria desempenhar a este respeito (FERREIRA-PEREIRA, 2005, p.116). Assim, a EES, e nomeadamente o seu contributo na construção de um pensamento estratégico comum tornou-se numa referência obrigatória na afirmação do papel da UE como um ator global, de modo a reajustar o a Prevenção de Conflitos. Bruxelas: Comissão Europeia, p. 7. Disponível e http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2001:0211:FIN:pt:PDF [acedido a 19 de Abril de 2010] 3 Para este autor os desenvolvimentos que se seguiram à intervenção no Iraque serviram de catalisadores da própria PCSD uma vez que: [T]he crisis served to make explicit the various competing agendas and ambitions of the member states which previously, remain implicit, had inhibited progresso toward putting ESDP into action [...] The issue of the precise nature of an EU security policy – the balance between its militar and non-military componentes and the extent of EU militar ambitions – has been clarifieed somewhat, with the Iraq war and its aftermath serving not only to convence scepitc of the continued utility of militay force, but also to highlight both the importance of the Union possesing adequate soft security tools and the necessary limits to EU militar ambitions. Finally the conflict underlined the need for consensos among the larger member states if EU external policies were to function effectively – a need that was neither clearly perceived, nor generally accepted, beforehand. Consequently –and with the usual caveats regarding the dangers inhently volatile issue ares –there are reasons to belive that ESDP will not survive, but possible even benefit from the crisis. Menon, A. “From crisis to catharsis: ESDP after Iraq”. International Affairs , Vol. 80, n.º 4, pp. 632. 192 seu papel estratégico com a sua capacidade económica (GNESOTTO, 2002, p.12), representando “a significant motor in taking the EU strategy forward” (Howorth, 2003, p. 6). Tal como em 2003, também em 2016, quando é apresentada a Estratégia Global da União Europa para a Política Externa e de Segurança, a UE vivia um período de fragmentação. Contudo, o momento atual parece apontar para uma superação da mera “narrativa” estratégica. Com efeito, quer o documento apresentado em junho de 2016, quer o empenhamento do Conselho e da Comissão nos meses seguintes sugerem uma nova abordagem à política externa e de segurança e defesa da União. 1.1. Evolução do Conceito de Estratégia Para uma compreensão efetiva da importância da EES na construção da PCSD e dada a diluição do conceito de Estratégia nos últimos anos, o seu alargamento a vários domínios e a sua própria vulgarização, importa refletir sobre o seu conteúdo real4. Para uma análise deste conceito, tornase obrigatório procurar as suas raízes etimológicas. A palavra estratégia é oriunda do grego, mais precisamente das palavras grega “stratos” e “agein”, as quais significam, respetivamente, exército e conduzir/comandar5. Assim, e na sua origem, a palavra Estratégia significaria a ação de conduzir ou comandar os exércitos (MARTINS, 1984, p.101). Não admira portanto, que ao longo do tempo, a Estratégia tenha pertencido ao domínio exclusivo militar e portanto, dos Estados. Com a evolução do fenómeno social e político como é a guerra, necessariamente o próprio conceito teria também de sofrer metamorfoses. A primeira grande alteração surge com o alargamento no tempo, deixando de ser a “arte da guerra” para passar a exercer-se também em tempo de paz. Liddell Hart (1967, p. 335), propõe a alteração 4 Para autores realistas, como José Pedro Teixeira Fernandes os dois conceitos, segurança e defesa são muito próximos acabando por, de alguma forma, se confundirem. No decurso desta investigação tal diluição dos conceitos não acontece, dado que o conceito de segurança é polissémico. Vide a este respeito: Fernandes, J. Teoria das Relações Internacionais: da abordagem clássica ao debate pós-positivista. Coimbra: Almedina, 2004. 5 Da mesma origem, pode referir-se, ainda, o substantivo grego “strategos” que significa General. 193 do conceito para “Grande Estratégia” que seria para o autor “the art of distributing and applying military means to fulfill the ends of policy”. Desta forma, a estratégia não seria apenas a direção de todos os recursos e meios militares, mas englobaria a direção de todos os recursos disponíveis de um Estado (MARTINS, Raul François, 1984, p.106). Com o alargamento do espectro semântico, o General Beaufre (1966, p. 47-51), vem propor também uma nova re-conceptualização para “Estratégia Total” que a define como sendo “a arte de empregar a força ou a coação para atingir os fins fixados pela política”, podendo utilizar instrumentos políticos, económicos, psicológicos e também militares consoante os objectivos6. Para o general Raul François Martins o alargamento do conceito a “todos os recursos, tem ainda como consequência poder-se separar a estratégia da guerra, entendida na sua acepção restrita e tradicional a luta armada entre unidades políticas”, e tal como Clausewitz na sua célebre fórmula a havia definido, a Estratégia representaria “a continuação da política por outros meios” (Citado em Beaufré 1965, p. 19). Subjacente a todas as definições de estratégia encontram-se três elementos essenciais: os objectivos, os meios e os intervenientes. Relativamente ao primeiro, pressupõe-se que a estratégia é uma atividade orientada para a conquista de objetivos, previamente definidos pela política, o que no estudo em análise, reflete objetivos nacionais – Estados-membros, e supranacionais – UE. Relativamente ao segundo elemento essencial, os meios, com o alargamento do conceito, passou a incluir não só os instrumentos tradicionais de hard power, como também de soft power. Atualmente a estratégia ultrapassou em muito a dimensão militar, ao ponto de uma perspectiva abrangente estar hoje de tal forma presente, que os próprios documentos oficiais dos Estado-membros e da UE, quando vertem estas matérias em letra de lei, o fazerem tendo em atenção o vasto leque de áreas diversas em que a estratégia incide7. No que concerne aos intervenientes, assistimos, nomeadamente na análise desta investigação, a uma unidade integrada, que ultrapassa a esfera meramente dos estados-nação, não constituindo estes 6 Deste autor ver: Beaufré, A. Deterrence and Strategy. New York: F.A. Praeger, 1966; Beaufré, A. An Introduction to Strategy, with Particular Reference to Problems of Defense, Politics, Economics, and Diplomacy in the Nuclear Age. New York: Praeger, 1965 e Beaufré, A. Strategy of Action. London: Farber and Farber, 1967 7 Vide a este respeito: Fernandes, A. “A Estratégia e as Relações Internacionais”. Nação e Defesa , nº 122, Vol. 4, p. 160, 2009. 194 últimos os únicos atores que a definem, ilustrando a clássica designação de Raymond Aron, de unidades políticas, que representam “coletividades politicamente definidas e organizadas, capazes de manifestar uma vontade coletiva autónoma” (citado em Martins 1984, p. 114). Na definição de Abel Cabral Couto (1988, p. 11) encontramos os principais elementos de estratégia enunciados, para o general de artilharia: [E]stratégia é a ciência e a arte de desenvolver e utilizar, com o máximo de rendimento, as forças morais e materiais de um estado ou coligação, a fim de se atingirem objetivos fixados pela política, e que suscitam, ou podem suscitar, a hostilidade de uma outra vontade política. Contudo, o próprio estratega português, observando as alterações no sistema internacional, sentiu necessidade de redefinição do conceito de uma forma muito mais cautelosa e abrangente, caraterizando-o agora como: [A] ciência e a arte de, à luz dos fins de uma organização, estabelecer e hierarquizar objetivos e gerar, estruturar e utilizar recursos, tangíveis e intangíveis, a fim de se atingirem aqueles objetivos, num ambiente admitido como conflitual ou competitivo (ambiente agónico)8. Enumeradas algumas das definições de estratégia, percebe-se que, e no domínio das relações internacionais, foi identificada, principalmente, com os axiomas da teoria realista e neo-realista. Contudo e face à emergên- 8 A revisão do conceito de Estratégia por parte de Abel Cabral Couto teve subjacente uma aproximação do conceito às novas realidades. Cfr. Couto, A. “Da Importância de uma Teoria” In Francisco Abreu (ed), Fundamentos de Estratégia Militar e Empresarial. Obter Superioridade em contextos conflituais e competitivos. Lisboa: Edições Sílabo, 2002, pp. 17-22. Couto, A. “Posfácio.” In Francisco Abreu e António Horta Fernandes (eds). Pensar a Estratégia. Do Político-Militar ao Empresarial. Lisboa: Edições Sílabo, 2004, pp. 215-230. 195 cia das teorias pós-positivistas, nomeadamente do construtivismo, a estratégia tem vindo a sofrer, tal como a concepção de segurança, várias alterações9. Para António Horta Fernandes (2007: 5-6) [O] exercício prudencial da estratégia e a retroação desta sobre a política tende a desarmar a ideia de política internacional como mero jogo de poder, num cenário de confrontação entre entidades soberanas, ou que atuam inspiradas em racionais soberanos. Esta mudança no paradigma foi, para este autor, influenciada pelos estudos para a paz e os estudos para a segurança. Se atendermos aos caminhos trilhados pelos estudos da segurança nos últimos anos, assistimos a uma visão integrada, que cobre, simultaneamente, o domínio da conflitualidade e da defesa, quanto o da segurança humana a distintos níveis. O número de atores internacionais – estatais e não-estatais, legais e não legais subiu drasticamente, e como consequência a segurança, e inevitavelmente, a estratégia, tornaram-se conceitos multidimensionais. Os novos objetivos da segurança ultrapassaram a esfera exclusivamente militar, traduzindo-se hoje, na prevenção de conflitos, na limitação de danos, na cooperação e na promoção de valores como a democracia e os direitos humanos, alterandose a própria panóplia de instrumentos na prossecução da estratégia da segurança. Para Horta Fernandes “A estratégia é hoje uma área central da reflexão no âmbito das Relações Internacionais, ainda que uma tal relevância nem sempre seja vertida em conteúdos e disciplinas de natureza académica. É evidente que num mundo onde a conflitualidade hostil, o núcleo por excelência da estratégia, não desapareceu nem é expectável que venha a desaparecer num horizonte temporal próximo, os racionais (estratégicos) que os diversos atores internacionais mobilizam para lidar com o conflito são essenciais, independentemente da matriz de análise teórica das relações internacionais ser ou não realista. Isto é, a estratégia, mais ainda que a matriz de racionalização face aos conflitos é verdadeiramente um dado com o qual os atores internacionais, nomeadamente os atores soberanos, na forma de Estado-Nação, têm de contar”. Cfr. Fernandes, A. “A Estratégia e as Relações Internacionais”. Nação e Defesa , nº 122, 2009, pp. 151-172. 9 196 2. Genealogia da Estratégia Global Europeia de Segurança O Ministro dos Negócios Estrangeiros grego, no Conselho Informal de Assuntos Gerais e Relações Externas, afirmava que “existia uma necessidade urgente de um conceito estratégico Europeu”. Mas, e em boa verdade, a construção da EES, não foi somente guiada por pressões endógenas10, mas também por necessidades de reforma exógenas, fruto das dinâmicas do sistema internacional. O 11 de Setembro de 2001 e a Guerra do Iraque em 2003 influenciaram a vontade dos Estados-membros de reconsiderar o pensamento estratégico subjacente à política externa e de defesa, impossível aquando do seu nascimento, poucos anos antes. Por esta altura, muitos acreditavam que o mundo se encaminhava para uma sociedade global baseada em ideais partilhados e regulado por instituições supranacionais, um mundo onde o soft power e as inclinações internacionalistas seriam mais importantes que que os interesses particulares de estados e os recursos de poder (TOJE, 2010, p. 77). Os vários Estados até poderiam ter motivações diferentes: definição de um distinto “modo Europeu” de forma a distanciarem-se a eles próprios da política externa norte-americana, com a qual não concordavam, sublinhando alternativas, alinhando as prioridades europeias com os EUA para países terceiros, conservando simultaneamente a aliança transatlântica que se sentia ameaçada na sua existência; ou mesmo a combinação de ambos, reconciliando a necessária elaboração de uma agenda da UE com a necessidade da manutenção da aliança transatlântica. Independentemente da motivação, o que se revelou realmente importante foi a capacitação desta conjuntura para relançar o debate estratégico na UE, e de traduzir o debate político em estratégia, ultrapassando claramente aspetos conjunturais. Os trabalhos preparatórios da EES foram conduzidos pelo Secretário-Geral do Conselho da UE e Alto Representante (SG/HR), Javier Solana. Na reunião informal do Conselho de Relações Externas e Assuntos Nas palavras do Ex- Primeiro-Ministro Sueco Carl Bildt: “our number one capabilities gap was not in smart bombs, but in smart policies”. Carl Bildt, ‘We Have Crossed the Rubicon – But Where Are we Heading Next? Reflections on the European Security Strategy versus the US National Security Strategy’. Lecture, Centre for European Reform, London, 17 November 2003. 10 197 Gerais, na Grécia, a 2 e 3 de Maio, Javier Solana, inesperadamente produziu um esboço de um documento estratégico. Este documento preliminar foi posteriormente analisado pelo Comité Político e de Segurança, grupos de investigação e pela própria comunidade política com vista a assegurar a sua aceitação e adopção pelos Estados-membros. O Parlamento Europeu foi também informado (informalmente, entenda-se) através do Comité para os Assuntos Externos (QUILLE, 2004, p. 65). Na Reunião em Salónica, a 19 e 20 de Junho, o Conselho Europeu recebeu o documento, que foi devidamente adoptado como Estratégia Europeia de Segurança, em Dezembro de 2003, pelo Conselho Europeu. Depois deste processo pouco ortodoxo, poucas foram as alterações feitas para o documento final, ficando este como um documento com pouca visibilidade e pouca influência por parte dos Estados-membros (BISCOP, S. and Anderson, Jan., 2008, p.2). Este contributo negligenciável por parte dos Estados-membros foi também observada como um ato de excepcional confiança por parte dos Estadosmembros a Javier Solana e à sua equipa e uma forma extraordinária de desenvolvimento de documentos políticos dentro da UE (BAILES, 2005, p.11). Apesar do documento ter sido recebido de forma positiva, por sumarizar as aspirações de segurança da UE e estabelecer princípios e objectivos claros para promover os interesses da UE, em matéria de segurança, com base nos valores fundamentais europeus, muitas foram também as vozes críticas que se levantaram relativamente à sua génese (HEISBOURG, 2004; TOJE, 2005), defendendo que refletia somente as percepções internas, sendo unicamente um documento reativo e de codificação de facto (BISCOP, 2008, p.7). Tratou-se de uma iniciativa top down, sumária e concisa ao contrário de outros documentos políticos da UE (BIRD, 2007, p.185). 2.1. Estratégia Europeia de Segurança Na Introdução à Estratégia Europeia de Segurança (doravante EES) encontra-se sublinhado o fato da União Europeia [d]ever estar pronta a assumir a sua parte de responsabilidade na segurança global e na criação de um mundo 198 melhor” (CONSELHO EUROPEU, 2003, p.1). Existindo um claro apelo à responsabilidade da segurança global, assim como da própria segurança: “A Europa continua a ver-se confrontada com ameaças e desafios em matéria de segurança”11 (Ibidem). A EES foi baseada claramente em pressupostos globais e holísticos. (STEN RYNNING, 2003, p.482) declarando que a UE e os seus Estadosmembros deveriam cooperar para atingir as suas prioridades em matéria de segurança, num quadro que enfatiza as instituições multilaterais12 (especificamente a ONU e organizações regionais) e o primado do direito (sustentando o princípio do uso de força como um último recurso). A Estratégia seria organizada em três capítulos: Análise do ambiente de Segurança; a definição dos três objectivos estratégicos e uma avaliação das implicações políticas para a UE. Relativamente ao primeiro capítulo, durante o período da Guerra Fria, a segurança europeia foi caraterizada com base numa concepção unidimensional em termos político-militares, para anular o perigo militar de um inimigo claramente identificado. Esta definição unidimensional foi o produto de uma constelação bipolar, na qual a segurança da Europa dependia objetivamente de evitar um conflito armado no seu território, mantendo o equilíbrio e a balança de poder político-militar e nuclear entre os EUA e a URSS. Desta forma, a política de segurança da Europa, foi delineada sucessivamente pelos EUA dentro da estrutura da NATO, e limitada à política de defesa, estando o conceito de segurança reduzido à dimensão realista, com ferramentas de hard power. As dimensões não militares da segurança eram vistas com algum menosprezo, dadas as poucas implicações neste quadro de Guerra Fria. O fim da bipolaridade provocou uma mudança radical no ambiente de segurança europeu, nomeadamente o fim da Fazendo uma clara referência aos Balcãs “A eclosão do conflito nos Balcãs veio lembrarnos que a guerra ainda não desapareceu do nosso continente. Ao longo da última década, não houve no mundo uma única região que tivesse sido poupada a conflitos armados”. Op. Cit. p. 2. 12 “São poucos ou nenhuns os problemas que temos capacidade para enfrentar sozinhos. As ameaças acima descritas são ameaças comuns, que partilhamos com todos os nossos parceiros mais próximos. A cooperação internacional é uma necessidade. Devemos prosseguir os nossos objectivos, tanto através da cooperação multilateral nas organizações internacionais como por meio de parcerias com atores essenciais. 11 199 ameaça militar direta à segurança Europeia. Como consequência, a política de defesa tornou-se menos importante, e os Estados-membros deixaram de se sentir ameaçados, e rapidamente ensaiaram desejos de alargamento à Europa Central e Oriental (DEUTSCH, Karl W., 1957). Contudo, este novo ambiente internacional desencadeou uma vaga de conflitos armados inter e intra-estados nos países vizinhos da UE. Na ausência de uma ameaça militar importante, outras ameaças subjacentes ao terrorismo ou aos conflitos armados entre ou dentro esses países começaram a afetar intrinsecamente os valores e interesses da UE e constituir neste quadro, as principais fontes de ameaça à sua segurança: como o crime organizado, a imigração ilegal, subdesenvolvimento económico e social, e falta de instituições democráticas e o respeito pelos direitos humanos, os estados falhados, instituições multilaterais ineficazes, problemas ambientais, entre outros, mais difíceis de combater do que a anterior ameaça claramente identificada. No segundo capítulo, a EES definiu os seus objetivos estratégicos. Para, Emil Kirchner e James Serling, “the document also makes a distinction between vital and value interests by linking the former to the security and prosperity of the EU and its Member States” (KIRCHNER e SERLING, 2002, p.427): enfrentar as ameaças; criar segurança na vizinhança13; e contribuir para uma 13 Na verdade, o surgimento do pensamento estratégico europeu surgiu fruto do relacionamento com os países vizinhos. A UE tinha já adoptado vários documentos de caráter estratégico, embora numa base regional. A abordagem global à segurança é particularmente visível na política da UE para países vizinhos, que tem tentado integrar através de uma vasta rede de relações, como testemunham o Pacto de Estabilidade para os Balcãs, a Parceria Euro-Mediterrânea, e a ajuda à transição da Europa Central e de Leste, considerada por alguns autores a maior conquista da Europa desde o início do projeto de integração. A abordagem global de segurança é particularmente visível da política da UE relativamente aos Estados vizinhos, que tenta integrar numa complexa rede de relações, como são testemunha o Pacto de Estabilidade para os Balcãs, a Parceria Euro-Mediterrânea, e a transição de sucesso, dos países da Europa Central de Leste, provavelmente a maior conquista da Europa desde o início do seu processo de integração. Sob a epígrafe, ‘Wider Europe/Neighbourhood Policy’, esta abordagem foi também promovida pela Comissão através de uma estrutura melhorada das relações entre a UE e os seus vizinhos. O Objectivo desta política de vizinhança consiste em alcançar uma “área de prosperidade e valores partilhados”, através de uma integração económica, ao estabelecimento de relações políticas e culturais e co-responsabilidade na prevenção de conflitos. Para este fim, a EU tem vindo a oferecer vários “benefícios”, por exemplo no campo do acesso aos mercados e investimentos, concedidos mediante 200 ordem internacional baseada num multilateralismo efetivo14, apresentandose os dois primeiros como “vitais” e o último como “valor”. No que diz respeito ao primeiro objetivo – enfrentar ameaças - a UE pretende responder às atuais ameaças com uma panóplia diversificada de instrumentos, nomeadamente económicos, políticos, humanitários, policiais, judiciais e militares. A articulação de vários instrumentos tem sido visível nas diversas missões realizadas no âmbito da PCSD, ao longo dos últimos dez anos. Relativamente ao segundo objetivo, a relação da UE com a sua vizinhança, em particular os vizinhos do continente europeu, pode ser considerada um “complexo de segurança”, tal como definiu Buzan (1981: 190) “a group of States whose primary security concerns link together sufficiently closely that their national securities cannot realistically be considered apart from one another”. Por último, e com a referência à globalização, a EES define como objectivo estratégico final o estabelecimento de “uma ordem internacional baseada no multilateralismo efetivo”: uma sociedade internacional mais forte e instituições internacionais que funcionem sem atritos e onde se respeite as regras estabelecidas. O epicentro deste sistema são as Nações Unidas “Reforçar as Nações Unidas e dotá-la dos meios necessários para que possa cumprir as suas missões e atuar de forma eficaz é uma das prioridades da Europa” (CONSELHO EUROPEU, 2003, p.9). O aspeto principal desta atuação consiste na transformação do objeto da estratégia, e necessariamente dos seus meios e dos seus objetivos. os progressos demonstrados no campo das reformas económicas e políticas nos Estados Vizinhos. Comissão Europeia (2003) ‘Wider Europe – Neighbourhood: a New Framework for Relations with our Eastern and Southern Neighbours’. Bruxelas: Comissão Europeia, disponível no site http://ec.europa.eu/world/enp/pdf/com03_104_en.pdf [acedido a 5 de Novembro de 2008]Vide por exemplo: Comissão Europeia. European Neighbourhood Policy. Strategy Paper. Bruxelas: Comissão Europeia, 2004 14 A EES não refere de forma contundente a forma de governação global que deva ser perseguida, ou como a própria arquitetura institucional deva ser melhorada e quais serão as prioridades políticas que deverão ser tomadas, além do controlo da proliferação de armamento e do terrorismo, que constituem somente duas das várias questões globais que necessitam de rápida resposta. Talvez, a própria EES pudesse ter indicado uma direção-geral, o que não se verificou. Constata-se aliás que a necessidade de um governo global parece ter sido obscurecida pela enfâse colocada nos aspectos político-militares 201 Pese embora a construção normativa num quadro geral subjacente à estratégia, encontramos o esboço da alteração do paradigma estratégico europeu principalmente relativo aos instrumentos para prossecução dos seus objetivos, na sua terceira parte, acerca das Implicações Políticas para a Europa, nomeadamente o parágrafo que refere que a UE dever ser mais ativa e aplicar “toda a gama de instrumentos de que [dispõe] para a gestão de crises e a prevenção de conflitos, incluindo atividades de natureza política, diplomática, civil e militar, comercial e em matéria de desenvolvimento” (Ibidem: 11). Em primeiro lugar, o preço será pago em termos de sanções económicas reduzindo as parcerias e a cooperação, evidenciando claramente o uso da noção de condicionalidade na Estratégia, mas quando necessário, poderá incluir ainda numa fase inicial, o uso da intervenção militar. 2.2. Relatório de Execução de 2008 Apesar do documento original de 2003, ser considerado na sua generalidade um bom documento, a EES começou a ser repensada logo nos anos seguintes e solicitado pela presidência francesa15, a qual reconhecia que o mundo tinha mudado profundamente. Durante os cinco anos que decorreram após o lançamento da EES, vários debates se sucederam com o intuito de avaliar a EES e encontrar as ferramentas necessárias à sua melhor implementação e garantia de eficácia. Destes debates, salientam-se aqueles que foram promovidos pelos Institute for Security Studies da UE, não só pela identificação de novas ameaças, como também pela avaliação da ação externa da UE após a sua Estratégia16. Apesar desta necessidade de- 15 Este acontecimento coincidiu com a total operacionalidade alcançada pela PCSD, a possível re-integração da França na NATO e a tomada de posse de um Novo Presidente Americano. 16 Os Debates promovidos pelo Institute for Security Studies no Ano de 2008, decorreram em Vilnius (29 e 30 de Maio); Roma a 5 e 6 de Junho (fornecendo uma visão geral do ambiente de segurança); Varsóvia (27 e 28 de Junho (Centrado na política de Vizinhança) Helsínquia (18 e 19 de Setembro( focalizado na PESD); Paris ( de Julho e 2 e 3 de Outubro Focado nas considerações estratégi- 202 tectada, nem todos os governos concordaram com a revisão da EES. Alguns países, especialmente a Alemanha que temia que a reabertura da Estratégia pudesse desencadear um debate pouco confortável sobre a Rússia, criando ou reforçando as divisões entre os novos e os velhos Estadosmembros, e o Reino Unido, que pretendia que a PCSD se concentrasse nas reais capacidades, e não em revisões de aperfeiçoamento doutrinal17. Outros países temiam ainda a securitarização das políticas da UE nos campos da energia e do ambiente. Outras preocupações diziam respeito ao medo do enfraquecimento da EES. A adicionar a estas dificuldades, encontravamse também em curso os esforços para a aprovação do Tratado de Lisboa. Por último, existiam ainda algumas reservas acerca do próprio método de Solana e da própria amplitude que o seu mandato estaria a tomar (TOJE, 2010). À agenda pós-moderna tão presente no documento de 2003, juntaram-se novas ameaças, nomeadamente a Guerra. O retorno aos conflitos e a crise financeira global, tinham alterado o modus operandi das relações internacionais. As alterações no sistema multipolar foram acompanhadas pelo ressurgimento das power politics e pelas pressões crescentes na estrutura institucional e normativa. Não obstante todas estas vicissitudes é aprovado, sob a forma de Relatório, pelo Conselho Europeu de 11 de dezembro de 2008, a revisão da EES de 2003, com o título de “Relatório sobre a execução da Estratégia Europeia de Segurança – Garantir a Segurança num Mundo em mudança” (CONSELHO EUROPEU, 2008). Este documento fez uma avaliação da implementação da EES desde 2003, atualizando as ameaças, e reforçando aspetos como as alterações climáticas, as vulnerabilidades no acesso à energia e sistemas de informação e a questão da saúde pública. cas) Disponíveis os programas e os relatórios em www.iss.europa.eu/seminars/select_category/26/?tx_ttnews[pS]=1199142000&tx_ttnews[pL]=316223 99&tx_ttnews[arc]=1&cHash=d882d0d692 17 Um diplomata francês envolvido nos aspectos da política de segurança referiu que “Britain and Germany opposed any new strategy. The British, particularly, were concerned that CSDP should delivery tangible capabilities, not more visionary statements. In Germany the previously mentioned debate over their forces in Afghanistan made any debate on military security difficult” Personal communication, senior German Diplomat (Berlin, 6 May 2009) em The EU Security Strategy Revised: Europe Hedging Its Bets ASLE TOJE European Foreign Affairs Review. Vol. 15 (2010), pp.171–190. 203 Em relação ao texto de 2003, as referências explícitas ao ator global são preteridas pela projeção do ator normativo e peace-settler, enquanto ator ativo na comunidade internacional, consciente das suas responsabilidades e pró-ativo na sua ação estratégica, pese embora as suas deficiências relativamente às situações em que os meios militares poderão ser empregues e em relação às questões de coordenação institucional. Em boa verdade, o Relatório não pode ser qualificado como uma "revisão estratégica" no sentido em que o mesmo não avaliou a eficácia do documento precedente, a interação entre as políticas e ações, ou a própria (re)definição da política externa e de defesa da União, e das suas prioridades políticas. 3. Estratégia Global para a Política Externa e de Segurança da EU Depois das inovações introduzidas pelo Tratado de Lisboa, nomeadamente da Cooperação Estruturada Permanente (art. 42º, art.46 e protocolo 10) que vem permitir uma maior cooperação entre os Estadosmembros que disponham das capacidades militares necessárias e das cláusulas de assistência mútua (art. 42º-7) e de solidariedade (art. 222º) ambas respeitantes à solidariedade entre os Estados-membros, no campo da segurança e defesa e do próprio alargamento das missões de gestão de crises (art. 43ª), observou-se um hiato entre o campo doutrinal com a estratégia de 2003. Simultaneamente, a Primavera Árabe, a invasão da Crimeia pela Rússia, o surgimento do Estado Islâmico e da proclamação do Califado no Iraque e na Síria em 2014, seguidos pelos ataques terroristas a várias cidades europeias colocaria novamente a segurança e a Defesa na agenda de Bruxelas. Conduto, as expectativas mais ambiciosas, de uma revisão estratégia até 2015, seriam defraudadas, quer por falta de vontade política para implementar a PCSD, quer pelo período de estagnação que entrou a defesa europeia, depois da crise das dívidas soberanas. Apenas em junho de 2015, os Estados-Membros apelariam à apresentação ao Conselho Europeu de uma Estratégia Global da UE sobre política Externa e Segurança da UE, até junho de 2016, acordando também 204 na prossecução dos trabalhos com vista a uma política comum de segurança e defesa mais eficaz, visível e orientada para os resultados. Assim, a Estratégia Global para a política externa e de segurança – Visão partilhada, ação comum: uma Europa mais forte" seria apresentada, ao Conselho Europeu, a 28 de junho de 2016 (SEAE, 2016)18, depois de uma equipa liderado por Nathalie Tocci, subdirectora do Istituto Affari Internazionali, ter desenhado a estratégia em torno do conceito de resiliência, no sentido de reforçar a capacidade da UE de resistir às ameaças internas e externas, de acordo com as preferências dos Estados-Membros e dos cidadãos europeus19. Do documento apresentado são visíveis cinco prioridades para a ação externa da UE: 1. A UE deve melhorar a segurança da União, referindo-se especificamente a medidas de combate ao terrorismo, às ameaças híbridas, às alterações climáticas e à segurança energética. Para além de melhorar as suas capacidades de defesa, o documento solicita que a UE intensifique os seus esforços no domínio da cibersegurança e das comunicações estratégicas. 2. A UE deve procurar reforçar a capacidade de resistência dos Estados e das sociedades do Leste e do Sul, que abrange um perímetro geográfico delimitado pelos Balcãs Ocidentais, África Subsaariana e Ásia Central; e estabilizar as frágeis estruturas estatais e que envolve uma política migratória mais eficaz centrada nos países de origem e de trânsito dos migrantes e refugiados. 18 O termo estratégia Global, para o General Beaufre, correspondia a uma estratégia ampla, com objectivos de política externa a serem realizados a longo-prazo, com uma vasta categorização dos instrumentos e meios a serem utilizados para a obtenção desses objectivos. Sobre este assunto ver também Kennedy, P. (ed.) (1991). Grand Strategies in War and Peace. New Haven: Yale University Press. Gaddis, J.L. (2004). Surprise, security, and the American experience. Boston: Harvard University Press. 19 A política Externa apresenta-se como a área em que os Europeus querem mais Europa. Uma sondagem de 2016 revelou que 74% dos europeus gostariam de ver um papel mais forte da UE no mundo. Pew, Europeans Face the World Divided, June 2016, p. 5, Disponível na internet file:///C:/Users/Tocci/Downloads/PewResearch-Center-EPW-Report-FINAL-June-13-2016.pdf (consultado a 2 de abril de 2017) 205 3. A UE deve elaborar uma abordagem integrada da UE em matéria de conflitos e crises baseada na paz preventiva, na segurança e na estabilização, na resolução de conflitos e na "economia política". 4. A UE deve fazer uso da sua experiência com os efeitos de promoção da paz e do processo de integração para apoiar as ordens regionais em todo o mundo; 5. A UE deve assumir um compromisso renovado com um sistema multilateral de governança global, com base no direito internacional, a fim de garantir o respeito pelos direitos humanos e os princípios do desenvolvimento sustentável e garantir "um acesso duradouro aos bens comuns globais". (SEAE 2016) Com o propósito de transformar esta visão em ação, a Estratégia Global insta, finalmente, a um investimento colectivo na credibilidade da UE, nomeadamente, mas não exclusivamente, através de capacidades reforçadas de defesa e segurança, da capacidade de resposta, através de instrumentos diplomáticos, de segurança e de desenvolvimento mais reactivos, através de inovações institucionais e de políticas, incluindo o papel do SEAE e da "abordagem global" da UE em relação a conflitos e crises e através de melhores ligações entre as políticas internas e externas da UE, tal como exigido pelos fenómenos de migração e terrorismo. Observa-se que a Estratégia Global reflete por um lado, a alteração no ambiente de segurança e por outro a necessidade de responder a essa metamorfose com um vasto conjunto de ferramentas, apresentando-se com ambições “duplamente globais”, quer em termos geográficos quer ao nível das temáticas (ZANDEE, 2016, p.26) Ao contrário do modelo seguido após a EES de 2003 e do Relatório de Implementação de 2008, a UE tem-se empenhado na necessidade de efetivação da Estratégia Global, tendo-se assistido, nos últimos meses, pelo menos de uma forma declaratória por parte do Conselho e da Alta Representante à elaboração de vários documentos com o objetivo quer da sua implementação e , simultaneamente, da sua exequibilidade, nomeadamente através do delineamento de um plano de ação que incorpore os três elementos considerados estratégicos: (i) Nível de ambição e missões; (ii) capacidades; e (iii) Instrumentos necessários para um maior empenhamento Estados-Membros. 206 Ora, é exatamente no aspecto da execução da Estratégia Global, que a mesma se diferencia da sua antecessora. Nas palavras de Nathalie Tocci (2016, p.462) “An EUGS therefore had to be actionable: it could not limit itself to the vision, but had to point the way forward regarding the action.”. 3.1. Roteiro de Bratislava Na Cimeira de Bratislava a 16 de Setembro de 2016 (CONSELHO EUROPEU, 2016) , o Presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk20, a Presidência eslovaca do Conselho e a Comissão Europeia estabeleceram um "roteiro", que consiste num programa de trabalho para refletir a União Europeia sem o Reino Unido e o futuro da integração Europeia, incluindo a integração na política de defesa, apresentando aos líderes da UE a oportunidade de apresentarem uma ampla exposição da unidade europeia ao mundo, numa altura em que a UE era criticada pela sua resposta fragmentada a questões sensíveis, como a crise dos refugiados21. O principal resultado da reunião foi o acordo da UE sobre o Roteiro de Bratislava, e de conjunto de objectivos políticos e calendários provisórios concebidos para orientar a União nos próximos meses. Neste documento são visíveis as seguintes prioridades: 1. Migração e fronteiras externas – restabelecer o controlo total das 20 Na preparação do Conselho de Bratislava, o Presidente do Conselho Europeu, Tusk, consultou os Estados-Membros para debaterem as suas preocupações e perspectivas sobre as questões atuais, procurando identificar áreas comuns, as quais foram publicadas a 13 de setembro e identificou como prioridade a segurança interna, defesa externa e questões econômicas e sociais. Em contraste com o discurso do Presidente da Comissão Europeia Juncker sobre o Estado da União, a carta do Presidente Tusk solicita um "equilíbrio saudável" entre as prioridades dos Estados-Membros e as instituições da UE. Sublinha, também, que as instituições da UE devem apoiar as prioridades acordadas entre os Estados-Membros e não impor as suas próprias. 21 A Cimeira de Bratislava é única em termos de negociações do Conselho Europeu, tanto em formato como em conteúdo. Não só marca a primeira reunião sem a presença do Reino Unido em 43 anos, mas também marca a primeira séria troca de opiniões sobre o futuro do projeto europeu nos últimos anos. 207 fronteiras externas 2. Segurança Externa e Defesa – garantir a segurança interna, combater o terrorismo e reforçar a cooperação da UE em matéria de segurança e defesa externas 3. Desenvolvimento Económico e Social – relançar o mercado único. (CONSELHO EUROPEU, 2016) Este documento veio confirmar o nível de ambição, desde a gestão das crises até à proteção da Europa e propor a alteração dos procedimentos da PCSD (financiamento das missões, avaliação das ameaças, coordenação do planeamento) e estruturas, bem como o desenvolvimento de capacidades (plano de desenvolvimento, autonomia estratégica, base industrial, propostas da Comissão) e mecanismos de cooperação (cooperação estruturada permanente, NATO-UE). Este documento, induziu, ainda, à atualização ou elaboração de estratégicas temáticas ou geográficas: incluindo, entre outras, uma Estratégia Regional da UE para a Síria e o Iraque e uma Estratégia UE-África centrada na juventude, que permita responder aos desafios migratórios- 2016/2017; No entanto, a Cimeira também revelou o surgimento de novas alianças e divisões entre os Estados-membros. Tradicionalmente, a UE tem sido dividida numa base regional, com o grupo do Norte liderado pela Alemanha e o grupo do Sul liderado pela França. O Reino Unido tem sido há muito tempo percebido como um contrapeso para esses eixos.22 A decisão do Reino Unido de abandonar a UE acelerou a tendência dos EstadosMembros de procurar parceiros com a mesma opinião na tentativa de se posicionarem numa União de 27 membros23. Estes novos subgrupos são 22 Outros grupos, como o Triângulo de Weimar entre a Alemanha, a França e a Polônia, quase desapareceram, à medida que suas prioridades internas e liderança política mudaram. 23 A mais visível destas novas alianças foi o Grupo Visegrád (Polónia, Hungria, República Checa, Eslováquia), que tem repetidamente condenado o tratamento dado pela UE à crise migratória e apelou ao reforço do papel dos parlamentos nacionais. O grupo reuniu-se informalmente antes da Cimeira para acordar posições comuns, Em 9 de Setembro de 2016, a Grécia acolheu o encontro inaugural dos Estados "EUMed" (Portugal, Espanha, Itália, Chipre, Malta, França). Na sua Declaração Comum, apelaram a políticas da UE centradas na promoção do crescimento e do emprego. Este documento reflecte as tensões existentes entre o 208 em grande parte definidos pelas suas posições sobre os grandes desafios e crises que se atravessam, nomeadamente no que diz respeito à sua posição sobre a crise dos refugiados e a governação securitária e económica. 3.2. Plano de Implementação sobre Segurança e Defesa Depois do Roteiro de Bratislava ter estabelecido o guião que a UE deveria seguir para a implementação da Estratégia Global da UE, surge a 14 de novembro de 2016, o Plano de Implementação sobre Segurança e Defesa, com vista a executar a Estratégia Global propõe que a ação da União Europeia se centre nos seguintes elementos: Definição de um novo nível de ambição, capaz de responder aos conflitos externos e crises, capacitação de parceiros com vista à proteção da União e dos seus cidadãos. O plano reconhece ainda que para a concretização deste novo nível de ambição será necessário a adopção de medidas tangíveis, de uma forma credível, nas palavras da Alta Representante, "This is no time for theoretical or abstract discussions on European defence. (The Plan) is about doing concrete things, as of tomorrow, together." (MOGHERINI, 2016). Assim, o Plano estabelece: 1. Identificação das Prioridades ao nível do Desenvolvimento de Capacidades  Revisão do Plano de Capacidade Civis, incluindo a capacidade de resposta  Elaborar um Plano de Ação de Defesa Europeia (PAED) para apoio de capacidades;  Explorar a Cooperação Permanente Reforçada (arts. 42º e 46º do TUE e Protocolo 10);  Criar um Semestre europeu de Defesa (em analogia ao modelo adotado pela UE no âmbito da UEM) para encorajar um Norte eo Sul em relação às questões económicas e, mais especificamente, as tensões entre a Alemanha e os Estados-Membros do SulEUMed Rebellion: EU Falling Apart Never to Be <<United Europe>> We Once Knew. September 2016. Available at: http://www.strategic-culture.org/news/2016/09/15/eumed-rebellion-eu-falling-apart-never-united-europe-we-once-knew.html 209 maior grau de compromisso entre os EM em matéria de defesa;  Reforçar a BTIED, incluindo a investigação conjunta e aquisição através de um futuro Programa de Defesa Europeia e identificação de áreas estratégicas; 2. Possíveis alterações das estruturas institucionais e procedimentos:  Estabelecimento de um Quartel General Único, com vista a reforçar a capacidade de planeamento e condução de missões e operações e a reação rápida;  Expandir as capacidades de resposta através do desenvolvimento de instrumentos de reação rápidos, incluindo opções para o uso dos Battlegroups e o artº 44º TUE.  Revisão dos arranjos financeiros, incluindo o mecanismo Athena;  Reforçar a análise da situação e a partilha de informação.  Parceiros em segurança e defesa: NATO; Cooperação com as NU, União africana, OSCE e parceiros bilaterais chave como os EUA; apoio aos países parceiros sobre a prevenção de conflitos e resolução de crises 3. Diplomacia Pública e Multilateralismo EUROPEAN UNION, 2016) (COUNCIL OF 3.3. Conclusões do Conselho A 6 de Março de 2017, as Conclusões do Conselho sobre o progresso na implementação da Estratégia Global da sublinha, também, que se deve melhorar as estruturas de Gestão de crises da PCSD; continuar a trabalhar na Cooperação Estruturada Permanente (PESCO); revisão Anual Coordenada de Defesa; desenvolvimento das capacidades civis; implementação em várias outras áreas (reforço do multilateralismo, revisão do Plano de Desenvolvimento de capacidades e do mecanismo Athena) (COUNCIL OF EU, 2017). Recentemente, a 18 de Maio de 2017, o conselho Europeu sublinhou que aguarda com expectativa, a criação efetiva, como objectivo a 210 curto prazo, da Capacidade de Planeamento e Conduta Militar (MPCC) no Estado-Maior da UE em Bruxelas24. O Conselho reiterou, também, o seu apelo a uma rápida conclusão dos trabalhos sobre a proposta legislativa de alteração do instrumento que contribui para a estabilidade e a paz, enquanto contributo importante para permitir que a UE dê capacidade de forma eficaz, responsável e transparente e o âmbito geográfico flexível da iniciativa e, neste contexto, exorta a prosseguir os trabalhos em curso, incluindo os casos-piloto, bem como identificar e desenvolver novos projectos no domínio do reforço das capacidades de apoio à segurança e ao desenvolvimento (CBSD). O Conselho recorda ainda a sua proposta de elaborar um instrumento específico para o reforço das capacidades, estando previsto para junho de 2017 a implementação pela Comissão do Plano de Ação Europeu para a Defesa de Novembro de 2016, centrado na criação do Fundo Europeu de Defesa (COUNCIL OF EUROPEAN UNION, 2017a)25. 4. Conclusão 24 O qual deverá assumir responsabilidades a nível estratégico para o planeamento operacional e a condução das missões militares não executivas da UE, sob o controlo político e estratégico Orientação do Comité Político e de Segurança. O Diretor-Geral do Estado-Maior da UE será o Direcor do CPPM e, nessa qualidade, assumirá as funções de comandante de missões para missões não executivas de PSDC, incluindo as três missões de formação da UE destacadas na República Centro-Africana, no Mali e na Somália 25 A Comissão já tinha elaborado um roteiro para facilitar o acesso da indústria da defesa aos fundos de I & D de que fora excluído, para o qual teve de criar uma linha especial de financiamento, o que permitiria à indústria da defesa aceder a fundos específicos de investigação tecnológica em 2017 antes de poder aceder aos do quadro financeiro plurianual (2021-2027). Mais tarde, elaborou um outro relatório de execução em Maio de 2015, a fim de informar o Conselho Europeu de Junho de 2015 sobre os progressos realizados desde 2013. Vide Report from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions, COM (2014) 387 24 June 2014 on A new deal for European defence. Implementation Roadmap for Communication COM (2013) 542. Towards a more competitive and efficient defence and security sector 211 A Estratégia Europeia de Segurança de 2003 representou mais do que seu texto afirmou, pois possibilitou a construção de uma “cultura estratégica”. A EES plasmaria, pela primeira vez, num documento estratégico da UE, a sua afirmação de uma potência nas relações internacionais. A EES rapidamente se disseminou como uma espécie de manifesto para a projeção da União como comunidade produtora e promotora de normas e valores naturalmente exportáveis, seja para a sua vizinhança próxima, seja para o resto do mundo, com o enquadramento legal devido, quer a nível decisório, quer a nível operacional. O documento articulou o pensamento estratégico europeu, e conceptualizou o que a UE pensa dela própria e como vê o seu próprio papel no ambiente internacional e o seu relacionamento com os outros atores. Acima de tudo, a EES criou um circulo virtuoso para uma ação política da UE mais forte e abriu novos caminhos e em vários domínios. Contudo este documento não pretendeu ser eterno e preservado para sempre, mas que evoluísse e se desenvolvesse tal como a própria UE e o sistema internacional. Na verdade, o ambiente de ameaças conheceu várias alterações desde 2003 e 2008. Se o terrorismo, a proliferação de ADM, os conflitos regionais, os Estados-falhados, o crime organizado, a insegurança energética e as alterações climáticas ainda estão entre nós, o seu caráter e o seu contexto alterou-se significativamente. A amplitude e a velocidade das modificações introduzidas pela invasão da Crimeia pela Rússia, “Primavera Árabe” nos países vizinhos do Norte de África e do Médio Oriente, o Estado Islâmico revelaram o ritmo de mudança no ambiente de ameaças, como a crise dos refugiados. O atual sistema internacional e o deslocamento geopolítico revelaram também a ascensão inexorável de potências mundiais, como a China, a Índia, ou o Brasil; novas parcerias estratégicas; e a evolução das relações com organizações internacionais, que necessitam de um “multilateralismo renovado”. Com efeito, a apresentação da Estratégia Global da UE para a Política Externa e Segurança, em Junho de 2016, surge, mesmo, tardiamente. Mas a hora é, agora, de escolhas. A União Europeia perderá um dos cofundadores da própria política de segurança e defesa da UE em Saint Malo, o Reino Unido, que de acordo com a Agência Europeia de Defesa, foi o Estado-Membro da UE que mais gastou em defesa em termos totais, um 212 dos poucos que compromete mais de dois por cento do PIB para as despesas de defesa e o país com maior número total de forças terrestres projectáveis. Contudo, o Reino Unido, foi também o país da UE que manteve sempre a NATO como plataforma preferida para a intervenção militar comum no exterior impedido, repetidas vezes o desenvolvimento de capacidades militares europeias comuns, incluindo a criação de estruturas permanentes de Comando e Controlo para a UE. A acrescentar ao Brexit, também a nível endógeno, a UE vive uma divisão relativamente ao acolhimento de Refugiados. Com efeito, os tempos de crise não costumam ser associados à profunda reflexão, mas representam, algumas vezes, momentos de oportunidade. Ora, o desenvolvimento da Estratégia Global está, por enquanto, a conciliar as várias iniciativas de execução sem grandes problemas. Convém salientar, em particular, os progressos realizados na cooperação entre a NATO e a UE (equilíbrio de encargos e responsabilidades de ambos os lados do Atlântico) como o nexo e as expectativas de cooperação que se abriram entre o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça e a Política Externa e de Segurança, reforçando o nexo interno-externo (integrando os processos de internacionalização e internalização das duas esferas de segurança). No entanto, um consenso excessivo pode comprometer a diluição e a UE deve procurar um documento orientador forte, que reconcilie todos os Estados-Membros, uma vez que os gastos com a Defesa Europeia, ainda recaem sobre os orçamentos dos Estados-Membros que dela decidem participar. Conclui-se que elaborar uma estratégia é definir uma maneira para optimizar o uso dos meios disponíveis para a obtenção desse fim. Elaborar uma estratégia pode, no entanto, ser muito mais. No caso da União Europeia e da sua Estratégia Global, claramente se percebe que a sua estratégia se tornou simultaneamente uma questão de identidade, de credibilidade e de legitimidade. A Estratégia Global, traduz, simultaneamente um exercício de identificação de um vasto número de variáveis e compromissos – muitas vezes contraditórios – de compromissos públicos, visibilidade e ação. Assim, e para a investigação em análise, sobre a Estratégia Global para a Política Externa e de Segurança da União Europeia é defendido, que a União 213 Europeia necessita adoptar uma noção inclusiva de segurança e do seu próprio objeto. Uma estratégia global deverá tentar evitar as discórdias internas e assegurar a participação da UE no processo de tomada de decisão internacional, bem como o alinhamento do pensamento estratégico dos Estados-membros e fornecer uma linha clara para a ação. Bibliografia BAILES, Alyson. The European Security Strategy: An Evolutionary History. Stockholm: International Peace Research Institute, 2005. ISBN 664 13553 LIDDELL HART, Basil. Strategy. New York: Frederick A. Praeger, 1967. ISBN 0452010713 BEAUFRÉ, Andre. An Introduction to Strategy, with Particular Reference to Problems of Defense, Politics, Economics, and Diplomacy in the Nuclear Age. New York: Praeger, 1965. ISBN 0571089798 BEAUFRÉ, Andre. Deterrence and Strategy. New York: F.A. Praeger, 1966. ISBN 8425902568 BEAUFRÉ, Andre. Strategy of Action. London: Farber and Farber, 1967. ISBN 0844803103 BIRD, Tim. The European Union and Counter-insurgency: Capability, Credibility, and Political Will. Contemporary Security Policy. Vol. 28, n.º1, (2007), pp.182-196. BISCOP, Sven. The European Security Strategy: A Global Agenda for Positive Power. Oxon: Routledge. ISBN 0754644693. BISCOP, Sven. The European Security in Context. In: The EU and the European Security Strategy, ISBN 0415590779. Oxon: Routledge, 2008. pp.5-20. 214 BISCOP, Sven e Jan ANDERSON. The EU and the European Security Strategy: Forging a Global Europe. London: Routledge, 2008. ISBN 0415479770. BONO, G. 2006. The Perils of Conceiving EU Foreign Policy as a 'Civilizing' Force. Internationale Politik und Gesellschaft. Vol. 1, pp.150-163. BUZAN, Barry. People, States and Fear: An Agenda For International Security Studies in the Post-Cold War Era. Hertfordshire: European Consortium for Political Research Press. ISBN 0955248817 COELMONT, J. 2012. An EU Security Strategy: An Attractive Narrative. Security Policy Brief n.º 34. COMISSÃO EUROPEIA. Comunicação da Comissão sobre a Prevenção de Conflitos. COM(2001)211 final. Bruxelas: Comissão Europeia, 2001. COMISSÃO EUROPEIA. Wider Europe – Neighbourhood: a New Framework for Relations with our Eastern and Southern Neighbours. Brussels, 2003 CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Relatório sobre a Execução da Estratégia Europeia de Segurança - Garantir a Segurança num Mundo em Mudança. S407/08. Bruxelas: Conselho da União Europeia, 2008 CONSELHO EUROPEU. Declaração e Roteiro de Bratislava, 2016. Consultado a 3 de dezembro de 2016) Disponível na internet: http://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2016/09/16-bratislava-declaration-and-roadmap/ CORNISH, Paul e EDWARDS, Geoffrey. Beyond the EU/NATO Dichotomy: The Beginnings of a European Strategic Culture. International Affairs. Vol. 77, n.º 3 (2001), pp. 587-603. COUNCIL OF EUROPEAN UNION. Implementation Plan on Security and Defence. DOC. 14392/16, Brussels: European Union, November 4, 2016. 215 COUNCIL OF EUROPEAN UNION. Council conclusions on progress in implementing the EU Global Strategy in the area of Security and Defence. PRESS RELEASE 110/17 Brussels: Council of European Union, March 6, 2017. COUNCIL OF EUROPEAN UNION. Council conclusions on Security and Defence in the context of the EU Global Strategy. Doc. 9178/17. Brussels: Council of European Union, 2017b. COUTO, Abel Cabral. Elementos de Estratégia-Apontamentos para um Curso. Lisboa: IAEM, 1988. ISBN 972-618-321-9 COUTO, Abel Cabral. Da Importância de uma Teoria. In: Fundamentos de Estratégia Militar e Empresarial. Obter Superioridade em contextos conflituais e competitivos, Lisboa: Sílabo, 2002. ISBN 9726182751. pp.1722. COUTO, Abel Cabral. Posfácio. In ABREU, Francisco - Pensar a Estratégia. Do Político-Militar ao Empresarial. Lisboa: Sílabo, 2004. ISBN 9726182751. pp.215-230. COUTO, Abel Cabral. Raymond Aron e a Teoria da Estratégia. Nação e Defesa. Vol. 111, n.º3 (2005), pp.7-26. DEUTSCH, Karl W. Political Community and the North Atlantic Area. International Organization in the Light of Historical Experience. Princeton: Princeton University Press, 1957. ISBN 0837110548. FERNANDES, José Pedro Teixeira. Teoria das Relações Internacionais: da abordagem clássica ao debate pós-positivista. Coimbra: Almedina, 2004. ISBN 9789724038995. FERNANDES, António Horta. A Estratégia face aos Estudos para a Paz e aos Estudos de Segurança. Um ensaio desde a Escola Estratégica Portuguesa. Lisboa: Cadernos do IDN, 2007. ISSN 1646-4397 216 FERNANDES, António Horta. A Estratégia e as Relações Internacionais. Nação e Defesa. Vol.122, n.º4, (2009) pp. 151-172. FERREIRA-PEREIRA, Laura. 2005. A Europa da Defesa. O Fim do Limbo. Nação e Defesa. Vol. 110, 3ª Série, (2005) pp. 87-127. GNESOTTO, Nicole. L’ Union Européenne entre Terrorisme et Élargissement. Critique Internationale. Vol. 17 (2002) pp. 6-15. HEISBOURG, F. The European Security Strategy is not a security strategy. In: S. Everts, L. Freedman, C. Grant, F. Heisbourg, D. Keohane, and M. OHanlon (Eds.), The European Security Strategyis not a security strategy, Chapter 3. HOWORTH, Jolyon. Saint-Malo Plus Five: An Interin Assessment of ESDP. Notre Europe, 2003 HOWORTH, Jolyon. Security and Defence Policy in the European Union. Houndmills: Palgrave, 2007. ISBN 9780230362345. KIRCHNER, Emil and James SERLING. 2002. The New Security Threats in Europe: Theory and Evidence. European Foreign Affairs Review. Vol. 7, n.º4, pp.423-452. KUJAT, Harald. A New European Security and Defence Identity. In: The Path to European Defence - New Roads, News Horizons. ISBN 0955620287. London: John Harper Publishing (2009), pp.31-34. MARTINS, Raul François. Acerca Do Conceito de Estratégia. Nação e Defesa. Vol. IX, n.º29, 1984. pp.97-125. MENON, Anand. From crisis to catharsis: ESDP after Iraq. International Affairs. Vol. 80, n.º 4 (2004), pp.631-648. ISBN 3569527 MOGHERINI, Federica. Mogherini presents Implementation Plan on Security and Defence to EU Ministers, 2016. (consultado a 3 de Março de 217 2017) Disponível na Internet https://eeas.europa.eu/delegations/switzerland/14820/mogherini-presents-implementation-plan-on-security-anddefence-to-eu-ministers_zh-hans O’SULLIVAN, Domhnall. A Global Strategy for a Global Player? Shaping the EU’s Role in the World. Brussels, 2016. QUILLE, Gerrard. Making Multilateralism Matter: The EU Security Strategy Review. European Security. Vol. 18 (2003), pp.1-2. QUILLE, Gerrard. The European Security Strategy: A Framework for EU Security Interests? International Peacekeeping. Vol. 11, n.º3 (2004), pp.422438. SEAE, Shared Vision, Common Action: A Stronger Europe. A Global Strategy for the European Union’s Foreign And Security Policy, June 2016. STEN, Rynning. The European Union: Towards a Strategic Culture? Security dialogue. Vol. 34, n.º4 (2003), pp.479-496. TOCCI, Nathalie. 2016. The making of the EU Global Strategy. Contemporary Security Policy. 37(6), pp.461-472. TOJE, Asle. 2005. The 2003 European Union Security Strategy: A Critical Appraisal. Kluwer Law International. ISBN 1384-6299. Vol. 10, n.º1, pp.117133. TOJE, Asle. The EU Security Strategy Revised: Europe hedging its bets. European Foreign Affairs Review. ISBN 1384-6299. Vol. 15 (2010), pp.171190. TOJE, Asle. The European Union as a Small Power. After the Post-Cold War. Houndmills: Palgrave MacMillan, 2010. ISBN 978-0-230-24396-5 WHITE HOUSE. 2010. National Security Strategy. Washington: White House. 218 XAVIER, Ana Isabel Marques. Dissertação de Doutoramento. A União Europeia e a Segurança Humana: um actor de gestão de crises em busca de uma cultura estratégica? Análise e considerações prospectivas. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2010. ZANDEE, Dick. EU Global Strategy: from design to implementation, 2016. ZWITTER, Andrej e Lawrence KETTLE. Global Strategy Choices (GSC): Prognosis and Strategic Planning for European Foreign and Security Policy, 2015. 219 A PROJECÇÃO INTERNACIONAL DE NORMAS EUROPEIAS ATRAVÉS DA CONDICIONALIDADE: OCASO DA REPÚBLICA DA MACEDÓNIA1 Pascoal Santos Pereira Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Resumo: Desde a sua criação, a União Europeia (UE) apresenta--se como uma potência civil que “exporta” estabilidade e prosperidade para a sua vizinhança próxima. Para tal, as instituições europeias deram forma a um conjunto de políticas que garantem esses objectivos. Por um lado, pretende-se com estas políticas harmonizar as estruturas económicas e políticas dos estados candidatos antes da sua adesão à UE. Por outro lado, outros instrumentos políticos e económicos foram criados para que estes (e outros) estados vizinhos, com quem seria crucial as instituições europeias manterem ligações próximas, atingissem alguma prosperidade e, por conseguinte, se garantisse a segurança regional. Simultaneamente, esperar-se-ia que a condicionalidade associada a essas reformas políticas e económicas ajudasse as elites políticas locais a abraçarem valores e procedimentos democráticos, através da sua utilização sistemática. Contudo, o papel normativo desta condicionalidade tem sofrido alguns contratempos: à medida que a condicionalidade cessa ou perde intensidade, o grau de comprometimento dessas elites com os valores democráticos parece também enfraquecer. O objectivo desta comunicação será o de aferir até que ponto a condicionalidade da UE sobre estes estados é O nome internacionalmente reconhecido desta república é “Antiga República Jugoslava da Macedónia”. Por questões de ordem prática, referir-nos-emos a este estado indiferentemente como “República da Macedónia” (denominação que consta da sua actual constituição) ou como “Macedónia”. 1 221 superficial e até que ponto estas reformas ficam aquém do efeito transformador que está na sua génese. Para o efeito, será analisado o caso particular da República da Macedónia. 222 Ideias centrais A meta-narrativa de uma “Europa como potência ideal” (uma potência civil, uma potência normativa, um modelo, uma potência pós-moderna, uma potência pós-soberana)2 foi produzida nas últimas décadas para dar sentido à acção externa deste novo actor internacional cujo posicionamento ambicionava ir para além da soma dos seus membros e para direccionar a sua agenda política em nome próprio. Tendo em conta que não se trata de uma potência militar tradicional (porque não pode ou porque não quer), a UE tem dado forma e moldar o contexto (geo-) político em que se insere, segundo os seus termos, a bem da sua relevância internacional. Uma das ferramentas mais visíveis e poderosas que as instituições europeias criaram e têm usado tem sido o processo do seu alargamento à sua vizinhança leste e sudeste. Imersa em objectivos normativos, económicos e estratégicos, este projecto ambicioso e complexo procurou levar prosperidade económica e estabilidade política aos vizinhos mais próximos da UE, de forma a poupar o seu território de forças destabilizadoras externas. Simultaneamente, este processo não está baseado numa imposição unilateral estrita, mas sim numa condicionalidade co-optada que o estado candidato tem de cumprir e que é um elemento sine qua non para a sua adesão. O processo de adesão dos candidatos foi determinado a partir de um conjunto de critérios estabelecido pela UE. Ligando esta normatividade e a transformação democrática com o papel de “potência ideal” mencionado mais acima, como é que a UE pode ser definida no que diz respeito ao seu papel em relação a estes candidatos? Seria não-controverso afirmar-se que a UE utiliza ferramentas civis (daí uma “potência civil”), mas seria correcto qualificá-la como “potência normativa”? Como se mediria o seu êxito nesse âmbito: avaliando a forma como se concebe essa normatividade ou o resultado das acções normativas da UE? Mais do que responder à pergunta “UE: uma potência civil ou normativa?”, o objectivo desta apresentação será a de avaliar se a sua acção em relação aos estados candidatos e os resultados da sua acção são mais consentâneos com uma potência civil ou uma potência normativa. A noção 2 CEBECI, Münevver - European Foreign Policy Research Reconsidered: Constructing an 'Ideal Power Europe' through Theory? 223 de condicionalidade é crítica no traçar da linha entre estas duas concepções da actorness da UE: o que acontece quando a condicionalidade cessa ou é interrompida? A transformação de comportamentos e de condução da acção política é garantida independentemente de qualquer tipo de condicionalidade ou essa transformação é frágil e grandemente dependente do cumprimento da condicionalidade? Afirmamos nesta apresentação que o processo de transformação subjacente à ideia de normatividade através da condicionalidade é superficial. Assim que cessa a condicionalidade ou assim que o objectivo de adesão plena é adiado sine die, a superficialidade das reformas torna-se manifesta e a transformação normativa vê-se comprometida. Esta superficialidade não estaria necessariamente relacionada às reformas institucionais e económicas em si mesmas, mas com o défice de incorporação das normas liberais-democráticas (a responsabilização política, a transparência, a participação popular, etc.) associadas aos critérios de adesão. Por outro lado, assumindo que estas duas dimensões ideias civil/normativa são distintas, afirmamos que esta superficialidade pode levar-nos a concluir também que a UE é mais bem-sucedida enquanto potência civil do que como potência normativa. O processo da candidatura da República da Macedónia será utilizado como estudo de caso. Após ter obtido o estatuto de candidata em 2005 e após ter cumprido com uma parte significativa dos critérios condicionais, a sua adesão foi adiada, na sequência do veto grego à sua adesão à OTAN em 2008 e à UE em 2009.3 O rumo semi-autoritário tomado pela Macedónia, sublinhado em diversos relatórios de organizações internacionais e organizações não-governamentais nos últimos anos, pode estar associado ao fracasso da UE em garantir uma democratização efectiva que procura promover através da condicionalidade. 3 INTERNATIONAL Crisis Group - Macedonia: ten years after the conflict - Europe Report. 224 O debate potência civil/potência normativa Desde os anos 1970 que se discute a actorness da UE em relação aos seus vizinhos e ao resto do mundo: que tipo de poder tem a UE? Que tipo de potência é? Que tipo de potência deverá ser? Que tipo de potência pode ser? Qual seria o seu propósito? Um dos poucos elementos genericamente aceites é o de que a UE não poder ser uma “potência “tradicional” baseada em capacidades militares, que não possui, o que tornaria a UE numa actriz internacional distinta.4 Num primeiro momento nos anos 1970, surgiu uma discussão sobre se a então Comunidade Económica Europeia (CEE) poderia ser entendida como uma “potência civil”, uma potência baseada em meios civis para fins civis.5 Além de criar laços de interdependência económica e estabilidade política entre os seus membros, um dos principais interesses desta organização era o de “domesticar”, de certa forma, a sua vizinhança próxima e outros parceiros sem recurso ao uso da força.6 A implementação da Cooperação Política Europeia (CPE) representou o primeiro passo em direcção a um papel mais relevante (pacifista e civil) que a CEE procurava obter para si no quadro da Guerra Fria, entre dois gigantes militares com os quais não conseguiria competir. Maul definiu esta potência civil a partir de três vectores: a necessidade de cooperação com outros actores; a concentração de meios não-militares para garantir interesses nacionais; e a disponibilidade para a criação de estruturas supra-nacionais para responder a situações de crise.7 Zielonka afirma que a identificação enquanto “potência civil” foi uma escolha estratégica e que permitiria à CEE/UE ter um perfil distinto sobre o qual poderia construir tanto a sua identidade como a sua legitimidade.8 4 SMITH, Karen E. - The European Union: a distinctive actor in International Relations. DUCHÊNE, François - The European Community and the Uncertainties of Interdependence. 6 SMITH, Karen E. - The End of Civilian Power EU: A Welcome Demise or Cause for Concern? 7 MAUL, Hanns W. - Germany and Japan: the New Civilian Powers. 8 ZIELONKA, Jan - Explaining Euro-Paralysis: Why Europe is Unable to Act in International Politics. 5 225 Segundo os críticos desta abordagem, qualquer influência que a CEE pudesse ter estava dependente do quadro estratégico do qual emerge e do poder militar de uma super-potência protectora.9 Ou seja, o pacifismo da CEE resultaria menos de uma escolha do que de uma necessidade, pois não possui os meios militares e os recursos para ser uma potência militar.10 Apesar de o fim da Guerra Fria ter permitido um reforço da identidade da CEE e da sua importância enquanto potência civil, a forma como evoluiu para uma “União Europeia” com uma Política Externa e de Segurança Comum com uma Identidade Europeia de Segurança e Defesa nos anos 1990 confirmou a natureza estrutural do seu poder, mais dependente na necessidade de se adaptar às circunstâncias estratégicas internacionais do que numa escolha baseada num projecto específico. Posteriormente, Manners propôs a ideia de uma UE como “potência normativa”, uma potência que não é uma potência militar ou somente uma potência económica, mas sim uma potência guiada por ideias e que detém um poder próprio para dar forma e disseminar normas.11 Dada a sua própria evolução histórica e a sua natureza híbrida, a UE constrói-se, ela própria, sobre uma base normativa e actua normativamente nas suas políticas externas em vez de procurar fazê-lo por expansão territorial ou superioridade militar.12 Mas se, por um lado, Maul considera que existe uma continuidade conceptual entre “potência civil” e “potência normativa” (sendo que a primeira faria parte da segunda), Diez afirma, por outro lado, que uma potência normativa e uma potência militar podem ser, de certo modo, semelhantes.13 De facto, a forma como a política externa europeia evoluiu após Maastricht indicia um reforço crescente dos meios militares disponíveis e dos mecanismos de resposta a crises na sua vizinhança. Ao mesmo tempo, a dimensão normativa da sua política não pode ser concebida sem interesses estratégicos e económicos.14 9 BULL, Hedley - Civilian Power Europe: A Contradiction in Terms? DIEZ, Thomas - Constructing the Self and Changing Others: Reconsidering ‘Normative Power Europe’. 11 DIEZ - Constructing the Self and Changing Others. 12 MANNERS, Ian - Normative Power Europe: a Contradiction in Terms? 13 DIEZ - Constructing the Self and Changing Others. 14 DIEZ - Constructing the Self and Changing Others. 10 226 Manners discorda e mantém que a UE “enquanto potência normativa” tanto é diferente de uma “potência civil” como de uma “potência militar”. Ele apresenta um conjunto de diferenças entre as definições de potência civil e potência normativa. Acima de tudo, enquanto uma potência civil procuraria privilegiar condições materiais (económicas e não-militares) e usar a condicionalidade através de objectivos instrumentais, uma potência normativa agiria através de comportamentos e exemplos não-materiais, as suas normas espalhar-se-iam através da imitação e da atracção.15 E mesmo se a militarização da UE não é incompatível com um projecto normativo, a dimensão normativa da UE secundarizou-se à medida que esta se foi tornando cada vez mais numa “potência marcial”.16 Uma breve História da Macedónia e as suas relações com a EU A República da Macedónia tornou-se um estado independente em 1991, resultando da dissolução da Federação Jugoslava. Nos rankings que comparam a situação política e económica dos estados europeus, os indicadores desta república têm-na relegado para os seus últimos lugares. Este estado soberano recente teve não só de ultrapassar as suas fraquezas estruturais mas teve também de adaptar-se a múltiplos desafios externos. Primeiro, nos primeiros anos da sua independência, a Macedónia teve de enfrentar uma disputa diplomática com a Grécia a propósito do seu nome constitucional e o subsequente embargo económico até 1995; por outro lado, a sua estrutura económica sofreu indirecta mas profundamente com as sanções internacionais impostas à Sérvia, a sua principal parceira económica, durante o embargo da ONU que durou até 2000. Segundo, as dificuldades económicas causadas pelo processo de transição para uma economia de mercado nos anos 1990 levaram a perdas significativas de rendimento, taxas de desemprego elevadas e privatizações maciças de empresas e equipamentos públicos. Terceiro, a instabilidade política na sua vizinhança, como a Guerra do Kosovo em 1998-9, teve sérias consequências 15 MANNERS, Ian - The European Union as a normative power: a response to Thomas Diez. 16 MANNERS, Ian - Normative power Europe reconsidered: beyond the crossroads. 227 na sua estabilidade política. Dado que uma parte significativa da Macedónia é de origem albanesa (estima-se que 25% dos cidadãos macedónios) com fortes ligações culturais e políticas ao Kosovo, aquele conflito foi de certa forma importado para a Macedónia em 2001, quando eclodiu uma série de confrontos entre as forças governamentais e um grupo para-militar albanês, numa situação de quase-guerra em 2001 e que quase comprometeu a paz inter-étnica existente até então. Foi conseguido um acordo de paz em 2001, o Acordo-quadro de Ohrid, entre os principais partidos políticos da Macedónia e no qual foram feitas concessões aos partidos albaneses em resposta a muitas das suas reivindicações. A UE teve um papel relevante neste contexto, como mediadora entre as partes em conflito mas também como interveniente activa pois os primeiros passos da candidatura da República de Macedónia à UE foram dados precisamente neste contexto.17 De facto, ao contrário da abordagem que adoptou em relação aos países da Europa Central e de Leste, na qual estava implícita uma promessa de adesão, a abordagem europeia ao Sudeste Europeu foi desenhada numa perspectiva de transição e reconstrução pós-conflito nos anos 1990, uma abordagem reactiva de curto prazo e não tanto uma estratégia de longo prazo.18 19 Apesar da concessão de fundos de programas como SAPHARD, PHARE, OBNOVA e CARDS e apesar de os critérios de Copenhaga serem utilizados como ponto de referência, a UE lançou um Pacto de Estabilidade e um Processo de Estabilização e Associação somente em 1999 no contexto da Guerra do Kosovo. No quadro desse processo, a República da Macedónia foi o primeiro estado da região dos Balcãs Ocidentais a assinar um Acordo de Estabilização e Associação (AEA) com a UE em 2001, como um estímulo para a sua estabilização na sequência do período de confrontos que nesse mesmo ano se verificaram no seu território. Após a Cimeira de Salónica em 2003, anunciada como um marco no processo de 17ATANASOVA, Gorica - Does Europeanisation equal democratisation? Application of the political conditionality principle in the case of the Macedonian system of governance. 18 BELLONI, Roberto - European integration and the Western Balkans: lessons, prospects and obstacles. 19 GORDON, Claire - The Stabilization and Association Process in the Western Balkans: An Effective Instrument of Post-conflict Management? 228 adesão para toda a região, mas vista como um passo insuficiente pelos futuros candidatos,20 a Macedónia foi finalmente aceite como candidata à UE. Contudo, sucessivas camadas de condicionalidade foram sendo adicionadas ao longo do processo: para além dos critérios de Copenhaga, da absorção do acquis communautaire e do cumprimento do Acordo de Ohrid, cada novo passo e novo plano ou estratégia adicionado pela Comissão Europeia (o Pacto de Estabilidade, o AEA, a Parceria Europeia, o Instrumento de Assistência pré-Adesão, o próprio procedimento de adesão) representava um novo conjunto de objectivos a serem alcançados,21 22 com os quais a adesão efectiva era sistematicamente adiada. A actual situação política da Macedónia23 Todo o processo de pré-adesão à UE e toda a condicionalidade associada ao cumprimento de condições específicas têm sido um forte elemento catalisador para relevantes reformas institucionais que têm sido assinaladas anualmente nos relatórios de acompanhamento da Comissão Europeia. A adesão à UE (e à OTAN) tem sido o único dossier político sobre o qual todos os principais partidos da república (de qualquer das duas principais etnias presentes na Macedónia) estão em pleno acordo e para o qual contribuem activamente. Todavia, esta evolução não tem tido correspondência num processo de decisão política mais transparente e plural, nem em atitudes mais maduras democraticamente por parte das suas elites políticas. Bem pelo contrário: o veto grego à adesão da Macedónia tanto à 20 TÜRKES, Mustafa e GÖKGÖZ, Göksu - The European Union's strategy towards the Western Balkans: exclusion or integration? 21 ANASTASAKIS, Othon - The EU’s political conditionality in the Western Balkans: towards a more pragmatic approach. 22 PHINNEMORE, David - Beyond 25—the changing face of EU enlargement: commitment, conditionality and the Constitutional Treaty. 23 A “actualidade” deste documento reporta-se ao momento da sua apresentação em Março de 2017. A situação política na República da Macedónia terá provavelmente evoluído entre esse momento e a presente publicação. 229 OTAN em 2008 como à UE em 200924 antecedeu uma degradação gradual do quadro democrático em que se regia a república até então. A razão para este veto foi uma questão pendente já antiga entre os dois estados vizinhos centrada na utilização da palavra “Macedónia” na denominação oficial da república. Por um lado, Skopje afirma que o nome oficial do estado é “República da Macedónia”. Por outro lado, Atenas afirma que a palavra “Macedónia” faz parte do património grego, que pertence à História grega e que a Grécia não poderia aceitar a utilização deste nome por um estado terceiro. O que Grécia temia essencialmente era que a República da Macedónia empreendesse reivindicações territoriais sobre a sua região macedónia (no Norte da Grécia) no futuro. Assim, República da Macedónia teria de desistir de usar a palavra “Macedónia” no seu nome oficial. A reacção das elites políticas macedónias foi hostil e marcou uma viragem nacionalista muito vincada na política interna, nacionalismo esse que bloqueou inclusivamente qualquer possibilidade de acordo com a Grécia sobre o nome constitucional da república pois tal seria uma traição antipatriótica, pelo que a disputa permaneceria em aberto pois nenhum responsável político se atreveria a chegar a uma compromisso e ser chamado de traidor.25 Essa reacção nacionalista foi também acompanhada por um exercício do poder mais autoritário (quando não iliberal) por parte do governo e que determinou uma posterior erosão do sistema democrático macedónio. Redes de corrupção ao mais alto nível, irregularidades eleitorais, limitações à liberdade de imprensa, pressões sobre jornalistas e sobre juízes e irregularidades no funcionamento do parlamento têm sido denunciados por organizações não-governamentais e think-tanks internacionais26 em relatórios com críticas cada vez mais sonoras e que colocam a Macedónia em lugares cada vez mais baixos nos seus rankings anuais. Um escândalo em 2015 sobre 24 INTERNATIONAL Crisis Group - Macedonia: ten years after the conflict - Europe Report. 25 PAJAZITI, Naser – 31/03/2014; 01/04/2014. 26 BERTELSMANN Transformation Index - Macedonia Country Report; FREEDOM House - Freedom in the World – Macedonia; FREEDOM House - Freedom in the Press – Macedonia; FREEDOM House - Nations in transit – Macedonia; INTERNATIONAL Crisis Group - Macedonia: ten years after the conflict - Europe Report. 230 escutas maciças efectuadas pelo partido líder do governo27 28 forneceu provas para a maioria destas suspeitas e a república entrou num longo período de contestação popular e de incerteza política pois os partidos maiores responsabilizam-se mutuamente pela situação no país e adiam assim indefinidamente a realização de eleições gerais antecipadas. Notas conclusivas A avaliação da incorporação de valores e práticas liberais-democráticos por um conjunto de actores seria um exercício extremamente subjectivo e dificilmente se conseguiriam provas dessa incorporação. Mas se assumirmos que este grupo de actores que governa um estado implementou de forma instrumental este conjunto de reformas e seguiu as respectivas condições em direcção a uma adesão futura, podemos interrogar-nos sobre “qual tem sido o papel da UE para tal resultado?”. Num segundo nível, a questão seria “olhando para os objectivos estratégicos e normativos da UE, até que ponto estes têm sido conseguidos na Macedónia?”. No caso específico da Macedónia, podemos concluir, por um lado, que assim que a concretização da adesão (que não é mais do que o “prémio” que justifica toda a condicionalidade) se torna mais distante, as elites políticas locais demonstram que as reformas políticas foram, quando muito, superficiais e que o seu comportamento não se transformou do modo que os seus parceiros europeus esperavam. Por outro lado, indicanos que, assumindo a distinção entre “potência civil” e “potência normativa”, a UE tem provado ser uma potência civil mas não uma potência normativa em relação à sua vizinhança próxima. Sustentamos esta afirmação no facto de a UE ter conseguido que um estado não-membro tivesse formalmente implementado um conjunto de reformas económicas e institucionais (sem o uso de força, apenas meios civis, quaisquer que estes sejam) mas que esta mesma UE não conseguiu alterar comportamentos ou instituir um quadro referencial de uma ética republicana ou liberal-democrática 27 28 MARUSIC, Sinisa Jakov – 09/02/2015. RIZAOV, Goran – 27/02/2015. 231 ou transferir valores e ideias nas quais estas reformas estavam imersas e que seriam um dos principais objectivos de uma política normativa. Referências bibliográficas ANASTASAKIS, Othon - The EU’s political conditionality in the Western Balkans: towards a more pragmatic approach. Southeast European and Black Sea Studies, 2008, 8(4). ATANASOVA, Gorica - Does Europeanisation equal democratisation? Application of the political conditionality principle in the case of the Macedonian system of governance [em linha], 2008, disponível em http://www.analyticalmk.com/files/01-2008/Atanasova_Europeanisation.pdf. BELLONI, Roberto - European integration and the Western Balkans: lessons, prospects and obstacles. Journal of Balkan and Near Eastern Studies, 2007, 11(3). BERTELSMANN Transformation Index - Macedonia Country Report [em linha], 2014 [consultado a 25/05/2017]. Disponível em: https://www.btiproject.org/fileadmin/files/BTI/Downloads/Reports/2014/pdf/BTI_2014_Macedonia.pdf. BULL, Hedley - Civilian Power Europe: A Contradiction in Terms? Journal of Common Market Studies, 1982, 21(1-2). CEBECI, Münevver - European Foreign Policy Research Reconsidered: Constructing an 'Ideal Power Europe' through Theory? Millennium: Journal of International Studies, 2012, 40(3). DIEZ, Thomas - Constructing the Self and Changing Others: Reconsidering ‘Normative Power Europe’. Millennium: Journal of International Studies, 2005, 33(3). 232 DUCHÊNE, François - The European Community and the Uncertainties of Interdependence. In KOHNSTAMM, Max e Hager, Wolfgang (eds.) A Nation Writ Large? Foreign-Policy Problems before the European Community. Londres: Macmillan, 1973. ISBN 978-1-349-01826-0. FREEDOM House - Freedom in the World – Macedonia [em linha], 2013 [consultado a 25/05/2017]. Disponível em: https://freedomhouse.org/report/freedom-world/2013/macedonia#.U1UBmVVdW8Y. FREEDOM House - Freedom in the Press – Macedonia [em linha], 2013 [consultado a 25/05/2017]. Disponível em: https://freedomhouse.org/report/freedom-press/2013/macedonia#.U1UB1lVdW8Y. FREEDOM House - Nations in transit – Macedonia [em linha], 2014 [consultado a 25/05/2017]. Disponível em: https://freedomhouse.org/sites/default/files/17.%20NIT14_Macedonia_final.pdf. GORDON, Claire - The Stabilization and Association Process in the Western Balkans: An Effective Instrument of Post-conflict Management? Ethnopolitics, 2009, 8(3-4). INTERNATIONAL Crisis Group - Macedonia: ten years after the conflict - Europe Report [em linha], 2011 [consultado a 25/05/2017]. Disponível em: https://d2071andvip0wj.cloudfront.net/212-macedonia-ten-years-afterthe-conflict.pdf. MANNERS, Ian - Normative Power Europe: a Contradiction in Terms? Journal of Common Market Studies, 2002, 40(2). MANNERS, Ian - Normative power Europe reconsidered: beyond the crossroads. Journal of European Public Policy, 2006, 13(2). MANNERS, Ian - The European Union as a normative power: a response to Thomas Diez. Millennium - Journal of International Studies, 2006, 35(1). 233 MARUSIC, Sinisa Jakov – Macedonia PM accused of large-scale wire-tapping. Balkan Insight [em linha], 09/02/2015 [consultado a 25/05/2017]. Disponível em: http://www.balkaninsight.com/en/article/eavesdropping-bombshell-explodes-in-macedonia. MAUL, Hanns W. - Germany and Japan: the New Civilian Powers. Foreign Affairs, 1990, 69(5). PAJAZITI, Naser – PM Gruevski challenges Pendarovski how will you resolve the name dispute. Independent Balkan News Agency [em linha], 31/03/2014 [consultado a 25/05/2017]. Disponível em: http://www.balkaneu.com/pm-gruevski-challenges-pendarovski-resolve-dispute/. PAJAZITI, Naser – Political class triggers the debate on the name, citizens want to focus on other things. Independent Balkan News Agency [em linha], 01/04/2014 [consultado a 25/05/2017]. Disponível em: http://www.balkaneu.com/political-class-triggers-debate-name-citizens-focus/. PHINNEMORE, David - Beyond 25—the changing face of EU enlargement: commitment, conditionality and the Constitutional Treaty. Journal of Southern Europe and the Balkans, 2006, 8(1). RIZAOV, Goran – Gruevski had opponent’s building flattened, opposition. Balkan Insight [em linha], 27/02/2015 [consultado a 25/05/2017]. Disponível em: http://www.balkaninsight.com/en/article/gruevski-hadopponent-s-building-flattened-opposition. SMITH, Karen E. - The End of Civilian Power EU: A Welcome Demise or Cause for Concern? The International Spectator, 2000, XXXV(2). SMITH, Karen E. - The European Union: a distinctive actor in International Relations. The Brown Journal of World Affairs, 2003, 9(2). 234 TÜRKES, Mustafa e GÖKGÖZ, Göksu - The European Union's strategy towards the Western Balkans: exclusion or integration? East European Politics and Societies, 2006), 20(4). ZIELONKA, Jan - Explaining Euro-Paralysis: Why Europe is Unable to Act in International Politics. Londres: Macmillan, 1998. ISBN 978-0-230-37284-9. 235 A UNIÃO EUROPEIA E OS BRICS: PARCERIAS ESTRATÉGICAS PARA UMA NOVA ORDEM MUNDIAL? José Manuel Caetano1 e Marco António Batista Martins2 Departamento de Economia, Universidade de Évora Resumo: Os BRICS assumem dimensão económica e política crescente, com reflexos na nova ordem económica e política mundial que renova os fatores geopolíticos e geoeconómicos. Neste contexto, as relações da UE com os BRICS deverão valorizar mais do que a vertente meramente económica e envolver aspetos como a segurança, as migrações, a governança mundial ou as alterações climáticas. As Parcerias Estratégicas da UE com os BRICS são instrumento crucial da política externa da EU na projeção dos seus princípios e valores no sistema global. O artigo revisita aquelas Parcerias Estratégicas e reflete sobre as funções que estas desempenham, num contexto de crise social e económica, política e de legitimidade que a UE atravessa. Poderá o reforço de tais parcerias conceder à UE oportunidade para projetar a sua influência na ordem mundial? Palavras-chave: Ordem mundial, Relações Internacionais, Parcerias Estratégicas, União Europeia, BRICS. Abstract: The BRICS assume an increasing economic and political dimension, with repercussions in the new world economic and political order that renews the geopolitical and geo-economic factors. In this context, the EU's 1 Membro Associado do Centro de Estudos e Formação Avançada em Gestão e Economia da Universidade de Évora (CEFAGE-UÉ) 2 This study conducted at CICP, Excellent (UID/CPO/00758/2013), University of Minho and supported by the Portuguese Foundation for Science and Technology and the Portuguese Ministry of Education and Science through national funds. 237 relations with the BRICS should value more than the purely economic relations and involve other issues such as security, migration, global governance or climate change. The EU's strategic partnerships with the BRICS are a crucial tool of EU foreign policy in projecting its principles and values into the global system. The article revisits these strategic partnerships and reflects on the roles they play in a context of social, economic, political and legitimacy crisis that the EU is undergoing. Can the strengthening of such partnerships give the EU an opportunity to project its influence in the world order?? Key-words: World order, International relations, Strategic partnerships, European Union, BRICS. 238 1. Introdução Decorridos quase 15 anos desde a adoção em 2003 da Estratégia Europeia de Segurança pela (EES) União Europeia (UE) e quase três décadas desde o final da Guerra Fria e do período de bipolarização, a Europa e o Mundo continuam a deparar-se com sérias ameaças e complexos desafios. O processo de globalização económica e tecnológica deixou indeléveis marcas nos tecidos económicos e sociais por todo o globo, enquanto a crise financeira, declarada em 2007, rapidamente contagiou a economia e alastrou por todo o mundo, confirmando o modelo capitalista como potenciador de instabilidade e gerador de desigualdades, sinalizando a necessidade de regulação e de intervenção, quer dos Estados nos espaços nacionais, quer pela cooperação destes para uma efetiva governação ao nível global. Estamos numa fase de transição do sistema para retornar à estabilidade e recuperar equilíbrios sociais e económicos, mas persiste uma elevada volatilidade nos mercados financeiros, ao mesmo tempo que se afirmam vagas de populismo e nacionalismo, pondo em causa o legado da liberalização económica. Ao mesmo tempo, o mundo agita-se com as pressões migratórias e demográficas, com a radicalização dos conflitos e a falta de acordo no tipo de reação às alterações climáticas, mormente sobre os princípios e critérios de sustentabilidade do Planeta. A afirmação de um sistema multipolar e policêntrico com a emergência de novas potências políticas e económicas vai paulatinamente reconfigurando a geoeconomia e a geopolítica mundial. Porém, não se anteveem soluções sólidas que permitam satisfazer as funções de governação antes exercidas pelos poderes vinculados ao regime bipolar que imperou após a II Guerra mundial até à queda do Muro de Berlim. Também o multilateralismo, nas suas distintas dimensões, tem registado notórios retrocessos, em virtude do fraco envolvimento dos poderes emergentes que não se reveem nos valores e normas que fundaram e orientaram tal sistema, não constituindo, por isso, a plataforma de diálogo e de ação que o mundo carece. Nesta fase de transição de sistema não se vislumbram poderes capazes de assumir a liderança no processo de ajustamento global. Perante sinais de vulnerabilidade económica das anteriores potências, a cooperação 239 tem sido dificultada pela ascensão do nacionalismo e da desconfiança com reflexo na fragmentação do sistema político e económico, no aumento do protecionismo e na competição militar, o que prenuncia novas esferas de influência e uma era de maior rivalidade. A ordem mundial está num momento crítico, em que a turbulência económica, a incerteza política e os conflitos militares trazem receio acrescido sobre eventuais efeitos da perda de fulgor da globalização. Os países acoplados sobre o acrónimo BRICS3 têm assumido um superior peso económico e político, embora com poucos reflexos no papel destes países nas relações internacionais e na emergência da nova ordem mundial, onde sobressaem novos fatores geoeconómicos e geopolíticos. Na área da Segurança internacional, a afirmação dos interesses destes países desafia a hegemonia ocidental, em especial os Estados Unidos e a UE. Assim, face a políticas externas nem sempre convergentes dos Estados-membros (E-M), o que a debilita na cena internacional, o estreitamento das relações da UE com os BRICS tem valorizado bastante a vertente económica bilateral e, de forma menos expressiva, os aspetos estruturais e sistémicos como a segurança, as migrações, a governança mundial ou as alterações climáticas. Neste contexto, as Parcerias Estratégicas celebradas entre a UE e algumas das potências, consolidadas e emergentes, levanta a questão de saber se estas têm constituído um instrumento de política externa relevante para defender os interesses da Europa e a projeção dos seus princípios e interesses numa ordem global em busca de um novo figurino. A reflexão sobre as tendências da globalização e as vicissitudes e limites destas parcerias, num contexto de profunda crise económica e de contestada legitimidade dos poderes da própria UE, permite antever a oportunidade para o seu papel nesta nova ordem mundial, por via da extensão e consolidação das redes de Parcerias Estratégicas coerentes e integradas. As Parcerias Estratégicas da UE com dez países e onde se incluem todos os BRICS, poderão assumir-se como mecanismo relevante da sua política externa da UE, projetando os seus interesses estratégicos e seus valores? Neste artigo procuramos responder à questão e com base na avaliação do real impacto das ditas Parcerias nas funções que desempenham. 3 Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. 240 Revisitaremos as Parcerias UE-BRICS, no incerto contexto internacional longe de consolidar uma efetiva governação global. Esta reflexão sobre estes desafios tem ainda maior significado devido à profunda crise social, económica, política e de legitimidade que a UE atravessa. Tendo em conta os objetivos do trabalho, este estrutura-se da seguinte forma: iniciamos com o papel dos BRICS no atual contexto das relações internacionais; prosseguiremos com a discussão das Parcerias Estratégicas da UE, tendo em conta o conceito subjacente, os objetivos e as tipologias que podemos identificar; continuaremos com a discussão sobre se as Parcerias Estratégicas têm contribuído para promover o Multilateralismo Efetivo e finalizaremos com a avaliação das relações UE-BRICS nas diferentes funções que as mesmas prosseguem e os desafios e oportunidades que as mesmas representam para a União Europeia. 2. O papel dos BRICS no novo cenário das relações internacionais A inconstância marca a natureza humana e o desejo de redefinição do papel do Estado como entidade soberana e reguladora, quer da ordem interna quer da externa. A primeira década deste século revelou uma realidade fundada na perspetiva norte-americana da realpolitik, após assistirmos pela televisão em 11 de setembro de 2001 aos atentados terroristas. O sistema internacional ficou marcado pelo ataque ao World Trade Center, símbolo do poder hegemónico dos EUA, acelerando a transformação da ordem mundial. Assim, importa destacar que as relações internacionais operam cada vez mais num mundo instável, de caminhos incertos e de ordem supostamente indefinível, não reconhecendo a continuidade da vigência de uma hierarquia das potências, mas antes convergência e/ou divergência pontual. Esta volatilidade na cena internacional levou à emergência de novas formas de exercício do poder e à reconfiguração estratégica dos atores regionais no quadro do equilíbrio de poderes em que cada Estado exerce a sua soberania, promovendo uma nova correlação de forças que renova a hierarquia internacional. 241 O ano de 2001 marcou também o início de uma nova era na geopolítica mundial. Justamente em 30 de novembro foi usado pela primeira vez o acrónimo BRIC, englobando os países Brasil, Rússia, Índia e China, no relatório “Building better global economic BRICs” (O’NEILL, 2001). Tendo em conta o sentimento de insegurança que imperava, era necessário dinamizar a arena económico-financeira internacional para evitar uma crise global. Os BRIC surgem então como opção credível para o investimento externo, constituindo, segundo WILSON & PURUSHOTAMAN, (2003), resposta para a busca de equilíbrio na política económica mundial, oferecendo polos regionais alternativos, apesar de representarem sistemas políticos com características culturais e sociais díspares. A posterior propagação da recessão económica decorrente da crise do subprime4 concedeu aos BRICS papel de maior relevo face aos Estados Unidos e à UE, demonstrando a sua capacidade de reação em tempo de crise global, ao sustentar o ritmo de crescimento económico em termos mundiais (O’NEILL, 2013). Após 2009, quando ocorreu em Yekaterinburg a primeira Cimeira de alto nível dos BRIC, estes iniciaram a concertação de posições políticas de forma informal, afirmando orientações comuns sobre assuntos como a reforma do sistema financeiro global, a formação do G20, a reforma financeira da ONU, o desenvolvimento sustentável e as alterações climáticas. Em 2011, em Sanya, já com a presença da África do Sul, o estatuto dos BRICS sai reforçado com uma posição comum sobre a reestruturação do sistema financeiro global bastante abalado pela recente crise (PIPPER, 2015). A partir deste Fórum, os BRICS criaram plataformas de cooperação internacional nas áreas do comércio e do investimento internacional, lançando novas instituições financeiras, como o Novo Banco de Desenvolvimento e o Banco Asiático de Investimento, desafiando de forma aberta a hegemonia das instituições que asseguravam a governação financeira global do pós- 4 Em setembro de 2008 ocorreu a falência do banco Lehman Brothers, provocando a designada crise do subprime. A crise económica deflagrou nos EUA e alastrou à Europa, provocando a volatilidade nos mercados financeiros mundiais, colocando em causa a solidez de muitas instituições financeiras europeias detentoras de elevados créditos de cobrança duvidosa e com bastante crédito concedido a alguns governos de países da UE. 242 guerra, no caso o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial (WESTCOTT, 2014). Importa sublinhar que os BRICS se posicionam como novas potências no contexto mundial, quer económica quer politicamente, propiciando um rumo alternativo à influência da esfera ocidental na ordem mundial. A partir da convergência política, a criação destas instituições financeiras, abertas aos países que entenderem e viradas para o financiamento de infraestruturas de promoção do desenvolvimento económico, estabeleceram-se como prioridades as áreas da educação e da saúde e, atentas à questão das alterações climáticas e aos investimentos na área da energia (UJVARI, 2016-a). Deste modo, os BRICS reforçam a seu papel em novos domínios, produzindo uma distinta aproximação às questões do desenvolvimento e ao relacionamento com o eixo Sul-Sul, sendo reconhecida a sua influência em aspetos como: a contribuição para a estabilidade e o crescimento interno; o reforço da participação em fóruns internacionais no quadro multilateral e regional; o alinhamento das políticas do Novo Banco de Desenvolvimento com a sustentabilidade e a promoção da transparência na gestão deste Banco. Os interesses dos BRICS, enquanto atores políticos, têm dado prioridade aos temas de índole económica, entendendo que os países em desenvolvimento devem ser reconhecidos como parceiros com iguais direitos na arena internacional (NEL, 2010). Deste modo, o compromisso dos BRICS com o respeito da soberania consolidou-se com a projeção e alargamento dos instrumentos financeiros criados no seu seio, ou por eles promovidos. Porém, há questões que permanecem por resolver, por exemplo não devemos esquecer que todos os BRICS, com exceção da África do Sul, estão envolvidos em disputas territoriais (CONING et. al, 2015). Os BRICS vêm preencher uma função de relevo para a reconfiguração geopolítica da ordem internacional, o que levou os EUA a equacionar desde há muito uma efetiva partilha do poder com estas novas potências no sistema internacional (JAIN, 2006). Todavia, o reconhecimento e afirmação do estatuto internacional dos BRIC não decorreu sempre de forma linear, até porque esta nova realidade 243 confrontou os cânones que figuravam como representativos do poder nas organizações e fóruns mundiais, não tendo sido fácil gerir esta convivência. De facto, em diversas situações estes países têm declinado a assumpção de responsabilidades inerentes ao estatuto que reclamam e como não se identificam com os valores e modelos de inspiração ocidental, raramente aduzindo alternativas viáveis para concretizar uma maior responsabilização e envolvimento na governança global, embora enfatizem a necessidade de uma ampla reforma do atual sistema multilateral (KEUKELEIRE & BRUYNINCKX, 2011). 3. As Parcerias Estratégicas da União Europeia: do conceito aos objetivos Perante o contexto antes referido, como poderá a UE enfrentar os desafios colocados por este novo figurino internacional, desprovida de instrumentos e de práticas sedimentadas que lhe permitam falar e agir a uma só voz? É comum reconhecer que a UE tem que agir coletivamente para afirmar os seus interesses e valores no cenário global, surgindo a transferência de poder soberano para as instâncias supranacionais como uma escolha racional e despojada de ideologia. A já referida ESE de 2003 lançou de facto o termo “Parceria Estratégica”, o qual tem sido alvo de escrutínio e de crítica acesa por vários autores ao longo do tempo. Uma das principais limitações apontadas ao conceito “Parcerias Estratégicas” tem a ver com o facto de a própria UE não fornecer desde a sua criação uma definição clara do seu significado, limitando-se a afirmar que, por via das parcerias procura, sobretudo, promover o “multilateralismo efetivo”, como resposta aos desafios comuns. Em concreto, ambiciona “procurar ativamente posições comuns sobre questões de interesse mútuo, apoiar as agendas políticas dos parceiros e tomar uma ação política conjunta a nível regional (...) ou global" (SCHMIDT, 2010:3). Porém, a UE não concretizou quais as questões de interesse mútuo, e que naturalmente serão distintas conforme os parceiros em causa5, sendo 5 Por exemplo para a parceria com a Índia, seguramente a situação do Afeganistão e a estabilidade global serão cruciais, do mesmo modo que para a China serão 244 este facto revelador de ambiguidade. Não obstante, GREVI (2008) não considera que a falta de clareza conceptual seja obstáculo, pois a alegada ambiguidade pode ser construtiva e conceder flexibilidade que, de acordo com o autor, é indispensável para operacionalizar o conceito. De facto, perante a inexistência de um quadro conceptual uniforme, resta espaço para os parceriros acordarem concessões recíprocas, ajustes mútuos e com pragmatismo levarem a uma abordagem de negociação incremental. A a natureza estratégica das parcerias da UE com os países emergentes reside no facto de lhe permitirem prosseguir os seus objetivos e difundir as suas normas a nível internacional. Em oposição a este entendimento, BISCOP & RENARD (2009) alertam para que as Parcerias Estratégicas são uma amálgama algo indistinta, incluindo relações importantes e realmente estratégicas e outras nem tanto, o que contribuiu para criar alguma confusão dentro da UE e também perante os seus parceiros na forma como interpretam as ambições da Europa. Para os autores, a ausência de clareza aumenta o risco de não cumprir as expetativas, mormente quando o conceito é usado de forma pomposa, mas vazia de substância. Este perigo é real, pois todos os países gostam de se sentir lisonjeados como parceiro estratégico da UE, mas podem sentir-se defraudados quando daqui pouco resulta em termos reais. Em outro sentido, MAINHOLD (2010) discute o significado do conceito e entende que se, por um lado, a "parceria" inclui pressupostos de igualdade de direitos e tarefas na construção de uma relação sólida, com a expetativa de exclusividade, por outro, o termo "estratégia" não pode ser usado de forma ligeira, pois envolve questões estruturais na busca de objetivos de longo prazo. Deste modo, as Parcerias Estratégicas dependem da cooperação entre atores que concordam em produzir algo em conjunto para realizar objetivos comuns. Assim, a competição e mesmo algum antagonismo de posições entre agentes/países deve ser suspenso relevantes os domínios da segurança energética, as alterações climáticas ou a sustentabilidade ambiental e a proteção do meio ambiente, enquanto para a Rússia o domínio da energia e os conflitos no Cáucaso ou a questão nuclear no Irão serão temas dominantes. 245 temporalmente, constituindo a ação de cooperar um bem comum partilhado pelos parceiros. As questões relativas à Parcerias Estratégicas tornam-se mais complexas quando se discutem as estratégias a seguir para a consolidação desta via de abordagem. Para estruturar esta linha de orientação, a função de uma rede de parceiros estratégicos da UE pode ser crucial, apesar de algumas imperfeições reveladas e do cariz algo vago que tem caraterizado as atuais parcerias. O objetivo da UE de afirmação global e a lógica subjacente às Parcerias Estratégicas que os materializam devem assentar em critérios partilhados e sólidos, suportados na definição dos interesses e das prioridades e na forma de os alcançar na relação com os vários parceiros. Como vimos, a EES de 2003 lançou o debate, mas não forneceu respostas efetivas para estes aspetos nucleares, facto reconhecido por Javier Solana, Secretário-geral do Conselho e Alto-representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança Comum (1999 a 2009), no relatório apresentado ao Conselho sobre o primeiro quinquénio de aplicação da EES, que referia os numerosos e complexos desafio da UE, num mundo em rápida mutação. Em suma, as Parcerias Estratégicas que tinham vindo a ser implementadas permaneceram como instrumentos sem real sentido estratégico, pelo menos até ao Tratado de Lisboa. Em 2010 o Conselho Europeu debateu pela primeira vez em termos formais as Parcerias Estratégicas da UE. A discussão foi profícua em tempos de forte turbulência económica e geopolítica e reconheceu o risco da UE cair na irrelevância no plano global, impelindo os Estados a assumirem as implicações da transição de poder e redefinirem a orientação da política externa da UE. Na realidade, já em 2009 no âmbito das discussões na Conferência sobre as alterações climáticas de Copenhagen, tinham sido perceptíveis os indícios da irrelevância da UE no plano global como reconhecem (GREVI & RENARD, 2012). Os posteriores eventos da ‘Primavera árabe’ provaram também a dificuldade da UE lidar com os desafios contemporâneos, incluindo os que ocorrem na sua vizinhança próxima, onde a UE não tem potenciado as oportunidades que esta região encerra (FABRY, 2013). Nesta linha, WEBBER (2015), ao avaliar as alterações ocorridas desde 2003 em sete 246 domínios-chave do poder na esfera mundial, conclui sem surpresa que a UE perdeu relevância em quase todos os domínios avaliados, configurando-se como uma potência em declínio e correndo o risco de se tornar irrelevante na cena internacional. Para ser relevante num mundo com as características que referimos, onde eventualmente aquelas tendências se agudizarão nos próximos tempos, a UE terá que investir tempo e recursos na estabilização das relações com as novas potências (HESS, 2013). À medida que a globalização progride e a interdependência se aprofunda, a UE confrontase com os desafios da competição pelo acesso a mercados e recursos, mas precisa também de cooperar com estas potências para enfrentar desafios comuns. Dado que os distintos atores têm que lidar com questões societais, como os desafios das alterações climáticas, da proliferação nuclear, do combate à pobreza e do desenvolvimento sustentável, a via da cooperação terá que ser privilegiada face à competição, pelo que as Parcerias Estratégicas podem ser bastante úteis. 4. Em busca de tipologias para entender a lógica das Parcerias Estratégicas da UE A UE possui atualmente acordos de Parceria Estratégica com os seguintes países: Brasil, Canadá, China, Índia, Japão, México, África do Sul, Coreia do Sul, Rússia e os EUA. Embora os acordos se encaixem na designação lata de “Parcerias Estratégicas” eles foram enquadrados por estruturas políticas e jurídicas muito díspares. O esforço feito recentemente no sentido de criar uma certa harmonização é importante, não apenas porque racionaliza os recursos e dá mais coerência às estratégias negociais, mas também porque define prioridades e sistematiza os instrumentos que as concretizam nos planos político e económico. No âmbito desta renovada orientação em ordem a uma maior homogeneidade, três tipologias de acordos têm sido consideradas: Acordos de Comércio Livre (ACL) que podem ser distintos em termos de amplitude e domínios cobertos; Acordos Políticos também designados como Acordos de Parceria Estratégica (APE) ou Acordos-quadro que 247 concretizam o nível e alcance da cooperação num acordo politicamente vinculativo; finalmente, Acordos de Segurança que cobrem a participação dos parceiros estratégicos nas missões e operações da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). A conclusão sucessiva desta trilogia de acordos representa o tipo ideal para as Parcerias Estratégicas, sendo considerado como modelo os acordos celebrados entre a UE e a Coreia do Sul que em 2010 estabeleceram um ACL e um APE e em 2014 firmaram um Acordo de Segurança. A parceria com o Canadá, que tem estado rodeada de polémica sobre os impactos em algumas regiões da UE, aproxima-se deste modelo, tendo sido aprovados em 2017 o Acordo Económico e Comercial Complementar (CETA) e o Acordo de Parceria Estratégica6. Os acordos comerciais são cruciais na estratégia da UE e não tratam só de aspetos tarifários, de investimentos e de efeitos no emprego. A nova geração de acordos orienta-se para presevar a competitividade global da EU e aplicar as normas europeias aos parceiros, concretizando objetivos geoeconómicos. Em outro sentido, os acordos políticos e de segurança incidem sobre a geopolítica e definem o quadro de cooperação para questões políticas e de segurança, como a luta anti-terrorismo, a cibersegurança, a segurança marítima ou as questões do desenvolvimento sustentável. Como potência económica que é, a UE sente-se mais confortável com a abordagem à geoeconomia do que com os assuntos de natureza geopolítica, tendo tido melhor desempenho na negociação de acordos comerciais do que nos políticos, além de que os seus parceiros também mostraram mais interesse nos primeiros que no segundos. Para equilibrar esta lacuna estrutural, com raiz nas funções e competências da EU, e criar pontes entre geoeconomia e geopolítica a UE tem tentado negociar acordos comerciais e políticos em paralelo. Da observação da lista de parceiros estratégicos não ficam perceptíveis, à priori, os critérios e a racionalidade que estavam na base das escolhas daqueles países. A lista contém uma mistura de potências 6 Para informação mais detalhada sobre este Acordo de Parceria Estratégica ver http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:22016A1203(03)&from=EN 248 estabelecidas e emergentes, ocidentais ou não, países de mentalidade similar e diferente, embora se reconheça que todos possuem influência significativa em algumas regiões e/ou áreas políticas. Porém, não se descortina que a escolha dos países decorra de real reflexão estratégica da UE, sendo aquele conjunto de países mais o resultado de circunstâncias pontuais, o que levou a uma lista mais ‘acidental’ do que ‘estratégica’ (RENARD, 2016-a). É ainda notório que estas parcerias não idênticas, sendo algumas mais prioritários do que outras, além de que estão ancoradas em distintas bases políticas e jurídicas. Estas diferenças são o reflexo de diferentes níveis de ambição, vertidos em planos de ação conjunta e na respetiva arquitetura institucional. Acresce que os graus de maturidade das parcerias são variados, sendo ainda notado que umas têm estado mais orientadas para resultados da relação bilateral, enquanto outras estiveram mais vocacionadas para processos e para a ação multilateral (MORAES Y BLANCO, 2013) Assumindo que as parcerias não são idênticas, RENARD (2012-b) constrói uma taxonomia que distingue: as parcerias essenciais, como é o caso dos EUA, em que a relação transatlântica é crucial, não obstante as derivas e incerteza provocados pela administração americana no mandato de Trump que estão a abalar equilíbrios e compromissos internacionais (WICKETT, 2017); as parcerias-pivot, que incluem os BRICS7, relevantes pela sua dimensão económica na relação bilateral8 e peso político na ordem global; os parceiros que partilham a mesma visão, princípios e valores da UE, como o Canadá, Japão e Coreia do Sul9 e que apoiam as posições 7 A China tornou-se parceiro estratégico da UE no final de 2003, a Índia em 2004 e o Brasil e a África do Sul em 2007. A Rússia celebrou o seu Acordo de Parceria com a UE em 1997. 8 A União Europeia é o maior parceiro dos BRICS em termos comerciais e em termos de Investimento Direto Estrangeiro, enquanto os BRICS no seu conjunto são também o principal parceiro comercial da União Europeia e o destino da maioria dos seus fluxos de IDE. Ver informação detalhada para os fluxos de IDE em http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Foreign_direct_investment_between_the_European_Union_and_BRIC e para o comércio externo em http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2011/january/tradoc_147226.pdf 9 De referir que os dois Acordos Comerciais de nova geração foram exatamente estabelecidos com a Coreia do Sul (2013) e Canadá (2017). 249 ocidentais nos fóruns mundiais; finalmente, os parceiros regionais, como México e África do Sul10 que têm significativa influência nas regiões do globo onde se inserem. Em outro sentido, estes parceiros têm tido tratamento distinto pela UE. De facto, as relações com potências consolidadas como EUA, Canadá ou Japão, são reguladas no seio de um diálogo político amplo e permanente, constituindo relações estratégicas por natureza. Por outro, a UE tem tido dificuldade em implementar as parcerias com as potências emergentes, pois as relações bilaterais não estão consolidadas, devido aos múltiplos acordos bilaterais e/ou multilaterais que se vão sucedendo e de algumas picardias políticas que têm entravado os processos. No caso da relação com cada um dos BRICS, as Parcerias Estratégicas constituem uma tentativa de estabilizar as relações, adquirir confiança que possa garantir a continuidade da cooperação e ‘amarrar’ esses países a compromissos globais de natureza estrutural. Como já em 2010 constatava Van Rompuy “Until now, we had strategic partners, now we also need a strategy” (VAN ROMPUY, 2010:1), o cerne da questão das Parcerias Estratégicas radicava na ausência de diretrizes claras na política externa da UE, o que impedia a assunção de uma estratégia coerente e global. A percepção de que o passo dado o Conselho Europeu de 2010 iniciou um novo processo que era efetivamente necessário, está patente nos resultados da pesquisa de RENARD (2011), baseada na opinião de funcionários e diplomatas europeus, concluindo que as parcerias eram vazias de substância e evidenciavam ausência de critérios para costruir uma tipologia coerente. Tal, tem impedido a UE de cooperar com estes parceiros em questões realmente estratégicas, pelo que as parcerias não têm gerado impacto estrutural e a UE não se tornou ator reconhecido na ordem mundial. Assim, esta não parece ser reconhecida como parceiro credível e eficaz, mormente na área da segurança onde depende quase exclusivamente da vontade e dos recursos dos seus membros (RENARD (2016-a). Deste modo, o autor recomendava que para ter efetivas Parcerias Estratégicas a UE deveria rever a sua arquitetura institucional, conforme as 10 Este país está inserido no grupo composto pelo acrónimo BRICS no contexto deste trabalho. 250 exigências de natureza estratégica, e alterar os procedimentos para assegurar uma superior coordenação e coerência com as ações dos seus membros. Para implementar esta abordagem deveriam ficar claros os interesses estratégicos da UE, reestruturando a sua diplomacia e criando dispositivos para coordenar as ações. No plano bilateral, uma abordagem estratégica através do maior diálogo entre a UE e estes países e uma cooperação de espectro alargado seria proveitosa para aproximar os interesses. 5. As Parcerias Estratégicas da UE e a promoção do Multilateralismo Efetivo Perante as características e tendências presentes no atual sistema internacional, as Parecerias Estratégicas devem ser abrangentes e globais, justificando a sua extensão a temas que ultrapassem o cariz estritamente económico no plano bilateral. Em outra vertente, as parcerias efetivas constituirão plataformas de diálogo, reforçando a confiança mútua entre as partes. No plano operacional o próprio conceito Parceria Estratégica da UE deve ser como renovado e incorporar funções em três domínios básicos como recomenda RENARD (2012-b). Em primeiro, enquanto instrumento, as Parcerias Estratégicas devem estar ao serviço de propósitos claramente afirmados e partilhados. O dilema que se coloca tem a ver com o facto de os objetivos da ação externa da UE demorarem em ser definidos e materializados a nível global, bem como nos subníveis regionais e setoriais em que se desdobram. Assim, seria conveniente uma melhor definição e afirmação dos objetivos da UE e a adequada focalização do papel das Parcerias Estratégicas face a estes. Em segundo, as Parcerias Estratégicas, sendo abrangentes por natureza, colocam um desafio à coordenação de ações e posições entre a UE e os membros. Esta questão não é meramente conjuntural nem exclusiva das relações externas e radica na lógica do processo de construção europeia e de repartição de competências entre Estados-membros e instâncias supranacionais, pelo que exige negociação permanente para garantir que as políticas nacionais e europeias sejam coerentes e se 251 reforçam mutuamente Assim, dentro do quadro institucional da UE esta terá que coordenar as políticas interinstitucionais, pois no limite, trata-se de otimizar recursos. Em terceiro, as Parcerias Estratégicas devem favorecer a declarada pretensão da UE de promover o multilateralismo efetivo, conforme expresso na ESE de 2003. É sobre este aspeto mais estrutural que vamos tentar entender se as Parcerias Estratégicas da UE têm contribuído, para viabilizar o objetivo referido. A explicitação deste propósito, tem colocado forte pressão na obtenção de resultados, quer para a UE quer para os seus parceiros estratégicos. Assim, BISCOP & RENARD (2010) entendem que o papel das Parcerias Estratégicas não tem sido claro, e que estas só teriam sido úteis, caso tivesse ocorrido uma real avaliação dos interesses da UE nas várias partes do globo, à qual tivesse sucedido a clara identificação dos interesses comuns e uma estratégia coerente para a sua projeção, o que esteve longe de se verificar. A este propósito, VASCONCELOS et. al. (2010) alertam para a tensão entre a promoção do multilateralismo e as abordagens bilaterais, por via das Parcerias Estratégicas. Todavia, admitindo que as parcerias possam ir para além do estrito bilateralismo e que podem ajudar a lidar com desafios globais comuns, o formato Parceria Estratégica pode concorrer para atingir aquele objetivo. Nesse sentido, a UE também visava promover um entendimento comum sobre uma responsabilidade global partilhada entre distintos atores estratégicos na promoção da paz, da segurança e da sustentabilidade do Planeta (MAIHOLD, 2010). Acontece, contudo que a progressão do bilateralismo a que vimos assistindo a última década, circunscreveu as ações multilaterais a domínios de menor relevo, pelo que as Parcerias bilaterais constituem resposta vaga, e quiçá perigosa, para a ausência de uma efetiva governança global, desvalorizando as preferências da UE por uma ordem multilateral (GRATIUS, 2011). Era suposto que as Parcerias Estratégicas, não obstante o cariz bilateral, deviam assumir-se como mecanismos pragmáticos de real cooperação de atores mundiais, mas esse desiderato não tem sido atingido, de acordo com HOWORTH, 2016). Uma prioridade da UE tem sido promover o multilateralismo efetivo em matéria de defesa comum no âmbito da segurança europeia. 252 Segundo SCHAIK & HARR (2013), apesar da adoção do conceito desde 2003 os resultados têm sido limitados devido à ausência de posições comuns. Assim, no contexto da discussão sobre a Estratégia Global da União Europeia de 2016, UJVARI (2016-b) considera que a UE deve manter a sua ambição em construir soluções multilaterais, pois a sua génese e os seus princípios orientadores fundam-se nesta lógica, mas reconhece que a solução de questões globais ou regionais exigirá a transição das instituições tradicionais para redes mais informais e coligações específicas em quadros plurilaterais que vão para lá do multilateral. A este propósito, RENARD (2016-b) afirma que tem ocorrido uma reorientação das preferências da UE desde 2003, passando da prioridade concedida ao multilateralismo para um progressivo envolvimento em ações bilaterais, em função de razões externas e internas à própria UE. Em primeiro, houve uma maior interdependência com o acentuar da globalização e da incerteza sistémica numa fase de transição do sistema, gerando novas formas de difusão do poder11, sem que o quadro multilateral tivesse capacidade de resposta às novas exigências. Entretanto, os desafios globais intensificaram-se, criando o que GREVI (2009) designa por ‘mundo interpolar’, onde a interdependência, aliada à multipolaridade incentiva a criação de novas formas de cooperação internacional. Neste sentido, WRIGHT (2013) concede que a maior interdependência e competição geopolítica, devido à emergência de novos atores como os BRICS que trataremos a secção seguinte, tanto pode originar discórdias e tensões como, ao invés, atitudes e comportamentos cooperativos. Deste modo, o ressurgimento de relações de natureza bilateral para responder a estes desafios parece constituir a consequência natural daquilo que LEAL-ARCAS (2009:33) designa por “multilateralismo fracassado”. 11 A difusão do poder opera em duas formas e direções distintas: por um lado, de forma horizontal com o (re) surgimento de ‘novos poderes’, mormente dos países emergentes que aproveitam a sua influência económica para aumentar a influência política e desenvolver o seu poder militar. Em segundo, a difusão vertical com o aparecimento de atores sub-nacionais, supranacionais e mesmo não estatais. Esses processos de fragmentação e integração ocorrem em simultâneo e não podem ser dissociados nos seus efeitos (RENARD, 2016-b) 253 Em segundo, têm-se registado nas últimas décadas desenvolvimentos profundos no processo de integração na UE, procurando afirmar-se progressivamente como ator global, dispondo de alguns meios e instrumentos com poder efetivo. O Tratado de Maastricht que encerra os tempos de bipolarização mundial veio legitimar a transferência de algumas competências de política externa dos Estadosmembros para a UE no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e, mais recentemente, o Tratado de Lisboa lançou as bases para a afirmação da UE como ator global, devido a diversas alterações de considerável alcance político. Este Tratado trouxe um novo élan e um renovado interesse pelas Parcerias Estratégicas da UE, sendo múltiplas as razões para a focalização no conceito. Em primeiro, foi dado novo impulso à política externa, permitindo maior coerência e continuidade com a criação do cargo de Presidente do Conselho da União Europeia. Em segundo, a política externa da UE tornou-se mais integrada devido ao papel coordenador do Serviço de Ação Externa da União Europeia (SAEUE), enquanto impulsor do pensamento prospetivo e gestor das Parcerias Estratégicas, as quais se situam na confluência de múltiplas dimensões da política externa da UE, desde a económica à política, desdobradas em aspetos bilaterais/regionais e multilaterais/globais. Seja qual for o poder real da UE na cena internacional, o facto é que esta vem-se tornando gradualmente num poder normal, dispondo de uma diversificada gama de instrumentos de atuação no domínio da sua política externa. Deste modo, sempre que as abordagens multilaterais ou interregionais não forem adequadas, a UE recorre ao nível bilateral, em especial quando as questões forem de cariz económico e propiciarem vantagens imediatas, como acontece regularmente com as relações comerciais (HARDACRE & SMITH (2009). 6. As Parcerias Estratégicas UE-BRICS: Parceiros bilaterais e rivalidades globais 254 Das discussões sobre o conceito e a relevância das Parcerias Estratégicas e a sua interação com o quadro multilateral decorre a convicção de que aqueles acordos só são estratégicos quando facilitem propósitos que vão para lá das questões estritamente bilaterais, ou seja quando promovam a cooperação internacional e a governação global. Procurámos expor evidências sobre a implementação das Parcerias Estratégicas na EU, as suas virtudes e debilidades, pelo que nesta seção final sistematizaremos uma leitura integrada, tendo em conta os múltiplos propósitos que podem justificar as Parcerias Estratégicas com os BRICS A eficácia das Parcerias Estratégicas EU-BRICS deve ser multidimensional, evitando uma abordagem centrada em exclusivo no plano bilateral, a qual encerra o risco de negligenciar eventuais interações entre dimensões distintas, assim como as implicações das relações bilaterais na dimensão multilateral. Com efeito, as Parcerias Estratégicas definem-se como abrangentes e polivalentes, com finalidades nos planos bilateral e multilateral, focando várias dimensões de forma pragmática. A capacidade para alterar e afinar este foco, quando as circunstâncias e os interesses o exijam, constitui marco fundamental para testar a sua eficácia. Desta análise pode resultar a convicção de que algumas parcerias possuem maior conteúdo estratégico do que outras, mormente quando consideramos a segurança, a sustentabilidade e o progresso socioeconómico. Esta avaliação de um instrumento da política externa da UE deve ter em conta as iniciativas que promovam a influência europeia num cenário internacional turbulento. Para esta avaliação recorremos à grelha proposta por GREVI (2012) que engloba os múltiplos fins que fundam as Parcerias Estratégicas, permitindo-lhes e exercer três tipos de funções, distintas, mas funcionalmente ligadas, a reflexiva, relacional e estrutural. A função reflexiva das Parcerias Estratégicas orienta-se para promover a afirmação das partes, sendo que no caso da UE o a finalidade é posicionar a instituição perante os Estados-Membros e face a outros poderes no nível mundial. Assim, no plano interno, as Parcerias Estratégicas são úteis para reforçar a posição de liderança da UE na coordenação e formulação de estratégias e políticas externas face aos seus membros e facilitar a elaboração de políticas interinstitucionais. No plano 255 externo, servem sobretudo para afirmar as ambições globais da UE como parceiro credível e com peso num sistema internacional desafiador. O simples facto de sinalizar a realização de um acordo desta natureza configura que os parceiros se identificam como interlocutores recíprocos, daqui decorrendo um elevado valor político para ambas as partes. Porém, as parcerias podiam ser mais do que um mero meio de afirmação da UE como ator global e ir além da normalização das relações comerciais e financeiras, conferindo-lhes um papel integrador com superior articulação e coerência entre os instrumentos disponíveis. Impunha-se o aprofundamento da sua coesão no plano político e uma maior coordenação em ações de cooperação dos níveis nacional e comunitário. Compreende-se, como vimos, que a questão das Parcerias Estratégicas tenha adquirido novo protagonismo na agenda da política externa da UE com o Tratado de Lisboa e que tenha ajudado a recompor a natureza das suas relações externas. O já citado Conselho Europeu de 2010 procurou vias para imprimir nova dinâmica às relações externas e consensualizou a ideia de que a promoção dos interesses e valores deveria ser mais assertiva para mútuo benefício. Para tal, as Parcerias Estratégicas com potências mundiais deveriam consagrar os interesses dos Estados, na base da reciprocidade dos proveitos e na partilha dos correspondentes deveres. No que aos BRICS respeita, cremos que o facto de a UE lhes outorgar a denominação de ‘parceiro estratégico’ equivaleu ao simbólico reconhecimento do seu estatuto como atores globais, servindo este rótulo como meio de afirmação do seu protagonismo no cenário global. De acordo com MORAES Y BLANCO (2015), após a declaração simbólica do objectivo de criar Parcerias Estratégicas com atores-chave no plano mundial em apoio ao multilateralismo efetivo a atribuição do rótulo "parceiro estratégico da UE" tornou-se um bem desejado para os atores políticos então emergentes e ansiosos por reconhecimento como atores globais. Ora, sendo certo que os BRICS pretendeiam o estatuto de ‘parceiro estratégico da UE’, também para esta, a ambição de outros atores relevantes receberem este rótulo, significava que os potenciais parceiros 256 encaravam a UE como ator político internacional com legitimidade para lhes outorgar o qualificativo de atores do sistema global. Assim, este reconhecimento da mútuo da UE e dos BRICS foi crucial para tornar o conceito ‘Parceria Estratégica’ relevante na reconfiguração sistémica mundial, cumprindo assim a sua função reflexiva. Não obstante as lacunas já referidas, a gestão das Parcerias Estratégicas da UE tem denotado progressos, mas tem patenteado ainda a persistência de fragilidades e ambiguidades. De facto, o renovado foco sobre as relações bilaterais com parceiros estratégicos gerou procedimentos mais eficazes na preparação de reuniões de acompanhamento dos acordos, motivando melhor coordenação entre as instituições comunitárias. O recém-criado SEAUE orientou a sua ação para construir acordos funcionais, focalizados nas prioridades da UE, embora denotando ainda falta de coerência na elaboração de políticas intersectoriais. Tal, pode dever-se ao facto de este Serviço articular várias plataformas de coordenação, mas não dispor de competências próprias na definição de prioridades, as quais continuam atribuídas ao Conselho e à Comissão. A segunda função atribuída às Parcerias Estratégicas tem a ver com o entendimento de que estas podem propiciar uma melhor gestão das relações bilaterais que asseguram os interesses diretos e imediatos dos parceiros. De resto o Conselho Europeu de 2010 destacou este aspeto ao referir “o reforço do comércio com parceiros estratégicos constitui um objetivo crucial, contribuindo para a retoma económica e a criação de emprego” e prosseguiu enfatizando a sua dimensão económica, afirmando que estas se orientam “para assegurar ambiciosos acordos de comércio livre, garantir um maior acesso ao mercado para as empresas europeias e aprofundar a cooperação em matéria de regulamentação com os principais parceiros comerciais” (CONSELHO EUROPEU, 2010:3). Nesta perspectiva, cremos que a matriz dominante nas atuais Parcerias Estratégicas da UE com os países que integram o bloco BRICS é baseada na motivação económica, embora com ampla diferenciação dos vetores mais salientes em cada país. Por exemplo, no caso da China, questões como o acesso ao mercado e/ou os regimes de concorrências que afetam fluxos de comércio e de investimento são prioritários. O aumento exponencial das exportações da China e o respetivo crescimento 257 económico dependem muito da UE que é o seu principal parceiro comercial, sendo a China o segundo maior mercado externo da UE. A relação com a Rússia tem sido pautada pelas questões da energia e pelo envolvimento de empresas europeias na modernização tecnológica daquela economia, não obstante as relações políticas terem esfriado na sequência da crise na Ucrânia e da ocupação da Crimeia que levaram à aplicação de sanções económicas mútuas com implicações diferenciadas nos custos e benefícios pelos vários agentes (GIUMELLI, 2017). Os elevados fluxos de importação de petróleo e gás natural da Rússia, tornaram a UE demasiado dependente desta fonte de abastecimento, facto que amiúde provoca ameaças de retaliação perante situações políticas em parceiros têm visões diferentes, como acontece, por exemplo, na questão nuclear do Irão ou na guerra civil da Síria. As relações comerciais e de investimento têm constituído os domínios fudamentais nas relações com os BRICS, pelo que ao nível bilateral estes países têm razões para promover a normalização de tais relações. O maior argumento é então a interdependência económica, já que para os BRICS, a UE é o maior parceiro comercial e todos aqueles países estão entre os maiores parceiros comerciais da UE. Além disso, a África do Sul celebrou um acordo de livre comércio com a UE, enquanto a Índia estão em fase de negociação de um acordo similar. Já a China está em negociação para firmar um Acordo Abrangente de Investimento com a EU, enquanto o Brasil aguarda pela conclusão de um acordo global de comércio da UE-Mercosul que pode consituiur o primeiro grade acordo interregional de comércio no plano mundial. Esta questão, alerta para a dificuldade da UE gerir uma agenda negocial que tenha em conta, em simultâneo, as relações bilaterais com os países individualmente considerados e as relações com as instituições de integração regional a que cada um dos BRIC pertence e que nem sempre têm sido abordadas da melhor forma. BENDIEK & KRAMER (2010) enfatizam as incertezas quanto à interação entre ‘Parcerias Estratégicas bilaterais e ‘estratégias inter-regionais’ da UE, mormente nas relações que esta promove com o Brasil e MERCOSUL, com a China, a Índia, e a Associação das Nações do Sudeste Asiático e a ASEM (Asia-Europe 258 Meeting) ou ainda com a África do Sul e a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (CDAA). Na realidade, tem havido divergências e incompatibilidades negociais que criaram tensão com os grupos de integração regional, levando os autores a questionar se a UE, que no passado foi o maior defensor e promotor da integração económica regional por todo o mundo, não estará a enviar sinais ambíguos aos seus homólogos regionais ao celebrar acordos bilaterais, sob a capa de Parcerias Estratégicas, com países líderes nessas regiões e inclusive a ter interferência contraproducente nos processos de integração daqueles espaços regionais (KRAPOHL, 2017). Acresce que as relações bilaterais não se esgotam em assuntos económicos. Com efeito, um argumento de apoio às Parcerias Estratégicas bilaterais é a posição privilegiada dos BRICS nos seus espaços regionais e, para alguns, no contexto global. É reconhecido que China e Rússia são potências regionais e globais há muito consolidadas, o Brasil está a afirmarse como potência regional na América latina (GRATIUS & SARAIVA, 2013), a Índia tem papel nuclear no processo de integração do Sudeste Asiático, enquanto a África do Sul, para lá de ser o motor económico do continente africano, é líder incontestado do processo de integração regional na África austral e da cooperação para a manutenção da paz na África subsariana. Nestes termos, os BRICS têm posições de liderança regional, com marcada influência sobre a sua vizinhança, em África, Ásia e América Latina, o que permite que as conversações sobre segurança internacional sejam assumidas como tema relevante da agenda bilateral. De acordo com GRATIUS (2013), outros temas das agendas bilaterais das Parcerias Estratégicas têm vindo a adquirir importância, especialmente sobre as mudanças climáticas e ambiente para Brasil, Índia e China, sobre segurança energética e política para vizinhança com a Rússia e, ainda, sobre a cooperação para o desenvolvimento, com Brasil, Índia e África do Sul. Em síntese, esta dispersão de interesses temáticos das agendas bilaterais contribui, em certa medida, para justificar a inexistência até agora de uma agenda específica e unificada entre a UE e os BRICS no seu todo. De facto, a reduzida coerência interna deste bloco informal e da respetiva es- 259 tratégia afirmada pela sua capacidade de veto no nível das instituições globais, não parece fazer sentido implementar uma política europeia ou uma parceria estratégica única com os BRICS, o mesmo se verificando apara este grupo nas relações mantidas com a UE. Finalmente, um terceiro aspeto considera que as Parcerias Estratégicas poderão ser usadas de forma eficiente como instrumentos para promover a cooperação multilateral. Após o fim da bipolarização, os países emergentes12 reforçaram a sua influência na distribuição do poder no sistema internacional, pelo que seria expectável que as parcerias que mantêm com a UE contribuíssem para afirmar as prioridades e normas que enquadram a nova ordem mundial, o que na prática não se verificou. Na realidade, os atores e países assumem distintas posições no quadro multilateral, o que por vezes se reflete na ausência de progressos concretos em assuntos específicos, como os que ocorreram no decurso das negociações de Doha sobre a liberalização comercial ou nas sucessivas Cimeiras sobre as alterações climáticas. Apesar destas peculiaridades, típicas da fase de transição para um novo regime, a existência de relações estruturadas entre os principais atores globais e regionais pode constituir alavanca para ações comuns e para aproximar posições sobre os temas dominantes da cena internacional (MEIER. 2013). Deste ponto de vista, a função das Parcerias Estratégicas da UE pode revelar-se peça fundamental para revigorar as relações bilaterais, ao mesmo tempo que constituem um suporte da ação multilateral. Assim, podem as mesmas consolidar uma abordagem estrutural da política externa, através de amplas plataformas de consenso, com base em princípios e regras partilhadas no plano internacional. Em virtude de constituírem um mecanimso de reconhecimento mútuo do estatuto de poder, as Parcerias Estratégicas podem, teoricamente, melhorar o papel da UE e dos BRICS no plano global. Todavia, o grau de convergência entre ambos tem sido diminuto, pelo que as parcerias não terão atingido o propósito de promover o multilateralismo efetivo. Dadas as condições do atual sistema internacional não parece 12 Dentro dos países emergentes, podemos considerar a China, India, Brasil e África do Sul, enquanto a Rússia, principal república da URSS, era já uma potência não devendo assim ser considerada emergente. 260 expectável que os BRICS e a UE tenham uma atitude similar perante as instituições multilaterais e os seus princípios, devendo os parceiros assumir as diferenças e adaptar as respetivas agendas negociais, pois uma parceria estratégica só pode ter efeitos multilaterais se houver concessões que aproximem as posições de ambas as partes. A UE sente-se mais confortável em tratar questões globais com os seus parceiros tradicionais do que com os BRICS, dado que estes países são sensíveis a interpretações intrusivas da sua soberania nacional e à não ingerência em assuntos internos. Apesar de algumas declarações de circunstância, os BRICS não parecem de facto alinhados com o multilateralismo efetivo, baseado em normas e valores para a governança global que são intrínsecos à UE. Tais normas e valores não têm sido partilhados por China e Rússia e também Índia, Brasil, e África do Sul têm tido, por vezes, interpretações distintas que não permitem alinhamentos estratégicos. Outro aspeto que não contribuiu para aproximar posições dos dois grupos tem sido a reforma das instituições internacionais, mormente o sistema de quotas no FMI. A indisponibilidade europeia para ceder parte da sua posição e viabilizar a maior participação dos BRICS, ilustra a oposição clara dos dois grupos. Acresce que os BRICS também não partilham as mesmas convicções em questões societais relevantes como se verificou nas últimas conferências sobre alterações climáticas, onde a Rússia se distanciou dos restantes BRICS, face à exigência destes no compromisso de maior redução das emissões de gases pelos países mais industrializados. Em função destas evidências não têm existido condições para afirmar uma alargada parceria estratégica UE-BRICS. Como vimos, estes países não constituem um grupo coerente e dificilmente formarão uma aliança com elevada coesão e grau de institucionalização. Não obstante, os BRICS têm tido bastante relevo enquanto grupo de pressão com influência para impedir posições consensuais em várias questões da agenda internacional. Assim, as Parcerias Estratégicas BRICS-UE têm sido algo ambivalentes nos seus efeitos, gerando bons resultados no plano bilateral, em especial nos domínios económicos, mas tendo pouca valia na 261 construção de soluções multilaterais, onde a rivalidade e a fratura têm sido notórias na maioria das questões. Posições divergentes em questões internacionais alertam para os limites do apoio dos BRICS às posições da UE em assuntos cruciais na esfera mundial, impedindo que estes países apoiem a sua visão de multilateralismo efetivo. Deste modo, enquanto persistir este afastamento sobre as questões fundamentais da agenda mundial, a UE deverá assumir que os BRICS são rivais em questões de governança e liderança globais e concentrar esforços na dimensão bilateral das Parcerias Estratégicas. Daqui decorre a necessidade de adaptar as agendas negociais aos distintos parceiros, em vez de procurar unificar os formatos e instrumentos para todos os BRICS, numa lógica “one-size-fits-all” que não reflete as especificidades nem clarifica os objetivos das parcerias (REWIZORSKI, 2015). Nestes termos, concordando com GRATIUS (2013), parece mais relevante para a UE focar-se nos domínios que abrangem as relações comerciais e de investimento do que lançar novos fóruns de diálogo em questões fraturantes com escassas possibilidades de sucesso e que, muitas vezes desembocam em impasses e autênticos diálogos de surdos. Perante a escassez de recursos da UE, estes devem ser usados a criação de uma agenda viável de cooperação bilateral, em vez de insistir com parceiros relutantes em adotar as posições desta no plano global. Em termos de resposta à questão que no início colocámos. parece pouco viável que a UE consiga projetar-se como ator global por via de eventuais posições comuns com os BRICS, pois, de forma legitima, o interesse maior destes países é reforçar o seu estatuto de poder e não promover um multilateralismo assente em regras que abertamente contestam. A UE é um ator de política externa complexo dada a sua natureza como entidade política, o que delimita um quadro particular para a sua política externa e para projetar os seus interesses e princípios. Tal especificidade, tem efeitos importantes para a definição e implementação das políticas, o que naturalmente gera percepções diferentes nos agentes ao nível interno e global. Ora, os usos de linguagem específica e padronizada para as Parcerias Estratégicas da UE com os BRICS têm sido muito similares, não obstante, quando observamos as relações bilaterais com cada país, vemos que elas têm sido enquadradas e conduzidas por 262 dinâmicas próprias, pelas circunstâncias que foram moldando este conceito ainda em busca de consolidação. Uma última nota sobre os efeitos que a recente crise social, económica e financeira tem tido na erosão da credibilidade da UE no contexto global. Em virtude da sua própria experiência, a UE era reconhecida como um defensor natural da cooperação multilateral, o que lhe granjeou prestígio em instâncias internacionais. Porém, esta reputação pode transformar-se em debilidade no plano político, caso a EU abandone o modelo multilateral no plano externo e, por outro lado, no plano interno os seus membros não pratiquem o que proclamam. Ora, a ausência de solidariedade e de coesão institucional reveladas no combate aos impactos da recente crise, deixou alguns dos seus membros em situação frágil e de exposição face aos comportamentos especulativos e erráticos dos mercados financeiros. Estes aspetos parecem estar a reduzir de forma drástica a credibilidade e a reputação da UE nos fóruns internacionais. Como reconhecem BALFOUR et. al. (2013) a crise é estrutural e provocará mudanças irreversíveis na organização das economias europeias, e nas instituições e sistemas de segurança social, ameaçando o modelo social europeu devido às medidas de austeridade e seus impactos sobre os menos protegidos, prejudicano a credibilidade da UE. As divergências internas e a ausência de uma estratégia coerente e unificada nem sempre têm permitido mobilizar as Parcerias Estratégicas para atingir objetivos mais amplos, afetando o papel da UE como parceiro e agente credível em prol da construção de um multilateralismo efetivo. Referências Bibliográficas BALFOUR, Rosa and RAIK, Kristi (editors) - The European External Action Service and National Diplomacies, EPC Issue Paper No. 73, Março 2013. Disponível em WWW: < URL: http://www.epc.eu/documents/uploads/pub_3385_the_eeas_and_national_diplomacies.pdf. Acedido em 29 de maio de 2017. 263 BENDIEK, Annegret; KRAMER, Heinz -The EU as a Would-Be Global Actor: Strategic Partnerships and Interregional Relations. In HUSAR, Jörg; MAIHOLD, Günther; MAIR, Stefan (eds.) - Europe and New Leading Powers. Towards Partnership in Strategic Policy Areas. Nomos: 2010, 2142. BISCOP, Sven; RENARD, Thomas - A Need for Strategy in a Multipolar World: Recommendations to the EU after Lisbon. Security Policy Brief 5, January 2010. Disponível em WWW: <URL: https://biblio.ugent.be/publication/1175135/file/6749512.pdf. Acedido em 29 de maio de 2017. BISCOP, Sven; RENARD, Thomas - The EU’s strategic partnerships with the BRIC: where’s the strategy? Bureau of European Policy Advisors (BEPA) Monthly Brief. p.6-8< URL: http://hdl.handle.net/1854/LU-1174987. Acedido em 29 de maio de 2017. CONING, Cedric de; MANDRUP, Thomas; ODGAARD, Liselotte – The BRICS and Coexistence: An Alternative Vision of World Order. Oxon: Routledge, 2015. CONSELHO EUROPEU. Conclusões da reunião do Conselho Europeu de 16 de setembro de 2010, Disponível em WWW: <URL: http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_data/docs/pressdata/pt/ec/116566.pdf>. Acedido em 27 de maio de 2017. FABRY, Elvire (editor). Think Global – Act European IV -Thinking Strategically about the EU´s External Action. Institu Jacquel Delors, 2013. Disponível em WWW: <URL: http://www.oftt.eu/nos-activites/publications/article/think-global-act-european-iv-report-released?lang=en >. Acedido em 27 de maio de 2017. GIUMELLI, Francesco -The Redistributive Impact of Restrictive Measures on EU Members: Winners and Losers from Imposing Sanctions on Russia. JCMS: Journal of Common Market Studies, 2017, doi: 10.1111/jcms.12548. 264 GRATIUS, Susanne - The EU and its ‘Strategic Partnerships’ with the BRICS, Konrad-Adenauer-Stiftung online publication, May 2013. <URL: http://www.kas.de/wf/doc/9922-1442-2-30.pdf >. Acedido em 27 de maio de 2017. GRATIUS, Susanne - Can EU Strategic Partnerships deepen multilateralism? Fundación para las Relaciones Internacionales y el Diálogo Exteriior - European Think Tank for Global Action. Working Paper 109, 2011. Disponível em WWW: <URL: http://fride.org/publication/943/can-eu-strategic-partnerships-deepen-multilateralism >. Acedido em 20 de maio de 2017. GRATIUS, Susanne and SARAIVA, Miriam - Continental Regionalism: Brazil’s prominent role in the Americas, CEPS Working Documents, No. 374, February 2013. <URL: https://www.ceps.eu/publications/continental-regionalism-brazil%E2%80%99s-prominent-role-americas >. Acedido em 27 de maio de 2017. GREVI, Giovanni - Why EU strategic partnerships matter. FRIDE Working Paper 1, 2012. Disponível em WWW: <URL: http://www.fride.org/download/WP_ESPO_1_Strategic_Partnerships.pdf >. Acedido em 26 de maio de 2017. GREVI, Giovanni -The interpolar world: a new scenario. [Em linha]. Occasional Paper 79, EU Institute for Security Studies. Paris. 2009. Disponível em WWW: <URL: http://www.iss.europa.eu/publications/detail/article/the-interpolar-world-a-new-scenario/>. Acedido em 26 de maio de 2017. GREVI, Giovanni -The rise of strategic partnerships: between interdependence and power Politics. In GREVI, Giovanni and VASCONCELOS, Álvaro (eds.) - Partnerships for effective multilateralism: EU relations with Brazil, China, India and Russia. Chaillot Paper 109, May 2008. Disponível em WWW: <URL: http://www.iss.europa.eu/uploads/media/cp109_01.pdf. 265 Acedido em 22 de maio de 2017 GREVI, Giovanni; RENARD, Thomas - Introduction. In GREVI, Giovanni; RENARD, Thomas (eds) - Partners in Crisis: EU Strategic Partnerships and the Global Economic Downturn. ESPO Report 1, European Strategic Partnerships Observatory, November, 2012. Disponível em WWW: <URL: http://www.egmontinstitute.be/wp-content/uploads/2014/01/ESPOreport1-ECON-FINAL-II.pdf >. Acedido em 27 de maio de 2017. HARDACRE, Alan; SMITH, Michael -The EU and the diplomacy of complex interregionalism. Journal of Diplomacy. Hague. 2009, 4/2, 167–188. HESS, Natalie - Understanding the EU’s Strategic Partnerships with Brazil, India and South Africa - Strategic alliances forming part of the strategy of cooperating while competing and Social relationships as foreign policy tools of social power. PhD Thesis, University of Hamburg, 2013. Disponível em WWW: <URL: http://ediss.sub.uni-hamburg.de/volltexte/2014/6817/ > Acedido em 27 de maio de 2017. HOWORTH, Jolyon -EU Global Strategy in a Changing World: Approach to the Emerging Powers. Contemporary Security Policy, 2016, Vol. 37/3, 289401. JAIN, Subhash - Emerging Economies and the Transformation of International Business: Brazil, Russia, India and China (BRICs). University of Connecticut. US, 2006. KEUKELEIRE, Stephan; BRUYNINCKX, Hans -The European Union, the BRICs, and the Emerging New World Order. In HILL, Christopher; SMITH, Michael - International Relations and the European Union. Oxford: Oxford University Press, 2011, pp. 380-403. KRAPOHL, Sebastian - Regional Integration in the Global South: External Influence on Economic Cooperation in ASEAN, MERCOSUR and SADC. Palgrave Macmillan. 2017. 266 LEAL-ARCAS, Rafael - EU relations with China and Russia: how to approach new superpowers in trade matters. Journal of International Commercial Law and Technology. 2009, 4/1, 22–41. MAIHOLD, Günther - Conclusion. Leadership coalitions as a new element for the EU’s external action. In HUSAR, Jörg; MAIHOLD, Günther; MAIR, Stefan (eds.) - Europe and New Leading Powers. Towards Partnership in Strategic Policy Areas. Nomos: 2010, pp. 149-156. MORAES Y BLANCO, Luis Fernando - On the uses and functions of 'strategic partnership’ in International Politics: Implications for agency, policy and theory. PhD Thesis University of Bielfield, 2015. Disponível em WWW: <URL: https://pub.uni-bielefeld.de/publication/2763241> Acedido em 27 de maio de 2017. NEL, Philip – Redistribution and recognition: what emerging regional powers want. Review of International Studies. 2010, Vol. 36, No. 4, pp. 951974. DOI:10.1017/S0260210510001385. O’NEILL, Jim – Building Better Global Economic BRICs. Global Economics Paper No: 66, Goldman Sachs. 30 November 2001. Disponível em WWW: < URL: http://www.goldmansachs.com/our-thinking/archive/building-better.html >. Acedido em 4 de março de 2017. O’NEILL, Jim – The BRIC Road to Growth (Perspectives). London: Publishing Partnership, London Publishing Partnership, 2013. PIPPER, Laurence – The BRICS Phenomenon: from Regional Economic Leaders to Global Political Players. BICAS Working Papers, 3, 2015. Disponível em WWW: < URL: https://www.tni.org/files/download/bicas_working_paper_3_piper.pdf > Acedido em 6 de março de 2017. RENARD, Thomas - Partnering for Global Security: the EU, its Strategic Partners and Transnational Security Challenges. European Foreign Affairs Review. 2016 (a), Vol. 21 (1), 9-34. 267 RENARD, Thomas - Partnerships for effective multilateralism? Assessing the compatibility between EU bilateralism, (inter-)regionalism and multilateralismo. Cambridge Review of International Affairs. 2016 (b), Vol. 29/1. RENARD, Thomas - En Quête de Stratégie: L'UE et les Partenariats Stratégique. In SANTANDER, Sebastien (dir.) - Puissances Emergentes: Un Défi pour l'Europe? Paris: Ellipses, 2012 (a). RENARD, Thomas -The EU and its strategic partners: a critical assessment of the EU’s Strategic Partnerships. In BISCOP, Sven; WHITMAN, Richard G (eds.) -The Routledge Handbook of European Security. Abingdon, United Kingdom: Routledge, 2012 (b), 302–314. RENARD, Thomas -The Treachery of Strategies: A Call for True EU Strategic Partnerships. [Em linha]. Egmont Paper, 45, Egmont - Royal Institute for International Relations. 2011. Disponível em WWW: < URL: http://www.thomasrenard.eu/uploads/6/3/5/8/6358199/ep45-treachery_of_strategies_official.pdf >. Acedido em 27 de maio de 2017. REWIZORSKI, Marek (editor) - The European Union and the BRICS: Complex Relations in the Era of Global Governance, Springer, 2015. ROMPUY, Herman Van - EU External Relations - Message of President in the run-up to the European Council. 2010. Disponível em WWW: < URL: http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_Data/docs/pressdata/en/ec/116494.pdf>. Acedido em 27 de maio de 2017. SCHAIK, Louise; HAARr, Barend -Why the EU is not promoting effective multilateralism. Clingendael Policy Brief, 2013, 21, 1-6. Disponível em WWW: <URL: https://www.clingendael.nl/sites/default/files/Why%20the%20EU%20is%20not%20promoting%20effective%20m ultilateralism.pdf >. Acedido em 6 de março de 2017. SCHMIDT, Anne - Strategic Partnerships – A contested policy concept. Stiftung Wissenschaftun Politik. Working Paper GF 1, 2010/07, December. Disponível em WWW: < URL: https://www.swp-berlin.org/fileadmin/con- 268 tents/products/arbeitspapiere/FG%201%20discussion%20paper_Anne%20Schmidt.pdf >. Acedido em 16 de maio de 2017. UJVARI, Balazs - The European Union and the China-Led Transformation of Global Economic Governance. Egmont Paper 85, June 2016 (a). Disponível em WWW: < URL: http://aei.pitt.edu/85980/1/ep85.pdf >. Acedido em 6 de março de 2017. UJVARI, Balazs (editor) -The EU Global Strategy: Going beyond effective multilateralism? Egmonton - Royal Institute for International Relations, 2016 (b). Disponível em WWW: <URL: http://www.epc.eu/documents/uploads/pub_6613_the_eu_global_strategy-going_beyond_effective_multilateralism.pdf >. Acedido em 14 de março de 2017. VASCONCELOS, Álvaro (editor) - A strategy for EU Foreign Policy. European Union Institute for Security Studies, report 7, 2010. Disponível em WWW: < URL: http://www.iss.europa.eu/uploads/media/A_strategy_for_EU_foreign_policy.pdf > Acedido em 14 de março de 2017. WEBBER, Douglas - By most objective measures, Europe must now be classed as a declining power, EUROPP – European Politics and Policy, London School of Economics, 2015. Disponível em WWW: < URL: http://bit.ly/1HWJUzz > Acedido em 14 de março de 2017. WESCOTT, Lucy – BRICS Conference Plots a Challenge to Western Economic Domination. Newsweek, 15 July 2014. Disponível em WWW: < URL: http://europe.newsweek.com/brics-conference-plots-challengewestern-economic-domination-259093?rm=eu >. Acedido em 14 de março de 2017. WICKETT, Xenia -America’s International Role Under Donald Trump. [Em linha]. Chatham House Report, US and the Americas Programme. 2017, January. Disponível em WWW: < URL: https://www.chathamhouse.org/sites/files/chathamhouse/publications/research/2017-01-18-americas-international-role-trump-wickett-final2.pdf >. Acedido em 30 maio de 2017. 269 WILSON, Dominic; PURUSHOTMAMAN, Roopa - Dreaming With BRICs: The Path to 2050. Global Economics Paper, 2003, 99. Disponível em WWW: <URL: http://www.goldmansachs.com/our-thinking/archive/archive-pdfs/brics-dream.pdf>. Acedido em 30 maio de 2017. WRIGHT, Thomas - Sifting through interdependence, Washington Quarterly, 36 (4), 7–23, 2013. http://dx.doi.org/10.1080/0163660X.2013.861706 270 THE COLD WAR AND THE USSR: PERCEPTIONS AND INTERACTIONS WITH EUROPE Vanda Amaro Dias Visiting Assistant Professor Department of International Relations School of Economics University of Coimbra vandadias@fe.uc.pt Abstract: The Cold War refers to a process of tension and confrontation between the USA and the USSR during the second half of the 20th century. In the midst of this process, Europe has arguably played a central role to the strategies of the opposing superpowers. This paper envisages to analyse perceptions of and interactions between the USSR and Europe. For that purpose, it delves into the distinct strategies developed by Moscow towards Eastern and Central Europe – perceived as a buffer zone between East and West –, and Western Europe – where the goal was to promote a division within the Western bloc and guarantee the neutrality of European powers within the larger scope of Cold War confrontation. Keywords: Cold War, Europe, interactions, perceptions, USSR. 271 Introduction The Cold War can be better understood as a process of indirect confrontation typical of the second half of the 20th century opposing two global superpowers – the United States of America (USA) as the leader of the Western bloc and the upholder of liberal principles; and the Union of Soviet Socialist Republics (USSR) as the leader of the Eastern bloc and its socialist ideology (Correia, 2010). Arguably, Europe has played a fundamental role within this logic of global confrontation occupying a central place in the strategic mind-sets and agendas of both the USA and the USSR. A reductionist vision of the role of Europe in the Cold War still persists in the literature on the field. However, attempts at transcending this logic and its inherent perception of Europe as yet another battlefield of the bipolar confrontation, opens important avenues into the understanding of this area as the centre of evolving dynamics of power and security in this important phase of the history of international relations. Seemingly, Europe featured as an area of insurmountable strategic value both to the USA and to the USSR. As World War II came to an end, Europe found itself divided into two blocs, one to the West, occupied by American military forces, and one to the East occupied by Soviet troops. At this stage, political elites in Washington and Moscow were preoccupied with the future geopolitical alignment of the recently freed Europe. As such, the USA engaged in the promotion of a democratic and liberal Europe capable of performing a meaningful role in the logic of communism containment, whereas the USSR was mostly interested in preventing Europe to become a cornerstone of capitalism and in averting the rearmament of the post-Nazi Germany. As these opposing views on the future of Europe unfolded, in 1946, then leader of the British opposition Winston Churchill delivered a speech at the Westminster College in Missouri announcing that From Stettin in the Baltic to Trieste in the Adriatic, an iron curtain has descended across the Continent. Behind that line lie all the capitals of the ancient states of Central and Eastern Europe. Warsaw, Berlin, Prague, Vienna, Budapest, Belgrade, Bucharest and Sofia, all these famous cities and the populations around them lie in what I 273 must call the Soviet sphere, and all are subject in one form or another, not only to Soviet influence but to a very high and, in many cases, increasing measure of control from Moscow. […] The Communist parties, which were very small in all these Eastern States of Europe, have been raised to pre-eminence and power far beyond their numbers and are seeking everywhere to obtain totalitarian control. Police governments are prevailing in nearly every case, and so far […], there is no true democracy (Churchill, 1946).1 This European divide was not merely political and ideological, but also economic as Western European countries were relying on the economic aid provided by the USA-led Marshall Plan to undertake the necessary post-war reconstruction; and Central and Eastern Europe were being supported by the Council of Mutual Economic Assistance (COMECON), created in 1949 by the USSR to promote trade and economic growth amongst communist countries. It was also a military divide cemented after the creation of the North Atlantic Treaty Organization (NATO), in 1949, and the Warsaw Pact, in 1955. This chapter aims at contributing to the existing literature on the role of Europe during the Cold War by providing a comprehensive reading of perceptions of and interactions between the URSS and Europe focusing on the different strategies developed by Moscow to frame relations with Central and Eastern Europe countries (CEECs), on the one hand, and Western Europe, on the other hand. This reading departs from the acknowledgement that Soviet perceptions were based on the recognition of the existence of multiple Europes, with different political, economic and security features calling for a differentiated approach, something that influenced patterns of interaction and the evolution of perceptions as the Cold War unfolded. For that purpose, this introduction is followed by the analysis of relations between the USSR and CEECs, which was from the inception of the Cold War perceived to be a buffer zone between East and West and the last stronghold protecting the USSR from the manifold initiatives of the liberal bloc. The chapter proceeds with the analysis of inter- 1 Emphasis added by the author. 274 actions between the Kremlin and Western Europe, with a particular emphasis on formal and informal relations with the European Communities (EC). Finally, a more transversal reading is applied to the relations of the USSR with communist countries both in Western and Eastern Europe to shed light on a subtler, but consistent attempt to influence political decisions and orientations in the broader European space. The chapter finishes with some final considerations and inquiries into the relevance of adopting more inclusive readings of Cold War related phenomena not only for the sake of improved explanatory capacities of international politics in the second half of the 20th century, but also as a means to understand logics of change and continuity marring the international political and security landscape in the post-Cold War environment. USSR relations with CEECs: buffer zones and areas of influence CEECs have assumed a crucial strategic relevance to the USSR from an early stage of the Cold War. Political elites in the Kremlin perceived this area to be a buffer zone protecting the Soviet political project from the expansionist initiatives of the Western bloc. This perception has somehow preceded the advent of the Cold War, as even before the end of World War II Moscow was clear in assuming that CEECs should be converted into a zone of protection against potential invasions from European powers and the threat posed by a newly rearmed Germany (Roberts, 2007, p. 1527). Overall, this meant that the protection of socialism in the USSR was indissolubly linked to and dependent upon the establishment of friendly regimes at its borders, though not necessarily communist regimes, not at this stage for that matter. Furthermore, the Kremlin perceived these countries to be more than just a buffer zone. They were seen as a fundamental element to regional trade and economic growth of the countries covered by the socialist bloc, as well as a bridge to a possible and very much desired export of the communist ideology into France, Italy and other Western Europe countries. 275 Aware of the strategic relevance of CEECs, Joseph Stalin2 adopted a severe and repressive political approach aiming at eliminating all traces of internal resistance to the influence of the USSR in these countries, including nationalist movements. For that purpose, a massive campaign of deportations was put into place along the instauration of authoritarian regimes loyal to the Kremlin in the region as a guarantee of the uncontested soviet influence and control of that area (Correia, 2010). This trend of purges and violent repression were far from being an isolated episode. On the contrary, they became an active instrument at the service of soviet political elites and revived whenever instances of resistance were noticeable. It is noteworthy to clarify that Moscow had a comprehensive understanding of resistance to is power, including threats within the communist area, as the one posed by the production and reproduction of the antagonist behaviour of Josip Broz Tito in Yugoslavia, as well as foreign challenges to the communist rule in the space perceived to be the USSR’s area of strategic interests. As such, whenever and wherever trends opposite to the interests of Moscow became visible, the soviet structure was ready to enforce its power and guarantee the maintenance of the status quo in CEECs. Bulgaria, then Czechoslovakia and Hungary were the countries more heavily hit by this repressive manifestation of the Kremlin’s power (Pereira, 2001). Simultaneously, these countries experienced heavy processes of forced collectivization bearing heavy costs to their industrial capabilities and economic structures. This of course resonated in the overall population that experienced this economic turnout in their everyday lives raising the levels of dissatisfaction all over the CEECs area. Popular uprisings were however contained by the heavy presence of soviet military deployments in the region supported by a policy of terror transversal to the totally of the Cold War period aiming at repressing any sort of resisting and ensuring the maintenance of these countries in Moscow’s area of influence. 2 Joseph Stalin acted as General Secretary of the Communist Party of the Soviet Union from 1922 until his death in 1953. 276 The USSR and Western Europe: from antagonism to cooperation with the European Communities The URSS web of interactions with Western Europe were multiple and complex, crossing different levels, from the local, to the national and even the supranational. Seemingly the main strategic goal underpinning soviet moves towards this space revolved around the need to promote the division of the liberal bloc and assure that Western European countries remained neutral in the broader dynamic of bipolar confrontation. One of the most interesting dimensions of this web of interactions is the case of the then EC3. This project of regional integration was initially received in the Kremlin with great animosity. Overall, political elites in Moscow perceived the EU to be a threat to its interests in the larger scope of the Cold War. It was seen simultaneously as a symbol of USA-sponsored imperialism, an indicator of a rearmed Germany in the near future and an enginewheel of global capitalism. In 1957, then USSR foreign minister Andrei Gromyko warned that the EU would only deepen the European division and its inherent regional levels of tension. In his words, Cependant, les plans de création de l'Euratom et du « marché commun » sont en contradiction flagrante avec ces objectifs [of panEuropean cooperation transcending the logic of bloc-divided Europe]. Un fait attire avant tout l'attention : tous les participants à l'Euratom et au « marché commun » sont membres du groupe militaire de l'O.T.A.N. Il est évident que toute l'activité฀ de l'Euratom et du « marché commun » sera subordonnée aux objectifs de l'O.T.A.N. dont le caractère agressif est largement connu. Dans ces conditions, la réalisation des plans de création de l'Euratom et du « marché commun » entraînera inévitablement un nouvel approfondissement de la division de l'Europe, l'accentuation de la tension en Europe, elle rendra beaucoup plus difficile l'organisation de la coopération économique et politique sur une base pan-européenne et entraînera l'apparition de nouvelles difficultés à la solution du problème de la sécurité฀ européenne (Gromyko, 1957). 3 Merged into the European Union by the institutional reform of the Maastricht Treaty in 1993. 277 Overall, this was the dominant perception throughout the 1950s and 1960s, a perception reflecting the USSR’s fears as to the potential of the EU to become a threat to its regional influence and undermine its rule over CEECs. From a soviet perspective, the EC was nothing more than a layer adding to the complex structure of Western security, one including also the meaningful role of NATO and other regional and international organizations (Patel, 2017, p. 33). However, as the EC matured their political choices became differentiated from the ones enforced by Washington revealing Brussels’ independence from USA strategies and the affirmation of its own agenda and political interests. Overall, the EC assumed themselves as a third way in the context of the Cold War, rather than an instrument at the service of either one of the conflicting superpowers. This was possible by the external context of détente from the late 1960s onwards that reflected itself in the ease of tensions between the USSR and Moscow regarding Europe and most visibly Berlin, and the transfer of the bipolar confrontation to the global periphery where decolonization was still unfolding, thus opening room for European endeavours of political autonomy to endure. Starting in the 1960s, the Commission of the EC has gradually involved itself in a number of secret meeting with soviet politicians. The goal was to initiate debates on how to promote more inclusive and comprehensive instruments of Pan-European cooperation, as part of a larger process of transformation of CEECs via the establishment and intensification of political, economic and cultural bonds. Overall, this reflected initial attempts at the EC level to raise its role as a peace-producer and peace-keeper beyond its borders (Patel, 2017, p. 31), very much driven by tensions between Western European powers and the USA (Howorth, 2017, pp. 2021). This, of course, conflicted with soviet interests and for that reason contacts between the USSR and the EC remained limited. However, this initial attempt to foster ties between the two parties placed the foundations for a more intense commitment from the EC with improving cooperation with the CEECs enabling this regional integration project to penetrate the iron curtain during the 1980s, notwithstanding the revival of animosity between the USA and the USSR at this final stage of the Cold War (Patel, 2017, p. 40). 278 Officially, the USSR opted for the non-recognition of the EC. Nonetheless, this stance was gradually contested, as the EC evolved and countries in the communist bloc revealed their interest in strengthening ties with these organizations. The Kremlin itself remained reluctant to the EC commitment with fostering intra-European relations until Mikhail Gorbachev was appointed General Secretary of the Communist Party of the Soviet Union in 1985 (Mastny, 2009). The same was not true in the case of other CEEC, which by disregarding the Kremlin’s directives saw in the rapprochement to the EC an opportunity to revamp their dire economic situation. This scenario was more appealing as the EC attached no political conditionality to this process, something made possible by the détente which opened important avenues to remove political-ideological connotations from interactions between European states and introduce a larger level of acceptance and respect for different political systems and governments. Alternatively, the emphasis resided in forging trade and cultural relations with the East as the foundation of a mutually beneficial cooperation (Romano, 2013, pp. 153-157). Such scenario was particularly appealing to Poland, Romania and Hungary whose political elites soon realised the advantages of promoting linkages of cooperation with the EC. As a result, a change in the Kremlin position regarding the EC became noticeable. Slowly, discourses – both from politicians and the media – referring to the importance of a multipolar Europe and the relevance of Western Europe as a third force between the USSR and the USA became more visible and frequent, even though the policy of non-recognition had maintained itself unaltered (The Guardian, 1989). However, perceptions of the EC in the CEECs resonated in Moscow that gradually recognised these organizations to be important economic and strategic partners, particularly in the context of economic fragility of the USSR and its awareness that urgent economic growth had become a sine qua non condition to assure stability in its orbit of influence. As such the future of relations with the EC became central in the debates of the COMECON, within which countries such as Poland, Hungary and Romania lobbied to promote the normalization of relations with the EC on a state-by-state approach, whereas the USSR and the German Democratic Republic advocated from a bloc approach. The latter is closed related with German fears relating to the loss 279 of its independence and the Kremlin reluctance to engage in any arrangement capable of altering the fundamental balance and distribution of power in Europe (Romano, 2013, pp. 161-169). In the end, relations with the EC intensified slowly but steadily up to the point that by the end of the 1970s, the EC has established substantial relations with all almost all CEECs, and the URSS itself, under the leadership of Mikhail Gorbachev, started negotiations to establish and institutionalising EC-URSS relations, therefore transcending the bloc-oriented mentality in Cold War Europe and allowing the EC to perform a momentous role in the promotion of new intra-European relations (The Guardian, 1988). The words of then Director of Agence Europe are indicative of the new spirit of EC-USSR relations in the late 1980s. “The opening to the East” carried out by the European Community through the signature of the joint declaration on the establishment of official relations between itself and the COMECON (more precisely CMEA, Council of Mutual Economic Assistance) will be implemented along two parallel tracks: one for the two organisations and the other for each of the COMECON member countries on the one hand and the Community as a whole on the other. We should not forget that the opening was made possible by the changes that took place in the USSR when Gorbachev became First Secretary of the CPSU. This is why Europe is betting on the maintenance and the improvement of these conditions, since [...] if the new phase “opens new opportunities”, it “also includes new uncertainties and the EEC-USSR cooperation must be prepared for both” (Gazzo, 1988). This European-sided perception was accompanied by an optimistic view on the future of intra-European relation as made clear by the address given by Mikhail Gorbachev to the Council of Europe in 1989. This meeting could, perhaps, be viewed both as evidence of the fact that the pan-European process is a reality and of the fact that it continues to evolve. Now that the twentieth century is entering a concluding phase and both the post-war period and the cold war are becoming a thing of the past, the Europeans have a truly unique 280 chance — to play a role in building a new world, one that would be worthy of their past, of their economic and spiritual potential. [...] The fact that the states of Europe belong to different social systems is a reality. The recognition of this historical fact and respect for the sovereign right of each people to choose their social system at their own discretion are the most important prerequisite for a normal European process. [...] It is time to consign to oblivion the cold war postulates when Europe was viewed as an arena of confrontation divided into “spheres of influence” and someone else’s “forwardbased defences”, as an object of military confrontation — namely a theatre of war. [...] Now it is up to all of us, all the participants in the European process, to make the best possible use of the groundwork laid down through our common efforts. Our idea of a common European home serves the same purpose too. [...] We are convinced that what they [Europeans] need is one Europe — peaceful and democratic, a Europe that maintains all its diversity and common humanistic ideas, a prosperous Europe that extends its hand to the rest of the world. A Europe that confidently advances into the future. It is in such a Europe that we visualise our own future (Gorbachev, 1989). The USSR and European communist parties: from Moscow with subtleness Another fascinating dimension of the complex web of perceptions of and interactions between Europe and the USSR, relates to the almost symbiotic relation between the Kremlin and communist parties across Europe. In fact, this particular strategy was oblivious of the iron curtain and was directed both at CEECs and Western European countries. Furthermore, an emphasis on this subtler dimension of Soviet power contributes to revisionist literature claiming that the foreign policy agenda of Moscow comprised a lot more than the direct actions developed by the Ministry of Foreign Affairs and the Red Army (Mark, 2001, p. 6). Still during World War II, as debates on the future of Europe unfolded at the political level it was clear to the USSR that it should pursue its ambition to control, at least indirectly, all the communist parties in the 281 region, which has been in the fore front of the resistance to German occupation all across Europe and more visibly in Greece, Yugoslavia, Bulgaria, Italy and France (Mark, 2001, p. 16). In CEECs this strategy involved the creation of mechanism to project the influence of communist parties – and to protect them from the western capitalist threat for that matter – by forging alliances with other parties that respected the conventions of the bourgeois democracy, better known as popular democracies. The underlying goals were to weaken local opposition, to create political projects appealing to the populations and to minimise resistance by Western powers to the rule of communist parties in Europe. This comes at odds with the diffused idea that the process of radical sovietisation was something thoughtfully planned in advance by Josef Stalin. A more comprehensive analysis of such phenomenon sheds light on the fact that on an initial stage at attempt was made to legitimise communism at the borders of the USSR by democratic elections (Wettig, 2007). Discursive processes of de-radicalization substituting the socialist revolution and class struggle by the more generic reference to the fight against fascism and the promotion of socioeconomic wellbeing based on parliamentary democracy, along with the nationalisation of the communist movements and the emphasis on more moderate routes towards socialism – even though communist parties in CECCs were strictly controlled by the Moscow-based Department of International Information and almost blindly followed its recommendations – reinforce the idea that forced sovietisation was not Stalin’s initial plan (Mark, 2001, pp. 18-19). It was only when this strategy revealed its inability to contribute to the installation of communist parties in governmental arrangements that Stalin decided to use force, oppression and repression to guarantee the USSR to be surrounded by friendly, communist and Moscow-loyal regimes (Mark, 2001, pp. 4143), as previously analysed. All things considered, communist parties were only able to conquer and maintain power in CEECs through the establishment of dictatorial regimes instrumentally resorting to the use of power to maintain the status quo, therefore alienating any change of alliances emerging from an environment of a pluralist system of parties. The latter, however, was a very time consuming process and time was something the USSR 282 could not afford in a context of perceived insecurity were the transformation of the CEECs into a buffer zone was seen as a sine qua non condition to the USSR’s survival. In Western Europe, in a very distinct environment, where the power of the liberal bloc was stronger and there was a long tradition of multiparty systems, Moscow deployed a different strategy. Overall, the USSR was interested in empowering communist parties so they could have a chance to integrate ruling coalitions and influence political decision-making (Mark, 2001, pp. 35-36). As a result, the Kremlin’s directives encouraged the development of political programmes appealing to the working class and the establishment of alliances with other leftist parties. Eurocommunism is the heir of these principles appointing towards the adjustment of political programmes to local realities as a means to maximise communist parties electoral appealing and, thus, raise their changes to be democratically elected. In practice, more than presenting themselves as an alternative to the communist model enforced in the USSR, these parties continued, to a greater or lesser degree, to be subject to Moscow’s influence and rules (March & Mudde, 2005, p. 26). Notwithstanding, a clear discursive transformation and the opening to other ideological influences, such as Maoism, communist parties in Western Europe preserved their basic structure, highly centralised and Stalinised, leaving little room for effective and differentiated change. The dependence from Moscow remained a reality throughout the whole Cold War, even though the full extension of soviet control remains difficult to measure due to the secret nature of contacts between European communist parties and the Soviet communist party (Revel, 1978, pp. 296-297). What is clear is the support of the Portuguese, Spanish, Italian and French communist parties to the USSR’s foreign policies and interests as shown by their own agenda on international matters, and their record of close relations with the USSR communist party, as well as the financing – formal and informal, direct and indirect – received from Moscow (Drake, 2004, p. 117). This is not to say that these parties always gravitated irrationally around Moscow’s orbit of influence as there was a logic of national survival mode they had to attend to. This enables the understanding of the condemnation of the soviet intervention in Czechoslovakia by the Italian Communists party, or pledges by both Italian 283 and French communist parties to remain within NATO (Revel, 1978, pp. 297-298). To defend otherwise, would come with severe electoral punishment and the marginalisation – if not complete eradication – of these parties from their respective political systems. Overall, communist parties in Western Europe failed to gain a meaningful role in processes of decisionmaking through elections and kept a fairly limited influence in this regard (Webb, 1979, p. 238), therefore preventing Moscow to alter relations of power in this region and attract countries in this area towards its orbit of influence. This has also had an important effect producing the de-radicalisation of leftist parties in Western Europe leading to the disappearance, split or heavy transformation of most European communist parties (Fagerholm, 2016; March & Mudde, 2005, pp. 27-28). Conclusion This chapter has devoted itself to the analysis of perceptions of and interactions between the USSR and Europe during the Cold War. The goal was to provide a more comprehensive understanding of this topic by delving into the strategies developed by Moscow to frame relations with CEECs and Western Europe. This departs from the acknowledgement that the USSR recognised the existence of multiple Europes with differentiated political, economic and security features, and thus adopted its strategies accordingly. To delve into this topic, the chapter looked at pattern of relations with countries at the USSR’s borders, the EC and communist parties across Europe. The intense web of interactions and the evolving nature of perception leads now to the conclusion that Europe occupied a meaningful place in the Kremlin’s agenda during the Cold War. This mapping has also shed light on the transformations occurring over time, particularly regarding cooperation with the EC where a change from an initial stage were perceptions of threat were dominant, to a later stage characterised by cooperation and the emphasis on mutual opportunities for development and economic growth is most clearly noticeable. The recognition of the EC as a third force between Washington and Moscow is also indicative of the importance Europe had during the Cold War, something that transcends 284 the reductionist reading of Europe as yet another battlefield of the bipolar confrontation of the second half of the 20th century. More inclusive and comprehensive analysis such as the one provided by this chapter are relevant to enlarge the general knowledge about the Cold War beyond the short-sightedness of bipolarity. True, the Cold War is a situation of confrontation of two superpowers. However, events during this period were not just determined by the USA and the USSR. A very important role was played by other actors, including the EC, China, the Non-Aligned Movement, and global processes, such as decolonisation for instance, with a fundamental contribution to the explanation of dynamics of power and security during and after the Cold War. In fact, a more comprehensive reading of these dynamics enables us to increase our understanding of current global, regional and national political and security challenges. By tracing the process of relations of the USSR with Europe, we can identify larger trends and elements of continuity allowing for a better understanding of Russia’s reluctance in accepting the deepening of relations between its neighbours in Eastern Europe with the European Union, the radicalisation and deep securitisation of discourses between Brussels and Moscow, as well as the strategic competition over the so-called shared neighbourhood with the Europe Union, an area of strategic relevance to Moscow both during and after the Cold War. Therefore, by breaking the vicious of reductionist analysis centred on the bipolar dimension of the Cold War we can better apprehend the past, see the present with different lenses, and hopefully be better prepared for the future. References Churchill, W. (1946). The Sinews of Peace. Retrieved from https://www.winstonchurchill.org/resources/speeches/1946-1963-elderstatesman/the-sinews-of-peace. 285 Correia, P. d. P. (2010). Manual de Geopolítica e Geostratégia. Volume II - Análise Geoestratégica do Mundo em Conflito. Coimbra: Almedina. Drake, R. (2004). The Soviet Dimension of Italian Communism. Journal of Cold War Studies, 6(3), 115-119. Fagerholm, A. (2016). What is left for the radical left? A comparative examination of the policies of radical left parties in western Europe before and after 1989. Journal of Contemporary European Studies, 25(1), 16-40. doi:10.1080/14782804.2016.1148592 Gazzo, E. (1988). Following Moscow's decisions: Europe-USSR relations (5 October 1988). Brussels Retrieved from https://www.cvce.eu/en/obj/following_moscow_s_decisions_europe_u ssr_relations_from_europe_5_october_1988-en-ae26a70f-cd4a-4d1182ae-901f50ac5b13.html. Gorbachev, M. (1989). Adress given by Mikhail Gorbachev to the Council of Europe (6 July 1989). Retrieved from https://www.cvce.eu/en/obj/address_given_by_mikhail_gorbachev_to_ the_council_of_europe_6_july_1989-en-4c021687-98f9-4727-9e8b836e0bc1f6fb.html. Gromyko, A. (1957). Memorandum from the Minister of Foreign Affairs of the USSR (16 March 1957). Retrieved from https://www.cvce.eu/en/education/unit-content/-/unit/02bb76dfd066-4c08-a58a-d4686a3e68ff/764f60f3-16f5-49eb-88d7563261414d9c/Resources c14aead9-9718-40c5-86ac4f0ddbb78ff0_fr&overlay. Guardian, T. (1988). EEC and CMEA gain the seal of mutual approval. The Guardian, p. 19. Retrieved from https://www.cvce.eu/en/obj/eec_and_cmea_gain_the_seal_of_mutual_ approval_from_the_guardian_13_december_1988-en-4c4c5af5-35254470-9295-d5db9a81df1a.html 286 Guardian, T. (1989, 22 november 1989). Eastern Bloc in search of a third way. The Guardian. Retrieved from https://www.cvce.eu/en/obj/eastern_bloc_in_search_of_a_third_way_f rom_the_guardian_22_november_1989-en-d422a9a9-ccfe-4f0d-a04e44d6bc0a660e.html Howorth, J. (2017). European defence policy between dependence and autonomy: A challenge of Sisyphean dimensions. The British Journal of Politics and International Relations, 19(1), 19-28. March, L., & Mudde, C. (2005). What's Left of the Radical Left? The European Radical Left After 1989: Decline and Mutation. Comparative European Politics, 3(1), 23-49. doi:10.1057/palgrave.cep.6110052 Mark, E. (2001). Revolution by Degrees: Stalin's National-Front Strategy for Europe, 1941-1947. The Cold War International History Project, Working Paper No. 31. Mastny, V. (2009). Eastern Europe and the early prospects for EC/EU and NATO membership. Cold War History, 9(2), 203-221. doi:10.1080/14682740802170834 Patel, K. K. (2017). Who was saving whom? The European Community and the Cold War, 1960s-1970s. The British Journal of Politics and International Relations, 19(1), 29-47. Pereira, J. C. (2001). La Historia de las Relaciones Internacionales Contemporáneas. Barcelona: Ariel. Revel, J. F. (1978). The Myth of Eurocommunism. Foreign Affairs, 56(2), 295-305. Roberts, G. (2007). Stalin and the cold war: A review article. Europe-Asia Studies, 49(8), 1526-1531. doi:10.1080/09668139708412514 287 Romano, A. (2013). Untying Cold War knots: The EEC and Eastern Europe in the long 1970s. Cold War History, 14(2), 153-173. doi:10.1080/14682745.2013.791680 Webb, C. (1979). Eurocommunism and the European Communities. Journal of Common Market Studies, 17(3), 236-258. Wettig, G. (2007). Stalin and the Cold War in Europe: The Emergence and Development of East-West Conflict 1939-1953. Boulder, CO: Rowman & Littlefield Publishers, Inc. 288 LE CHOIX DIFFICILE ENTRE COMMUNAUTE EUROPEENNE ET COMMUNAUTE ATLANTIQUE : L’EXEMPLE DU NUCLÉAIRE Aurélia Jandot Docteur et enseignante en Histoire, Chercheur associé au C.H.E.C., Université Clermont Auvergne, Clermont-Ferrand (France) Abstract:: During the “Cold War”, Europe had to deal with numerous problems, numerous tensions, both on the internal level and on the international level. To answer it, a deeper cooperation betwen various states appeared regularly as desirable. Nuclear power fully illustrated this possibility of enhanced cooperation. The question then remained to know what kind of cooperation should be implemented: an intra-European cooperation or a cooperation with the USA? The choices of the Europeans are approached here by means of concrete examples, in support on tangible sources, those of the main titles of the French press, between the late 1960s and the late 1980s. Keywords: Cold War, European Community, Atlantic Community, Nuclear Power. 289 Au cours de la « Guerre froide », l’Europe doit faire face à de nombreux problèmes, à de nombreuses tensions, tant sur le plan interne que sur le plan international. Au jeu complexe des deux principales puissances d’alors, Etats-Unis d’Amérique et U.R.S.S., se superposent notamment les aléas de l’économie, comme le premier choc pétrolier de 1973, ce détonateur d’une longue crise économique marquant la fin des “Trente Glorieuses”, selon l’expression de Jean Fourastié1. Avec ses conséquences en termes d’inflation, de déséquilibre de la balance commerciale, de ponction sur le revenu national, d’augmentation des prix de revient industriels, cette seconde dépression du siècle (après celle des années trente) accroît les déstabilisations. Les revendications se multiplient tant sur le plan économique que social ou politique, le camp communiste comme le camp occidental sont affectés, les réponses sont alors multiples. L’une de ces réponses est une coopération plus poussée entre Etats. Cette coopération plus poussée entre Etats est bien l’une des réponses proposée régulièrement par les Européens pour faire face aux difficultés. Cette coopération plus poussée s’illustre régulièrement dans le domaine économique et monétaire, avec par exemple la mise en place en 1972 du “serpent monétaire”2 au sein de la Communauté Economique Européenne (C.E.E.). Cette coopération plus poussée entre Etats européens s’illustre également au travers de champs plus spécifiques et tout aussi symboliques. L’un de ces champs, l’un de ces symboles aussi du XXe siècle, est le nucléaire. Il est effectif que le nucléaire illustre pleinement cette possibilité de coopération renforcée entre Etats européens, qu’il s’agisse du nucléaire civil ou du nucléaire militaire. La question reste alors de savoir quelle coopé- 1 Fourastié, J. (1979). Les Trente Glorieuses ou La Révolution invisible de 1946 à 1975. Paris: Fayard. 2 Ce “serpent monétaire” établit des parités quasi fixes entre les devises des Etats de la C.E.E. entre 1972 et 1979, date à laquelle il est remplacé par un Système Monétaire Européen. 290 ration mettre en place : une coopération intra-européenne ou une coopération plus occidentale avec les Etats-Unis d’Amérique – pour limiter3 ici notre étude – ? Ce choix difficile auquel les Européens sont régulièrement confrontés est ici abordé en deux temps, afin de clarifier le propos au maximum. Nucléaire civil et nucléaire militaire sont ainsi volontairement scindés, bien que leur appréhension nécessite en réalité une approche plus globale. Pour clarifier le propos au maximum également, ce choix difficile des Européens entre communauté européenne et communauté atlantique est ici illustré avec des exemples concrets, non pas des épiphénomènes mais des sujets se retrouvant régulièrement dans maints propos et discours de l’époque. D’ailleurs, pour rester dans ce même domaine du concret, c’est sur des sources tangibles que cette étude prend ici appui, celles des grands titres de la presse française, de l’hebdomadaire L’Express au quotidien Le Monde. Et pour ne pas alourdir le propos en multipliant à l’excès les appels de note, les références aux différents (et très nombreux) numéros consultés, sur la période ici délimitée de la fin des années 1960 à la fin des années 1980, ne sont pas ci-dessous mentionnées. Ce choix est volontaire, la démonstration voulant faire ressortir les faits et discours qui se retrouvent dans un grand nombre de ces titres. De même, le choix de ce type de sources, les grands titres de la presse française, est volontaire. S’étendre aux médias audiovisuels eut également été intéressant. Mais d’une part, consulter sérieusement ne serait-ce que les principaux d’entre eux sur une vingtaine d’années n’était guère envisageable pour un modeste article et une seule communication4. Et, d’autre part, comme le souligne notamment Gérard Spitéri, « la presse écrite est souvent la source des médias audiovisuels pour ce qui est de “faire l’actualité”, et non l’inverse, comme on le croit trop souvent5 », tout au moins en ce qui concerne la période ici étudiée. 3 Il est indéniable que l’étude de la coopération européenne dans le camp dit communiste serait également très intéressante. 4 Cet article fait suite, en effet, au passionnant colloque d’avril 2017 organisé à l’Université de Coimbra (Portugal) et intitulé « L’Europe et la “Guerre Froide” : mutations et ruptures ». 5 Spitéri, G. (2001). Le journaliste et ses pouvoirs. Paris: Presses Universitaire de France, p.4. 291 Enfin, ce choix de sources, les médias, est volontaire, car que seraient ces possibilités de coopérations renforcées entre Etats européens si elles n’étaient explicitées à l’opinion publique ? Dans le domaine du nucléaire civil, les possibilités de coopérations renforcées entre Etats européens sont réelles. Les grands titres de la presse française se saisissent régulièrement du sujet. Mais quel est au fond ici le choix de ces Européens, entre la fin des années 1960 et la fin des années 1980 : coopération intra-européenne ou coopération plus occidentale avec les Etats-Unis d’Amérique ? Il est effectif que ce choix est difficile. Ne serait-ce que pour chacun des potentiels partenaires, de nombreux paramètres sont à prendre en compte, tant internes avec l’état de l’économie du pays concerné ou encore les particularismes de ses dirigeants au pouvoir, qu’externes avec les différents rapports de force internationaux pour ne citer ici qu’un exemple. Et, ces paramètres n’étant pas les mêmes pour chacun de ces potentiels partenaires, ce choix induit par ces paramètres étant difficile, la réponse demeure multiple. Parfois, le choix est celui d’une coopération intra-européenne. Ainsi, une communauté européenne se dessine sur le plan de la recherche scientifique. Le Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire (C.E.R.N.)6 et la Communauté Européenne de l’Energie Atomique (C.E.E.A. ou Euratom)7 en sont des exemples représentatifs. En fonction du contexte, des acteurs, et donc des paramètres, les grands titres de la presse française alternent ici entre approbation, voire même enthousiasme, et critique parfois véhémente. Cette approbation se retrouve par exemple dans le compte-rendu d’un ouvrage mis en avant fin octobre 1968, Une internationale des savants : le 6 Le C.E.R.N., situé de part et d’autre de la frontière franco-suisse, près de Genève, est fondé en 1954. Il est l’une des premières organisations à l’échelle européenne, et il compte aujourd’hui 22 Etats membres. 7 La C.E.E.A. (ou Euratom) est instituée en 1957. Devenue l’une des trois Communautés européennes avec la C.E.C.A. et la C.E.E. à la suite de la fusion de leurs exécutifs en 1967, elle est aujourd’hui de facto sous l’autorité de l’Union Européenne, depuis la disparition en 2009 de la structure de l’U.E. en “piliers”. 292 Cern8. A son sujet, les propos de nombreux journalistes sont porteurs, comme « En ce lieu, les physiciens et fonctionnaires de douze pays, bousculant leurs gouvernements et dissipant les frayeurs des populations qui craignaient les rayonnements radioactifs, ont ouvert les portes de l’avenir ». Des critiques ponctuelles sont par contre émises à l’égard du chercheur Frédéric Joliot-Curie : avec le recul, ses appréhensions sur le C.E.R.N., qu’il qualifiait de « “futur Otan de la physique atomique”, se sont révélées sans fondement ». Cette présentation positive du C.E.R.N. se retrouve même parfois en des domaines pourtant sensibles, comme celui des investissements financiers conséquents auxquels il faut consentir, pour pouvoir disposer d’un accélérateur de particules9 plus puissant. L’enjeu est d’ailleurs présenté simplement : les Européens ne disposent que d’un accélérateur de 28 GeV10, alors qu’il leur faudrait utiliser un appareil plus puissant, « Jusqu’à 200 GeV, comme celui dont disposeront en 1976 les physiciens américains ». Sinon, pour les Européens, cela reviendra « à leur ôter toute chance de participer à l’élaboration théorique des lois ultimes de la matière ». Aucune réserve n’est alors formulée sur cet investissement auquel aspirent les chercheurs européens, toute question de coût est oblitérée : ici, la science prime, tant elle est porteuse d’espoirs, tant le nucléaire paraît répondre à tous les besoins, à toutes les attentes. Mais cette défense de la recherche européenne ne serait-elle pas alors liée, aussi, à l’attribution, au même moment, du Prix Nobel de physique à l’Américain Murray GellMann, précisément pour la formulation de la théorie des quarks11 ? 8 Ouvrage de Jungk, R. (1968). Paris: Seuil. Un accélérateur de particules est un instrument qui utilise des champs électriques ou magnétiques pour amener des particules chargées électriquement à des vitesses élevées. En d’autres termes, il communique de l’énergie aux particules. Cette énergie peut être élevée, l’unité est alors le GeV ou le TeV. 10 Un GeV équivaut à un milliard d’électrons-volts (109 eV). La valeur d’un électron-volt est celle de l’énergie cinétique acquise par un électron accéléré depuis le repos par une différence de potentiel d’un volt. 11 En 1969, le public avait d’autant plus de difficultés à comprendre ce qu’étaient les quarks que les physiciens eux-mêmes découvraient à peine cette particule élémentaire constitutive des nucléons (protons et neutrons). D’après Gell-Mann, M. (1998). Le Quark et le Jaguar. Voyage au cœur du simple et du complexe. Paris: Flammarion. 9 293 Régulièrement, le sujet revient. Mais la critique remplace parfois l’approbation. Cette critique est souvent celle effectuée à l’encontre de partenaires qui semblent se désister, voire freiner la volonté de certains Européens de continuer à mener une recherche efficace en ce domaine. Tel est le cas fin 1969 de la R.F.A. Ses motifs de blocage de ce projet d’accélérateur de particules semblent alors nombreux. A des raisons politiques et financières s’ajoutent des motifs liés au choix de sa future localisation géologique entre le site français de Luc et le site allemand de Drensteinfurt12. N’est pas exclu également, et plus simplement, le fait que la R.F.A. au fond « conteste la qualité technique du projet qui lui est soumis ». En dehors du C.E.R.N., un autre exemple représentatif de la coopération intra-européenne est bien la C.E.E.A. ou Euratom. Pourtant, dès qu’il est question de cet organisme public européen chargé de coordonner les programmes de recherche sur l’énergie nucléaire, la critique l’emporte généralement. Il est vrai, avec le recul, que ses réalisations sont au final modestes : elles se limitent à la construction de quatre centres de recherche en Allemagne, en Belgique, aux Pays-Bas et en Italie, ainsi que cinq centrales nucléaires en France, en Allemagne et en Italie. Au sein de l’Euratom, les difficultés sont en effet multiples. Son fonctionnement butte sur l’absence d’autorité supranationale et les intérêts nationaux qui prédominent très régulièrement. Après la fusion des exécutifs européens, les difficultés semblent même s’amplifier. Les journalistes français se saisissent alors régulièrement du sujet, reconnaissant que les technologies comme les intérêts de chacun sont de fait très divergents : « l’exemple d’Euratom n’est pas de bon augure : dans le domaine des surgénérateurs, l’organisme des Six n’a pas obtenu que les intérêts nationaux s’effacent devant une politique commune ». Pourtant, malgré cela, l’optimisme reste présent dans nombre d’articles : les Six et le Royaume-Uni « ont tous prôné la mise en commun des efforts : c’est le langage du bon sens ». Il faut dire que les espoirs sont grands : « L’Europe peut encore gagner la deuxième manche, devant les Etats-Unis, dans la course à l’énergie 12 Pour être ici plus explicite sur ces motifs, la R.F.A. contribue alors à 35 %, mais ne bénéficie d’aucune retombée économique. L’implantation doit être effectuée soit sur le socle granitique de Luc, en Lozère, soit sur le site sédimentaire de Drensteinfurt (Rhénanie du Nord). 294 nucléaire ». Ces espoirs ne renaissent réellement que longtemps après la fusion des exécutifs européens, lorsqu’est lancé le programme de réacteur thermonucléaire expérimental international I.T.E.R. (International Thermonuclear Experimental Reactor) en 1985. Pourtant, vers la fin de la période ici étudiée, en novembre 1991, c’est encore son prédécesseur, le Joint European Torus (J.E.T.), qui est mis en avant, à l’occasion de la première fusion contrôlée13 d’un mélange Deutérium-Tritium. Les lecteurs français sont alors invités à entrer dans la salle de commande de ce réacteur, conçu en 1978 par les pays de la Communauté Européenne. Ils y accompagnent la « centaine d’ingénieurs et de physiciens », pour assister, derrière une enceinte de béton de 3 mètres d’épaisseur, à « un éclair aveuglant » qui vient de « zébrer l’intérieur de la machine de 3 500 tonnes, où 2 mégawatts d’énergie ont été produits dans un plasma14 chauffé à 200 millions de degrés ». S’il est effectif que cette coopération intra-européenne est ici une réussite, parfois cependant elle ne semble pas suffire. Ainsi, la coopération scientifique s’étend quelquefois plus à l’Est, notamment dans le domaine des accélérateurs de particules. Elle est souvent expliquée sans détour : les avancées de l’U.R.S.S. en la matière sont alors réelles, ce qui fait même dire à certains journalistes français que « la science soviétique est certainement […] la première du monde, après la science américaine ». Ces avancées soviétiques sont d’ailleurs parfois un motif supplémentaire pour douter du bien-fondé de disposer de l’accélérateur de particules européen précité. Ainsi, pourquoi aurait-on besoin de cet accélérateur européen puisqu’« A Serpoukhov, une cinquantaine de Français vont installer, puis exploiter pendant plusieurs années, ce qui est actuellement la plus grande chambre à hydrogène du monde » ? Assorti de plusieurs photographies, dont celles de l’accélérateur de particules et de l’Institut de physique de Serpoukhov, le propos tend 13 La fusion nucléaire, dite parfois fusion thermonucléaire, est un processus où deux noyaux atomiques légers s’assemblent pour former un noyau plus lourd. La fusion contrôlée est difficile à réaliser car il faut rapprocher deux noyaux qui ont tendance naturellement à se repousser. Différents procédés sont à l’étude. 14 Le deutérium et le tritium sont des isotopes de l’hydrogène. Un mégawatt (MW) équivaut à un million de watts (106 W), unité de puissance ou de flux énergétique. Le plasma est un état particulier de la matière première dans lequel les atomes ou les molécules forment un gaz ionisé. 295 alors à démontrer que l’intérêt de la France serait de collaborer plus étroitement avec les Soviétiques. Ce type de coopération plus bilatérale au fond que réellement européenne est fréquente, elle se retrouve notamment à de nombreuses reprises dans des articles traitant des filières choisies par chaque Etat européen en ce qui concerne ses centrales nucléaires. A ce sujet d’ailleurs, les Européens sont loin de choisir une coopération intra-européenne : ils optent ici davantage pour une coopération plus occidentale avec les Etats-Unis d’Amérique. Or, à la différence de la recherche scientifique, l’enjeu a des conséquences plus directes et plus immédiatement concrètes sur le plan économique. Et, dès la fin des années 1960, de nombreux journalistes français en sont conscients : « L’Amérique est prête à vendre aux Européens ses centrales et l’uranium enrichi nécessaire à leur fonctionnement. Mais pour les Européens, accepter un tel marché, c’est renoncer à la base même de toute indépendance, celle des sources d’énergie ». Pourtant, c’est bien la filière américaine à eau légère et uranium en15 richi qui est choisie majoritairement par les Européens, France incluse à partir de 1969. Ainsi, les achats de « licences américaines » se multiplient, l’argument de l’indépendance disparaît, remplacé par celui de la plus grande rentabilité, du moindre coût, que permet l’adoption de ce procédé. Certes, les avantages de la filière américaine sont parfois entachés d’inquiétudes quant à la fiabilité de la technique choisie, non sans lien avec la montée des mouvements écologistes dans divers pays européens. Mais au-delà de ces inquiétudes, c’est bien l’approbation de ce choix qui perdure. Parfois, la critique remplace cependant l’approbation. Cette critique n’est alors pas celle de la technique choisie, mais celle de l’aptitude des industriels locaux à la mettre en œuvre. A peine un an après avoir renoncé à la filière uranium naturel graphite gaz (U.N.G.G.)16, et au lendemain du relèvement des prix du pétrole par l’Algérie, cette critique atteint la France : « Techniquement, on peut se demander si les industriels français, qui ne se sont encore 15 Plus précisément, il s’agit surtout de réacteurs à eau pressurisée (R.E.P., ou P.W.R. en anglais). Ils ont pour modérateur et réfrigérant de l’eau (dite légère, par opposition à l’eau lourde), et pour combustible de l’oxyde d’uranium faiblement enrichi (entre 3 et 5 % d’isotopes d’uranium 235 fissile). 16 Les réacteurs de la filière U.N.G.G. ont pour combustible de l’uranium naturel sous forme métallique (moins cher), pour modérateur du graphite, et sont refroidis avec du dioxyde de carbone gazeux. 296 jamais chargés entièrement de la construction d’une seule centrale à eau légère, peuvent assumer pareille entreprise dans les délais fixés ». Si l’urgence devient rapidement plus pesante, si le choix des Européens est bien celui d’une communauté atlantique sur le plan de la construction effective de centrales, pourtant, rapidement, certains Européens font le choix d’une coopération intra-européenne en ce qui concerne le combustible nécessaire à leur fonctionnement. Pour l’obtenir, un procédé technologique prédomine alors : celui de la diffusion gazeuse17. La France le maîtrise, elle le propose à plusieurs partenaires européens. Ainsi, l’association E.U.R.O.D.I.F. (European Gaseous Diffusion Uranium Enrichment Consortium) se met en place, comprenant à ses débuts, en 1972, la France, la Belgique, l’Italie, les Pays-Bas, la R.F.A. et le Royaume-Uni, puis l’Espagne et la Suède. Cependant, cette unité européenne ne perdure pas. Les dissensions sont nombreuses. La R.F.A., les Pays-Bas et le Royaume-Uni se retirent d’Eurodif pour former l’association Urenco18. Ils optent pour un autre procédé, qui n’est alors pas encore réellement au point, celui de l’ultracentrifugation19. C’est d’ailleurs sans doute l’une des raisons qui explique que, malgré cette scission et cette concurrence intra-européenne, l’optimisme des journalistes français demeure, d’autant que « la première pierre n’est pas encore posée que Eurodif a vendu 70 % de l’uranium enrichi qu’elle produira d’ici à 1990 ». 17 Le procédé de diffusion gazeuse est basé sur la différence de masse, très faible, existant entre les molécules d’hexafluorure d’uranium 235. En les faisant filtrer à travers des membranes adaptées, on arrive en multipliant le nombre de cycles à obtenir de l’uranium enrichi. 18 Urenco est une société internationale (Company) pour l’enrichissement de l’uranium par centrifugation, fondée à parts égales par l’Allemand Uranit GmbH, le Britannique Enrichment Holdings Ltd, le Néerlandais Ultra-Centrifuge Nederland NV ; tous trois détenus par leurs gouvernements respectifs. 19 Le procédé d’ultracentrifugation consiste à utiliser des centrifugeuses tournant à très grande vitesse. Les molécules d’hexafluorure d’uranium 235 migrent vers le milieu de la centrifugeuse ; le traitement devant être appliqué de nombreuses fois pour obtenir un enrichissement suffisant, les centrifugeuses sont montées en cascades. 297 Au-delà du nucléaire civil, les dissensions comme les hésitations des Européens entre coopération intra-européenne ou coopération plus occidentale avec les Etats-Unis d’Amérique se retrouvent dans le domaine du nucléaire militaire également. Elles s’y retrouvent même sans doute plus encore, la période de la « Guerre froide » étant fort riche en rebondissements, en tensions sur le plan militaire, ne serait-ce que du fait de l’important rapport de force entre Etats-Unis d’Amérique et U.R.S.S. Ainsi, les articles de presse abondent à ce sujet. Tout recenser, tout mentionner serait impensable : un seul thème, complexe, est donc ici abordé. Une brève mise au point permet tout d’abord de le positionner. Pour rappel, avec le renforcement de l’U.R.S.S. à la fin des années 1970, les Européens s’inquiètent : non seulement les Soviétiques multiplient les initiatives en divers points du globe, mais ils modernisent leur arsenal sur le théâtre européen, avec notamment le déploiement de missiles nucléaires SS-20 en Europe de l’Est. Les Etats-Unis d’Amérique répliquent par l’intermédiaire de l’O.T.A.N. en mettant en place leurs propres missiles en Europe occidentale, tout en renouant avec leurs propres efforts d’armement, l’un des objectifs majeurs étant ici de tenter d’asphyxier l’économie soviétique dans une course aux armements. Cette course trouve son apogée avec le projet d’Initiative de Défense Stratégique (I.D.S.)20, surnommé « guerre des étoiles », qui vise initialement à doter les Etats-Unis d’Amérique d’un efficace système de défense antimissiles depuis l’espace. Ce projet et ses conséquences mobilisent rapidement les Européens. A son sujet, les paramètres étant divers en fonction des acteurs et du contexte, eux-mêmes fluctuants, les possibilités de coopérations renforcées entre Etats européens sont à la fois multiples et évolutives ; ainsi, seuls quelques exemples significatifs sont ici mis en avant. Dans un premier temps, d’après les grands titres de la presse française, les Européens semblent exclus de l’I.D.S. Français et Britanniques, seules puissances européennes à détenir leur propre armement nucléaire, 20 Ce projet est annoncé par le président américain Ronald Reagan le 23 mars 1983. Il ne commence réellement à prendre de l’ampleur que près de deux ans plus tard, lorsque se profile une reprise des négociations stratégiques sur les armements nucléaires entre Américains et Soviétiques à Genève. 298 s’en inquiètent : ils craignent alors que leurs forces de dissuasion deviennent rapidement « de moins en moins crédibles ». De ce constat se dégage alors une certitude : mettre en commun les aptitudes européennes en la matière est indispensable. Cette possibilité de coopération intra-européenne se concrétise rapidement lorsque la France propose à ses partenaires le projet Eurêka. En effet, ce projet Eurêka est habilement proposé en avril 1985 dans le cadre de l’Union de l’Europe Occidentale (U.E.O.), alors seul organisme européen compétent pour évoquer les questions de sécurité. Cet organisme est à l’époque d’autant plus important que, depuis la Déclaration de Rome de 1984, il est pressenti pour devenir le support d’une politique européenne de défense, voire même le “bras armé” de la Communauté21. Mais les réactions sont alors mitigées : le projet d’« une Europe de la technologie ne convainc pas tous les Européens » lorsqu’il est présenté. La déception est grande, certains partenaires européens, comme la R.F.A., sont amplement critiqués. Certes, le gouvernement ouest-allemand est longtemps hésitant. Cependant, il se décide bientôt à « soutenir franchement, sans plus tergiverser » le projet français, et va même rapidement plus loin encore, parlant d’un « système de défense européen antifusée contre les SS 21, 22 et 23 soviétiques ». Il faut dire que doit s’ouvrir alors l’important sommet de Milan22, devant avaliser le rapport Delors et mettre en place à terme une politique de sécurité commune. Et pour de nombreux responsables politiques allemands, « un système plus autonome de défense de l’Europe occidentale, fondé sur un étroit accord franco-allemand, pourrait nous offrir de grandes chances ». Il est effectif que la France souhaite alors intensifier sa coopération bilatérale avec la R.F.A. : si elle propose même d’« étendre » la protection qu’offrent ses armes de dissuasion à d’autres territoires que le sien, cette Avec la Déclaration de Rome (27 octobre 1984), l’U.E.O. devait devenir un organe permettant d’harmoniser progressivement les politiques de Défense des Etats membres de la C.E.E., afin d’aboutir à une force commune européenne. L’Assemblée de l’U.E.O., organe de représentation parlementaire de l’U.E.O., était alors la seule assemblée interparlementaire européenne compétente en matière de sécurité et de défense. 22 Le sommet de Milan, les 28 et 29 juin 1985, marque une étape importante dans le processus de relance de la construction européenne, vers la conclusion de l’Acte Unique Européen (signé les 17 et 28 février 1986). 21 299 offre concerne bien en premier lieu le territoire ouest-allemand. Le sujet est d’ailleurs évoqué officiellement par les principaux partis politiques français, P.S. et U.D.F. Quant au R.P.R., il parle même des « “intérêts vitaux communs” » qui lient la France à la R.F.A. Ce rapprochement a cependant ses limites : « la décision de l’emploi demeure française. Il n’y a ni droit de partage, ni droit de veto ». A la suite de la R.F.A., d’autres Européens semblent intéressés par un renforcement de la communauté européenne au travers du projet Eurêka. L’enjeu est en effet important : outre son intérêt militaire pour la défense de l’Europe, l’objectif majeur du projet réside dans la possibilité de dynamiser les entreprises européennes de haute technologie et de « consolider l’union des pays européens ». Avec Eurêka, les pays européens ne doivent « pas être placés dans une situation de dépendance », et les industriels européens doivent recevoir à la fois les avantages financiers et les atouts d’une recherche-développement dans les hautes technologies. Cette “dépendance” est ici une pique adressée au projet concurrent américain I.D.S. Il faut dire que les Etats-Unis d’Amérique ont finalement offert aux Européens de « collaborer aux recherches » de l’I.D.S., mais sous conditions. Ces conditions semblent alors placer les Européens sous l’allégeance des Etats-Unis d’Amérique ; elles sont ainsi dénoncées régulièrement par de nombreux journalistes français. Trois conditions sont en effet mises en avant : aucune firme « ne pourra en commercialiser les résultats » ; le Pentagone aura un « droit de regard direct » sur les mesures de sécurité interne prises par les firmes ; « les “retombées civiles” ne pourront se matérialiser sans l’accord » de Washington. A ces conditions s’ajoute une autre conséquence à terme : « le potentiel technologique européen, loin d’être “mis à niveau”, s’affaiblira » face à la concurrence américaine. Ce déclin prévisible concerne ici surtout le marché porteur des technologies liées à l’informatique. Il est inquiétant : il peut amener à terme l’effondrement des sociétés européennes, tant en matière de “hardware”, notamment avec les processeurs et microprocesseurs, que de “software”, avec les programmes proprement dits et, bien plus importants, les systèmes d’exploitation. Pourtant, malgré cette conséquence et ces conditions, le projet américain reste attractif pour de nombreux Européens. 300 La communauté atlantique semble ainsi se renforcer à nouveau et en parallèle à la communauté européenne. Les positionnements et les choix des Européens sont ici complexes, certains jouant avec et sur les deux tableaux à la fois. Tel est le cas de la R.F.A. qui « joue et joue gros ». Si d’un côté elle semble s’être ralliée au projet Eurêka et rapprochée de la France, de l’autre elle souhaite être un « allié privilégié » des E.U.A. et participer au projet I.D.S. Elle n’en pose pas moins ses conditions. D’abord, elle ne souhaite participer à l’I.D.S. que si elle a accès à l’ensemble du programme et peut en retirer des avantages technologiques substantiels. Ensuite, elle n’entend pas séparer la recherche technologique de la stratégie et de la politique étrangère. Il est évident que « son jeu » déplaît. Ce type de désappointement s’explique : rapidement, le projet américain I.D.S. supplante le projet franco-européen Eurêka. Il faut dire que le gouvernement français s’englue alors dans l’affaire du Rainbow Warrior23 : sa crédibilité s’en trouve fortement entachée, ce qui rejaillit sur Eurêka. Ainsi, après s’être pendant un temps désintéressés de ce projet européen, de nombreux journalistes français le fustigent. Pour eux, non seulement le gouvernement français se trouve désormais « en porte à faux » par rapport à ses principaux alliés européens, mais il risque de l’être également par rapport à ses industriels, qu’il s’agisse de grands noms comme Matra, Thomson, Aérospatiale24 ou de firmes moins connues, d’autant que ces industriels ont déjà confirmé leur intérêt pour le programme de recherches américain. Le projet Eurêka étant cependant un espoir de coopération intraeuropéenne renforcée, il fait parfois sa réapparition dans la presse en des termes positifs. Tel est le cas début juillet 1986 lorsque le Royaume-Uni, qui s’était déclaré d’emblée intéressé par l’I.D.S., semble vouloir également L’affaire du Rainbow Warrior est complexe. Elle prend sa source dans le sabotage du bâtiment amiral de Greenpeace, le Rainbow Warrior, le 10 juillet 1985. Ce navire devait diriger une flottille vers l’atoll de Mururoa (dans le Pacifique) afin de tenter d’empêcher le déroulement des essais nucléaires français. 24 Matra est une entreprise française qui couvre pendant longtemps une large palette d’activités dans l’aéronautique, l’aérospatiale, l’automobile, le transport, les télécommunications, les médias et la défense. Thomson-CSF est alors une entreprise française orientée vers l’électronique, l’électroménager, l’informatique, la défense et l’aéronautique. Aérospatiale est alors une entreprise française spécialisée dans l’aéronautique et la défense. 23 301 participer à terme à près de la moitié des nouveaux projets « du club de haute technologie » européen. L’espoir semble renaître d’autant plus que Margaret Thatcher, « la grande prêtresse de l’I.d.s. reaganienne », vient d’appeler récemment une quarantaine de ministres de dix-huit pays européens, réunis à Londres pour la troisième conférence Eurêka, à « faire l’union sacrée face à “la menace américaine et japonaise” sur les marchés de haute technologie ». Si le descriptif des projets liés à Eurêka est alors impressionnant par ses retombées civiles, pourtant des doutes demeurent sur sa concrétisation. En effet, d’une part de nombreux industriels et Etats européens semblent continuer à préférer l’I.D.S. D’autre part, comme le relèvent certains journalistes, les investissements financiers que les Européens sont prêts à consentir en ce domaine sont « très inférieurs encore aux efforts des Américains et des Japonais ». Ainsi, la France « n’a consacré, en 1986, que 400 millions de Francs au lieu du milliard promis ». Quant à l’Europe, si elle dépense près de « 100 milliards de Francs » par an pour garantir les prix agricoles, elle n’est prête à déverser par contre que « 14 milliards de Francs… et sur cinq ans » pour les avancées technologiques d’Eurêka. Le projet intra-européen Eurêka disparaît alors ; le projet atlantique I.D.S. le supplante, du moins en apparence et pour un temps. Il le supplante en apparence car les doutes s’exacerbent à son sujet : sa concrétisation semble de plus en plus incertaine, d’autant que certains hauts fonctionnaires américains déclarent eux-mêmes officiellement que « le programme de recherche de l’I.D.S. ne débouchera pas automatiquement sur le déploiement ». L’I.D.S. est alors le jeu d’un marchandage intense avec l’U.R.S.S. Les pressions américaines (mais aussi soviétiques) se renforcent même à son sujet sur les Européens : les conditions de collaboration semblent régulièrement se durcir, des officiels américains émettant de fort doutes sur l’aptitude des Européens à « empêcher des transferts de technologie vers l’U.R.S.S. ». Les Européens réagissent alors par des tentatives de relance d’une plus grande coopération intra-européenne. La France semble reprendre l’initiative en proposant fin 1986 une « Charte européenne de la sécurité », en 302 d’autres termes une sorte de relance de la C.E.D.25 Le projet est présenté devant l’U.E.O. lors de la session de l’automne 1987, les armes françaises et britanniques de dissuasion à courte et moyenne portée faisant ici leur réapparition : il est alors envisagé de les placer sous un commandement européen. Mais le projet tourne court, notamment parce que « le “grand déstabilisateur” soviétique vient de doubler la mise » en proposant au président américain d’éliminer du sol européen les missiles à courte et moyenne portée. Le temps est en effet aux marchandages et pressions vers un renforcement du désarmement, dont sont loin d’être exclues les deux puissances nucléaires européennes. Ce désarmement se confirme rapidement26, accentuant les inquiétudes des Européens quant à l’effectivité de leur protection par les Etats-Unis d’Amérique. Pourtant, une relance d’une plus grande coopération atlantique semble se dessiner bientôt avec «la modernisation des armes nucléaires à courte portée » dans le cadre de l’O.T.A.N. Et c’est sur cette question des armes que se clôt le sujet de l’I.D.S., disparaissant alors des grands sujets abordés par la presse, au profit des changements à l’Est qui s’accélèrent et de nouveaux espaces qui inquiètent, plus au Sud. Au final, les possibilités de coopérations renforcées entre Etats européens qu’offrent le nucléaire civil et militaire sont nombreuses. Choisir entre une coopération intra-européenne et une coopération plus occidentale avec les Etats-Unis d’Amérique est bien souvent difficile. Ainsi, le contexte, les acteurs, les multiples paramètres à prendre en compte, mais aussi les opportunités permettent parfois à une communauté européenne de se dessiner : le C.E.R.N. en est ici un exemple représentatif. Parfois c’est une communauté atlantique qui semble être privilégiée : la filière américaine à eau légère et uranium enrichi en est ici un autre exemple représentatif. 25 La Communauté Européenne de Défense (C.E.D.) est un projet de création d’une armée européenne, avec des institutions supranationales. Ce projet est à l’origine le résultat d’une proposition française. Mais si le traité est signé le 27 mai 1952, sa ratification est rejetée par l’Assemblée nationale française le 30 août 1954. 26 Le 8 décembre 1987, Etats-Unis d’Amérique et U.R.S.S. signent le Traité sur les forces nucléaires à moyenne et courte portée (son acronyme anglais simplifié est I.N.F., Intermediate-range Nuclear Forces). Les négociations se poursuivent alors sur les armes à plus longue portée. 303 Mais, quelques soient les choix des Européens dans le domaine du nucléaire militaire ou dans le domaine du nucléaire civil, très souvent ces choix ne sont pas réellement définitifs. De ce fait, les hésitations entre communauté européenne et communauté atlantique se traduisent régulièrement par des incompréhensions, par des critiques. Les pressions, les tensions, les dissensions sont réelles et parfois très vives. Il faut dire aussi que les enjeux sont parfois très importants. La coopération entre Etats s’en ressent alors : des projets pourtant initialement fédérateurs sont reportés, voire abandonnés. Eurêka en est ici un exemple particulièrement symbolique. Rapidement, en parallèle à la fin de la « Guerre froide » qui se dessine, les Européens sont amenés à faire de nouveaux choix. Ces choix concernent le nucléaire militaire : repenser le cadre de la défense est pendant longtemps déstabilisant. Ces choix concernent aussi le nucléaire civil : de nouvelles thématiques sont désormais à prendre en compte. Ces nouveaux choix sont parfois difficiles et reflètent bien « tout le désarroi » qui s’empare alors de nombreux dirigeants. « En privé », le ministre français de la Défense confie même « ses états d’âme : la France est en danger, menacée par l’intégration européenne et l’hégémonie allemande ». Le mur de Berlin vient alors d’être démantelé27, et la réunification allemande se profile. S’il est effectif que le rapport de forces avec la France et le RoyaumeUni semble alors s’inverser en sa faveur sur le plan économique et démographique, si l’Allemagne devient alors la première puissance en Europe, pourtant la construction européenne s’accélère dans le même temps. Et cette communauté européenne qui se consolide, aboutissant bientôt à la naissance de l’Union Européenne, illustre bien le renouveau de la coopération renforcée entre Etats européens. Le choix est ici celui d’une coopéra- Pour Aymeric Chauprade, « Le fait que le Mur de Berlin tombe avant que l’U.R.S.S. ne s’effondre marque le triomphe de la géopolitique. L’Allemagne se redresse, puis restaure son influence en Europe centrale et, ce faisant, [contribue à faire] exploser le bloc de l’Est. L’affaiblissement de la Russie correspond exactement au retour de l’Allemagne à la puissance » (Chauprade, A. (2003). Géopolitique, Constantes et changements dans l’histoire. Paris: Ellipses, p.88). 27 304 tion intra-européenne, d’une communauté européenne. Ce choix fait régulièrement la “une” des grands titres de la presse française. Ce choix des Européens n’est évidemment pas exclusif28. Sources et bibliographie: Grands titres de la presse française consultés: Hebdomadaires français nationaux: L’Express, Le Nouvel Observateur, Le Point Quotidiens français nationaux: Le Monde, Le Figaro Ouvrages de référence consultés: Barré, B. et Bauquis, P-R (2007). L’énergie nucléaire. Strasbourg: Hirlé. Bertel, E. et Naudet, G. (2004). L’économie de l’énergie nucléaire. Les Ulis: EDP Sciences. Bonin, B. (2012). Le nucléaire expliqué par les physiciens. Les Ulis: EDP Sciences. Boniface, P. et Courmont, B. (2006). Le monde nucléaire. Arme nucléaire et relations internationales depuis 1945. Paris: Armand Colin. Collet, A. (1994). Histoire de la stratégie militaire depuis 1945. Paris: Presses Universitaires de France. Faucon, P. (1992). L’OTAN et le Pacte de Varsovie. Paris: Atlas. 28 Ainsi, pour ne prendre ici qu’un exemple, la Politique Extérieure et de Sécurité Commune (P.E.S.C.), qui doit déboucher sur une défense commune, est cependant “compatible” avec la politique arrêtée dans le cadre de l’O.T.A.N. 305 Fontanel, J. et Guilhaudis, J.F. (1988). L’initiative de défense stratégique. Paris: Centre d’études de défense et de sécurité internationale. Judt, T. (2007). Après-guerre. Une histoire de l’Europe depuis 1945. Paris: Armand Colin. Mandil, C. (1996). L’énergie nucléaire en 110 questions. Paris: Le Cherche Midi. Moreau Defarges, P. (1994). Relations internationales. Paris: Seuil. Santarini, G. (2008). Dictionnaire des sciences et techniques nucléaires. Paris: Omniscience. Valentin, F. (1995). Regards sur la politique de défense de la France de 1958 à nos jours. Paris: Fondation pour les études de défense. 306 CRISE SOBERANA E FINANCEIRIZAÇÃO DO CAPITAL: A PERIFERIA DA EUROPA E A AMÉRICA LATINA SOB OS AUSPÍCIOS DE HAYEK1. Mayra Goulart2 Resumo: O objetivo do artigo a ser apresentado é analisar a recepção das recomendações da Troika no contexto da crise financeira internacional que atingiu a Europa em 2008, compreendendo-a a partir de uma perspectiva neogramsciana, que utiliza o conceito de hegemonia para compreender tais eventos como parte do processo de configuração de uma nova ordem internacional. Essa reflexão terá como recorte analítico e metodológico uma incursão na história com o propósito de encontrar semelhanças e diferenças com outros episódios que, no passado, permitiram o avanço do neoliberalismo ao patamar de ideologia hegemônica (COX, 1983). Deste modo, a adoção das medidas de austeridade pelos países da periferia da Europa, particularmente Portugal, suscitará uma comparação com a conjuntura instaurada na América Latina, no período em que vigorou o chamado Consenso de Washington. Palavras-Chave: Austeridade; Portugal; América Latina; União Europeia. Abstract: The objective of this paper is to analyze the reception Troika's recommendations in the context of the international financial crisis that hit Europe in 2008, understanding it from a Gramscian perspective, which 1 Esta pesquisa foi realizada com o auxílio de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. 2 Professora de Teoria Política e Política Internacional e Vice-Coordenadora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Coordenadora do Observatório dos Países de Língua Oficial Portuguesa (OPLOP/UFF) e Pesquisadora Visitante do CIES (ISCTE/IUL).E-mail: mayragoulart@gmail.com 307 uses the concept of hegemony to understand such events as part of the process of configuration of a new international order. However, the objective here is to carry out this analysis through a diachronic approach, using a historical methodology in order to find similarities and differences with other episodes that, in the past, contributed to the advance of neoliberalism to the level of a hegemonic ideology (COX, 1983). Thus, the adoption of austerity measures by countries on the periphery of Europe, particularly Portugal, will give rise to a comparison with the situation in Latin America during the period of the so-called Washington Consensus. Keywords: Austerity; Portugal; Latin America, European Union. 308 Introdução: Ainda que voltada para estruturação de um conceito de soberania de natureza demonstrativa e absoluta, com capacidade de determinar-se a si mesmo como instância transcendente às contestações e conflitos societários, a reflexão de Hobbes pode ser considerada como marco fundamental na gênese do liberalismo político. Definido de modo minimalista a partir da separação entre esferas pública e privada, o liberalismo encontra, então, sua gênese no absolutismo, mais precisamente, no caráter artificial e arbitrário do Leviatã hobbesiano, ao qual o homem deve um tipo novo de obediência. A submissão ao soberano, mesmo sendo delineada em tons absolutos pelo autor, é também por ele restrita ao âmbito externo, isto é, ao plano dos atos públicos, deixando o indivíduo livre em sua consciência privada para aderir ou não ao deus mortal que se apresenta como condição de possibilidade de qualquer noção de liberdade (KOSELLECK, 1999). É essa relação de dependência e submissão – estabelecida entre um homem naturalmente disruptivo e um Estado necessariamente absoluto – a responsável por configurar as bases morais da sociabilidade hobbesiana. Tal relação é subvertida na obra de John Locke, para quem a sociedade possui uma ordem moral que antecede o Estado, embora seja incapaz de manter-se estruturada sem uma instância de transcendência que será encarregada de resolver os eventuais conflitos entre seus membros e limitada a esta função pública. Dessa forma, a separação entre as esferas pública e privada assume uma dimensão normativa a ser resguardada pelas leis (LOCKE, 1978; POLANYI, 1957). Inexistente na obra de Hobbes, esta divisão torna-se constitutiva da tradição liberal, sendo alicerçada juridicamente sob a forma de um conjunto de direitos e liberdades individuais, axiologicamente anteriores à criação do Estado — que mesmo tendo sido criado com o dever protegêlas se configura como uma constante ameaça. Nos textos de Locke, também é possível encontrar a articulação entre princípios políticos e econômicos do liberalismo, haja vista a inclusão da propriedade privada na lista de direitos naturais. Possuindo como portadores inalienáveis os indivíduos, tais direitos têm prioridade sobre outros de natureza coletiva, 309 devendo ser resguardados da intervenção por parte de atores políticos, ainda que respaldados pela vontade da maioria (BLYTH, 2013). A proteção dos indivíduos e, por conseguinte, das minorias está presente nas origens do liberalismo político tendo desempenhado uma função civilizatória na história do ocidente (HABERMAS, 2012). Sob esta perspectiva, a separação entre as esferas pública e privada aparece como um elemento central do processo de racionalização, que engendrou o fim das guerras religiosas que dilaceravam a Europa e a implementação de uma estrutura de poder capaz de permanecer relativamente neutra em relação aos dissensos religiosos e culturais. Por outro lado, neste mesmo processo a noção de soberania popular foi recuperada pelos discursos revolucionários do século XVIII e XIX, constituindo-se como fundamento de legitimidade da autoridade política moderna, contrabalançando as tendências contra majoritárias do liberalismo (BOBBIO, 1988). No mesmo período, a este equilíbrio instável e precário foi sendo introduzida mais uma variável: o capitalismo; que se apresenta como sistema de natureza transnacional, capaz de afetar não apenas a provisão de direitos individuais mas, sobretudo, as decisões dos sujeitos políticos nacionais. Diante disto, a Europa ocidental tornou-se a vitrine de uma forma de articulação entre os três legados das revoluções modernas, assumindo o desafio de articular: (i) liberalismo, entendido como a proteção das minorias por meio de direitos individuais, garantidos por uma dinâmica institucional de separação de poderes; (ii) capitalismo, enquanto sistema econômico cuja ultima ratio consiste na acumulação dos recursos sociais e, por conseguinte, na concentração de poder nas mãos de minorias/elites econômicas; e (iii) democracia, entendida como sistema político determinado a partir dos interesses da maioria dos cidadãos de uma determinada coletividade – que, a despeito de delegarem as funções de governo para uma elite, retém consigo o poder de substitui-las periodicamente (FREIRE, 2015; ALONSO, KEANE, MERKEL, 2011). Deste modo, ainda que subjacente ao processo de conformação do Estado de Direito nas sociedades modernas, esta empreitada tem no Estado de Bem Estar Social europeu seu principal símbolo dentro do mundo ocidental (HABERMAS, 1987). Por este motivo, aqueles que valorizam a importância deste ideal civilizacional, acompanham de perto a 310 batalha travada pela sua manutenção em um contexto cada vez mais desfavorável ao seu componente majoritário. A dinâmica de formação da União Europeia e, mais recentemente, a crise econômica que a abalou ao final da primeira década do século XXI, revelaram a profundidade de tais ameaças. Nesta medida, o propósito deste artigo é comparar a maneira pela qual a austeridade se apresenta como uma mecânica de gestão de crises, cuja natureza contra majoritária pressupõe, por um lado, a ação do discurso neoliberal, que a legitima sob a forma de uma alternativa incontornável; e, por outro, a ação de uma instância externa aos ditames da cidadania (ALONSO, 2014). Para isso, serão comparados os papéis do Consenso de Washington e do FMI na América Latina, analisando os casos Chile, Bolívia e Venezuela; e da Troika3 no caso europeu, abordado a partir de Portugal. 1. O agouro de Hayek e as primeiras investidas neoliberais As origens filosóficas do neoliberalismo podem ser remetidas ao trabalho de Friedrich Hayek, O Caminho da Servidão, escrito no fim da Segunda Guerra Mundial e direcionado ao Partido Trabalhista inglês. Núcleo normativo da proposta do autor, a ideia de austeridade surge como desdobramento de uma tensão constitutiva das origens do liberalismo político, no tocante ao papel do Estado como mal necessário (JONES, 2012, p. 45). Tal tensão, ressaltada já na seminal contribuição de John Locke (1978), diz respeito à necessidade de regulação, não apenas para garantir segurança aos indivíduos, mas o seu bem-estar econômico, também ameaçado pelo uso irrefreado das liberdades individuais. As teses apresentadas por Hayek tiveram um efeito avassalador, cuja sedimentação no campo político e teórico configurou as bases conceituais para a emergência de um novo bloco histórico algumas décadas depois (BLYTH, 2013). A concepção de bloco histórico foi desenvolvida por Antônio Gramsci para definir o conjunto interativo formado entre a estrutura e superestrutura sob a égide de uma classe social cujo predomínio 3Termo utilizado para denominar a tríade formada pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu, pelo Fundo Monetário Internacional. 311 (hegemonia) se expressa em termos materiais e ideológicos, o que pressupõe a disseminação de seus interesses e valores sob a forma de postulados universalmente válidos (GRAMSCI, 1971). Nesta medida, as ferramentas gramscianas serão aqui utilizadas para a compreensão do papel da noção de austeridade como cimento ideológico e mecanismo de legitimação discursiva das ações de uma elite transnacional, enquanto ator hegemônico da ordem mundial iniciada nos finais da década de 60 (COX, 1983). Esse percurso, rumo à consagração da hegemonia neoliberal, será o objeto desta seção. Após esse primeiro movimento no plano conceitual, tal processo ganhará força com a crise do modelo econômico do pós-guerra, sobretudo depois de 1973, ano marcado pelas convulsões decorrentes dos embargos da OPEP à distribuição de petróleo. Neste mesmo ano, após o assassinato de Salvador Allende, o general Augusto Pinochet assume o poder no Chile, nomeando uma equipe econômica que ficou conhecida sob a alcunha de Chicago Boys por terem recebido sua formação na Universidade de Chicago, reconhecidamente inscrita no campo ortodoxo (SILVA, 1991). A metodologia escolhida para a investigação aqui proposta, que almeja lançar luz sobre as políticas de austeridade recomendadas aos portugueses pela Troika na esteira da crise econômica de 2008, implica em um esforço para situá-las nos marcos da história do neoliberalismo. Com este objetivo, por razões heurísticas, a gênese e estabelecimento desse bloco histórico será dividida em dois momentos. Nessas duas etapas serão abarcados um conjunto de eventos inspirados no movimento teórico conduzido sob os auspícios de Hayek, através dos quais se consolida a hegemonia do ideário neoliberal. Essa divisão, contudo, não obedece a critérios cronológicos. Mesmo havendo uma sucessão temporal, o que determina sua diferenciação é o papel dos atores responsáveis pela implementação de um conjunto de medidas cujo cerne é a redução das capacidades reguladoras do Estado. Por conseguinte, se no primeiro momento observa-se uma assumida adesão valorativa aos fundamentos ontológicos, éticos, econômicos e filosóficos que compõem o espectro do neoliberalismo; o segundo período se caracterizaria pela negação desta aderência, que pode se dar em maior ou menor grau, conforme as circunstâncias políticas de cada caso analisado. 312 Esta negativa por parte de atores políticos cuja legitimidade está atrelada a princípios democráticos, determina um arriscado descolamento entre discurso e práxis que, em última instância, pode deflagrar a percepção de estelionato eleitoral por parte de cidadãos surpreendidos pela adoção de medidas completamente alheias a sua vontade. Sob esta perspectiva, a experiência neoliberal chilena foi escolhida não apenas por sua prioridade cronológica mas também por sua feição radical. Isto porque o caráter autoritário do regime de Pinochet blindou a implementação de medidas impopulares das pressões democráticas que poderiam tê-las dificultado (HUNEEUS, 2007). Essa blindagem foi particularmente importante em uma conjuntura na qual o ideário neoliberal ainda não era hegemônico e, portanto, incapaz de recobrir a adoção de seu receituário com o manto da legitimidade, convencendo parcelas da sociedade de sua inevitabilidade. Por este motivo, o Chile pode ser considerado como um laboratório, no qual a experimentação econômica pôde ser levada a cabo sem a influência das pressões políticas presentes em um regime democrático4. O regime conduzido sob a batuta dos Chicago Boys se inspirava no conceito de minarquia, utilizado para designar sistemas que incumbem o Estado de um mínimo de funções, geralmente restritas à segurança, justiça e ao poder de polícia (ANDERSON, 1995, p. 11). Diferentemente da democracia, a minarquia não traz como valores centrais a igualdade e a participação popular enquanto mecanismos de legitimação indispensáveis a qualquer estrutura jurídico-política. Até porque, neste léxico, tais estruturas são denunciadas como desnecessárias e custosas. No que diz respeito à América Latina, a transição entre a primeira e a segunda investida neoliberal tem como principal operador o Consenso de Washington, enquanto instância externa de determinação e imposição de 4 Não obstante a escolha do caso chileno é preciso observar que os preceitos neoliberais foram adotados neste período por uma série de países na Europa e nos Estados Unidos (JONES, 2012; KINDLEBERGER, 2015) . Tendo sido realizadas em um ambiente democrático, essas experiências também se caracterizam pela ênfase na disciplina orçamentária e nas reformas no mercado de trabalho, revelando um avanço do discurso neoliberal em termos de legitimação face à sociedade civil que, em maior ou menor medida, compactuou com a implementação de tais medidas. 313 condutas alheias à vontade dos cidadãos nacionais, que facilita sua implementação em contextos democráticos desviando a pressão sobre os atores políticos domésticos. Essa associação é central para caracterização da chamada segunda investida neoliberal, mas também para sua correlação com a terceira parte do trabalho, na qual será analisado o papel da Troika. No caso latino-americano, no qual as instituições internacionais não possuem oficialmente a autoridade necessária para conferir poder vinculante as suas decisões, esta dinâmica é completada pelo estelionato eleitoral, observado pela subversão do discurso, da trajetória e dos programas eleitorais apresentados pelos partidos que foram responsáveis pela adoção de recomendações ortodoxas (COUTINHO, 2006, p. 10). Este argumento será ilustrado pela exposição de dois casos. O primeiro foi observado durante o quarto governo de Victor Paz Estenssoro (1985-1989), na Bolívia. Fundador do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), protagonista da Revolução Boliviana de 1952, Estenssoro foi responsável pela execução de uma série de políticas de orientação socialdemocrata, como a nacionalização de recursos naturais, a ampliação dos direitos sociais e a reforma agrária, levados a cabo ao longo de seus mandatos anteriores (1952-1956; 1960-1964; 6 de agosto de 1964 4 de novembro de 1964)5. Nesta medida, ao encarregar-se da implementação dos ajustes neoliberais no país, Estenssoro não apenas entrou em contradição com sua biografia, mas, principalmente, com a vontade dos cidadãos que nela se inspiraram para elegê-lo em 1985 (DI FRANCO, 1986, p.7). Uma subversão análoga, é observada também no segundo mandato de Carlos Andrés Pérez (1989-1993), na Venezuela. Em seu primeiro governo (1974-1979), o presidente venezuelano se destacou pela elevação hiperbólica nos gastos estatais, viabilizados pela nacionalização dos recursos naturais e por um contexto no qual o preço do petróleo atingia valores inéditos6 (LÓPEZ MAYA, 2005). No ano de 1989, em uma 5 Sobre o caso boliviano, ver: GIL, Aldo Durán. Bolívia: duas revoluções nacionalistas?. Perspectivas: Revista de Ciências Sociais, v. 33, n. 1, 2008. 6 No governo de CAP, como ficou conhecido, foi criada a Petróleos de Venezuela Sociedade Anônima (PDVSA), em janeiro de 1976, data da promulgação da Lei de Nacionalização da Indústria Petroleira, e 314 conjuntura drasticamente distinta, Pérez chega ao poder novamente. Após uma campanha, que mobilizava a memória da Grande Venezuela, slogan do seu primeiro período na Presidência, CAP é eleito e, em seguida, declara moratória. Utilizando como argumento a inevitabilidade da austeridade em um contexto de crise econômica, o presidente anuncia o VIII Plano da Nação. O pacote de medidas, nomeado pela simbólica expressão A Grande Virada, consistiu fundamentalmente na implementação do compromisso, firmado junto ao FMI, para com a redução das capacidades e gastos do Estado7. Na próxima seção apresentarei o que entendo ser a terceira investida neoliberal, que demonstra como elemento distintivo o papel desempenhado pelas autoridades europeias. Isto porque, diferentemente das orientações do FMI no caso latino americano, as decisões das instituições europeias possuem um caráter vinculante, tendo em vista a delegação de competências políticas por parte dos Estados nacionais. Assim sendo, em virtude deste elemento supranacional, o recurso ao estelionato eleitoral se torna menos explícito por parte dos governantes europeus, haja vista a possibilidade de blindar a opção pela austeridade das pressões populares, legitimando-as como imperativos incontornáveis. 2. A terceira investida neoliberal e os desafios para a democracia portuguesa 2.1. O processo de integração e o dilema democrático Nesta seção, após ter delineado a primeira e a segunda investidas neoliberais, será possível mobilizá-las como ferramentas heurísticas para analisar como as recomendações da Troika para o combate à crise financeira internacional foram recebidas em Portugal. Para isso, primeiramente, será necessário, problematizar o papel da própria União 7 Sobre o caso venezuelano, ver: SILVA, Mayra G. (2013). Entre César e o Demos: Notas agonísticas sobre a democracia na Venezuela. 2013, 390 f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 315 Europeia no embate entre os interesses da maioria dos cidadãos – que passam pela sobrevivência das garantias sociais oferecidas pelo Estado de bem Estar social – e os interesses das elites comprometidas com a compressão dessas mesmas garantias (BURNS, 2000). De antemão, cabe sinalizar a dualidade de interpretações, posto que o processo de integração pode ser entendido como um esforço dos povos europeus para se proteger das ameaças do mercado as suas singulares conquistas em termos sociais, mas, também como uma forma de contornar a vontade desses cidadãos através da criação de mecanismos ulteriores ao exercício da cidadania no plano nacional (HABERMAS, 2012). Este segundo argumento, origina uma série de interpretações que observam neste processo, que vai do estabelecimento do mercado único à união monetária, um percurso rumo ao esvaziamento do poder político-estatal, sobre o qual a cidadania tem capacidade de intervir, face aos interesses do capital. Sob este prisma, “a formalização do mercado único europeu seria um primeiro passo no sentido de uma maior adequação deste conjunto de países aos parâmetros do mercado global” (MOTA; LOPES, ANTUNES, 2010, 85). O aprofundamento do processo mediante a aprovação do Tratado da União Europeia, assinado em 1992 e institucionalizado em 1999, segue a mesma lógica no que diz respeito à blindagem dos procedimentos de tomada de decisões políticas e econômicas, conquanto às pressões do demos. Neste contexto, a falta de reação dos cidadãos à transferência de competências dos Estados nacionais às instituições europeias pode ser entendida pela criação de expectativas econômicas acerca do próprio processo de integração, que desde suas fases iniciais veio acompanhado de uma relativa melhoria na condição de vida dos trabalhadores, possibilitada sobretudo pelo afluxo de empréstimos públicos e privados (FERNANDES, 2015; TSATSANIS, 2015). Nesta medida, se, em termos microeconômicos, o mercado único já havia condicionado os povos europeus a uma política de concorrência comunitária, a união monetária os despojou da capacidade de contornar os desequilíbrios macroeconômicos dela decorrente (FREIRE, LISI e VIEGAS, 2015). Estes desequilíbrios, por sua vez, se maximizam em virtude do caráter assimétrico do próprio processo de integração, que 316 acabou prejudicando a competitividade da pauta de exportações dos países menos industrializados e periféricos do bloco, mediante uma valorização artificial de suas respectivas moedas8. Simultaneamente, os setores da economia nacional orientados ao consumo interno se viram incapazes de concorrer com a enxurrada de produtos oriundos dos países do centro europeu, em especial a Alemanha, cuja moeda, ao contrário, se viu artificialmente desvalorizada. O resultado foi a crise de ambos setores com a subsequente redução de salários e postos de trabalho. O déficit na balança comercial, por sua vez, é explicado pela assimetria entre as economias agora reunidas sob uma moeda única, propiciando, no caso de países menos industrializados como Portugal, a perda de competitividade das empresas nacionais no plano doméstico e regional (REIS; RODRIGUES; SANTOS; TELES, 2015, 18-19). Os sucessivos déficits na balança comercial se tornam estruturais, sem que haja, por parte dos governos nacionais, a possibilidade de recorrer a mecanismos capazes de contorná-los, posto que a política monetária e cambial está ao resguardo dos tecnocratas do Banco Central Europeu. A alternativa, portanto, é o endividamento público. Este, contudo, não pode ser atribuído apenas à integração assimétrica e à política de concorrência comunitária acima mencionadas. Segundo o argumento aqui desenvolvido, é possível apontar uma causa anterior para os subsequentes déficits orçamentários, cuja raiz pode ser buscada no caráter precário da articulação entre liberalismo, capitalismo e democracia, enquanto termos que dizem respeito a interesses e expectativas distintas e, muitas vezes, excludentes (FERNANDES, 2015). A partir dessa perspectiva, o crédito pode ser considerado uma alternativa para contornar o crescente conflito distributivo que paira como ameaça constante sobre a democracia liberal, permitindo contrabalançar as expectativas de lucros crescentes das elites econômicas com os anseios das maiorias. Nessa articulação, caberia ao Estado a função de oferecer aos 8 No caso de Portugal, é interessante observar que o escudo sofreu uma apreciação real de cerca de 30% entre 1989 e 1992, demonstrando que, embora tenha sido por ele exponencializado, o processo de valorização das moedas dos países da periferia da Europa antecede o aprofundamento da integração rumo à união monetária, sendo observado ainda em suas fases iniciais. 317 cidadãos os recursos para a manutenção de um nível de vida incapaz de ser preservado apenas com os recursos provenientes do trabalho. Porém, uma vez que a tributação, assim como a remuneração do trabalhador, compromete as margens de lucro do capital, o endividamento público e privado torna-se um componente essencial dessa engrenagem. Por esta razão, desde a década de 1970 a maioria dos países da OCDE recorreu ao endividamento para dar conta do déficit público (TSATSANIS, 2015, 188). Nas décadas seguintes, esta dinâmica foi acentuada pelo avanço da hegemonia do ideário neoliberal, pois, diante da redução dos recursos fiscais disponíveis aos governos nacionais em matéria de intervenção econômica, inaugura-se a era das desregulamentações financeiras, cujo propósito é facilitar o crédito, estimulando e aumentando a capacidade de endividamento dos atores privados (idem). O processo de integração desempenhou um papel ambíguo nessa dinâmica. Por um lado, ele permitiu uma expansão do crédito aos países periféricos da Europa, por outro, as instituições europeias impuseram limites ao déficit e à dívida pública estabelecidos em, respectivamente, 3% e 60% do PIB. Essa limitação ainda vinha acompanhada de uma cláusula impedindo qualquer resgate em caso de sovereignt default, ou seja, caso um país não fosse capaz de honrar suas dívidas (LANE, 2012, 49). Este risco tornou-se mais visível em um contexto de instabilidade no sistema financeiro, iniciado pela crise do subprime nos Estados Unidos9, cujos efeitos sobre o contexto europeu se agudizam após a falência do Lehman Brothers, em setembro de 2008. 2.2. A crise financeira e o conflito redistributivo Deflagrada em meados de 2007, em virtude de uma crise de confiança por parte dos credores norte-americanos, motivada pela percepção de que a capacidade de endividamento dos cidadãos e empresas tenha sido superestimada pelas agências internacionais de classificação de 318 risco, a crise financeira atinge primeiramente o mercado de títulos hipotecários, porém, rapidamente se dissemina para outras áreas da economia (KRUGMAN, 2009, 19). Conforme essa percepção foi se alastrando, o governo americano, através do Federal Reserve, começou a implementar um pacote de resgate aos bancos privados. Na Europa, uma dinâmica análoga levou à nacionalização do Anglo Irish em janeiro de 2009 (MODY; SANDRI, 2012, 202)10. A falência do Lehman Brothers em 2008 estimulou as pressões dentro da união monetária para que os governos nacionais resgatassem os bancos privados, sob o argumento de que era necessário evitar um contagio dos demais membros do bloco (MOTA; LOPES, ANTUNES, 2010). Não obstante, a perspectiva de resgate aos bancos privados por parte dos Estados veio acompanhada pela desconfiança acerca da sua capacidade de arcar com esses desembolsos, sobretudo no caso dos países da periferia europeia. Foi essa conjuntura que chamou atenção para os seus elevados índices de endividamento, aumentando as inseguranças por parte dos credores acerca da perspectiva de um sovereignt default. O que, por sua vez, deu inicio às subsequentes elevações nas taxas de rentabilidade das obrigações do tesouro público (sovereing spreads) e dos Credit Default Swaps (CDS) dos Estados que possuíam déficits públicos mais elevados e menores perspectivas de crescimento econômico (MODY; SANDRI, 2012). Foi o caso de Grécia, Portugal e Espanha cujos CDS e sovereing spreads começaram a subir, em dezembro de 2009, e dispararam após a decisão da Standard & Poor’s de reduzir a notação das dívidas soberanas, em abril de 2010 (MOTA; LOPES, ANTUNES, 2010, 88)11. A despeito de sua natureza especulativa, esta redução serviu de argumento de legitimidade para a ação da Troika, no que diz respeito às pressões sobre os governos nacionais destes países para que, em detrimento da vontade de seus cidadãos, implementassem um conjunto de medidas de austeridade. 10 Em Portugal o Banco Português de Negócios, foi nacionalizado em setembro de 2008. Em dezembro, o governo repassou ao Banco Privado Português garantias públicas em valor de 450 milhões de euros (COSTA, CALDAS, 2013, 77) 11 Na ocasião, taxas de rentabilidade implícitas dos títulos públicos passaram de 5% para 12.5%, no caso grego, e de 4% para 6.5%, no caso português (idem). 319 A partir de fevereiro de 2010, as autoridades europeias aumentam os constrangimentos sobre os Estados nacionais, através de um discurso de “recuperação da confiança do mercado” a ser alcançado por intermédio de um conjunto de medidas voltadas à redução dos déficits orçamentários, comerciais e da dívida pública. Tais recomendações são institucionalizadas, um ano depois, quando os Chefes de Estado e de Governo da Zona do Euro assumem um compromisso com a disciplina orçamentária e com o estímulo da competitividade por meio de reformas voltadas à liberalização do trabalho e dos mercados. Em março de 2011, esse acordo é reafirmado sob o nome de Pacto Euro Plus. Em dezembro de 2011, tal compromisso é reforçado através de um “pacto orçamental” que ambiciona a formalização de um limite legal (preferencialmente constitucional) ao déficit público inferior a 0.5% do PIB. Este acordo, institucionalizado em março de 2012 pelo Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Econômica e Monetária, também contemplava sanções automáticas àqueles que não reduzissem os gastos públicos conforme os austeros parâmetros desta disciplina fiscal, assim como a obrigação de redução da divida pública para 60% do PIB à taxa anual de um vigésimo (COSTA, CALDAS, 2013, 78). Ou seja, ainda que esta decisão refletisse a vontade manifesta de seus cidadãos, legitimada através de procedimentos democráticos, os governos nacionais seriam punidos por instituições que não usufruíssem da mesma legitimidade e que representassem interesses claramente minoritários. Assim como ocorreu na América Latina no final do século XX, essa alternativa implicou na adoção de medidas voltadas ao aumento da receita tributária que desconsideram os princípios de justiça fiscal, ao priorizar o uso dessa receita para a remuneração dos ativos financeiros de credores, especialmente externos, em detrimento de qualquer outra finalidade como, por exemplo, a redistribuição do rendimento através do emprego (REIS; RODRIGUES; SANTOS; TELES, 2015, 64). Deste modo, conforme a hipótese aqui desenvolvida, a gestão de crises econômicas por meio da austeridade implica em uma mecânica precisa de transferência de riqueza do trabalho para o capital, sendo esta opção um desdobramento da hegemonia do ideário neoliberal, que facilita sua legitimação enquanto encaminhamento técnico e imparcial. 320 Esta mecânica, análoga àquela levada a cabo pelo Consenso de Washington décadas antes, apresenta três elementos: um sujeito passivo, um sujeito ativo e um discurso de legitimação(Idem). O primeiro diz respeito a uma economia nacional em situação desfavorável com fragilidades produtivas e dependente de outras. O segundo constitui-se como um ponto de referência externo, capaz de centralizar as demandas por parte das economias das quais o país é dependente, servindo como instância de determinação e imposição de condutas. A retórica que legitima essa imposição por parte de elementos exógenos ao interesse nacional remete às origens puritanas do liberalismo, uma vez que a austeridade surge como um valor que lastreia a crítica a governos ou cidadãos que viveriam “acima de suas condições” (BLYTH, 2013). No caso europeu, o discurso neoliberal se torna ainda mais incompatível com o interesse das maiorias, posto que opera sob a seguinte lógica: na ausência de mecanismos de desvalorização cambial, o combate ao déficit comercial deve ser realizado através da deflação e da desvalorização salarial que, além de reduzirem o custo das exportações poderiam diminuir os gastos com importações (CROUCH, 2011). No caso do déficit orçamentário, na ausência de instrumentos nacionais de política monetária, o combate deveria ser feito através da redução dos benefícios sociais e tributários. Em Portugal, esse conflito entre os interesses da maioria, na altura representada pelo Partido Socialista, e os interesses de uma minoria transnacional, representada virtualmente12 pelos tecnocratas da Troika se materializa na execução dos Programas de Estabilidade e Crescimento. Desenvolvidos e executados pelo governo em 2010 sob a égide do compromisso com a “consolidação orçamental”. Esses programas compreendiam: a limitação dos benefícios fiscais; o aumento das taxas do IVA; a contenção salarial pelo reforço da regra de contratação 2 por 1; a redução progressiva dos salários da Administração Pública; a Redução em 12 A representação virtual, originalmente contemplada por Edmund Burke diz respeito à legitimidade daqueles que atuam em nome de outras pessoas, sem de fato terem sido escolhidas direta ou indiretamente por elas, em função de uma comunhão de interesses e empatia de sentimentos. Ver: BURKE, E. Textos Políticos (1942). Cidade do México: Fondo de Cultura. 321 20% nas despesas com o Rendimento Social de Inserção; Privatizações nos setores de energia (Galp Energia, EDP, REN, Hidroelétrica Cahora Bassa), construção naval e defesa (Estaleiros Navais de Viana de Castelo, Edisoft, Eid, Empordef IT), transporte aéreo (ANA e TAP), ferroviário (CP Carga e EMEF), financeiro (BPN e Caixa Seguros), comunicações (CTT); a diminuição da despesa com prestações sociais, subsídio de desemprego e das despesas na área da saúde; dentre outros (COSTA; CALDAS, 2013, p. 81-82-93). Em 2011, esse esforço se aprofunda com o Memorando de Entendimento firmado após a rejeição do PEC IV através de uma inédita aliança entre partidos de oposição13 que se coordenaram para rejeitá-lo no Parlamento14. Menos de três meses depois da derrota, o Conselho de Ministros apresenta um pedido de ajuda externa e inicia um processo de negociação com a Troika, cujo resultado é o Memorando firmado por partidos do governo (PS) e da oposição (PSD e CDS). O documento, determinava a capitalização dos bancos portugueses e o reforço dos rácios de capital através de um esforço de redução das despesas do governo, além de um aumento na arrecadação da ordem de 7% e 3.4% do PIB, respectivamente (RODRIGUES & SILVA; 2015) . Nesta medida, em virtude de suas feições recessivas é possível enquadrá-lo na mecânica de austeridade acima mencionada, que se traduz na transferência de renda da maioria dos cidadãos nacionais para uma minoria de investidores internacionais. 13 Essa aliança inédita contra a proposta apresentada pelo Partido Socialista (no governo) foi formada pelo Partido Ecologista os Verdes (PEV), pelo Bloco de Esquerda (BE) e por tradicionais partidos da direita portuguesa, nomeadamente, Partido Social Democrata (PSD), Partido Popular (CDS), Coligação Democrática Unitária (CDU). 14 Em resposta, o primeiro ministro socialista José Sócrates pede demissão e convoca eleições antecipadas, realizadas em junho de 2011 e vencidas pelo PSD. 322 Conclusão A implementação da agenda neoliberal apresentada sob a forma de uma mecânica de gestão da crise tornou evidente o desequilíbrio do arranjo entre democracia, capitalismo e liberalismo que caracterizava o esforço civilizacional dos povos europeus, institucionalizado através do Estado de Bem Estar Social e dos sistemas políticos de representação democrática. Sob esta perspectiva, é possível observar como legado da crise financeira a tomada de consciência por parte do cidadão médio acerca do processo de transferência de competências por parte dos Estados nacionais às instituições supranacionais. Com isso, “o consenso/apatia permissiva, da população europeia que facilitava a integration by stealth + despolitização, dissipou-se” (FERNANDES, 2015, 172). Isto porque, esse consenso tinha como pilar fundamental a expectativa de um “contínuo aumento de bemestar económico e social para a generalidade da população europeia.” (Idem). Conforme argumentado anteriormente, até a crise iniciada em 2008, o endividamento público facilitou a conciliação entre os anseios da maioria, que dizem respeito à manutenção das garantias sociais, e o interesse das elites econômicas associado ao incremento nas taxas de lucro. No caso de Portugal, esse desequilíbrio, causado pela sobreposição do liberalismo e do capitalismo sobre a democracia, se observa quando analisamos os efeitos recessivos das políticas apresentadas no Memorando de Entendimento que resultaram em uma elevação do desemprego para a inédita taxa de 17,4% e uma contração de 6.3% do PIB (COSTA; CALDAS, 2013, 94). Assim sendo, como nos alerta André Freire, em Austeridade, Democracia e Autoritarismo (2014), esta crise econômica se desenvolveu em uma crise da democracia. Apresentando uma hipótese plausível de ser aplicada não apenas à Europa do século XXI, mas à América Latina do século XX, o autor ressalta o caráter elitista das medidas adotadas sob o discurso da austeridade. Ademais, Freire chama atenção para o fato de que a desvinculação entre estas decisões e os compromissos contraídos com os cidadãos no momento das eleições é legitimada, no contexto europeu, pela suposta a ausência de alternativas perante às decisões das instituições europeias. 323 Por esta razão, a crise internacional e as recomendações da Troika podem ser lidas como uma excelente “janela de oportunidade” para implementar um projeto neoliberal, à revelia dos anseios de uma população amplamente favorável ao Estado Social (Freire, 2014, p. 59). Diante dos obstáculos oriundos de um processo de integração assimétrico e pouco democrático, resta indagar em que medida está aberta, aos cidadãos europeus, a possibilidade de percorrer um caminho análogo ao que foi traçado na América Latina, onde a insatisfação com os resultados da austeridade levou a sua reversão parcial pelos governos de esquerda eleitos na primeira década do século XXI. Bibliografia ALONSO, Sonia; KEANE, John; MERKEL, Wolfgang (orgs). The Future of Representative Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. ISBN-10: 0521177030. ALONSO, Sonia. You can vote but you cannot choose: Democracy and the sovereignty debt crisis in the Eurozone. Estudio / Working Paper. Madrid: Instituto Mixto Universidad Carlos III - Fundación de Ciencias Sociales. 2014. ISSN: 2341-1961 ANDERSON, Perry – Balanço do neoliberalismo. In: BORÓN, Atilio; GENTILI, Pablo; SADER, Emir. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, 9-23. ISBN: 9788577530328 BLYTH, Mark – The Austerity Delusion: Why a Bad Idea Won Over the West. Foreign Affairs, Tampa: ISSN: 0015-7120. 2013/ nº 92, 3, 41-56. Blyth, Mark. Austerity: The history of a dangerous idea. Oxford: Oxford University Press, 2013. ISBN: 9780199389445 Blyth, Mark. Great transformations: Economic ideas and institutional change in the 324 twentieth century. Cambridge: ISSN:9780521010528. Cambridge University Press, 2002. BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. Lisboa: Don Quixote, 1988. ISBN:9788577530878 BURNS, Tom, et al. The Future Parliamentary Democracy: Transition and Challenge in European Governance. Green Paper prepared for the conference of the speakers of EU Parliaments. Rome. 2000, Setember 22-24. COSTA, Ana; CALDAS, José Castro – A União Europeia e Portugal entre os resgates bancários e a austeridade: um mapa das políticas e das medidas. In A anatomia da crise: identificar os problemas para construir alternativas (1.º relatório/preliminar). Coimbra/Lisboa: José Reis, 2013. ISBN: 9789724057354. Observatório sobre Crises e Alternativas, 72-108. Coutinho, Marcelo. Movimentos de mudança política na América do Sul contemporânea. Revista de sociologia e política. Curitiba. ISSN1678-9873. 2006, 27 107-123. CROUCH, Colin. The strange non-death of neo-liberalism. Polity, 2011. Cambridge ISBN-13: 978-0-7456-5120-o DAHL, Robert. Polyarchy: Participation and Opposition. New Haven: Yale University Press, 1972. ISBN-10: 0300015658. Di Franco, Alberto. Paz Estenssoro, del nacionalismo revolucionario a la politica fondomonetarista en Bolivia. La Paz: Centro Editor de America Latina, 1986. FERNANDES, José Pedro Teixeira –O Futuro da Construção europeia na era da globalização. In: FREIRE, André - O Futuro da Representação Política Democrática. Lisboa: Nova Vega, Lisboa, 2015. 157-177. ISBN: 9789897500381 FREIRE, André – Austeridade, Democracia e Autoritarismo. Lisboa: Nova Vega, 2014. ISBN: 9789897500091 325 Freire, André, Marco Lisi, and José Manuel Leite Viegas. Crise económica, políticas de austeridade e representação política. Lisboa, 2014, 2015. Consultado em 10/03/2017. Disponível em: https://pure.strath.ac.uk/portal/files/44601637/Rudig_Karyotis_Who_ protests_in_Greece_mass_opposition_to_austerity.pdf FREIRE, André. O futuro da democracia representativa. In: FREIRE, André - O Futuro da Representação Política Democrática. Lisboa: Nova Vega, Lisboa, 2015. 157-177. ISBN: 9789897500381 HABERMAS, Jürgen – A crise do estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo. ISSN: 0101-3300. 1987, v. 18. HABERMAS, Jürgen – Sobre a constituição da Europa: um ensaio. São Paulo: Ed. Unesp, 2012. ISBN: 9788539302475 HAYECK, Friedrich – O Caminho da Servidão. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010. ISBN: 978-85-62816-02-4 Huneeus, Carlos. The Pinochet Regime. Boulder e Colorado Colorado: Lynne Rienner Publishers, 2007.ISBN: 978-1-58826-406-0 Jones, Daniel Stedman. Masters of the Universe. Hayek, Friedman, and the Birth of Neoliberal Politics. Princeton: Princeton University Press, 2012. ISBN- 10:0691161011. KINDLEBERGER, Charles P. A financial history of Western Europe. Routledge, 2015. ISBN-13: 978-0415436533 KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês.Rio de Janeiro: Eduerj, 1999. ISBN 9788585910259 KRUGMAN, Paul – A crise de 2008 e a economia da depressão. São Paulo: Elasevier, 2009. ISBN:9788535233360 326 LANE, Philip R. – The European Sovereign Debt Crisis. Journal of Economic Perspectives. ISSN: 0895-3309. 2012, Volume 26, Number 3, 49–68. LOCKE, John. (1978) - Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ISBN: 85-336-2224-4 LÓPEZ MAYA. Margarita – Luta hegemônica na Venezuela. A crise do puntofijismo e a ascensão de Hugo Chávez. Caracas: Alfadil, 2005. ISBN:9789803541804 MAGALHÃES, Pedro – Financial Crisis, Austerity, and Electoral Politics. Journal of Elections, Public Opinion and Parties. ISBN-13: 978-1138856783. 2014,24 (2), 125-133. MODY, Ashoka; SANDRI, Damiano –The eurozone crisis: how banks and sovereigns came to be joined at the hip. Economic Policy. ISBN: 9781463995393. Great Britain. 2012, April, 200-230. MOTA, Júlio; LOPES, Luís; ANTUNES, Margarida –A economia global e a crise da dívida soberana na União Europeia: a situação de Portugal e Espanha. Indic. Econ. FEE. Porto Alegre, ISSN 1806-8987. 2010, v. 38, n. 2, 83-98. Observatório sobre Crises e Alternativas (org.) –“Apresentação”.In A anatomia da crise: identificar os problemas para construir alternativas (1.º relatório/preliminar). Coimbra/Lisboa: José Reis, 2013. ISBN: 9789724057354. Observatório sobre Crises e Alternativas, 72-108. POLANYI, Karl; MACIVER, Robert Morrison. The great transformation. Boston: Beacon Press, 1957. ISBN : 9782070218585 REIS, José; RODRIGUES, João; SANTOS, Ana; TELES, Nuno – “Compreender a Crise: A economia portuguesa num quadro europeu desfavorável”. In A anatomia da crise: identificar os problemas para construir alternativas (1.º relatório/preliminar). Coimbra/Lisboa: José Reis, 2013. 327 ISBN: 9789724057354. Observatório sobre Crises e Alternativas, 72-108. Rodrigues, Maria de Lurdes, and Pedro Adão e Silva. Governar com a Troika. Políticas Públicas em Tempo de Austeridade. Coimbra: Almedina, 2015. ISBN: 9789724060811. SILVA, Patricio – “Technocrats and Politics. In Chile: from the Chicago Boys to the CIEPLAN Monks. Journal of Latin American Studies. ISSN: 1469767X. 1991 v. 23, n. 02 ,385-410. STREECK, Wolfgan – Market and people. New Left Review. Londres: Susan Watkins. ISSN · 0028-6060. 2012, 73, January- February, 63-71. TSATSANIS, Emmanouil – O futuro da governação democrática na era da globalização: o triunfo ideológico de uma forma de governo ultrapassada. In: FREIRE, André - O Futuro da Representação Política Democrática. Lisboa: Nova Vega, Lisboa, 2015. 157-177. ISBN: 9789897500381 328 O EUROPEU RIBEIRO SANCHES E A MEDICINA PORTUGUESA DE FINAIS DO SÉCULO XVIII: SUGESTÕES PARA O ENSINO MÉDICO E FARMACÊUTICO João Rui Pita Faculdade de Farmácia Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra — CEIS20 Universidade de Coimbra E-mail:jrpita@ci.uc.pt Resumo: António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783) é uma das figuras mais marcantes da história da medicina e da cultura portuguesas de finais do século XVIII. Insatisfeito com a formação obtida, frequentou as lições de Boerhaave, na Holanda, figura tutelar da medicina europeia. Foi médico da família imperial russa e foi médico em Paris onde se manteve desde 1747 até à sua morte. Legou-nos uma importante obra escrita. Ribeiro Sanches foi solicitado para organizar o ensino médico na reforma da Universidade de 1772 onde se incluia o ensino farmacêutico. Com isso pretendia-se organizar o ensino médico em Portugal de acordo com os melhores parâmetros europeus. Palavras-chave: Ribeiro Sanches; medicina; ensino médico; Universidade de Coimbra; século XVIII 329 Introdução1 António Nunes Ribeiro Sanches nasceu em Penamacor em 7 de Março de 16992. Chegou à Universidade de Coimbra para cursar Direito em 1716. Alguns anos mais tarde, em 1720, trocou a Universidade de Coimbra por Salamanca para onde foi estudar medicina e onde se formou em 1724. Regressou a Portugal e exerceu medicina em Benavente. A sua proveniência de uma família judaica fê-lo abandonar o país tendo ido para Inglaterra onde viveu e contactou com diversos médicos e cientistas. Em 1728 passou por várias cidades europeias, à semelhança da circulação que havia com outros estrangeirados3, onde teve oportunidade de ampliar os seus contactos: Montpellier, Paris, Marselha, Bordéus e Pisa foram o seu destino. Em 1729 regressou a Bordéus e logo de seguida decidiu ter uma formação mais profunda em medicina em Leyde, na Holanda, junto de Hermann Boerhaave (1668-1738)4, figura tutelar e enciclopédica da medicina europeia do século XVIII5. Esteve na Holanda cerca de dois anos. Depois foi para a Rússia pois em 1731 a imperatriz russa Ana Ivanovna contactou Boerhaave para que este médico lhe enviasse para a Rússia alguns dos seus melhores alunos recém formados. Ribeiro Sanches foi selecionado e partiu para a Rússia. Aqui desempenhou diversos cargos que exigiam a máxima competência e confiança, tendo sido médico da corte 1 Estudo integrado no âmbito das atividades do Grupo de História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra —CEIS20 (Fundação para a Ciência e a Tecnologia – FCT - UID/HIS/00460/2013). 2 Como biografias gerais de Ribeiro Sanches continua a ser oportuna a consulta da obra clássica de LEMOS, Maximiano — Ribeiro Sanches. A sua vida e a sua obra. Porto: Eduardo Tavares Martins, 1911. 3 Sobre os estrangeirados e o estabelecimentos de redes científicas ver: CARNEIRO, Ana; SIMÕES, Ana; DIOGO, Maria Paula — Enlightenment science in Portugal: the estrangeirados and their communication networks. Social Studies of Science. 30:4 (2000) 591-619. 4 Sobre Boerhaave veja-se a síntese clássica de: LINDEBOOM, G.A.BOERHAAVE,Hermann. In GILLISPIE, Charles Coulston. Dicctionary of Scientific Biography. vol 2. New York: Charles Scribner's Sons, 1981. p. 224-228. 5 Cf. LEMOS, Maximiano - Ribeiro Sanches à Leyde (1730-1731). Jannus -Archives Internationales pour l'histoire de la Médecine et de la Géographie Médicale. 16(1911) 237253. 330 russa. Em 1747 após a morte da Imperatriz e depois de algumas clivagens foi para Paris onde exerceu clínica, contactou com vultos da medicina e da cultura e publicou diversas obras6. Em 1758 o governo português solicitou a Ribeiro Sanches um plano de reforma dos estudos médicos em Portugal e cerca de cinco anos volvidos apresentou a sua proposta de reforma para o ensino da medicina de acordo com o mais avançado que se fazia na Europa e mais adaptado a Portugal. Faleceu em Paris em 14 de Outubro de 17837. Ribeiro Sanches e a medicina A excepcional formação recebida, segundo um modelo científicomédico sistemático, ecléctico e holista, ajustava-se perfeitamente às suas qualidades intelectuais, aos seus dotes de pedagogo em sentido amplo8 e à sua vocação clínica. Primus inter pares, além de combater a doença nos planos curativo e preventivo com os meios possíveis na época, Ribeiro Sanches lutou pelo avanço das ciências médicas. Neste sentido, é autor de estudos originais sobre vários temas médicos e exerceu uma influência decisiva na reforma pombalina dos estudos médicos em Portugal9. A este propósito veja-se o artigo de MALAQUIAS, Isabel — A geografia do saber em António Nunes Ribeiro Sanches através do inventário da sua livraria. Ágora. Estudos Clássicos em Debate. 14:1 (2012) 203-226. Veja-se, também: COSTA, Palmira Fontes da; JESUS, António — António Ribeiro Sanches and the circulation of medical knowledge in eighteenth-century Europe. Archives Internationales d’Histoire des Sciences. 56:156-157 (2006) 185-197. 7 Sobre um estado da arte da historiografia sobre Ribeiro Sanches, até 2004, vejase: PITA, João Rui; PEREIRA, Ana Leonor — Escritos maiores e menores sobre Ribeiro Sanches. Cadernos de Cultura. Medicina na Beira Interior. Da Pré-História ao Século XXI. 18 (2004) 30-39. 8 Veja-se, por exemplo, ARAÚJO, Ana Cristina - Ilustração, pedagogia e ciência em António Nunes Ribeiro Sanches. Revista de História das Ideias. Coimbra. 6 (1984) 377-394. MENDES, António Manuel Nunes Rosa - Ribeiro Sanches e as Cartas Sobre a Educação da Mocidade. Lisboa: Tese de Mestrado-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1991. 9 Sobre a medicina em finais do século XVIII veja-se a obra de PITA, João Rui — Farmácia, medicina e saúde pública em Portugal (1772-1836). Coimbra: Livraria Minerva, 6 331 Além disso, pugnou em toda a sua obra científica, clínica e políticocultural pela constituição de uma nova mentalidade relativa à saúde, sendo esta entendida como algo de positivo e construtivo, irredutível à ausência de doenças. Ribeiro Sanches contribuiu para a estruturação do conceito atual de saúde, definida como o bem-estar físico, psicológico e social do ser humano. A visão holista de saúde reflectida na obra de Ribeiro Sanches pode traduzir-se na tríade constitucional: medicina-higiene-saúde pública, o que denota a amplitude dos horizontes do sábio português. Com efeito, o prestígio científico e profissional de Ribeiro Sanches expandiu-se muito aquando da sua estadia na Rússia e posteriormente em França onde a par da clínica se entregou ao estudo e investigação da higiene e da saúde pública. As suas pesquisas sobre as doenças venéreas, os seus estudos sobre o estado geral da saúde das populações numa vertente sanitária pública, a concepção de um conjunto de medidas sanitário-administrativas, bem como o repensar do ensino da medicina em moldes científicos mais fecundos e inovadores, incorporando e valorizando a higiene pública, são tópicos marcantes da obra de Sanches. O Tratado da Conservaçaõ da Saude dos Povos (1756)10 é um marco fundamental da medicina higienista ibérica e europeia. Neste tratado Ribeiro Sanches defende a responsabilização do Estado em matéria de saúde pública, nomeadamente através do controlo administrativo das condições de higiene pública, através de medidas de política sanitária, ambiental, urbanística, portuária, intra-institucional e militar, entre outras11. Esta obra de Ribeiro Sanches dá corpo à perspetiva iluminista da medicina preventiva e o mesmo é válido para outros trabalhos como, por exemplo, as Observations sur les Maladies Vénériennes (1785). São estudos que não se circunscrevem à realidade nacional ou regional, antes alcançaram 1996. Nesta obra incide-se com particular ênfase sobre a influência de Ribeiro Sanches na reforma pombalina dos estudos médicos. 10 Consultámos a edição: SANCHES, António Nunes Ribeiro - Tratado da conservaçaõ da saude dos povos. In Obras. vol.2. Coimbra: Universidade, 1966. p. 149391. 11 Veja-se, também, ARAÚJO, Ana Cristina — Medicina e Utopia em António Nunes Ribeiro Sanches. In BORGES, A.; PITA, A. P.; ANDRÉ, J.M. (Cords.) — Ars Interpretandi – Diálogo e Tempo - Homenagem a Miguel Baptista Pereira. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2000. p. 35-85. 332 um horizonte europeu, merecendo ser entendidos como dignos representantes da cultura científica europeia de raízes ibéricas12. Para Ribeiro Sanches a saúde concebida em sentido construtivo, implica a articulação entre o poder técnico-científico da medicina e o poder político administrativo do Estado, articulação que denominou "medicina política". Ribeiro Sanches foi pioneiro nesta orientação capital da medicina que mais tarde a obra de Johann Peter Frank (1745-1821), System einer vollständigen medicinischen polizey (publicado entre 1779-1827) assumiu, desenvolveu e institucionalizou. Como nas principais frentes da cultura iluminista, também nesta área, Ribeiro Sanches, um europeu setecentista com raízes ibéricas, abriu o caminho que ainda hoje é o nosso caminho e a nossa luta pelo bem estar físico, psicológico e social dos indivíduos e das comunidades13. A seu livro Metodo para Aprender e Estudar a Medicina (1763) 14 pode ser referido como de capital valor na sua obra escrita. Neste livro, que serviu como diretriz do ensino médico na Universidade de Coimbra, Ribeiro Sanches mostra o seu ecletismo, a sua atualidade e dimensão europeias ao querer transpor para Portugal o que de mais atualizado se fazia na Europa, nomeadamente na escolar de Hermann Boerhaave. A sua influência na reforma da Universidade de Coimbra (1772) Em 1772 a Universidade de Coimbra, pela mão tutelar do Marquês de Pombal (1699-1782) e pelo trabalho no terreno do reitor-reformador Veja-se: PITA, João Rui; PEREIRA, Ana Leonor — Doenças venéreas: do século XVIII ao século XX. Medicamentos de Ribeiro Sanches a Fleming. In XVI Colóquio de História Militar. O serviço de saúde militar. Na comemoração do IV centenário dos irmãos hospitaleiros de S. João de Deus em Portugal. vol. 1. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar, 2007. p. 359-380. 13 Cf. PEREIRA, Ana Leonor; PITA, João Rui — Liturgia higienista no século XIX - pistas para um estudo. Revista de História das Ideias. 15 (1993) 437-559. 14 Consultamos a obra: SANCHES, António Nunes Ribeiro - Metodo para aprender e estudar a Medicina. In Obras. vol.1. Coimbra: Universidade, 1959. p. 1-200. 12 333 Francisco de Lemos (1735-1822), foi sujeita a uma das reformas mais profundas de toda a sua história15. Foram fundadas duas novas Faculdades (de Matemática e de Filosofia) que se juntaram às já existentes de Teologia, Leis, Cânones e Medicina. Foram fundados novos estabelecimentos para o ensino das ciências experimentais. O objectivo era dotar a Universidade de meios e de espaços que proporcionassem o ensino das ciências experimentais à semelhança do que vinha acontecendo noutras Universidades europeias16. Esses estabelecimentos foram: o Hospital Escolar; o Teatro Anatómico; o Dispensatório Farmacêutico; o Laboratório Químico; Jardim Botânico; o Gabinete de Física; Gabinete de História Natural; Observatório Astronómico. Os três primeiros eram dependentes da Faculdade de Medicina. O ultimo integrado na Faculdade de Matemática e os outros eram dependentes da Faculdade de Filosofia17. A remodelação operada no ensino médico foi profunda. No que concerne à vertente institucional, a fundação daqueles três estabelecimentos foi decisiva na introdução do espírito experimental. Os Estatutos da Universidade de 1772, no que concerne à parte médica, transmitem-nos as influências que se fizeram sentir de alguns outros vultos médicos da época mas sobretudo de Ribeiro Sanches, tanto no ensino como na investigação e a vontade que havia em realizar essas alterações de acordo com modelos e parâmetros europeus18. 15 Ver sobre este assunto: GOMES, Joaquim Ferreira - A reforma pombalina da Universidade (Nótula comemorativa). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1972; GOMES, Joaquim Ferreira - Pombal e a reforma da Universidade. In Como interpretar Pombal? No bicentenário da sua morte. Lisboa: Edições Brotéria, 1983. p. 235-251. Ver, igualmente, ARAÚJO, Ana Cristina — O Marquês de Pombal e a Universidade. 2ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. 16 Cf. PITA, João Rui (Coord.) — Ciência e experiência. Formação de médicos, boticários, naturalistas e matemáticos. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2006. 17 Ver: PRATA, Manuel A.C. - Reforma pombalina da Universidade: Faculdade de Filosofia. Cultura - História e Filosofia. 6(1987) 229-260. 18 Cf. PITA, João Rui — Farmácia, medicina e saúde pública em Portugal (1772-1836). Ob.cit. Ver, também, PITA, João Rui — Medicina, Cirurgia e Arte Farmacêutica na Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra. In ARAÚJO, Ana Cristina — O Marquês de Pombal e a Universidade. 2ª ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, pp. 127-162. 334 Para analisarmos a condição em que se encontrava a Universidade de Coimbra e as propostas para o seu melhoramento é incontornável a consulta das obras Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771)19, dos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772, 3 volumes)20 e, posteriormente, da obra de Francisco de Lemos, Relação geral do estado da Universidade (1777) 21 que nos dá conta da situação após cinco anos da promulgação dos novos Estatutos. Contudo, o seu entendimento e o cumprimento do que havia sido previsto só poderá ser feito se verificarmos o que Ribeiro Sanches nos transmite na sua obra Metodo para aprender e estudar a Medicina. É claro que aqueles livros devem ser lidos e interpretados tendo em consideração que se tratam de obras do regime, do sistema pombalino e cujo objetivo era dar a conhecer o que deveria ser alterado, mostrar a inoperacionalidade ou a fraca operacionalidade do antigo sistema de ensino médico e, depois, promover a diferença do pós-pombalino relativamente ao pré-pombalino22. Por vezes as palavras são mesmo arrasadoras. Por exemplo, no Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra redigido pela Junta de Providência Literária, criada por decisão régia a 23 de Dezembro de 1770, para avaliar o estado da Universidade refere-se que a Junta teve por objetivo examinar as causas da "decadência" e "ruina" da Universidade. A Carta Régia de 28 de Agosto de 1772, que conferiu plenos poderes ao Marquês de Pombal para reformar a Universidade, nomeando-o seu Lugar-Tenente, referia que o objetico era "restituir, e restabelecer as Artes, e as Ciências contra as ruinas em que se achavam sepultadas"23. Os estatutos da Univer- 19 Cf. Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771). Coimbra: Universidade, 1972. 20 Estatutos da Universidade de Coimbra (1772). 3 vols. Coimbra: Universidade, 1972. 21 Cf. LEMOS, Francisco de - Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: Universidade, 1980. 22 Parece-nos também fundamental o estudo em documentação de arquivo, nomeadamente no Arquivo da Universidade de Coimbra, onde encontramos documentos que nos mostram a prática do funcionamento da Faculdade de Medicina. 23 Cf. Carta Régia de 28 de Agosto de 1772. Por Carta Régia de 6 de Novembro de 1772 foram prorrogados os plenos poderes de que o Marquês de Pombal havia sido investido como reformista da Universidade. A razão indicada era a de não 335 sidade de 1772, por exemplo, referiam-se ao estado da medicina como "perigosa"24 e "nociva"25 por ser muitas vezes praticada por médicos mal preparados ou, como se dizia, "ministrada por mãos da ignorância"26. Parecenos também fundamental o estudo em documentação de arquivo, nomeadamente no Arquivo da Universidade de Coimbra, onde encontramos documentos que nos mostram a prática do funcionamento da Faculdade de Medicina. Uma das maiores influências doutrinais que a reforma pombalina dos estudos médicos sentiu foi a de Ribeiro Sanches, mas também de Castro Sarmento e Luis António Verney. Contudo, Ribeiro Sanches foi, dos três, aquele a quem, do ponto de vista teórico, a reforma mais deverá ou de quem há maior rasto histórico. Ribeiro Sanches foi discípulo de Boerhaave, como dissemos, com quem trabalhou diretamente, dele recebendo influência iatromecânica que está patente na sua obra embora Boerhaave fosse sobretudo um eclético e um conciliador entre doutrinas médicas. Por essa razão acata, igualmente, a importância da química para a formação médica27. Como foi referido mais atrás, foi muito importante para a reforma da Universidade de 1772 a obra de Ribeiro Sanches o Metodo para aprender e estudar a Medicina (1763) que responde à interpelação feita pelo Marquês de Pombal alguns anos antes. Tratava-se de responder ao que se queria para a Universidade pretendendo-se que esta instituição se alinhasse pelos melhores modelos europeus e, no caso das ciências experimentais, se alinhasse pelo espírito experimental, onde o trabalho prático se mostrava de grande relevância. Em relação direta com a doutrina médica que Ribeiro Sanches sugeria para a Universidade, ressaltam do lote de estudos médicos preliminares o ensino da matemática, da física e das humanidades. A matemática estarem resolvidos alguns assuntos relativos à remodelação prevista para a Universidade. Por isso era necessária a sua presença em Coimbra por mais tempo para a resolução de alguns assuntos (Cf. ALMEIDA, Manuel Lopes de — Documentos da Reforma Pombalina. vol. 1. Coimbra: Universidade, 1937). 24Estatutos da Universidade de Coimbra (1772). vol. 3. Ob. cit. p. 6. 25 Idem. p. 6. 26 Idem. p. 6. 27 Veja-se sobre este assunto PITA, João Rui — Farmácia, medicina e saúde pública em Portugal (1772-1836). Ob.cit. Parte I, capítulo 1, p. 39 e ss. 336 seria considerada disciplina indispensável ao ensino médico, sendo o organismo, dentro daquela perspetiva médica, comparado a uma máquina onde as doenças e consequentes terapêuticas podem ser vistas à luz de leis mecânicas ou de leis da física numa declarada influência iatromecânica28. No que concerne ao estudo da medicina, sobressaem, desde logo, os domínios que são valorizados por Ribeiro Sanches: o grande interesse dispensado aos estudos preparatórios para entrada no ensino médico; o grande destaque dado à escola boerhaaviana com consequentes reflexos nas áreas da prática clínica, bem como no desenvolvimento do espírito experimental. A obra de Ribeiro Sanches, seguindo sempre de perto toda a orientação médica boerhaaviana, e traduzindo o mais genuíno espírito do iluminismo médico, pretende demonstrar que a medicina apresenta duas componentes que teriam, necessariamente, de ser ensinadas na Universidade: por um lado, a prática, por outro lado, a teoria. Ribeiro Sanches deixa bastante claro que a formação médica exclusivamente investida de conceitos teóricos e destituída de uma adequada formação prática era inteiramente condenável. Por isso, para que os alunos pudessem praticar convenientemente nas diversas áreas da medicina, a Faculdade de Medicina deveria ser dotada de determinados estabelecimentos destinados à prática e onde o espírito experimental fosse estimulado: “Não somente a teoria da Medicina, mas também a sua prática, estão hoje reduzidas ensinarem-se na Universidade: ou que a de Coimbra fique Régia, e Pontifícia, ou Régia somente, como disse em outro lugar, requer o estudo desta ciência que se ensine em um Colégio separado das suas aulas, ou Gerais. Por que este Colégio deve constar dos Estabelecimentos seguintes: 1. De um Hospital com trinta até cinquenta camas. 2. De um Teatro Anatómico; e de lugar para as preparações anatómicas. 3. De um Jardim espaçoso para a cultura das Plantas e Árvores, com algumas salas onde estarão os Repositórios da História Natural. 4. De um Laboratório Químico. 5. De uma Botica. Sem os quais Estabelecimentos bem 28 Idem, Ibidem. 337 servidos e administrados, será inútil toda a reforma que se fizer nos estudos da Medicina actual”29. Ribeiro Sanches não nos parece ser um antigalenista sistemático como muitas vezes os Estatutos de 1722 parecem ser. Ribeiro Sanches parece ter uma attitude menos radical e mais positiva ao indicar que a Universidade deveria encontrar a melhor doutrina que marcasse e formasse convenientemente os futuros médicos. Ribeiro Sanches era minucioso na proposta que fazia para o ensino médico. Preconizava diferentes disciplinas a diferentes horas consoante fosse inverno ou verão, conforme se indica de seguida30. Lições de Inverno: 7-8 horas - Lição no Hospital, Lente A; 8-9 horas - Cirurgia prática, anatomia, hospital, Lente B; 9-10 horas - Química, Lente C; 10-11horas - História da Medicina, Lente D; 13-14horas - Aforismos de Boerhaave, Lente A; 14-15horas - Anatomia e cirurgia prática, Lente B; 15-16horas - Matéria Médica e Química, Lente C. Lições de Verão: 6 ou 7-8 horas - Botânica e Matéria Médica, Lente C; 7 ou 8-9 horas - Hospital, Lente A; 8 ou 9-10horas - Instituições Médicas de Boerhaave, Lente B; 9 ou 10-11horas - História da Medicina, Lente D; 15 ou 16-17horas - Aforismos de Boerhaave, Lente A; 16 ou 17-18horas - Instituições Médicas de Boerhaave, Lente B; 17 ou 18-19horas - Matéria Médica e Farmácia, Lente C. O aluno deveria ter prática permanente no Hospital, isto é, desde o início do curso. Tal contacto permitiria ilustrar de um modo mais eficiente o estudo que os alunos iriam fazer durante o curso pois no seu entender "deve-se considerar que se imprime mais na memória tudo aquilo que vêmos e que ouvimos ao mesmo tempo"31. De um modo geral, Ribeiro Sanches preconizava para os estudos médicos em Portugal um ensino patrocinado pelas ideias científicas de Boerhaave. É de realçar a valorização dada ao ensino da clínica, da observação dos doentes e um estudo prático das doenças. Ribeiro Sanches desenhava, à semelhança de Boerhaave, que o ensino da medicina deveria ter valencias 29 SANCHES, António Nunes Ribeiro - Metodo para aprender e estudar a Medicina. Ob. cit. p. 39. 30 Idem, Ibidem. p. 40. 31 Idem, Ibidem. p. 46. 338 imprescindíveis, por exemplo, um hospital para que aqui se pudesse lecionar a principal cadeira da medicina – a prática clínica, um laboratório químico e uma botica para a preparação dos medicamentos e ensino químico, um jardim botânico para a formação botânica dos médicos e ainda, muito naturalmente como base do conhecimento do corpo, um teatro anatómico para o ensino da anatomia sendo necessária a dissecação de cadáveres. Relativamente à anatomia, Sanches indicava que o estudo pormenorizado da anatomia era indispensável à formação do médico. No seu entender era "a porta para entrar na Ciência do corpo são e enfermo"32; daí a sua valorização no contexto dos estudos médicos. Era uma base fundamental do ensino da medicina. Para Ribeiro Sanches em Portugal não existiam professores com a necessária preparação para o ensino daquela disciplina médica. De acordo com a sua opinião, era impossível estabelecer um ensino válido da anatomia se não houvesse uma prática anatómica adequada e esta tinha que ser superiormente dirigida por lentes anatomistas práticos no ensino da anatomia. Por isso, Ribeiro Sanches sugeria que alguns alunos saissem de Portugal para a Europa do centro em particular para Edimburgo, Leyde, Gotingen e Paris, durante três ou quatro anos para que aprendessem anatomia e o seu exercício prático33. Relativamente à química, Ribeiro Sanches era defensor que toda a química aplicada à medicina preconizada deveria ser intimamente articulada com a prática médica, uma "química médica"34, como refere, uma química "que indaga os corpos dos três Reinos na intenção de conhecer as 32 Idem, Ibidem. p. 52-53. Esta foi a política sugerida pela Junta de Providência Literária e inscrita no Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra e também de acordo com as indicações de Jacob de Castro Sarmento, português residente em Inglaterra. Nestas sugestões referia-se que paralelamente à tradução das mais conceituadas obras de medicina, era importante que se "mandassem Estudantes fora do Reino fazeremse peritos nas mesmas Ciências, para virem depois ensiná-las, e propagá-las aos seus Nacionais" (Cf. Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra (1771). Ob. cit. p. 345). Contudo, do corpo docente inicial da Faculdade de Medicina após a reforma de 1772 apenas um deles seguiu esse caminho: José Francisco Leal, que trabalhou junto de Van Swieten, discípulo de Boerhaave, podendo considerar-se, também por isso, um discípulo indireto da escola do médico holandês. 34 Idem, Ibidem. p. 58. 33 339 suas virtudes, se são saudáveis, ou perniciosas ao corpo humano"35. Para Ribeiro Sanches, a mineralogia e a metalurgia, que considerava como integrante da grande área da química, seriam desnecessárias para a formação do médico. Ribeiro Sanches entendia que Boerhaave e F. Hoffmann eram os autores de referência e salienta que o seu ensino deveria ter uma forte componente prática, isto é, uma forte componente laboratorial. Do mesmo modo acrescentava que os seus docentes deveriam ter uma formação muito profunda o que apenas seria conseguido no estrangeiro, à semelhança da anatomia, nomeadamente em escolas de elevado mérito como as que existiam em Leyde, Londres ou Edimburgo. Ribeiro Sanches rejeitava as escolas francesa, italiana e alemã, no que respeita ao ensino da química, sobretudo da química médica o que não deixa de ser interessante pelo facto de em França, no século XVIII, se estarem a dar passos de grande significado na investigação química e naquela que era aplicada aos medicamentos. Para Ribeiro Sanches "nem em França, nem em Itália, nem em Alemanha não se conhece este método de Boerhaave; porque a maior parte dos que ensinam nestes Estados conhecem superficialmente a doutrina da Medicina deste Autor, da qual a sua Química é o principal fundamento, e quase a chave de toda ela"36. No que concerne à botânica, matéria médica e farmácia, Ribeiro Sanches valorizava a sua importância referindo que teriam que ser parte integrante da formação médica. Para Ribeiro Sanches era tão importante o médico ter conhecimentos de farmácia como de anatomia embora nestas o seu conhecimento devesse ser perfeito37. Na verdade, o que estava em causa eram os dois métodos terapêuticos em que a medicina se apoiava e que envolviam trabalho manual. Para Ribeiro Sanches, a botânica e a matéria médica, áreas fundamentais para que o médico tivesse conhecimentos para receitar medicamentos, incluiam-se no grande grupo da história natural. Enquanto a química tinha por objetivo estudar as "íntimas propriedades"38 dos três reinos da natureza, a história natural objetivava o conhecimento das substâncias 35 Idem, Ibidem. p. 57-58. Idem, Ibidem. p. 60. 37 Idem, ibidem, p. 53. 38 Idem, Ibidem. p. 95. 36 340 desses três reinos. Neste particular indicava-se como referente os Estudos Médicos de Boerhaave comentados por Haller39. Ribeiro Sanches entendia que os conhecimentos botânicos não seriam imprescindíveis para a prática da medicina mas saber botânica era muito importante para a formação científica do médico. Estes conhecimentos eram particularmente úteis quando o médico exercesse a sua atividade onde não existissem medicamentos e o médico tivesse necessidade de identificar plantas para a produção dos medicamentos. Assim, o estudo das plantas com interesse medicinal era um suporte importante da matéria médica pois esta reportava-se ao estudo das propriedades das plantas medicinais, bem como de matérias-primas de outras origens: animal e até minerais com aplicação na medicina. Mais uma vez se dava destaque a uma obra de Boerhaave comentada por Haller40 e ao The New Dispensatory, de Lewis41. Relativamente à importância da farmácia no contexto dos estudos médicos e sua importância e aplicação à medicina, Ribeiro Sanches referiu que o estudo prático da farmácia deveria ser da maior profundidade, muito mais do que o da química. Considerava a farmácia como indispensável na formação do médico. Ribeiro Sanches era extremamente claro ao afirmar que todos os médicos deveriam ter uma forte formação farmacêutica e que os médicos deveriam saber preparar os medicamentos tão bem como os boticários: "Pois é o que agora proponho, e que neste estudo sejam ainda muito mais práticos do que na Química: que aprendam a fazer xaropes, emplastros, unguentos, pírolas e electuários e todas as mais preparações da Farmácia. Gerardo Van Swieten, hoje Físico Mor de suas Magestades Imperiais, se deve glorificar que ele foi o que neste século ressuscitou a Farmácia e que mostrou a necessidade que tinham todos os Médicos serem Boticários perfeitos" 42. 39 Cf. BOERHAAVE, Hermanni — Methodus Studii Medici. 2 vols. Venetiis: Typographia Remondiniana, 1753. 40 Idem, Ibidem. 41 Ribeiro Sanches referia-se ao The New Dispensatory containing a full translation of the London and Edimburg Pharmacopoeias. London: 1753. 42 SANCHES, António Nunes Ribeiro - Metodo para aprender e estudar a Medicina. Ob. cit. p. 97. 341 Ribeiro Sanches valorizava no domínio da farmácia as escolas de Edimburgo e de Londres, bem como a de Leyde. Recomendava que os lentes da Universidade se deslocassem durante dois ou três anos a Leyde para aí receberem uma actualizada formação científica. Para Ribeiro Sanches a farmácia era, do ponto de vista científico, uma disciplina da medicina. Contudo, achava que era uma área de interesse de dois profissionais: médicos e boticários. Os primeiros eram detentores do conhecimento teórico e os segundo detentores do domínio do laboratório, do trabalho laboratorial. Contudo, os primeiro deveriam tutelar os segundos, isto é, os boticários, em cujas boticas os medicamentos eram produzidos43. As sugestões de Ribeiro Sanches e de outros intelectuais a quem foi solicitado apoio para sugerirem inovações no curso médico plasmou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra com a seguinte organização44: Estudos preparatórios com línguas grega e latina; estudos filosóficos com Filosofia racional e Filosofia moral (1 ano) e Física e Matemática (3 anos)45. Depois deste período o curso médico propriamente dito: 1º ano: Matéria Médica e Arte Farmacêutica; 2º ano: Anatomia, Operações Cirúrgicas e Arte Obstetrícia; 3º ano: Instituições Médico-Cirúrgicas (estava previsto o ensino de Fisiologia; Patologia; Semiótica; Higiene; Terapêutica); 4º ano: Aforismos; 5º ano : Prática de Cirurgia e Medicina; 6º ano: Prática de Cirurgia e Medicina (Prática de Cirurgia e de Medicina; Repetição do 3º ano e do 4º ano)46. 43 Sobre a farmácia e a medicina em finais do século XVIII e início do século XIX, veja-se: PITA, João Rui; PEREIRA, Ana Leonor — Farmácia e saúde em Portugal — de finais do século XVIII a inícios do século XIX. In FORMOSINHO, Sebastião J.; BURROWS, Hugh D. — Sementes de ciência. Livro de homenagem. António Marinho Amorim da Costa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2011. p. 205-232. 44 Vejam-se os estudos na Faculdade de Medicina nos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772), vol. 3. 45 Sobre os estudos preparatórios vejam-se os Estatutos da Universidade de Coimbra (1772). vol. 3. Ob.cit., p. 8-10. 46 O Reitor-reformador Francisco de Lemos na obra Relação Geral do Estado da Universidade (1777) é de opinião que a pouca frequência que o curso médico tinha, logo após a reforma, se ficava a dever, em grande parte, à extensão do curso — um total de oito anos: três de preparatórios e cinco do curso propriamente dito (Francisco de Lemos, Relação Geral do Estado da Universidade (1777). Ob. cit. p. 72). Esta situação e outras críticas imediatamente a seguir à reforma podem ser vistas 342 Os Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772 tentaram cumprir as sugestões de Ribeiro Sanches numa adesão firme a Boerhaave. Por isso se inscrevia: “…que não mudem facilmente de Boerhaave para outro, sem ponderarem, e discutirem por miúdo as vantagens, que disso podem resultar. E tanto que julgarem, que pode haver alguma vantagem na dita mudança sem inconveniente, que a destrua, não deixem de a fazer; pondo de parte toda paixão, e parcialidade…”47. Este entusiasmo no ensino sustentado na prática experimental, mesmo no ensino médico, fica bem claro nas seguintes palavras dos Estatuos de 1772: “…Não há meio mais seguro para adiantar a Medicina do que comparar perpetuamente os resultados da razão e da experiência para que sirvam reciprocamente de prova um do outro; e para que no caso de discrepância se repitam todas as diligências, até se conhecer de qual das partes está a equivocação…”48. O que foi exposto limita-se a tecer algumas considerações sobre algumas sugestões de Ribeiro Sanches para o ensino da medicina na reforma pombalina da Universidade. Contudo, deve sublinhar-se que nem sempre o que foi sugerido por Ribeiro Sanches e por outros consultores a quem o Marquês de Pombal recorreu foi acatado nos Estatutos da Universidade. Do mesmo modo se deve referir que nem tudo o que foi contemplado nos Estatutos foi cumprido na prática49. Porém, deve sublinhar-se o papel importante de Ribeiro Sanches na reorganização dos estudos médicos em 1772 e na tentativa que houve de transpor para a Universidade de Coimbra o que ele entendia ser como referente indiscutível, o seu mestre europeu Hermann Boerhaave. em PITA, João Rui — Farmácia, medicina e saúde pública em Portugal (1772-1836). Ob. cit., p. 66 e ss. 47 Estatutos da Universidade de Coimbra (1772). vol. 3. Ob.cit. p. 60. 48 Estatutos da Universidade de Coimbra (1772). vol. 3. Ob.cit. p. 18. 49 Este tipo de abordagem constituirá matéria de artigo autónomo. Alguns pontos deste assunto no que diz respeito à parte farmacêutica pode ser visto em: PITA, João Rui — Farmácia, medicina e saúde pública em Portugal (1772-1836). Ob. cit. 343 Conclusões Pelo que foi exposto mostra-se inequívoca a influência da mais avançada cultura médica europeia em Ribeiro Sanches. Essa cultura passava não somente pela sua visão holista de saúde refletida na tríade medicina-higiene-saúde pública, o que denota a amplitude dos horizontes do sábio português mas também pela defesa duma formação médica que deveria obedecer ao que o seu mestre Hermann Boerhaave havia desenhado. 344 CAMINHOS BATIDOS DE UM PEREGRINO DO SABER: RICARDO JORGE NO CONTEXTO CIENTÍFICO EUROPEU50 Rui Manuel Pinto Costa Investigador integrado do CEIS20-Universidade de Coimbra E-mail: rcosta75@gmail.com Resumo: Ricardo de Almeida Jorge (1858-1939) foi director do Instituto Central de Higiene e a mais destacada figura da política de saúde pública portuguesa entre 1899 e 1939, em particular na afirmação do paradigma higienista. Tendo completado parte da sua formação académica com uma extensa viagem de estudo à França e Alemanha, viajou diversas vezes pela Europa, absorvendo e corporizando as grandes tendências da ciência europeia do seu tempo. Foi no teatro sanitário europeu que desenvolveu um trabalho significativo no Office Internacional d`Hygiène Publique e na Organização de Higiene da Sociedade das Nações, de que é testemunha um extenso corpus documental que constitui o legado de uma participação ativa nos organismos sanitários internacionais. Palavras-chave: Ricardo Jorge; Higienismo; Office Internacional d`Hygiène Publique; Organização de Higiene da Sociedade das Nações; ciência europeia. Abstract: Ricardo de Almeida Jorge (1858-1939) was the director of the Central Institute of Hygiene and the most important figure of Portuguese public health policy between 1899 and 1939. Having completed part of his academic training with an extensive study trip to France and Germany, he traveled several times through Europe, absorbing and embodying the great 50 Este artigo serviu de base à comunicação: Caminhos batidos de um peregrino do saber: Ricardo Jorge no contexto científico europeu, apresentada na mesa redonda: «Portugueses na ciência europeia: de Amato Lusitano a Egas Moniz», no II Colóquio Internacional da Revista debater a Europa, organizado pelo Grupo de Investigação Europeísmo, Atlanticidade e Mundialização do CEIS20 e Centro de Informação Europe Direct de Aveiro, realizada na Sala de São Pedro da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra a 16 de março de 2017. 345 tendencies of European science of his time. It was in the European health institutions that he developed a significant work: at the International Office of Public Hygiene and the League of Nations Health Organization, which testifies to an extensive documentary corpus which is the legacy of an active participation in these international health organizations. Keywords: Ricardo Jorge; Hygienism; The International Office of Public Hygiene; League of Nations Health Organization; European science. 346 1 - Ricardo Jorge e a ciência europeia do seu tempo Tal como qualquer personagem da História, também Ricardo Jorge foi fruto de uma época e dos seus contextos. Ao longo do século XIX, Portugal foi um país aberto ao progresso científico iniciado fora de fronteiras, destacando-se mais no papel de recetor e reprodutor de saberes do que na produção autónoma de conhecimento científico. No entanto, como Ana Leonor Pereira e João Rui Pita demonstraram para o caso português, num país que tem sido ao longo dos tempos um recetor de saber científico, não se pode deixar de valorizar o contexto internacional, bem como os mecanismos de receção e de reprodução das inovações científicas feitas a partir nos países dotados de equipamento e de recursos mais favoráveis à criatividade.51 A 2ª metade do século XIX, é consensualmente encarada como o período em que a valorização e cientificação da higiene permitiram que esta se tornasse numa ciência de matriz biopolítico, dando corpo a uma “Medicina de Estado” plasmada na codificação legislativa exclusivamente dedicada à saúde pública. Foram vários os pródromos que a antecedem e os fatores que o justificam, entre eles a conversão da saúde num objeto de administração pública e legislação estatais, a prevenção vacínica, o desenvolvimento da química com o seu contributo experimentalista e laboratorial, a revolução pasteuriana, e por fim a bioestatística, esta última entendida como matemática social necessária à gestão do capital humano dos povos.52 Ricardo de Almeida Jorge (1858-1939), homem de ciência e de cultura, foi um médico particularmente ligado à reforma da saúde pública de finais do século XIX e início do século XX. Defendeu e corporizou a aplicação do higienismo na matriz legislativa, tornando-se num personagem cimeiro da saúde pública portuguesa. Indivíduo multifacetado: médico, cientista, higienista, hidrologista, ensaísta, polemista, crítico de arte, político, Cf. PEREIRA, Ana Leonor; PITA, João Rui – Ciências. In MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal. Vol. V. O Liberalismo (1807-1890). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 652-667. 52 Cf. PEREIRA, Ana Leonor; PITA, João Rui – Liturgia higienista no século XIX - pistas para um estudo. Revista de História das Ideias. 15 (1993) 437-559. 51 347 historiador da medicina e escritor dotado de vasta cultura, recai com toda a propriedade no rol daqueles personagens mitificados não só pelos contemporâneos mas também pelos seus pares do universo médico.53 Imbuído de um claro sentido de modernidade científica, resultante de cânones higienistas e da revolução biológica impressa pela microbiologia/bacteriologia de sabor pasteuriano, foi no devir desta dupla influência que soube analisar e propor mudanças estruturais na realidade sanitária portuguesa do seu tempo. A sua vida decorreu no seio de dois grandes movimentos refundadores das ciências médicas, enquadradas sob as diretrizes culturais do positivismo. Por um lado, a afirmação e sedimentação da microbiologia/bacteriologia que decorreu ao longo do último quartel do século XIX e início do século XX, por outro a consolidação do papel social da medicina através da confirmação e aceitação do higienismo como disciplina do conhecimento ao serviço dos Estados e das populações. Ricardo Jorge nasceu na cidade do Porto em 1858 tendo-se diplomado na Escola Médico-Cirúrgica do Porto aos 21 anos. Aí lecionou, antes de rumar à capital onde desenvolveu um amplo trabalho enquanto higienista, professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e diretor do Instituto Central de Higiene, estabelecimento que fundou em 1899 e dirigiu até 1926. Enquanto médico municipal, foi fundador e diretor dos Serviços Municipais de Higiene da cidade do Porto, tendo sido figura-chave na abordagem e resolução da epidemia de peste que assolou a cidade em 1899. Desde 1912 passou a ser o representante português no Office International d`Hygiène Publique, para o qual realizou variadíssimos relatórios sobre doenças infeciosas, incluindo a peste, cólera, febre-amarela, varíola e outras. No seguimento do trabalho desenvolvido no Office, integrou o Comité de Higiene da Sociedade das Nações. Em 1916 e 1917 visitou os dispositivos sanitários dos exércitos britânicos e francês da frente ocidental. Enquanto Directorgeral de Saúde desempenhou um papel ativo na gestão sanitária do combate a vários surtos epidémicos, de que ressalta a epidemia de gripe que atingiu Portugal entre 1918-1919. Em 1928 saiu da Direção Geral de Saúde, sendo nomeado presidente técnico do Conselho Superior de Higiene. Veio 53 COSTA, Rui Manuel Pinto – Sob o olhar da construção da memória: Ricardo Jorge na tribuna da História” CEM. Cultura, Espaço & Memória. Porto. 5 (2014) 261-274. 348 a falecer em 1939 em Lisboa, com a idade de 81 anos. Fez parte de uma das gerações mais relevantes da história da medicina e da farmácia portuguesas, sendo autor de uma extensa bibliografia que compreende mais de 300 títulos.54 Muito se escreveu sobre o seu papel e personalidade, sendo também objeto de particular atenção em diversos trabalhos de investigação.55 Poucos cientistas portugueses do seu tempo terão atingido a projeção internacional, e sobretudo europeia que Ricardo Jorge acabou por obter. Absorveu os ventos de mudança da ciência europeia da segunda metade do século XIX, e foi também no contexto dos grandes centros da sanidade internacional, precisamente com sede na europa central, que desenvolveu uma enorme parte do seu trabalho enquanto higienista, onde se destacou, obtendo a consideração dos seus congéneres estrangeiros. 2 – Exemplo de modernidade científica A modernidade científica ricardiana assenta em alguns aspetos, principalmente na aceitação do paradigma microbiano aberto por Pasteur. Apesar da revolução pasteuriana estar na base dessa mudança, Koch era outro dos nomes da medicina estrangeira que serviu de esteio à construção da bacteriologia. Como sublinharia, “Quando os destinos de higienista me levaram ao aprendizado da bacteriologia, era Koch o pontífice da patologia infeciosa; a sua técnica, ao mesmo tempo simples e engenhosa, punha a 54 COSTA, Rui Manuel Pinto - Sob o olhar da construção da memória: Ricardo Jorge na tribuna da história. CEM. Cultura, Espaço & Memória. 5 (2014) 261-274. 55 COSTA, Rui Manuel Pinto - Sob o olhar da construção da memória: Ricardo Jorge na tribuna da história. CEM. Cultura, Espaço & Memória. 4 (2014) 261-274; NUNES, Maria de Fátima - Ricardo Jorge and the construction of a medical-sanitary public discourse. Portugal and International scientific networks. In: PORRAS GALLO, Maria-Isabel; RYAN, Davies A. - The Spanish Influenza Pandemic of 19181919 - Perspectives from the Iberian Peninsula and the Americas. Rochester: University of Rochester Press; 2014, p. 56-71; AMARAL, Isabel, et al, coord. – Percursos da Saúde Pública nos séculos XIX e XX - a propósito de Ricardo Jorge. Lisboa: CELOM; 2010; PEREIRA, Ana Leonor; PITA, João Rui – Liturgia higienista no século XIX pistas para um estudo. Revista de História das Ideias. 15 (1993) 437-559. 349 pesquisa bacterial ao alcance dos profanos. Evangelizou a ciência recémnada e liberalizou a todos o seu catecismo didático de laboratório.”56 No caso da medicina, o laboratório assumiu o papel avalizador e construtor do conhecimento de base experimental, com o que conseguiu atribuir a origem de uma série de doenças a outros tantos microrganismos, revolucionando não só o conhecimento etiopatogénico mas também as medidas e mecanismos destinadas a controlá-los. Pasteur introduz a hipótese do parasitismo como mecanismo patogénico, conduzindo-o a estabelecer o princípio do isolamento como medida preventiva e aprofundando a conceção de imunidade artificial, posta em prática com o carbúnculo e a raiva. Estes novos elementos estruturantes do saber e poder dos médicos permitiram transformar a higiene pública numa disciplina médico-farmacêutica de pleno direito no quadro das disciplinas do domínio das ciências da saúde. Ainda durante a sua permanência no curso da Escola MédicoCirúrgica do Porto, Ricardo Jorge assistiu ao momento em que a medicina foi tomada de assalto pela revolução pasteuriana. Quando terminava o curso na escola médica, ainda não tivera a oportunidade de observar diretamente, senão em figuras, os seres microscópicos e as bactérias que Pasteur anunciava. A efervescência e novidade da ciência microbiológica abria janelas de conhecimento e novas possibilidades de aprendizagem, mas os défices tecnológicos da escola, expressos pelo uso limitado do microscópio, obstavam a uma aprendizagem prática da histologia, da fisiologia experimental e da bacteriologia. “A nós, o que nos desesperava, era não vermos os decantados e disputados microrganismos. Quando nos seria dado enxerga-los por um óculo, real e verdadeiramente, em vez de imagens’ o uso do microscópio era quase desconhecido, ignorávamos de visu as bactérias de Pasteur, como ignorávamos as próprias células de Virchow. Pôde tanto esta carência que nos consagrámos avidamente ao aprendizado autodidático da histologia primeiro, da fisiologia experimental depois, e da bacteriologia por fim; (…) Não admire que, mal compreendido ainda o pastorismo como doutrina, à ciência e à técnica dos micróbios se não abrisse logo lugar no ensino. A nova JORGE, Ricardo – De Ceca e Meca. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1961, p. 142. 56 350 patologia infeciosa desconcertava as inteligências; conheci lentes e médicos de real talento, saber e capacidade que não havia meio de a abrangerem.” 57 Apesar da extensa lista de cientistas que seguiram rapidamente as pisadas de Pasteur, tanto as descobertas microbiológicas como a questão da propagação das doenças não tiveram aceitação imediata. Envolvido inicialmente em polémica e visada pelo contraditório, a aceitação generalizada acabaria por se afirmar não só em França como em todo o mundo, não sem antes ultrapassar um período de validação. Portugal também foi palco desse processo cauteloso de assimilação e aceitação que deu azo à dúvida e ao contraditório. A influência da bacteriologia no jovem Ricardo Jorge foi determinante, não só na modernização do ensino médico, como na sua posterior apologia higienista. Mas se para ele o processo de assimilação dos novos cânones científicos se fez sem sobressaltos, o mesmo não aconteceu em todo o lado. Um pouco à semelhança do processo de “pasteurização” da França, terminologia que Bruno Latour adotou para caracterizar a expansão da bacteriologia no contexto francês,58 Portugal também atravessou um período de aceitação ao novo paradigma microbiológico. Tal como parte substancial da elite médica, também não se escusou de ver no químico francês a pedra basilar da medicina moderna e da higiene pública, à qual “Pasteur dera corpo e alma (…), forjando as armas da profilaxia anti-infeciosa.”59 Enfileirou claramente pelos cultores da nova batuta de sabor pasteuriano, acabando por ter na propaganda higienista o instrumento mais visível do seu alinhamento. Ele próprio foi o vetor dessa propaganda em vários momentos, antes mesmo desta polémica de 1887, logo a partir das famosas palestras de 1884. Recordando a excitação em torno do advento JORGE, Ricardo – A propósito de Pasteur: discurso proferido em comemoração do centenário pastoriano na Faculdade de Medicina de Lisboa, aos 25 de Abril de 1923. Lisboa: Portugália, 1923, p. 34-35. 58 LATOUR, Bruno – The Pasteurization of France. Cambridge, London: Harvard University Press, 1988. 59 JORGE, Ricardo – A propósito de Pasteur: discurso proferido em comemoração do centenário pastoriano na Faculdade de Medicina de Lisboa, aos 25 de Abril de 1923. Lisboa: Portugália, 1923, p. 51. 57 351 da microbiologia no Laboratório Municipal do Porto, Almeida Garrett recordaria o local do “(…) laboratório organizado por Ricardo para as pesquisas bacteriológicas, que deviam acender nele clarões de entusiasmo, decerto emocionantes, nessa era de sol nascente da microbiologia, prometedor de magníficos triunfos sobre a doença e a morte.” 60 Consciente do atraso da escola médica portuense na formação dos alunos e até da própria sensibilidade de uma parte do corpo docente para a era pasteuriana, Ricardo Jorge fez parte de um corpo médico que insertou em Portugal os ventos da teoria pasteuriana e, paralelamente, da microscopia histológica. Outra vertente da modernidade científica ricardiana assenta na problemática do higienismo, assente na ideia sanitária de Edwin Chadwick. Entre 1885 e 1899, Ricardo Jorge publicou diversos títulos que se debruçavam de forma direta sobre o problema da higiene. Elaborados em contextos algo díspares na sua origem, como foram as conferências de 1884 realizadas no rescaldo de uma polémica em torno dos cemitérios do Porto, ou já no papel de técnico higienista nos relatórios sobre o saneamento do Porto em 1888 e 1897, os objetivos do seu discurso convergiam na promoção sociopolítica da higiene. A sermonária do higienismo era predicada por um Ricardo Jorge plenamente convicto das suas verdades científicas, que não assentavam apenas em meras suposições mas nos firmes alicerces de uma bacteriologia que atingia a sua maioridade e se impunha como um dos pilares da medicina moderna. A ignorância não podia ser razão para a falta de atitudes profiláticas que atingiram a plena confirmação científica: “O código dos direitos naturais do homem sagrou a liberdade do pensamento para todo o sempre; mas a liberdade de pensar, que deve merecer toda a tolerância e respeito, não se confunde com a liberdade de ser ignorante. Essa fulmine-se.”61 Pelo menos desde 1884 que nas suas famosas conferências realizadas no Porto fazia a apologia do higienismo como fator determinante para o bem-estar físico do indivíduo e da sociedade. Concebia a higiene como a GARRET, António de Almeida – Ricardo Jorge, higienista. Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto. Vol. 4. Fasc. 4 (1941), p. 372. 61 JORGE, Ricardo – Higiene social aplicada à Nação Portuguesa. Conferências feitas no Porto. Porto: Livraria Civilização, 1885, p. V. 60 352 “(…) filha dileta da civilização moderna (…)”62 sem lhe regatear louvores nem aplausos. Por estar “(…) intimamente relacionada com o desenvolvimento monstruoso das ciências, das artes e das indústrias (…)”,63 fazendo profissão de fé no seu potencial enquanto ciência integrante da ideia de progresso que perpassou toda a 2ª metade do século XIX. Na verdade, a base por traz da ideia sanitária não era nova. Originária da Europa ocidental, e ligada a Edwin Chadwick desde 1843, consistia na criação de uma administração central dedicada à gestão da saúde pública, de modo a orientar as autoridades locais no sentido de criar redes de esgotos, limpeza urbana, condições de habitabilidade e ainda regulamentar atividades comerciais e laborais consideradas insalubres. A base deste modelo teve por objetivo principal a prevenção da transmissão das doenças de pendor infecioso, circunscrevendo-as. Esta ideia foi entretanto exportada para outros países e continentes, com consequências e implementações diferentes, mas obedecendo a princípios comuns. O despertar do interesse pelo tema coincidiu com o momento em que Ricardo Jorge passa a exercer funções letivas. Enquanto assunto de escolha dos alunos finalistas nas suas teses inaugurais na escola médicocirúrgica, durante as décadas de 60 e 70 o higienismo apresentava um peso reduzido no cômputo geral das temáticas de eleição, algo que mudaria progressivamente nas décadas de 80 e 90. Antes disso era residual e quase inexistente, se bem que já existisse desde 1863 uma cadeira de Medicina Legal e Higiene Pública nas escolas médico-cirúrgicas. Por outro lado, a teoria celular introduzida por Rudolf Virchow, também conhecida como o celularismo de Virchow, deixara em Ricardo Jorge uma forte impressão. A leitura da Patologia Celular do histologista alemão despertara-lhe a vontade de se dedicar à construção da ciência médica de base experimental: “Virchow – fui seu ledor assíduo quando aprendia os rudimentos da profissão nas bancadas escolares. Era o meu livro de debaixo do JORGE, Ricardo – Higiene social aplicada à Nação Portuguesa. Conferências feitas no Porto. Porto: Livraria Civilização, 1885, p. III. 63 JORGE, Ricardo – Higiene social aplicada à Nação Portuguesa. Cconferências feitas no Porto. Porto: Livraria Civilização, 1885, p. III. 62 353 braço e do travesseiro, que guardo como relíquia; na minha paixão juvenil tinha-o por epítome da ciência a que me ia dedicar. Aquela Patologia Celular, produção de verdadeira genialidade, não é apenas o maior livro da medicina do século, é a carta constitucional de toda a sistematização médico-científica e médico-prática, temporânea e futura.” 64 Numa altura em que o exercício da profissão médica ainda era permeada pelos laivos de um sacerdócio laico, Ricardo Jorge pendia rapidamente para o campo aberto pela modernidade científica. Mostrava abertamente uma fé inabalável no progresso protagonizado pela mão da ciência de matriz positivo, para quem “A ciência moderna, propelida pela mão potente do progresso, rasga um horizonte radioso, e, presa d'uma curiosidade insaciável, envida as suas forças na renovação incessante das ideias e dos factos, labuta na dilatação dos âmbitos que a circunscrevem.”65 Nessa altura o positivismo estruturava as bases da educação europeia a partir da conceção de Auguste Comte, assente na ideia de progresso associada à evolução como forma de entender o mundo social. A revista O Positivismo (1879-1882) fundada por Teófilo Braga e Júlio de Matos, contaria entre os seus colaboradores alguns nomes sonantes da medicina portuguesa de então, entre outros, Augusto Rocha, Bettencourt Raposo, Cândido de Pinho, e até de Basílio Teles, que durante algum tempo chegou a frequentar e Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Estranhamente – diríamos nós, se tivermos em atenção a influência da corrente positivista comtiana na geração médica de então – encontravase muito menos próximo do positivismo comtiano do que se poderia pensar, revelando-se mais alinhado com o positivismo inglês de John Stuart Mill e o evolucionismo de Herbert Spencer, por força da formação na escola médica.66 JORGE, Ricardo – De Ceca e Meca. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1961, p. 141. 65 JORGE, Ricardo – Um ensaio sobre o nervosismo. Dissertação inaugural apresentada e defendida perante a Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Porto: Tip. Ocidental, 1879, p. 1. 66 JORGE, Ricardo – [Prefácio]. In PIMENTA, Alfredo – Estudos filosóficos e críticos. Prefácio do Prof. Dr. Ricardo Jorge. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930, p. XVII - XVIII. 64 354 3 - Uma viagem pelas catedrais do saber (1882 – 1883) Ricardo Jorge parte para Paris em 1882, de onde seguiria posteriormente para Estrasburgo, com o intuito de estudar neurologia durante um período de aproximadamente um ano. O contacto direto com os personagens e laboratórios dos grandes centros científicos franco-alemães da altura marcaram-no de forma decisiva, abrindo novos horizontes e aguçando-lhe o espírito crítico. Aquando da estadia na capital francesa, morava numa pensão na Rua Fleurus, no Quartier Latin, tendo conhecido outros portugueses que por aí tirocinavam, não só na medicina (Bettencourt Rodrigues) mas também nas artes (Columbano).67 Nessa altura não eram muitos os médicos enviados em missão de estudo, sendo relativamente mais comum encontrar alunos pensionados pelo Estado para estudar Belas Artes do que qualquer outro ramo da ciência. No entanto, desenhava-se uma tendência migratória sazonal que pretendia suprir através de estágios e períodos de formação no estrangeiro o que ainda fazia falta no contexto nacional. Poucos anos antes, em 1878, o professor António Augusto da Costa Simões enviara um dos lentes substitutos da Faculdade de Medicina de Coimbra em comissão a França, Inglaterra e Alemanha para estudar a histologia e fisiologia dos centros nervosos. Tal como outros médicos coevos atraídos pela fisiopatologia do sistema nervoso, Ricardo Jorge sentia que faltava ainda o experimentalismo associado à prática clínica, elo que conseguiu buscar fora do país, introduzindo na escola portuense o que ainda há pouco começava a fazer cátedra nos outros estabelecimentos de ensino médico. A obra de Jean-Martin Charcot seduzia-o desde os tempos de aluno, o que se encontra patente não só na sua dissertação inaugural como na de Magalhães Lemos, a que 67 Cf. JORGE, Ricardo – De Ceca e Meca. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1961, p. 91 e 105. 355 presidira nesse mesmo ano.68 Daí que na Salpetrière frequentasse o curso ministrado pelo próprio Charcot, neurologista francês mundialmente famoso, enquanto em Estrasburgo esteve com os professores Friedrich Goltz, Ernst Hoppe-Seyler, Friedrich von Recklinghausen e Wilhelm von Waldeyer, num ambiente em que o experimentalismo fazia cátedra em todas as áreas da medicina.69 No caso das lições de Charcot, poucas coisas o terão deixado mais impressionado. A neurologia como ciência era apresentada numa aula feita espetáculo, exposta num cenário que pouco devia às apresentações teatrais mais concorridas: “A grande lição da sexta-feira, onde há dois ou três anos, acorreu o tout-Paris, desde o Paris des savants à lunettes ao Paris blaseur et blasê dos foyers e dos boulevards, quando Charcot desvendava os mágicos mistérios da histeria-major, essa lição é o que há de mais maravilhoso no seu género. No grande anfiteatro, às vezes repleto até à porta onde o larbin recebe os bilhetes; brilha apenas a luz crua do gaz; no palco, onde só é dado o ingresso aos discípulos propriamente ditos, erguem-se à guisa de estandartes, ou antes de bastidores, sobre esteios de madeira, grandes reproduções coloridas de esquemas, de traçados gráficos, de preparações microscópicas, etc.; (…) Entra o mestre, cortejado pelos seus clientes - clientela científica que ali bebe o seu saber, que o ajuda à conquista da glória, e de ali granjeará, graças ao nobre patrício da medicina francesa, a sua posição professoral segundo a graduação dos seus merecimentos. (…) A lição decorre viva e animada; às reproduções pela estampa e pela lousa sucedem-se os exemplares mórbidos, demonstrados e exibidos com um primor inexcedível. O tableau final é a projeção pela lâmpada de Dubosq de arco voltaico, de fotografias patológicas e de cortes microscópicos de medula ou cérebro.” 70 Cf. LEMOS, António de Sousa Magalhães e – A Região Psicomotriz: apontamentos para contribuir ao estudo da sua anatomia. Dissertação inaugural apresentada e defendida na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Porto: Tip. Ocidental, 1882. 69 Cf. JORGE, Ricardo – Relatório apresentado ao Conselho Superior de Instrução Pública na sessão de 1 de outubro de 1885 pelo vogal da secção eletiva […]. Porto: Imprensa Moderna, 1885. 70 JORGE, Ricardo – Lugares seletos – O professor de Medicina em Portugal em 1885. Boletim do Instituto Superior de Higiene Doutor Ricardo Jorge. Vol. II. Nº 5 (1947) 68 356 Por seu turno, em 1883 a universidade de Estrasburgo era considerada um centro de excelência da medicina alemã, e talvez mais do que em Paris, recolhe uma impressão muito positiva da metodologia científica e especialização do corpo docente: Waldeyer na anatomia, Goltz na fisiologia, Kussmaul na clínica, Recklinghausen na anatomia patológica. A patologia celular de Virchow que tinha atingido grande aceitação na altura em que cursara na EMCP, não só o seduzira como presidira à sua educação histológica. Da mesma maneira se encantou com a banalização da microscopia nos trabalhos de fisiologia experimental que presenciara na Alemanha: “Quando em janeiro de 1883 visitava Estrasburgo, simultaneamente glória militar e glória académica da nova Germânia bismarckiana, se me enchiam de pasmo a fábrica e a instalação dos seus admiráveis institutos, não menos me assombraram a assiduidade de trabalho dos sábios eméritos, selecionados pelo governo, para adornarem o renascimento da Universidade alsaciana sobre que paira a sombra luminosa do imortal Goethe. Eram dias feriados; mas Goltz com os adjuntos manejava a sua peritíssima experimentação no gabinete que se ostenta no edifício circundado por uma faixa de pedra onde o cinzel lavrou os nomes gloriosos dos grandes fautores da ciência fisiológica; Hope-Seyler, o labutador emérito da química biológica, não deixava adormecer as retortas no seu enorme laboratório; Recklinghausen, enfim, com os seus assistentes, no Instituto que partilha com Waldeyer, estava apegado à sua banca de microscopia.”71 Este período despendido em formação e aperfeiçoamento não era prática inusual par a época, sobretudo quando se tratava de professores das escolas médico-cirúrgicas. Ricardo Jorge será apenas um dos que começam 61. Extraído do Relatório apresentado ao Conselho Superior de lnstrução Pública, na sessão de 1 de outubro de 1885. 71 JORGE, Ricardo – Lugares seletos – O professor de Medicina em Portugal em 1885. Boletim do Instituto Superior de Higiene Doutor Ricardo Jorge. Vol. II. Nº 5 (1947) 62. Extraído do Relatório apresentado ao Conselho Superior de lnstrução Pública, na sessão de 1 de outubro de 1885. 357 a realizar esses périplos, que se vão tornando cada vez mais comuns nas décadas seguintes. Enviados no contexto de missões de aperfeiçoamento e formação, ou mesmo com o intuito de implementar novas práticas terapêuticas, as especialidades médicas emergentes de finais do século XIX difundiram-se e sedimentaram-se em larga medida à custa deste expediente formativo. Fruto da comparação que pôde estabelecer entre a realidade que experienciara em 1883 na digressão europeia e aquilo que era a formação médica e investigação laboratorial portuguesa, deu início a um curso de anatomia dos centros nervosos, criando o Laboratório de Microscopia e Fisiologia do Porto. “À fisiologia dediquei-me depois, à volta do estrangeiro – em 1883. Com a aquiescência do Azevedo Maia encomendei o material que existe ainda. Encetei os trabalhos e durante anos fazia eu, eu só, as demonstrações microscópicas e experimentais aos alunos do curso de fisiologia.”72 Os horizontes abertos pela digressão científica franco-alemã permitiram-lhe traçar um conjunto de comparações entre os modelos de ensino médico que vira e o que vivenciara no Porto, que muito contribuíram para a elaboração de um relatório particularmente voltado para a reforma do ensino médico. Também não poupou críticas à ausência de investimento em várias áreas, e em particular a histologia, que ele próprio tentara desenvolver desde 1882. Esta primazia de Ricardo Jorge no tocante à introdução da histologia e fisiologia experimental deve entender-se no contexto restrito da EMCP, por sua vez inserido numa conjuntura de valorização destas novas áreas do saber biomédico, então em voga. A modernização dos estudos médicos em Coimbra na década de 60 já tinha levado alguns elementos do corpo docente conimbricense a viagens de estudo pela Alemanha, França, Bélgica e Inglaterra, com o objetivo de 72 Missiva de Ricardo Jorge cit. in COELHO, Eduardo – Ricardo Jorge, o médico e o humanista. 2ª ed. revista e ampliada. Lisboa; Barcelona; Rio de Janeiro: Livraria Luso-Espanhola Lda, 1961, p. 170. 358 introduzir a histologia e a fisiologia como disciplinas de natureza experimental. Protagonizado na década de 60 por Augusto da Costa Simões e Costa Duarte da Universidade de Coimbra,73 o primado do pioneirismo na histologia aberto nessa altura acabaria por incluir posteriormente outros personagens como May Figueira, Joaquim Inácio Ribeiro, Gaspar Gomes, Augusto Rocha, Silva Amado, Filomeno da Câmara, António Plácido da Costa, Eduardo de Abreu, Lopo de Carvalho, Paula Nogueira e o próprio Ricardo Jorge. Por seu turno, há que entender que também a fisiologia experimental era ainda um ramo da ciência médica com expressão limitada no país, cujo ensino sistemático se encontrava temporalmente desfasado face à realidade francesa, alemã ou britânica. A viagem de estudo colocara-o em contacto direto com a ciência da objetividade: “A visita dos laboratórios e a frequência dos cursos indicaram-me as necessidades mais imediatas e os aparelhos mais indispensáveis. Quando regressei, o professor de fisiologia [Azevedo Maia], que ansiava por se desviar da rota batida do subjetivismo tradicional, e eu apresentamos ao Conselho uma lista dos instrumentos que deviam ser imediatamente comprados. Uma vez empenhados neste caminho, formava-se um bom núcleo de arsenal de experimentação, e no penúltimo ano letivo inaugurava-se pela primeira vez em a nossa escola a fisiologia prática.”74 Se a primeira iniciativa para criar uma cadeira de histologia foi feita alguns anos antes em Coimbra pela mão de Costa Simões, em 1885 Ricardo Jorge continuava a lutar pelo estabelecimento de uma cadeira igual no curso da escola portuense, onde se reconhecia que “A mísera ciência dos Bichat Cf. SIMÕES, António Augusto da Costa – Relatórios de uma viagem científica. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1866. Trata-se do relatório das atividades e ensinamentos recolhidos nas viagens encetadas por Costa Simões e Costa Duarte a partir de 18 de agosto de 1864. O objetivo do périplo que os levou pela Alemanha, França e Suíça, ajudou a desenvolver o ensino da histologia e fisiologia na Faculdade de Medicina. 74 JORGE, Ricardo – Relatório apresentado ao Conselho Superior de Instrução Pública na sessão de 1 de outubro de 1885 pelo vogal da secção eletiva […]. Porto: Imprensa Moderna, 1885, p. 119. 73 359 e dos Virchow não tem ainda direito de cidade no curso escolar; e como a lei lhe não consagrava existência de direito, também não tinha existência de facto. Bem poucos anos nos separam da época em que o pobre microscópio jazia inerte e quase totalmente desconhecido”.75 Referia-se, pois, ao uso sistemático do microscópio em trabalhos de histologia com que vira trabalhar Recklinghausen e Waldeyer nos seus laboratórios de anatomia patológica. Não se restringindo às questões formativas, as críticas que formulou também apontavam para outros problemas, entre os quais a remuneração dos docentes e as condições técnicas ligadas ao ensino e investigação. As dissertações inaugurais que surgiam todos os anos da pena dos finalistas das escolas médico-cirúrgicas também não foram poupadas, revelando atropelos sérios, tanto no mérito quanto na ética dos seus relatores: “Desventuradamente para nós a grande massa das dissertações reduz-se a papel estragado no prelo e que não pode senão a baixa serventia. São coisas indignas de ler-se, que desdouram não só o neófito como o estabelecimento de que o deixa habilitar à posição médica. O júbilo de contar mais uma tese de merecimento não é muito vulgar para a escola do Porto. (…) O ideal do fazedor da tese reduz-se a engendrar uma mayonnaise esfarrapada dos ripanços que pode haver à mão; a audácia e o menosprezo chegam a tal ponto de traduzir barbaramente qualquer dissertação francesa, a ver se logram, como tantas vezes conseguem, presidente e júri. Destas infandas farsas podia eu oferecer picarescos exemplos.” 76 Em consonância direta com a polémica que vai levantando ao apontar estes e outros problemas de ordem académica, cresce também em prestígio, tornando-se uma voz de clara proeminência e destaque no mundo da ciência em geral, e na medicina em particular. JORGE, Ricardo – A Escola Médico-Cirúrgica do Porto. In ALVES, Jorge Fernandes (coord.) – O Signo de Hipócrates. O Ensino Médico no Porto segundo Ricardo Jorge em 1885. [s.l.]: Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, 2003, p. 137. 76 JORGE, Ricardo – A Escola Médico-Cirúrgica do Porto. In ALVES, Jorge Fernandes (coord.) – O Signo de Hipócrates. O Ensino Médico no Porto segundo Ricardo Jorge em 1885. [s. l.]: Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, 2003, p. 112-114. 75 360 4 - Viajando pela Europa…e não só… A partir de 1909 Ricardo Jorge inicia uma série de viagens regulares ao estrangeiro, sobretudo na Europa. Às que se realizaram em contexto oficial na qualidade de representante português no Office, na Organização de Higiene da SDN, ou em congressos internacionais de medicina, acrescem aquelas que realizou por motivos de saúde ou em contexto de lazer. O contexto inicial dessas digressões prende-se sobretudo com a participação no Office, reuniões regulares que a partir de 1912 o levariam com frequência a Paris e Genebra, motivando a escrita de uma série de impressões de viagem, muitas delas compiladas em volumes de grande aceitação junto do público. No pós-guerra essas viagens levam-no a paragens mais distantes. Para além das passagens pela França e Suíça nas primeiras duas décadas do século XX, nos anos 20 e 30 percorre outros países: Espanha, Reino Unido, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria, Mónaco, Itália, seguindo-se a Jugoslávia, a Roménia, o Egito, a Palestina, a Síria e Marrocos. Desde as memórias passadas numa Paris marcada pelo espectro da guerra às referências aos períodos de convalescença na Suíça, passando pelas digressões culturais a museus, galerias de arte e bibliotecas de várias cidades europeias, pelas viagens realizadas em contexto de congressos sanitários internacionais, de reuniões do Comité de higiene da SDN, ou apenas pelas vistas turísticas, viajar tornou-se algo de banal e para um Ricardo Jorge “vagamundo”. Resultaria daqui um conjunto heterogéneo de narrativas e impressões de viagem dispersas por vários periódicos, “(…) onde receberam por vezes um acolhimento inesperado, (…)”77. Posteriormente coligidas em forma de livros adendados com artigos inéditos e anotações diversas, entre 1923 e 1925 saem do prelo três dessas 77 JORGE, Ricardo – Canhenho dum Vagamundo. Impressões de viagem. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1923, p. VIII. 361 coletâneas: Canhenho dum Vagamundo (1923), que conhece um sucesso assinalável obrigando a uma 2ª edição em 1924, seguido de Passadas de Erradio (1924) e Sermões dum Leigo (1925). As Passadas de Erradio conhecem uma 2ª edição em 1926. Em 1961 seria dada à estampa uma obra póstuma com relatos de viagem ainda inéditos ou ainda não reunidos em livro, com o sugestivo título: De Ceca e Meca. Se tivermos em consideração as tiragens e as diferentes edições, verificamos que constituíram o conjunto de obras mais lido pelo grande público: Canhenho dum Vagamundo contou com uma tiragem de 7 000 exemplares, Passadas de Erradio com 4 000 e os Sermões dum Leigo com uma impressão de 2 000 exemplares. Entre museus, monumentos e catedrais, descreveu com minúcia várias obras de arte dispersas por vários museus europeus e do Médio Oriente. Granada, Toledo, Córdova, Madrid, Barcelona, Paris, Lyon, Bruxelas, Haia, Amsterdão, Leiden, Berlim, Dresden, Londres, Turim, Florença, Veneza, Nápoles, Istambul, Jerusalém e Cairo. Mais do que uma catarse, as viagens e a contemplação do belo completavam-lhe a existência. “Neste declinar melancólico dos anos em que a emotividade externa se desgasta, não há nada que mais gratamente me comova do que o espetáculo das grandes obras de arte. Sensibilizo-me ao máximo ver-me no recinto da zeca de Córdova, da Alhambra de Granada, da mesquita de Omar em Jerusalém, de Santa Sofia de Bizâncio, de S. Marcos de Veneza…Ao primeiro rodar de vista pela sala dos primitivos em Bruxelas as pálpebras de puro gozo se humedeceram.”78 Pelos locais onde passava dedicava-se a recolher postais que depois enviava à esposa. Espanha, França, Mónaco, Suíça, Reino Unido, Alema- 78 JORGE, Ricardo – Um vôo a Londres. VI – Pelos Museus. In JORGE, Ricardo – Canhenho dum Vagamundo. Impressões de viagem. 7º Milhar. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1924, p. 85. 362 nha… a mera passagem de olhos pela coleção de postais, cartas e telegramas escritos nesses lugares denota o particular carinho que dedicava à mulher Leonor.79 Em fevereiro de 1922 viaja de Trieste para Alexandria, demandando as terras do próximo oriente. Fê-lo em conformidade com a colaboração da Sociedade das Nações na defesa da europa contra a peste, a cólera, e o perigo das peregrinações a Meca levarem a epidemia de cólera os países de origem. Neste contexto visita o Cairo, Jerusalém, Damasco, Beirute e Constantinopla. Em julho de 1922 partia para Londres onde participaria no Congresso de História da Medicina que teve lugar na Royal Society of Medicine. Nesse mesmo ano não deixaria de salientar a depreciação monetária do escudo quando comentava o valor pago pela passagem de uma das suas muitas viagens: “Vou ao vizinho escritório do Lloyd receber o bilhete, mandado entregar já pago pela Direção Médica da Sociedade das Nações. Custou a módica quantia de 41 libras esterlinas, correspondentes a três dias previstos de viagem, quer dizer, uma diária aproximada de 800 escudos do nosso depreciado numerário. É de arrepiar!” 80 No mesmo ano, ao visitar o British Museum de Londres voltava a apontar que “(…) mais do que uma vez obtive a reprodução de peças interessantes para os meus trabalhos de amador da paleoliteratura, copiadas a rigor (…) a preços acessíveis antes da era nefasta da desvalorização da moeda nacional.”81 Mesmo assim, nada que se compare à depreciação do marco alemão, que em novembro de 1923 o levava a sublinhar: “não sei de exemplo mais clamante do grau de delírio atingido pela mentalidade europeia de após-guerra do que a seriedade aritmética com que se exprime em unidades seguidas de não sei quantos zeros o câmbio alemão e à sua semelhança outros câmbios avariados.”82 Fosse pela presença regular no Office, fosse pelos diversos congressos e eventos a que atendeu, as viagens tornaram-se parte integrante do 79 Cf. BNP. Esp. E18/Cx. 1, 2 e 27. JORGE, Ricardo – De Ceca e Meca: impressões e estudos de viagem. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1961. 81 JORGE, Ricardo – Um vôo a Londres. VI – Pelos Museus. In JORGE, Ricardo – Canhenho dum Vagamundo. Impressões de viagem. 2ª Edição corrigida. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1924, p. 78. 82 JORGE, Ricardo – Aspetos de Paris. In JORGE, Ricardo – Passadas de erradio. 2ª edição, revista. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1926, p. 167. 80 363 ofício de sanitarista. Em 1933, contando já 75 anos de idade, emprestounos o breve desabafo de um dos seus anos de maior movimento: “Vim de arrancada o verão passado pelo Oriente-expresso, desde Bucareste a Marselha, saltando de congresso em congresso, onde tinha de ser presente e falante por imposição de camaradagem e colaboração. Na larguíssima estirada, em que as horas se sucedem mais lentas ainda que as tradicionais noites de Lamego, anda o pensamento destravado aos trambolhões, joguete de tudo quanto lhe jorra o subconsciente ou os olhos lhe fazem á flux de tanta estranha terra atravessada.”83 5 - No mundo da saúde internacional: o Office International d`Hygiène Publique No seguimento das Conferências Sanitárias Internacionais do século XIX, a partir de 1912 Ricardo Jorge passa a representar Portugal no novo organismo internacional dedicado ao acompanhamento dos problemas sanitários e a sua epidemiologia, o Office Internationale d´Hygiène Publique (OIHP). Nessa casa internacional, dedicou-se a extensos trabalhos epidemiológicos, em consonância com os objetivos das convenções sanitárias, realizando um extenso trabalho epidemiológico.84 Paralelamente, continuou no Instituto Central de Higiene em Lisboa, onde era diretor. Na verdade, o ICH tornou-se na plataforma onde procedeu ao desenvolvimento de muitos dos relatórios que apresentava no Office. A criação do Office Internacional d´Hygiène Publique estava ligada à anterior obra das Conferências Sanitárias Internacionais que decorreram ao longo do século XIX, e cujo objetivo era o de regulamentar a profilaxia internacional das grandes doenças epidémicas, cuja profilaxia se regia por JORGE, Ricardo – Soalheiras e Desportes. Diário de Lisboa. Edição mensal. 1º Ano. Nº 3 (1 a 30 de julho de 1933) 27. 84 Alguns dos vários trabalhos elaborados por Ricardo Jorge para o “Office” encontram-se referenciados em SOCIETÉ DES NATIONS – Bulletin de L´Organisation d´Hygiène. Bibliographie des travaux techniques de L´Organisation d´Hygiène de la Société des Nations, 1920-1931. Vol. XI. Genève: 1945, p. 69, 107, 141, 150 e 205. 83 364 medidas tomadas nas fronteiras marítimas e terrestres.85 No entanto, este organismo internacional é o resultado dos efeitos algo limitados obtidos nessas conferências. Apesar de assentarem na ideia que a saúde dos povos devia ser tratada internacionalmente pelos governos, não se mostraram particularmente eficazes na regulamentação da sanidade internacional. Em número de 14, decorreram entre 1851 e 1938, tendo como objetivo regulamentar a profilaxia internacional das grandes doenças epidémicas.86 As primeiras 6 foram dominadas praticamente pelos problemas do contágio e difusão da cólera, revelando-se infrutíferas no que tocava às medidas a adotar, fruto da falta de entendimento entre os países. Seguiram-se mais 4 antes do final do século, estabelecendo-se as primeiras regras de quarentena internacional na Conferência de Veneza (1892). Nas últimas cinco conferências foram estabelecidas convenções internacionais impondo a aplicação de medidas comuns pelos signatários. Apesar das boas intenções, as medidas tomadas permaneceram largamente defensivas e limitadas no seu espectro. A Conferência de 1903 que teve lugar em Paris, recomendou a criação de um organismo internacional voltado para o acompanhamento dos problemas sanitários e a sua epidemiologia, que veio a chamar-se Office Internationale d´Hygiène Publique. Na Conferência de Roma de dezembro de 1907 os representantes de 13 países, incluindo Portugal, assinaram o texto fundador do OIHP, com sede em Paris. No entanto, a adesão de Portugal só se tornaria definitiva em 1911. Tendo começado a funcionar em Paris, foi a primeira organização sanitária internacional, não regional. Inicialmente formada por 12 países, em 1933 contava já com 51 membros, fruto de sucessivas adesões. O objetivo principal era o de recolher e divulgar as informações, factos e documentos provenientes do mundo inteiro que pudessem interessar à saúde pública junto dos Estados participantes, especialmente no que concerne às doenças infeciosas dominantes e o seu combate (cólera, peste, febre amarela, as febres tifoide e paratifoides, as doenças venéreas, varíola, brucelose tuberculose, lepra e outras). Não se ocupou Cf. OFFICE INTERNACIONAL D`HIGIÈNE PUBLIQUE – Vingt-cinq ans d`activité de L`Office International D`Hygiène Publique.1909-1933. Paris: OIHP, 1933, p. 1. 86 Paris (1851 e 1859), Constantinopla (1868), Viena (1874), Washington (1881), Roma (1885), Veneza (1892), Dresden (1893), Paris (1894), Veneza (1897), Paris (1903), Paris (1911-12, 1926 e 1938). 85 365 somente da luta contra as causas das epidemias, mas também com a poluição e purificação da água de consumo e outros problemas de higiene pública. O comité permanente, composto por delegados de todos os países reunia 2 vezes por ano em sessões com a duração aproximada de 10 dias., geralmente em abril ou maio e em outubro. As reuniões comportavam as sessões plenárias e as sessões das diversas comissões constituídas para examinar mais aprofundadamente as questões mais importantes e sobre as quais era necessário apresentar estudos, relatórios ou propostas de resolução a apresentar aos diferentes governos. Entre abril de 1914 e junho de 1919 o comité permanente não reuniu.87 Apesar de não ser um centro de descobertas, foi um centro de análise dos problemas existentes, funcionando como um vasto observatório mundial, registando os fluxos da varíola, da cólera, da febre-amarela, estabelecendo relações permanentes com os postos sanitários e os gabinetes de quarentena, particularmente vigilantes por ocasião dos grandes movimentos migratórios ligados às peregrinações, como a de Meca, e os fluxos de emigração para os Estados Unidos. Vigiava também a evolução do paludismo tanto nas zonas tropicais como na Europa, fornecendo conselhos para a desratização dos navios e quanto à maneira de fabricar e de conservar as vacinas. Regista ainda os progressos verificados na luta contra as grandes epidemias microbianas e parasitárias da África ou do ExtremoOriente.88 A missão consagrada ao Office e publicada nos seus estatutos orgânicos, colocava em primeiro plano as Convenções Internacionais relativas à saúde pública e todas as atividades que se lhe relacionem, mas também recolher e levar ao conhecimento dos Estados membros os factos e documentos de caráter geral que interessam à saúde pública. Para isso, desempenhou um papel de relevo na elaboração e aplicação das grandes convenções sanitárias e outros acordos internacionais que tocam as questões de ordem sanitária, documentação epidemiológica e científica sobre as doenças visadas pelas convenções. 87 Sobre a criação, estatutos e atividade do OIHP, veja-se: OFFICE INTERNACIONAL D`HIGIÈNE PUBLIQUE – Vingt-cinq ans d`activité de L`Office International D`Hygiène Publique.1909-1933. Paris: OIHP, 1933, p. 1-8. 88 OIHP – Vingt-cinq ans d´activité. L´office international d´hygiène publique. 1909-1933. Paris: Office International d´Hygiène Publique, 1933, p. 1-8. 366 Sedimentados os conhecimentos progressivamente adquiridos sobre as doenças infeciosas dominantes, a Conferência de Paris (1911-12) elaborou nova convenção sanitária, conhecida como a Convenção Sanitária Internacional de 1912, e na Conferência seguinte, em 1926 estudaram-se as modificações a introduzir, provenientes das comissões internacionais e da nova Organização de Higiene, instituição entretanto criado pela SDN. O artigo 23 da Carta da Organização de Higiene estipulava que os Estados membros da SDN se esforçariam por tomar as medidas de cariz internacional para prevenir e combater as doenças, sobretudo as de natureza infetocontagioso.89 A Conferência Sanitária Internacional de Paris de 1911-12 reuniuse para determinar as medidas a tomar contra o problema da marcha invasora da cólera (mas abordando também a peste e a febre-amarela), completando uma regulamentação sanitária marítima internacional que até então não tinha sido capaz de dar resposta aos problemas de contágio internacional e evitar os entraves desnecessários ao comércio marítimo e circulação de passageiros. Nessa altura defrontaram-se visões distintas sobre a abordagem das crises epidémicas: os defensores das medidas quarentenárias e os defensores das medidas de desinfeção, opondo os formalismos históricos das vetustas práticas sanitárias marítimas às novas aquisições epidemiológicas, sancionadas pela experiência e pela observação. Esse “conclave cosmopolita da higiene”,90 como Ricardo Jorge lhes chamava, era composto por médicos higienistas, epidemiologistas e especialistas em estatística, na sua maioria professores das faculdades de medicina ou escolas de higiene dos estados, sobretudo diretores gerais e chefes de supervisores da administração higiénica dos seus países de origem. 91 Por essa razão, a OH tinha fundamentalmente uma ação educativa feita através de publicações, estudos epidemiológicos, viagens de estudo e ensino, feitos no âmbito da medicina preventiva e em colaboração com as Cf. SOCIETÉ DES NATIONS – L´Organisation d´Hygiène. Genève: Section d´information, 1931. 90 Cf. esta interessante expressão no prefácio que fez a MONIZ, Egas – Júlio Dinis e a Sua Obra. Com inéditos do romancista e uma carta-prefácio de Ricardo Jorge. Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1924. 91 JORGE, Ricardo – De Ceca e Meca: impressões e estudos de viagem. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1961, p. 126. 89 367 administrações sanitárias dos diversos países. O combate às doenças, sobretudo as de caráter exótico e epidémico assumiu uma dimensão internacional, assente num espírito de colaboração entre estados. Harmonizaramse as medidas profiláticas entre os signatários das convenções, tornando-as obrigatórias no controle das relações sanitárias entre os países. Doente desde 1908, Ricardo Jorge torna-se num homem cronicamente enfermo a partir de 1911, razão pela qual não consegue participar na Conferência Internacional de Paris de 1911-12, na qual se fez substituir por António Augusto Gonçalves Braga, na altura Guarda-mor de saúde do porto de Lisboa.92 No entanto, manteve-se em constante comunicação postal e telegráfica com António Braga, o seu substituto, enviando conselhos nas propostas a apresentar e as reservas nas que o deveria fazer. Inicialmente de forma indireta, e a partir de 1912 sempre presente, Ricardo Jorge tomou parte ativa na revisão da Convenção Sanitária Internacional em vigor, bem como nos debates que tiveram lugar no Comité de Higiene da SDN no pós-guerra. Ele próprio acabaria mesmo por reconhecer, e com justiça, que na demorada elaboração da convenção sanitária internacional foi a participação portuguesa, britânica e norte-americana que mais contribuíram para o protocolo final. 93 Desde os primeiros anos tornou-se notado: em 1911 relatou o caso da epidemia de cólera da Madeira, reforçando a necessidade de introduzir a inspeção bacteriológica dos passageiros.94 Este trabalho foi suficientemente notado para ser referenciado na Revue d'hygiène et de police sanitaire.95 Para além deste, também o relatório que apresentou em 1912 sobre a febre tifoide parece ter deixado uma impressão muito positiva junto dos seus Cf. BRAGA, António Augusto Gonçalves – “A Conferência Sanitária Internacional de Paris de 1911-12. Relatório”. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Secção de Higiene. Vol. II. Fasc. 1º (1916) 16-65. 93 Cf. JORGE, Ricardo – A propósito de Pasteur: discurso proferido em comemoração do centenário pastoriano na Faculdade de Medicina de Lisboa, aos 25 de Abril de 1923. Lisboa: Portugália, 1923, p. 69. 94 Cf. JORGE, Ricardo – Les bacilliféres de la Zaire et le système défensif contre le choléra par le contrôle bactériologique. Lisboa: Tip. Mendonça, 1911. 95 Cf. “Revue des journaux – Les bacillifères de la canonnière Zaïre et le système défensif contre le choléra par le contrôle bactériologique, par Ricardo Jorge. (Annales de l'Institut Camara Pestana de Lisbonne, 1911, mémoire de 20 pages). Revue d'hygiène et de police sanitaire. N° 34 (1912) 1059-1061. 92 368 confrades. Contra os receios apontados por Calmette e Pottevin acerca da regular cloragem da água de consumo público, que preferiam aplicar esse processo apenas em casos de grave surto epidémico de febre tifóide dada a alteração do sabor e odor da água, Ricardo Jorge contrapôs a validade do método como elemento profilático definitivo, comprovando a sua opinião com os resultados obtidos em múltiplos casos a nível internacional. 96 Aquando da pandemia gripal de 1918-1919, o inquérito que elaborou no seio da Direção Geral de Saúde com o propósito de recolher informações sobre a epidemia junto dos sanitaristas portugueses, acabaria por servir de base ao inquérito internacional do OIHP.97 Rapidamente faz amizades no seio de um ambiente em que a ciência higiénica irmanava os cientistas. Como Almeida Garrett relatou, “Desde então, nunca mais Ricardo Jorge veio de Paris ou de Genebra sem tarefa com que entreter os sócios no intervalo das sessões.”98 Fruto do prestígio granjeado e do destaque que assumia nas reuniões, em 1923 foi eleito delegado coletivo do Office no Comité de Higiene da SDN, eleição que se repetiu em 1926 com o mesmo resultado. A importância desta eleição prende-se com a natureza da reorganização da saúde coletiva internacional do pós-guerra. A Organização de Higiene da Sociedade das Nações era composta por um Comité de Higiene, por um Conselho consultivo e por uma Secção de Higiene do secretariado. O Comité de Higiene compreendia uma quinzena de membros escolhidos pela sua competência científica ou administrativa em saúde pública. Reunia-se duas vezes por ano, e tinha por missão principal estabelecer o programa de trabalhos da Secção de Higiene. Devia ainda exprimir as recomendaçãoes sobre as questões técnicas que o Conselho ou a assembleia da SDN sujeitassem ao seu exame. Para o estudo aprofundado dos problemas que lhe eram Cf. JORGE, Ricardo – A epidemia tífica de Lisboa em 1912: I - Relatório do prof. Ricardo Jorge. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Vol. 1. Fasc. 2 (1913) 142. 97 Cf. JORGE, Ricardo – La Grippe. Rapport préliminaire présenté à la Commission Sanitaire des Pays Alliés, dans sa session de mars 1919. Lisbonne: Imprimerie Nationale, 1919. 98 GARRETT, António de Almeida – Ricardo Jorge e o Porto. Lisboa Médica. Ano XVI. Nº 9 (setembro 1939) 580. 96 369 confiados ou que decidissem abordar, nomeavam comissões e sub-comissões técnicas ou convocavam conferências de peritos.99 O Conselho consultivo da OH da SDN reuniu-se em Paris em 1937, 1938 e 1939, agrupando os membros do Comité de Higiene da SDN e do comité permanente da OIHP. A eleição de Ricardo Jorge para esse “oráculo délfico dos destinos dos povos”100 levaram-no a realizar um trabalho intenso em prol da preparação na nova convenção. A Conferência de 1926 elaborou uma nova convenção que prescrevia a notificação das epidemias de varíola e tifo exantémico, ao lado da notificação dos casos reconhecidos de cólera, peste e febre-amarela.101 O contacto com os ditames da sanidade internacional do pós-guerra serviu-lhe inclusive de mote à reforma de 1926, tal como se pode ler no texto preambular do decreto nº 12 477. Parece claro que o que ditou a estrutura da reforma de 1926 foi a influência dos ditames de um serviço de saúde pública assente nos princípios modelares da higiene social estruturada nas instâncias internacionais: “A debelação dos flagelos que perpétua ou episodicamente nos afligem não obedece apenas à necessidade humana de valermos às desgraças mórbidas da gente portuguesa. Esta cruzada é imposta pelas próprias conveniências materiais e morais da Nação como satisfação de deveres, naturais uns, forçados outros, para com as outras nações. Estamos chegados à época de um novo direito das gentes, de uma moralidade física geral, em que, por vivas que sejam as preocupações de ordem política e coletiva, ascendeu entre elas ao lugar das mais instantes a da solidariedade higiénica internacional.”102 99 Cf. Bulletin de L`Organisation D`Hygiène. Bibliographie des travaux techniques de L`Organisation D`Hygiène de la Société des Nations, 1920-1945. Vol. XI. Genève: Société des Nations, 1945, p. 6. 100 JORGE, Ricardo – Passadas de erradio. 2ª edição, revista. Lisboa: empresa Literária Fluminense, 1926, p. 85. 101 A última conferência reuniu-se em Paris (1938) e ocupou-se apenas do Comité Sanitário Marítimo que continuava a funcionar no Egito, e que foi nessa altura dissolvido. 102 Decreto nº 12 477. Diário do Governo. Iº Série. 227 (12 de outubro de 1926) 15191530. 370 No Comité de Higiene da SDN assistiu-se a um intercâmbio de ideias e conhecimentos entre médicos e técnicos de saúde pública numa escala até então inexistente. A higiene era a ciência agregadora, a massa que dava consistência ao discurso em redor da estruturação das medidas de saúde pública internacional, e por consequência, dos desafios lançados aos governos dos países que integravam esse organismo internacional. Finda a grande guerra, nos anos que se seguiram a higiene saía de uma “prova de fogo”. Num discurso lido na sessão de 1920 da Conferência Sanitária dos Países Aliados, Ricardo Jorge patenteava a mudança do pós-guerra, expressa no reforço da “ciência vitoriosa” da higiene, que ultrapassou o “ângulo restrito da medicina preventiva,” tornando-se “uma ciência social, visando o homem coletivo na sua integridade física”.103 6 - Contributos ricardianos na “Cosmopolis sanitária” A matriz e variedade das temáticas que Ricardo Jorge abordou no período entre guerras refletem os problemas impostos pela necessidade de controlo internacional de doenças contagiosas, algumas delas de prevalência tropical, mas com capacidade de disseminação através da circulação de pessoas e mercadorias. A par da peste, cólera, febre-amarela, dengue e da pandemia de influenza, emergiam ainda os problemas menos candentes mas mesmo assim não ignorados: os surtos de febre escaro-nodular, tifo, espiroquetose, alastrim, varíola, acompanhados pelos problemas associados aos processos de inoculação preventiva (encefalites pós-vacinais). Uma das suas maiores contribuições para a miríade de documentos e recomendações que tiveram lugar no palco da diplomacia sanitária, prendeu-se com a epidemiologia das doenças pestilenciais (peste, cólera e febreamarela) e com os contributos que aportou ao texto final do protocolo da Convenção Sanitária Internacional de 1926. Estes contributos, reservas, propostas e sugestões encontram-se documentados na coletânea de textos 103 JORGE, Ricardo – Higiene militante. Sep. de A Medicina Contemporânea, 1920. Lisboa: Tip. Adolfo de Mendonça, 1920, p. 7. (Tradução nossa). 371 que reuniu sob o título Les pestilences et la Convention Santaire Internationale (1926).104 Nessa extensa síntese publicada nos Arquivos do Instituto Central de Higiene, agrupou todas as suas contribuições para o tema entre 1919 e 1926. Das múltiplas intervenções que teve no Office desde 1920, as relativas à nova convenção que se pretendia elaborar debruçaram-se sobre a flexibilização das medidas profiláticas, confirmando-se a orientação inovadora de Ricardo Jorge no tocante à regulamentação da sanidade marítima, feita por oposição direta às excessivas medidas quarentenárias que tentavam evitar a todo o custo a importação de doenças exóticas. Esta atitude de oposição aos excessos das medidas profiláticas quarentenárias foi recuperada do articulado legal do regime sanitário marítimo português de 1901 e precursora da Convenção de Paris de 1903, onde algumas das cláusulas reproduziam as disposições legislativas portuguesas. Relativamente às convenções protocolares aceites a partir de 1926, são de referir a notificação obrigatória, a publicidade das declarações de infeção, os períodos de contaminação, a classificação dos navios, o tratamento das mercadorias e o regime contra a febre-amarela, feitas sempre no judicioso sentido de evitar as medidas tidas por excessivas ou pouco práticas. Estas questões, tantas vezes discutidas e alvo de maiores ou menores resistências entre os delegados, permitiramlhe lançar várias propostas, muitas das quais acabariam por ser adotadas.105 O alastrim, a varíola e as encefalites pós-vacinais foram temas que fizeram correr muita tinta, sobretudo pelo facto das encefalites pós-vacinais serem assunto completamente desconhecido até então. Entre outubro de 1924 e 1929 apresentou várias notas e relatórios, nos quais é possível analisar as sucessivas fases do recrudescimento da varíola e das encefalites. A nota apresentada em outubro de 1924 Sur L`Alastrim et la Variole106 seria JORGE, Ricardo – Les pestilences et la Convention Sanitaire Internationale”. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Vol. 3. Fasc. 1 (1926) 1-107. 105 Cf. JORGE, Ricardo – Déclarations et propositions générales a la Conférence Sanitaire Internationale. Procès-verbaux de la Conférence Sanitaire Internationale. 1926, idem – Contre les mesures quarantenaires concernant la fièvre jaune. Procès-verbaux de la Conférence Sanitaire Internationale. 1926 e idem – Réserves faites par le Plénipotentiaire du Portugal á la Conférence Sanitaire. Procès-verbaux de la Conférence Sanitaire Internationale. 1926. 106 Cf. JORGE, Ricardo – Sur l'Alastrim et la Variole. Sep. de Bulletin mensuel de l'Office International d' Hygiène Publique. T. XVI. Fasc.10, année 1924. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1924. 104 372 traduzida e reimpressa na revista The Lancet,107 tendo suscitado muitos comentários e críticas. A cada passo o assunto era abordado no Office. Quase na mesma altura surgem casos de encefalite pós-vacinal em Inglaterra, na Holanda e na Suíça, o que espoleta a realização de um plano de inquéritos e pesquisas lideradas por uma comissão que reúne em Haia em janeiro de 1926 sob os auspícios da SDN. Recaiu sobre Ricardo Jorge a realização do inquérito, bem como preparar e dirigir os trabalhos de tiveram lugar em Haia. Seguiu-se uma conferência em Berlim em janeiro de 1927. Daí resultou num extenso e minucioso relatório, composto por várias notas e sucessivos relatórios onde abordou os fatores do agravamento da varíola no mundo.108 As dúvidas e o contraditório deixariam o tema permaneceria em aberto, o que acompanhado do recrudescimento de casos acabaria por suscitar mais relatórios nos anos subsequentes, incluindo um novo plano de pesquisas.109 O relatório de 1927 sobre a vacina antivariólica teria repercussões posteriores à data da primeira publicação. Com efeito, foram as opiniões de Ricardo Jorge e G. Stuart que, nos relatórios publicados, o primeiro em 1927 e o segundo em 1946, consideravam como pouco provável o papel direto do vírus vacinal na determinação das encefalites. Mas o problema persistia: seriam estas encefalites infeções latentes desencadeada pela vacinação ou tratava-se de uma contaminação do vírus vacinal jeneriano pelo da encefalite? Realizou-se um inquérito junto dos institutos produtores da vacina acerca dos seus métodos de produção e sobre a titulação da Cf. JORGE, Ricardo – Alastrim and Variola. Note presented to the Committee of the Office International d'Hygiène Publique in its session of October, 1924. Reprinted from The Lancet, Dec. 20th 1924 (p. 1317) and Dec. 27th (p. 1366). 108 Cf. JORGE, Ricardo – Alastrim et variole. Vaccine, Encéphalites Postvaccinales. I. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Vol. 3. Fasc. 2 (1927) 1-181. 109 Cf. JORGE, Ricardo – Nouveaux cas d´Encéphalite post-vaccinale. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1927 e 28, idem – Les types varioliques el les encéphalites. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1928, idem – Les Encéphalites post-vaccinales. Conclusions et doctrines. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1928, idem – Les Cas du Tuscania et la Variole anglaise. Procèsverbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1929 e ainda idem –Plan de recherches sur les questions concernant la Variole. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1929. 107 373 linfa vacinal. A nova comissão da varíola e da vacinação do Comité permanente do OIHP seria novamente dirigida por Ricardo Jorge, que em outubro de 1931 apresenta novo relatório sobre as encefalites pós-vacinais nas suas relações com a vacinação e com as encefalites pós infeciosas. 110 Esse relatório seria traduzido e republicado na revista The Lancet.111 Apesar de ele próprio se considerar mais acarinhado nas instâncias da saúde internacional do que no seu próprio país, a verdade é que o trabalho que realizava no Office e na OH era particularmente notado por alguns amigos mais chegados, senão por todos aqueles que se encontravam cientes do momento de transição que a saúde coletiva internacional atravessava no período entre guerras. Mesmo os personagens de outros quadrantes políticos o reconheciam, como o exilado D. Manuel II, ao sublinhar que era na “(…) Liga das Nações, onde dá lustre e honra com a ciência o nome do nosso querido mas desgraçado Portugal (…)”.112 A 15 de julho de 1932, Fidelino de Figueiredo escreveu a Ricardo Jorge, dizendo-lhe: “(…) tenho seguido as atividades da primeira figura da nossa medicina, verdadeiro embaixador acreditado em todos os centros intelectuais. Os folhetins de Alfredo Pimenta deram-me prazer como visão de conjunto dum vasto, intenso e original labor.”113 O mesmo sucedia com Bernardino Machado, que no mês seguinte referia ao seu “querido amigo” que “Felizmente os seus belos escritos trazem-me sempre notícias que me são gratíssimas. Mas nem por isso deixei de sentir não o poder ver na sua passagem por França. Há quantos anos não nos encontramos! (…)”114 110Cf. JORGE, Ricardo – Les encéphalites post-vaccinales dans leurs rapports avec la vaccination et avec les encéphalites post-infectieuses et disséminées aiguës. Rapport de la Commission de la Variole et de la Vaccination. Sep. de Bulletin mensuel de l'Office International d'Hygiène Publique. T. XXIII. Fasc. 12, année 1931. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1931. 111 Cf. JORGE, Ricardo – Post-vaccinal encephalitis. Its association with vaccination and with post-infectious and acute disseminated encephalitis. Reprinted from The Lancet January 23rd, 1932 (p. 215), and 30th (p. 267). 112 Missiva de D. Manuel II, escrita em Londres em 01/11/1925. Cf. BNP Esp E/18 Cx 1. 113 Missiva de Fidelino de Figueiredo. Cf. BNP Esp E/18 Cx 1. 114 Missiva de Bernardino Machado enviada de Vigo em 08/08/1932. Cf. BNP Esp E/18 Cx 1. 374 As epidemias de peste, temática que o tornara internacionalmente conhecido desde 1899, constituiriam a base de alguns trabalhos de síntese que apresenta no Office. Para além dos relatórios sobre pequenos surtos pestíferos em Alfama (1920)115 e Alcochete (1923)116, elaboraria trabalhos de maior fôlego, quase todos destinados a engrossar a bibliografia epidemiológica da peste em contexto internacional: Les Faunes régionales des Rongeurs et des Puces dans leurs rapports avec la Peste (1924), a Summa epidemiologica de la peste. Épidémies anciennes et modernes (1933), La peste en Angola (1935), La peste africaine (1935) e ainda Les «Rodentia» domestiques et sauvages dans l'Evolution séculaire et mondiale de la Peste. (1935), este último apresentado no Congresso Internacional de Zoologia de Lisboa. De todos eles, talvez o mais interessante do ponto de vista epidemiológico seja a Summa epidemiologica de la peste, uma vez que é nesse trabalho que estuda os dois ciclos de peste na Europa, sublinhando a identidade nosológica da peste antiga e moderna, o seu crescimento e declínio, apontando as linhas geográficas e comerciais da propagação, os vetores zoológicos, a profilaxia e etiologia tradicionais. Também a febre-amarela seria alvo de uma série de 14 textos, entre artigos, notas e relatórios, que se desenrolaram ao longo dos anos 20 e 30. Fosse acerca de episódios em Lisboa, em África ou no Brasil, o tema parece ter-lhe despertado grande interesse desde a viagem ao Brasil em 1929, cuja organização na luta contra a febre-amarela encarava com progressista e exemplar. 117 Vários destes textos foram compilados num extenso relatório que publicaria em janeiro de 1938, cerca de um ano e meio antes de morrer.118 No seguimento dessa viagem escreveu La fièvre et la campagne sanitaire à Rio de Janeiro (1928-29), Épidémies nautiques de malaria a forme typhoidique, 115 Cf. JORGE, Ricardo – Peste à Lisbonne. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique, session d`Avril 1921. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1921. 116 Cf. JORGE, Ricardo – Sur la Peste Pneumonique, à propos de l`Épidémie d`Alcochete. Bulletin mensuel de l'Office International d'Hygiène Publique. T. XV (1923) 1431. 117 “O Brasil deu-nos uma lição, destentada, de como governos, médicos e público se conjugam na execução dos preceitos da medicina social.” In JORGE, Ricardo – A propósito de Pasteur: discurso proferido em comemoração do centenário pastoriano na Faculdade de Medicina de Lisboa, aos 25 de Abril de 1923. Lisboa: Portugália, 1923, p. 52. 118 Cf. JORGE, Ricardo – Fièvre jaune. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Vol. 4. Fasc. 1 (1938) 1-134. 375 pouvant faire suspecter la fièvre jaune (1931), Sur la prospection biodémique de la fièvre jaune (1934), La fièvre jaune africaine (1934), A propos de la fièvre jaune endémosporadique (1935), e o já apontado relatório: Fièvre jaune (1938). Para além da febre-amarela, também o tifo exantemático daria azo a vários trabalhos que acabariam por ser reunidos e expostos em 1933 num trabalho mais lato onde mostra a sua conceção sobre as febres exantemáticas, abordando as suas características nosográficas epidémicas e experimentais, reunidas sob o título La Famille typho-exanthématique (1933). 7 - “Irmãos em Higeia” Tanto no seio do Office como na Comissão de Higiene da Sociedade das Nações, Ricardo Jorge era muito respeitado e estimado pelos seus pares. Almeida Garrett confessava a impressão colhida junto de outro sanitarista: “Ainda há três anos [1936], em Londres, a figura máxima entre os sanitaristas ingleses [George Buchanan] me dizia: «O professor Jorge é uma pessoa de exceção; nunca me foi dado conhecer alguém que a um tão grande cabedal de conhecimentos juntasse um tão apurado espirito crítico».”119 Ele próprio não enjeitava o sentimento de bem-estar que e de comunhão científica que o Office lhe proporcionava, sentindo-se aí como em casa, entre “Estes homens, meus colegas e meus amigos, envolvidos igualmente no torvelinho da Cosmópolis Sanitária (…).” 120 Junto dos seus pares da ciência higiénica “Havia ali amigos e camaradas das lides internacionais da epidemiologia e da medicina preventiva, cujo encontro seria um regalo de coração e de espírito (…)”121 Formal e informalmente, desenvolve uma extensa rede de contactos no mundo da GARRETT, António de Almeida – Ricardo Jorge e o Porto. Lisboa Médica. Ano XVI. Nº 9 (setembro 1939) 580. 120 JORGE, Ricardo – De Ceca e Meca: impressões e estudos de viagem. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1961, p. 126. 121 JORGE, Ricardo – A Exposição Colonial de Paris e as jornadas médicas. Sep. de Lisboa Médica. Vol. 8, agosto 1931. Lisboa: Imp. Libânio da Silva, 1931, p. 5. 119 376 sanitariedade internacional, que em alguns casos extravasa a capa da diplomacia, consubstanciando-se em franca amizade. Entre essas várias amizades que ele tanto prezava, ou os seus “irmãos em Higeia” 122 como por vezes os apodava, contam-se Pottevin, Cantacuzène ou George Buchanan. Em 1934 escreveria um elogio de Cantacuzène,123 ao passo que em 1936 faria o elogio fúnebre de George Buchanan, retratando o percurso de vida de uma das figuras do movimento sanitário internacional.124 A ligação a George Buchanan levou a que dois anos depois fosse eleito sócio de honra da Real Sociedade de Medicina de Londres.125 Acerca da presença de Ricardo Jorge nas sessões do Office, diria Colombani: “O Professor Ricardo Jorge conta-se entre os eminentes epidemiologistas da nossa época. Fosse nas sessões do Office International d'Hygiene ou do Comité de Higiene da Sociedade das Nações, fosse nas reuniões das Sociedades de Sábios ou em numerosos congressos que ilustrava com a sua presença, Ricardo Jorge marcava com a sua poderosa personalidade estas manifestações científicas, ou as suas comunicações, as suas intervenções – habitualmente ardentes, mas sempre enformadas de um puro espírito de método – os seus avisos, os seus conselhos faziam autoridade. O seu nome está particularmente ligado ao estudo aprofundado da espiroquetose icterohemorragica, da varíola, do alastrim, da encefalite posvacinal (esta última doença tendo sido o objeto, após inquérito internacional, de JORGE, Ricardo – Passadas de erradio. 2ª edição, revista. Lisboa: empresa Literária Fluminense, 1926, p. 85. 123 Cf. JORGE, Ricardo – Éloge du Prof. Cantacuzène. Porto: Imprensa Libânio da Silva, 1934. 124 Cf. JORGE, Ricardo – L'Hygiéniste International Sir George S. Buchanan. Sep. da revista Clínica Higiene e Hidrologia, março 1937. Lisboa: Tip. Henrique Torres, 1937. 125 [s.a] – Atualidades. A eleição de Ricardo Jorge para sócio de Honra da Real Sociedade de Medicina de Londres. A Medicina Contemporânea. Ano 56. Nº 27 (3 julho 1938) 220-221. 122 377 um relatório magistral) e, enfim das doenças pestilenciais que constituem, como ele diz, a preocupação constante da sua vida de biologista».”126 Foto 1 – Membros do Office International D`Hygiène Publique reunidos na sessão de maio de 1933. Apesar de jubilado, Ricardo Jorge continuou a participar nas sessões até poucos meses antes da sua morte em 1939. Ricardo Jorge encontra-se na 1ª fila, sendo o 3º a contar da esquerda. George Buchanan, na mesma fila, é o 3º a contar da direta. Fonte: OFFICE INTERNACIONAL D`HIGIÈNE PUBLIQUE – Vingt-cinq ans d`activité de L`Office International D`Hygiène Publique.1909-1933. Paris: OIHP, 1933, [s.p.]. No mesmo ano de 1936 e aproveitando a presença de Ricardo Jorge em Paris, a federação da imprensa médica latina ofereceu-lhe um jantar de homenagem no Hotel Lutécia com cerca de 30 personalidades da imprensa médica, provavelmente em finais de novembro de 1936. No decorrer do Reproduzido in COELHO, Eduardo – Ricardo Jorge Mestre da Medicina e grande europeu. Boletim do Instituto Superior de Higiene Doutor Ricardo Jorge. Ano I. Nº 4 (1946) 254. (Tradução nossa). 126 378 evento foi alvo dos habituais elogios que a ocasião proporcionou.127 Em carta enviada ao amigo António de Almeida Garrett, reconhecia ser mais apreciado nesses conclaves internacionais que no seu próprio país: “Quanto ao presente, sou um artigo de exportação, de menos valia nacional que os figos passados. Que valor se liga a que me chamem lá fora epidemiologista e acolham ou louvem trabalhos que por cá não têm curso?” 128 Em poucos lugares se terá sentido tão bem como no Office. Numa missiva transcrita por Eduardo Coelho, Ricardo Jorge revela precisamente a importância de Paris e desse campo de diplomacia sanitária: “Trabalhar em Paris, naquela corporação que representa para a minha velhice o meio afetuoso e estimulante que foi para a minha mocidade a saudosa Escola do Porto.” “O trabalho no estrangeiro (no Office) absorve-me o tempo; devolhe hoje o melhor da minha existência, o contacto com um meio que me consola daquele em que vivo.”129 Em 1936, dos delegados que formaram o núcleo inicial do Office e do movimento sanitário internacional já só restavam no Comité da SDN dois vetustos personagens: Madsen e Ricardo Jorge. O Office seria o seu último púlpito predicatório. 8 - Considerações finais O papel de Ricardo Jorge nas instâncias sanitárias internacionais ultrapassou o papel técnico-científico que lhe seria exigido pelas suas funções, corporizando um papel que poderíamos apelidar de “diplomacia sanitária”. A extensa rede de relações científicas e de amizade que criou no OIHP e no Comité de Higiene da SDN a partir do pós-guerra, mostra bem a internacionalização do labor do higienista, a que não é alheio um trabalho continuado de normalização das relações sanitárias entre os estados. O lu- 127 Cf. [s.a] – Un dîner en l`honneur du professeur Ricardo Jorge. La Presse Médicale. Nº 97 (2 Décembre 1936) 1968. 128 GARRETT, António de Almeida – Ricardo Jorge e o Porto. Lisboa Médica. Ano XVI. Nº 9 (setembro 1939) 571. 129 Cit. in COELHO, Eduardo – Ricardo Jorge, o médico e o humanista. 2ª ed. revista e ampliada. Lisboa; Barcelona; Rio de Janeiro: Livraria Luso-Espanhola Lda, 1961, p. 162. 379 gar de relevo que desde cedo começou a ocupar no espectro sanitário internacional permitiu-lhe continuar a ser sempre o principal delegado do governo português nas instâncias internacionais, independentemente dos ventos políticos que a sua longa vida conheceu, fosse no contexto monárquico, republicano ou mesmo no Estado Novo. Não viveu o suficiente para ver a revolução antibiótica tomar de assalto e tornar obsoletos muitos dos pilares da «ciência higiénica», mas viveu o suficiente para se impor como um dos cientistas portugueses mais internacionais de sempre. Fontes e bibliografia Espólio de Ricardo Jorge BNP. Esp. E18/Cx. 1, 2 e 27. Bibliografia ricardiana JORGE, Ricardo – A epidemia tífica de Lisboa em 1912: I - Relatório do prof. Ricardo Jorge. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Vol. 1. Fasc. 2 (1913) 131-150. JORGE, Ricardo – A Exposição Colonial de Paris e as jornadas médicas. Sep. de Lisboa Médica. Vol. 8, agosto 1931. Lisboa: Imp. Libânio da Silva, 1931. JORGE, Ricardo – A propósito de Pasteur: discurso proferido em comemoração do centenário pastoriano na Faculdade de Medicina de Lisboa, aos 25 de Abril de 1923. Lisboa: Portugália, 1923. JORGE, Ricardo – Alastrim et variole. Vaccine, Encéphalites Postvaccinales. I. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Vol. 3. Fasc. 2 (1927) 1-181. JORGE, Ricardo – Canhenho dum Vagamundo. Impressões de viagem. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1923. 380 JORGE, Ricardo – Canhenho dum Vagamundo. Impressões de viagem. 7º Milhar. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1924. JORGE, Ricardo – De Ceca e Meca: impressões e estudos de viagem. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1961. JORGE, Ricardo – Éloge du Prof. Cantacuzène. Porto: Imprensa Libânio da Silva, 1934. JORGE, Ricardo – Fièvre jaune. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Vol. 4. Fasc. 1 (1938) 1-134. JORGE, Ricardo – Higiene militante. Sep. de A Medicina Contemporânea, 1920. Lisboa: Tip. Adolfo de Mendonça, 1920. JORGE, Ricardo – Higiene social aplicada à Nação Portuguesa. Conferências feitas no Porto. Porto: Livraria Civilização, 1885. JORGE, Ricardo – L' Hygiéniste International Sir George S. Buchanan. Sep. da revista Clínica Higiene e Hidrologia, março 1937. Lisboa: Tip. Henrique Torres, 1937. JORGE, Ricardo – La Grippe. Rapport préliminaire présenté à la Commission Sanitaire des Pays Alliés, dans sa session de mars 1919. Lisbonne: Imprimerie Nationale, 1919. JORGE, Ricardo – Les bacilliféres de la Zaire et le système défensif contre le choléra par le contrôle bactériologique. Lisboa: Tip. Mendonça, 1911. JORGE, Ricardo – Les Cas du Tuscania et la Variole anglaise. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1929. JORGE, Ricardo – Les Encéphalites post-vaccinales. Conclusions et doctrines. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1928. 381 JORGE, Ricardo – Les encéphalites post-vaccinales dans leurs rapports avec la vaccination et avec les encéphalites post-infectieuses et disséminées aiguës. Rapport de la Commission de la Variole et de la Vaccination. Sep. de Bulletin mensuel de l'Office International d'Hygiène Publique. T. XXIII. Fasc. 12, année 1931. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1931. JORGE, Ricardo – Les pestilences et la Convention Sanitaire Internationale. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Vol. 3. Fasc. 1 (1926) 1-107. JORGE, Ricardo – Les types varioliques el les encéphalites. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1928. JORGE, Ricardo – Lugares seletos – O professor de Medicina em Portugal em 1885. Boletim do Instituto Superior de Higiene Doutor Ricardo Jorge. Vol. II. Nº 5 (1947) 46-69. JORGE, Ricardo – Nouveaux cas d´Encéphalite post-vaccinale. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1927 e 28. JORGE, Ricardo – Passadas de erradio. 2ª edição, revista. Lisboa: Empresa Literária Fluminense, 1926. JORGE, Ricardo – Peste à Lisbonne. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique, session d`Avril 1921. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1921. JORGE, Ricardo – Plan de recherches sur les questions concernant la Variole. Procès-verbaux de l'Office International d'Hygiène Publique. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1929. JORGE, Ricardo – Relatório apresentado ao Conselho Superior de Instrução Pública na sessão de 1 de outubro de 1885 pelo vogal da secção eletiva […]. Porto: Imprensa Moderna, 1885. 382 JORGE, Ricardo – Soalheiras e Desportes. Diário de Lisboa. Edição mensal. 1º Ano. Nº 3 (1 a 30 de julho de 1933) 27-28. JORGE, Ricardo – Sur l'Alastrim et la Variole. Sep. de Bulletin mensuel de l'Office International d' Hygiène Publique. T. XVI. Fasc. 10, année 1924. Paris: Office International d'Hygiène Publique, 1924. JORGE, Ricardo – Sur la Peste Pneumonique, à propos de l`Épidémie d`Alcochete. Bulletin mensuel de l'Office International d'Hygiène Publique. T. XV (1923) 1431. JORGE, Ricardo – Um ensaio sobre o nervosismo. Dissertação inaugural apresentada e defendida perante a Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Porto: Tip. Ocidental, 1879. JORGE, Ricardo – [Prefácio]. In PIMENTA, Alfredo – Estudos filosóficos e críticos. Prefácio do Prof. Dr. Ricardo Jorge. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930. Bibliografia complementar ALVES, Jorge Fernandes (coord.) – O Signo de Hipócrates. O Ensino Médico no Porto segundo Ricardo Jorge em 1885. Porto: Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, 2003. AMARAL, Isabel; CARNEIRO, Ana; MOTA, Teresa Salomé; BORGES, Victor Machado; DORIA, José Luís (coord.) – Percursos da Saúde Pública nos séculos XIX e XX - a propósito de Ricardo Jorge. Lisboa: CELOM, 2010. BRAGA, António Augusto Gonçalves – A Conferência Sanitária Internacional de Paris de 1911-12. Relatório. Arquivos do Instituto Central de Higiene. Secção de Higiene. Vol. II. Fasc. 1º (1916) 16-65. 383 COSTA, Rui Manuel Pinto – Sob o olhar da construção da memória: Ricardo Jorge na tribuna da História. CEM. Cultura, Espaço & Memória. Porto. 5 (2014) 261-274. COELHO, Eduardo – Ricardo Jorge, o médico e o humanista. 2ª ed. revista e ampliada. Lisboa; Barcelona; Rio de Janeiro: Livraria Luso-Espanhola Lda, 1961. COELHO, Eduardo – Ricardo Jorge Mestre da Medicina e grande europeu. Boletim do Instituto Superior de Higiene Doutor Ricardo Jorge. Ano I. Nº 4 (1946) 241- 265. GARRETT, António de Almeida – Ricardo Jorge e o Porto. Lisboa Médica. Ano XVI. Nº 9 (setembro 1939) 564-572. GARRET, António de Almeida – Ricardo Jorge, higienista. Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto. Vol. 4. Fasc. 4 (1941) 372. LATOUR, Bruno – The Pasteurization of France. Cambridge, London: Harvard University Press, 1988. LEMOS, António de Sousa Magalhães e – A Região Psicomotriz: apontamentos para contribuir ao estudo da sua anatomia. Dissertação inaugural apresentada e defendida na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Porto: Tip. Ocidental, 1882. MONIZ, Egas – Júlio Dinis e a Sua Obra. Com inéditos do romancista e uma cartaprefácio de Ricardo Jorge. Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1924. NUNES, Maria de Fátima - Ricardo Jorge and the construction of a medical-sanitary public discourse. Portugal and International scientific networks. In: PORRAS GALLO, Maria-Isabel; RYAN, Davies A. The Spanish Influenza Pandemic of 1918-1919 - Perspectives from the Iberian Peninsula and the Americas. Rochester: University of Rochester Press; 2014, p. 56-71. 384 OFFICE INTERNACIONAL D`HIGIÈNE PUBLIQUE – Vingt-cinq ans d`activité de L`Office International D`Hygiène Publique.1909-1933. Paris: OIHP, 1933. PEREIRA, Ana Leonor; PITA, João Rui – Ciências. In MATTOSO, José (dir.) – História de Portugal. Vol. V. O Liberalismo (1807-1890). Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 652-667. PEREIRA, Ana Leonor; PITA, João Rui – Liturgia higienista no século XIX - pistas para um estudo. Revista de História das Ideias. 15 (1993) 437559. SIMÕES, António Augusto da Costa – Relatórios de uma viagem científica. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1866. SOCIETÉ DES NATIONS – Bulletin de L´Organisation d´Hygiène. Bibliographie des travaux techniques de L´Organisation d´Hygiène de la Société des Nations, 1920-1931. Vol. XI. Genève: Société des Nations, 1945. SOCIETÉ DES NATIONS – L´Organisation d´Hygiène. Genève: Section d´information, 1931. [s.a] – Atualidades. A eleição de Ricardo Jorge para sócio de Honra da Real Sociedade de Medicina de Londres. A Medicina Contemporânea. Ano 56. Nº 27 (3 julho 1938) 220-221. [s.a] - Revue des journaux – Les bacillifères de la canonnière Zaïre et le système défensif contre le choléra par le contrôle bactériologique, par Ricardo Jorge. (Annales de l'Institut Camara Pestana de Lisbonne, 1911, mémoire de 20 pages). Revue d'hygiène et de police sanitaire. N° 34 (1912) 10591061. [s.a] – Un dîner en l`honneur du professeur Ricardo Jorge. La Presse Médicale. Nº 97 (2 Décembre 1936) 1968. 385