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EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO DEBATES TEÓRICOS Renan Soares de Araújo Pedro José Santos Carneiro Cruz (organizadores) EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Renan Soares de Araújo Pedro José Santos Carneiro Cruz (organizadores) Editora do CCTA/UFPB João Pessoa 2020 REITOR VALDINEY VELOSO GOUVEIA VICE-REITORA LIANA FILGUEIRA CAVALCANTE Diretor do CCTA ULISSES CARVALHO DA SILVA Vice-Diretora FABIANA CARDOSO SIQUEIRA Edi t or a do CCTA Conselho Editorial CARLOS JOSÉ CARTAXO GABRIEL BECHARA FILHO MAGNO ALEXON BEZERRA SEABRA JOSÉ FRANCISCO DE MELO NETO JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES MARCÍLIO FAGNER ONOFRE Editor JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES Secretário do conselho editorial PAULO VIEIRA Laboratório de jornalismo e editoração coordenador PEDRO NUNES FILHO Diagramação e Design da Capa AMANDA PONTES Copyright © 2020 dos organizadores. Todos os direitos reservados à Editora do CCTA. Depósito legal efetuado. Autorizada a reprodução total ou parcial desde que citada a fonte. O conteúdo de cada capítulo é de inteira responsabilidade de seus(as) respectivos(as) autores(as). Realização: Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Apoio: Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Economia Solidária e Educação Popular (NUPLAR) da UFPB, Linha de Educação Popular do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFPB e Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFPB. Essa obra é resultante de produções construídas no contexto da disciplina “Tópicos em Educação Popular: Construção Compartilhada do Conhecimento na Pesquisa e na Ação Social”, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFPB. Foto de capa: Luiz Gonzaga. A663 Araújo, Renan Soares de Educação Popular e Construção Compartilhada do Conhecimento: Debates Teóricos (livro eletrônico) / Renan Soares de Araújo... [et al.]; organizado por: Pedro José Santos Carneiro Cruz. - 1. ed. João Pessoa, PB: Editora do CCTA, Universidade Federal da Paraíba – UFPB, 2020. 263f.; E-book; PDF. Incluí sumário e bibliografia realizado pelo Grupo de pesquisa em extensão popular (EXTELAR) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) ISBN 9786556211411 1. Educação Popular 2. Educação e Saúde 3. Educação e Pedagogia 4. Construção de Conhecimento 5. Contextos e compartilhamentos I. Cruz, Pedro José Santos Carneiro. Título. CDD: 370 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO..................................................................................7 Renan Soares de Araújo EDUCAÇÃO POPULAR COMO LUGAR EPISTEMOLÓGICO DE INTERCÂMBIO DE SABERES: DA CURIOSIDADE INGÊNUA À CURIOSIDADE EPISTEMOLÓGICA.....................................................10 Alexandre Soares de Sousa EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA E CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO: APORTES DE(S)COLONIAIS A PARTIR DA EDUCAÇÃO POPULAR........41 Renan Soares de Araújo CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO, EDUCAÇÃO POPULAR E MEMÓRIAS DO CAMPO.................................................81 Gildivan Francisco das Neves Severino Bezerra da Silva CONHECIMENTO COMPARTILHADO: A HISTÓRIA COMO MEMÓRIA E A EDUCAÇÃO PARA NUNCA MAIS COMO COMPONENTES DA EDUCAÇÃO POPULAR........................................................................108 Julyanna de Oliveira Bezerra José Cleudo Gomes Maria de Nazaré Tavares Zenaide PRISÕES, CONTEXTO E ESPAÇO DA PRÁTICA E PESQUISA EM EDUCAÇÃO POPULAR.....................................................................138 José Douglas de Abreu Araújo EDUCAÇÃO POPULAR E SAÚDE: ENTRELAÇAMENTOS E IMPASSES......................................................................................170 Francikely da Cunha Bandeira Luiz Gonzaga Gonçalves EDUCAÇÃO POPULAR: PARA UMA NÃO ROMANTIZAÇÃO DAS PRÁTICAS POPULARES E COMUNITÁRIAS......................................196 Klebson Felismino Bernardo OS FIOS (IN)VISÍVEIS ENTRE A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA SOCIALISTA SOVIÉTICA...................................................................220 José Aclecio Dantas SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES...............................................255 SOBRE OS ORGANIZADORES..........................................................260 SOBRE OS(AS) PARECERISTAS E COMITÊ CIENTÍFICO REVISOR....261 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS APRESENTAÇÃO Renan Soares de Araújo A presente obra é fruto de um fecundo debate, promovido a partir de um componente curricular denominado “Construção Compartilhada do Conhecimento na Pesquisa e na Ação Social”, ofertado no primeiro semestre de 2019, pela Linha de Pesquisa de Educação Popular do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), tendo a participação de vários atores e atrizes sociais envolvidos com o pensar e o fazer de projetos e experiências educativos populares em diferentes contextos e realidades socioculturais. No decorrer desse componente, muitas foram as leituras, as reflexões partilhadas e as discussões travadas coletivamente, tendo a concepção teórico-metodológica da Educação Popular como pressuposto orientador, exprimindo uma infinidade de possibilidades e de caminhos para a consecução de processos investigativos e político-pedagógicos comprometidos com um horizonte emancipatório, tendo a construção compartilhada do conhecimento como fio condutor e eixo estruturante. Para o momento que temos vivenciado na atualidade, marcado pela desvalorização constante da ciência e de uma educação crítica e questionadora, em que Paulo Freire e o seu legado tem sido paulatinamente depreciados por movimentos ultraconservadores e as suas forças retrogradas e sectárias, esta obra é mais uma amostra – que se soma SUMÁRIO 7 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS juntamente com outras iniciativas que têm sido levadas à cabo por vários grupos e entidades do campo democrático e popular −, que visa evidenciar a força pujante da Educação Popular, alimentando a utopia e revigorando a esperança crítica de que um outro mundo é possível de ser construído. O que denota uma compreensão de esperança no sentido freiriano, que não é de uma pura espera, mas de esperança em ato: “espera em que quem espera jamais se acomoda no ato de esperar, quem espera se move, na verdade, pacientemente impaciente no processo da realização do sonho ou do projeto que espera” (FREIRE, 2015, p. 82). Ao ler os capítulos que compõem esta coletânea, o leitor e a leitora perceberão de diferentes maneiras a presença estruturante de alguns constituintes da Educação Popular − tais como o diálogo, a participação, a problematização da realidade, a autonomia, o respeito à cultura popular, a valorização dos diferentes saberes, a criticidade, a práxis, dentre outros −, expressando a riqueza e a diversidade de temas, de abordagens e de discussões que podem ser (e são) trabalhadas no campo da Educação Popular. O que explicita também a presença da “criatividade” como um dos constitutivos centrais da Educação Popular, tal como assinalado por Agostinho Rosas (2008). Nesse sentido, esta obra revela o esforço de pensamento de seus autores e de suas autoras acerca das intersecções da Educação Popular em seus diferentes territórios de ação, luta, resistência e (re)existência, com base em uma abordagem crítica, solidária, amorosa e criativa. O que insere esta coletânea no âmbito da ampla e profusa discussão à respeito das contribuições da Educação Popular em diálogo com diferentes abordagens e perspectivas para a produção de conhecimentos socialmente úteis, 8 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS a constituição de outras sociabilidades e o exercício de novas práticas sociais implicadas com a perspectiva da humanização de todas as relações e da necessária transformação social. O debate está posto e em aberto. Desejamos a vocês uma excelente leitura e uma instigante e mobilizadora reflexão-ação. Referências FREIRE, P. À sombra desta mangueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. ROSAS, A. S. Criatividade como constitutivo da educação popular. In: ROSAS, A. S.; MELO NETO, J. F. (Orgs.). Educação popular: enunciados teóricos. João Pessoa: UFPB, 2008. 2 v. p. 111-130. SUMÁRIO 9 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS EDUCAÇÃO POPULAR COMO LUGAR EPISTEMOLÓGICO DE INTERCÂMBIO DE SABERES: DA CURIOSIDADE INGÊNUA À CURIOSIDADE EPISTEMOLÓGICA Alexandre Soares de Sousa Introdução Falar a respeito de Educação Popular remetenos, a priori, ao entendimento sobre um conhecimento ausente do rigor, da sistematização e do critério científico ou filosófico autodenominados saberes por excelência. Na história do Ocidente, não se quis registrar nem reconhecer tal concepção de maneira diferente da mencionada. Esta história conta, narra, documenta, apenas a versão gloriosa de uns poucos: sacerdotes, heróis, guerreiros, generais, intelectuais, juízes, políticos, banqueiros, empresários, reis e rainhas, que formam a plêiade daqueles que detêm o poder de decidir sobre o que vem a ser verdadeiramente o saber. 10 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Essas narrativas jogaram para debaixo do tapete da história da civilização ocidental as experiências de vida, as lendas, crendices, folclores, mitos, isto é, os muitos saberes arraigados na vida do povo sofrido. Saberes construídos a partir do imaginário comum das pessoas. Estes que, em sua maioria, durante muitos anos alimentaram e encorajaram várias culturas, vários povos, de diferentes localidades geográficas do planeta. Estas riquezas de diversidades de conhecimentos não constam nas historiografias oficiais. A concepção comumente admitida, que circula, que prevalece nos meios acadêmicos, é a de que a Educação Popular não deve receber status epistemológico ou mesmo rótulo de conhecimento acadêmico, a não ser de saber minguado e marcado pela supersticiosidade da ralé; uma visão de caráter, diga-se de passagem, preconceituosa, cuja característica tende a prevalecer. Tal entendimento ocorre por causa do envolvimento e da própria constituição do termo Educação Popular, a qual leva a entender, originar-se e destinar-se à vulgarização cotidiana, isto é, a práticas não ortodoxas do que se compreende por aqueles já citados conhecimentos ditos superiores e verdadeiros. Semelhantes práticas são atribuídas a pessoas iletradas, ou como preferir, ignorantes, analfabetas e/ou semianalfabetas, melhor dizer, os oprimidos. Disto se infere que, este grupo gerador da cultura de massa não passa de gente passiva, sem futuro, que não tem condição sequer de levantar sua cabeça para olhar e identificar os que lhe oprimem. A metodologia utilizada nesse trabalho foi a de cunho qualitativo, a saber, apoiamo-nos em referencial teórico, que possibilitasse tal construção, cujo objetivo é apresentar a Educação Popular como intercâmbio entre SUMÁRIO 11 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS conhecimento popular e conhecimento científico, fazendo com que ambos compartilhem suas experiências, de modo dialógico, bem no estilo freireano, visando desse modo um melhor entendimento para ser humano. A partir disso, como atribuir ou elevar essas experiências da cotidianidade dessas pessoas “comuns” que sofrem, à condição de conhecimento, ou a uma epistemologia? Eis a questão. Responder a isto, requer que nós revejamos, anteriormente, o significado que temos de ser humano. O que isto tem a ver com educação? Este será o caminho que pretendemos trilhar nesse artigo. O absolutismo científico pode levar à morte outros saberes Recentemente1 milhares de pessoas tomaram às ruas de todo o Brasil, para protestar contra o que foi chamado, pelo atual Governo, de “contingenciamento”2 de gastos provocados pelas Universidades Públicas Federais. As manifestações não só se posicionaram contrárias a truculenta e arbitrária decisão, mas também expuseram à sociedade brasileira o motivo pelo qual é imprescindível a existência e permanente manutenção das Instituições de Ensino Superior (IES) para o futuro da Nação. Em referência à construção do conhecimento, as IES mostraram que não são somente guardiãs dele, mas ainda sem as mesmas seria impossível tal coisa. Frases como “sem universidade não existe conhecimento”, deixava claro que o espaço de sua produção é o acadêmico, ponto 1 2 12 Registra-se 15 e 30 de maio de 2019 como datas certas dessas manifestações. Preferimos chamar a isso de bloqueio aos investimentos em educação, forma pela qual o Governo encontrou para retaliar às universidades que não são alinhadas ao seu jeito esdrúxulo e descivilizado de pensar. SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS final. Ou em outras palavras, parafraseando o conhecido e dogmático dizer medieval “fora da igreja não há salvação”; podemos concluir, também por meio disso, que “fora da universidade não há salvação”. Isto caracteriza o modo de ser dessas instituições de ensino em todo o mundo, as quais estão atreladas ao prometimento oferecido no início da modernidade aos seres humanos, de que elas (as universidades) seriam daqui por diante suas redentoras e seus baluartes, quer dizer, a humanidade estava salva e protegida, uma vez que não haveria problemas que não fossem imediatamente solucionados. Parecia-nos que o fechamento da “caixa de Pandora” estava preste a acontecer, visto que os males que dela saíram, retornariam a ficar definitivamente trancafiados. A consciência científica é gerada nesse contexto e ambiente hermético da intelectualidade das universidades, na atualidade ela consta como saber onisciente, onipotente e, consequentemente, onipresente. Isto vem a significar que, todas as formas de conhecer devem submeter-se a esse padrão, ou seja, para sobreviver e conseguir o reconhecimento nos tempos de hoje, todo e qualquer conhecimento tem que se adequar, adaptar-se a esse paradigma epistemológico hegemônico denominado ciência. Isso para dizer que nada escapa e tudo é abrangido pela força da ciência. Seu poder chega a todos os recôncavos. Ela é o conhecimento por excelência, que chancela a entrada no cânon da cientificidade, ou melhor, é ela que determina e afirma epistemologicamente: este é conhecimento, esse talvez, aquele nem pensar. Tudo leva a crer que houve na história do Ocidente uma substituição do poder religioso pelo poder secular, SUMÁRIO 13 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS o qual não superou às práticas tradicionais, apenas as contextualizou. Quem nos dirá isso com mais clareza é Japiassu. De acordo com ele: [...] num passado não tão remoto assim, competia à Igreja tudo nos explicar. [...] Seu poder explicativo era praticamente absoluto, incontestável e inapelável: Roma locuta, causa finita (Roma falou, caso encerrado). Depois, os filósofos tiveram seu momento de glória. No século das Luzes, poderiam ter dito: Ratio locuta, causa finita. Agora, tudo se passa como se os cientistas viessem a ocupar os espaços culturais deixados mais ou menos vazios pelo “declínio” dos saberes teológicos e ideológicos. A chamada “secularização”, ou “desencantamento”, seria não o abandono do sagrado, mas a aplicação da tradição sagrada a fenômenos humanos precisos. Max Weber vê na sociedade capitalista a filha legítima do espírito calvinista. De onde o novo slogan: Scientia locuta, causa finita (a ciência falou, assunto encerrado) (JAPIASSU, 2011, p. 57). Dessa maneira, fica estabelecida a nova Tábua dos Mandamentos que torna os conhecimentos científicos senhor absoluto, o que para Japiassu (2011, p. 58) significaria dizer que “somente eles se encontrariam fundados na rocha do “método experimental” e sobre a análise rigorosa dos “fatos”. Ademais, só eles seriam seres racionais e objetivos, imunes às paixões e emoções”. Neste ponto, vale lembrar as perscrutações e inquietações levantadas por Carneiro Leão (1977, p. 16), nas quais ele descreve sua preocupação sobre essa prepotência a que chegou a ciência, visto que a mesma não deixou outras possibilidades de conhecer para o ser humano de hoje. Deste jeito posiciona-se [..] “Será essa 14 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS a única forma possível de racionalidade? A única maneira de afastar a escuridão da animalidade?” São questões como essas que nos fazem relativizar a peremptoriedade da ciência, pois diante de toda essa perfeição há sempre um calcanhar de Aquiles que não quer ser atingido. Para manter consonância com os argumentos mencionados as autoras, Rigotto e Tupinambá (2019) não negam os benefícios do conhecimento científico para a humanidade, tal como o seu contrário. De acordo com elas: Se é enorme a relevância da ciência para a vida da humanidade nos últimos séculos, por outro lado é preciso reconhecer que na modernidade, as tecnociências não estão isentas de responsabilidade na gênese desta crise planetária e civilizatória, na medida em que são decisivas para viabilizar o projeto burguês de dominar as leis da Natureza para explorá-la, assim como ao trabalho humano (Lauder, 2005); contribuem na constituição da sociedade de Risco que ameaça as atuais gerações, sua qualidade de vida e as próprias condições de sobrevivência das gerações futuras (Giddens, Beck Lash, 1997); fragmentam e especializam o conhecimento em campos disciplinares, dificultando a compreensão dos complexos problemas que ajudou a criar (Morin, 2011); ocultam-se sob uma suposta neutralidade para não revelar os valores e interesses que perpassam o campo científico, e ainda omitem incertezas, ignorâncias e indeterminâncias (Funtowicz e Ravertz, 1997). Esse tipo de posicionamento apresenta a face oculta que a ciência evita de mostrar, dado que isto a poria em xeque frente as outras formas de saber. Isto é o que ela não SUMÁRIO 15 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS quer que aconteça, dado que a ideia que permanece deve ser a de que não há outros tipos de conhecimento, ou nem se deve cogitar a existência de análoga possibilidade. Em relação a isso, constatamos que há na história do Ocidente duas compreensões: uma oriunda da academia, o templo sagrado da ciência; e a outra do senso comum, em que se encontra a cotidianidade. A primeira se considera, metaforicamente, o próprio Olimpo, local onde mora os imortais deuses gregos, senhores dos destinos e das vidas humanas; a segunda, no que lhe concerne, é associada ao mundo dos pobres mortais: pessoas que mendigam diariamente por soluções divinas, as quais se contentam tais quais cachorrinhos com as migalhas caídas da mesa do banquete celestial. Platão foi o primeiro a impulsionar e dar fôlego para que esse tipo de entendimento chegasse a ser possível. A partir dele, iniciou-se a gênese do conhecimento enquanto possibilidade de poucos iluminados. Em sua compreensão, o filósofo grego apresenta através da “alegoria da caverna”, apresentada a abaixo, que existem dois tipos de conhecimento, a saber, o sensível e o inteligível. Platão com isso, elabora a ideia de dois mundos, duas realidades antagônicas: uma imperfeita, composta de sombras e opiniões; e a outra perfeita, as ideias que existem num mundo da intelectualidade, da racionalidade em que se encontra a luz. Para visualizarmos e fixarmos melhor essa ideia platônica no tocante à divisão dos mundos, Danilo Marcondes transcreve fragmentos da obra do pensador grego, A República: Sócrates: Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de educação que ela recebeu 16 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS ou não, de acordo com o quadro que vou fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma espécie de morada subterrânea em forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo (MARCONDES, 2000, p. 39). Para Platão, o que lhe interessa é a parte racional do homem. Esta é a única que ele considera de feições sofisticadas, a qual determina a canonicidade que conduz à sacralização do mais puro, verdadeiro e elevado conhecimento. Isto para dizer que há uma hegemonia, que segrega e seleciona os vários saberes existentes em: baixo clero e alto clero. Este pertencente a estirpe do nobre saber, que relegará ao esquecimento da história o outro. Foi esta exacerbação do racional que levou a ciência moderna à cumeeira dos saberes, e de lá não querer mais sair, porque de sua confortável, cômoda e majestosa situação continuará a submeter todos ao seu crivo. René Descartes, grande filósofo do início da modernidade, segue essa racionalização exagerada oriunda da tradição platônica. Para ele o conhecimento tem quer ser de ordem racional, com base no método físico-matemático, SUMÁRIO 17 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS para não gerar nem uma dúvida em relação a sua validade, já que esse método era a forma predominantemente a mais segura de conhecimento que se tinha. Descartes chegou a esse radicalismo, devido a sua dúvida metódica, pois ele buscava alguma maneira que não o levasse a titubear frente aos argumentos adquiridos durante a sua formação intelectual. A física e a matemática foram consideradas as únicas que lhe deram amparo e resposta às incertezas por ele suscitadas. Descartes é da opinião de que, o conhecimento a partir de agora passasse a ser e que estivesse alinhado a essa metodologia procedente das ciências exatas e da natureza, cujos maiores representantes eram Newton e Galileu. Em sua obra, Discurso do método, ele traça regras de como, passo a passo, deve-se conhecer para não cairmos em erro. Numa das passagens de seu texto, Descartes deixa transparecer seu desprezo pelo conhecimento popular, que ele mesmo denomina “más doutrinas”, como podemos verificar abaixo: Quanto às más doutrinas, pensava já conhecer bem o que valiam, para não mais estar sujeito a ser enganado nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições de um astrólogo, nem pelas imposturas de um mago, nem pelos artifícios ou pelas gabolices de um daqueles fazem profissão de saber mais do que sabem (DESCARTES, 1996, p. 13). O ápice dessa gabação que transcorreu sem nenhuma interrupção durante anos, até hoje, distinguindo e ratificando a ciência como conhecimento omnipotente foi o positivismo; surgido no século XIX na França, cujo principal representante é Auguste Comte. Seu principal argumento é 18 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS de que houve gradativamente na história uma ascendência do conhecimento através de três estágios, que ele chamou de teológico ou mitológico, metafísico ou filosófico, e por fim o estágio positivo ou científico propriamente dito. Este último, Comte considera como a única e exclusiva forma de conhecer, deixando os outros à margem da história. De acordo ele, esse entendimento é elucidado dessa maneira: [...] A razão humana está agora suficientemente madura para que empreendamos laboriosas investigações científicas, sem ter em vista algum fim estranho, capaz de agir fortemente sobre a imaginação, como aquele que se propunham os astrólogos e os alquimistas. Nossa atividade intelectual estimula-se suficientemente com a pura esperança de descobrir as leis dos fenômenos, com o simples desejo de confirmar ou infirmar uma teoria. Mas isto não poderia ocorrer na infância do espírito humano. Sem as atrativas quimeras da astrologia, sem as enérgicas decepções da alquimia, por exemplo, onde teríamos haurido a constância e o ardor necessários para coletar as longas séries de observações e experiências que mais tarde serviram de fundamento para as primeiras teorias positivas de uma e de outra classe de fenômenos? (COMTE, 1978, 41). O que percebemos hoje em dia é que a ciência através de suas parafernálias tecnológicas, que são sua vertente prática e atualizada, demonstra seu contínuo poderio. Isto é ratificado por Leão (1977, p.11), que relata uma fala do físico alemão Werner Heisenberg, expressa do seguinte modo: “num futuro não muito distante os aparelhos SUMÁRIO 19 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS e instrumentos técnicos serão partes integrantes do homem, como a teia é parte da aranha e a concha do caramujo”. O pensamento científico não nega o seu modo depreciativo e estereotipado de enxergar o senso comum, a cotidianidade, isto é, o popular como um todo. Isto é notório, visto que no decorrer de nossa argumentação mostramos alguns ensaios, que corroboraram a tal maneira de pensar. Passa a ser irônico e trágico, se levarmos em consideração a forma como ele se constituiu. Sobre isto, podemos levantar a seguinte conjectura: a caso um(a) filho(a) pode negar que foi resultado da cópula de um casal? A não ser por autogênese. In vitro seria devanear demais. Então, restanos supor que o conhecimento científico é um tipo de filho pródigo, que contrariamente ao da Parábola do Evangelho não quer de jeito nenhum voltar para a casa paterna, exceto para exaurir os bens que lá se encontram, e posteriormente prodigá-los novamente. A respeito disso, Japiassu citando o filósofo Nietzsche, transcreve um pensamento do mesmo, no qual o pensador alemão debocha e ironiza esse absolutismo cientifico, dizendo: Vocês acreditam que as Ciências teriam nascido se, antes, não tivessem existido esses mágicos, alquimistas, astrólogos e feiticeiros tendo o gosto dos poderes ocultos e das forças proibidas? (JAPIASSU, 2009, p. 106). Entramos num assunto, para a ciência, por vezes esquecido ou até mesmo de valor menos importante, pois trata de sua interdependência do senso comum. Saber que a árvore genealógica da ciência está umbilicalmente ligada ao senso comum, é igualmente afirmar que sem 20 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS senso comum não há ciência, e não podemos garantir que a recíproca seja a mesma. Isto se deve ao fato, confirmado pela história das ciências, de que o senso comum sempre existiu, ou simplesmente existirá. Quanto à ciência, não podemos ter tanta certeza assim. Vale destacar aqui, a profundidade com que Leão aborda esse assunto. Segundo ele, isso está expresso nesse sentido: [...] Não nascemos com nenhuma ciência inata. O homem pelo simples fato de ser homem ainda não é cientista. [...] Toda genealogia de uma ciência nos diz sempre da possiblidade de o homem existir sem ciência. [...] Por uma simples decisão de vontade não nos poderemos livrar da situação histórica em que de fato existimos. O caminho da ciência ocidental já não pode ser refeito nem há meios de escarpamos a nosso destino. Não obstante, a gênese e constituição da ciência e sua cultura revela um caráter episódico, que a torna, num sentido profundo, essencialmente temporal e contingente. O que, sem dúvida, não significa que ela seja um produto do acaso ou que nela não operem forças originárias da existência humana. Todavia é possível separar humanidade e ciência. A necessidade da ciência é uma contingência histórica. O homem não precisa do espaço da ciência para desdobrar sua existência (LEÃO, 1977, p. 14-15). Já vimos, relembrando as falas de Rigotto e Tupinambá, quão relevante é a ciência para a humanidade. Ninguém em sua sã consciência declararia o contrário. O que está em jogo nesse momento, é saber se com a SUMÁRIO 21 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS passagem do conhecimento comum (ou senso comum) para o conhecimento científico estamos pensando de maneira correta, ou melhor, como nos assegura Paulo Freire (1996, p. 29) o “Pensar certo, em termos críticos”, pois pensar assim, de longe caracteriza ou leva à morte outros saberes. Assim, essa exposição freireana empuxa o que foi dito por Carneiro Leão, a respeito de se tornar à questão fundamental, isto é, uma reflexão profunda que aponte para outro jeito de se fazer ciência sem atropelar o ser humano, abrindo espaços que traga o senso comum para contribuir com o desvelamento do conhecimento. Em outras palavras, que o senso comum e o “senso” científico irmanados possam, ‘andando em boa companhia’, atingir pelo menos à ponta do iceberg do conhecimento, e convictos de que com essa iniciativa deram um gigantesco passo para a mútua humanização. Apesar disso, é importante ter consciência de que ainda há muito o que fazer para se conhecer, já que este é inaudito por essência, ou como explanava William Shakespeare: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa imaginar”3. Com toda essa informação podemos ainda indagar se há possibilidades de se levar em conta as experiências de outros saberes? Com isso suas mortes já podem ser decretadas? Abaixo apresentaremos a necessária e urgente ascensão do senso comum à ciência sem haver ruptura, ou até mesmo morte, pautando-se no jeito freireano de “pensar certo”, ou melhor, conduzidos pela Educação Popular que 3 22 Cf. https://www.pensador.com/frase/OTA1NDQ5/. Acesso em 10 de julho de 2019. SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS será ponte entre dois mundos, que consistem e existem em um só. Da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica Após termos apresentado que a ciência não é absoluta nem única forma de saber, e de que semelhante concepção não humaniza, pois desdenha dos outros saberes, impossibilitando-os de colaborar com a construção de uma verdadeira maneira de pensar, que busque conhecer sem cessar. Agora vamos esmiuçar, no molde freireano de refletir, como se dá a mudança da curiosidade ingênua (ou senso comum) à curiosidade epistemológica (ou pensar certo), sem provocar o epistemicídio. Este, conforme Rigotto e Tupinambá (2019), representa o triunfo de um único saber sobre o malogro de outros, que para elas está muito bem expresso nas falas de Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Menezes, da seguinte forma: [...] a epistemologia ocidental dominante não possibilita a copresença entre a humanidade moderna [...] e a sub-humanidade moderna que esta mesma epistemologia engendrou: selvagens sub-humanos, indígenas cuja alma é um receptáculo vazio, carecendo da cristianização. Tal negação radical da existência percorre os séculos para além da independência das colônias e termina por fortalecer o monopólio da ciência moderna na distinção universal entre o verdadeiro e o falso, condenando ao passado [...] todas as outras formas de conhecimento [...]: um violento epistemicídio. SUMÁRIO 23 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Isso ocorre, porque uma única forma de pensamento arroga para si o direito de ser porta voz da verdade divina aqui na terra. Então, por este motivo sua maneira de conhecer deve subjugar àqueles que não receberam tamanha missão. Durante anos, povos, tribos, nações, grupos foram simplesmente classificados de incapazes, inferiores, nãohumanos. Por serem tachados assim, estavam e estão sujeitos a todo tipo de barbárie, por parte dos autodeclarados senhores. Senhores, que segundo Freire: [...]Tendam a transformar tudo o que os cerca em objetos de seu domínio. A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homens mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seu comando. [...] Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como instrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como força indiscutível de manutenção de “ordem” opressora, com a qual manipulam e esmagam (FREIRE, 2017, 63,65). Sabedores do que os poderosos da terra podem fazer conosco, isto é razão para nos desesperarmos, e continuarmos cabisbaixos aceitando pacatamente o jugo que nos é imposto? Cabe aqui, enfatizar o que disse Alder Calado (2019), para o qual a mudança desse quadro de desumanização está intrinsecamente ligada e dependente da curiosidade epistemológica, melhor dizendo, do pensar criticamente certo freireano. Segundo Calado, isto vem informado dessa maneira: [...] Para tanto a freireana curiosidade epistemologia há de nos impulsionar nessa direção. 24 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS À contracorrente da ideologia do pensamento único, que se empenha em apagar a memória de lutas e conquistas protagonizadas pelos movimentos sociais populares, ao longo da História, e por figuras humanas que se deixaram incendiar por causas que dignificam a condição humana. Figuras coletivas e individuais cuja trajetória de luta e de honradez nos inspira forças para retomarmos o horizonte da Utopia da construção de uma sociedade justa e solidária. E exercitar uma memória que nos conduza para além (o que não quer dizer excluir) das fronteiras da Ocidentalidade, propiciando a retomada do diálogo com outros povos dos quatro cantos do mundo. Um exemplo simplório contado por Freire, elucida bem a força libertadora e humanizadora que exerce a curiosidade epistemológica, após ter deixado a curiosidade ingênua. Ele descreve tal situação da seguinte forma: Certa vez, em um desses cursos, de que fazia parte um homem que fora, durante longo tempo, operário, se estabeleceu uma dessas discussões em que se afirmava a “periculosidade da consciência crítica”. No meio da discussão, disse este homem: “Talvez seja eu, entre os senhores, o único de origem operária. Não posso dizer que haja entendido todas as palavras que foram ditas aqui, mas uma coisa posso afirmar: cheguei a esse curso ingênuo e, ao descobrir-me ingênuo, comecei a tornar-me crítico. Esta descoberta, contudo, nem me faz fanático, nem me dá a sensação de desmoronamento” (FREIRE, 2017, p. 31-32). SUMÁRIO 25 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Esse relato, aborda-nos que o conhecimento só se adquire através do diálogo entre diferentes, que dialogando se descobrem pares. Para que isto aconteça, todos têm que estar numa mesma altura, num mesmo patamar; reconhecendo, apenas, que nada sabem, pois quem aparenta saber muito termina provocando um gargalo na comunicação que, por sua vez, descaracteriza a proposta inicial. Percebamos que a situação ingênua do operário, que ele próprio a descreve como sendo ‘fanatismo e sensação de desmoronamento’ ou perda total, tem a ver com a “sectarização”, atributo, segundo Freire (2017, p.34), advindo da educação que ele mesmo chama bancária; ao passo que com à crítica ele (operário) se descobre ingênuo, ou melhor, passa a ser radical e, consequentemente, também a ‘pensar certo’. Este tipo de situação, assemelha-se àquela posição em que se encontravam os homens na subterrânea e opaca caverna platônica. Homens domesticados, convencidos de que a realidade não passava daquela fundura, cuja libertação, caso viesse acontecer, dar-se-ia por meio de uma luz que vem de fora, do alto da caverna. Essa claridade exógena, aparentemente, de traços de “bancarismo”, utilizando-se do vocábulo freireano (1996, p. 25), representa bem o objetivo pelo qual é necessário manter as pessoas ingênuas. Desta forma, elas passam a reproduzir ideias que acreditam ser delas mesmas, as quais na verdade não são. Lembremos de que o operário não precisou de uma força externa, para se descobrir ingênuo, mas a partir do diálogo aberto do grupo, suscitou nele a curiosidade epistemológica, fazendo com que o mesmo se perceba ingênuo. Só dessa maneira é que, ajudando-nos 26 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS mutuamente, conseguiremos apanhar os frutos da árvore do bom conhecimento. Conhecimento que deve ser ensinado, e não transmitido, uma vez que, somente se ensina aprendendo e vice-versa. Por este motivo, não existe conhecimento sem aprendizado. Aprender e ensinar são verbos que não se descolam; coexistem simultaneamente; um instiga o outro, e ambos se completam e interagem para desvelar a desafiadora realidade que nos cerca. Quem já não ouviu expressões como: “ninguém nasce sabendo”, ou “ninguém sabe tudo”. Dizeres deste tipo, da mentalidade diária, reforçam o que dissemos à pouco. Surgidos do jargão popular, eles não deixam de refletir uma verdade, de trazer um fundamento, uma significância, servindo de orientação àqueles que no auge de sua pujança cognitiva, esquecem ou até negam que o aprendizado é uma constância. Isso nos faz lembrar de outro binômio voltado, especificamente, para à educação enquanto ciência. De natureza acadêmica, esse binômio, ensino-aprendizagem como é conhecido, revela-nos um modo de ser humano que resulta no conhecimento. Este suscitado pela insaciável sede de saber, ou melhor, pela curiosidade de aprender, que nas palavras de Paulo Freire quer dizer dessa maneira: Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar [...]. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender (FREIRE, 1996, p. 24). SUMÁRIO 27 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Desse modo, ensino-aprendizagem, conduz-nos ao conhecimento, que é àquilo que nós mesmos somos. Com isso, conhecer e ser designam o nosso modo de serno-mundo, o qual para Aristóteles (2002, p. 18) implica a “todos os homens, por natureza, tendem a saber”. Neste ponto, não quer dizer que houve o atropelo do ensinoaprendizagem, porém a demonstração teleológica pela qual resulta do processo binomial citado. Esta constatação passou a ser imprescindível e determinante para se construir o modo de ser humano. Modo de ser não isolado do mundo, todavia no mundo. Isto para discordar da dicotomia que separa homem de mundo e mundo de homem atrelada à prática dominadora. Freire (2017, p. 98) contrariamente a isso, assevera-nos que a prática libertadora, que é outro jeito para chamar a curiosidade epistemológica, “[...] implica a negação do homem abstrato, isolado solto, desligado do mundo, assim como também a negação do mundo como uma realidade ausente dos homens”. Diferente do animal que não precisa conhecer, apenas se adaptar ou se adequar ao seu ambiente natural; o ser humano necessita não só de conhecer o mundo, como também conhecer a si mesmo. Isto é o que o torna humano. É próprio dele. No que concerne a isso, não significa que ele, simplesmente, é o que é, porque é animal racional. Mas racional, logo, homem. Compete neste ponto, que nos valhamos da afirmação de Freire (1996, p. 25) na qual ele denota que “[...] Esta é uma das significativas vantagens dos seres humanos – a de se terem tornado capazes de ir mais além de seus condicionamentos”. Isso para dizer que, o ser humano para conhecer autenticamente, ou no dizer freireano o “pensar certo”, tem que transcender à curiosidade ingênua, e chegando na 28 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS curiosidade epistemológica não esquivá-la. Nas palavras de Paulo Freire, isto está dito dessa forma: Não há para mim, na diferença e na “distância” entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente “rigorizando-se” na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão. Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”, está associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de qualidade mas não de essência. (FREIRE, 1996, p. 31). Para reforçar o que foi afirmado, citemos Alves, o qual tece o comentário ulterior: O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. Para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é inferior à ciência, eu só gostaria de lembrar que por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem coisa alguma que se assemelhasse à nossa ciência. Depois de cerca de quatro séculos, desde que surgiu com seus fundadores, curiosamente a ciência está SUMÁRIO 29 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS apresentando sérias ameaças à nossa sobrevivência (ALVES, 2000 p. 21). Por causa disso, é que se pode pensar em Educação Popular como mecanismo contra hegemônico, contra epistemicídio, que se organiza a partir do e com o povo, especialmente, o oprimido. No próximo item, veremos como isso se desenvolve. Conhecimento que busca compartilhar diferentes saberes que dialogam humilde-humanamente para conhecer mais, sendo Aqui discutiremos o lugar em que surge a Educação Popular, isto é, qual o seu ponto de partida, do mesmo modo por qual motivo ela se apresenta como contra hegemônica? Para isso, é preciso sabermos o que vem a ser educação, e qual sua ligação com a palavra humanidade? Destarte, é imprescindível não desvincular educação de humanização, uma vez que coexistem, interdependem como que num processo simbiótico. Deste modo, inferimos que não há educação sem humanização, nem humanização sem educação. Para ampliar nossa compreensão concernente a isso, vale destacarmos o que disse a esse respeito, Saviani: [...] o homem não nasce homem. Ele se torna homem. Ele não nasce sabendo produzir-se como homem. Ele necessita aprender a ser homem, precisa aprender a produzir sua própria existência. Portanto, a produção do homem é, ao mesmo tempo, a formação do homem, isto é, um processo educativo. A origem da educação coincide, então, com a origem do homem. [..]. O homem é, pois, um 30 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS produto da educação (SAVIANI, 2016, p. 2021). Após constatarmos de que educação é um processo, essencialmente, de humanização, mesmo assim com essa compreensão generalizada, não podemos esquecer-nos de sua complexidade, assim como de seu viés político, o qual se evidencia em sua prática pedagógica, dando a entender que a mesma tem inclinação preferencial pelo lado que lhe convém. Assim sendo, é viável falar de vários tipos de educação, afunilando-as por causa desse teor complicado e tendencioso que a compõe. Contudo, independente de qual tendência ela chegue a se manifestar, é importante sempre lembrar para não perder de vista o verdadeiro motivo pelo e para o qual ela existe, isto é, humanizar. E isto é inconcebível à educação dominadora, visto que a própria favorece a desumanização. Segundo Gadotti (2012), isso está articulado desse jeito: A educação é um fenômeno complexo, composto por um grande número de correntes, vertentes, tendências e concepções, enraizadas em culturas e filosofias diversas. Como toda educação é política, como nos ensinou Paulo Freire, ela não é neutra, pois, necessariamente, implica princípios e valores que configuram uma certa visão de mundo e de sociedade. Daí existirem muitas concepções e práticas da educação. Não dá para falar de uma educação em geral, separando-a de seu contexto histórico. É preciso qualificar de que educação estamos falando, a partir de que ponto de vista. E como todo ponto de vista é a vista de um ponto, preci- SUMÁRIO 31 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS samos indicar de que lugar, de que território, estamos falando. Toda educação é necessariamente situada historicamente. Em ressonância com o referido argumento, Caldart, lendo os sinais dos tempos, completa a discursão e faz uma convocação para todos (as) pessoas de boa vontade, na qual explicita o eminente perigo que corre a humanidade, subjugada pelo hegemônico capital. A partir disto, ela convoca a todos(as) para o engajamento originariamente popular: uma alternativa contra hegemônica, que se opõe ao interesse desumanizador do capitalismo, o qual se apropria do destino de todo o planeta, tornando-nos nada mais do que meros reféns de suas vontades. Por isto, também comenta acerca de uma imediata e fundamental formação humana, que assista e prepare bem as bases populares contra as investidas dos dominadores. Assim, ela esbraveja categoricamente: Vivemos em um tempo de novas sensibilidades para questões que se referem aos processos de formação humana [...]. Exatamente porque estamos em um momento da história em que o ser humano aparece em perigo, e então estamos sendo convocados a fazer algumas escolhas decisivas sobre como será o futuro da humanidade [...]. O capitalismo, sistema social ainda hegemônico no mundo, vem se mostrando cada vez mais desumanizador e cruel em sua lógica. Por isto estão de volta as grandes questões sociais sobre nosso destino (CALDART, 2000, p.16). 32 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Não é excessivo relembrarmos a relevância, bem como a urgência de se erigir uma reflexão a respeito de uma educação exclusivamente proveniente das classes desfavorecidas da sociedade. Isto poderia soar a uma retórica atrelada ao passado, já que se falou tanto sobre e em defesa dos empobrecidos e de sua exploração proveniente do capitalismo. Seria bom se isto só estivesse registrado em livros de história, mas o que se vê é um quadro repetitivo de um sistema desumano, cuja finalidade é jogar à sorte mulheres e homens destituindo-os de suas humanidades. Por isto, é importante destacar aqui, a ratificação de Semeraro, na qual cita Gramsci dando realce à formação genuinamente das classes populares. Para ele, isto vem redigido da subsequente forma: Como para todo grupo social que queira conquistar sua hegemonia, ainda mais quando se trata das classes populares, Gramsci deixa claro que estas precisam passar por um processo constitutivo de sua identidade, de sua intelectualidade e por uma educação que exige a construção rigorosa de um saber mais avançado e socializado (SEMERARO, 2006, p. 21). Por essa razão, Freire em sintonia com o pensamento gramsciano, não hesita em dizer quão relevante é teorizar, dar rigor às práticas suscitadas do meio popular, protagonizando-as, de forma a viabilizar as alternativas gestadas endogenamente, para que nelas e delas haja o verdadeiro humanizar-se. Neste sentido, ele exclama: Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparação para entender o significado SUMÁRIO 33 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela (FREIRE, 2017, p. 42-43). Para enriquecer, ainda mais esse assunto, o próprio Freire (2017, p. 252) no final de seu livro, Pedagogia do Oprimido, deixa claro qual a finalidade e fundamento de todo seu ímpeto em escrever tal obra. Segundo ele, “[...] assim como o opressor, para oprimir, precisa de uma teoria da ação opressora, os oprimidos, para se libertarem, igualmente necessitam de uma teoria de sua ação”. A Educação Popular, no que lhe concerne, surge simultaneamente com a realidade que ela se depara, a saber, o contexto sócio-político-econômico dos debaixo da pirâmide social. Por esta razão, ela é uma das poucas riquezas de que o povo tem, e digo mais, seu próprio paladino. Por ser de origem popular, ela é horizontalmente ponte entre a curiosidade ingênua e a curiosidade epistemológica, possibilitando a recíproca partilha de saberes. Por isto, não pode ser arco-íris, visto que sua forma arqueada reforça e conserva a ideia de subordinação, a ideia bancária de transmissão de conhecimento, ou seja, aquela visão que considera o outro receptáculo de saberes, visto que não passa de tábula rasa, sem conhecimento algum. Por ser de cepa ordinária, a Educação Popular comumente é tratada como um conhecimento eivado de supersticiosidade, crendices. Está mais para um saber folclórico, propriamente dito, do que uma forma cientifica 34 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS de conhecer, uma vez que sua emergência, dá-se mediante vínculo intrínseco às camadas abastardas da sociedade. A estas classes, costumam-se pejorativamente associa-las à pessoas humildes; como se humildade fosse àquela concepção nietzscheana de rebanho, na qual o pastor responsável pelo aprisco, exerce essa função para domesticar as ovelhas que lhe são obedientes. Aqui humildade passa a ter caráter adjetivo de ser, pois se assemelha à humanidade, ou outra palavra para pronunciar o mesmo sentido. De tal maneira que, ambas as palavras, originariamente latinas, correspondem a húmus, o qual significa terra. Daí, compreender que homem é feito de terra, de barro, literalmente falando. Daí, também, entender que humildade é característica humana de ser, de ser na terra, de ser no mundo; longinquamente está unida a mera compreensão de ovelha domesticada, ou a miserabilidade. Por esse motivo, compartilhar conhecimento tem tudo a ver com humildade, que é o jeito de ser de uma Educação Popular, porque, de acordo com Freire: Os homens que não têm humildade ou a perdem não podem aproximar-se do povo. Não podem ser seus companheiros de pronuncia do mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais (FREIRE, 2017, p.112). Aqui, não pode haver hegemonia de nenhuma parte, pois o diálogo é horizontalizado, visto que sua SUMÁRIO 35 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS verticalidade, seria o fim ou a impossibilidade de tal feito, isto é, o compartilhamento de conhecimentos só ocorrerá na medida que, as partes interessadas estiverem envolvidas nesse projeto. Por isto, não adiantaria se uma das partes mostrar interesse, e a outra não. Deste posicionamento, resultaria num impasse e o embate persistiria. Com isso queremos mostrar que em relação ao conhecimento compartilhado ocorre semelhante situação. Sabemos que existem vários saberes, muitos dos quais não reconhecidos da mesma maneira que os conhecimentos ditos científicos e/ou filosóficos, ou seja, os conhecimentos de origem popular. Estes, por sua vez, recebem a estigma de inferioridade, insignificância, já que suas concepções de mundo, realidade não coincide em nada com os dois tipos de conhecimentos citados. Isso é a patente característica dos que insistem em manter, para proveito próprio, a dicotômica realidade entre opressores e oprimidos; ricos e pobres; cultos e incultos; humanos e sub/sem humanidades; ciência/filosofia e senso comum. Esta separação aparenta ser normal, natural. Há quem diga que isso acontece desde o começo, sempre foi assim, e assim será. Este entendimento apenas fortalece o anuviamento que existe, e não esclarece, nem intenciona esclarecer, visto que conservar essas ideias faz com que, a plêiade dos doutos, julgue-se acima do bem e do mal. Se quisermos uma autêntica e integral humanidade, temos que começar a construí- la, combatendo até chegarmos a destruir esse paradigma de petulância epistemológica, a qual evita usar as sandálias da humildade, para não parecer conhecimento comum, normal, ou mortal. Com isso chegamos à conclusão, a partir de Freire, de que o resultado do pensar certo ou curiosidade 36 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS epistemológica, chama-se humilde-humanidade, porque sem isso não se consegue promover diálogo com o outro diferente, o qual é igualmente a mim. É somente nessa perspectiva que se entende o ato compartilhado de dar e receber conhecimento, para que ambos, quem dá e quem recebe, possibilitem uma troca harmoniosa e equilibrada de experiências advindas de cada realidade particularizada. Neste sentido, não há quem perca ou mesmo quem ganhe, mas o que existe é a reciprocidade desembocando num verdadeiro aprendizado, que se movimenta em função de um compartilhamento solidarizado ou coletivo, buscando apenas conhecer mais, pois conhecendo mais, somos também mais. Considerações finais O trabalho não teve em vista fazer uma apologia hermeticamente dogmática à Educação Popular, do mesmo modo que não caracterizou uma contra ofensiva à ciência, fazendo com que a mesma deixasse de ser o conhecimento rebuscado, frequentemente afamado, para ser senso comum. Não foi isso o pretendido aqui, todavia buscamos, e somente isso, incitar uma reflexão de maneira que nos levasse a um profundo entendimento do que vem a ser “pensar certo” que, por sua vez, está associado a agir certo. Deste modo freireano, entende-se isto como o caminho para se humanizar. A partir disso, compreende-se toda e qualquer ação correta mediante processo dialógico, como uma tentativa de transcender às barreiras impostas pela hegemônica concepção de pensamento único, a qual relativiza e SUMÁRIO 37 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS vilipendia os diferentes saberes, rotulando-os de não-saberes, por se tratar de conhecimentos originalmente populares. Disso, advém e compreende-se a Educação Popular como educação libertadora e humanizadora, a qual dialoga com as variadas formas de saberes, especificamente as concernentes ao povo, defendendo-as do pedantismo acadêmico, o qual persiste em desqualifica-la, por sua raiz embrionária ser de feição popular. Daí, nosso estudo levar à compreensão de que conhecer não é poder, no sentido capitalista mencionado; conhecer é humanizar-se. Disto, abre-se todas as possibilidades de compartilhar os saberes, para assim se conhecendo melhor, chegar ao verdadeiro conhecimento. 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Em vista disso, evidencia-se que ao longo de sua trajetória e desenvolvimento teórico-prático, o trabalho extensionista efetuou-se a partir de distintas abordagens metodológicas e foi orientado com base em diferentes intencionalidades políticas e perspectivas ideológicas, exprimindo dispares – e, em alguns casos, até mesmo SUMÁRIO 41 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS antagônicas − concepções de universidade e de qual seria a sua função social (ARAÚJO, 2018; CRUZ; VASCONCELOS, 2017; JEZINE, 2006; MELO NETO, 2012). Na maior parte dos casos, a dimensão da Extensão materializa-se como espaço sui generis para a concretização de ações que viabilizam a interação entre protagonistas do âmbito acadêmico e do meio social. Não por acaso, a partir do processo de institucionalização e consolidação da Extensão como elemento constitutivo do cotidiano das universidades públicas brasileiras, se sobressai a ênfase em sua necessária articulação indissociável com o Ensino e a Pesquisa, fortalecendo o reconhecimento e a valorização dessa como iniciativa acadêmica que permite a construção de novos conhecimentos sobre a realidade social (ARAÚJO, 2018; CRUZ; VASCONCELOS, 2017; JEZINE, 2006; MELO NETO, 2014). De modo geral, a compreensão da razão de ser da Extensão está proficuamente relacionada com o “conhecimento”. Assim, observa-se uma gama diferenciada de concepções amplamente disseminadas no ambiente acadêmico sobre o que vem a ser a Extensão e como o conhecimento será concebido e trabalhado em sua execução − o que é evidenciado e sobretudo reforçado pelos documentos elaborados pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras (FORPROEX) −, as quais podem ser caracterizadas ao menos da seguinte forma: a) a Extensão como possibilidade de socialização/disseminação do conhecimento científico; b) a Extensão como lugar de aplicação do conhecimento produzido no interior da universidade; c) a Extensão como espaço de encontro de saberes; d) a Extensão como lugar de troca de saberes acadêmico e popular (FORPROEX, 2012). 42 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Tradicionalmente, as práticas de Extensão têm sido marcadas por uma estrutura relacional rígida, vertical e antidialógica, com uma tendência unívoca, caracterizandose como uma via de mão única. No entanto, assinala-se que é necessário reconhecer que o entendimento da atividade extensionista pode ir muito além dessa percepção simplista e equívoca que forjou-se ao longo da história (e que porventura, ainda é tão atual), a qual concebe a Extensão unicamente como uma ação da instituição universitária que se “estende” até o povo, e que ao chegar lá, “deposita” algo. Isto é, a partir de um movimento que se desenrola de dentro da universidade para fora, em um sentido de mão única, implicando em uma invasão cultural, que na verdade desempenha um papel de dominação e “domesticação”, como bem enfatizaram Paulo Freire (2015), Roberto Mauro Gurgel Rocha (1986) e José Francisco de Melo Neto (2002). Como delineado por Boaventura de Sousa Santos (2007), historicamente a universidade tem apresentado um caráter veementemente colonial, contribuindo de forma expressiva na negação, depreciação e subalternização dos saberes de diferentes grupos socioculturais. Bem como colaborando para a hierarquização de conhecimentos e a consolidação do saber científico como a modalidade de racionalidade superior, dando prioridade epistemológica à ciência como detentora do direito universal de assinalar o que pode ser considerado como verdadeiro ou falso, racional e irracional, credível e incredível. Na leitura de Santiago Castro-Gómez (2007), o modelo hegemônico de universidade – sobretudo as latinoamericanas − tem sido baseado em um padrão epistêmico impregnado pela racionalidade moderna ocidental, o qual exprime um “olhar colonial sobre o mundo”. De SUMÁRIO 43 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS acordo com esse autor, essa forma de racionalidade se reproduz na conformação do pensamento disciplinar e na própria maneira da instituição universitária se organizar estruturalmente. Assentando-se no que ele denominou de estrutura triangular da colonialidade, o que engloba as colonialidades do ser, do poder e do saber. Nas duas últimas décadas, houve um significativo incremento no debate sobre o pensamento de(s)colonial e pela valorização das culturas e saberes dos povos ancestrais − que foram submetidos à dominação, à exploração e à violência colonial (e neocolonial) −, assim como dos diferentes grupos socioculturais que vêm sendo, nas sociedades capitalistas modernas, sistematicamente explorados e subalternizados − sobretudo por razões de gênero, de raça e de classe social. Tal destaque a respeito da de(s)colonização epistêmica, pode ser constatado, por exemplo, nas obras organizadas por Boaventura de Sousa Santos (2004a), Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2009), Catherine Walsh (2017), Edgardo Lander (2005), Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel (2007), entre outras. No campo da Educação Popular, é observada a existência de uma diversidade de práticas sociais com abordagens e temáticas distintas, que se efetivam em variados espaços e realidades (STRECK; ESTEBAN, 2013). Nessas práticas, por meio de diferentes estratégias teóricometodológicas, busca-se a valorização do saber popular, o respeito pela cultura, a promoção da participação popular, o estímulo e o fortalecimento da autonomia dos sujeitos sociais. Pressupostos que passam, necessariamente, pela concepção de construir conhecimentos e estratégias de ação sobre e para a transformação da realidade social de 44 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS forma coletiva, dialógica, compartilhada. O que, na posição assumida neste artigo, se qualifica como possibilidade fecunda para a produção contra-hegemônica de saberes de(s)coloniais. Diante disso, sublinha-se a constituição de um amplo campo de experiências extensionistas que se fundamentam com base em uma abordagem dialógica e crítica do trabalho social universitário, que têm na formulação latino-americana de Educação Popular o seu aporte epistemológico, teóricometodológico e ético-político inspirador, as quais confluem na composição do que tem sido denominado de Extensão Popular (CRUZ, 2018; MELO NETO, 2014). A partir da Extensão Popular, parte-se do entendimento da atividade extensionista como um trabalho social útil que busca mobilizar iniciativas de Ensino e de Pesquisa, de modo indissociável, na realização de ações acadêmicas que visem contribuir com os processos de educação popular e de transformação social que já vêm sendo desenvolvidos por diferentes sujeitos e grupos socioculturais (CRUZ, 2018; MELO NETO, 2014). Em virtude do exposto, como forma de situar essa problemática no debate sobre os desafios da Extensão para a produção de conhecimentos à luz da de(s)colonialidade, o presente manuscrito objetivou apresentar, mesmo que de maneira breve, alguns subsídios teóricos que tratam a respeito da colonialidade do saber e sobre a viabilidade da construção compartilhada do conhecimento pela perspectiva da Educação Popular como preceitos teóricoepistemológicos a serem considerados na condução do trabalho social universitário. Desse modo, optou-se por estruturar o manuscrito a partir dos seguintes tópicos: i) As dimensões colonial e eurocêntrica do conhecimento SUMÁRIO 45 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS moderno hegemônico no Ocidente; ii) A construção compartilhada do conhecimento como pressuposto de(s) colonial da Educação Popular. Cabe salientar que este artigo resulta de uma pesquisa original teórica desenvolvida por ocasião de estudos do autor em sua trajetória como discente do Curso de Mestrado Acadêmico em Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, na Linha de Pesquisa de Educação Popular. Metodologicamente, este estudo efetuou-se a partir de uma abordagem qualitativa, que se deu por meio da realização de uma análise bibliográfica do tipo exploratória, ancorada no aporte teórico de autores como Aníbal Quijano (2005), Boaventura de Sousa Santos (2002; 2004b; 2007; 2010), Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2009), Edgardo Lander (2005; 2006), Enrique Dussel (2005) e Walter Mignolo (2004), para tratar do tema da colonialidade do saber. Para abordar sobre a construção compartilhada do conhecimento, recorreu-se ao referencial teórico de autores que têm contribuído com a fundamentação do campo da Educação Popular latino-americana, tais como Alfonso Torres (2013), Carlos Rodrigues Brandão (2006), Carlos Rodrigues Brandão e Danilo Romeu Streck (2006), Danilo Romeu Streck e Maria Teresa Esteban (2013), João Francisco de Souza (2007), Marco Raúl Mejía (2013; 2016), Orlando Fals Borda (1985; 1991), Luis Eduardo Mora-Osejo e Orlando Fals Borda (2004), Oscar Jara (2010), Paulo Freire (1985; 2001; 2008; 2013; 2015), Reinaldo Matias Fleuri (2018; 2019), entre outros. 46 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS As dimensões colonial e eurocêntrica do conhecimento moderno hegemônico no Ocidente Todo conhecimento é contextual; por isso, não há conhecimento que seja desvinculado de práticas e sujeitos sociais. Assim, toda experiência social viabiliza a produção e reprodução de conhecimentos. De modo que, diferentes relações sociais dão origem a diferentes tipos de epistemologias, o que decorre das tensões e contradições presentes nas próprias experiências sociais; já que essas, de modo geral, se constituem a partir de distintos tipos de relações sociais, em suas expressões culturais (de caráter intracultural e intercultural) e políticas (com disposição díspar de poder). Diante disso, pode-se assinalar que as experiências sociais são conformadas pela interface entre variados conhecimentos, os quais apresentam em sua constituição os seus próprios critérios de validade (SANTOS; MENESES, 2009). No entanto, salienta-se que desde o século XIX, tem predominado no Ocidente uma epistemologia que tem negado a existência do contexto cultural e político do processo de produção e reprodução do conhecimento − que se materializa na concepção de ciência moderna, expressando um pretenso caráter de universalidade −, que tem sua gênese resultante de uma intervenção epistemológica que se origina a partir da imposição do regime colonial e do capitalismo moderno às sociedades, aos povos e às culturas não-ocidentais e não-cristãs (SANTOS; MENESES, 2009). De acordo com Aníbal Quijano (2005), a constituição da América está atrelada ao advento do capitalismo colonial/ moderno e eurocentrado como modelo de poder global. SUMÁRIO 47 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Poder esse que deriva da imposição da noção de raça/ etnia – estabelecendo um modelo de classificação social de grupos, povos e nações, diferenciando conquistadores e conquistados. Assim como conferindo certa normalidade ao processo de inferiorização e exploração de europeus pelos não-europeus −, sendo esse um constructo subjetivo que serviu como base para a consolidação da dominação colonial. Alimentando, inclusive, a configuração de uma racionalidade moderna hegemônica, denominada pelo autor de eurocentrismo. No entanto, salienta Anibal Quijano (2005) que, apesar de sua natureza estar assentada em uma matriz colonial, tal perspectiva tem demonstrado − mesmo com o fim do colonialismo − a sua profusão como colonialidade do poder. O que é consubstanciado por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2009), ao indicarem que: [...] o fim do colonialismo político, enquanto forma de dominação que envolve a negação da independência política de povos e/ ou nações subjugados, não significou o fim das relações sociais extremamente desiguais que ele tinha gerado (tanto relações entre Estados como relações entre classes e grupos sociais no interior do Estado) (p. 12). Com o controle do mercado mundial e ocupando lugar de centralidade no capitalismo mundial, a Europa pôde expandir seu domínio colonial sobre todos os territórios e povos do globo, integrando-os ao moderno “sistema-mundo” que estava se configurando e submetendo-os ao seu novo padrão de poder (QUIJANO, 2005). Isto é, sob a égide do 48 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS projeto de modernidade e civilização, estava a justificativa necessária para legitimar o colonialismo (MIGNOLO, 2004). Diante disso, pode-se destacar que: Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia europeia ou ocidental. Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento (QUIJANO, 2005, p. 110). Assim, a partir de diferentes formas e meios, buscou-se reprimir aos povos colonizados a possibilidade de produção e reprodução de conhecimentos, de manutenção de seu universo simbólico, do uso de expressões fundadas em seus próprios padrões e sentidos, da corporificação de suas subjetividades. Nesse sentido, compeliu-se que os povos dominados assimilassem a cultura dos colonizadores, principalmente nos aspectos que fossem concernentes a consolidação da dominação na esfera objetiva-material e subjetiva (QUIJANO, 2005). Portanto, por meio desse processo, implicou-se na “colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura” (QUIJANO, 2005, p. 111). Nessa acepção, como assinalado por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2009, p. 7): SUMÁRIO 49 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS O colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade. A profusão de tal intervenção acarretou na depreciação e supressão das mais diversificadas práticas sociais de conhecimento que pudessem representar alguma forma de contrariedade aos interesses hegemônicos; legitimando, assim, o epistemicídio dos conhecimentos locais. O que ocasionou no desperdício de experiência social e na diminuição da diversidade epistemológica e cultural. Dessa forma, “sob o pretexto da ‘missão colonizadora’, o projeto da colonização procurou homogeneizar o mundo, obliterando as diferenças culturais” (SANTOS; MENESES, 2009, p. 10). Não obstante, quando sobreviventes, tais experiências e diversidade de saberes foram sendo definidos tendo como parâmetro o modelo epistemológico dominante. Desse modo, passaram, então, a serem concebidos como saberes locais e contextuais, que tinham sua serventia vinculada à sua possível utilidade como matéria-prima para o desenvolvimento de conhecimento científico ou como instrumento indireto de dominação, inculcando uma falsa noção de autogoverno nos povos colonizados (SANTOS; MENESES, 2009). À esse respeito, Walter Mignolo (2004) evidencia que a história da modernidade sempre foi relatada a partir de um único ponto de vista: o europeu. Articulado a isso, 50 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS funda-se o mito de que a modernidade e a racionalidade são produções da Europa (DUSSEL, 2005; QUIJANO, 2005), como se a origem da história da humanidade tivesse no continente europeu o seu berço e fossem eles os seus únicos protagonistas – o que Enrique Dussel (2005), de diferentes formas, já demonstrou inequivocamente se tratar apenas de um invento ideológico e eurocêntrico. Como destacado por Aníbal Quijano (2005), essa perspectiva eurocêntrica é o que está na base da concepção dualista de que a relação cultural e intersubjetiva que se deu entre os europeus e não-europeus se respaldasse em algo como primitivo/civilizado, inferior/superior, irracional/ racional, tradicional/moderno, mítico-mágico/racionalcientífico. Já para Boaventura de Sousa Santos (2004b), essa visão dicotômica que separa e hierarquiza branco/ negro, homem/mulher, capital/trabalho, saber científico/ saber tradicional, Norte/Sul, Ocidente/Oriente etc., está no cerne do que ele denominou de razão metonímica, sendo essa uma das expressões mais atuais da indolência da racionalidade hegemônica no Ocidente nos últimos duzentos anos, forjada em uma visão parcial e limitada da realidade: a visão ocidental do mundo. Nessa perspectiva, Walter Mignolo (2004) descreve que no seio da revolução científica, enquanto fato suntuoso da humanidade, estava implicada a negação à uma outra parte da humanidade da possibilidade de pensar. Logo, percebia-se que a consagração da modernidade, por um lado, ocultava a colonialidade, de outro − revelando-se, então, que não há modernidade sem colonialidade. De modo que a concepção de “ciência” e de “conhecimento científico” não são neutros e também estão imbrincados em tal evento. SUMÁRIO 51 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Em razão disso, convém sublinhar que a concepção de eurocentrismo, conforme trabalhada por Aníbal Quijano (2005, p. 115): Não se trata, em consequência, de uma categoria que implica toda a história cognoscitiva em toda a Europa, nem na Europa Ocidental em particular. Em outras palavras, não se refere a todos os modos de conhecer de todos os europeus e em todas as épocas, mas a uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo. Conforme Walter Mignolo (2004), os modelos epistemológicos configurados a partir da teologia, da filosofia e da ciência, deram a base para a negação da racionalidade de todos os outros tipos de conhecimentos que não se enquadravam dentro desses padrões. Desvelando a intimidade existente entre a modernidade e a racionalidade e, sobretudo, assumindo a sua colonialidade por meio da rejeição e opressão epistêmica. Por esse motivo, Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 8, tradução nossa) indica que “o fim do colonialismo político não significou o fim do colonialismo nas mentalidades e subjetividades, na cultura e na epistemologia, o que pelo contrário continuou reproduzindo-se de modo endógeno”. Isto posto, na acepção de Walter Mignolo (2004, p. 668): “a descolonização já não é um projeto de libertação das colônias, com vistas à formação de Estados-nação 52 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS independentes, mas sim o processo de descolonização epistêmica e de socialização do conhecimento”. Nas últimas décadas, diferentes autores têm lançado duras críticas ao caráter eurocêntrico e colonial dos saberes modernos hegemônicos no Ocidente (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007; LANDER, 2005; SANTOS; 2004a; SANTOS; MENESES, 2009; WALSH, 2017). Como denotado por Aníbal Quijano (2005), apesar do advento da conquista de independência por parte de vários povos e nações do Sul global, o colonialismo tem se perpetuado na forma de colonialidade do saber e poder. Avançando em tal crítica, Boaventura de Sousa Santos (2010) reforça que a racionalidade hegemônica no Ocidente tem suas raízes e intencionalidade assentadas nas necessidades decorrentes do processo de dominação capitalista e colonial – estando associado ao que ele tem denominado de pensamento abissal. Em conformidade com Boaventura de Sousa Santos (2010), na perspectiva do pensamento abissal, o mundo está dividido por uma linha abissal que separa em dois universos distintos a realidade social – em os que estão “do lado de cá” e os que estão “do lado de lá” da linha −, sendo essa cisão tão radical ao ponto de aquilo que se encontra do “outro lado” estar disposto como inexistente, de modo que esse se extingue de fato, desaparecendo como realidade tangível. Ou seja, esse é um pensamento que: [...] opera pela definição unilateral de linhas radicais que dividem as experiências, os atores e os saberes sociais entre os que são visíveis, inteligíveis ou úteis (os que estão deste lado da linha) e os que são invisíveis, ininteligíveis, esquecidos ou perigosos (os que estão SUMÁRIO 53 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS do outro lado da linha) (SANTOS, 2010, p. 8, tradução nossa). Como caracterizado por Boaventura de Sousa Santos (2010), essa distinção é tão drástica ao ponto de inviabilizar a copresença dos saberes situados em lados diferentes da linha abissal – não podendo esses serem nem mesmo considerados como o “outro”. Por esse ponto de vista, a ciência moderna é a possuidora exclusiva do direito universal de indicar o que é verdadeiro ou falso, já que no embate epistemológico entre saber científico e saberes não-científicos, foi à ciência moderna quem deteve tal monopólio, em detrimento da razão filosófica e da fé religiosa. Todavia, salienta-se que essa “tensão” entre a ciência e outras formas de conhecimentos (filosófico e teológico) tem ocorrido apenas “do lado de cá” da linha abissal. Já que “do outro lado” da linha, residem os saberes que não são considerados como conhecimentos sistemáticos, tais como os saberes populares, indígenas, camponeses, entre outros; os quais são tidos como irrelevantes, incompreensíveis, incomensuráveis, sendo esses fundamentados em meras crenças, idolatria ingênua, intuição subjetivista, magia, e assim por diante. De maneira que esse processo de depreciação e inferiorização cognitiva esteve fortemente articulado à negação da própria natureza humana de determinados grupos – onde, tomando como exemplo o caso dos povos do Sul geográfico, que pelo olhar dos “humanistas” do século XV e XVI eram considerados como selvagens sub-humanos (SANTOS, 2010). No que diz respeito à isso, como bem pontuou Walter Mignolo (2004), a celebração da razão científica ocidental se consolidou arraigada na negação das outras racionalidades 54 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS e formas de conhecimento. Em vista disso, é importante sublinhar o enfatizado por Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 36, tradução nossa), como forma de evidenciar que isso não correu à toa, já que: “A negação de uma parte da humanidade é [algo] sacrificial, na medida em que constitui a condição [essencial] para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal”. Na interpretação de Boaventura de Sousa Santos (2004b), existe uma ampla e variada riqueza advinda de inúmeras experiências e prática sociais que estão espalhadas por diversos lugares do globo, as quais não são consideradas e nem percebidas em sua real magnitude pelo pensamento científico tradicional em hegemonia no campo das ciências sociais. O que, no entendimento desse autor, acarreta no desperdício de uma gama extensa de experiências sociais. Para Boaventura de Sousa Santos (2004b), esse desperdício de experiência está no cerne da concepção dominante de que não há alternativas viáveis no estágio atual de globalização neoliberal, declarando-se, assim, “o fim da história”. Conforme delineado por Boaventura de Sousa Santos (2004b), a superação desse desperdício de experiência – que vise dar visibilidade as iniciativas e experiências ocultadas e descreditadas – não seria possível de se concretizar por meio da ciência social tradicional. Segundo ele, tal perspectiva só seria possível a partir da constituição de um outro modelo de racionalidade. Como exposto por Boaventura de Sousa Santos (2004b), para que seja possível realmente conhecer e valorizar a infinitude de conhecimentos e experiências sociais existentes, é iminente a assunção de uma sociologia das ausências – isto é, a feitura de um processo investigativo que permita desvelar que o que é considerado como “nãoSUMÁRIO 55 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS existente” é, em realidade, resultado de um conjunto de ações que produzem a sua não-existência, configurando elementos inteligíveis em ininteligíveis. Desse modo, pode-se indicar que o que a sociologia das ausências se propõe é transformar as ausências em presenças, como forma de superar a monocultura do conhecimento vigente, que é responsável pela produção da não-existência, decorrente da desqualificação, invisibilização e descarte de experiências e saberes não-ocidentais (SANTOS, 2004b). Diante disso, o mesmo sublinha que: [...] a pobreza da experiência não é expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que a podemos identificar e valorizar (SANTOS, 2004b, p. 785). Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos (2004b) salienta que, a partir da sociologia das ausências, o que se pretende é a evidenciação de outros saberes e de outros critérios de validade oriundos de práticas sociais consideradas como não-existentes, em vista de sobrepujar a monocultura do conhecimento científico e estabelecer uma ecologia de saberes. Por conseguinte, Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 49, tradução nossa) indica que a concepção de ecologia de saberes está embasada no “reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é interconhecimento”. 56 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS De acordo com Edgardo Lander (2006), na América Latina, se observa historicamente a predominância das correntes do pensamento colonial-eurocêntrico, em que as principais leituras sobre as realidades sociais são fundamentadas com base na cosmovisão europeia, assim como pela ideia de que as sociedades do Norte eram o modelo de civilização que deveria ser imitado/copiado pelo Sul. Entretanto, outras vertentes de pensamento e outras formas de conhecimento sobre as realidades dos territórios da região têm se desenvolvido de forma “marginal”. Não obstante, algumas dessas perspectivas têm levantado a bandeira em defesa dos saberes e dos modos de vida dos povos ancestrais, que há muito tempo se apresentam como uma expressão da resistência cultural, articulada à lutas no campo político a partir de processos de mobilização e organização popular. À esse respeito, na perspectiva apontada por Boaventura de Sousa Santos (2010), faz-se imprescindível que se busque exercitar um certo distanciamento da teoria crítica eurocêntrica, não com o intuito de desqualificar essa tradição e descartar todo seu acumulado teórico-crítico. Na posição assumida por ele, se sobressai a compreensão de que no presente momento não se requer teorias de vanguarda, mas sim teorias de retaguarda – que segundo o supracitado autor: “É mais um trabalho de artesanato e menos um trabalho de arquitetura. Mais um trabalho de testemunho implicado e menos de liderança clarividente” (SANTOS, 2010, p. 19, tradução nossa). Assim, a necessidade de de(s)colonialidade tem sido posta em evidência sobretudo a partir das críticas levantadas pelos movimentos camponeses, feministas, afrodescendentes e indígenas ao modelo de pensamento SUMÁRIO 57 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS tradicional eurocêntrico e colonial nos últimos quarenta anos (SANTOS, 2010). Diante dessa situação, Boaventura de Sousa Santos (2010) provoca, assinalando que para dar conta dos desafios contemporâneos se faz necessário “despensar para poder pensar”. Como proposta frente a esse quadro de hegemonia das epistemologias do Norte, Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2009) indicam a conformação de uma concepção designada por eles como Epistemologias do Sul, que refere-se a um [...] conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos (SANTOS; MENESES, 2009, p. 7). A construção compartilhada do conhecimento como pressuposto de(s)colonial da Educação Popular É relevante salientar que, no presente artigo, parte-se do entendimento de que a concepção latino-americana de Educação Popular se enquadra dentro de tal esfera de discussão, sendo um exemplo salutar de uma proposta epistemológica oriunda do Sul global que, como sublinhou João Francisco de Souza (2007), tem em sua essência a perspectiva de: 58 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS [...] contribuir com a construção da humanidade do ser humano em suas diferentes feições: masculinas, femininas, adultas, infantis, juvenis, idosas, adolescentes, rurais e urbanas, “rurbanas”, negras, mestiças, brancas, indígenas, no interior de suas orientações sexuais e opções ideopolíticas, entre tantas outras possíveis identidades (SOUZA, 2007, p. 124-125). Para Oscar Jara (2010), a Educação Popular é uma vertente educativa e campo teórico-prático que apresenta uma proposta político-pedagógica que visa contribuir com o enfrentamento e a superação dos processos de dominação, exploração, opressão, discriminação, exclusão e inequidades presentes na sociedade, almejando a transformação do mundo – no sentido de sua humanização – a partir da formação de sujeitos (agentes de transformação social) que possam perfazer relações sociais mais equitativas e justas, fundadas no respeito à diversidade e pela igualdade de direitos entre todas as pessoas. Com relação a isso, é crucial recordar a posição assumida por Paulo Freire (2001), ao assinalar que: [...] a educação popular cuja posta em prática, em termos amplos, profundos e radicais, numa sociedade de classe, se constitui como um nadar contra a correnteza é exatamente a que, substantivamente democrática, jamais separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade. É a que estimula a presença organizada das classes sociais populares na luta em favor da transformação democrática da sociedade, no sentido da superação das injustiças sociais. É a que respeita os educandos, não importa qual seja sua posição de classe e, por isso mesmo, leva SUMÁRIO 59 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS em consideração, seriamente, o seu saber de experiência feito, a partir do qual trabalha o conhecimento com rigor de aproximação aos objetos. [...] É a que supera os preconceitos de raça, de classe, de sexo e se radicaliza na defesa da substantividade democrática (p. 101-102). Conforme Marco Raúl Mejía (2013), a Educação Popular é uma proposta que apresenta um acumulado teórico-prático próprio, forjado desde o hemisfério Sul, o qual parte da crítica à colonialidade e que diferencia-se do pensamento eurocêntrico e das leituras/interpretações efetivadas de maneira exterior ao contexto ambiental, social, cultural, político e econômico da América Latina. Caracterizando-se como um paradigma arraigado em pressupostos teórico-metodológicos como o diálogo horizontalizado, a confrontação de saberes e a negociação cultural, essa concepção objetiva a constituição de um “saber de fronteira” construído a partir do diálogo com outras concepções teórico-críticas oriundas de latitudes distintas do Sul e também do próprio Norte. Para Danilo Romeu Streck e Maria Teresa Esteban (2013), a Educação Popular se configura como radicalmente contrária à posições dogmáticas e a sujeição do pensamento à mimetização e assimilação acrítica de referenciais descontextualizados que se pretendem “universais”. À esse respeito, as contribuições teóricas de Paulo Freire e Orlando Fals Borda ao campo da Educação Popular são dignas de destaque pelas suas dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas, bem como por sua crítica ao modelo hegemônico de ciência social e a estruturação de aportes reorientadores na produção do conhecimento, 60 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS especialmente assinalando a não neutralidade da ciência e a necessária superação da tradicional relação sujeito/ objeto. Na colocação defendida por Orlando Fals Borda (1985), a fetichização da ciência – como se fosse um ente autônomo responsável exclusivo pela conformação de nossas sociedades, habilitado a guiar e determinar os rumos da humanidade e de todas as outras formas de vida existentes no planeta, no momento presente e inclusive no futuro − é altamente improdutivo e perigoso. Pois como esboçado por ele: [...] a ciência é construída pela aplicação de regras, métodos e técnicas sujeitas a certo tipo de racionalidade convencionalmente aceita por uma pequena comunidade constituída de indivíduos chamados cientistas que, por serem humanos, estão, por isso mesmo, sujeitos a motivações, interesses, crenças e superstições, emoções e interpretações de seu desenvolvimento social, cultural e individual (FALS BORDA, 1985, p. 44). Nesse sentido, Orlando Fals Borda (1985) manifesta sua preocupação com a absolutização do conhecimento científico, já que esse variará de acordo com as preferências e interesses dos grupos socioculturais implicados na formação e produção do conhecimento, o qual hegemonicamente estará direcionado para a preservação, desenvolvimento e fortalecimento do sistema capitalista – ou seja, à serviço da manutenção do status quo. Todavia, como explicitado por Luis Eduardo Mora-Osejo e Orlando Fals Borda (2004), não se trata de embarcarmos em uma atitude de isolamento intelectual, mantendo-se SUMÁRIO 61 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS distantes do que tem sido produzido externamente e muito menos de adotarmos uma postura xenofóbica. É evidente que o conhecimento elaborado pelos países do Norte tem a sua devida importância, mas é preciso que busquemos construir e acumular conhecimentos que sejam congruentes e adequados para viabilizar o desenvolvimento das nações e povos do Sul, os quais sejam gerados por meio de um exercício autopoiético. Por conta disso, é imprescindível que se constituam espaços de interação em que os conhecimentos do Norte relacionem-se de forma horizontal e respeitosa com os conhecimentos contextualizados do Sul − provenientes do que Orlando Fals Borda (1991) cunhou de “ciência popular” – permitindo, assim, a constituição de um processo de “soma de saberes”. Consubstanciando com tal entendimento, Paulo Freire (1985) reitera o caráter eminentemente político da atividade científica e indica que é imprescindível que a todo momento o pesquisador se questione sobre a quem a sua prática investigativa está servindo e beneficiando. Nesse tocante, Carlos Rodrigues Brandão (2006) reforça que: [...] a ciência nunca é neutra e nem objetiva, sobretudo quando pretende erigir-se como uma prática objetiva e neutra. A consequência deste ponto de partida [...] é o de que a confiabilidade de uma ciência não está tanto no rigor positivo de seu pensamento, mas na contribuição de sua prática na procura coletiva de conhecimentos que tornem o ser humano não apenas mais instruído e mais sábio, mas igualmente mais justo, livre, crítico, criativo, participativo, corresponsável e solidário (p. 24-25). 62 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Para Paulo Freire (1985), a realidade é muito mais do que um aglomerado de informações e eventos que se busca apreender. Em seu ponto de vista, a realidade só é possível de ser devidamente compreendida a partir da análise da relação dialética entre os aspectos objetivos e subjetivos. Por esse ângulo, ele enfatiza que a pesquisa − como ato heurístico −, deve posicionar como seus sujeitos cognoscentes tanto os pesquisadores profissionais como as pessoas e grupos das classes populares; em que o objeto cognoscível a ser desvendado e depreendido é a realidade objetiva. Nas palavras de Paulo Freire (1985, p. 35): “a realidade concreta é algo mais que fatos ou dados tomados mais ou menos em si mesmos. Ela é todos esses fatos e todos esses dados e mais a percepção que deles esteja tendo a população neles envolvida”. Como evidenciado por Carlos Rodrigues Brandão e Danilo Romeu Streck (2006), toda investigação tem um lado pedagógico e quando se tratando da pesquisa na perspectiva da Educação Popular, se sobressai a proposta de construção solidária e compartilhada de saberes, em que o elemento principal desse processo não é o “conhecimento” em si, mas o “diálogo” das e entre ideias, experiências e percepções de mundo. Principalmente considerando que: O ser humano está em constante construção e aprendizado, não há quem tudo sabe assim como não há quem nada sabe. Dialogar é o encontro de conhecimentos construídos histórica e culturalmente por sujeitos, portanto, o encontro desses sujeitos na intersubjetividade. O diálogo acontece quando cada um, de forma respeitosa, coloca o que sabe à disposição para ampliar o conhecimento crítico de ambos acerca da realidade con- SUMÁRIO 63 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS tribuindo com os processos de transformação e humanização. Contrapõe-se assim, à visão de mundo estática e pessimista, ao afirmar que o mundo e os sujeitos que dele fazem parte e o constroem estão em permanente transformação (BRASIL, 2012, p. 14). Na visão de Paulo Freire (2015), o fenômeno educativo é indissociável do processo de ensinar e aprender, que conforme o próprio, são momentos inerentes ao ato de conhecer − isto é, uma situação gnosiológica. Além disso, Paulo Freire (2015) ressalta que o “conhecer” não pode ser reduzido à ideia de que uma pessoa convertida em “objeto” de outro receba de modo passivo e acrítico um conjunto de conteúdos alheios à sua realidade e ao seu contexto cultural. Segundo ele, a produção do conhecimento requer do sujeito uma postura de curiosidade perante o mundo, o que exprime a necessidade de uma atuação sobre a realidade de forma transformadora, a qual só é possível a partir da instauração de um processo de busca contínua, que pressupõe inventividade e criatividade. Não obstante, Orlando Fals Borda (1991) demarca que a superação da relação sujeito/objeto por uma relação sujeito/sujeito é condição sine qua non para o rompimento com a situação de dominação/dependência que está presente não só na ciência mas em outros contextos em que se dão as relações humanas, como por exemplo na escola (na hierarquia entre professor/aluno), no âmbito doméstico (no machismo presente na relação homem/mulher), nos serviços de saúde (na relação médico/paciente), na política (com o caciquismo, o caudilhismo), dentre outras. Em conformidade com isso, o mesmo destaca que a ruptura com essa assimetria viabilizaria a edificação das estruturas 64 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS de um outro tipo de sociedade, muito mais participativa, igualitária e democrática. Ao traçar alguns elementos importantes para a formação de pensamentos e subjetividades críticas e emancipadoras desde as práticas de Educação Popular, Alfonso Torres (2013) destaca que tal perspectiva só é tangível a partir da instauração do diálogo entre sujeitos que com suas diferenças e singularidades, partilham aspirações e interesses de transformar a realidade social com a finalidade de delinear horizontes emancipadores. Como expresso por ele, o conhecimento não é algo pronto e acabado que se doa a uma outra pessoa, mas algo que se constrói e reconstrói de forma contínua por meio da intersubjetividade. Em virtude disso, é significativo relembrar que Paulo Freire (2013) sempre evidenciou a sua posição contrária às ações educativas autoritárias, verticais, depositárias e antidialógicas − caracterizando-as como iniciativas de invasão cultural. Por essa razão, o mesmo assinalava que era preciso superar tal atitude, buscando a constituição de uma prática educativa que fosse horizontal, crítica, ativa, participativa e dialógica – materializando-se como a expressão de uma síntese cultural. No entendimento de Carlos Rodrigues Brandão (2006), a perspectiva tradicional que concebe o contato entre o investigador e as pessoas das camadas populares disposta como uma relação sujeito/objeto, precisa ser reconfigurada a partir de um enfoque participativo que proporcione o estabelecimento de uma relação sujeito/sujeito, fundada na ótica de que todas as culturas − em que os diferentes sujeitos sociais estão envoltos – são fontes vitais de saber. O que se soma ao fato de que o exercício da investigação quando configurada em parâmetros “participativos”, possibilita a SUMÁRIO 65 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS interação entre os distintos saberes e permite a elaboração de uma compreensão da realidade social construída de forma compartilhada. Apontando uma outra maneira de se gestar o conhecimento decorrente da articulação crítica entre os saberes científico e popular, que podem convergir na composição de um saber novo. Em vista disso, ressalta-se que para Paulo Freire (2013), o diálogo se sobressai não como um mero recurso metodológico ou como uma representação banal e informal de determinadas relações interpessoais. No pensamento de Paulo Freire, o diálogo é concebido como uma “conversa hermenêutica”, em que ambos os polos em contato/comunicação, desempenham papeis de sujeitos ativos do processo de construção de conhecimento que se dá por meio da relação desses entre e com o mundo. Expressando, assim, a natureza relacional do conhecimento, que para ele só é possível de ser erigido em decorrência da intersubjetividade e da intercomunicação – corporificando um liame comunicativo que integra os sujeitos cognoscentes e o objeto cognoscível (FREIRE, 2015). Nessa significação, pode-se inferir que na Educação Popular o diálogo está representado e se configura como: [...] uma perspectiva crítica de construção do conhecimento, de novos saberes, que parte da escuta do outro e da valorização dos seus saberes e iniciativas, contrapondo-se à prática prescritiva. O diálogo não torna as pessoas iguais, mas possibilita nos reconhecermos diversos e crescermos um com o outro; pressupõe o reconhecimento da multiculturalidade e amplia nossa capacidade em perceber, potencializar e conviver na diversidade (BRASIL, 2012, p. 15). 66 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Na esteira do debate relativo à produção de conhecimento na Educação Popular, muito se fala à respeito da troca de saberes, do diálogo entre saber científico e saber popular, do confronto de conhecimentos, da interação entre saberes, sobre a construção compartilhada do conhecimento, entre outros. Inclusive, ao analisar as publicações decorrentes de produção da esfera governamental brasileira, mais precisamente a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS) (BRASIL, 2013) e o Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas (BRASIL, 2014), observa-se a ênfase para tais propostas. Sendo mais explícita na PNEPS-SUS, em que aparece entre o leque de princípios teórico-metodológicos elencados como orientadores da política em foco a construção compartilhada do conhecimento. Como mencionado na PNEPS-SUS, a construção compartilhada do conhecimento: [...] consiste em processos comunicacionais e pedagógicos entre pessoas e grupos de saberes, culturas e inserções sociais diferentes, na perspectiva de compreender e transformar de modo coletivo as ações [...] desde suas dimensões teóricas, políticas e práticas. [...] envolve a construção de práticas e conhecimentos de forma participativa, protagônica e criativa [...], considerando a integração e articulação entre saberes, práticas, vivências e espaços, no sentido de promover [...] a construção dialógica, emancipadora (BRASIL, 2012, p. 16). Segundo Maria Alice Carvalho (2007), a construção compartilhada do conhecimento apresenta três dimensões: 1) política; 2) epistemológica; 3) educativa. Na dimensão SUMÁRIO 67 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS política, se sobressai a quebra do monopólio intelectual do saber científico (ou a sua hegemonia, em termos gramscianos), criando condições para que racionalidades contra-hegemônicas possam modificar a direção cultural e ideológica que orienta a ação e justifica/consolida a hierarquização dos diferentes grupos socioculturais − incluindo a sua submissão a outros grupos −, passando a integrar os olhares e os saberes subalternizados. Assim, pode-se sinalizar que a construção compartilhada do conhecimento: Incorpora sonhos, esperanças e visões críticas e os direciona na produção de propostas de enfrentamento e superação dos obstáculos historicamente constituídos em situações limites para a vida cotidiana de forma a desenvolver novas práticas, procedimentos e horizontes (BRASIL, 2012, p. 16). Em sua dimensão epistemológica, valoriza-se a criação de um novo conhecimento decorrente da articulação entre o saber científico e o saber popular, tendo como pressuposto a não contraposição entre os saberes e sim a sua complementariedade. Com isso, não se pretende adentrar em relativismos, mas fixar que são saberes diferentes provenientes de práticas sociais distintas, justificando-se a disposição de uma necessária interação dinâmica entre os saberes científicos e as outras formas de saber para a elaboração de um novo conhecimento (CARVALHO, 2007). Por essa lógica, constitui-se um processo dialógico que: [...] implica um respeito mútuo que o autoritarismo não permite que se constitua. [De 68 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS modo que] O pensamento crítico de um, não anula o [...] pensamento crítico do outro e os conflitos são explicitados e não silenciados. Não nivela, não reduz um ao outro, não é bate-papo ou conversa desinteressada (BRASIL, 2012, p. 15). No que concerne a sua dimensão educativa, temse no construtivismo a sua base central, de forma que o “educando” é compreendido como sujeito ativo e construtor de seu conhecimento – isto é, como resultado de sua inserção em uma determinada realidade social, o sujeito confronta com seus saberes prévios o objeto cognoscível, problematizando-o e criando as suas próprias representações sobre o fenômeno. O que em alguns casos, incorre na necessidade de desconstruir/desaprender para poder construir/aprender (CARVALHO, 2007). Relativo a isso, de acordo com Maria Alice Carvalho, Sonia Acioli e Eduardo Navarro Stotz (2001), pode-se sintetizar que a construção compartilhada do conhecimento: [...] implica em uma interação comunicacional, onde sujeitos de saberes diferentes, porém não hierarquizados, se relacionam a partir de interesses comuns. Esses sujeitos convivem em situações de interação e cooperação que envolve o relacionamento entre pessoas ou grupos com experiências diversas, interesses, desejos e motivações coletivas (p. 103). Além dessas dimensões explicitadas, reitera-se que a construção compartilhada do conhecimento se destaca como um modelo dialógico e multidirecional − precisamente por priorizar a constituição de um diálogo “aberto” que SUMÁRIO 69 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS enseje a interação entre todas as pessoas participantes do processo, enriquecendo-o com diversos olhares. De modo que, quão maior for a participação e a interação entre os indivíduos envolvidos na produção do conhecimento, mais compartilhado será o processo e todos irão se reconhecer como co-criadores do saber em questão. Por esse ponto de vista, ressalta-se que para que essa proposta efetivamente ocorra, faz-se necessário a manutenção entre os sujeitos de uma relação fundada em elementos como vínculo, confiança mútua, solidariedade e cooperação, pois o diálogo de saberes envolve negociação de sentidos, interesses e necessidades em busca da construção de pontes e de caminhos comuns (MEJÍA, 2016). Ademais, no cerne das experiências de construção compartilhada de conhecimento é essencial que se tenham o horizonte do que Reinaldo Matias Fleuri (2018) denominou como uma perspectiva intercultural crítica, que seja capaz de agir de forma a desconstruir a matriz colonial e eurocêntrica como passo crucial para a de(s)colonização não só do saber, mas também do poder, do ser e do viver; pois como destacado por Paulo Freire (2008) na epígrafe do presente texto: “O que não é possível é simplesmente fazer um discurso democrático, antidiscriminatório e ter uma prática colonial” (p. 68). Conforme destacado por Reinaldo Matias Fleuri (2019), no Brasil, as práticas de educação popular articuladas aos movimentos sociais populares têm se distinguido de forma significativa pela valorização e reconhecimento das culturas e dos saberes dos distintos grupos socioculturais subalternizados. Como colocado por ele, a concepção de interculturalidade crítica: 70 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS [...] reconhece o valor intrínseco de cada cultura e defende o respeito recíproco entre diferentes grupos identitários. [...] propõe construir a relação recíproca entre eles. Uma relação que se dá, não abstratamente, mas entre pessoas concretas. Entre sujeitos que decidem construir contextos e processos de aproximação, de conhecimento recíproco e de interação. Relações estas que produzem mudanças em cada indivíduo, favorecendo a consciência de si e reforçando a própria identidade. Sobretudo, promovem mudanças estruturais nas relações entre grupos. Estereótipos e preconceitos – legitimadores de relações de sujeição ou de exclusão – são questionados e, até mesmo superados, na medida em que sujeitos diferentes se reconhecem a partir de seus contextos, de suas histórias e de suas opções. [...] implica em [...] necessidade de oferecer oportunidades educativas a todos, respeitando e integrando a diversidade de sujeitos e de seus pontos de vista. [Assim como demanda a] [...] necessidade de desenvolver processos educativos, metodologias e instrumentos pedagógicos que deem conta da complexidade das relações humanas entre indivíduos e culturas diferentes (FLEURI, 2018, p. 46). Nesse sentido, não se visa contrapor os saberes científico e popular, mas delinear soluções de forma compartilhada e sustentada por interesses coletivos, os quais necessitam ser trabalhados por meio do que Marco Raúl Mejía (2016) distinguiu como negociação cultural, que é um exercício que integra processos intraculturais, interculturais e transculturais para a construção de: SUMÁRIO 71 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS [...] outro cenário biocultural, onde os saberes e conhecimentos estão vivos e são recriados dando lugar a uma reelaboração de crenças, conhecimentos, costumes, saberes, desde outros diferentes, que ao dialogar, confrontar, negociar, se convertem em construtores de mundos com a inclusão de todos os sentidos, todas as subjetividades, todos os conhecimentos e saberes que apostam em seguir construindo e transformando o mundo com base na diferença (MEJÍA, 2016, p. 52, tradução nossa). Por fim, evidencia-se que a partir da construção compartilhada do conhecimento, se corporifica uma possibilidade profícua para a produção contra-hegemônica de um saber de(s)colonial, especificamente pelo fato de no decorrer do processo de produção do conhecimento se buscar construir com e não para ou sobre. Dessa forma, é concebível a elaboração de um novo conhecimento resultante desse encontro e diálogo entre saberes distintos para a constituição do que Marco Raúl Mejía (2013) tem definido como “saber de fronteira” ou do que Reinaldo Matias Fleuri (2019) tem assinalado como “conhecimento conversitário” − que é um saber que emerge do diálogo crítico, participativo, conflitivo e propositivo entre universidade e movimentos sociais por um prisma dialético, intercultural e político da práxis científica −, ou talvez, ainda, um saber que possa ser identificado com o que Boaventura de Sousa Santos (2002) denominou de um “conhecimento prudente para uma vida decente”. 72 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Breves notas em conclusão Como pôde ser observado ao longo deste manuscrito, apesar da Extensão comumente ser referenciada como espaço que viabiliza o encontro e a interação entre sujeitos com diferentes culturas e saberes, sendo, por isso, considerada como campo fértil para a construção de novos conhecimentos; ressalta-se que, historicamente, a universidade contribuiu de forma expressiva na depreciação e inferiorização dos saberes de diferentes grupos socioculturais, colaborando para a hierarquização de conhecimentos e para a consolidação do saber científico como a única forma de conhecimento socialmente válido. Apesar disso, destaca-se que a partir dos aportes da concepção latino-americana de Educação Popular, em que se sobressai a ênfase para o estabelecimento de processos dialógicos e para a construção do conhecimento de forma compartilhada − o que na posição defendida neste texto, enriquece o conhecimento com novos olhares e se enquadra em uma abordagem de(s)colonial, por considerar todas as pessoas como sujeitos de saber, não pretendendo-se, assim, sobrepor os saberes científico e popular −, é possível impactar sobremaneira na reorientação das ações extensionistas, de modo que essa seja concebida não como um momento de troca ou de simples encontro de saberes, mas como a oportunidade do estabelecimento de processos comunicacionais assentados em aspectos metodológicos como a problematização da realidade, o diálogo, o confronto de saberes e a negociação cultural em vista de articular as percepções, os interesses e as necessidades dos diferentes sujeitos envolvidos na criação SUMÁRIO 73 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS de um novo conhecimento, assegurando a todas as pessoas a qualidade de co-construtores do saber. Com o presente artigo, mesmo que maneira breve, espera-se ter contribuído de modo introdutório com a evidenciação da opressão epistêmica e para o desvelamento da dimensão colonial e eurocêntrica do conhecimento científico moderno hegemônico que, disfarçado de uma pretensa missão modernizante e “conscientizadora”, atua de modo colonial e homogeneizante. Não obstante, especialmente por meio do trabalho social universitário orientado pela Educação Popular, assevera-se a exequibilidade da perspectiva da construção compartilhada do conhecimento como uma proposta contra-hegemônica capaz de promover a produção de saberes à luz da de(s) colonialidade. Referências ARAÚJO, R. S. Extensão universitária: aspectos históricoconceituais e o desvelar de outra possibilidade teóricometodológica a partir da educação popular. In: CRUZ, P. J. S. C. et al. (Orgs.). Vivências de extensão em educação popular no Brasil: volume 1: extensão e formação universitária: caminhos, desafios e aprendizagens. 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Tomo II. 80 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO, EDUCAÇÃO POPULAR E MEMÓRIAS DO CAMPO Gildivan Francisco das Neves Severino Bezerra da Silva Introdução Quando pensamos sobre a escrita da História, percebemos as ressonâncias de uma perspectiva orientada pelo Positivismo, relacionada ao modelo de produção do conhecimento moderno, pautada na construção de uma suposta verdade absoluta e no registro das memórias e histórias dos “grandes nomes” e suas narrativas “heróicas”, tendo por base os documentos escritos, ditos oficiais. Privilegiavase a escrita de uma “História Geral”, homogeneizando povos e culturas e negligenciando as histórias e memórias protagonizadas pelos homens e mulheres “comuns” em seus cotidianos, lutas, resistências e saberes. Mediante a um repensar da historiografia, a partir de campos teóricos como a História Social, segmentos SUMÁRIO 81 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS antes exclusos, os ditos “vindos de baixo”, dentre os quais, os trabalhadores rurais, com suas memórias e histórias de movimentos sociais desencadeados no campo, passam a ser contemplados pelas pesquisas historiográficas. Porém, ainda sobre a influência do modelo de escrita da História Positivista, acabam sendo silenciados, em muitos casos, em materiais como livros didáticos. Ao ser invisibilizado, o local parece, assim, não ser compreendido como um território de tessitura de histórias e memórias. Torna-se significativo pensar pesquisas que dialoguem com as memórias e histórias do território para que não sejam legadas ao esquecimento e que possibilitem entender, por exemplo, que as lutas travadas no campo também são História, principalmente na contextura atual quando, a partir do Paradigma da Educação do Campo, se pauta a construção de uma educação contextualizada, dialógica, problematizadora, protagonizada pelos diversos povos que integram o território (FERNANDES, MOLINA, 2004). Essa percepção nos inquieta desde a graduação em História quando realizamos uma pesquisa sobre a história e memória da “Luta do Povo de Alagamar”, perpassando o mestrado, em que continuamos a refletir acerca desta ação coletiva, pensando as práticas de resistência estabelecidas pelos partícipes pela ótica da Educação Popular e, no doutorado, ao direcionar novos olhares para o referido fenômeno e refletir sobre as nossas práticas de pesquisa anteriores, motivados pelas discussões na disciplina Tópicos em Educação Popular: Construção Compartilhada do Conhecimento na Pesquisa e na Ação Social. O componente curricular nos fez problematizar a necessidade de entender a pesquisa não como um momento apenas de “extração” de dados, mas como perpassada por um compromisso 82 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS ético e político que requer um repensar dos lugares que nos colocamos enquanto pesquisadores. Diante do exposto e considerando a nossa formação em História, as pesquisas que desenvolvemos situadas no campo da Educação e, especificamente, da Educação Popular e as discussões realizadas na disciplina evidenciada, a seguinte questão começou a ecoar: De que maneira é possível operar com as memórias e histórias de trabalhadores rurais de modo a pensá-los como construtores da pesquisa e a fornecer um retorno para estes e ao território a que pertencem? Tal inquietação nos levou a construção do presente artigo em que objetivamos apresentar reflexões acerca da interface entre a construção compartilhada do conhecimento e a Educação Popular no trato com as memórias e histórias do território do campo. Como objetivos específicos, evidenciamos: tecer apontamentos sobre a perspectiva de produção do conhecimento da Ciência Moderna; compreender a construção compartilhada do conhecimento como uma contrahegemonia a racionalidade científica da Modernidade; e, refletir sobre tal perspectiva pela dimensão da Educação Popular no que se refere ao diálogo com as memórias e a história local do território do campo. Metodologicamente, operamos a partir de uma pesquisa bibliográfica dialogando com autores como Carrillo (2011) e Mejía (2018) para as reflexões sobre Educação Popular, Cruz (2019a, 2019b) para discutir sobre a construção compartilhada do conhecimento, Le Goff (2012) no que se refere à memória, Martins (1986) no que tange a questão agrária e Sousa e Silva (2017) no tocante a História e história local, dentre outros. SUMÁRIO 83 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Para melhor sistematizar as reflexões, organizamos o artigo em três momentos, a saber: A perspectiva hegemônica de construção do conhecimento: alguns apontamentos; A construção compartilhada do conhecimento e um repensar do pesquisar; e, A Educação Popular e a construção compartilhada do conhecimento no diálogo com as histórias e memórias do campo, conforme pode ser observado a seguir. A perspectiva hegemônica de construção do conhecimento: alguns apontamentos Ao olhar para a História, somos habituados a pensá-la a partir de quatro “grandes” períodos, a saber, a História Antiga, História Medieval, História Moderna e História Contemporânea, divisão que pode ser vista, por exemplo, nos livros didáticos ou, em alguns casos, na grade curricular que compõe as disciplinas das licenciaturas em História. Para Sousa e Silva (2017) essa perspectiva é uma ressonância do modelo Positivista e de um olhar colonial sobre a História, de modo que aspectos da historicidade européia foram tomados como referência e generalizados como uma História Geral que negligencia o local. Assim determinados conteúdos são destacados “[...] como se o mundo dependesse, exclusivamente, do continente europeu e de seus marcos históricos” (SOUSA; SILVA, 2017, p. 47). Tal ótica de fazer e pensar a História, a nosso ver, afina-se com uma compreensão da Modernidade da Europa Ocidental como símbolo da civilização, momento das luzes, em detrimento ao período anterior, desconsiderando as formas de produção de saberes e conhecimentos existentes antes do período em comento. Compreendemos que “Por 84 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS sua vez, historicamente, o conhecimento científico, por uma perspectiva positivista, sempre se impôs sobre o saber popular, arrogando-se a possibilidade exclusiva de dizer a verdade sobre a realidade na interpretação do mundo” (CRUZ, 2019a, p. 34). Nesse sentido, lembramo-nos de Dussel (2005) que refletindo sobre os conceitos de Modernidade, destaca que existe uma compreensão que a associa a razão, a construção do desenvolvimento. De tal modo, forja-se um olhar colonizador em que o modelo europeu ocidental é tido como moderno, novo (QUÍJANO, 2005) e os demais, atrasados. Partimos da compreensão que esse ideário de Modernidade utilizou, dentre seus instrumentos de legimitação, a produção do conhecimento, especificamente, a partir do Paradigma da Ciência Moderna que perpassado pelo ideal de progresso, construiu um fazer científico compartimentado, fragmentado que, em muitos casos, não contempla a diversidade e as especificidades dos territórios, sujeitos e fenômenos. Nesse viés, “Ao formular uma interpretação do mundo, pensado a partir de um conhecimento eurocêntrico, esse paradigma se proclama e se julga o conhecimento do mundo, [...]” (CORRÊA; SILVA, 2018, p. 204). A Ciência moderna e eurocêntrica afirma-se, assim, na negação das formas de conhecer que não estão balizadas na lógica do método científico, construindo uma perspectiva de construção do conhecimento excludente e homogeneizadora. De acordo com Santos (2008, p. 21) “Sendo um modelo global, a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário [...]”. Na mesma diretiva, de acordo com Felipe e Melo Neto (2017, p. 238, grifo dos autores) “Para esses pesquisadores, o saber parece só ter começado na Idade Moderna, com os empiristas, e nada SUMÁRIO 85 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS para trás merece esse ‘status’”. De tal modo, o conhecimento que não se enquadra nos pressupostos epistemológicos e metodológicos da Ciência Moderna são questionados e tidos como ausentes de confiabilidade, sendo o conhecimento cientifico visto como o único portador de uma verdade explicativa da realidade. Diante disto, “[...], esse paradigma se consolida hegemonicamente, apresentando-se como modelo universal de racionalidade para apreender e explicar o mundo, fundado nessa matriz de ciência eurocêntrica, [...]” (CORRÊA; SILVA, 2018, p. 203). Podemos acrescentar, acerca da perspectiva do conhecimento científico em comento que “[...] Todavia, essa experiência é quase que exclusivamente laboratorial e, praticamente, fora do ambiente experiencial da vida humana. [...]. Sua linguagem é a da quantificação” (FELIPE; MELO NETO, 2017, p. 232, grifos nossos). Por esta diretiva, o que não pode ser mensurado como as experiências e vivências cotidianas parecem não atrair os olhares dessa perspectiva de produção do conhecimento, desconsiderando que nem todos os fenômenos que perpassam a existência humana podem ser explicados através de dados estatísticos, de quantificações. Nessa ótica, por exemplo, o saber vivencial do trabalhador rural, no trato com a terra, fruto da observação, da experiência cotidiana e transmitido de geração em geração, é questionado e desconsiderado em detrimento do conhecimento científico e das explicações pautadas em ideais de “neutralidade” e “imparcialidade”. Segundo o paradigma em comento, como destaca Santos (2008, p. 28) “O que não é quantificável é cientificamente irrelevante”, o que contribui para uma hierarquização do saber entre 86 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS o científico, tido como verdadeiro e o não-científico, considerado como ausente de confiabilidade. Nessa busca pela construção de um conhecimento “verdadeiro”, inquestionável, consolida-se uma compreensão de pesquisador como aquele que deve manter-se neutro, distante do objeto estudado o que, em nosso entendimento, contribuiu para conformar a compreensão dos sujeitos da pesquisa e do espaço em que se realiza apenas como produtores e fornecedores de fontes. Em tal leitura, “Em nível metodológico, o pesquisador é o sujeito imparcial e neutro; em nível gnoseológico, sua característica central é a objetividade, o que significa que as representações devem se adequar aos objetos e aos fatos” (FELIPE; MELO NETO, 2017, p. 234). Cabe ressaltar que esse modelo de produção do conhecimento esteve alinhado aos interesses do modelo econômico do Capitalismo e de suas formas de produção. De tal modo, “Esse paradigma foi fundamental para justificar o projeto capitalista moderno-colonialista de dominação do mundo, que teve início no final do século XV e início do XVI, o que seria o nascedouro do fenômeno da globalização colonialista” (CORRÊA; SILVA, 2018, p. 203, grifo dos autores). Essa perspectiva de Ciência foi significativa para descobertas que contribuíram para a humanidade, porém, como destacam Tupinambá e Rigotto (2019), tem parcela de responsabilidade em algumas das crises vivenciadas na contextura atual, desencadeadas, dentre outros elementos, pelas formas de exploração da natureza. Frente a isto, evidenciam que Ao revisitar nossos referenciais teórico – metodológicos, neste esforço de reflexividade SUMÁRIO 87 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS sobre a ciência faz-se necessário também, como nos apontam os estudos descoloniais, reconhecer e compreender as implicações do epistemicídio e da injustiça cognitiva que dele deriva. (TUPINAMBÁ; RIGOTTO, 2019, p. 2). No caso da escrita da História, ocorreu um “epistemicídio e injustiça cognitiva” quando as histórias e narrativas dos diversos povos não – europeus foram esmaecidas e estereotipadas, narradas pela ótica daqueles que ocuparam os lugares de “vencedores” na historiografia oficial. Frente a isto, compreendemos que “[...] a história buscou, por muito tempo, silenciar as lutas sociais e as reivindicações que moveram homens e mulheres nas suas vivências coletivas” (SOUSA; SILVA, 2017, p. 47). Torna-se significativo pensar uma perspectiva contrahegemônica de construção do conhecimento, nas diversas áreas, de modo que os sujeitos, as vozes, os saberes e formas de conhecer negligenciados outrora, sejam vistos como protagonistas, parte deste fazer. Lembramo-nos que [...] é preciso nos abrirmos para o diálogo com outros saberes e reconceber nossa práxis acadêmica, a partir do engajamento com os problemas de estudo prioritários do ponto de vista dos segmentos socialmente vulnerabilizados e da reinvenção dos caminhos da construção de conhecimento no sentido da promoção da justiça cognitiva. (TUPINAMBÁ; RIGOTTO, 2019, p. 3). Mediante ao dito, discorremos, a seguir, acerca da construção compartilhada do conhecimento como uma possibilidade para a feitura de um conhecimento 88 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS contrahegemônico, dialógico, que coloque os outrora excluídos como sujeitos históricos e de pertencimento da sua história, pautado na transformação social e superação das situações de opressão. A construção compartilhada do conhecimento e um repensar do pesquisar Em um contexto histórico marcado por contradições sociais, pela negação do acesso a direitos como a saúde e a educação, torna-se significativo problematizar a Ciência passando a compreendê-la como uma possibilidade (dentre outras) de compreensão/análise de fenômenos diversos, de ação e transformação social. Torna-se importante um repensar do sentido de realizar pesquisas, do ser pesquisador e de como visualizamos os participantes da pesquisa e o local em que se efetiva. Nesse âmbito, emerge uma perspectiva denominada de construção compartilhada do conhecimento e que busca a construção de leituras para os fenômenos e sujeitos que integram o Sul, considerando as suas especificidades e problemáticas sociais. Para Cruz (2019a), este conceito possui uma historicidade e emerge vinculado as experiências de pesquisa participante. Assim, direcionamos a Brandão (1990) quando no livro Pesquisa Participante evidencia alguns questionamentos que teriam levado a um repensar da forma de conhecer e destaca que: Por toda a parte há sinais cada vez mais evidentes de que alguma coisa devia ser feita. Quanto mais rigorosos para com a sua ciência, tanto mais os cientistas conscientes coçavam na cabeça perguntas inquietantes SUMÁRIO 89 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS que se começa ou continua a ter depois que a pesquisa afinal foi feita e tudo parece, em teoria, tão perfeito. Para o quê serve o conhecimento social que a minha ciência acumula com a participação do meu trabalho? Para quem, afinal? Para que usos e em nome de quem, de que poderes sobre mim e sobre aqueles a respeito de quem, o que eu conheço, diz alguma coisa? (BRANDÃO, 1990, p. 10, grifos nossos). Os referidos questionamentos estão presentes em um pensar/fazer que se faça partilha em si, enquanto ser, e não apenas no ritual de pesquisa e devem ser considerados ao pensarmos a construção compartilhada do conhecimento no prisma, sobretudo, de refletir sobre qual o sentido do que pesquisamos e de que maneira contribui para a transformação das realidades as quais nos debruçamos. Frente ao exposto, compreendemos que a perspectiva da construção compartilhada do conhecimento emerge perpassada por uma criticidade ao padrão moderno de Ciência, principalmente, mediante a uma reflexão sobre os “retornos”, os impactos que o que se produz detém nas realidades e cotidianos dos povos do Sul e seus territórios. Nesse prisma, Cruz (2019a) apresenta o seguinte conceito de construção compartilhada do conhecimento: [...] o que chamamos aqui de construção compartilhada do conhecimento constitui uma denominação de uma das possíveis perspectivas de se pensar e de se promover a pesquisa e a ação social com características participativas, inclusivas, dialógicas e críticas, tendo como clara intencionalidade a emancipação social, humana e política das pessoas e dos grupos populares. Essa denomi- 90 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS nação conflui de um amplo movimento, com tradições marcantes na América Latina, na América do Norte e da Europa, e é orientada por concepções e teorias que coadunam com a epistemologia crítica e implicada com a justiça social, os direitos sociais e humanos e a equidade. (CRUZ, 2019a, p. 5, grifos nossos). O autor nos indica elementos que possibilitam estabelecer diferenças entre a construção compartilhada do conhecimento e o paradigma hegemônico evidenciado nas páginas anteriores. Diferentemente da Ciência Moderna, a construção compartilhada do conhecimento é participativa, conforme proposto por Cruz (2019a), pois, como o próprio termo evidencia, trata-se de uma perspectiva “compartilhada”, ou seja, os conhecimentos são produzidos a partir do diálogo, “junto a” superando a existência de uma suposta hierarquia entre o que pesquisa e seria o detentor de um conhecimento “superior” e o que é visto como uma fonte de informação, de dados, o pesquisado. Esta reflexão nos direciona a Tupinambá e Rigotto (2019) que ao discorrerem sobre a construção do conhecimento a partir de experiências no âmbito do semiárido, destacam a compreensão de co-labor-ação social. Ou seja, um conhecimento que é produzido a partir de uma ação, de um trabalho (labor), em diálogo, participação (co) que objetiva não apenas o estudo de um fenômeno, mas a sua compreensão com vistas à ação social para transformação da realidade vivida. Esse entendimento nos leva a “[...] disposição de repensar a ciência moderna, a relação universidade-sociedade, e o próprio processo de trabalho acadêmico, na perspectiva da democratização do SUMÁRIO 91 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS conhecimento e da justiça cognitiva” (TUPINAMBÁ; RIGOTTO, 2019, p. 1). Ainda em encontro ao caráter dialógico e participativo da construção compartilhada do conhecimento evidenciados por Cruz (2019a), remetemos a Falcão (2019) que ao apresentar a sua experiência no trabalho com a extensão, enquanto uma prática emancipadora e de produção de conhecimentos na ótica compartilhada, ressalta a importância de efetivar uma substituição da figura do “professor”, “doutor” que chega a comunidade, pelo “ser humano” aberto ao diálogo, o que possibilita não a entrega de “receitas prontas” para solucionar os problemas do território, mas a construção de possibilidades, de forma dialógica. Na mesma diretiva, vai ao encontro da compreensão de construção compartilhada apontada por Cruz (2019a) quando destaca que uma extensão construída nessa ótica tem em suas bases metodológicas a participação, a organização e autonomia como constitutivos. Mediante a isto, podemos refletir, dentre outras questões, acerca da associação quase instantânea que tendemos a fazer entre o conceito de conhecimento e o conhecimento científico, generalizando uma forma de conhecer como única, o que remete a um resquício da forma colonizadora a partir da qual o conhecimento nos foi apresentado. É preciso entender que existem outras maneiras de conhecer, de saber, de explicar a realidade, para além do científico. Assim, “Em vista disso, a iniciativa de se produzir compartilhadamente o conhecimento tem como condição básica o entendimento de que não existe saberes mais importantes que outros [...]” (CRUZ, 2019a, p. 34). Na mesma diretiva, pode ser acrescentado que “[...] Ambos os tipos de saber bem que anunciam ajuda mútua 92 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS e complementaridade, reconhecendo-se em si mesmos os seus limites e suas contribuições” (FELIPE; MELO NETO, 2017, p. 250). Em continuidade, retomamos outra característica apresentada por Cruz (2019a), que pode ser vista como uma centralidade da construção compartilhada do conhecimento, a saber, o que denomina, conforme visto no trecho citado anteriormente, de “[...] intencionalidade a emancipação social, humana e política das pessoas e dos grupos populares” (CRUZ, 2019a, p. 5, grifos nossos). Ou seja, se a Ciência Moderna se afirma neutra, a ótica contrahegemônica em comento questiona essa suposta neutralidade e ressalta um compromisso ético, social e político com os segmentos oprimidos. Portanto, “Não é possível pensar nem promover qualquer processo de construção compartilhada do conhecimento, seja na pesquisa, seja na ação social, sem ter em mente (e também na finalidade de cada ação) o contexto social e político vivido pelas pessoas” (CRUZ, 2019b, p. 1). Nessa mesma diretiva, [...] Essa linha de pensamento implica em considerar uma sociedade permeada pela diversidade cultural, pelo respeito às diferenças, pela justiça social e pela vivência da economia e da política, de uma forma que priorize o enfrentamento das iniquidades e que afirme suas ações cotidianas na direção da promoção humana. Tudo isso de forma articulada com o meio ambiente, entendendo que o ser humano não é o único vivente no planeta, mas que está em relação com os outros seres vivos, incluindo os vários elementos naturais, com uma série de componentes que dão plenitude, segurança e sustentabilidade para a vida. Todo esse conjunto de SUMÁRIO 93 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS questões são marcos políticos e éticos, nos quais o processo de construção compartilhada do conhecimento deve se fundar. (CRUZ, 2019a, p. 29, grifos nossos). Retomando as reflexões postas por Tupinambá e Rigotto (2019) e, em interface com o exposto por Cruz (2019a, 2019b), visualizamos que a construção compartilhada do conhecimento parte de um compromisso político com as diversas formas de vida, de existência, delineando um conhecimento pautado no diálogo com o diverso e não em formas únicas de ser, existir e conhecer. Esse compromisso ético e político ressoa na maneira como os que se propõem a construir conhecimento de forma compartilhada compreendem os partícipes da pesquisa e o território em que se efetiva. Nessa perspectiva, percebem o lócus não apenas como um espaço de “extração” de dados, mas juntamente com os sujeitos que o integram, é visto como protagonista e agente ativo do processo. Assim sendo, “No processo de construção compartilhada do conhecimento, a ‘devolutiva’ do estudo acontece no cotidiano, com a estruturação do estudo em conjunto com as pessoas, sendo a ‘devolutiva’ uma consequência do processo participativo” (CRUZ, 2019a, p. 17, grifo do autor). Pensar a pesquisa por essa ótica é remeter a uma forma de conhecer gestada em conjunto, cujo problema a ser investigado emerge não apenas de uma “curiosidade” do pesquisador, mas revela-se no próprio cotidiano do território, em diálogo com os seus sujeitos, a partir do reconhecimento da realidade histórica e social vivenciada. Este gestar, construir com, exige uma aproximação e uma relação de diálogo e confiança. Portanto, “[...] essa construção é 94 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS essencialmente interativa e dialógica, à medida em que está aberta ao que a realidade traz com seu movimento dinâmico, que se dá pelas complexas teias de relações humanas e de determinações sociais de todo o processo” (CRUZ, 2019a, p.14). Mediante ao exposto, a seguir nos dedicamos a refletir sobre as contribuições da Educação Popular para pensar/ fazer/refazer práticas de pesquisa na ótica da construção compartilhada do conhecimento no trato com a memória e história local do campo. A Educação Popular e a construção compartilhada do conhecimento no diálogo com as histórias e memórias do campo Considerando as reflexões evidenciadas, compreendemos que a Educação Popular tem um contributo para pensar maneiras de conhecer que estejam pautadas, além de outras características, no diálogo entre saberes e no protagonismo dos participantes. Como destacamos, para Cruz (2019a) a construção compartilhada emerge relacionada à epistemologia crítica e, dentre essas, pode ser mencionada além da Pesquisa Participante, a Educação Popular. Para o autor, a Educação Popular “[...] constitui uma referência para um diversificado e amplo campo de iniciativas críticas e de aproximação de intelectuais e pesquisadores com as pessoas da classe trabalhadora, suas organizações e contextos [...]” (CRUZ, 2019a, p. 6). É nessa diretiva que nos propomos a refletir sobre a Educação Popular e a construção compartilhada do conhecimento no tocante as histórias e memórias de territórios do campo, pensando de que maneira possibilitam essa SUMÁRIO 95 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS “aproximação” e diálogo com as trajetórias de resistência de trabalhadores rurais. Para tanto, torna-se primaz evidenciar o que entendemos por Educação Popular. Partimos da compreensão de que: La Educación Popular es una apuesta política que plantea la transformación radical de la realidad a partir de la lectura crítica del mundo. Nace en el seno de los procesos de liberación de los pueblos de América Latina y el Caribe contra el sistema opresor colonial – patriarcal que vivimos desde hace más de quinientos años, y que hoy experimentamos de forma salvaje. (LÓPEZ, 2018, p. 1). Constitui-se, assim, como uma perspectiva contrahegemônica que permite pensar o/ao Sul, tecer leituras da América Latina a partir de sua própria historicidade e território, buscando a transformação das realidades de opressão forjadas mediante as marcas da colonização. Nesse sentido, remetemos a Freire (1967) quando evidencia que o modelo de colonização ao qual fomos submetidos, exerceu influências na esfera da política, da economia, e, podemos acrescentar, sobre os modos de pensar a si e ao outro, bem como na maneira em que operamos na construção do conhecimento. De tal modo, a Educação Popular, a partir do seu compromisso político, possibilita um desvelar dessas diversas estruturas de opressão e o anúncio/construção de outras possibilidades de leitura e transformação do real. Destacamos que a Educação Popular se situa em um contexto em que “[...] dá-se a construção de um pensamento próprio que busca diferenciar-se das formas eurocêntricas e dos olhares de uma América de fora, que não se lê internamente [...]” (MEJÍA, 2018, p. 25). 96 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Em continuidade, recorremos a Carrillo (2011) que apresenta alguns elementos que caracterizam a Educação Popular, dentre eles: 1 Una lectura crítica del orden social vigente y un cuestionamiento al papel integrador que ha jugado allí la educación formal. 2 Una intencionalidad política emancipadora frente al orden social imperante. 3 El propósito de contribuir al fortalecimiento de los sectores dominados como sujeto histórico, capaz de protagonizar el cambio social. 4 Una convicción que desde la educación es posible contribuir al logro de esa intencionalidad, actuando sobre la subjetividad popular. 5 Un afán por generar y emplear metodologias educativas dialógicas, participativas y activas. (CARRILLO, 2011, p. 18). Observando os elementos citados por Carrillo (2011), em interface com o que expomos acerca da construção compartilhada do conhecimento, percebemos uma aproximação entre as suas características e a Educação Popular, principalmente, no que se refere à dimensão política, dialógica e de participação, nos convidando a compreender/construir pesquisas encharcadas de vida, de cotidiano, de luta e de resistência. Se o Paradigma Moderno de Ciência definia-se como neutro, único, a Educação Popular nos possibilita compreender/desvelar que essa suposta neutralidade assume uma conotação política e de poder, de conformação e manutenção da ordem hegemônica. Como destaca Heller (2008, p. 34, grifos da autora) “A vida cotidiana não está ‘fora’ da história, mas no SUMÁRIO 97 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS ‘centro’ do acontecer histórico: é a verdadeira ‘essência’ da substância social”. A referida autora ainda reflete que “A VIDA COTIDIANA é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico” (HELLER, 2008, p. 31, grifos da autora). Esta compreensão nos remete a pensarmos que a Educação Popular e a construção compartilhada do conhecimento possibilitam adentrar as tramas do social, visualizando e dialogando com os indivíduos em seus cotidianos, problematizando-os, permitindo um desvelar de suas realidades, necessidades e expectativas, construindo, assim, pesquisas que não determinam valores e lugares para o outro a partir de elementos externos e preconcebidos, mas que são talhadas no chão da existência humana, da sensibilidade, sendo capazes de empreender, para além de um exercício de quantificação de dados, ação e transformação social. Nesse sentido, concordamos com a compreensão de Cruz (2019a) quando destaca que “Para a produção do conhecimento, constitui verdadeiramente um olhar epistemológico. Está aí, talvez, a forma mais precisa e adequada de enxergar a Educação Popular: uma perspectiva, um jeito de fazer, um modo de olhar” (CRUZ, 2019a, p. 7, grifos nossos). Em diálogo com o autor, pensamos que a Educação Popular fornece um elemento central para a construção compartilhada do conhecimento, a saber, o modo de olhar, tendo em vista que para essa perspectiva de conhecimento é necessário um novo modo de olhar para si enquanto pesquisador e para o outro como participe da pesquisa. Torna-se necessário a construção de um olhar e, também, de um ouvir sensível em que o outro é compreendido como um fazedor de saberes e 98 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS conhecimentos que, embora distintos da lógica de produção científica, não podem ser marginalizados ou tidos como inferiores. Nesse prisma, articulando a prática de pesquisa no viés da construção compartilhada do conhecimento em interface com a Educação Popular e tendo como exemplo trabalhadores rurais partícipes de movimentos sociais de luta pela terra, torna-se pertinente operar não de modo apenas a coletar dados, “extrair” as memórias, mas a partir de uma postura dialógica, participativa, possibilitar que possam dizer suas palavras e seus mundos (FREIRE, 2011). Em sequência, acrescentamos que para Brandão (2019) a Educação Popular e a pesquisa participante apresentam uma contribuição na ótica de pensar e fazer uma Ciência voltada ao território da América Latina e destaca que: [...] poucos outros sistemas de pensamento entre nós têm colocado desde os anos sessenta, como a educação popular e a pesquisa participante, uma ênfase tão persistente: a) no retorno a diálogo com o senso comum das culturas populares e das comunidades de excluídos; b) na ruptura com os velhos modos de pensar, de educar e de investigar a realidade fundados na lógica utilitária do mercado; c) no deslocamento do lugar social da busca de sentidos e de projetos de construção da história do poder totalitário e do mundo dos negócios para a sociedade civil e, nela, para a esfera das comunidades e dos movimentos populares, d) na construção de modelos de educação e de pesquisa fundados no diálogo e na dissolução da hierarquia de competentes desiguais em nome da inte- SUMÁRIO 99 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS ração igualitária entre co-criadores diferentes. (BRANDÃO, 2019, p. 15, grifos do autor). Entendemos que a Educação Popular possibilita pensar pesquisas sobre as memórias do campo, na ótica da construção compartilhada do conhecimento, de modo que o narrado possa emergir não daquilo que quem pesquisa/ escreve considera que é importante ser dito, mas que surjam a partir das expectativas, das experiências vividas pelos sujeitos que integram o território e que desejam narrar. Ao direcionar olhares apressados para as trajetórias de luta de trabalhadores rurais sem, dialogicamente, buscar entender a complexidade de seus cotidianos e saberes, das contradições que perpassam o ato de lembrar, corremos o risco de tecer uma História ausente de sentido para o local, tal como a escrita na ótica da historiografia tradicional. Podemos assim, afirmar realizar uma pesquisa que “visibiliza os marginalizados e excluídos”, quando, na verdade, a forma como a conduzimos é perpassada pelas marcas daquilo que esperamos que essas vozes nos revelem. Pensamos que ao operar com as memórias relativas ao território do campo em um prisma que pretende romper com a lógica de compreensão e de leitura do Paradigma Moderno, é preciso abrir-se ao diálogo com os múltiplos saberes que os sujeitos detêm, o que remete a um compromisso ético e político de não falar por eles/as, mas possibilitar que possam pronunciar as suas vozes e leituras de mundo e assumam as suas demandas coletivamente. É necessário ao dialogar com as memórias e experiências de resistência de trabalhadores rurais na diretiva de pesquisa da Educação Popular e da construção compartilhada do conhecimento, ter a 100 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS clareza do compromisso ético e político com a libertação dos oprimidos, pensando a pesquisa empreendida como instrumento de visibilização de sujeitos outrora não vistos pela historiografia de cunho positivista e de trazer para o debate uma problemática central da historicidade do Brasil, a saber, a questão fundiária (MARTINS, 1986). Situamo-nos no entendimento de que, Falar dos silêncios da historiografia tradicional não basta; penso que é preciso ir mais longe: questionar a documentação histórica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco da história. Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio e fazer a história a partir dos documentos e da ausência de documentos. (LE GOFF, 2012, p. 111, grifos nossos). Com suas óticas problematizadoras, a Educação Popular e a construção compartilhada do conhecimento possibilitam o entendimento dos silenciamentos da História como resquícios do prisma colonizador e permitem adentrar nas tessituras dos “arquivos do silêncio”, “nas páginas em branco”, construindo um descortinar do campo e dos seus sujeitos, de modo a entender como o próprio modelo educacional legado ao referido espaço esteve pautado na construção de uma invisibilidade do território em detrimento ao urbano. Possibilita, assim, pensar/fazer pesquisas nas/a partir das quais homens e mulheres do campo possam entender-se como detentores de direitos, possibilitando a escrita de uma outra História. Este entendimento nos direciona a Brandão (1990), quando refletindo sobre as práticas de pesquisa destaca que: SUMÁRIO 101 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Conhecer a sua própria realidade. Participar da produção deste conhecimento e tomar posse dele. Aprender a escrever a sua história de classe. Aprender a reescrever a História através da sua história. Ter no agente que pesquisa uma espécie de gente que serve. Uma gente aliada, armada dos conhecimentos científicos que foram sempre negados ao povo, àqueles para quem a pesquisa participante – onde afinal pesquisadores-e-pesquisados são sujeitos de um mesmo trabalho comum, ainda que com situações e tarefas diferentes – pretende ser um instrumento a mais de reconquista popular. (BRANDÃO, 1990, p. 11, grifo do autor). De tal modo, trazendo a reflexão posta por Brandão (1990) para o diálogo sobre a Educação Popular e a construção compartilhada do conhecimento, pensamos que possibilita a tessitura de uma História do campo, que não é legada para, mas feita com o território e os sujeitos. Se a historiografia tradicional, em sua inspiração da Ciência Moderna eurocêntrica, marginalizou o campo e os seus povos, a ótica contrahegemônica com a qual dialogamos no decorrer do artigo, nos chama a ouvir e aprender com as vozes, saberes e narrativas das mulheres e homens do campo. Operando nessa diretiva, construiremos uma História que pense as memórias e histórias do referido território como um instrumento de libertação, de questionamento da estrutura agrária e de luta pelo acesso a diversos direitos ainda negados aos povos do campo. 102 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Considerações finais Pensar a Educação Popular é remeter a um convite, conforme vimos, para redimensionar o nosso olhar para si, para e com o outro, de maneira contrahegemônica, de modo a problematizar os lugares que nos foram legados a partir do processo de colonização, enquanto integrantes do Sul, inclusive no tocante a nossa construção como produtores de conhecimentos, dentre eles, o conhecimento cientifico. Tal desvelar possibilita compreender que os aportes teóricos e metodológicos balizados em um prisma eurocêntrico, em muitos casos, não conseguem contemplar as especificidades do território ao qual pertencemos e debruçamos as nossas análises. A Educação Popular e a construção compartilhada do conhecimento nos fornecem bases para pensar a construção de um conhecimento perpassado por vida e pelo protagonismo dos diversos povos latinoamericanos. Assim, destacamos a necessidade de não apenas ouvir as vozes dos sujeitos, mas construir juntos com estes, tecer diálogos, de maneira a possibilitar que possam narrar e pronunciar seus mundos e que o conhecimento produzido não remeta apenas a um olhar apressado, “extrativista” por parte do pesquisador, mas que esteja pautado em um compromisso ético e político. Especificamente no tocante a escrita da História, a ótica da construção compartilhada do conhecimento, em interface com a Educação Popular, possibilitam repensar o fazer historiográfico de modo que possamos construir uma inclusão efetiva dos sujeitos antes marginalizados. Compreendemos que não é apenas apresentar trechos de narrativas de trabalhadores rurais, por exemplo, que SUMÁRIO 103 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS evidencia que a pesquisa realizada possibilitou que as vozes de tais sujeitos sejam ouvidas. É preciso ir além, pensando estratégias que serão construídas no fazer/fazendo, no planejamento contextualizado da pesquisa em todas as suas esferas. Trata-se, assim, de pensar pesquisas pautadas na participação e no diálogo que possam romper como o epistemicídio aos quais diversos povos, dentre eles, os trabalhadores rurais e o território do campo foram legados, entendendo que é possível um construir com e não apenas para o outro, pensando um ato de pesquisar que permita desvelar as tramas do silêncio. Considerando as discussões realizadas no decorrer do artigo, pensamos que a construção compartilhada do conhecimento e a Educação Popular possibilitam problematizar o campo com e a partir dos seus diversos povos, compreendendo as suas particularidades e especificidades. Referências BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Andando em boa companhia de Paulo Freire a Boaventura de Souza Santos na construção do conhecimento através da ciência, da pesquisa e da educação. In: CRUZ, Pedro José Santos Carneiro (org.). Construção Compartilhada do Conhecimento na Pesquisa e na Ação Social. João Pessoa: Editora CCTA, 2019. (No prelo). 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SUMÁRIO 105 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS FELIPE, Severino Pedro; MELO NETO, José Francisco de. Saber Popular e Saber Científico. In: MELO NETO, José Francisco de; CRUZ, Pedro José Santos Carneiro (Org.). Extensão Popular, educação e pesquisa. João Pessoa: Editora do CCTA, 2017. p. 225 – 254. FERNANDES, Bernardo Mançano; MOLINA, Mônica Castagna. O campo da Educação do Campo. In: MOLINA, Mônica Castagna; JESUS, Sonia Meire Santos Azevedo de (Org.). Contribuições para a construção de um projeto de Educação do Campo. Brasília: Articulação Nacional “Por uma Educação do Campo”, 2004. p. 32 – 53. (Coleção Por Uma Educação do Campo, n 5). FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50 ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1967. HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. Trad: Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 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SUMÁRIO 107 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS CONHECIMENTO COMPARTILHADO: A HISTÓRIA COMO MEMÓRIA E A EDUCAÇÃO PARA NUNCA MAIS COMO COMPONENTES DA EDUCAÇÃO POPULAR Julyanna de Oliveira Bezerra José Cleudo Gomes Maria de Nazaré Tavares Zenaide A história como memória após Auschwitz Quando Mèlich (2000) partindo de uma perspectiva critica afirma que a história após o holocausto só é possível como recordação ele chama atenção, no tempo presente, do quanto o silencio dos homens foi e ainda pode ser cúmplice do desaparecimento de uma parte importante da humanidade. Na Alemanha, atualmente, recordar o holocausto é parte do currículo educacional pelo fato da nação ter entendido o quanto a barbárie ultrajou a consciência da humanidade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em seu preâmbulo, alerta como o 108 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS desprezo e o desrespeito aos direitos humanos resultaram em atos violadores da dignidade humana. Segundo Mèlich (2000, p. 48) “o humano foi posto ao avesso com a experiência do holocausto”, quando o uso extremo da força, do terror e do poder foram dispositivos de governança, impactando na capacidade de empatia e de autocritica das pessoas. Diante do Tribunal de Nuremberg, no Palácio da Justiça, palco do poder da Gestapo, comandantes e empresários foram chamados a responsabilizar-se pelos atos de comando que levaram ao genocídio de milhões de pessoas. Como objeto de pesquisa, as atitudes dos perpetradores levaram Arendt (1990, p. 510) a refletir o poder do totalitarismo na subjetividade, no comportamento humano e na mentalidade. [...] o mal radical surgiu em relação a um sistema, no qual todos os homens se tornaram supérfluos. Os que manipulam esse sistema acreditam na própria superfluidade tanto quanto na de todos os outros, e os assassinos totalitários são os mais perigosos, porque não se importam se estão vivos ou mortos; se jamais viveram ou nunca nasceram (ARENDT, 1990, p. 510). Os mandatários de violações graves aos direitos humanos julgados no Tribunal de Nuremberg4, ao decidir 4 De acordo com o Estatuto de Roma do Penal Internacional (2002), são definidos: Crimes de genocídio: “a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo”; Crimes contra a humanidade –“um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: a) Homicídio; b) Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada de uma população; e) Prisão SUMÁRIO 109 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS agir como não humanos, se recusaram em assumir suas responsabilidades individuais pelos atos de graves violações aos direitos humanos, se assemelhando a um instrumento, uma máquina de guerra. Para desconstruir o processo de negação dos perpetradores os promotores usaram do recurso documental, expondo documentários dos campos de concentração impactando todos os presentes no Palácio da Justiça. Essa lição histórica traz para a educação a reflexão do que acontece quando a instrução militar associada ao terror de Estado retira as dimensões ético-políticas e sócio emocionais da ação dos agentes da segurança. Ao dissociar os sujeitos da dimensão ética os transformam em instrumentos de poder, retirando sua capacidade de julgamento moral e as responsabilidades públicas. Ao fazer esse processo o Estado retira a sensibilidade tão necessária para gerar a empatia e a solidariedade humana entre os diferentes. Sem o processo de autoconsciência tão importante para a autonomia dos sujeitos o poder retira ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura; g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; i) Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de apartheid; k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”; Crimes de Guerra - As violações graves como a tortura, o homicídio doloso, privação de um julgamento imparcial e justo, maus-tratos, deportação para trabalhos forçados, assassinato ou maus tratos de prisioneiros de guerra ou de pessoas, execução de reféns, pilhagem de bens públicos ou privados, destruição sem motivo de cidades e aldeias, entre outros; Crimes contra a paz - guerra de agressão ou violação dos tratados, garantias ou acordos internacionais. 110 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS a capacidade dos agentes de agirem como sujeitos de dignidade e direitos. O holocausto atacou o que é mais íntegro na pessoa humana que é a sua dignidade e sua identidade cultural, retirando das vítimas a capacidade de formar vínculos como humanos, tornando-os coisas descartáveis. Daí Adorno (2004) propor que a educação após Auschwitz implique necessariamente na educação para nunca mais, como forma de evitar que o esquecimento implique em possibilidade de repetição da barbárie. Nessa direção Joan-Carles Mèlich (2000) propõe que a educação em direitos humanos mantenha viva a luta da memória contra o esquecimento. Recordar a memória o Holocausto é um meio de evitar assim, possibilidades de possíveis apagamentos seriam retirados de cena e o condenamento ao esquecimento seria substituída pela (re) significação proposta pela memória. Como afirma Mèlich (2000), os direitos humanos emergem de situações como o holocausto, por isso, é parte da educação em direitos humanos não deixar esquecer. O fato de uma cidade silenciar a dor dos seus antepassados demonstra o quanto ela não se preocupa com o presente e o futuro dos viventes. Tal processo torna a comunidade vulnerável ao esquecimento, impedindo a mesma de agir na direção da não repetição. Por isso, os filósofos alertam, da necessidade do ato de recordar não só o holocausto, como as demais formas de violações que tem afetado a humanidade, para que, não esquecendo, possa prevenir sua repetição, já que os tiranos rodam até encontrar terreno fértil para plantar o horror. A identidade humana requer coragem de agir no aqui e agora. Os sujeitos esquecidos têm rostos e vozes, sentimentos SUMÁRIO 111 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS e coragem de agir pelo coletivo e pela utopia de uma sociedade igualitária. O pior para o futuro da humanidade é quando, nós, seres humanos, não entendemos e deixamos nos levar pelas formas de manipulação impedindo a recordação. “Sem a recordação só há morte”, reflete o autor, pois quando recordamos recusamos a ser instrumentos de um poder arbitrário, lutamos para não perder o exercício da autonomia e da criticidade, elementos tão relevantes para o presente da humanidade. Adorno (1995) alerta que a educação após Auschwitz não pode se reduzir à instrução e aos aspectos meramente técnicos e instrumentais. Daí a importância do testemunho. Wood (2013, p.56) registra o testemunho de Rennè Firestone acerca da experiência que viu, participou e sobreviveu, já que milhões não podem hoje testemunhar: Já lhe disse que esse arame era eletrificado com alta voltagem? Não dava nem para chegar perto assim, sem que imediatamente a eletricidade puxasse você e você estava acabado. As pessoas vinham até esses arames quando não aguentavam mais o sofrimento e a fome extrema. Toda manhã eram vistas pessoas penduradas nesses arames cometendo suicídio. Olhando para eles hoje é difícil de acreditar e, se esses postes pudessem contar as histórias de tudo o que aconteceu aqui. ’Não pode ser verdade’ diríamos para nós mesmos. Não podia ser verdade. E no entanto, estamos todos marcados, temos os números em nossos braços e isso nos diz que sim, estivemos aqui. Nós estivemos aqui. Eu aprendi algo aqui mas me pergunto se o mundo aprendeu alguma coisa. Vendo o mundo hoje a gente se indaga: o que apren- 112 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS demos com o holocausto? O que aprendemos com este lugar? No Julgamento de Nuremberg era possível comprovar como a voz e a presença das testemunhas do holocausto eram dissonantes com a indiferença dos dirigentes nazistas. A mesma experiência tem sido possível no Brasil, durante as oitivas de comissões de verdade quando conseguem juntar familiares e perseguidos políticos com os agentes da segurança do regime militar5. Para Vilela (2012) o conceito de testemunho, significa: Acto pelo qual um indivíduo atesta o acontecimento directo de um objeto ou de um acontecimento; narração (récit) através do qual ele restitui esse acontecimento. Por extensão (‘o testemunho dos sentidos’) designa esse conhecimento directo. Se o valor do testemunho supõe a sinceridade da testemunha, esta não implica, de forma alguma, a validade do acontecimento acerca do qual ela testemunha, (FREUND, 1990, p. 256 apud VILELA, 2012, p. 145). A memória como forma de resistência implica na capacidade de não deixar que os mecanismos de poder aniquilem as vítimas e familiares silenciando-as além do luto e da dor. Esquecer é um ato que faz parte de toda (re) construção memorialística, há uma coexistência do lembrar e esquecer, contudo, silenciamentos impostos por interesses políticos devem ser combatidos, repelidos. 5 Em oitiva chamada pelo Ministério Público Federal SUMÁRIO 113 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A construção da política de memória no Brasil O grupo de familiares vítimas do holocausto assim como do Estado Novo e da ditadura de 1964 no Brasil, ou de outros genocídios e massacres presentes, são as vozes que reclamam o direito à memória e à verdade. Foi do encontro de familiares e perseguidos políticos com setores da sociedade civil que emergiram os primeiros movimentos e entidades de direitos humanos no Brasil, a exemplo, os Movimentos e Comitês pela Anistia (1975) e o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul – CLAMOR (1978). Como afirma Arns (apud BENEVIDES, 2009, p. 27) “A pastoral dos direitos humanos me aproximou mais do povo e de suas lideranças”. A Comissão de Justiça e Paz foi uma das únicas portas abertas que acolheram as vítimas da ditadura militar, estudantes, mães, filhos e avós.6 Segundo Fleuri (2019, p. 4): [...] Embora o mercado tenha desenvolvido poderosos mecanismos de sujeição das instituições de educação e de estudos superiores aos interesses econômicos hegemônicos, as articulações com os movimentos sociais apresentam-se como as mais fecundas do ponto de vista cultural e social. Os movimentos sociais, de objetos de conhecimento das ciências humanas, passam a se assumir como sujeitos de sua práxis social, formulando interpretações dos significados de seus projetos 6 114 Em 1971, quando foi realizado o Encontro do Episcopado Paulista em Brodósqui, foi assinado um importante documento para os direitos humanos no Brasil, o “Testemunho de Paz” em que os bispos denunciam a tortura no país. (BENEVIDES, 2009, p. 44). SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS e elaborando deliberações autônomas em torno de suas lutas. Tal fenômeno interpela a universidade a reconhecer e potencializar as diferentes formas e processos de conhecimento que os diferentes sujeitos sociais desenvolvem na sociedade, redimensionando-se, deste modo, a relação entre universidade e sociedade. Os anos de 1970 foram cruciais para o posicionamento de setores da igreja católica e presbiteriana no Brasil desenvolvendo apoio aos familiares de mortos, desaparecidos e perseguidos políticos, criando órgãos de defesa dos direitos humanos, a exemplo, das Comissões de Justiça e Paz, dos Centros de Defesa vinculados as Arquidioceses e das Pastorais Sociais (ARNS, 1978). No processo de silenciamento o controle da informação exerce importante instrumento de controle político, já que pretendem aniquilar quaisquer traços de memória, impedindo que as vítimas desvelem fatos históricos. Como salienta Assmann (2011), na construção mnemônica a recordação é um elemento fundamental para os projetos de construção identitária mesmo diante das memórias traumáticas, tão difíceis de serem revividas. O direito à memória e à verdade vem na contramão das atitudes de intimidação e interdição tão comuns em tempos autoritários. No Brasil, para que o Conselho Nacional da Pessoa Humana não pudesse investigar as denúncias de desaparecimentos políticos, a exemplo do caso de Rubens Alves durante o regime militar, o órgão por ordem do General Médici reduziu o número de sessões tornando-as secretas. O desaparecimento de duas lideranças das ligas camponesas de Sapé-PB, João Alfredo Dias, na noite de 28 SUMÁRIO 115 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS de agosto de 1964 e Pedro Inácio de Araújo, na noite de 7 de setembro de 1964, após a liberação da prisão junto ao 15 RI em João Pessoa é uma forma de interdição para que a sociedade e os familiares sejam impedidos de acessar a verdade do crime (PARAIBA, 2017). O quadro 01 apresenta uma sistematização sobre o direito à memória e à verdade no Brasil, para situar o leitor aos momentos históricos conquistados por forças sociais: QUADRO 1 - LINHA DO TEMPO DO DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE LEGISLAÇÃO 1975 - ONU 1978 - ONU 116 OBJETO Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, aprovada pela Assembleia Geral em 9 de dezembro de 1975. Criado o grupo de trabalho sobre desaparecimento forçado ou involuntário da ONU. O grupo de trabalho sobre desaparecimento forçado ou involuntário da ONU. Resolução 33/137 adotada pela ONU em 33ª Sessão, em 20 de dezembro de 1978. A Resolução tem como o desaparecimento de pessoas e a gritante violação aos artigos 3,4,5,9 e 11 da DUDH, a saber, o direito à vida, à liberdade, a não ser submetido a torturas, direito à segurança estatal e a não ser preso de forma arbitrária sem um julgamento justo e legal. SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS 1979 – BRASIL Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979 - Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. 1984 Resolução 39/46 de da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984, a ONU aprova a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou degradantes 1985 – OEA Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura da OEA (1985) ratificada em 1989 1988 – BRASIL Contituição Federativa do Brasil - Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: VIII - concessão de anistia; 1989 - ONU Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes entra em vigor no Brasil em 28 de outubro de 1989, ratificada em 1991 1990 - BRASIL 4 de setembro de 1990 - Comissão Parlamentar de Inquerito – CPI para tratar de investigar a Vala Clandestina no Cemitério Dom Bosco em São Paulo 1991 - BRASIL Lei 8.159 de 8 de janeiro de 1991 - Política Nacional de Arquivos Públicos e Privados. Dispõe sobre a categoria dos documentos públicos sigilosos e o acesso a eles, e dá outras providencias. Ratificação em 15 de fevereiro de 1991, da ONU Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1989) SUMÁRIO 117 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS 1992 – BRASIL Câmara dos Deputados. Comissão Extraordinária sobre o Desaparecido Político sob a presidencia de Nilmário Miranda. Fernando Collor entrega os doumentos do DEOPS de São Paulo aos familiares de mortos e desaparecidos politicos que constroem um Dossiê A Declaração 47/133 de 1992 tem por base a preocupação da comunidade internacional com a questão do desaparecimento forçado de pessoas por quase duas décadas, tal preocupação da comunidade internacional via ONU, é formar uma norma que possua validade jus cogens e erga omnes. Declaração sobre a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado adotada pela ONU através da 1992 – ONU 1993 118 Resolução 47/133 de 18 de dezembro de 1992 engrossam as medidas de que visam a proteção contra a vilania do “desaparecimento forçado”. Tal Resolução, per si, já faz em seu preâmbulo, um breve histórico de medidas que visam a proteção e garantia dos Direitos de expressão e liberdade nos regimes de exceção; Por solicitação do Deputado Nilmário Miranda, o Ministério da Justiça e as Forças Armadas entregaram Relatórios sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, reconhecendo a existência da Guerrilha do Araguaia. SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS 1994 – OEA Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoa – 9 de junho de 1994 - A convenção foi, por exemplo, em seu artigo referendada durante a Convenção de Viena, passando a figurar em seu Artigo 16º e parágrafo 3º o seguinte: “Não serão reconhecidos quaisquer privilégios, imunidades ou dispensas especiais no âmbito de tais processos, sem prejuízo das disposições enunciadas na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”. [23] 171 países abraçaram e ratificaram tal Declaração, constituindo assim preceito de Direito Internacional. 1987- OEA - Em 9 de junho de 1994 a Resolução da Assembleia Geral da OEA nº 1256 (XXIV-O/94) [26] , adotou a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, entrando em vigor em 28 de março de 1996. 1998 - O Estatuto de Roma é um tratado que estabeleceu a Corte Penal Internacional (CPI) hoje conhecida como Tribunal Penal Internacional, tratado adotado em Roma na Itália em 17 de julho de 1998 SUMÁRIO 119 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Reunião Nacional das entidades e familiares chamada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados com o Ministro da Justiça Nelson Jobim e José Gregori. Fernando Henrique Cardoso recebe dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Politicos um Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos O Centro de Estudos para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Human Rights Watch (HRWA) apresenta petição a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, denunciando em nome dos familiares, o desaprecimento dos mortos na Guerrilha do Araguaia, solitando declaração de responsabilidade do Estado brasileiro sobre violações de direitos humanos. 1995 – BRASIL Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) – instituída pela Lei nº 9.140/95, 4 de dezembro de 1995 – vem cumprindo importante papel na busca de solução para os casos de desaparecimentos e mortes de opositores políticos por autoridades do Estado durante o período 1961-1988 Lei 9.140 de 4 de dezembro de 1995 - Reconhece como responsabilidade do Estado brasileiro a morte de opositores ao regime de 1964, assim como, prever a concessão de idenização a parentes de milutantes políticos mortos ou desaparecidos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Instituiu Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) com poderes para deferir pedidos de indenização das famílias de uma lista inicial de 136 pessoas e julgar outros casos apresentados para seu exame e localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados. 120 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS 1997 Lei 9.455 de 7 de abril de 1997 - Define crimes de tortura e dá outras providências. Lei 9.507 de 12 de novembro de 1997 - Direito de Acesso a Informações e do Disciplinamento do rito processual do habeas data. Decreto no 2.134 de 24 de janeiro de 1997 Regulamenta o art. 23 da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a categoria dos documentos públicos sigilosos e o acesso a eles, e dá outras providências. Regula a classificação, a reprodução e o acesso aos documentos públicos de natureza sigilosa. 2001 Medida Provisória nº 2151-3, de 24 de agosto de 2001 quando foi criada a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, regulamenta o art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988, que previa a concessão de anistia aos que foram perseguidos em decorrência de sua oposição política. A Medida Provisória no 2151-3 de 24 de agosto de 2001, reeditado pela Medida Provisória no 65, de 28 de agosto de 2002, Convertido na Lei no 10.559, de 13 de novembro de 2002. Plano Nacional de Combate à Tortura. Lançado em julho de 2001. 2002 Decreto nº 4.553, de 27 de fevereiro de 2002 - Dispõe sobre a savalguarda de dados, informações, documentos e materiais sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no ambito da administração pública federal e dá outras providencias. Estabelece a classificação dos documentos como sigilosos: ultra-secretos, secretos, confidenciais e reservados, em razão de seu teor ou de seus elementos intrínsecos (art.5o) Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, regulamentando o art. 8 das as Disposições Transitórias que trata doRegime do Anistiado Político, da Declaração de Anistiado Político e da Reparação Econômica. Campanha Nacional Permanente Contra a Tortura em parceria com o Movimento Nacional dos Direitos Humanos, em 2002 SUMÁRIO 121 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS 2005 2005-2008 Ações Civil Pública na Justiça Civil contra oficiais do exército acusados de tortura, homicídio e desaparecimento forçado de dezenas de cidadãos. 2006 O Governo Federal publicou o Plano de Ações Integradas de Prevenção e Combate à Tortura (PAIPCT) em 2006. 2007 122 O Governo Federal determinou que os três arquivos da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) fossem entregues ao Arquivo Nacional, subordinado à Casa Civil, onde passaram a ser organizados e digitalizados. Criação da Coordenação-Geral de Combate à Tortura (CGCT) por meio da Portaria n° 22 da Secretaria Especial de Direitos Humanos de 22 de fevereiro de 2005. Agosto de 2007 - Lançado pela SEDH-PR e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o livro-relatório “Direito à Memória e à Verdade”, registrando os onze anos de trabalho daquela Comissão e resumindo a história das vítimas da ditadura no Brasil. Ratificação do Protocolo Adicional à Convenção Contra Tortura das Nações Unidas (2006) pelo Decreto Presidencial n° 6.085/2007. 2008 Julho de 2008 - Audiência Pública realizada pelo Ministério da Justiça e a Comissão de Anistia sobre “Limites e Possibilidades para Responsabilização Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceção no Brasil”. 2009 Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009 - Aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3 e dá outras providências. Maio de 2009 - Ato de lançamento do projeto Memórias Reveladas, sob responsabilidade da Casa Civil, que interliga digitalmente o acervo recolhido ao Arquivo Nacional após dezembro de 2005, com vários outros arquivos federais sobre a repressão política e com arquivos estaduais de quinze unidades da federação. Decreto 7.037, 21 de dezembro de 2009 - Decreto instituindo o PNDH III onde consta eixo orientador para atuação do Estado no que tange ao Direito à Memória e à Verdade. SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS 2010 A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Estado brasileiro pelos atos ocorridos durante a Guerrilha do Araguaia. 2011 Lei 12.528 de 16 de maio de 2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade com a finalidade de apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. 2012 Em 16 de maio de 2012 a presidente Dilma instala a Comissão Nacional da Verdade. Parecer CNE/CP nº 01, de 30 de maio de 2012 – Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Decreto nº 7.845, de 14 de novembro de 2012 - regulamenta procedimentos para credenciamento de segurança e tratamento de informação classificada em qualquer grua de sigilo, e dispõe sobre o Núcleo de Segurança e Credenciamento. 2013 Decreto nº 7.919, de 14 de fevereiro de 2013, que institui os cargos em comissão para as atividades da CNV; Resolução nº 08, de 04 de março de 2013, aprovando o Regimento Interno da Comissão Nacional da Verdade. Medida Provisória nº 632, de dezembro de 2013, que prorroga o mandato da CNV até dezembro de 2014 pela medida provisória nº 632.Comissão Nacional da Verdade. A presidente Dilma sanciona a Lei nº 12.847 de 2 de agosto de 2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à TorturaSNPCT e cria o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. 2015 Portaria Interministerial nº 1.321-A, de 29 de setembro de 2015, que “declara o recebimento do Relatório da Comissão Nacional da Verdade e declara de interesse público e social o acervo documental e arquivístico reunido pela Comissão Nacional da Verdade.” SUMÁRIO 123 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS 2017 Lei nº 13.581, de 26 de dezembro de 2017, declarando Dom Helder Câmara, Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos 2018 Lei nº 13.598, de 8 de janeiro de 2018, determinando a inclusão do nome de João Pedro Teixeira nos Livros dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves. 2019 anistia política Constituição Federal de 1988 Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002: Lei que institui a Comissão de Anistia e regulamenta o regime do anistiado político. Decreto nº 6.973 de 02 de janeiro de 2019: Decreto que aprova a estrutura regimental do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Fonte: FERREIRA; ZENAIDE; MELO, 2016. Passos relevantes foram dados pelo Estado brasileiro, a partir do movimento de anistia e do movimento dos mortos e desaparecidos políticos. Embora tenha sido tardia a inserção do direito à memória e à verdade no Brasil com o Programa Nacional de Direitos Humanos em 2009, a difícil criação da Comissão Nacional da Verdade em 2011 mobilizou a criação de comitês e comissões estaduais de verdade, assim como mobilizações do movimento estudantil como foram os escrachos pelo Levante Popular da Juventude. Com relação ao campo da educação, o PNDH 3 agendou a criação de uma coordenação no interior da Secretaria dos Direitos Humanos que passou a realizar articulações com a sociedade civil e o MEC para pensar estratégias de inserção no currículo do direito à memória e 124 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS à verdade, foi assim na Conferência Nacional de Educação e na XI Conferência Nacional de Direitos Humanos. Ao não priorizarmos a dimensão da educação para a cidadania democrática no Brasil, só obtendo a aprovação do Conselho Nacional de Educação das Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos em 2012, atrasamos o desafio de educar a sociedade para uma cultura democrática. Conhecimento compartilhado: educar para nunca mais como componente da educação popular Adorno (2003) problematiza a relação entre educação após a experiência do Holocausto. Para Adorno, o terror aniquila a consciência da dor alheia tornando as pessoas cúmplices do totalitarismo na medida em que não percebem o processo de alheamento. Para Adorno (2003) a exigência de que Auschwitz não repita precede as demais, já que a humanidade deve tomar consciência de como a barbárie pode ser uma realidade quando a monstruosidade humana sobrepõe a dignidade. Para evitar a repetição da barbárie é necessário que a sociedade conheça os mecanismos que fazem com que as pessoas podem ser capazes de cometer atos bárbaros. Para Adorno (2003, p. 121) “Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva”. A educação eticamente deve ser dirigida a autorreflexão crítica, desde a infância, o esclarecimento e a sensibilidade e a formação de vínculos capazes de construir relações de alteridade e empatia capazes de agir frente a atitudes e hábitos de violência, humilhação. SUMÁRIO 125 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A assistência religiosa, psicológica e jurídica realizadas pelas Comissões de Justiça e Paz, os Centros de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos, o Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, os Grupos Tortura Nunca Mais foram pioneiros na defesa dos direitos humanos no Brasil. A educação para nunca mais tem sido construída no Brasil e em países da América Latina, a partir de um conjunto de atividades educativas formais e não formais, promovidas por organizações da sociedade civil e do poder público como parte da Justiça de Transição. Na Argentina, no Chile e no Uruguai os sítios de memória assim como as Avós da Praça de Maio têm promovido um processo educativo aberto à sociedade e as instituições de ensino, através de série de desenho animado7 (Pakaka), vídeos documentando as marchas no dia 24 de março, dia do golpe de estado exigindo memória, verdade e justiça assim como documentários, como 500, o número de desaparecidos na Argentina. No Brasil, organizações da sociedade civil tem antecipado o Estado, realizando dossiês 8, processos judiciais, prêmios de direitos humanos, ações educativas em escolas e bairros (Ver Memória para Uso Diário de Betty Formaggini,2007). 7 8 126 O canal Pakapakaeditou “Día Nacional del Derecho a la Identidad” (https://www. youtube.com/watch?v=Uoutyr6QhOk); 24 de marzo: Día de la memoria por la verdad y la justicia (https://www.youtube.com/watch?v=modxDNj4RwM), Día de la Memoria enPakaPaka. “Zamba” visita la Casa Rosada (https://www.youtube.com/ watch?v=hEv0gzbBY7E),24 de Marzo: la marcha del Encuentro Memoria, Verdad y Justicia y la izquierdahttps://www.youtube.com/watch?v=7jJu-lzHO5o) aniversario del golpe militar de 1976. Día Nacional de la Memoria por la Verdad y la Justiciahttps:// www.youtube.com/watch?v=Wdt8JwOd4W4. Comissão Especial Sobre Mortos E Desaparecidos. Direito À Memória E A Verdade. Brasília: Cemdp, 2007.Comissão Especial Sobre Mortos E Desaparecidos E Instituto De Estudo Da Violencia Do Estado E Grupo Tortura Nunca Mais Rj E Pe. Dossiê Dos Mortos E Desaparecidos Políticos A Partir De 1964. Pernambuco: Governo Do Estado De Pernambuco E São Paulo: Governo Do Estado De São Paulo, 1996. Arquidiocese De São Paulo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis, Rj: Vozes,1985. SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS No plano da educação para nunca mais, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça realizou durante 2003-2016 ações educativas, tais como, Caravanas da Verdade, apoio a realização de Cinema de Direitos Humanos, seminários, estudos e pesquisas e publicações, como dossiês e livros. No Brasil, a história recente revela que vivemos 29 anos de regime autoritário (Estado Novo – 1937-1945 e Ditadura Militar – 1964-1985) e 53 anos de Democracia (1945 – 1964 e 1985-2019) que devem ser componentes da educação para a democracia e os direitos humanos. Em 4 de junho de 2009, a OEA aprovou a Resolução sobre o Direito à Verdade no âmbito dos países partes, como o Brasil seguindo as recomendações do Seminário Regional “Memoria, Verdade e Justiça de nosso pasado recente”, realizado durante a Reunião de Altas Autoridades Competentes em Direitos Humanos do MERCOSUR e Países Associados, en novembro de 2005. Na referida Resolução os Estados se comprometem a criarem […] mecanismos judiciais específicos, bem como outros mecanismos extrajudiciais ou ad hoc, como as comissões de verdade e reconciliação, que complementam o sistema judicial para contribuir para a investigação de violações de direitos humanos e as do Direito Internacional Humanitário, e avaliar a preparação e publicação dos relatórios e decisões desses órgãos. Assim, como também, aprovaram a divulgação do fruto desse proceso seja socializado junto a sociedade para que esta possa entender a gravidade de tais violações de modo a poder prevenir sua repetição e ocorrência. SUMÁRIO 127 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Incentivar todos os Estados a tomar medidas apropriadas para estabelecer mecanismos ou instituições que divulguem informações sobre violações de direitos humanos e assegurar acesso adequado aos cidadãos a essas informações, a fim de promover o exercício do direito à verdade e a prevenção de futuras violações dos direitos humanos, bem como a determinação de responsabilidades nesta matéria. Cumprindo tais acordos regionais o Brasil pela Lei 12.528, de16 de maio de 2012 instituiu a Comissão Nacional da Verdade com a finalidade de apurar as graves violações de Direitos Humanos ocorridas durante o período de 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Dentre as graves violações aos direitos humanos ocorridas de 1964-2001, foram identificados pela Comissão Nacional da Verdade: a) Detenção (ou prisão) ilegal ou arbitrária; b) Tortura; c) Execução sumária, arbitrária ou extrajudicial, e outras mortes imputadas ao Estado; d) Desaparecimento forçado e ocultação de cadáver (BRASIL, 2013). A Educação para a democracia implica, segundo a Convenção Interamericana Democrática (2001) na promoção e consolidação da democracia nas Américas como recurso para a paz e o desenvolvimento da região. Consolidar a democracia representativa assim como o respeito ao princípio da não-intervenção são alicerces dos novos tempos. No artigo 4, a Convenção afirma como componentes para o exercício da democracia “a transparência das atividades governamentais, a probidade, a responsabilidade dos governos na gestão pública, o respeito dos direitos sociais e a liberdade de expressão e de imprensa”. No artigo 128 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS 9, o texto da Convenção associa democracia e respeito as diversidades, por isso é responsabilidade dos Estados eliminar e prevenir [...] toda forma de discriminação, especialmente a discriminação de gênero, étnica e racial, e das diversas formas de intolerância, bem como a promoção e proteção dos direitos humanos dos povos indígenas e dos migrantes, e o respeito à diversidade étnica, cultural e religiosa nas Américas. O destaque para a educação como direito fundamental é tratado no artigo 16: A educação é chave para fortalecer as instituições democráticas, promover o desenvolvimento do potencial humano e o alívio da pobreza, e fomentar um maior entendimento entre os povos. Para alcançar essas metas, é essencial que uma educação de qualidade esteja ao alcance de todos, incluindo as meninas e as mulheres, os habitantes das zonas rurais e as minorias. A preservação da institucionalidade democrática exige o conhecimento da Constituição democrática assim como da legislação em vigor protetora dos direitos humanos. Por isso, a educação para vida democrática é uma das ações a serem assumidas como básica ao ensino formal. Os artigos 26 e 27 da Convenção Democrática Interamericana enfatizam medidas a serem incorporadas pelos sistemas de ensino: Artigo 26 SUMÁRIO 129 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A OEA continuará desenvolvendo programas e atividades dirigidos à promoção dos princípios e práticas democráticos e ao fortalecimento da cultura democrática no Hemisfério, considerando que a democracia é um sistema de vida fundado na liberdade e na melhoria econômica, social e cultural dos povos. A OEA manterá consultas e cooperação contínua com os Estados membros, levando em conta as contribuições de organizações da sociedade civil que trabalhem nesses campos. Artigo 27 Os programas e as atividades terão por objetivo promover a governabilidade, a boa gestão, os valores democráticos e o fortalecimento das instituições políticas e das organizações da sociedade civil. Dispensar-se-á atenção especial ao desenvolvimento de programas e atividades orientados para a educação da infância e da juventude como meio de assegurar a continuidade dos valores democráticos, inclusive a liberdade e a justiça social. O direito à memória e à verdade no Brasil são eixos do Programa Nacional de Direitos Humanos 3, aprovado em Conferência Nacional e objeto de Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, sendo atualizado pelo Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010. O direito à memória e à verdade, eixo VI do PNDH 3 integra a investigação do passado o resgate da verdade para a constituição da memória individual e coletiva. Tal processo vem sendo construído desde os anos setenta pelos familiares e vítimas do regime autoritário através de dossiês 130 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS e relatórios que mesmo divulgados em meios eletrônicos ainda não é de conhecimento da sociedade. Desde os anos 1990, a persistência de familiares de mortos e desaparecidos vem obtendo vitórias significativas nessa luta, com abertura de importantes arquivos estaduais sobre a repressão política do regime ditatorial. Em dezembro de 1995, coroando difícil e delicado processo de discussão entre esses familiares, o Ministério da Justiça e o Poder Legislativo Federal, foi aprovada a Lei no 9.140/95, que reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de opositores ao regime de 1964. Essa Lei instituiu Comissão Especial com poderes para deferir pedidos de indenização das famílias de uma lista inicial de 136 pessoas e julgar outros casos apresentados para seu exame. No art. 4o, inciso II, a Lei conferiu à Comissão Especial também a incumbência de envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados (BRASIL, 2010, 207-208). Uma consciência democrática exige que se revisite a história passada e recente a fim de que a sociedade encontre meios de superar os efeitos da violência no plano individual e coletivo. A Comissão de Anistia já realizou setecentas sessões de julgamento e promoveu, desde 2008, trinta caravanas, possibilitando a participação da sociedade nas discussões, e contribuindo para a divulgação do tema no País. Até 1o de novembro de 2009, já haviam sido apreciados por essa Comissão mais de SUMÁRIO 131 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS cinquenta e dois mil pedidos de concessão de anistia, dos quais quase trinta e cinco mil foram deferidos e cerca de dezessete mil, indeferidos. Outros doze mil pedidos aguardavam julgamento, sendo possível, ainda, a apresentação de novas solicitações. Em julho de 2009, em Belo Horizonte, o Ministro de Estado da Justiça realizou audiência pública de apresentação do projeto Memorial da Anistia Política do Brasil, envolvendo a remodelação e construção de novo edifício junto ao antigo “Coleginho” da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde estará disponível para pesquisas todo o acervo da Comissão de Anistia. Dentre as Diretrizes e Ações para promover o Direito à Memória e à Verdade, destacam-se a Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado; a Diretriz 24: Preservação da memória histórica e construção pública da verdade e a Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia. A preservação da memória requer a criação de centros de memória, museus e centros de documentação que organize e disponibilize os arquivos da repressão política, valorizando através de ações educativas. Para tanto, torna necessário a formação e a produção de material didáticopedagógico a ser disponibilizados aos sistemas de educação básica e superior. Considerações 132 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Educação para Nunca Mais como componente da educação popular em países com história de opressão e violência torna-se uma tarefa difícil e complexa, já que as demandas ainda se concentram na violência, quando a humanidade já poderia estar em outro patamar de convivência humana. O tema da história recente do autoritarismo muitas vezes encontra-se retirado da memória coletiva do espaço escolar. Por isso os sítios de memória podem exercer um papel relevante para retirar o manto do esquecimento. Quando foi criado o memorial das Ligas Camponesas na sede da casa do líder João Pedro Teixeira setores educacionais como universidades, escolas públicas, intelectuais e lideranças camponesas se articularam criando um conjunto de ações voltadas para a educação para nunca mais. Propor alternativas viáveis para a concretização plena da garantia dos direitos é ainda mais desafiador. Há muito tempo, debatemos exaustivamente o tema, sem, contudo, encontrarmos soluções definitivas, que sejam capazes de resolver todas as violações ainda existentes nesse campo. Isto porque o tema em questão não nasceu pronto, não comporta conceitos fixos, mas, sobretudo, é dinâmico e mutável por sua própria natureza, não se faz, mas vem se fazendo, no cotidiano das lutas sociais travadas ao longo da história da Humanidade, agora se abrindo especialmente aos dilemas contemporâneos. A educação para emancipação ao mesmo tempo em que retira os mais velhos do esquecimento possui a força de acolher as vítimas do autoritarismo retirando do longo processo de segregação e estigmatização. Foi dessa forma que fomos entendendo a necessidade de se fomentar uma reflexão sobre os direitos humanos a partir da realidade SUMÁRIO 133 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS local de modo a comportar a sua dimensão educativa e favorecer processos de transformação dialética, regulação e emancipação, reprodução e mudança, tendo como pano de fundo o diálogo. Educar para Nunca Mais é fundamental para a construção de um processo de cidadania que leve em consideração, entre outros aspectos, a existência do “outro” como sujeito de direito. Portanto, a relevância das discussões vai em direção ao diálogo com teóricos e suas discussões, buscando argumentos que admitam a necessidade de se repensar uma educação em direitos humanos crítica e libertadora. O saber popular não se propõe a assumir qualquer força mágica ou a assegurar o gerenciamento da humanidade. Todavia, a razão mantém- se como componente fundante da validade de um conhecimento gerador de saber. Muito distante da exigência quantitativa empirista, essa validade se dá pelo reconhecimento intersubjetivo através do falante e do ouvinte. São razões que vão sendo resgatadas de cada um e que, quando estão em grupo, tornam-se posição coletiva. Em nenhum momento, o saber popular ou o saber da tradição foram expressão do não pensamento, mas sim, de um conjunto de pensamentos determinados pelas condições do pensar, em cada momento histórico. Nunca se propôs, por si mesmo, a salvar a humanidade. Contudo se prestou para o saber viver em cada momento da vida humana e aí está sua importância. (MELO NETO, 2001, p. 242) Conhecer a nossa história é o passo fundamental para que se entenda o momento vivido, para a construção 134 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS do futuro. Conhecendo o passado, entendemos o presente e temos condições de, no futuro, não cometermos erros já cometidos. Conforme apontam Abrão e Torelly (2010) a memória é um meio de significação social e temporal de grupos e instituições, o que implica em conhecer sua importância para a geração do senso comum, ou seja, para a compreensão coletiva da sociedade sobre determinados eventos do passado. Desta forma, a memória joga papel fundamental para o autorreconhecimento de um povo, ao embasar o processo de construção de sua identidade. Os horizontes de sentido da Educação Popular, por fim, devem ser entendidos como pressupostos para o alcance de uma educação construída em um processo com os outros, desde os outros, para si e para os outros. É através da humanização dos indivíduos, do seu entendimento como sujeitos empoderados, detentores de memória e de direitos, que será possível a construção de processos educativos que vislumbrem a aprendizagem como exercício de reflexão e ações críticas. A educação como instrumento de libertação. Referências ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. AGUIRRE, Luiz. Perez. Os convidados estrangeiros. In: Jornal da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos. São Paulo, 1997. ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. SUMÁRIO 135 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução e ensaio crítico André Duarte. 3º Ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ARNS, D. Paulo Evaristo. Em defesa dos direitos humanos. Encontro com o repórter. 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Editora do CCTA. 2019 136 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS GIOVANI, Paulo Giovani Antonino Nunes, [et al.] Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba. Relatório final. João Pessoa: A União, 2017. GUERRA, Lúcia de Fátima; ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares; MELO, Vilma de Lurdes Barbosa. Direito à Memoria e à Verdade – saberes e práticas docentes. João Pessoa: CCTA, 2016. HESSEL, Stéphane. Indignai-vos! São Paulo: Leya, 2011. MÈLICH, Joan-Cales. A memória de Auschwitz – 0 sentido antropológico dos direitos humanos. In: CARVALHO, Adalberto Dias de(Org.) A educação e os limites dos direitos humanos. Porto: Editora Porto, 2000, p. 47-61. MELO NETO, José Francisco. Dialética: uma introduão. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. OAS. Conferencia Democrática Interamericana. 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A sua incapacidade de ofertar formação humanizada para ressocializar é resultado evidente e verificado por muitas pesquisas. Por isso, pensar as prisões como contexto e espaço da prática e pesquisa em Educação Popular (EP) com um real objetivo de (re)integrar as pessoas em conflito com a lei é uma forma de resistência e enfrentamento aos danos causados pelos abusos aos direitos humanos frequentes em várias instituições do sistema penitenciário que reafirmam as grandes injustiças sociais e humanas em torno da metodologia hostil e ultrapassada das prisões. Pensar a prática e pesquisa em educação como enfrentamento às múltiplas contradições nesse espaço é se colocar a caminho da construção de um movimento social educativo, libertador, autêntico, problematizador e revolucionário na ótica de uma EP que vise escolarizar, 138 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS qualificar e levar as Pessoas em Situação de Restrição e Privação de Liberdade (PSRPL) a uma conscientização crítica da realidade por meio de práticas formativas humanizadas e horizontais com ações pedagógicas mediadas pela reflexão e o diálogo entre todos os envolvidos e pesquisas emergidas pela curiosidade epistemológica que desvende e problematize a realidade desses espaços, proporcionando uma leitura do mundo ou dos mundos dentro e além das grades. De tal modo, se afloram várias inquietações quando pensamos em pesquisa e prática educativa para a formação humana das PSRPL, como: diante da situação das prisões, que proposta educacional pode contribuir para a transformação dessa realidade, mudando-a para melhor? Qual a relação da práxis educacional transformadora, humanizadora e emancipatória da Educação Popular nas prisões? Quais os aspectos problematizadores da pesquisa em EP nas prisões? Na busca por responder essas questões, o presente texto tem por finalidade pensar a relação dos presídios como contexto e espaço da pesquisa e prática social na ótica da educação popular com sua aspiração de luta, democracia e justiça social, alicerçado no pensamento de Paulo Freire e na sua forma de fazer a práxis e pesquisa social, tendo em vista que a EP está para os sujeitos com a proposta que eles tomem “em suas mãos a história de construção da suas caminhadas em direção “ser mais” (PALUDO, 2001, p. 95). É no “ser mais” de cada um e nesse processo contínuo da caminhada “marcada pelo medo, pela alegria, pela coragem, pelo pessimismo, pelo amor, pela raiva, pela luta, mas que uma vez iniciadas, mais cedo ou mais tarde rebelam-se contra as prescrições independentemente de quem as pauta” (PALUDO, 2001, p. 95). Independentemente SUMÁRIO 139 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS de quem está no poder ou de quem está submetido a esse poder, pensar na formação humana por meio da pesquisa e educação nas prisões em uma epistemologia ampla, diversificada, pautada na perspectiva popular e construída nesse caminho repleto de acontecimentos e emoções é resistir contra o sistema falido e lutar por políticas públicas humanas que presem pela real segurança de todas as pessoas e a reintegração social dos presos. Educação popular nos contextos espaços prisionais: práxis de possibilidades libertárias A educação possui papel importante na diminuição da população penitenciária, cabendo o questionamento: que educação interessa a esse público? Não se trata de aplicar práticas educacionais que beneficiem as classes dominantes, cheia de relações de poder, intenções de controle, inibição e opressão, com atividade meramente diretivas e depositárias. Entendemos que existe uma extrema necessidade de práticas e políticas de formação humana eficientes, com sua práxis direcionada à capacidade de aprendizagem e desenvolvimento criativo, (trans)formador e libertador para modificar as situações vivenciadas pelas PSRPL. Sem dúvida, cabe refletir os tipos de operacionalidade e técnicas que possam ser orientadas de forma horizontal, oriunda dos sujeitos e para os sujeitos que contribuam no fortalecimento do desenvolvimento humano e social. Uma formação crítica, reflexiva e que interesse a população carcerária. Sobre isso, Melo Neto (2004, p. 121) em seus escritos nos ajuda a compreender que, 140 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A educação realiza-se de forma espontânea, em qualquer lugar. Acontece de forma reflexiva ou sistemática quando se definem técnicas apropriadas na busca de se obter melhor rendimento educativo (a teoria pedagógica). Entretanto, a operacionalidade (preceitos e leis) e as opções de técnicas ou metodologias desse processo educativo sistematizado são demarcadas por uma política de educação. É neste sentido que cabe questionar quanto ao direcionamento desejado para os processos educativos. Pois, os processos educativos para formação devem ter um direcionamento cheio de possibilidades de acesso às práticas humanas e ferramentas para reintegração social com uma profundidade crítica aos modelos educativos dominantes. Esse perfil educacional que busca uma educação junto as PSRPL, que possibilita mudança e acondicionamento intelectual às pessoas, é encontrado na práxis de uma educação na ótica da EP, pois: A educação popular é um movimento prático e teórico em educação, presente em processos de organização das classes trabalhadoras, que apresenta profundas críticas à educação dominante e que, segundo Paulo Freire (1958), tem promovido o ‘silêncio’ dessas maiorias, defendendo outro fazer educativo – educação popular -, definindo-se por uma educação com o homem e não sobre o homem, ou, simplesmente, para ele. Uma educação promotora de mudanças e criadora de outras e novas disposições mentais no humano, enquanto coloca-o na sua contextura sociocultural, em condição compreensiva de seu mundo mesmo (MELO NETO, 2015, p. 173). SUMÁRIO 141 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A EP, possui influente valor manifestados em suas experiências - envolta de situações que tentam deslegitimala como práxis educativa, continua expandindo-se cada vez mais em diversos contextos e espaços como mecanismo de enfrentamento e resistência ao sistema desumanizador e desigual. Por ser uma práxis social comprometida com o povo ela se constitui popular, pois segundo o entendimento de Gadotti (2014, p. 26), esse termo “atende às necessidades populares, às demandas dos excluídos”. Surge, assim, um profundo questionamento: qual a relação dos presídios com a Educação Popular? Cabe aqui compreender que os presídios são campos de atuação da EP, na qual desenvolvem práticas de formação humana, crítica e de luta, dentro da realidade desse espaço afetada por múltiplos contextos sociais, como a reprodução das mazelas trazidas pelo processo de globalização capitalista, que viola direitos básicos para a sobrevivência humana. A ocorrência da EP nesse espaço debruça-se sobre uma política de transformação social, possibilitando um sistema aberto de ensino e aprendizagem, colaborando com a formação humana e social dos sujeitos por meio de um trabalho alicerçado na realidade cotidiana dos oprimidos, excluídos e marginalizados, com metodologias referenciadas em suas experiências, trabalhando a participação subjetiva e coletiva dos envolvidos em vista de sua autonomia, pois é: Uma educação que pode ser apresentada, hoje, como um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais humanos, pelo trabalho, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, contendo uma teoria de conhecimento referenciada na re- 142 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS alidade e pautada pela ‘experiência’ dos que estão nesse processo; com metodologias (pedagogias) incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas individuais e coletivamente; com conteúdos próprios e técnicas de avaliação contínua; permeado por uma base política estimuladora de transformação social e orientada por anseios humanos de liberdade, justiça e igualdade (MELO NETO, 2015, p. 173-174). A EP está ancorada humanamente nas aspirações por liberdade, justiça e igualdade, se torna adequada a um contexto no qual as pessoas são privadas de qualquer tipo de esperança de transformação de si, pois se trata de uma práxis totalmente diferente das impregnadas no sistema penal que envolve relações de poder, violência, terror e medo. Diferente desses processos, a EP promove práticas educativas desenvolvidas com o povo, [...] vai tornando o mundo da concretude o seu ponto de partida quando de seu conhecimento. É um processo educativo que pode acontecer também através do tijolo sobre tijolo. Não esconde mais que o homem pode estar sentado sobre a pedra e não estar pensando apenas na pedra, mas também em si (MELO NETO, 2015, p. 51-52). Devido a isso, a EP atuante nos presídios com sua práxis educativa e (trans)formadora se expande como resistência e enfrentamento à estrutura social conturbada no meio de grandes mudanças fora e dentro do cárcere com o surgimento de novos paradigmas nas inter-relações sociais, econômicas, políticas, culturais e religiosas. Seu trabalho engloba questões diversas em relação as PSRPL, tais SUMÁRIO 143 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS como subjetividade, saúde, família, sexualidade e liberdade. Paralelamente, suas demandas são entrelaçadas nas relações de poder que reproduz a brutalidade da pobreza, desigualdade, desumanização, violência, incentivo ao crime organizado, estratificação popular, entre outras. Ireland (2011) explica que esses lugares de não liberdade negam a autonomia pessoal das pessoas presas pois, A preocupação central do presídio é com a segurança e a detenção das pessoas ali encarceradas – a segurança da sociedade e não necessariamente da pessoa presa. Apesar de serem lugares ordenados (com hierarquias, regras rígidas, comportamentos institucionalizados, horários e espaços delimitados), o que impressiona o visitante na maioria dos presídios é o aparente caos, o barulho, as tensões visíveis e latentes e as interferências. É o lugar da não liberdade, constituindo um espaço que institucionaliza e tira a independência e a autonomia das pessoas (p. 28). Inexiste uma preocupação com a PSRPL, por isso a contribuição de uma formação que possua uma proposta democrática como a EP pautada nas experiências e obras de Paulo Freire vai além de apenas formar cidadãos para se enquadrar nos ditames de sistemas opressores e desiguais da sociedade. Ela trata de um processo de aprendizagem e do anseio por conhecimento e (trans)formação, imergindo na história por meio da própria ação dos envolvidos, conforme explica Melo Neto (2015) ao escrever que: [...] a educação popular manifesta-se por meio do insistente desejo de criação de conhecimento que busquem fazer história. 144 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Nessa construção da história, o ser humano expõe-se a novos temas e provoca o surgimento de novos valores, sugerindo outras formas, dando origem a novas atitudes e mudando o seu comportamento. É um trabalho humano que se dá em e pela prática do indivíduo. Assim, à medida que humaniza a natureza, também naturaliza a sua dimensão de ser humano. Expressa, ainda, a sua verdade, no sentido de que o indivíduo deve sair de si mesmo e modelar a própria realidade expressa pelas suas atividades (p. 112-113). A perspectiva de aprendizagem inerente à EP percorre uma dialética que sai de si e (trans)forma a realidade histórica, se realizando em um processo que ocorre ao longo de toda a vida, de forma crítica e política, correspondendo às necessidades de conduzir a própria vida e as relações que encontrará na sociedade. No entanto, existe as relações internas dos presídios que permeiam a vida dessas pessoas em suas buscas constantes de sobreviver ao ócio dos dias encarcerados, pois “as pessoas reclusas adotam atitudes que lhe permitem deixar o presídio o mais rapidamente possível – mas não são aprendizagens que o preparam para retornar à sociedade” (IRELAND, 2011, p. 28). Trata-se de uma forma de aprender a se adaptar ao contexto posto no cotidiano dentro do sistema de regras e as relações entre os agentes, familiares, presos e as facções existentes, pois “em diversos casos, como o prisional, o ambiente ensina o que é necessário para sobreviver” (IRELAND, 2011, p. 28). Ao contrário dessa perspectiva, encontra-se uma educação e aprendizagem ao longo da vida que dispõe de práticas e conteúdos com extrema SUMÁRIO 145 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS relevância a um projeto educativo voltados para os jovens e adultos pautados pelos seguintes processos: Sublinhando a premissa de educação e aprendizagem para todos ao longo da vida, reconhece-se que os processos educativos se dão de três formas. Na grande maioria das sociedades, existem sistemas formais de educação – frequentemente obrigatórios para crianças e adolescentes – calcados em instituições escolares e seguindo, em geral, currículos preestabelecidos. Também existem meios não formais de educação que são mais flexíveis do que a educação formal e, por via de regra, mais voltados para as necessidades de aprendizagem específicas dos sujeitos. No campo da educação não formal, é comum serem incluídas atividades de “aprendizagem profissional” que são de importância fundamental para o público privado de liberdade e precisam ser entendidas e dimensionadas como parte do processo educativo. A terceira perna do tripé educativo é a educação informal, que se baseia na percepção da experiência como uma rica fonte de aprendizagem: aprendemos em muitos espaços e de múltiplas formas, dos quais escapam as atividades que possuem objetivos educacionais (IRELAND, 2011, p. 28). O tripé educativo mencionado por Ireland (2011) corresponde ao tipo de educação que deve ser pensada e garantida as PSRPL. É essencial a oferta do ensino e aprendizagem por meio da educação formal ofertando o ensino tradicional, como também processos não formais de educação com iniciativas organizadas e voltados para aprendizagens específicas como a formação profissional, 146 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS fundamentais na (re)socialização. Em relação à educação informal, ocorre ao longo da vida, por isso é indispensável propiciar subsídios para o desenvolvimento da aprendizagem por meio de múltiplas experiências orientadas pelo desenvolvimento humano. Faz parte do sentido dessa aprendizagem ter em conta que as PSRPL oriundas do processo de subalternização social possuem uma bagagem de conhecimento, ou seja, representações do mundo e da vida, saberes adquiridos em seu própria cotidiano e pela qual eles entendem e explicam a realidade. Costa (1998, p. 10) escreve que esses grupos não estão a parte da história, excluídos do espaço-temporais, pois “há uma cultura da pobreza que é rica em relatos sobre a luta pela sobrevivência praticadas por indivíduos anônimos que não recuam diante das dificuldades e que habitam um intenso mundo de sentimentos marcados pela austeridade, pela justiça e pela fraternidade”. Os sentidos expressos nas experiências das pessoas PSRPL são conhecimentos possuidores de suma importância, como qualquer outro tipo de saber, faz parte da luta do cotidiano dadas fora e dentro das prisões, em seu processo formativo enquanto seres humanos. Dessa forma, os conhecimentos desse grupo específico são necessários para que ele possa viver melhor. Deve haver respeito às experiências culturais e sociais, ao mesmo tempo diálogo com outras formas de conhecimento. Freire (1996) ressalta que a exigência de respeito deve estar junto aos educadores e instituições de práticas de ensino: [...] não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas SUMÁRIO 147 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos (p. 30). Nessa perspectiva, a atuação da práxis EP nos presídios se faz com o acolhimento dos saberes das PSRPL por meio do diálogo com a realidade em que eles estão inseridos. Ou seja, problematizar as questões inerentes às suas especificidades sociais e históricas para se dar o ato de conhecer por meio de uma relação com mediação dialógica – princípio da EP, desenvolvendo uma construção coletiva de possibilidades e responsabilidades humanas de conviver e respeitar o outro, suas diferenças, culturas e diversidades, reconhecendo o que o outro traz para o processo de transformação do mundo pois assim como afirma Gadotti (2008, p. 130-131), o diálogo nas prisões é essencial por ser ele um critério de verdade: “A verdade do meu ponto de vista, do meu olhar, depende do outro, da comunicação, da intercomunicação. [...] A verdade nasce da conformação do meu olhar com o olhar do outro. [...] O meu conhecimento só é válido quando eu o compartilho com alguém”. Sendo assim, a práxis EP requer o recolhimento dos sentidos que os atores desse processo atribuem a uma educação sem monopolização e direcionada à uma perspectiva formal de ensino e aprendizagem. Uma educação popular direcionada a uma educação libertadora compreende estar focada nos sujeitos com práticas diversas que abarque a necessidade cognitiva e o desenvolvimento formativo humanizador. 148 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Não se trata de humanizar o espaço carcerário, isso é uma tarefa irreal. A EP no cárcere possui uma dialética que contribui no campo de luta com uma pedagogia (trans) formadora que apresenta em seu contexto mudanças na situação de opressão, exclusão e invisibilidade por parte da sociedade e do Estado, na qual se encontram PSRPL. De fato, sua práxis faz presente à formação humanizada que contribuem essencialmente com o processo de socialização e reintegração social das PSRPL que absorveram do conhecimento e da criticidade. Por isso, junto à educação em seu sentido amplo existem vários apoios por meio de políticas públicas humanos previstos na Lei de Execução Penal (LEP) - Brasil. Lei nº 7.210, 1984 – somando com a educação que: “reconhece o direito do recluso a apoio material, atendimento de saúde, assistência social, trabalho e renda em adição à educação” (IRELAND, 2011, p. 35). Nas instituições prisionais, com as normas, disciplinas e processos de abjeção, desumanização e violação de alguns direitos básicos, existem propostas que fazem presentes esses processos de humanização, por meio de políticas e ações desenvolvidas no interior da instituição, na maioria em ambientes precários, funcionam e recriam práticas sociais que fazem possível o acesso a diversas atividades formativas, como Educação de Jovens e Adultos (EJA) – alfabetização, ensino fundamental e médio; educação profissional; projetos de remição9 pela leitura por meio de livros e cordéis; grupos de teatro; grupo de leitura; ações socioeducativas; oficinas de educação em saúde; pastoral carcerária, etc... 9 Etimologicamente a palavra remição significa resgate ou reaquisição onerosa de alguma coisa. Esse termo é utilizado para designar o resgate de parcela da pena privativa de liberdade por meio da leitura do preso que, ao ler um livro e produzir a resenha da leitura, diminui quatro dias do tempo de sua condenação. SUMÁRIO 149 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Essas ações valorizam a aquisição de conhecimento e fortalecimento da luta por emancipação e liberdade dentro da realidade existente de uma massiva quantidade de PSRPL vivendo em um contexto de negação dos direitos básicos a eles postas a uma humanidade vulnerável. Dentro do espaço e contexto da prisão junto a práxis da EP em suas diversas ações, atuam diversos profissionais como professor, psicólogo, médico, nutricionista, assistente social, advogado e educador social que possuem uma atitude política educativa para intervir nos problemas das pessoas em conflito com a lei que estão sentenciados ao regime de restrição e privação de liberdade. O papel do profissional da EP nos presídios encontra uma profundidade de mediação dos sujeitos com o mundo que eles vivem e os mundos a serem descobertos, desenvolvendo um olhar crítico, consciente e reflexivo por meio de conhecimentos subjetivos e coletivos. Os diversos problemas que abarcam o sistema penitenciário, como as péssimas condições de vida, insalubridade, superlotação das celas, hostilidade, violência e as diversas condições de violação de direitos incluso o direito a educação, demostram o panorama de dificuldades para a atuação da EP, ficando claro que mesmo com as diversas barreiras, os presídios são espaços para sua concretização orgânica, pois se trata de “um sistema aberto de trabalho educacional que, ao se realizar, configura a dimensão de prática social (MELO NETO, 2015, p. 77). Com seu viés humano, crítico e democrático à EP produz relações de alteridade por meio da responsabilidade e solidariedade, contribuindo com a realidade posta no cotidiano da população carcerária em prol da mudança dos sistemas sociais opressores, por meio de uma educação 150 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS que envolve a consciência da luta política pela superação da opressão e conquista de direitos humanos. Como complementa Freire (2007, p.103-104): Educação popular é a que, substantivamente democrática, jamais separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade. É a que estimula a presença organizada das classes sociais populares na luta em favor da transformação democrática da sociedade, no sentido da superação das injustiças sociais [...] critica também a natureza autoritária e exploradora do capitalismo. Assim, as prisões são espaços repletos de contextos desumanos marcados por opressão e violação de direitos, com contextos humanos diversos que carecem de uma práxis de formação social humana e libertadora, por isso é espaço da Educação Popular por lidar com as necessidades de um povo, marginalizado e oprimido, necessitando de ações e políticas humanizadas para trabalhar com a aludida população. Aspectos sobre a pesquisa em educação popular nas prisões Ao indagarmos a EP nos diferentes espaços de sua práxis e especificamente nos presídios, logo se evidencia que a relevância da sua teoria do conhecimento e dos campos de experimentação e inovação metodológica, manifestam-se na prática e, com ela, se revela também a pesquisa, ambas contribuindo para (re)descoberta da realidade. Assim, como já debatido nos tópicos anteriores, temos uma significativa SUMÁRIO 151 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS contribuição literária sobre a prática, tanto do século XX, a exemplo de Lovisolo (1990), Beisiegel (1992), Garcia (1994) e Costa (1998), como nas primeiras décadas do século XXI com Brandão (2002), Paludo (2001; 2015), Melo Neto (2004; 2015), Wanderley (2010) e Streck e Esteban (2013). Convém agora pontuar algumas perspectivas sobre a pesquisa em EP como processo fundamental - juntamente com a prática refletida nos tópicos anteriores - para compreender a produção do conhecimento por meio da problematização, compreensão e sistematização da realidade. Entendemos que o verbo transitivo pesquisar constitui ir atrás do novo, descobrir algo que foi instigado por várias inquietações e problemas, tendo a palavra pesquisa sua origem etimológica no latim “perquirere”, denotando a ação de procurar com persistência e insistência, ou seja, buscar respostas para os questionamentos postos na realidade dando espaço para a descoberta de conhecimentos. De tal modo, Cananéa e Neto (2017, 177) declaram que a “pesquisa é inquietação com o descobrir o novo. Não há ciência nem conhecimento novo se não temos dúvidas”. Ela vai além em direção a outros desvendamentos e outros questionamentos. Streck (2006, p.262), ao questionar sobre qual a diferença que as pesquisas estão fazendo na área da educação, afirma a existência de relevância em cada resultado de análise da realidade, pois para ele “todas as pesquisas contribuem de alguma forma para um acúmulo de conhecimentos que, em certo momento, pode permitir passos maiores ou a descoberta de caminhos alternativos na compreensão da realidade”. Com isso, a pesquisa se constitui uma ferramenta essencial no desvelamento de novas dimensões sobre os dilemas humanos e sociais, a fim de entender, responder, desvelar e transformar por 152 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS meio da produção do conhecimento, oriundo de investigações com rigor. Sendo assim, ela é uma ferramenta fundamental para a educação, especificamente no gerar entendimentos aprofundados sobre a imersão da educação formal, não formal e informal no contexto e espaço das prisões. Portanto, devemos considerar que as prisões como contexto e espaço da EP, são também contextos e espaços de diferentes pesquisas em EP, pois ela contribui significativamente tanto na prática educativa e política, como na constituição de importantes investigações motivadas por entender as especificidades da população carcerária oriundas das classes populares com seus interesses emergentes que perpassa na busca por sobreviver dentro e fora da prisão. Por isso a necessidade de se pensar pesquisas que investiguem os interesses das práticas educativas direcionadas à formação PSRPL, com aspectos humano e cultural derivados das diferentes sabedorias. Frequentemente se ver a utilização da EP nas pesquisas nas prisões para a produção de conhecimentos eficientes, com impressionantes investigações construtivas que toca a realidade, uma vez que parte do cotidiano, das experiências reais das PSRPL vivenciadas fora e dentro das prisões. Seguir com a investigação por essa via é, conforme Cruz e Botelho (2017, 202-203), [...] compreender a pesquisa como confrontação de saberes, porquanto aquele que lidera a pesquisa não terá respostas prontas, tampouco será o responsável por encontrar (sozinho ou apenas com seus pares) as respostas. [...] Mesmo que, em alguns momentos, as técnicas de pesquisa exijam aparatos de tecnologia avançada SUMÁRIO 153 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS ou uma formação técnica especializada, os desdobramentos dessas pesquisas, a aplicabilidade de seus resultados e o conhecimento ali construído serão objetos de um diálogo pleno com a sociedade e seus sujeitos. Assim, afasta-se qualquer tipo de intervenção invasiva e prepotente de um saber sobre outro. Assim, torna-se manifesta a precisão da pesquisa em EP nos estudos sobre o sistema carcerário nas diversas áreas do conhecimento como na educação, pois ela proporciona a compreensão do que fazer pesquisa, direcionando-se para além de uma ciência arrogante e ensimesmada, que serve para defender verdades únicas e absolutas. Ela corresponde a precisão de um saber profundo das especificidades imersas na vida nas prisões e tudo que abarca as diferentes culturas, saberes e interesses das PSRPL. Para tanto, é imprescindível buscar e compreender os pressupostos epistemológicos e metodológicos que correspondam e colaborem com as situações presentes na educação e na própria negação do direito de formação dentro dos sistemas penitenciários brasileiros. As pesquisas em EP, pensadas no âmbito da educação penitenciária e da formação humana das PSRPL, carecem de alguns elementos basilares para seu desenvolvimento como as categorias freireanas de leitura de mundo, dialogicidade e curiosidade epistemológica. Pesquisas que possuem por objeto realidades tão complexas como a prisão, versa na intenção de “ler e pronunciar o mundo” (STRECK, 2006, p.264), abrindo-se para realizar uma leitura crítica, reflexiva e problematizada da realidade, da existência humana e do mundo que se reproduz tanto dentro 154 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS como fora dos muros e das grades isoladoras de seres humanos confinados em espaços não humanos. Portanto, a leitura da realidade prisional não deve ser pautada apenas por uma busca simplista em que o foco está centrado apenas em opção minuciosa por uma metodologia adequada para a pesquisa. O que realmente é imprescindível em pesquisas nesta área é o valor, compromisso e a significação social da investigação. A leitura do mundo é essencial na constituição de uma pesquisa com o cotidiano para produzir efetivos significados. É um componente fundamental na EP, que segundo Freire (1989, p.11) “precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente”. De fato, uma ação intrínseca do homem que pode ser potencializada por meio da sua formação cultural, pois além da faculdade natural do ser humano em conhecer, possui a capacidade de ler o cotidiano real das vidas em curso por meio das distintas concepções de saberes, utilizando conhecimentos científicos e permitindo analiticamente uma leitura crítica do mundo e de seus eventos subjetivos e coletivos, pois: A leitura do mundo e das coisas do mundo constitui o elemento central da educação popular, mas não se trata aqui de uma simples leitura, uma apreensão mecânica do conhecimento produzido, sistematizado por outros ou evidente ao simples olhar. Trata-se de uma aliança entre a teoria e a prática, ou seja, de uma conexão dialética entre o fazer e o pensar, numa perspectiva crítica e reflexiva, consciente e conscientizadora das “razões” pelas quais o mundo está sendo aquilo que é e que conduz à ação prática, ou, para Freire, à práxis (FARIA; BRUTSCHER, 2017, p.100). SUMÁRIO 155 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Tal conhecimento analítico, problematizador, crítico e reflexivo que ocorre na conexão dialética do fazer/pensar se realiza com outro componente importante chamado dialogicidade. Conforme Guedes (2012, p. 42) é uma categoria freireana enquadrada diretamente com a prática eficaz para a constituição do pensamento crítico e problematizador da realidade, pois: “[...] É a partir da prática dialógica que o sujeito desenvolve suas potencialidades de comunicar, interagir, administrar e de construir o seu conhecimento, desenvolvendo sua capacidade de decisão, humanizando-se”. Seguir o caminho da construção do conhecimento utilizando o diálogo no confronto dos saberes das PSRPL pertencentes às classes populares, corrobora e instiga sua preparação para emancipação por métodos de processos não dominantes como a educação e pesquisa em EP. A dialogicidade possui um papel fundamental na confrontação dos saberes populares e científicos, num processo dialético ela propende a buscar respostas da vida humana em diferentes dimensões, possibilitando novos mecanismos para tratar as pessoas PSRPL e novas políticas que minimizem a desumanização nas prisões. A fim de elucidar a compreensão dessa relação dialética da produção do conhecimento pela confrontação dialógica de saberes, acompanhamos o ponto de vista de Sales (2017, p. 191) ao afirmar que: Ao contrário do que se concebe preponderantemente no cenário acadêmico, a possibilidade de produzir conhecimentos não é exclusiva do cientista, mas uma atividade fundamentalmente humana, que requer como caminho o diálogo em um processo de confrontação de diferentes saberes – sejam eles provenientes de 156 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS uma perspectiva científica, sejam advindos de uma perspectiva popular, através de aprendizagens e conclusões construídas na experiência humana ao longo da vida. A meu ver, é dessa confrontação que emerge a possibilidade do conhecimento, porquanto nem o popular nem o científico poderão se arvorar de responder a todas as perguntas. Mas ambos, em um processo dialógico e dialético, é que irão concorrer para o aprofundamento do saber sobre a vida humana e suas interfaces na sociedade, não para encontrar somente uma verdade, mas diferentes dimensões, capazes de expressar melhores compreensões sobre a realidade e os desafios humanos para viver bem nela, atuar e prosperar. Como já mencionado, a capacidade das pessoas em produzir conhecimento, criando, recriando e agindo diretamente na realidade, é intrínseco delas por buscar modificações, a fim de transformar o mundo para melhor viver. Esse instinto criativo e curioso o impulsiona a descobrir como atuar no cotidiano manifestando dentro de si o anseio constante em encontrar respostas e possibilidades de conhecimento de suas ações. Trata-se de uma curiosidade epistemológica que medeia a perspectiva da pesquisa – também da prática – em EP. Freire (2008, p. 29) fala que não se trata de uma curiosidade qualquer e sim a que tenha potencialidade de desnudar as verdades, os mistérios e as inseguranças como aquela “que, tomando distância do objeto, dele se “aproxima” com o ímpeto e o gosto de desvelá-lo”. Deste modo, a curiosidade epistemológica nas pesquisas em EP nas prisões exige uma consonância constante com pessoas criativas que fazem a relevante opção de buscar respostas aos argumentos postos na vida das PSRPL, na realidade SUMÁRIO 157 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS dos espaços penitenciários, nas políticas públicas e na própria lei de execução penal com a finalidade de contribuir nos avanços, na maneira de pensar e colocar em prática a reintegração social e educação das PSRPL, articulando formas criativas e libertadoras para transformar esses espaços e conjunturas. Com isso, a dialogicidade e a curiosidade epistemológica são pontos essenciais para se desvendar o mundo e os mundos lendo tudo o que nele contém e cerca as PSRPL, encontrando respostas, desabrochando novos questionamentos e abrindose para distintos conhecimentos que confronta a realidade e auxilia na (trans)formação dos seres. É nesse caminho que as pesquisas nas prisões em EP vêm contribuindo com as diferentes culturas e saberes populares, como também com as práticas em educação e o desenvolvimento das novas subjetividades. Por meio delas, várias investigações ocorrem nas instituições penitenciarias com temas como trabalho, gênero, cultura, esporte, artesanato, economia solidária, ética, saúde, educação e diversos objetos emergentes, que abrange experiências reflexivas, sistematizadas por meio do diálogo. Em relação a educação, é uma prática muitas vezes escassa ou ofertada minimamente e de forma seletiva, o que limita a socialização por meio de novas políticas humanísticas com práticas de educação formal, não formal e informal, ferramentas importantes para a conscientização e (trans) formação das mentalidades das PSRPL, como também de mudanças significativas no sistema penitenciário. Ela desempenha uma importante função: a de afrontar a utilização do método de enclausurar, punir e castigar as PSRPL, que não encontram formação nem perspectiva humana e social de (re)socialização, pois as prisões não mantêm as pessoas ocupadas “[...] evitando o ócio, desviando-o da prática de 158 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS atividades ilícitas, funcionando, neste caso, como uma espécie de ‘terapia ocupacional’” (MAEYER, 2006, p. 24), o que torna o ambiente produtor de um ócio desimaginativo. Com isso, a educação passa a ser um mecanismo de resistência e sobrevivência no sistema penitenciário, pois a prioridade desses espaços é justificada pela teoria da segurança por meio do controle dos corpos, com técnicas autoritárias, utilizando o castigo e a punição. Nessas circunstâncias, a pesquisa em EP apresenta múltiplos horizontes para a educação e formação das PSRPL, redescobrindo a realidade, fornecendo subsídios e (re)pensando as práticas e conjunturas desenvolvidas nesses ambientes, fortalecendo os mecanismos de aprendizagem que proporcionam (trans)formação. A pesquisa em EP nas prisões é indispensável para desvendar possibilidades e respostas às problemáticas. Ela possui uma finalidade específica que ao mesmo tempo é abrangente, pois se dirige aos interesses das classes populares favorecendo tanto os presos, seus familiares, os agentes penitenciários, como a sociedade. Em sua história, a EP manteve-se aberta para pensar e repensar os pressupostos epistemológicos e metodológicos da pesquisa, “motivados pela necessidade de entender a diversidade e a especificidade dos saberes e dos interesses das classes populares emergentes em práticas de educação popular” (COSTA; FLEURI, 2001, p. 26). A pesquisa em EP nas prisões possui um nível redobrado de complexidade na sua concretização. Os pesquisadores se deparam com distintas barreiras para se inserirem nas instituições e “conseguir permissão para estudar aquilo que se quer estudar, ter acesso às pessoas que se quer observar, entrevistar ou entregar questionários” (BECKER, 1999, p. 34). Há latentes dificuldades no desenvolver a metodologia da SUMÁRIO 159 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS pesquisa, pois é uma estrutura blindada pela rigidez de normas. Somente por meio de um processo lento e intenso com várias negociações com os gestores, agentes penitenciários e presos se consegue a permissão e organização para se pesquisar nas/ em prisões, exigindo do pesquisador paciência e persistência. Existe uma incompreensão da administração do sistema penitenciário em reconhecer a relevância de uma pesquisa para se pensar vários aspectos que envolvem o objeto da investigação, principalmente por estarmos tratando de um ambiente conflituoso e periculoso como as prisões. A administração, os agentes e as PSRPL associam muitas vezes o pesquisador como investigador que possui interesses que venham a prejudicar a instituição e os interlocutores ou “com a figura de um jornalista que poderá produzir ecos imediatos dos discursos que estão em situação de invisibilidade, os discursos que são negados” (PRADO; SIQUEIRA, 2014, p. 1574). Receiam que os resultados finais sejam entendidos como uma denúncia à instituição e desvele informações que venham a prejudicar e modificar práticas corriqueiras da organização do espaço como as relações de convivência e sobrevivência dos presos, por se tratar de um espaço delicado entrelaçado por disputas de poder e ser constantes as ocorrências de múltiplas infrações. Muito se tem contribuído com investigações acerca do fornecimento de alfabetização, ensino e formação profissional. No entanto, é necessário aprofundar tais questões em busca de respostas relevantes de como apresentar as PSRPL, preocupados em sair sem considerar a sua estadia menos dolente ou mais proveitosa, atividades formativas mediadas pela educação para toda a vida contribuindo com sua reintegração social e minimizando os riscos de reincidência. O pesquisador deve considerar que está num espaço que abrange vários paradoxos 160 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS que permeiam a oferta ou não de práticas formativas e compreender que: A educação nunca será a pitada de açúcar que permitirá engolir mais facilmente uma porção amarga – a prisão. Enredada na contradição de punir e oferecer uma perspectiva às pessoas que não escolheram estar ali e que, para uma parcela dentre eles, já preparam sua saída e suas próximas vitórias ou vinganças, a educação na prisão raramente é acolhida como uma oportunidade (MAEYER, 2013, p. 35). Um problema pouco presente nas prisões e pouco evidenciado é que na maior parte dos casos a demanda por práticas formativas por meio da educação formal, não formal e informal é da própria administração das instituições que se interessam em ofertar atividades para manter as PSRPL menos ociosas, evitando manifestações contrárias ao regime de disciplina. Essa intenção está relacionada com o ambiente vivenciado pelos profissionais que atuam nos presídios, repleto de desconfiança, medo e preocupação em se manterem seguros. Entretendo os pesquisadores em EP devem considerar a problemática que envolve tanto a segurança da sociedade, dos profissionais que atuam no sistema penitenciário e das próprias PSRPL, como o real interesse da administração por práticas educativas, culturais e esportivas, enviesada por uma ideia de promover oportunidades, contudo servindo de mecanismo de controle, pois: [...] ela vem frequentemente da administração que tendo, sem dúvida, medo do ócio, realiza atividades que permitirão aos detentos suportar o menos mal possível a perda de sua liberdade. SUMÁRIO 161 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Competições esportivas e recreativas, a religião, possibilidades de trabalho em oficinas, formações profissionais e cursos às vezes são oferecidos aos detentos – isso depende dos países e dos continentes. Além do bem estar físico, social e intelectual que essas inciativas devem trazer, elas são destinadas, sobretudo, a manter a calma no interior da instituição. A natureza (humana) aterrorizada pelo ócio (MAEYER, 2013, p. 34). Equivale considerar que os resultados dos trabalhos de pesquisas em EP tem insurgido reflexões aos paradoxos da oferta da educação nos sistemas penitenciários. São vários temas emergentes que vão surgindo e abrangendo os diversos dilemas humanos e sociais nas prisões, como a própria implementação de políticas educacionais, com atenção aos saberes da experiência das PSRPL, pois, conforme Maeyer (2013, p. 35), as atividades prisionais objetivam o combate à criminalidade, mas possui contradições em sua organização sendo a principal que a “iniciativa não é seguida de uma demanda dos principais interessados, mas da estrutura do próprio aprisionamento”. Em síntese, a pesquisa em EP possui grandes desafios em ampliar a compreensão crítica dos problemas postos no contexto e espaço das prisões, entre eles a oferta de formação humana para os presos por meio de políticas públicas, como também a superação do sistema de encarceramento como mecanismo de controle e ordem social. O que tem instigado ainda mais o pensar políticas assistenciais para acolher as pessoas que reconquistam sua liberdade a fim de que possam ser reintegrados em suas famílias, nos espaços sociais, nas relações de alteridade e no mercado de trabalho, precavendo 162 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS uma recaída na delinquência e garantindo o acesso aos seus direitos humanos. A prática e a pesquisa em EP, propicia aspirações de justiça e liberdade (MELO NETO, 2006) das PSRPL, institui a (re) construção das relações de alteridade, apoia sua sobrevivência e existência por um processo humano e emancipador, buscando identificar e transformar e superar o contexto e espaços das prisões por meio da educação e de suas diferentes formas de abrolha. Considerações finais A educação como direito tem enfrentado inúmeros obstáculos para se consolidar nas prisões por causa dos contextos presentes no espaço penitenciário alicerçados na lógica de eliminar da sociedade as pessoas em conflito com a lei, com a justificativa de proteger os ditos cidadãos de bem. As pessoas passam por um processo de encarceramento, sentenciamento e cumprimento da pena e são levadas ao esquecimento social, pois inexiste uma proposta real de (re) integração social. As ações formativas ofertadas são mínimas ou escassas, não existindo uma viabilização de ações humanas abrangentes que proporcione possibilidade de transformação e reintegração social de forma quantitativa e qualitativa, visto o número crescente da população carcerária, ou seja, não existe a efetivação do direito à educação e outras necessidades básicas do ser humano. Diante desse cenário e das constantes e rápidas mudanças que atingem nossos tempos, a realidade deve ser continuamente conjecturada para corresponder às demandas impostas nos tempos atuais dentro da crise existente no sistema SUMÁRIO 163 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS penitenciário brasileiro. Por isso, levantar questionamentos às situações vivenciadas nas prisões possibilita compreender o papel da prática e pesquisa em educação dentro desse contexto de atuação. Cabe ter claro o papel da pesquisa e da prática em EP nos contextos e espaços das prisões como possibilidade de transformação das subjetividades, dos contextos e espaços das prisões, por meio da construção de conhecimento, pois como afirma Freire (1991, p. 126)), “(...) sabemos todos que a educação não é a chave das transformações do mundo, mas sabemos também que as mudanças do mundo são um quefazer educativo em si mesmas. Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua força reside exatamente na sua fraqueza”. Dessa forma, urge compreender a necessidade de problematizar politicamente uma práxis social eficiente e voltada aos processos humanos, críticos e emancipatórios como a Educação Popular e oportunizar o desenvolvimento pessoal, escolar, social e profissional das PSRPL, tendo em conta a intencionalidade da cultura pessoal oriunda de sua formação , como também a abertura para acolhimento de novas aprendizagens, reconhecendo a importância do papel da educação nas prisões para a transformação de si e do mundo. Não há dúvidas da importância da EP nas prisões e que ela atua dentro dos presídios por eles serem contexto e espaço de sua práxis e pesquisa, considerando que a efetivação de sua ação ocorrer junto aos oprimidos, subalternizados e marginalizados, possibilitando uma profunda contribuição - com outras áreas e diversos profissionais, na (re)integração das PSRPL, com o propósito de que os mesmo tenham oportunidades justas e inclusivas no cotidiano social. 164 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Ainda há muito que pensar e questionar enquanto a ampliação da prática social e educativa, como direito e na ótica da EP que priorize o diálogo horizontal e político com as PSRPL, como também as possibilidades de ampliação e valoração das pesquisas em EP como instrumento de produção do conhecimento. Dimensões essenciais para a transformação dos contextos e espaços prisionais e da formação da sociedade. Fica claro que o papel da EP nos presídios é eficiente e propicia um trabalho de lutas concretas de libertação, emancipação para uma sociedade justa. Referências BEISIEGEL, Celso de Rui. Política e educação popular: a teoria e a prática de Paulo Freire no Brasil .SP: Ática, 1992. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação popular na escola cidadã. Petrópolis,RJ: Vozes, 2002. CANANÉA, F. A. A. L. C; Melo Neto, J. F. Um diálogo com a institucionalização da educação popular. In: Melo Neto, J. F; Cruz, P. J. S. C. (org). Extensão popular: educação e pesquisa, João Pessoa-PB: Editora do CCTA, 2017. COSTA, M. V. (Org). Educação popular hoje. São Paulo: LOYOLA, 1998. _________, Feuri, R. M. Travessia: questões e perspectivas emergentes na pesquisa em educação popular. Ijuí: Unijuí; 2001. CRUZ, P. J. S. C; BOTELHO, B. O. Pesquisa em Extensão Popular: confrontação de saberes (uma leitura da educação popular). In: Melo Neto, J. F; Cruz, P. J. S. C. (org). 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É frequente ouvirmos que a Educação Popular (doravante EP) se afirmou mais no campo da saúde que no campo da educação propriamente dito, o que pode, em um primeiro momento, parecer estranho. Contudo, isto tem suas razões de ser pois, sendo a EP uma prática histórica, construída nos processos sociais de lutas em favor das classe populares, é assumida como comprometida com as causas dos oprimidos, sejam quais forem. Mas o que faz com que uma prática educativa seja considerada popular? A própria noção de EP tem ocupado as buscas de muitos estudiosos latino americanos. É de praxe chamar de EP as práticas educativas apoiadas em grande parte no referencial O emprego das iniciais maiúsculas se justifica neste texto, pela utilização da expressão como forma de resistência e instrumento de luta contra concepções hegemônicas de educação. 10 170 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS teórico e metodológico do educador Paulo Freire, embora o próprio autor não tenha criado tal denominação. A referência tem a ver com o caráter das práticas pensadas, construídas, desenvolvidas e reconstruídas com participação ativa dos próprios sujeitos populares a partir de suas realidades e não de um plano de ação dos seus aliados (BRANDÃO, 2017); Neste sentido, Vasconcelos (1989) afirma que grande parte do que Freire diz sobre educação, com destaque para sua proposta metodológica, é aplicável ao campo da saúde, mais especificamente aos serviços de atenção prímária.11 Isto porque, é nesse nível de atenção à saúde onde a relação serviços de saúde e população se dá de forma mais direta e frequente, possibilitando a apreensão das realidades bem como a construção de vínculos com os usuários. Mas, é preciso reconhecer que, muito antes da instituição de uma estrutura de assistência a saúde no Brasil, muitas iniciativas, lutas e conquistas difusas dos setores populares, com destaque para o setor saúde, se constuíram como experiências de EP. Sobre este fato, recordo uma frase de Luiz Nassif, no prefácio de um livro sobre a saúde pública no Brasil (COSTA, 2018): ele afirma que a saúde pública brasileira escreveu um dos capítulos mais importantes da história do Brasil, eu acrescentaria algo dizendo que: a saúde pública brasileira, em grande parte, orientada pela EP, escreveu um dos capítulos mais importantes da história do Brasil, isto porque significativas mudanças históricas foram impulsionadas pelos setores populares. Com base nesta compreensão, o objetivo deste texto é fazer algumas reflexões sobre entrelaçamentos e 11 De acordo com o Ministério da Saúde, a Atenção Primária constitui o primeiro nível de atenção em saúde, que promove um conjunto de ações no âmbito individual e coletivo voltado para: promoção, prevenção, tratamento e reabilitação com vistas a uma atenção integral ao usuário do sistema de saúde. SUMÁRIO 171 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS contribuições da EP como instrumento de luta social no campo da saúde. Para tanto, faremos um breve percurso histórico e bibliográfico. Entendimentos e convergências conceituais sobre Educação Popular O que faz com que uma prática seja entendida como popular? Para tentar uma resposta, o próprio adjetivo “popular” é um bom começo, pois indica o eixo em torno do qual esta educação se configura. É necessário lembrar que o “popular”, aqui, não deve ser associado/relacionado à ideia de povo apenas, pois há práticas “populares” extremamente conservadoras e autoritárias, que não encontram nenhuma correspondência com EP como busca de emancipação dos sujeitos. Vejamos algumas considerações sobre os sentidos da EP. Na Pedagogia do Oprimido, ela pode ser entendida como uma prática educativa que busca atender aos interesses dos oprimidos através de uma pedagogia “[...] forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuparação de sua humanidade” (FREIRE, 2011, p. 43). Sobre isto, Brandão (2017) retoma Freire para lembrar que o popular deve ser entendido como um compromisso assumido “com” e não “para” as classes populares, isto é, não se trata de algo endereçado a ela, mas construído de forma coparticipada. Para Carrillo (2011) o popular corresponde à opção ética e política de contribuir com a construção de sujeitos históricos. Wanderley (2010) destaca que, ele (o popular) deve ser visto como categoria que se contrapõe às elites, isto é, corresponde às classes populares constituídas por oprimidos, 172 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS discriminados, excluídos. Mejía (2018) afirma que o popular constitui uma opção, um envolvimento e comprometimento com os processos de luta das classes dominadas em busca de uma sociedade mais justa e humana, sendo para além de um processo formativo, muito mais um instrumento de luta. De acordo com Eggert (2013) o popular se afirma pelas margens onde a EP “habita”, entendendo margem num sentido literal, isto é, aquilo que não está no centro, mas o lugar onde estão os marginalizados, os subalternos, os pobres, as classes populares. Sem pretender esgotar os sentidos desta corrente pedagógica, recorramos ao que diz Calado num esforço de síntese sobre o que se quer dizer EP: Um processo formativo, protagonizado pela Classe Trabalhadora e seus aliados, continuamente alimentado pela utopia, em permanente construção de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, políticamente igualitária, culturalmente diversa, dentro de um processo coerentemente marcado por práticas, procedimentos, dinâmicas, posturas correspondentes ao mesmo horizonte (2008, p. 230-231). Como prática histórica e por isso inacabada, a EP pode ser dita de várias formas contudo, é consenso entre seus estudiosos a existência do que poderíamos chamar de núcleo duro da EP: concepções, elementos agregadores e comportamentos que devem necessariamente atravessá-la. De acordo com Carrillo são: 1. Uma leitura crítica da ordem social vigente [...] 2. Uma intencionalidade política emancipadora frente a ordem social imperante. 3. Ter o objetivo de contribuir para o fortalecimento dos seto- SUMÁRIO 173 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS res dominados, como sujeito histórico que protagoniza a mudança social 4. Convicção de que a partir da educação é possível contribuir para a realização dessa intencionalidade, atuando sobre a subjetividade popular. 5. Um desejo de gerar e ampliar metodologias educativas dialógicas, participativas e ativas (2011, p. 18)12 Se formos em outra direção, podemos dizer que EP não é possível sem correspondência entre aquilo que o educador diz e aquilo que pratica, conforme afirma o próprio Freire: “Dizer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a sério, não pode ser estímulo à confiança. Falar por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar de humanismo e negar os homens é uma mentira” (2011, p. 113). Daí decorre o fato de que as classes dominantes “temam” a EP uma vez que desvela os motivos das injustiças, desconstrói o falso discurso dos dominantes, desnaturaliza as percepções. Diante disto é importante questionar: por que alguns/ muitos habitam as margens e outros o centro? Porque não se pode escolher onde habitar? As respostas para esse tipo de pergunta expõem as configurações sociais atreladas aos interesses de uma ordem dominante representada pelo sistema capitalista, que subjuga grupos sociais em termos econômicos, culturais e cognitivos e tenta disfarçar a riqueza de poucos às custas da crescente pobreza e miséria de milhões conforme denunciou Freire em sua pedagogia e por isto é temido. A luta contra a ideia de fatalismo, de resignação, amplamente disseminada pela máquina capitalista, depende, em parte, de uma compreensão de outro mundo possível mediante leituras críticas das realidades conforme afirmam 12 174 Tradução nossa SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Tupinambá e Rigotto “[...] o caminho do desenvolvimento capitalista não é inexorável e que existem alternativas ao desenvolvimento não só formuladas no plano teórico, mas também construídas na concretude dos processos históricos em todo o Planeta” (2019, p. 13). A EP como alcance desta capacidade de compreensão indica uma educação que sirva aos interesses da uma classe dominante não pode servir para a libertação da condição de oprimido (FREIRE, 2011); (FEIRE, 2016). Assim, se perguntarmos o que caracteriza uma prática educativa como popular, podemos dizer que, mesmo havendo várias respostas possíveis, há ênfases diferentes, seja em relação aos sujeitos, metodologias ou tempos históricos. A EP é possibilidade de outro mundo possível, parafraseando Calado (2008): economicamente sustentável, socialmente solidário, politicamente igualitário e culturalmente diverso, enfim, a EP é possibilidade de um mundo de fato, mais humano, mais sustentável. Educação Popular e/em Saúde: entrelaçamentos históricos A educação como prática vital permeia todos os tempos e espaços da vida. A educação em saúde no Brasil ganhou relevância no cenário público no início do século XX, com o movimento higienista, centrado no estabelecimento de condutas que deveriam aprimorar as condições de saúde dos indivíduos (PONTE, 2010); (VASCONCELOS, 2013). Somente apartir da segunda metade do século, com maior evidência a partir da década de 1960 ocorreram aproximações entre movimentos de EP e o setor saúde. SUMÁRIO 175 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A referência a este período como ponto de partida para tratar do assunto da EP em Saúde é recorrente. Mas, sendo a EP uma prática historicamente construída pelos setores populares, conforme vismos, é preciso reconhecer sua existencia anterior uma vez que, diferentes formas de organizações/mobilizações associativas das classes populares sempre existiram motivadas por relações de solidariedade. Lutas por moradia, água potável, terra, emprego, saúde e educação, entre outras coisas, atravessam a história da sociedade brasileira, marcada também por desigualdades sociais. Em um significativo estudo sobre movimentos populares em São Paulo, Singer (1988) destaca diversas formas de expressão de solidariedade na luta por melhores condições de vida da população pobre (possivelemente muitas destas formas, pouco documentadas/descritas). Os movimentos de bairro em São Paulo, por exemplo, surgiram (talvez ressurgiram) na década de 1930 para articular demandas locais. Neste nível social da base (MATOS, 2003) muitas coisas foram articuladas fazendo surgir movimentos sociais localizados, como movimentos de bairro, assiciações de moradores, comunidades eclesiais de base – CEBs e sindicatos, por exemplo (VIOLA; MAINWARING, 1987). E claro que o contexto ditatorial do Brasil pós 1964 com o fechamento dos canais de representação popular fez com que os grupos organizados, de forma mais localizada, se expandissem e estabecessem outros níveis de articulações. A sistematização de experiências de enfrentamento de diferentes formas de opressão ganharam contornos com o trabalho do educador Paulo Freire. As práticas educativas construídas com as classes populares (e não para elas), a partir de suas situações concretas de vida, constituíram-se em um imperativo para 176 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS autodefesa e enfrentamento das injustiças sociais. Conforme destaca Brant (1982), a maior parte dos movimentos populares foi organizada defensivamente. As ideias de Freire, geradas no contexto nordestino, nutriram a esperança de uma sociedade mais justa e menos desigual, para a qual era necessária uma educação que fosse, antes de tudo, política (FREIRE, 2016); (FREIRE, 2011). As iniciativas populares passaram a contar com o apoio da Igreja Católica usufruindo, por assim dizer, da sua capacidade de capilarização e tendo à frente padres, freiras, bispos e outros segmentos identificados com a proposta da Teologia da Libertação e com as CEBs. Com a repressão do Estado, o apoio dos setores progressistas da Igreja foi significativo para o crescimento dos movimentos, sobretudo, através das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs e das pastorais da Igreja (CAMARGO; SOUZA; PIERUCI, 1982). Brant destaca que “A Igreja passou a oferecer abrigo e espaço para os movimentos estudantis e outros, desvinculados de filiação religiosa” (1982, p. 60-61). Para Viola e Mainwaring (1987), em uma sociedade que historicamente marginalizou os setores populares, as CEBs representaram um espaço de práticas participativas democráticas atuando a partir de uma perspectiva pedagógica a luz dos ensinamentos dos evangelhos. Na década de 1970, o desenvolvimento da economia impulsionou o crescimento de alguns setores e a imagem do desenvolvimento nacional foi impulsionada, contudo, o chamado “milagre brasileiro” não fez diminuir a concentração de renda e, consequentemente, cresciam as desigualdades sociais. À medida que as cidades cresciam, as condições de vida da população economicamente pobre se precarizaram SUMÁRIO 177 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS por serem empurradas para áreas sem saneamento, sem infraestrutura, o que levou ao agravamento do quadro epidemiológico (PONTE, 2010) Aos poucos, a população começa perceber que o crescimento econômico havia ocorrido às custas da piora das condições de vida da população e isto fez com que os grupos e movimentos se fortalecessem e assumissem maior autonomia (TELLES, 1987); (VASCONCELOS, 1989). Nessa esteira surge “oficialmente” em Recife, no início da década de 1980, o Movimento Popular de Saúde – MOPS. Oficialmente porque, vinha sendo gestado em várias ações comunitárias locais (anteriores ao marco de seu surgimento) contando com a participação de diversos intelectuais, profissionais da saúde, participantes dos movimentos sindicais e lideranças populares entre outros. O MOPS reivindicava um atendimento à saúde, entendendo-o como direito social e objetivava unir os movimentos e experiências populares em saúde, espalhados pelo país. Na discussão sobre a participação do Movimento na luta por direitos básicos, Queirós afirma: “O MOPS botava mil pessoas na rua, para poder abrir os primeiros poços que vão abastecer os morros e pôr as caixas d’água. Então, a saúde protagonizava uma luta por urbanização” (2008, p. 63). Como parte fundamental das lutas em favor da saúde como direito, Doimo e Rodrigues destacam: Assim, no período constituinte entre os anos 1985 a 1988, [...] as energias sócio-políticas dos movimentos populares e comunitários pela saúde foram canalizadas para as Plenárias Pró-Participação Popular na Constituinte e para a intensa coleta de assinaturas em torno das emendas populares. A emenda nº 050 de criação do SUS, 178 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS relativa ao Direito à Saúde, alcançou 58.615 mil assinaturas e o apoio de 160 entidades, um recorde absoluto em relação à média de apoios dados a outras emendas populares (2003, p. 101). Com a saída do período ditatorial, os setores populares do Brasil tinham acumulado significativas experiências de luta pela garantia da saúde como direito. A década de 1990 é inaugurada com a conquista desse direito constitucional. O Sistema Único de Saúde – SUS é a marca representativa dessa conquista alcançada com intensa participação dos setores populares e por isto, é, antes de tudo, uma conquista popular. O primeiro desafio do SUS, por assim dizer, foi sua implementação, que se deu no momento em que o país se reestruturava politicamente orientado pela agenda neoliberal, o que significa que a política econômica interferiu de forma direta na organização e execução das políticas. Mas, o ganho trazido pelo SUS é inquestionável. O fato de ser fundado em princípios que garantem atenção integral a todos os brasileiros, torna-o uma das maiores conquistas populares do país. Trinta e dois anos depois, mesmo com desafios reais (especialmente nos últimos anos) o SUS conquistou uma série de avanços para a saúde dos brasileiros e é o setor da saúde onde se concentram esforços e experiências de EP em saúde Educação Popular, saúde e educação: alguns paralelos Conforme comentamos no início do texto, é frequente ouvirmos que a EP se afirmou mais no campo da saúde pública que no campo da educação regular propriamente dita. No breve percurso histórico traçado foi possível perceber um pouco SUMÁRIO 179 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS como isso começou, e por termos lançado este breve olhar restrospectivo, vamos considerar algumas questões sobre esta relação no contexto mais recente, a partir da organização do SUS. Esta aproximação, em alguma medida, pode nos intrigar, por assim dizer, já que parece que o ideal seria que o campo da educação (entendida aqui a partir do que se espera do espaço escolar) tivesse se apropriado mais e melhor da EP, faremos, então, alguns paralelos com esse campo para trazer luz a algumas questões que possam indicar dificuldades nesta relação. Antes, contudo, é preciso lembrar que as experiências de Paulo Freire e seus grupos de trabalho, na década de 1960, foram baseadas em sua proposta de alfabetização, com destaque para a experiência de Angicos – RN, em 1962. A ideia era, até mesmo, antes de pensar em alfabetizar era provocar a cosnciência crítica das pessoas, o que significava realizar experiências de alfabetização para adultos. Isso passava por incluir o reconhececimento da responsabilidade social dos alfabetizandos e o caráter político presente no ato educativo instaurado. A expectativa dos educadores era a de incidir em transformações sociais mas, não decidir sobre as escolhas dos sujeitos, que emergiam daquele processo educativo. Contudo, a interrupção do trabalho educativo emancipador pelo regime militar, a prisão e exílio de Paulo Freire e de membos de sua equipe, a perseguição aos movimentos e grupos populares, foram fatores que contribuíram para que as experiências no campo da educação e da formação política explícita fossem fragilizadas. O campo da saúde se moveu de forma clandestina nas lutas contra a repressão, e como dito, o apoio de alguns setores da Igreja permitiu seu fortalecimento. 180 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Cabe, então, refletirmos agora, a partir de um contexto mais recente: o que aproxima e/ou afasta a possibilidade de uma EP? A primeira coisa a se notar é que na saúde, especialmente na atenção prímária há uma relação mais direta entre a população e os trabalhadores da saúde. Vasconcelos destaca que o setor saúde “[...] tem se ocupado mais diretamente com a criação de vínculos entre a população médica e o pensar e o fazer cotidiano da população” (2013, p. 110). Há outro elemento que merece destaque, o fato de muitos trabalhadores terem envolvimento mais orgânico com as comunidades nas quais atuam, são os Agentes Comunitários de Saúde – ACS, que constituem a maior categoria de trabalhadores do SUS (mais de 280 mil).13 Os/as ACS têm entrada direta na dinâmica de vida dos sujeitos e, antes mesmo de serem agentes, já compartilhavam da vida em comunidade a ser acompanhada. É claro que os demais profissionais atuantes nas equipes de saúde da família apreendem um pouco dessa dinâmica, todavia, o fato de trabalharem na unidade e de terem, em geral, origem em outras classes sociais, limita, em certa medida, o envolvimento com as facetas de vida da população que não sejam mais próximas do seu agir. E claro que há aqueles que, talvez por suas formações de viés mais social, assumem posturas de compromisso social, além do profisisonal. No campo da educação, os profissionais têm pouca relação orgânica com as comunidades nas quais atuam e onde se localizam as escolas e mesmo quando têm conhecimento da dinâmica da vida dos sujeitos, as relações estabelecidas cotidianamente são mais verticais, diretas com os/as alunos/ 13 Segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES Ago/2019. SUMÁRIO 181 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS as, muito mais dentro das paredes da escola, ou seja, distante das suas realidades cotidianas e, muitas vezes, engessadas pela rotina de atividades. Além daquilo que chega à escola, a partir dos alunos/as, o envolvimento com o entorno do espaço escolar se dá, em geral, com os pais, leia-se, dominantemente, mães. Daí decorre outra questão indicativa do fato de a EP ter se fortalecido mais no campo da saúde: seus trabalhadores conhecem e frequentam os espaços de vida das pessoas. Mais uma vez destaco o/a ACS, este trabalhador é o único do Sistema de Saúde que frequenta diariamente a casa das pessoas. Há uma continuidade no acompanhamento que lhe permite perceber elementos, às vezes não ditos. Mas além dele, os demais profissionais também realizam visitas domiciliares na sua área de abrangência (BRASIL, 2012); (BRASIL, 2017). No caso dos profissionais da educação, o contato direto e frequente não é possível e se dá quase exclusivamente na unidade escolar. Outra questão é a forma como os serviços estão organizados. Na saúde o trabalho territorializado com uma determinada população permite um acompanhamento e constante avaliação das manifestações daquele público. O fato de as Unidades de Saúde atenderam especificamente ao público nela adscrito, permite um trabalho mais próximo da realidade das pessoas. A realização de atividades coletivas, mesmo sem muita frequência, possibilita o estreitamento dos vínculos. Na educação, embora o público seja predominantemente e preferencialmente residente próximo da escola, o espaço escolar é produzido institucionalmente, referenciado por um modelo de escola e de um ideal de educação que muitas 182 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS vezes pouco tem a ver com a formação do público atendido e mesmo as escolas sendo localizadas nas comunidades onde as pessoas vivem, suas práticas são direcionadas por um modelo educativo hierarquizado e formal que nem sempre está alinhado à realidade de seus alunos, quanto a planejar, executar e avaliar suas atividades. O ambiente escolar é preparado, articulado para os sujeitos e não com eles, e quando os sujeitos lá chegam, são levados a ter conflito com o tipo de relação com os saberes desenvolvidos em suas casas. Os uniformes, as rotinas preparadas, a hierarquia, a disciplina, os conteúdos e o calendário escolar são estruturas burocráticas que podem engessar os sujeitos (profissionais e alunos) e tudo aquilo que escapa a essas estruturas é entendido como fora de ordem. Na escola há pouco espaço para espontaneidades e criatividades populares, incluindo o problema do uso do tempo não escolar. Nos últimos anos, frequentando diferentes escolas em diferentes municípios, para realizar provas de concursos públicos, temos obervado as salas de aula e uma coisas tem chamado a atenção, por se repetir em todas elas: um cartaz, feito a mão onde está escrita a “rotina de sala”, lá existe uma sequência de atividades a ser seguida diariamente tais como: correção de tarefas de casa, conteúdo de matéria X, leitura em sala, intervalo/lanche, conteúdo de matéria Y e tarefa de casa. Esse tipo de conduta repetitiva é negativo para promover no educando o prazer pelo aprendizado e castradora da criatividade. Neste sentido, dificilmente as práticas educativas desenvolvidas nestes espaços terão uma perspectiva popular. E ainda que isto faça parte do discurso institucional, como poderá ser se a EP tem como princípio a realidade vivenciada pelas pessoas? Como “fazer” uma EP se os conflitos que acompanham SUMÁRIO 183 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS as crianças são desconsiderados, frente à sobrevalorização dos conteúdos escolares? Estes breves apontamentos servem para mostrar que, diferente do que os setores dominantes gritam aos quatro cantos, para justificar sua ação alienadora e distorcer a percepção da realidade, Paulo Freire não tem estado presente nas práticas da instituição escolar brasileira, infelizmente. Com estas considerações, não pretendemos afirmar genericamente que nos espaços escolares não existam práticas de EP, assim como não significa generalizar que nos espaços de atenção básica à saúde há necessariamente práticas de EP. O que aqui se quer destacar é que, conforme apontamos, este campo (da saúde) tem sido mais fecundo para a EP, quando comparado ao campo da educação (entendido aqui a partir da instituição escolar). Novos contextos, novos desafios Tendo logrado vitórias possíveis pela força vinda das bases populares, a EP se mostrou eficaz instrumento de luta e resistência contra os processos de exploração que degradam a vida humana. Alcançamos a construção do SUS e, a partir deste, significativos avanços no campo da saúde, construímos, por exemplo, a Política Nacional de EP em Saúde – PNEP-SUS, dois grandes ganhos, contudo, não há muitas garantias de ampliação das conquistas. Novos momentos históricos se erguem diante de nós e apresentam novos desafios indicando a necessidade de, constantemente, avaliar e avaliar-se para, com muita lucidez realizar leituras que permitam continuar o enfrentamento estratégico contra uma ordem/lógica, social, opressora 184 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS que, segundo Cruz (2018), tem se intensificado desde 2016 com a mudança do projeto político do país, cada vez mais compromissado com o capital e os preceitos neoliberais, em detrimento dos interesses dos grupos socialmente oprimidos. Neste sentido, a EP precisa se repensar conceitualmente e metodologicamente sem cessar. É preciso estar atenta às camuflagens que muitas vezes nos levam a repetições do que nos mantém em movimento, mas não geram avanços. Este alerta nos foi feito há muito, entre outros, por Vitor Valla quando nos chama a atenção para uma fragilidade que temos quando tentamos entender os contextos, ele fala de uma crise interpretativa (OLIVEIRA, 2003), por acreditarmos que é importante fazer com que as pessoas mudem determinados comportamentos para terem saúde, sem as condições básicas para isso. Tentar impor nossa forma de compreensão pode ser confundido com fazer EP em saúde, assim não avançamos em nossas práticas e historicamente nos fragilizamos. É preciso compreeender que: [...] não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. [...] Um dos equívocos funestos dos militantes políticos de prática messianicamente autoritária foi sempre desconhecer totalmente a compreensão do mundo dos grupos populares. Vendo-se como portadores da verdade salvadora [...] (FREIRE, 2011, p. 79). Importa pois, uma aproximação com os sujeitos populares em seus espaços sociais reconhecendo suas formas de percepção e compreensão dos processos como autêniticas. Sem isto, podemos estar em grande parte, referenciados por SUMÁRIO 185 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS concepções de caráter hegemônico, impositivas, uma vez que não é de todo aberta ao diálogo com saberes e metodologias populares (VASCONCELOS, 2017). Os equívocos provenientes dessa aproximação verticalizada constituem um desafio para os que atuam no campo da saúde com o objetivo de construir e/ou fortalecer práticas autênticas de EP em saúde. A superação do modelo biomédico, cujo olhar está voltado estritamente para a doença, ignora os determinantes sociais da doença e assim, nega os elementos outros que constituem o sujeito. A mudança só é possível se e quando compreendemos que, para uma EP em Saúde é preciso que se assuma uma postura epistemológica que reconheceça outros saberes diferentes daqueles privilegiados pelo modelo dominante, ou seja, é preciso romper com a lógica social na qual os sujeitos têm suas subjetividades negadas. Uma ruptura epistemológica supõe optar pelo povo como sujeito baseado numa ética solidária. Pedrosa corrobora a ideia ao afirmar que: Desde a colonização a episteme dominante capturou, modificou, cooptou e traduziu, quando não aniquilou, os saberes nativos cuja base emanava da relação de seus habitantes com o ambiente diferente da racionalidade iluminista que se pautava na busca das causas dos fenômenos por meio de um pensamento neutro e distante da vida. A permanência dessas raízes culturais é fundamental para a afirmação básica de todo ser humano reconhecido pelo outro. São pontos de resistência (PEDROSA, 2019, p. 2). Romper com a forma de tratar a questão da saúde a partir da doença significa pensar os sujeitos para além de um organismo biológico e aqui, o próprio conceito de saúde está 186 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS implicado por ter sido historicamente entendido a partir de uma visão simplista, idealista e relativista (CARVALHO; CECCIM, s.d.). É necessário considerar o conceito ampliado de saúde compreendendo-o como um direito fundamental. As pessoas vivem em seus cotidianos nos quais produzem e utilizam estratégias para o enfrentamento das adversidades surgidas. Na criação de alternativas/estratégias está implicada toda carga cultural produzida pelas coletividades e sujeitos ao longo de suas vidas, de modo que vários sentidos são assumidos nas diversas práticas sociais. Conforme afirma Vasconcelos (1989), Antes de um serviço de saúde chegar a uma comunidade, ela tinha suas formas próprias de resolver os seus problemas de saúde. São parteiras, “farmacêuticos”, mães, erveiros, professores etc. São pessoas com uma cultura médica aprendida informalmente e que foi acumulada durante muitos séculos de experimentação empírica. É uma cultura popular que tem os seus limites mas que tem, também, um grande valor (1989, p. 29). Assim, com base na sabedoria popular, uma icterícia, por exemplo, é curada com banho e ingestão de chá de casca de coco roxo, enquanto que no hospital a criança será submetida a procedimentos tecnológicos considerados pelos sábios populares como “desnecessários”. Um entendimento baseado nas experiências de vida, que não convém qualificar como certo ou errado porque para as classes populares a o cotidiano é construído a partir das explicações baseadas nos modos como entendem suas inserções no mundo e os sentidos que atribuem às suas ações (TUPINAMBÁ; RIGOTTO, 2019). SUMÁRIO 187 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Isto não significa que os sujeitos populares e a própria EP negam a medicina e seus recursos, ao contrário, a EP reconhece a interculturalidade como instrumento metodológico (BANDEIRA, et al., 2019). Trata-se na verdade, de uma crítica às práticas médicas em saúde que não levam em consideração o sujeito em sua integralidade, objetificando-o muitas vezes. É necessário criar espaços de compartilhamento que funcionem como instrumentos de reflexão e onde os diferentes conhecimentos e sobretudo, as consequências produzidas a partir de cada um deles possam ser explicitadas e com isto, avancemos para a superação de um estado de ingenuidade sobre a compreensão dos problemas sociais. Conforme Freire defende, é fundamental desafiar os grupos populares para uma percepção crítica sobre o fato de que as injustiças e violências são construídas historicamente e não determinadas (FREIRE, 2011). Importa que os grupos populares compreendam as questões que constituem a realidade injusta, desumana e violenta que são produzidas por um modelo econômico (o capitalista) e por pessoas (desumanizadas) empenhadas em defender os interesses da classe social da qual fazem parte e não dos que mais precisam. Esta questão, não muito difícil de compreender, contudo, existe um grande empenho dos defensores do capital para dificultar tal compreensão já que isto significa sua decadência. O setor saúde, por ser, também, um mercado amplamente favorecido pelo modelo econômico capitalista tem sido usado como campo de disputas. O papel do Estado como defensor dos direitos sociais tem sido ineficaz em alguns casos, como no Brasil, cujo cenário é um grito de alerta para 188 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS que as classes populares reajam às ofensivas das classes dominantes, mas não somente isto, é preciso refletir e criar ações sobre a produção de outro mundo possível. Para uma despedida da conversa... Como vimos, a EP tem sido construída historicamente numa relação orgânica com as classes populares, a partir de diferentes experiências desenvolvidas nos diversos setores da sociedade. Por se desenvolver necessariamente vinculada aos contextos de vida dos sujeitos historicamente situados, pode-se dizer que os processos sociais são parteiros da própria noção de EP. O campo da saúde se constituiu historicamente como favorável às praticas de EP por vária razões, dentre elas, a forma como os serviços de saúde estão organizados na atenção primária, a possibilidade de construção de relações mais abertas e diretas, fortalecendo laços primários de solidariedade, de acompanhamento e de convencimento, o que no campo da educação regular, propriamente dito, é mais difícil de alcançar, devido à estrutura institucionalburocrática da escola. Todavia, é preciso reconhecer que, muito antes do sistema de saúde que temos hoje, a EP já se afirmava na saúde quando, desde a década de 1960 e seguintes, em tempos de repressão, os grupos populares se organizavam nos espaços de base da sociedade piramidal, para lutar pelo atendimento às necessidades básicas e pela saúde como direito. As CEBs cumpriram um importante papel por servirem como canal unificador dos grupos populares e, a partir das quais muitas formas organizativas surgiram. O surgimento do MOPS foi um importante marco para o SUMÁRIO 189 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS fortalecimento das lutas que culminaram na instituição do SUS a partir da Constituição Federal. A década de 1990 foi um marco importante para a estruturação dos serviços de saúde há muito reivindicados. Todavia, esta trouxe também novos desafios, especialmente porque marcou a entrada do Brasil na agenda neoliberal, cuja lógica voltada para interesses econômicos de poucos, gerou novas formas de opressão social traduzidas em modelos de organização social submetidos aos interesses de um sistema concentrador de rendas e serviços. Emerge, pois, como desafio para a EP em saúde repensar suas estratégias de resistência e enfrentamento às novas configurações de injustiças, refletidas sobretudo no modelo biomédico que medicaliza os sujeitos e desconsidera suas subjetividades como parte dos processos e confrontos da saúde e da doença. Ergue-se como imperativo para a EP em saúde o repensar e reavaliar de suas práticas, conepções e metodologias para se fortalecer frente aos atuais contextos adversos, tendo como ponto de partida, sempre, a base popular e os sujeitos oprimidos. Assim, para finalizar este texto, recorro à dedicatória do livro Pedagogia do Oprimido para dizer que: qualquer prática de EP deverá ter como ponto de partida e como horizonte, os esfarrapados do mundo, isto é, aqueles que têm seus direitos negados, para uma vez descobrindo-se neles, com eles sofrer mas, sobretudo, com eles lutar. Referências BANDEIRA, F. C. et al. Olhares e sensibilidades indiciárias: práticas de mediação cultural de uma agente comunitária de saúde. In: MARTINS, D.; MARTINS, R.; BARCELLOS, A.; 190 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS SOUSA, M. (organizadores) Faces da interculturalidade. Salamanca, IIACyL, 2019. BRASIL. Política Nacional de Atenção Básica. 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As práticas populares e comunitárias, constitui-se como um processo político, emancipador, com intencionalidades, proposições e organização, rompendo com qualquer visão romantizada das ações praticadas nos setores populares. Neste sentido, não basta apenas ter espaços de construção do conhecimento, mas, é fundamental o modo de organização e compromisso por parte dos projetos de extensão universitária e dos extensionistas. 196 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Em vista disso, faz-se necessário a desmistificação da visão romantizada das práticas populares e comunitárias, firmando-se no que de fato é a educação popular, como uma alavanca de insurgência radical em conjunto com outras pedagogias, a exemplo da libertária, que tratam de quebrar paradigmas e enxergar saberes de povos tradicionais e populares como categorias científicas e legítimas de epistemologias, até então estigmatizadas e inferiorizadas (REGO, 2018). As ações executadas nas comunidades é um ato político, tendo intencionalidade e valorização do espaço como um setor de potencialidades, sentidos e significados. Logo, rompe-se com a concepção assistencialista ainda presente em muitas práticas, é fundamental o pensamento coletivo e a dialogicidade como preconiza Paulo Freire, por meio de objetivos comuns ou não. Não se constrói conhecimento libertário-emancipador com bases desarticuladas e sem planejamento. A transformação social dos sujeitos da comunidade e de quem visita a mesma (extensionistas, grupos de pesquisas) devem introduzir em suas práticas o comportamento de agente de transformação social, pautado no coletivo, fortalecendo as bases e problematizando o contexto. Nesta perspectiva, encontramos relevância para discorremos sobre a concepção de romantização das práticas populares e comunitárias, uma vez que, é de forma orgânica que a Educação Popular se caracteriza historicamente no contexto social e político, e suas bases estão em território latino-americano. É no interior da composição de povos tradicionais, coletivos e de movimentos sociais que foram criadas experiências pedagógicas autodidatas protagonizando e ressignificando seus saberes e suas práticas cotidiana e progênie (ABÍLIO, 2017). SUMÁRIO 197 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Isto posto, quando falamos de popular, e/ou quando fazemos menção ao popular estamos sinalizando o que é democrático e inclusivo, ou seja, inclusivo no sentido de está convidando todas as pessoas que foram excluídas: os pobres, os negros, índios, os homossexuais, as pessoas que nunca tiveram acesso a uma roda de debates ou na universidade, a ocupar vários espaços, e a universidade é um desses espaços, visto que também é um setor de produção de conhecimentos. Nesse sentido, os setores populares precisam materializa-se também nesses cenários, outro aspecto importante, é que o popular e o diálogo caminhem juntos, importa-se frisar que essa categoria não é só freireana, ela também é do dialético. Conforme aponta Cruz (2010), pensar a extensão numa perspectiva popular é pensar a participação de todas as pessoas na produção acadêmica e na vida da universidade, isso pressupõe um diálogo com os diferentes saberes, e isso pressupõe na articulação das diferentes práticas populares, com diferentes práticas libertárias no campo da educação. Isso significa dizer que, é preciso parar e pensar em outro modelo de sociedade que não seja capitalista, que não seja da exploração do ser humano pelos outros, mas que recomende que a universidade seja um estágio de produção de novos sentidos para a vida em comunidade. Entende-se que a luta por um espaço de sociabilidade é constante, os setores populares são encharcados de conhecimentos que contribui significativamente para a produção de novos saberes e consequentemente para a complementação daquilo que está sendo produzidos nos muros das academias, a interação entre a universidade e a comunidade ao partir de uma concepção assistencialista e de prestação de serviços rompe-se com o que vem a ser de fato 198 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS a perspectiva da Educação Popular. Há projetos universitários em que os extensionistas não se sentem seguros em interagir com comunidade, isso se deve ao fato de que os projetos precisam repensar suas práticas e a forma como esta interação está acontecendo. A extensão não se faz endossado numa concepção determinista e fatalista, como também não se faz através de roteiro, ou seja, pré-estabelecido. Em consonância com o exposto, entendemos que esse processo precisa ocorrer de forma livre, pois é uma construção libertária, sem amarrações e/ou engessamento, o que é mais importante é chegar na comunidade e dialogar, problematizar, ouvi-los, ou seja, construir com todos os mestres e mestras populares, e não querer apontar o certo ou errado, configurando assim uma concepção hegemônica de saberes e comportamentos, aspecto que a Educação Popular tenta combater. Neste sentido, essa articulação da universidade com a comunidade precisa ocorrer naturalmente, ou seja, sem algo pronto, predefinido. Uma forma de combater essa visão é refletir o seu pensar e agir, a interação com a comunidade deve partir de princípios emancipatórios e libertários, de construção compartilhada do conhecimento, assim como de humildade para perceber que somos sujeitos aprendentes, que somos inacabados. Sendo assim, posturas autoritárias e indiferença quanto aos saberes e experiências do outro precisa ser repensada e desintoxicada. Outro ponto que merece destaque, é que os projetos que interage com as comunidades não estejam preocupados em cumprir metas, nem responder ao roteiro elaborado, mas reaprender com o outro e construir coletivamente novos saberes e novas formas de atuar na sociedade por meio de uma consciência crítica-reflexiva. SUMÁRIO 199 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Educação Popular, caminhos para uma construção compartilhada do conhecimento A inserção dos estudantes e profissionais na comunidade precisa acontecer democraticamente, ou seja, por meio de uma ação intencionalizada, respeitando a multiplicidade de saberes, experiências e culturas dos sujeitos. Um dos grandes desafios que se apresenta nessa interação, é que muitos daqueles que vão a comunidade preocupam-se com técnicas iniciais, e não procuram entender os contextos em que estão inseridos. Logo, não é através de registros, que se constroem novos conhecimentos na comunidade, sendo estes espaços dotados de grandes potencialidades e aprendizados. Destarte, nesse processo de construção do saber dialógico, é preciso trabalhar a “escuta” e a construção coletiva do saber. Desta forma, essa relação não fica apenas no afetivo, mas cria pontes com dimensão política de prevenção estrutural, ou seja, que a relação com o outro, não é algo somente do toque, do abraço, mais por meio de uma intencionalidade política em que esse vínculo reforça outra questão, a sua indignação. Esses sujeitos são completamente desarmados do saber científico, mas isso não significa que estes atores sejam desprovidos de conhecimento, pelo contrário, produzem conhecimentos pautados na cotidianidade, do fazer vivido, da relação com o solo, com o ambiente social, ou seja, seus saberes são experienciados, não fica apenas no teórico. Por meio da extensão verdadeiramente intencionalizada e democrática a comunidade passa a ter um novo olhar sobre sua realidade e sobre o seu “eu” sociocultural. Corroborando com o exposto Vasconcelos, Pereira e Cruz (2008) salientam que: 200 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS No campo da extensão, as práticas de extensão popular têm se constituído, em nível nacional e marcadamente na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), como possibilidades de se experimentar a relação entre o saber popular e o saber científico com a intencionalidade de superar os problemas sociais e respeitar os diferentes saberes (VASCONCELOS; PEREIRA; CRUZ, 2008, p. 336). Nesta perspectiva, através da criação de vínculos com as pessoas da comunidade, compreende-se a importância de participar ainda mais dessa dinâmica. Por meio dessa relação significativa dos setores populares e a universidade forjam o pensamento daqueles que fazem parte dos projetos de extensão numa perspectiva de educação popular que a concepção de sofrimento e desigualdade social vivenciados pelos sujeitos, passam a ser entendidas que não é algo unicamente vivenciado pela Maria e/ou João, já que representa e está ligado à estrutura social e tem raízes políticas. A extensão popular seria então um “trabalho social útil”, conceito defendido por Melo Neto em muitas de obras que evidencia esse movimento da universidade com os espaços populares da sociedade. Enquanto educação popular e democrática, o campo viável para atuar é nos setores dos mais empobrecidos, aqueles que interagem com as comunidades tem o papel de conhecer o que é, e como a educação popular se constitui. É importante destacar que “o estar com o outro e não para o outro”, são princípios basilares da concepção de educação popular. A universidade precisa educar o seu olhar quanto o saber dos espaços populares, não como “laboratórios vivos”, em meio a essa interação a universidade está aprendendo a se SUMÁRIO 201 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS reposicionar enquanto espaço de produção do conhecimento e compreendendo que os atores e atrizes populares são corpos conscientes e com um repertório impressionante de conhecimento. De acordo com Andrade (2009) a educação popular: [...] enquanto síntese e expressão política de uma nova forma de pensar e fazer a educação das camadas populares, tem como referência histórica todas as significativas práticas de lutas e resistências das camadas populares, desde o Brasil-Colônia; todavia, os primeiros esforços de sistematização mais clara de um projeto pedagógico de formação crítica e autônoma dos setores populares têm sua origem nas experiências das escolas operárias socialistas e anarquistas, aqui presentes desde a primeira década da república brasileira (ANDRADE, 2009, p. 4). A Educação Popular como é compreendida hoje, é de raiz latina e produto de lutas constantes por outra uma educação emancipatória, é importante ressaltar que as iniciativas de uma Educação Popular penetraram no Brasil pelo caminho da Educação Libertária. De caráter anarquista, foram extremamente criminalizadas, entretanto não aniquiladas, pelo patronato, pela igreja etc. As ações libertárias de educação iniciaram, especialmente, com a política de imigração no país. As práticas populares e comunitárias realizadas pelos projetos de extensão universitária, e as comunidades tem dado frutos, isso pode ser evidenciado no protagonismo de muitos moradores que por meio desses projetos tem pensado sua realidade através de outra ótica, mas, isso só é possível se o trabalho entre esses setores for em comunhão, não se 202 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS conquista o apoio e confiança das lideranças populares sem intencionalidade, respeito e valorização do outro enquanto sujeito de potencialidades. Por isso que o trabalho social e útil da educação popular na Paraíba é uma das referências quando se fala de extensão, educação popular ou extensão popular. Na perspectiva de Cruz (2017): [...] podemos compreender a Extensão Popular como um trabalho, que é social e útil1 desenvolvido por meio de um agir crítico, pautado por um processo de construção participativa e compartilhada, com a intencionalidade de articular tanto o ensino como a pesquisa na mobilização de experiências, estudos e reflexões em meio a contextos de adversidade, para a superação de problemas sociais e de maneira compromissada com a mudança e o enfrentamento à exclusão social e à desumanização (CRUZ, 2017, p. 15). Assim, a extensão vai além de uma prática de ensinar e pesquisar, por que ela dar voz aqueles que estão escondidos, ela dar voz aqueles que pensam e fazem um exercício de uma prática social, a exemplo dos movimentos sociais e outras diversas experiências de educação não formal, a extensão qualifica um compromisso social de universidade com a sociedade, que seria um “trabalho social útil” (MELO NETO, 2014). A extensão qualifica, por que ela necessita do envolver, fazer extensão não observar ou fazer entrevista, fazer extensão é envolver-se com o outro e por meio desse envolvimento você se transforma e transforma o outro. A extensão promove processos de humanização, à medida que há o envolvimento ocorre à humanização de si e SUMÁRIO 203 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS do outro, ou seja, ambos se constroem e reconstroem nos seus diversos contextos, e consequentemente ocorre a mudança nos contextos em estão inseridos. Como filosofia da educação popular ela gera relacionamentos entre os sistemas formais da educação, os movimentos sociais, políticos e universidade na promoção e socialização dos saberes. A extensão não fica apenas no foco da informalidade ou da educação não formal, por que a partir desse foco ela se volta para formalidade, para o institucional e nesse intercâmbio dialético se reconstrói novos pensamentos e novos saberes. É necessário entendermos as práticas comunitárias como um trabalho que promove a socialização dos sujeitos populares, indo além de uma política ingênua de assistência, ou seja, as ações que são praticadas no âmbito das comunidades “como um trabalho social e útil e com essa intencionalidade, não pode assumir papel alienador de comunidades nem no trabalho de ensino no interior da instituição universitária” (MELO NETO, 2014, p. 18). Neste sentido, a extensão popular como um trabalho, apoia os distintos saberes presentes na academia e nos movimentos populares, com um agir e pensar pautados na reflexão da realidade. Sobre essa perspectiva, para Falcão (2014) a extensão contribui de forma efetiva para melhorar a sociedade e: [...] para que estudantes e professores envolvidos enriqueçam seu saber participem do crescimento das pessoas e das comunidades em que estão envolvidos com esses atores acadêmicos. Os objetivos principais promovidos pela extensão universitária são estes: promover a interação entre a Academia e a comunidade, com a troca de saberes e de conhecimentos; desenvolver atividades que propiciem a participação da 204 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS comunidade como sujeitos, e não, como meros espectadores; interligar as atividades de ensino e de pesquisa com as demandas da comunidade; priorizar as práticas voltadas para o atendimento de necessidades sociais emergentes, como as ligadas às áreas de educação, saúde, habitação e geração de emprego e de renda etc. e criar condições para a participação na elaboração das políticas públicas voltadas para a maioria da população [...] (FALCÃO, 2014, p. 23). Deste modo, por meio desse fazer, a academia vem promovendo juntamente com a comunidade espaços de diálogo, de interação dos ímpares, uma ação dialógica que tem permitido os extensionistas, coordenadores, universidade ressignificar seus conhecimentos, saindo um pouco dos muros da universidade e adentrando o espaço comunitário. É nos espaços populares que estão as experiências, implica dizer que não é possível sentir, apenas nos livros, mesmo que seja interessante e importante conhecer o contexto de uma comunidade através das leituras é bem mais significativo quando o sujeito universitário pisa na comunidade, suas experiências vão sendo sistematizadas com a comunidade. Embora, seja importante que a visão de quem faz extensão eduque o seu olhar numa perspectiva humanitária, não um olhar de “coitadismo ou assistencialista”. Os atores e atrizes populares são marcados pela resistência e luta diária em prol de um espaço visível na sociedade, uma vez que são considerados a margem da sociedade, em que impera o preconceito e a negligência. As experiências, saberes e subjetividades desses protagonistas são importantes e contribuem efetivamente na construção do fazer acadêmico, sem contar que é nesse trabalho social e útil que possibilita a práxis. SUMÁRIO 205 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Segundo Oliveira (2017) a extensão popular veio com um novo olhar, repensando a respeito da intercessão entre profissionais e classes populares, com novas concepções, leituras, climas em outros espaços da vida universitária. Essa prática revela as relações entre a formação profissional de ensino superior e o compromisso social. Desta forma, auferindo sentido e compromisso com base nos princípios éticos, “teóricos e metodológicos sistematizados na perspectiva da Educação Popular”, além disso, propõe o compromisso político e social da própria universidade brasileira e da latino- americana. É importante destacar que a relação da comunidade acadêmica com as comunidades populares ocorre em meio às contradições, as subjetividades dos protagonistas, reiteramos que a extensão se faz também nas resistências, na construção do ser mais, no diálogo e entre outras dimensões. A interseção da universidade com as comunidades devem ser repensadas, no sentido de entender que as comunidades tem suas particularidades, seus representantes, não é um espaço unicamente de pesquisa, pois essa é uma concepção que cada vez mais tem sido disseminada socialmente, os setores populares como bem foi colocado no início desse estudo expressa a riqueza de conhecimentos constituintes nos espaços populares. Vale salientar que isso é uma falácia, uma vez que a comunidade precisa trabalhar junto com esses profissionais, posturas determinantes e autoritárias rompe com a possibilidade de um diálogo, além disso, é fundamental que os projetos de extensão compreendam que é dialogando com a comunidade e sentindo o que elas querem construir em parceria e como pretendem proceder. Não há cartilha nem modelos de fazer extensão, pois é nas relações cotidianas, nas experiências 206 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS concretas que esse fazer ganha corpo, é também nos erros e acertos, no construir e reconstruir diariamente. Em adição a este exposto Valla (1996) apresenta dois aspectos que ajudam a compreender o porquê dos profissionais acadêmicos terem esse comportamento: A primeira é que nossa dificuldade de compreender o que os membros das chamadas classes subalternas estão nos dizendo está relacionada mais com nossa postura do que com questões técnicas como, por exemplo, lingüisticas. [...] nossa dificuldade em aceitar que as pessoas “humildes, pobres, moradoras da periferia” são capazes de produzir conhecimento, são capazes de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade e, dessa forma, fazer uma interpretação que contribui para a avaliação que nós fazemos da mesma sociedade. A segunda é que parte da nossa compreensão do que está sendo dito decorre da nossa capacidade de entender quem está falando (VALLA, 1993, p. 178). Neste sentido, a relação entre profissionais acadêmicos e membros comunitários precisa ir além, no sentido de que ambos irão construir conhecimentos, saberes, práticas coletivamente. Essa discussão não é recente, muitos ensaios já se debruçaram sobre essa natureza, alguns aspectos podem ser lançados para que possamos entender o por que dessas questões referente o agir das universidades com as comunidades é algo sensível, a saber: a priori, um dos pontos mais sensíveis nessa relação, é a nossa dificuldade em saber interpretar as “classes subalternas”, revelando assim uma “crise de interpretação”. De acordo com Valla (1996) os profissionais precisam se esforçar para compreender as condições, saberes, as SUMÁRIO 207 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS experiências de vida e a ação política dessa população, ou seja, os profissionais carecem ter mais compressão sobre o contexto da população, ter mais dedicação em interpretar as representações e as concepções de mundo dessa população. Nesse espaço de contradições, de incertezas, resistências, lutas, compreensões e de saber até mesmo os profissionais atenciosos podem ter uma atitude autoritária ou querer fazer a função de tutores. Dessarte, é preciso construir uma visão inclusiva e dialógica. Para tanto, cabe aos envolvidos libertase dos referenciais científicos dogmáticos. Todos nós somos sujeitos aprendentes, e esse processo precisa ocorrer durante toda a vida, a participação da comunidade na universidade de forma ativa enriquece os conhecimentos de cada um. Ao mesmo tempo, oportuniza a produção de conhecimento na universidade com os interesses dos grupos sociais. Dessarte, a disposição por uma metodologia participativa é, além disso, uma postura ético-política diante a sociedade e o cuidado com a vida dos grupos envolvidos. A Educação Popular aparece da incidência entre a cultura cientifica, a cultura popular e seus saberes vivenciais, objetivando uma correspondência dialógica, entendendo que os saberes são construídos de várias formas e ao interagirem entre os sujeitos, esses conhecimentos passam a ser compartilhados, aliás: A construção teórica e metodológica da Educação Popular elaborou-se no compromisso com a construção de uma sociedade mais justa, articulado com a ação de construção desta sociedade, mediante uma prática emancipatória, libertadora, capaz de propiciar aos educadores populares uma práxis libertadora. Ela sedimen- 208 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS tou as bases de uma teoria do conhecimento, a qual nos permite compreender os processos de ensinar e aprender no diálogo entre os sujeitos de conhecimento, na superação da contradição educador-educando (VASCONCELOS; OLIVEIRA, 2009, p. 139). Portanto, a educação popular é elemento fundante para o protagonismo popular, da resistência diária da Maria, da Raimunda e tantos outros atores e autores populares que tem resistido incansavelmente numa sociedade tão opressora e desigual, em que impera a “cultura do ter sobre o ser”, assim como a ideia da meritocracia, bastante forte no âmbito social e que a cada dia tem se perpetuado com o apoio de representantes políticos e uma parcela da sociedade, que se beneficia da escravidão ainda presente, só que dessa vez transvestida de solidariedade, uma falsa generosidade que oprime de forma sorrateira os povos empobrecidos. Dessa maneira, é necessário romper com a servidão ainda presente na sociedade, dos interesses das classes e grupos da elite dominante, e dos opressores. Em meio a isso, a educação precisa se articular com os interesses dos oprimidos. A educação popular tem papel indispensável na contribuição pedagógica com as iniciativas populares, se envolvendo nas ações que já fazem os sujeitos oprimidos, para aquisição da organização política e de direitos. A Educação Popular é entendida como um “processo político-pedagógico centrado no ser humano como sujeito histórico transformador, que se constitui socialmente nas relações com os outros seres humanos e com o mundo” (JARA, 2006b, p. 236). Consequentemente, pode-se dizer que esse princípio pauta-se na concepção de transformação social do sujeito, SUMÁRIO 209 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS como também na sua constituição integral e na construção de novas relações sociais das pessoas, alicerçado nos princípios da dialogicidade, da justiça, das relações de solidariedade, de respeito a si e ao outro. Na perspctiva da educação popular, é importante destacar que esta vai muito além de uma concepção, pois faz parte do processo de constituição do sujeito, assim como o salto para a compreensão de sua participação na sociedade enquanto sujeito crítico-reflexivo. Contudo, não é um processo que ocorre de forma simplista, rígida, ganha forma através das relações de compromisso e intencionalidades dos sujeitos. A educação popular, aponta-se como prática em que o compromisso basilar é a “libertação”, principiando intencionalidades que venha a promover uma nova visão acerca do mundo e da realidade a qual o sujeito está inserido. As práticas sociais realizadas no entorno da comunidade são extremamente importantes para o fortalecimento da luta social, de constituição de saberes, experiências. Para Tafuri e Gonçalves Junior (2017): ...] quando falamos em práticas sociais, pensamos em relações que se estabelecem entre as pessoas, por meio da intencionalidade, que buscam transformar a realidade vivida. Tais relações são mediatizadas por um mundo comum que se expressa existencialmente (objetiva e subjetivamente) aos participantes de tais relações por meio desta mesma práxis histórica, bem como pela comunicação intersubjetiva exercida por meio do diálogo (TAFURI; GONÇALVES JUNIOR, 2017, p. 44). Outro ponto a ser considerado, é que a educação popular em meio ao que já foi pontuado anteriormente, 210 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS proporcione aos sujeitos a partir dessa nova visão, compreender seu modo de ser e agir socialmente, o que implica também na relação com sua própria cultura e na interação com o outro de forma consciente. Para isso, é indispensável também que os sujeitos participantes desse processo sejam responsáveis e ativos para a constituição e materialização de sua própria história, como também pelo empenho no processo de constituição de uma sociedade igualitária e democrática. Ademais, é importante frisar que todas as práticas sociais são constituídas por processos indiscutivelmente educativos, intrínsecos e resultantes dessas práticas. Tudo que estamos fazendo diariamente nos auxilia quanto a nossa constituição pessoal, e nossas ações de uma forma ou de outra são alicerçadas em práticas sociais educativas. Em outras palavras, a educação surge como processo de desenvolvimento e formação humana. Todas as práticas sociais tem sua importância, além disso, não são meras práticas, pois são dotadas de experiências, saberes e aprendizados, e como resultante desse processo temos vários aprendizados que auxiliam na forma como nós enxergamos o outro e a nós mesmos sobre outra ótica. Deste modo, levando em consideração que as práticas sociais podem compreender tanto em iniciativas grupais como também comunitárias, objetivando a possibilidade de mudança da realidade econômica, social, política, entre outros, com o intuito de promover ainda um mundo cada vez melhor para todos, sem a hierarquização, desigualdade e outros, assim como podem estar apenas mantendo o status quo, e/ou para produção e desenvolvimento de condições cada vez mais injustas (OLIVEIRA, 2017). SUMÁRIO 211 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Todos os processos de construção compartilhada na comunidade precisam ser pensadas, repensada, durante a ação e na ação, ou seja, é um processo constante de constituição do saber, e isso deve ocorrer na ação dialogada com a comunidade, é preciso entender que profissionais e população precisam estar aberto a aprender juntos, a construção do conhecimento se faz nessas trocas de experiências e saberes, um dos pontos mais importantes é compreender que todos nós somos sujeitos inacabados e essa inconclusão é o que incita a busca pelo conhecimento. Sobre essa relação apontada anteriormente, Fiori (1986) sinaliza que é através do diálogo entre as visões de mundo permitido pela extensão popular que essas relações ganha corpo, sentidos e significados, sendo este um processo em conjunto, é preciso que haja consciência crítica de todos os envolvidos, por meio dessa consciência crítica fazendoos entender que não é só existir na sociedade, mas viver humanamente, é pronunciar o mundo, denunciando e modificando as desumanidades sofridas. Nesse processo de construção e denúncia, não consiste apenas estar diante da realidade, fazer parte dela, estar nela, ou seja, em diálogo com o que se pensa e atua, na “práxis”. A relação da Universidade e Comunidade traz contribuições fundamentais tanto para a comunidade quanto para a universidade, para quem participativa dos projetos de extensão tem-se a possibilidade de aprender fazendo e fazer aprendendo, uma construção de saberes de forma crítica que seja participativa, criativa e que seja respeitosa, essa construção dar-se na prática que é conflituosa, contraditória. Para a comunidade surge como uma ação transformadora que não é uma tarefa simples, mas uma tarefa que tem um 212 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS compromisso de construir um determinado trabalho social com a comunidade, gerando aprendizados, porém esse processo não dar-se rapidamente, uma vez que, são atividades processuais. Para a universidade essa articulação é extremamente importante, pois essa é a intenção enquanto extensão na perspectiva da educação popular, entendendo que não é procurar ser o melhor, mas ter humildade para reconhecer o nosso inacabamento, assim como é importante compreender que a visão daqueles que dialogam com a comunidade precisa ser repensada, por que o trabalho social e útil que se faz nesses espaços vivos não é meramente participar do meio, mas está junto, dialogando, construindo com os atores e autores populares. Além disso, é necessário romper com o pensamento assistencialista, e procurar compreender que o objetivo é a emancipação humana, social e política. Essa construção deve acontecer de forma natural com o outro e não autoritária por que mesmo com a intenção bastante transformadora é possível ser extremamente autoritário (CRUZ, 2017). A comunidade precisa participar dessas atividades de forma ativa e a universidade/profissionais carece oportunizar essa ação, esse fazer diferente. Por isso que esse trabalho requer compromisso e intencionalidades, fazer extensão numa perspectiva de educação popular é lançar-se no mundo, é sentir, é agir de forma humana e respeitosa, reconhecendo que não sabemos de tudo, que diariamente estamos aprendendo coisas novas, como também é por meio de nossas relações com o outro que podemos aprender novos saberes e conhecer outras formas de enxergar o mundo social, político juntamente. SUMÁRIO 213 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Para Joly, Martins e Oliveira (2011), as práticas sociais são entendidas como: [...] atividades que envolvem pessoas a partir de um movimento complexo e dinâmico, em que o simples contato é ultrapassado em favor de um relacionamento que atenda aos diferentes sujeitos em seus objetivos e estilos de vida, oferecendo condições para o “ser mais” de cada um, rompendo limites e construindo relações onde o respeito, a ajuda mútua e a colaboração sejam fortes componentes (JOLY; MARTINS; OLIVEIRA, 2011, p. 95). Nesta perspectiva, a extensão popular compreende-se como uma práxis intrínseca em um compromisso social, ao qual identifica a existência de uma desumanização em processo e que se faz indispensável um agir em seu sentido contrário, e isso se faz coletivamente. É por meio das relações respeitosas, críticareflexiva diante a realidade, problematizando, questionando as injustiças, papel que deve ser feito de forma conjunta, individualismo, autoritarismo, são adjetivos que não fazem parte de um trabalho social e útil defendido por Melo Neto. Desta forma, entendemos que as experiências vivenciadas pelos atores e atrizes profissionais com relação a comunidade na perspectiva da extensão popular nos reafirma que a inserção dessas pessoas na construção do saber, denota que o trabalho em comunhão possibilita que os sujeitos se construam e reconstruam diariamente e coletivamente. É importante que nesse processo dialógico entre a universidade e os membros comunitários as histórias e memórias sejam conservadas, assim como sua identidade, enriquecendo e diversificando seus saberes e práticas comunitárias populares 214 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS por meio do agir crítico e reflexivo. Espera-se que ambos os espaços trabalhem para a transformação social e que seja resgatada à essência do ser humano. Algumas considerações O intercâmbio da universidade com a comunidade com intencionalidade democrática, possibilita que ambos produzam conhecimentos diversificados, a vivência junto com a comunidade permite a constituição de uma visão crítica e reflexiva do indivíduo, em que são promovidas pela criação de uma relação construída por meio da prática do diálogo, mas um diálogo aberto a outras visões, concepções, conceitos do outro, é preciso que exista respeito ao outro. Através dessa relação é possível estimular o protagonismo dos atores e atrizes populares de forma horizontalizada, pois cada indivíduo é portador de um saber próprio, e esse saber é compartilhado com outros indivíduos históricos, contribuindo para a troca de conhecimentos e experiências. Quanto às práticas comunitárias e populares produzidos no âmbito comunitário, precisamos entender que a universidade não é detentora do conhecimento, a comunidade contribui significativamente na construção dos saberes que são necessários para os estudantes, professores e a universidade. No sentido de descobrir caminhos e práticas possíveis para se fazer um trabalho e um agir da comunidade na universidade pautado numa perspectiva crítica, humanizadora, integral e necessariamente participativa, ou seja, práticas sociais não prescritivas ou normativas e desumanizante por meio de uma maneira dialógica muito inspirado nos princípios da Educação Popular. A universidade precisa abrir espaços SUMÁRIO 215 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS de diálogos para que esses atores populares compartilhem seus saberes, experiências (FALCÃO, 2014a). Sendo assim, as práticas sociais que são produzidas em comunhão com os membros comunitários constroem conhecimentos diversificados, valorizam a cultura local, os saberes e as experiências vividas pela população, como também, possibilita autonomia e criticidade dos atores e autores populares. Por meio dessas práticas democráticas é possível estimular a participação desses membros comunitários quanto a postura na sociedade de forma crítica-reflexiva, constroem laços com os estudantes, professores e contribuem para que esses indivíduos ampliem seus conhecimentos, incitando-os a terem maior responsabilidade, comprometimento e corroborando para a constituição de profissionais humanizados, reflexivos e com intencionalidade política. Referências ABÍLIO, I. S. Práticas integrativas e populares de cuidado, seus processos educativos e comunitários: sistematização da experiência de Palmira Sérgio Lopes. 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SUMÁRIO 219 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS OS FIOS (IN)VISÍVEIS ENTRE A EDUCAÇÃO POPULAR E A PEDAGOGIA SOCIALISTA SOVIÉTICA José Aclecio Dantas Introdução Este artigo foi gestado a partir de algumas inquietações que surgiram quando concomitantemente estávamos realizando leituras da disciplina Tópicos especiais em Educação popular - produção compartilhada do conhecimento na pesquisa e na ação social, para o doutoramento em Educação na Universidade Federal da Paraíba, e leituras livres e cotidianas que despretensiosamente aportaram nos escritos de alguns pedagogos da educação socialista soviética do início do século XX, Pistrak e Krupskaia. Por isso, tomamos a ousadia de escrever sobre alguns fios visíveis, ou invisíveis, entre essas duas categorias: a Educação popular e a pedagogia socialista. Por isso, nossa primeira percepção foi que ambas tinham essa força que impulsiona seja as consciências reificadas, ou as já desreificadas, em direção à construção de um mundo livre 220 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS das diversas formas de opressão que surgem das dominações econômica, política, étnica, religiosa e, por assim não dizer, social em suas próprias épocas e conjunturas históricas. A metodologia adotada na pesquisa tratou-se de uma pesquisa de cunho bibliográfico, da mesma forma classificada enquanto pesquisa descritiva e qualitativa, que tem a análise do discurso um de seus instrumentos e técnicas de análise dos dados. O caráter descritivo da pesquisa se embasou nos aspectos da formulação das perguntas que nortearam a pesquisa, estabelecendo as relações entre algumas características notórias da Educação popular em similitude com algumas salientes características da pedagogia socialista soviética em questão. Destarte, é importante destacar o que esse trabalho não se propõe ser um trabalho anticrônico, porque não pretendemos analisar os fatos, conceitos e ideias de uma época equivocadamente com base em fatos, conceitos e ideias de outro tempo ou conjuntura histórica. Nosso estudo comparado, aqui realizado, também não se alicerça em uma evolução histórica de determinadas características de uma pedagogia aplicada, mas se alinha com a ideia que vários pressupostos da educação popular puderam se espelhar em positivas abordagens e experiências das pedagogias socialistas do passado, ressignificando ou adaptando-as à sua realidade contemporânea. A pedagogia socialista apresentada é fruto do socialismo real ocorrido nas três primeiras décadas do século XX, precisamente entre o ano de 1917, data da mudança revolucionária na Rússia, quando as bases sociais começaram a ser alteradas em direção à construção do socialismo, e o SUMÁRIO 221 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS ano de 1931, que é o ano da primeira reforma educacional na União soviética (FREITAS, 2013, p.10). No entanto, nossa ênfase repousa em um período mais estreito que abrange o governo de Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido pelo pseudônimo Lenin, que ocorreu entre 1917 e 1924, ano de seu assassinato. Isto porque, Lenin foi um dos grandes idealizadores e defensores da nascente pedagogia socialista soviética. No outro lado desse exercício de comparação se encontra a Educação popular brasileira principalmente no que se refere ao âmbito da construção compartilhada do conhecimento na pesquisa e na ação. Apesar de ser a educação popular um movimento que já se germinava no Brasil e na américa latina muito antes de sua conceituação mais aceita, “a educação popular emerge como um movimento de trabalho político com as classes populares através da educação” (BRANDÃO, 2006, s.p.). Assim dizendo, as primeiras experiências de educação libertadora com as classes populares surgem: [...] no Brasil no começo da década de 60. Surge no interior de grupos e movimentos a sociedade civil, alguns deles associados a setores de governos municipais, estaduais, ou da federação. Surge como um movimento de educadores, que trazem, para o seu âmbito de trabalho profissional e militante, teorias e práticas do que então se chamou cultura popular, e se considerou como uma base simbólico ideológica de processos políticos de organização e mobilização de setores das classes populares, para uma luta de classes dirigida à transformação da ordem social, política, econômica e cultural vigentes. (BRANDÂO, 2006, s.p.) 222 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Esta educação que repõe o popular, sua cultura e seu saber no centro do ensino, da pesquisa e da ação social tem em Paulo Freire um de seus intelectuais brasileiros mais conceituado e adotado como referência, principalmente pelo motivo da pedagogia ter possibilitado ao conjunto dos trabalhadores uma reflexão sobre sua situação de opressão em que estavam imergidos e transformar essa situação em instrumento de luta política. Desta maneira, decidimos iniciar o desenvolvimento desse artigo com a valorização da educação realmente popular como instrumento de transformação social radical. Por uma educação socialmente popular Tomamos inicialmente as palavras de um grande pedagogo para ilustrar o sentimento pedagógico que nos invade a alma e nos mobiliza em direção da construção de um mundo novo e melhor: “Mas sinto-me antes de tudo pedagogo e não só antes de tudo, senão sempre e por toda a parte” (MAKARENKO)14. Popular e educação15 são dois termos que representam, na história social moderna, duas categorias concretas que produziram, entre si, mais momentos de estranhamentos e alargamentos dos espaços de convivência do que períodos de imbricamento e associações empíricas, o que não quer dizer que em certos momentos históricos, nos processos e programas educacionais, não tenha havido certas concessões aos populares para sua participação nesses processos. 14 15 Textos descritos em FILONOV (2010, p.114). Estamos nos referindo especificamente a educação escolar, livresca, curricular e estatal. Uma educação que engloba a educação básica e superior. SUMÁRIO 223 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS No entanto, tais suspeitadas concessões foram se sucedendo de acordo com interesses mais hegemônicos e não sem uma participação de lutas e reivindicações, as mais diversas possíveis, por parte das classes populares dominadas, mas que, no geral, essas concessões se alinhavam com os embates entre capital e trabalho, principalmente no que tange o movimento de forças contra hegemônicas do capital na questão social. O que queremos dizer com isso é que na relação entre educação e população16 existe um agente mediador, entre outros, que determina certos movimentos de pressão e concessão: o trabalho. O trabalho que medeia a relação entre educação e população não é aquele trabalho específico e empírico como o trabalho concreto do pedagogo ou do professor de disciplina, mas um trabalho abstrato que se presentifica enquanto agente político nos embates entre classes, dominantes e dominados, capital e trabalho. Com isso, o trabalho que medeia as relações entre educação e população não é o trabalho deslocado de seu embate com o capital, é o trabalho em movimento, em relação com o capital, fazendo que essa relação de conflito resvale na mediação entre educação e população. Destarte, da mesma forma que o trabalho medeia a relação entre educação e população o capital também se impõe nessa mediação. No entanto, a “mediação” exercida pelo capital não é uma mediação de plano secundário, nem uma mediação no sentido estrito desta palavra, ou seja, que está no meio. O capital entra no campo das mediações como um agente Estamos utilizando esse termo no sentido de um conjunto de pessoas que compõem uma categoria particular (HOUAISS, 2002), com suas particularidades e vivencias que superam a ideia de um conjunto mais amplo de uma sociedade. Estamos nos referindo a classe popular. 16 224 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS dominante, determinante, formador e influenciador das tendências que lhes cabe e que são de seu interesse. O capital impõe, assim, os determinantes e as condições de efetivações dos programas e processos educacionais que devem ou não devem historicamente alcançar as massas populares, isso porque “No estado burguês [...] a escola é um instrumento de subjugação intelectual de amplas massas nacionais” (KRUPSKAYA, 2017, p. 65). No que se refere a isso, o capital deixa de ser um mediador para ser o agente dominante que sistematicamente impõe aos processos educacionais determinados avanços, ou retrocessos, em relação às necessidades dos grupos populacionais dos quais ele quer se valer, pois: Sob o capitalismo, a educação é subsumida na instrução. As razões são conhecidas: primeiro, a educação/instrução das classes trabalhadoras deve ser feita a conta-gotas, pois é matéria explosiva; segundo, subsumida, ela ocorre em um espaço de informalidade onde o status quo age livre de qualquer contraposição, ou até mesmo livre de um planejamento intencional (currículo oculto?). Centrada na escola, espalhada pelos seus recantos de maneira informal, esta educação omite as contradições sociais e apresenta ao aluno uma perspectiva de preparação para uma vida que já está pronta, e que deve ser apenas aceita por ele como um bom consumidor de mercadorias e serviços (PISTRAK, 2013, p.79). A título desta ilustração os hiatos existentes na relação entre popular e educação precisam se esmiuçar e se apresentar SUMÁRIO 225 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS em uma dupla via, numa dupla direção: do popular à educação, e da educação ao popular. Pela via popular/educação encontramos os baixos níveis, senão inexistentes, de participação dos conhecimentos populares na formação dos conteúdos curriculares; a baixa participação popular na formação generalista dos alunos e nas tomadas de decisões coletivas; alguns estranhamentos com a rotina escolar; deslocamentos da responsabilidade da educação doméstica para o ensino escolar; a gradual, parcialmente e lenta assimilação dos objetivos virtuais17 da educação escolarizada; a apreciação da escola como um lócus de guarda temporal da criança fora do ambiente familiar esvaziado pelo trabalho concreto dos responsáveis. Em sentido oposto, na direção tomada a partir da educação em linha com o popular, encontramos a elitização histórica do conhecimento cultural humano em mãos e domínio das classes dominantes; a seletividade também histórica da educação quando dos processos de lenta popularização do acesso à educação escolar; a própria segmentação e valoração da educação enquanto trabalho intelectual em contra ponto ao trabalho/conhecimento manual; a cientificização do conhecimento como único conhecimento socialmente válido e assim, a concomitante periferização da cultura popular ou mistificação de alguns conhecimentos populares como entretenimentos midiáticos. Esses são, entre outros, alguns dos conflitos e espaços não solucionados na relação entre educação e o popular. Isso porque, em certa medida, a educação 17 226 Dado a existência de objetivos reais velados que se ligam aos interesses dominantes de condicionamento de uma classe dominada, dócil, ordeira, comportada e adequada aos padrões de exigência técnica do modo de produção vigente SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS enquanto espaço de transmissão formal de conhecimento transformada em instituição formadora dos indivíduos18 se desenvolveu na modernidade como um espaço não popular, não destinado às massas populares, mas sim como prêmio, estandarte e máquina reprodutora do poder, influência e dominação das classes política e econômica mais abastadas, em síntese: os burgueses. Destarte, “A escola é um instrumento de dominação de classe” (KRUPSKAYA, 2017, p.63), e “se não fosse capaz disso, teria sido eliminada como um corpo estranho inútil” (PISTRAK, 2011, p.23). A educação moderna, dentro do modo de produção capitalista é uma educação nos moldes burgueses, reflete seus anseios, desejos, objetivos e sua ética e moral mais enraizadas, é uma educação para uma minoria. É um dos grandes trunfos da burguesia, porque ela tem o poder de os destacar das massas incultas, deseducadas, determinando seus status sociais. A história da educação no Brasil corrobora com o que afirmamos anteriormente, principalmente nos primeiros parágrafos escritos sobre estranhamentos e alargamentos dos espaços de convivência. Isso porque, os processos educacionais no Brasil foram se formando ancorados e embasados em direitos de classe, socialmente afirmados, entre as elites econômicas e religiosas. Processos que se iniciaram na perspectiva do proselitismo e da catequização dos povos dominados, dado o monopólio da vertente religiosa nos primórdios educacionais no Brasil. A educação formal no Brasil se inicia com os Jesuítas na metade do século XVI (SAVIANI, 2008, p.15). Mas não 18 A escola nos moldes da educação burguesa se esforça para formar um ser nômada com objetivos bem definidos. SUMÁRIO 227 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS é uma educação popular 19, é uma educação religiosa colonizadamente imposta para domesticação do popular, que nas palavras de Saviani (2008, p.31) é um fenômeno de aculturação20. Esse fenômeno, em relação aos dominados, segundo Bosi (1992, p.17) “se traduziria, afinal, em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente a um certo padrão tido como superior.” Esse tipo de proposição na educação se alongou até 1759, e se mesclou com a educação leiga até 1932 (BOSI, 1992, p.17). Sujeição e adaptação são duas características do poder elitista ainda preservadas nos objetivos principais dos processos educacionais contemporâneos traduzidos em sujeição dos corpos e adaptação aos padrões normativos comportamentais da escola burguesa. Isso porque: Historicamente, não podemos esquecer que as camadas pobres da população brasileira (índios, caboclos, negros escravos, e depois forros, mestiços suburbanos, subproletários, em geral) foram colonizadas pela cultura rústica ou, eventualmente, urbana dos portugueses, e pelo catolicismo ritualizado dos jesuítas; e agora, já em plena mestiçagem e em plena sociedade de classes capitalistas, estão sendo recolonizadas pelo Estado, pela Escola Primária, pelo Exército, pela indústria cultural e por todas as agências de aculturação que saem do centro e atingem a periferia. (BOSI, 1992, p.336) 19 A educação popular é definida por Paulo Freire como “o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica.” (FREIRE,1993, p.19). 20 Apesar de ser um termo que representa um fenômeno que funcionava, à época, como uma política de colonização, preferimos entender alguns dos processos envolvidos como uma pressão que exerce, nas fronteiras interétnicas, certa mobilidade sociocultural, visibilizando determinados traços culturais ao ponto que invisibilizava outros. 228 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS De certa forma, essa imposição de uma cultura sobre outra, principalmente de uma cultura letrada sobre outra socialmente inferiorizada, neste caso o popular, caracterizava potencialmente o caráter elitista e etnocêntrica da educação entre os séculos XVI e XIX. E essa elitização educacional e hipervaloração de uma cultura em relação a outras condicionava o popular e seu saber às esferas do informal, do senso comum, do primitivo, do arcaico. Essa elitização da educação fica clara quando observamos a referência que Saviani (2008, p.95,96) traz das palavras de Dom José I, Rei de Portugal em 1772, ao levar em consideração que: [...] nem todos os indivíduos destes Reinos e seus Domínios se hão de educar com o destino dos Estudos Maiores”. E prossegue considerando que ficam excluídos desse destino os “empregados nos serviços rústicos e nas Artes Fabris, que ministram sustento dos Povos e constituem os braços e mãos do Corpo Político”. Para esses, diz o rei, bastariam “as Instruções dos Párocos”. [...]. Observa, ainda, que mesmo as pessoas com habilidade para os estudos também estão sujeitas a grandes desigualdades: “bastará a uns que se contenham nos exercícios de ler, escrever e contar”; a outros bastará a língua latina[...] Em suma, a educação no Brasil até 1827, tinha o objetivo elitista de ser o instrumento de formação da elite colonial. Uma elite colonial, burguesa e capitalista. Nos entremeios dos séculos XVIII e XIX, os processos de industrialização alavancados nos países cêntricos pelo desenvolvimento das forças produtivas do capital formataram as necessidades de uma massa de trabalhadores capacitada SUMÁRIO 229 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS a responder as exigências das maquinarias nas fabricas. No entanto, a massa de trabalhadores iletrados não conseguiria trabalhar nas novas máquinas e indústrias burguesas, alavancadas pelas novas tecnologias, se não soubesse ler os avisos, manuais, orientações e normas de trabalho e manutenção das maquinas. Então, a solução encontrada passou pela concessão de uma educação básica estritamente alfabetizadora para os filhos dos trabalhadores na forma de uma instrução pública e gratuita. Assim, era preciso formar uma nova força de trabalho adequada aos tempos modernos através da formação de uma tradição disciplinar. Eram as protoformas da “universalização” do acesso à educação, motivadas pelos interesses rentistas dos capitalistas. Mas, de forma alguma, essa “universalização” desde suas origens representou a popularização da educação, visto que, as camadas populacionais que acessavam a educação burguesa adentravam ao espaço escolar institucionalizado como força produtiva em formação, como subjetividade coisificada. O popular começou a circular dentro do universo escolar apenas como objeto e não como sujeito, em processos de amoldamento, silenciamento e condicionamento aos padrões fabris burgueses, pois: [...] enquanto se desenvolve a batalha pela estatização, democratização e laicização da instrução, todo o sistema educativo vai mudando em muitos de seus aspectos. Especialmente, verifica-se “a aliança do saber com a indústria” : a instituição escola recebe do trabalho produtivo conteúdos culturais antes excluídos; as novas disciplinas científico-técnicas são o aspecto moderno dos conhecimentos inerentes às antigas artes mecânicas. O aprendizado corporativo, 230 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS tendo desaparecido perante a fábrica, deixa como herança à instituição escola, até agora elitista e exclusivamente intelectual, suas exigências produtivas e manuais: a fábrica dá a essas exigências as novas características da “grande ciência” moderna. Nos modernos sistemas estatais de instrução entram, de fato, também as escolas de artes e ofícios, os institutos profissionais e técnicos, as novas faculdades de engenharia a nível universitário. Dessa forma, na velha instituição educativa dos dominantes, sobrecarregada de todas as contradições que Grécia e Roma já exibiram, entram conteúdos novos e uma população nova, preparando novas contradições. (MANACORDA, 1992, p.359). No Brasil, o fenômeno do escravismo se responsabilizou em estender ainda mais a lacuna entre popular e educação, dado que a tradicional consideração da “inumanidade” dos escravos negros à época não lhes permitia o acesso à educação formal, salvo raríssimas exceções21. Daí a pressão e exigência do capital internacional na segunda metade do século XIX, primeiro na transformação do trabalho escravo em trabalho livre e assalariado e depois em garantir a formação educacional desta parcela de força de trabalho ao ritmo da fábrica. Não se pode afirmar que os trabalhadores, em certo sentido estritamente limitado, não tenham progredido em status e mobilidade social com a implementação do trabalho livre e assalariado, dado ser outra forma de relações sociais de produção que se estabeleciam. No entanto, no que diz respeito 21 Dado a existência de negros livres ou alforriados que estudavam por condições próprias ou de escravos financiados por seus senhores no intuito de aproveitarem seu trabalho no comércio ou em algumas atividades que requeriam leitura e escrita. SUMÁRIO 231 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS às políticas educacionais, sua cultura, sua cotidianidade, seu universo estético, lúdico e epistemológico não foi incluído nas formulações das bases educacionais brasileiras durante os processos de ampliação do acesso à educação. Desta forma, as manifestações culturais, os movimentos sociais ainda não organizados e as necessidades e interesses das classes populares, transitaram nos espaços escolares como conteúdos e programas acessórios expressos nas datas comemorativas, festas populares, entre outros. A pessoa do popular adentrou os portões da escola, mas deixou seu mundo do lado de fora dela. De certo, é preciso contextualizar essa afirmação, visto que esses processos que intentam homogeneizar culturalmente a sociedade aos padrões burgueses não acontecem sem diversas formas de resistência, isso porque nas relações sociais de educação as subjetividades mesmo em processos de dominação conseguem impor determinadas visibilidades e conquistar determinados espaços, que mesmo desproporcionais em relação a quantidade de populares ali existentes, não são insignificantes do ponto de vista de suas conquistas. Com o avanço das forças produtivas do capital, o adentramento ao século XX e o adensamento das relações sociais entre popular e educação, capitaneadas pelo desenvolvimento técnico industrial e mediadas pelo trabalho, a educação mundial passou por grandes transformações enquanto a educação brasileira passou para o processo de consolidação de sua segunda fase, a fase seletiva. O rápido e tardio industrialismo brasileiro após libertação dos escravos e proclamação da república forçaram a expansão da educação no Brasil exigindo a formação básica dos futuros trabalhadores através de uma educação pública universal 232 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS e gratuita, isso porque o capital já tinha descoberto que: “governar massas alfabetizadas é mais fácil do que lidar com pessoas que não são capazes de ler os regulamentos internos ou ordens do governo, que não podem assinar o seu nome, que são incapazes de fazer um cálculo dos mais simples” (KRUPSKAYA , 2017, p.67). No entanto, o caráter pseudo universalista da educação brasileira no período que ficou conhecido como a República Velha22 (1889-1930), seguindo as exigências de uma burguesia agrária e oligárquica se estendeu lentamente e em limitados raios de inclusão, priorizando a seletividade dos indivíduos ou das categorias sociais que seriam privilegiadas pela educação pública. Um tipo de sociedade que Karl Popper23 (apud FREIRE,1967, p.47) conceitua como uma “Sociedade fechada”, no qual sua alienação cultural, como sociedade reflexa, correspondia uma tarefa alienada e alienante de suas elites. A educação brasileira sob regência burguesa não poderia ceder à universalização de uma educação de qualidade equânime e equitativa, pois isso” Seria uma contradição se os opressores, não só defendessem, mas praticassem uma educação libertadora” (FREIRE, 1974, p.43). Seletividade no acesso e seletividade no conteúdo a ser administrado as massas populares. Assim, parafraseando o que Freire (1974, p.67) disse ainda na década 1960, a seletividade na educação brasileira promoveu uma relativa “absolutização da ignorância”24, 22 23 24 Ou Primeira República. Em “A Sociedade Democrática e seus Inimigos”. Exposição de Paulo Freire a respeito da educação bancária, modelo hegemônico da educação tradicional brasileira, que refletia, ao nosso ver, o estabelecimento dos hiatos cada vez mais amplos entre a educação e o popular. Para Paulo Freire “o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão — a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância[...]”. SUMÁRIO 233 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A seletividade da educação brasileira após proclamação da república se tornou tão enraizada e tão limitante do conhecimento disponível à classe popular que entre as décadas de 1940 e 1960, segundo Brandão e Fagundes (2016, p.91) ainda se discutia que [...] o analfabetismo era um câncer que precisava ser eliminado, pois atrasava o desenvolvimento do Brasil. Nessa direção, o currículo proposto baseava-se em conhecimentos, como: ler, escrever e calcular, considerados como aprendizagens suficientes para o desenvolvimento do pensamento; trabalhos na agricultura, técnicas comerciais, trabalhos caseiros e edificação, para promover o desenvolvimento profissional e o progresso econômico; desenvolvimento de habilidades domésticas, para poder trabalhar com crianças, enfermos e preparação de alimentos; meios de higiene pessoal e coletiva, para o desenvolvimento moral e intelectual, entre outros. Enquanto, na educação brasileira das primeiras décadas do século XX, os embates e lutas de classes tentavam ainda alargar o terreno de acesso à educação pública de qualidade, mesmo que permitindo a crescente dissociação entre o popular e a educação, a pedagogia socialista fazia o caminho inverso, ou seja, considerava como ponto nodal “ligar a escola, como fosse possível, fortemente com a vida, aproximar-se da população” (PISTRAK, 2013, p.15). No Brasil, apenas a partir da década de 1960, na linha das discussões estabelecidas pelos países socialistas e ações pedagógicas de Paulo Freire e vários pedagogos progressistas25 Saviani (1989) classifica as teorias criadas por grande parte dos pedagogos ditos progressistas como “teorias críticas reprodutivistas”, pois apesar de apresentarem fortes críticas ao sistema 25 234 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS se estabelecem os pressupostos basilares para a formação de uma educação popular brasileira, surgida inicialmente como movimentos de cultura popular, isso porque “é nos anos 1960, com Paulo Freire, que se tem, pela primeira vez, de forma consistente, uma pedagogia anunciada das classes populares” (PALUDO, 2001, p.91). Tornou-se, assim, a via possível dentro de uma estrutura não socialista para a reinserção vincular do popular e sua cultura nas dinâmicas de construção social através da educação, mas não apenas neste campo, como uma prática coletiva e socialmente significativa para esta classe. Um processo de formação omnilateral26 da vida social. Em suma, a educação burguesa brasileira historicamente renunciou progressivamente o popular de sua educação, enquanto a nascente pedagogia socialista, das primeiras décadas do século XX, considerava válida apenas uma educação que estivesse estritamente vinculada com o popular, que mantivesse seu caráter cientifico sem perder de vista a vida concreta de seu povo. Por esse caráter popular da pedagogia socialista, consideramos de suma importância encontrar quais fios visíveis ou invisíveis ligam epistemologicamente as pedagogias da educação popular brasileira e da educação socialista da URSS. educacional vigente contribuíam para a reprodução da função própria da educação que era a reprodução da sociedade em que estava inserida, ou seja “reproduzir a sociedade de classes e reforçar o modo de produção capitalista” (Ibidem,p.27). Não se incluindo nessa classificação as teorias tecnicistas e escolanovista que Saviani considera como teorias não críticas. 26 Este termo Marxiano se opõe a concepção de educação humana unilateral provocada pelas relações burguesas estranhadas. SUMÁRIO 235 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Fios in(visíveis) convergentes entre educação popular e pedagogia socialista O nosso exercício de busca pelos fios convergentes entre a pedagogia socialista e a educação popular não se estabelece a partir de um processo de categorização valorativa de qualquer uma das partes em relação, até porque, cada uma delas tem seu próprio valor sócio histórico. Nem tampouco queremos com isso fundar pressupostos que liguem a educação popular contemporânea com a pedagogia socialista do início do século XX, até porque nosso referencial aqui adotado, de pedagogia socialista, se embasou nos relatos de experiências da formação das escolas soviéticas nos primeiros anos da revolução russa, a partir de 1917, principalmente pelos relatos dos pedagogos soviéticos Pistrak e Krupskaya27 enquanto tomamos alguns dos principais pontos conceituais da experiência da educação popular brasileira. Essa relação que pretendemos estabelecer se esboça entre as propostas epistemológicas e práxis da educação popular na construção compartilhada do conhecimento no Brasil, o que envolve, concomitantemente, o ensino, a pesquisa e a extensão universitária28 e algumas práticas reais da educação e pedagogia socialista soviética que ainda estava em formação, e isso é um dado importante a realçar: a pedagogia socialista foi colocada em prática antes da construção de sua teoria. Poderíamos dizer, com isso, que a Moisey Mikhaylovich Pistrak (1888-1940) e Nadezhda Konstantinovna Krupskaya (1869 – 1939) respectivamente. 28 A produção compartilhada do conhecimento que acompanhamos parte da ação social coletiva do ensino, da pesquisa e da extensão universitária como lócus privilegiado para essa ação social. Na ênfase da pesquisa destacamos algumas das diversas terminologias adotadas na atualidade: pesquisa-ação; investigação-ação; pesquisa participante ou pesquisa militante. 27 236 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS pedagogia socialista soviética foi desenvolvendo uma teoria junto ou a “posteriori” a prática, fazendo que os resultados positivos alcançados além de fluidos e gelatinosos fossem lentos e processuais, o que não descaracterizou suas boas intencionalidades. É preciso ressaltar que o período da pedagogia socialista, que tomamos em questão, engloba apenas o espaço temporal que corresponde a influência e dedicação político pedagógica de Vladimir Ilyich Ulyanov Lênin na construção da nascente pedagogia socialista soviética. Um destaque deve ser feito em relação a algumas diferenças entre os dois objetos aqui relacionados, a pedagogia socialista e a educação popular. Primeiro, porque o foco de preocupação da pedagogia socialista nascente naqueles primeiros anos do governo socialista estava na educação básica, o que compreendia a educação obrigatória das crianças e adolescentes até 16 anos, enquanto o foco da educação popular por nós aqui adotado assenta sobre a construção compartilhada do conhecimento nas ações emancipadoras que envolvem principalmente, mas não apenas eles, os jovens e adultos. Então, apesar de serem objetivadas em períodos históricos e em faixas etárias relativamente distintas, essas diferenças enriquecem ainda mais as comparações positivas destas duas concretudes, visto que as propositividades conceituais e objetivos propostos por ambas poderiam, com suas adaptações necessárias, serem colocadas em prática concomitantemente. Outra diferença importante a destacar é o tipo de modo de produção em que se assenta cada uma delas, uma diferença radical, uma no socialismo real do primeiro quartel do século XX, e a outra no modo de produção capitalista SUMÁRIO 237 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS em suas fases imperialista e financeira. Uma radicalidade que salienta o potencial de resistência da educação popular contemporânea. Não se pode esquecer também do caráter pedagógico da ênfase no trabalho socialmente útil da escola do trabalho soviética, no qual o trabalho assumia sua força formativa na construção da coletividade comunista. A existência dessas, e de tantas outras diferenças não impõem aos pontos convergente e aos fios que se entrelaçam nenhum descrédito ou impossibilidade de comparação, mas instigam aos pensadores imbricações mais sutis. Toda diferença tem seu jogo dialético com as semelhanças relacionadas. Nestes termos, procuramos realizar um exercício de comparação entre as categorias pares: universidade/ pesquisador na construção compartilhada do conhecimento norteada pelos objetivos da educação popular e a escola/ criança da pedagogia socialista. Uma comparação entre conceitos, didáticas, objetivos epistemológicos, ações sociais, trabalhos úteis e paradigmas em ambas as partes. Inicialmente precisamos definir que a educação popular do qual nos referimos e nos orientamos não se alinha com a conceituação da educação popular como uma educação do povo, no tocante exclusivo do direitos de todos ao acesso à escola, nem tão pouco entendemos restritivamente e aceitamos a dimensão capitalista do termo educação popular como uma educação para o povo que se volta a preparação de força de trabalho dócil, adequada e relativamente qualificada as exigências crescentes do mercado de trabalho e o suspeitado desenvolvimento dito econômico nacional, uma educação tecnicista, mecânica, bancária e antidialógica. 238 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A educação popular, que nos norteia, não é apenas um método de trabalho coletivo, uma prática educativa, uma pedagogia libertária, uma política emancipadora, um socialismo epistemológico e uma ação social ou intencionalidade transformadora, mas é, ao mesmo tempo, tudo isso, abrangendo também toda a consideração e envolvimento coletivo da cultura popular e seus atores na construção de um mundo novo. A educação popular não se dobra à conservação nem a reprodução social da opressão, da superioridade e dominação de classe, mas busca transformar a sociedade e emancipar os sujeitos através de um projeto sociopolítico libertador, apostando nos movimentos populares e sua cultura, nos termos de Freire (1967; 1974). Neste quesito, a pedagogia socialista compartilha desses mesmos ideais, pois além de contestar as formas de dominação, exploração e barbárie a que todos os povos, classes e grupos sociais são submetidos no sistema do modo de produção capitalista, tem como princípios uma concepção dialética de incompletude do ser humano e da educação que só se transformam com as revoltas e revoluções populares na concretização de sua emancipação. A educação popular tem, em sua práxis, os princípios do reconhecimento do processo educativo como uma prática que se situa em uma determinada conjuntura, ou seja, um determinado contexto econômico, social, político, cultural, ideológico, tanto local e imediato como global e mediato, e que responde as orientações positivas ou negativas da sociedade capitalista em suas contradições e relações estabelecidas. Tem também em sua práxis os princípios do reconhecimento e da afirmação que o ensino não significa apenas a transmissão do conhecimento acumulado culturalmente, mas que também SUMÁRIO 239 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS tem o fim de criar as condições da produção ou construção compartilhada desse conhecimento como um bem social coletivamente produzido e usufruído. Seguindo essa linha de fios convergentes, na construção compartilhada do conhecimento29 efetivada pela Educação popular podemos observar as seguintes proposituras da educação popular baseadas nas descrições de Brandão (2006) sobre os princípios operativos da pesquisa participante30, e comparar com certas similitudes31 encontradas na pedagogia socialista. Conversão da relação sujeito/objeto em uma relação sujeito/sujeito Na construção compartilhada do conhecimento da educação popular às relações sociais estabelecidas, no âmbito da pesquisa, exigem que a relação positivista entre pesquisador e pesquisado dicotimizada em uma relação que subjetiva o primeiro e objetiva o segundo, transformando este último em uma coisa que deve ser cientificamente esmiuçada seja convertida em uma relação em que ambos se tornam sujeitos do conhecimento. A subjetivação do “objeto de pesquisa” na Educação popular permite que introjetado com toda sua cultura, voz, visão de mundo e conhecimento adquirido em sua própria cotidianidade transforme o conhecimento construído coletivamente em um reflexo mais verídico da própria cultura coletiva, o que tem a condição de impulsionar transformações societárias mais igualitárias. 29 30 O que envolve o ensino, a pesquisa e a extensão universitária. Na américa latina a pesquisa participante tomou a forma da Educação popular. (BRANDÂO, 2006, s.p). 31 Algumas dessas convergências estão em plano abstrato e outras em plano concreto. 240 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A pedagogia socialista que abordamos segue princípios basilares de igual monta, ao propor a autodireção e o autosserviço nas relações estabelecidas a partir da escola, não como mera ativação da criança, mas numa construção coletiva do conhecimento no qual o aluno se transforma em sujeito (FREITAS, 2013, p.28). A autodireção e o autosserviço colocavam a criança na efetiva participação na gestão, no planejamento e concretização do processo educativo em todos os seus âmbitos, o que representava a realização de um processo educativo voltado e fundamentado pela vivência das crianças reais. A pedagogia socialista era a partir de, para e com as crianças. Se tomarmos as relações escolares do modelo de escola capitalista do regime czarista, pré revoluções socialistas que seguiam a relevância do padrão escolar burguês como exemplo, veremos que neste tipo de escola burguesa os alunos, objetos de intervenção pedagógica, eram concebidos como “receptáculos rasos”, no qual o conhecimento era depositado32, uma criança anulada, bestializada, concebida como objeto; uma coisa sem cultura, sem humanidade e, por isso, sem historicidade. A pedagogia socialista resgatou a criança como ser histórico, colocando-a no centro de toda a orientação da atividade educativa (KRUPSKAYA, 2017, p.47), tanto em consideração a sua vida prática quanto sua participação na coletividade. Quem, na educação burguesa, era um objeto de intervenção, na pedagogia socialista era transformado em sujeito efetivo da vida e dos processos de construção dessa vida agora coletivizada. 32 O que Paulo Freire denunciaria décadas mais tarde como uma “educação bancária” (FREIRE, 1974, p.120). SUMÁRIO 241 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A pedagogia socialista desfazia a contradição educador/educando, enquanto na contemporaneidade brasileira, a educação popular procura decompor a contradição da relação sujeito/objeto, no qual os envolvidos, educando e objeto, transformam-se em sujeitos da produção do conhecimento e de sua realidade vivida. A realidade concreta da vida cotidiana é seu ponto de partida A transformação do objeto de pesquisa, pela educação popular, em sujeito na construção compartilhada do conhecimento implica indissociavelmente na consideração da realidade concreta dos sujeitos em relação construtiva do conhecimento como ponto de partida na formação de um conhecimento e uma epistemologia não mais particionados entre “eu” e “eles”, mas articulados a partir do “nós” de uma vida não mais idealmente abstrata, mas humanamente real. Deixa de ser teórica para ser prática vivida, uma “Pedagogia do Território” que “possibilita a experiência de vivenciar o mundo do outro, tantas vezes invisibilizado, deslocando de nosso lugar social para nos deixar afetar [...]” (TUPINAMBÁ e RIGOTTO, 2019, s.p.). Para Krupskaya (2017, p.47) “a vida real, a plenitude das emoções dos fatos pode fazer muito mais para captar a atenção de uma criança do que o mundo imaterial de associações e ideias”, por isso, “a realidade de seu entorno, o país, tornou-se o ponto de partida para todas as atividades de ensino”. A ação de tomar a realidade concreta da vida cotidiana como ponto de partida da produção do conhecimento aborda o que Freire (2001, p.232) denomina como “saberes 242 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS da experiência feito”. Na pedagogia freiriana os “Círculos de cultura” onde “a rigor, não se ensina, aprende-se em “reciprocidade de consciências” (FREIRE, 1974, p.3) exibe esse vínculo indelével da aprendizagem com o mundo vivido que é a chave para a construção de um conhecimento que não é apenas compartilhado, mas compartilhadamente construído. Para Freire (1974, p.13) “o homem “hominiza-se” expressando, dizendo o seu mundo. Ai começa a história e a cultura”. Ao dizer e refletir o seu próprio mundo o homem contribui para uma educação como prática da liberdade; primeiro a sua própria liberdade e concomitantemente uma liberdade estendida ao próprio mundo que ele constrói, “por isto os homens não se humanizam, senão humanizando o mundo” (FREIRE, 1974, p.14). Portanto, tal humanização como prática da liberdade não é auto libertação, nem tão pouco é libertação de uns feita por outros (FREIRE, 1974, p.58). Na pedagogia socialista a “pedagogia do meio33” como um de seus fundamentos cumpria esse papel de ligar os sujeitos em transformação, suas cotidianidades, suas lutas, seus esforços e, principalmente, seu trabalho socialmente produtivo. Se encarregava de materializar as teorias em práticas que se aproximavam mais da vida do povo. Para Shulgin (apud FREITAS, 2013, p.27): “as crianças são parte da atualidade, elas estão e vivem nela e, por conseguinte, toda a questão está em como ajuda-las, da melhor forma, a familiarizar-se com os momentos fundamentais da atualidade [...]”. Disso decorre o caráter participante da criança como sujeito da vida. 33 “Esta denominação foi entendida, com mais frequência, como “todo o conjunto de fatores do meio que cerca a criança (produtivo, social, vida familiar e outros) o qual espontaneamente influência a criança”” (KOROLEV, SMIRNOV apud PISTRAK, 2013, p.97). SUMÁRIO 243 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A criança e sua vida real, em contraposição à educação livresca da burguesia, se especificavam concretamente nos processos educacionais da pedagogia socialista. Para Freitas (2013, p.27), a criança “está inserida em seu meio e esta materialidade com suas particularidades e sua cultura também educa e faz parte da ação educativo-formativa”. E não tem também esse intuito a educação popular ao “ligar o ensino e a pesquisa com a realidade” (MELO NETO, 2006, p.41). Trabalho de educação realizados junto com e a serviço das comunidades e compromisso ideológico e político com os setores populares e com as suas causas sociais Esses são mais dois princípios operativos da educação popular que convergem simetricamente com a pedagogia socialista a extinta URSS. Enquanto, na educação popular, o trabalho social é com (e a serviço dos) oprimidos e dominados, na pedagogia socialista, tendo a opressão de classe já suplantada, o trabalho social se direcionava na superação das marcas deixadas pelos séculos de opressão, exploração, alienação e coisificação do homem pelo capitalismo. Nesse ponto convergem: não aceitam nem se conformam a qualquer espécie de opressão; só aceitam a liberdade como agente humanizador, na educação popular como um inédito viável34 e na pedagogia socialista como uma conquista em construção. Por isso, o trabalho da educação popular volta-se ao povo, sua cultura e sua vida diária na construção de um 34 244 Um conceito do educador Paulo Freire que é encontrado em quase todas as obras deste autor, mas que emergiu inicialmente na obra Pedagogia do oprimido. Para maiores informações sobre esse conceito em Paulo Freire ver Paro, Ventura, Silva (2019). SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS conhecimento que tem valor prático na formação de um mundo novo construído e usufruído coletivamente. Em um trecho Freitas (2013, p.15) apresenta a reprodução de uma fala de Krupskaya, sobre a pedagogia socialista, quando alude que: “era preciso introduzir conteúdo novo no ensino, ligar a escola, como fosse possível, fortemente com a vida, aproximar-se da população [...]”. Aqui temos, expressos nessa opinião, que a pedagogia socialista procurava atender as necessidades reais do povo, considerando ao mesmo tempo a importância do popular e suas estratégias de enfrentamento em suas cotidianidades. Unidade entre teoria e prática, construir e reconstruir a teoria a partir da prática Ambas pedagogias, educação popular e a socialista, tratam sobre as relações que se estabelecem entre a teoria e a pratica, entre o conhecimento por conceito (livro) e o conhecimento por experiência (prática). E dessa relação brotam as críticas às sistematizações das epistemologias que privilegiam uma ou outra, e não consideram sua unidade dialética, até porque a teoria sem a prática transforma-se em um academicismo oco, um “palavrismo” ou verbalismo vazio, enquanto a prática sem fundamentação teórica pode se tornar um ativismo irracional, um “praticismo” inconsequente. Assim, admite-se a presunção de que teoria e prática são faces de uma mesma situação, a produção do conhecimento que se volta a transformação social: uma práxis social. Por isso que, a práxis “” é reflexão e ação dos homens sôbre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1974, p. 40) SUMÁRIO 245 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Paulo Freire, ao se posicionar contra qualquer privilégio, em hipervalorizar quaisquer uma das partes, seja a prática ou a teoria, erro em que podem incidir tanto os produtores do conhecimento acadêmico, formal, regular e livresco, quanto os militantes mais pragmáticos e empíricos dos movimentos sociais, relata que: Aprendemos a não romper pensamento e ação, não estragar a teoria. Toda vez que há rompimento é um rompimento “ENTRE”; logo há perda desses dois componentes contraditórios. Tu perdes em praticidade, se tomando mais “papagaio falador” de teorias. Tu perdes em teoria, se tomando menos denso [...] (FREIRE e NOGUEIRA, 1993, p. 37). Na pedagogia socialista encontramos um discurso que pode explicar bem essa indissociabilidade entre teoria e prática ao explicitar as contradições da escola nos padrões capitalistas. A escola capitalista visava à preparação das crianças para uma vida futura “que já estava pronta, e que deveria ser apenas aceita por ele como um bom consumidor de mercadorias e serviços” (FREITAS, 2013, p.79), uma educação basicamente teórica referenciada pelos livros didáticos que apresentavam apenas um vislumbre verbalista do que realmente era a vida; uma dissociação entre a teoria e a vida (LENIN apud KRUPSKAYA, 2017, p.184). Ao se estudar assim, deixava-se de perceber as contradições reais da vida concreta, nas diversas esferas de sociabilidade nas quais os alunos estavam imergidos. Assim, “é preciso reconhecer de uma vez por todas que a criança e, sobretudo, o adolescente, não se preparam apenas para viver, mas já vivem uma verdadeira vida” (PISTRAK, 2011, p.33). 246 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A pedagogia socialista equacionou esse negativo rompimento entre teoria e prática, da escola capitalista, ao colocar o conteúdo cultural da vida concreta do popular no centro dos processos de ensino e ao privilegiar através da pedagogia do trabalho, do trabalho útil e produtivo, o saber local, ou seja, uma educação que partia do lugar no qual a criança estava inserida com toda sua historicidade e valor heurístico. Uma ligação da escola, enquanto fonte de teoria, com o meio e sua unidade orgânica através do trabalho socialmente útil. Assim, “o trabalho socialmente útil é a conexão entre a tão propalada teoria e prática” (PISTRAK, 2013, p.33). Na apresentação do livro fundamentos da escola do trabalho de Pistrak (2011), Roseli Salete Caldart relata que: À medida que a escola para a assumir a lógica da vida, e não de uma suposta preparação teórica a ela, é preciso romper com uma pedagogia da palavra, centrada no discurso e no repasse de conteúdos (diríamos, uma pedagogia “da saliva e do giz”), e construir uma pedagogia da ação. (PISTRAK, 2011, p.11) As crianças assim, não estudariam para uma vida que é projetada em um vazio distante, mas estudariam sua própria vida, de sua gente e as condições sociais circundantes, seus entornos, seus determinantes. Dado que, “a escola somente atinge os objetivos de educação do povo, se consegue interligar os diversos aspectos da vida das pessoas” (Ibidem). Desta forma, a teoria estava sempre em mutantes reformulações ao se confrontar diariamente com a prática social. SUMÁRIO 247 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Prática educacional como um ato político e a investigação, a educação e a ação social dirigidos à transformação social Desses seis princípios operativos da educação popular citados anteriormente, em convergência com os norteamentos basilares da pedagogia socialista, derivam um imanente sétimo princípio operativo: o caráter político do conhecimento que se volta à transformação social. Isso porque, “a ideia de uma educação apolítica ou neutra não passa de uma hipocrisia da burguesia, um meio de enganar as massas” (PISTRAK, 2011, p.18). Esse caráter político da produção do conhecimento é bem refletido na própria conceituação da educação popular realizada por Calado (2014, p. 359), pois, para ele pode-se entender a Educação popular como um: [...] processo formativo, protagonizado pela Classe Trabalhadora e seus aliados, continuamente alimentado pela utopia, em permanente construção de uma sociedade economicamente justa, socialmente solidária, politicamente igualitária, culturalmente diversa, dentro de um processo coerentemente marcado por práticas, procedimentos, dinâmicas, posturas correspondentes ao mesmo horizonte. Paulo Freire, em seu livro Educação como prática da liberdade (FREIRE, 1967) explica como se dá essa necessidade de politizar a prática educacional. Primeiramente, para ele, a coisificação do homem resulta de sua domesticação e acomodação ao receituário da elite, deixando de ser o criador de sua cultura (FREIRE, 1967, p.43). Segundo, só através de uma 248 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS atitude crítica para com sua realidade o homem pode superar a acomodação, no entanto, essa atitude crítica só passa a acontecer quando o próprio homem começa a capitar sua realidade vivida (FREIRE, 1967, p.44) e perceber a partir daí as opressões aos quais ele é submetido e imergido. Processo esse, que Freire (1967) chama de “transitividade crítica”. Ele acrescenta: A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da praxis”, se volta sôbre êles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens. (FREIRE, 1974, p.39) Destarte, é salutar considerar a importância que deve ter a dialogia e a vida concreta e atual do povo, não como uma projeção futura para a vida, como centro dos processos de ensino que se desenvolvem no meio escolar, ou seja, uma intima ligação entre a escola e a prática social. Na pedagogia socialista, “a escola é um instrumento de luta no sentido de que permite compreender melhor o mundo [...] com a finalidade de transforma-lo, segundo os interesses e anseios da classe trabalhadora” (FREITAS, 2013, p.32). A pedagogia socialista se incumbia de formar nas novas gerações os ideais revolucionários socialistas e a formação, em suas mentes, de um sentido coletivo para a vida social. Resumidamente “seguem-se daí as conclusões para a escola: sobre o conteúdo da educação – instrumento de luta e criação; sobre os métodos de estudo – habilidade de usar na prática SUMÁRIO 249 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS essas armas; sobre as tarefas formativas – o lugar do estudante na vida” (PISTRAK, 2013, p.117). Considerações finais Nosso artigo apresentou alguns fios in(visíveis) e convergentes entre a educação popular brasileira, situada a partir da segunda metade do século XX e a pedagogia socialista soviética do início do século XX (em um exercício constante de analogia sem desprezar as diferenças históricas, geográficas, culturais, econômicas) e políticas que particularizam cada uma delas. Esse exercício de comparação poderia incidir em um anacronismo sutil ou espraiado em todas as comparações se não tivéssemos, a todo momento, destacando que cada uma das categorias aqui comparadas teve, ou ainda tem, seu lugar bem definido em um espaço e tempo histórico. O exercício de comparação é um exercício curioso. Não nos foi permitido, pelo limite espacial deste trabalho, debruçar-se sobre outras e mais profundas similitudes entre essas duas categorias sociais. No devir de cada uma delas reina a percepção que a humanidade aprisionada pelas dinâmicas da dominação, precisa ser restaurada e entregue, como fator histórico de produção da vida, a seus verdadeiros donos: o povo. Por isso, nossa primeira percepção foi que ambas tinham essa força que impulsiona seja as consciências reificadas ou as já desreificadas em direção à construção de um mundo livre das diversas formas de opressão que surgem da dominação econômica, política, étnica, religiosa e, por assim não dizer, social em suas próprias épocas e conjunturas históricas. 250 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS A pedagogia do socialismo real soviético que se implantou na história da humanidade como as primeiras tentativas de direcionar a educação para uma formação omnilateral que repõe o homem em seu verdadeiro lugar, o de construtor de sua própria história e produtor de sua própria palavra, pode não ter tido continuidade histórica naquele espaço e tempo, mas deixou registrado, nessa mesma história, todas as lições positivas e negativas que poderão um dia servir a propósitos coletivos igualmente nobres, quando do rompimento universal do modo de produção capitalista, que a todos aliena. Enquanto isso não ocorre, a Educação popular vai minando velhas forças dominantes e vai conquistando pequenos espaços de sociabilidade, promovendo ações e trabalhos sociais que, igualmente a pedagogia socialista, vai tentando recolocar o homem em seu lugar devido, na construção de sua própria história através de processos de conscientização sobre suas próprias realidades e possibilidades históricas. Como ainda não é o fim da história, muito ainda tem a ser escrito pelo homem como sujeito de seu próprio mundo. Referências BOSI, Alfredo. Dialética da Companhia das Letras, 1992. colonização. São Paulo: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação Popular. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção Primeiros Passos; 318). BRANDAO, Carlos Rodrigues; FAGUNDES, Maurício Cesar Vitória. Cultura popular e educação popular: expressões da proposta freireana para um sistema de educação. 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Campinas, SP: Autores Associados, 1989. ______. História das idéias pedagógicas no Brasil. 2. ed. rev. e ampl. - Campinas, SP: Autores Associados, 2008. TUPINAMBÁ, Soraya Vanini; RIGOTTO, Raquel Maria. Construção compartilhada de conhecimentos em co-laboração social: experiências no semiárido brasileiro. In: CRUZ, P.J.S.C.(Org.) Construção compartilhada do conhecimento na pesquisa e na ação social. Editora do CCTA, 2019. 254 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES Alexandre Soares de Sousa Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Possui Graduação em Licenciatura Plena em Filosofia e Graduação em Bacharelado em Filosofia, ambas pela UFPB. Áreas que transita: Metafísica, Filosofia da Educação, Antropologia Filosófica, Educação Popular, Filosofia Contemporânea, História da Filosofia, Filosofia da Religião. Principais autores: Heidegger, Nietzsche, Vattimo, Dussel, Freire. Atualmente pesquisa um possível diálogo entre Heidegger e Freire, e a contribuição do pensamento freireano para a Teologia da Libertação, ou como a compreende Michael Löwy: Cristianismo de Libertação. Participa do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da UFPB. Francikely da Cunha Bandeira Doutoranda em Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na linha de pesquisa Educação Popular; Mestre em Educação pela UFPB, na mesma linha de pesquisa. Possui formação em Filosofia e licenciatura em Pedagogia, ambas pela UFPB. Estuda entre SUMÁRIO 255 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS outras coisas, processos educativos populares e a categoria Agentes Comunitários de Saúde à luz da Educação Popular. Gildivan Francisco das Neves Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Mestre em Educação na Linha de Pesquisa Educação Popular, no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Doutorando em Educação na Linha de Pesquisa Educação Popular, no PPGE/ UFPB. Bolsista CAPES. José Cleudo Gomes Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialização em Gestão Pública Municipal pela UFPB. Especialização em Literatura e Ensino pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN). Mestrado em Educação, na Linha de Políticas Educacionais, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFPB). Atualmente é Doutorando em Educação, na Linha de Educação Popular, pelo PPGE/UFPB e membro do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB. Atuou na Docência no Ensino Superior. Tem experiência na área de Educação, atuando e desenvolvendo estudos com ênfase em: Educação em Direitos Humanos, Políticas Educacionais, Gênero e Sexualidades, Educação de Jovens e Adultos e Educação Inclusiva. José Douglas de Abreu Araújo Licenciado e bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFIC). Bacharel em Serviço Social e especialista em Orientação e Mobilidade pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE). Especialista em Atendimento Educacional 256 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Especializado pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA). Mestrado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). José Aclécio Dantas Pedagogo. Especialista em Educação para os Direitos Humanos. Especialista em Coordenação Pedagógica. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Julyanna de Oliveira Bezerra Possui Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas (PPGDH) da UFPB, na Linha de Pesquisa de Educação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas. Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFPB. Participa do Grupo de Estudos e Pesquisas da Pedagogia Paulo Freire (GEPPF), o qual é vinculado ao PPGE e ao PPGDH da UFPB. Integrante do Grupo de Pesquisa e Extensão Observatório da Educação Popular. Tem experiência na área de Educação com ênfase em Educação Infantil, Educação de Jovens e Adultos, Educação em Direitos Humanos e Educação Popular. Klebson Felismino Bernardo Pedagogo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFPB, na linha de pesquisa de Educação Popular. Membro do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da UFPB. SUMÁRIO 257 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Luiz Gonzaga Gonçalves Professor Titular e voluntário da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Atua na Pós-Graduação em Educação, na linha de pesquisa Educação Popular, na UFPB. É pós-doutor em Educação pela Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS); Mestre em Educação pela UFPB; Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e graduado em Filosofia pela UNISAL, Unidade do Vale Paraíba. Estuda educação de jovens e adultos, saberes populares e processos de aprendizagem através do paradigma indiciário. Maria de Nazaré Tavares Zenaide Possui graduação em Psicologia e mestrado em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialização em Saúde Pública e Psicologia Social. Doutorado em Educação pela UFPB. Atualmente é membro do Grupo de Pesquisa da Pedagogia Paulo Freire (GEPPF/UFPB) e do Grupo de Pesquisa Memória, Política e Direitos Humanos da UFPB. É membro da Comissão de Direitos Humanos, do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos e da Comissão Gestora do Pacto Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade, da Cultura da Paz e dos Direitos Humanos no âmbito da UFPB. Compõe a Comissão da Verdade da UFPB. Atuou como membro do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos de 2003-2018. Exerceu a Coordenação Geral de Educação em Direitos Humanos do Ministério da Justiça, gestão 2004-2007 na implementação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. Atuou como consultora em Educação em Direitos Humanos junto ao Ministério da Educação e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Tem experiência de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação em Direitos Humanos, Direitos Humanos 258 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS e Políticas Públicas, Educação para Nunca Mais, Memória e Verdade, Movimentos Sociais e Direitos Humanos, Violência social e escolar e segurança cidadã. É membro da Red Latinoamericana e Caribenha de Educação em Direitos Humanos, da Associação Nacional de Educação, da Associação Nacional de Direitos Humanos, Ensino e Pesquisa e da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos. Renan Soares de Araújo Nutricionista pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFPB, na linha de pesquisa de Educação Popular. Membro do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da UFPB. Presta apoio pedagógico no Programa de Extensão e Pesquisa Práticas Integrais de Promoção da Saúde e Nutrição na Atenção Básica (PINAB) da UFPB. Severino Bezerra da Silva Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Sociologia Rural na UFPB. Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Titular no Departamento de Metodologia da Educação (DME) do Centro de Educação, na UFPB. Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFPB, Linha de Pesquisa Educação Popular. SUMÁRIO 259 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS SOBRE OS ORGANIZADORES Renan Soares de Araújo Nutricionista pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFPB, na linha de pesquisa de Educação Popular. Membro do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da UFPB. Presta apoio pedagógico no Programa de Extensão e Pesquisa Práticas Integrais de Promoção da Saúde e Nutrição na Atenção Básica (PINAB) da UFPB. Pedro José Santos Carneiro Cruz Nutricionista. Professor Adjunto do Departamento de Promoção da Saúde do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Líder do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da UFPB. Professor do Quadro Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGSC), ambos da UFPB. 260 SUMÁRIO EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS SOBRE OS(AS) PARECERISTAS E COMITÊ CIENTÍFICO REVISOR Danilo Fernandes Costa Professor do Departamento de Promoção da Saúde do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na área de Saúde Coletiva. Médico pela Universidade Federal Fluminense. Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Pós-doutorado no Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, sob a supervisão do Prof. Moisés Goldbaum. Membro do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da UFPB. Fernando Abath Cananéa Doutor em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da UFPB. Professor no Mestrado Profissional em Artes (PROF-ARTES) da UFPB. Presidente da ONG Maré. SUMÁRIO 261 EDUCAÇÃO POPULAR E CONSTRUÇÃO COMPARTILHADA DO CONHECIMENTO: DEBATES TEÓRICOS Francisco Xavier Técnico de Extensão Universitária no Núcleo e Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares (NUSEAMPO) Samuel Firmino da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Educador Popular. Membro do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da UFPB. Ione Gomes da Silva Mestre em Educação e Pedagoga pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Membro do Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR) da UFPB. Tiago Zanquêta de Souza Educador Popular. Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professor da Universidade de Uberaba (UNIUBE), no Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) e Programa de Mestrado Profissional em Educação: Formação Docente para a Educação Básica. Segundo líder do Grupo de Pesquisa em Formação Docente, Direito de Aprender e Práticas Pedagógicas (FORDAPP) da UNIUBE e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Práticas Sociais e Processos Educativos (PSPE) da UFSCar. 262 SUMÁRIO