REIFICAÇÃO EM AXEL HONNETH: ARTICULAÇÕES
COM O CONTEXTO RACIAL BRASILEIRO
Sheila Ferreira Miranda 1
Resumo
Neste trabalho, defendemos que as teorizações de Axel Honneth do modo existencial do
reconhecimento contribuem de maneira profícua para pensarmos as relações raciais no
Brasil, que condizem tanto com a impressão da própria imagem, quanto com a
expressão de legitimidade do outro nas relações interativas. É neste arcabouço teórico
que buscamos aportes para discussões de polêmicas contemporâneas brasileiras, a saber:
a relação do negro consigo mesmo, a educação em nível fundamental, os atos
governamentais institucionalizados e as relações raciais nos mais altos estratos da
profissionalização acadêmica - estas últimas, inevitavelmente atravessadas pela
ideologia do mérito, perduram obscurecidas, silenciadas nas práticas contemporâneas
brasileiras.
Palavras-chave: Ideologia; Negros; Reificação; Reconhecimento, Teoria Crítica
REIFICATION IN AXEL HONNETH: ARTICULATIONS WITH BRAZILIAN
RACIAL CONTEXT
Abstract
In this work, we argue that the theories of Axel Honneth's existential mode of
recognition contribute in a fruitful way to think about race relations in Brazil, which
match well with the impression of his own image, as with the expression of the
legitimacy of the other interactive relationships. In this theoretical framework we seek
contributions to Brazilian contemporary and controversial discussions, namely: the
relation of black with himself, education in fundamental level, the government acts
institutionalized and race relations in the highest strata of academic professionalization the latter, inevitably traversed by the ideology of merit, persist obscured, silenced in
Brazilian contemporary practices.
Keywords: Ideology; African-descendants; Reification; Recognition, Critical Theory.
1
Psicóloga, Mestre em Psicologia (UFSJ), Doutoranda em Psicologia Social (PUC/SP) e
membro do NEPIM – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Identidade-Metamorfose,
pesquisando relações raciais e docência universitária.
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RÉIFICATION EN AXEL
RACIALES BRÉSILIEN
HONNETH:
JOINTS
ET
DES
ORIGINES
Résumé
Dans cet article, nous soutenons que les théorisations d'Axel Honneth du mode
existentielle de reconnaissance contribuent manière fructueuse à penser les relations
raciales au Brésil, qui correspondent tant à l'impression de sa propre image, quant à
l'expression de la légitimité des autres relations interactives. C’est dans cette cadre
théorique que nous cherchons des contributions aux discussions contemporaines des
controverses brésiliens, à savoir: la relation du noir avec lui, l'éducation en niveau
fondamental, les actes gouvernement institutionnalisés et inévitablement les relations
raciales dans les plus hautes strates de la professionnalisation académique - ces
dernieres inévitablement traversé par l'idéologie du mérite, de s'attarder obscurci,
silence dans les pratiques contemporaines brésiliennes.
Mots-clés: Idéologie; Noir, réification, Reconnaissance, théorie critique.
REIFICACIÓN EN AXEL HONNETH:
CONTEXTO RACIAL BRASILEÑO
ARTICULACIONES
CON
EL
Resumen
En este trabajo, defendemos que las teorías de Axel Honneth de modo existencial del
reconocimiento contribuyen de manera intensa para pensar las relaciones raciales en
Brasil, que conducen tanto con la impresión del imagen mismo, cuanto con la expresión
de legitimidad del otro en las relaciones interactivas. Es este contexto vamos a buscar
aportes para las discusiones de polémicas contemporáneas brasileñas, a saber: la
relación del negro consigo mismo, la educación en nivel básico, los actos
gubernamentales institucionalizados y las relaciones académicas - las últimas,
inevitablemente atravesadas por la ideología del mérito siguen oscurecidas, silenciadas
en las prácticas contemporáneas brasileñas.
Palabras- clave: Ideología; Negros; Reificación; Reconocimiento, Teoría Crítica.
O CONCEITO DE REIFICAÇÃO EM HONNETH
Durante as décadas de 20 e 30 do século passado, o conceito de reificação foi
bastante difundido em função das experiências históricas vividas pelos países de língua
alemã. Inicialmente encontrado nos textos de Karl Marx, Max Weber e Georg Simmel,
foi posteriormente desenvolvido por Georg Lukács (Honneth, 2007b) e incorporado
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como uma das categorias essenciais entre os autores da Teoria Crítica da Sociedade
(Melo, 2010).
Originalmente, a ideia central diz respeito às formas pelas quais as vivências
pessoais são transformadas situações instrumentais (Trevisan et al. 2010) ou seja, a
coisificação dos indivíduos pelo avanço do capital2, através de práticas nas quais estes
últimos não são tratados de acordo com suas qualidades humanas, mas como objetos
insensíveis, mercadorias passíveis de consumo (Honneth, 2007b).
Axel Honneth irá realizar uma reatualização do conceito de Lukács, sem no
entanto retornar às premissas do marxismo ocidental – levando-se em consideração que
suas raízes teóricas repousam sobre o pensamento habermasiano:
Habermas empreendeu, a partir dos anos setenta do século passado, com base na
linguistic turn, uma verdadeira reviravolta no modo de fundamentação da teoria
crítica da sociedade: sua tese do entendimento comunicativo como telos
imanente à ação humana conduziu-o a revisar o significado e o papel de
conceitos centrais da tradição do marxismo ocidental, como os conceitos de
trabalho social e reificação humana. Não há dúvida de que tal pensamento serve
como fonte principal de inspiração a Honneth, hoje talvez o principal herdeiro
desta longa tradição intelectual, tanto para sua exegese do conceito lukácsiano
de reificação como à sua tentativa de atualizá-lo (Dalbosco, 2011, p. 34, grifos
do autor).
No texto Reificación: um estúdio em la teoria del reconocimiento, Honneth
(2007b) irá reatualizar o conceito a partir da noção cunhada por Lukács, recuperando o
potencial crítico destes pressupostos no presente, ainda que de maneira modificada.
Lukács partiu do fenômeno da ampliação da troca de mercadorias para pensar o quanto
as pessoas se vêm reciprocamente forçadas a se relacionarem tanto com os indivíduos
quanto com os objetos do mundo circundante somente como coisas potencialmente
lucrativas (Melo, 2010).
2
Segundo Melo (2010, p. 234, grifos do autor) ao apontar o fenômeno da reificação como
resultado do ‘fetichismo da mercadoria’, Marx já tinha diante dos olhos a experiência de um
capitalismo relativamente avançado [...] em que os processos de produção, levados a um alto
grau de desenvolvimento, criariam relações impessoais de socialização. Pois quando o mundo
das mercadorias se impõe de forma eficaz diante dos homens e os sujeitam às suas próprias leis
de reprodução (como no caso sublinhado por Marx, da autovalorização do capital) os sujeitos
passam a adotar atitudes como se esse mundo externo da produção fosse o mundo da própria
natureza, de modo que a relação entre homens – se transforma numa relação entre coisas.
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Segundo Honneth (2007b), Lukács demarca três dimensões essenciais por meio
das quais se podem compreender o fenômeno: a relação com o mundo objetivo na qual
os objetos são vistos como coisas; a relação com a sociedade em que os indivíduos
enxergam seus parceiros de interação como objetos; a reificação do sujeito consigo
mesmo, quando as próprias características pessoais são utilizadas como meros recursos
para obtenção do lucro.
Entretanto, estas formas nas quais a reificação se exprime (em acordo com o
conceito formulado por Lukács) são consideradas por Honneth (2007b) muito centradas
no contexto economicista, de maneira que todas as esferas da vida seriam atingidas pela
expansão do capitalismo e o fenômeno se restringiria a uma dimensão ontologizante do
processo:
É preciso atentar nesse ponto para um dos aspectos mais importantes da
reatualização do conceito de reificação. Assim como Habermas, também
Honneth pretende reformular tal conceito evitando um reducionismo
funcionalista em que a teoria crítica, desenvolvida tanto a partir de Marx como
de Lukács, permanecia presa a uma imagem de sociedade entendida
essencialmente a partir do trabalho, uma vez que analisaram a sociedade e os
fenômenos da reificação com base no conjunto das relações de produção (Melo,
2010, p. 237, grifos do autor).
É a partir deste debate que Honneth (2007b) irá empreender sua reelaboração do
conceito, afirmando posteriormente em um novo texto, a necessidade de se distanciar de
um paradigma produtivista por acreditar que o sentido puramente ontológico do
conceito tenha abrangência limitada:
Sob ‘reificação’, eu não gostaria de ver entendido, tal como acontece em geral
hoje no emprego do conceito, apenas uma postura ou ação através da qual
outras pessoas são ‘instrumentalizadas’; [...] Diferente da ‘instrumentalização’,
a reificação pressupõe que nós nem percebamos mais nas outras pessoas as suas
características que as tornam propriamente exemplares do gênero humano:
tratar alguém como uma ‘coisa’ significa justamente torná-la (o) como ‘algo’,
despido de quaisquer características ou habilidades humanas. Possivelmente a
equiparação do conceito de ‘reificação’ ao de ‘instrumentalização’ só ocorra
com tanta freqüência porque com ‘instrumentos’ nós normalmente nos
referimos a objetos materiais; mas isto leva a perder de vista que aquilo que
torna pessoas adequadas a serem utilizadas como instrumentos para fins de
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terceiros geralmente são suas características especificamente humanas
(Honneth, 2008, p. 69-70, grifos do autor).
A abordagem honnetiana opera um deslocamento do ponto de referência
conceitual em relação à Lukács, de forma que a reificação é considerada no nível do
agir social (práxis intersubjetiva) e sua reconstrução teórica elege contemplação e
indiferença como conceitos-chave ao entendimento dessa nova leitura:
Aqui, “contemplação” não significa tanto a postura de quem está absorto ou
concentrado na teoria, mas uma atitude de observação paciente, passiva; e
indiferença quer dizer que o agente já não está afetado emocionalmente pelo
que ocorre, mas deixa acontecer sem se implicar de fato, apenas observa
(Honneth, 2007b, p. 29, tradução nossa).
Para o autor, a reificação caracteriza-se essencialmente pelos aspectos de
contemplação e indiferença, produzindo transformações expressivas nos atos sociais, de
forma que os indivíduos não mais participam ativamente dos eventos, comportando-se
como meros expectadores. A atitude contemplativa exprime, portanto, uma postura de
“observação neutra” (Melo, 2010), na qual os indivíduos tornam-se passivos aos
acontecimentos; ao passo de que a indiferença demarca a não existência de engajamento
ou interesse, não sendo afetados psíquica ou existencialmente pelo evento. Dessa forma
as relações pessoais e os próprios predicados individuais são empreendidos com
indiferença, sem qualquer vestígio de atitude emotiva ou de implicação; isto é, são
vistos como se tivessem “qualidades de coisa” (Trevisan; Rossatto, 2010).
Ainda inspirado na tese de Lukács, Honneth (2007b) irá compreender a
reificação como segunda natureza humana, mas não de maneira exclusivamente ligada à
esfera econômica. Segundo o autor, a percepção reificante está tão impregnada no
cotidiano que se transforma em hábito durante o processo de socialização, em tal grau
que é capaz de determinar comportamentos individuais, atingindo todo o espectro da
vida humana.
Por isso, Honneth (2008, p. 72) indica que sua intenção representa a tentativa
“[...] de chamar atenção para o caráter não-epistêmico desta forma de reconhecimento”,
buscando mostrar que existe uma condição apriorística de assunção da perspectiva do
outro, denominada por ele “reconhecimento elementar” (Honneth, 2007b, 2008).
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Baseado em John Dewey3, o autor compreende a experiência de uma atitude
intersubjetiva de envolvimento existencial consigo mesmo e com o Outro, que possui
anterioridade genética e categorial em comparação a todas as outras atitudes do sujeito.
É uma forma de experiência originária de todas as outras vivências, caracterizada pela
proximidade, não-distanciamento e engajamento prático com os próprios desejos e com
o mundo circundante.
Partindo destes pressupostos, o autor chega ao raciocínio de que a conduta de
implicação precede a apreensão neutra da realidade, de forma que o “reconhecimento
elementar” precede o conhecimento das coisas, das pessoas e do mundo. Assim, para
que um indivíduo seja capaz colocar-se na perspectiva de um Outro, é necessária uma
forma de reconhecimento não apreendida através das capacidades cognitivas ou
epistêmicas, mas por um momento prévio de abertura emocional, identificação e
implicação afetiva:
No processo de formação individual, a criança deve haver-se identificado em
um primeiro momento com as pessoas de referência, deve tê-las reconhecido
emocionalmente antes de poder alcançar um conhecimento da realidade objetiva
mediante as perspectivas dos outros (Honneth, 2007b, p. 72).
Reconhecer (to acknowledge)4 significa implicar-se, adotar uma postura na qual
as manifestações de conduta de uma segunda pessoa possam ser entendidas como
requisitos para reagirmos de uma maneira determinada, seja através de ações e
3
Honneth (2007b) utiliza como base teórica o pensamento de John Dewey para realizar a
transição teórica do conceito de “cura”, elaborado por Heidegger, “implicação” em Lukács, ao
de “reconhecimento”, inspirado na obra de Heggel, buscando condensar elementos teóricos
pertinentes para defender a tese da precedência de um interesse existencial pelo mundo.
Segundo o autor, “em dois trabalhos fascinantes [...] John Dewey delineou em sua teoria uma
concepção da relação original do homem com o mundo que, inesperadamente, se assemelha em
vários pontos às idéias de Lukács e de Heidegger. As reflexões de Dewey desembocam na
afirmação de que toda compreensão racional da realidade está ligada previamente a uma forma
holística da experiência, na qual todos os dados de uma situação são acessíveis qualitativamente
a partir de uma perspectiva de compromisso interessado. Se seguirmos esta linha de pensamento
suficientemente, falamos de uma justificação não só para a transição do conceito de “cura” ao
de “reconhecimento”, mas também podemos demonstrar a primazia de tal reconhecimento sobre
todas as atitudes cognitivas frente ao mundo” (Honneth, 2007b, p. 52, tradução nossa).
4
Aqui Honneth (2007b) parte do conceito acknowlegement elaborado por Stanley Cavell, para
esclarecer o sentido que pretende dar à categoria “reconhecimento elementar”.
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sentimentos amistosos ou de críticas negativas, de forma que haja uma atitude mínima
de confirmação intersubjetiva (Honneth, 2007b).
A postura de reconhecimento elementar pode ser vista como uma atitude prática,
disponível por hábito no contexto societário, cuja realização faz-se essencial para
podermos ter acesso a um saber acerca de si mesmo, das outras pessoas e do mundo.
Igualmente, “[...] significa a expressão da valorização do significado qualitativo que
possuem outras pessoas ou coisas para a realização de nossa existência” (Honneth,
2007b, p. 56, tradução nossa), de forma que ela não implica num assentimento positivo
dos valores do Outro, mas no fato de re-conhecer, respeitar, enxergar o Outro como
parceiro legítimo nas atitudes de interação, ou seja, a aceitação de determinadas
qualidades ou capacidades de outras pessoas, a partir de um momento prévio de
implicação afetiva.
Honneth (2007b, 2008) então defende a tese de que a reificação implica no
esquecimento do reconhecimento elementar, de maneira que a incapacidade de
reconhecer passa a significar em última instância, a falta de condições de manter
relações sociais não-distorcidas.
Esquecimento não tem o sentido de desaprender ou simplesmente subtrair da
consciência os sentidos e significados compreendidos na vivência do reconhecimento
elementar, mas uma diminuição da atenção que relega a um segundo plano tais
experiências: “a reificação no sentido de um esquecimento do reconhecimento, significa
então, na relação intersubjetiva do conhecer, perder de vista o fato de que este
conhecimento se deve a um reconhecimento prévio” (Honneth, 2007b, p. 96).
Na reificação, o sujeito deixa de reconhecer o outro como próximo,
[...] é anulado aquele reconhecimento elementar que geralmente faz com que
nós experimentemos cada pessoa existencialmente como o outro de nós
mesmos, queiramos ou não, nós concedemos a ele pré-pedicativamente [sic]
uma auto-relação que partilha com a nossa própria a característica de estar
voltada emocionalmente para a realização dos objetivos pessoais. Se este
reconhecimento prévio não se realizar, se não tomamos mais parte
existencialmente no outro, então nós o tratamos repentinamente apenas como
um objeto inanimado, uma simples coisa [...] (Honneth, 2008, p. 75).
Para Honneth (2007b) existe a possibilidade de uma percepção reificada em três
diferentes dimensões: objetiva (percepção reificada do mundo físico), intersubjetiva
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(percepção reificada do mundo social) e subjetiva (percepção reificada de si), embora
não haja necessariamente uma conexão entre todos os modos de apresentação do
fenômeno.
A gênese das diferentes relações de reconhecimento está intrinsecamente
articulada ao processo de socialização, no qual ocorre a formação do indivíduo na
relação consigo mesmo, com o Outro e com o mundo circundante, mas não
necessariamente o indivíduo que apresente uma percepção reificada de si, concretiza
esta perspectiva nas ações com o Outro (Honneth, 2007b).
Isto porque o esquecimento do reconhecimento está relacionado às práticas ou
mecanismos sociais na forma como eles se apresentam, os quais agem sistematicamente
para possibilitar ou perpetuar o fenômeno da reificação, ocorrendo de maneira distinta
em relação aos intrasubjetivos e subjetivos, como veremos adiante.
Apenas a reificação do mundo objetivo está fundamentalmente conectada ao
fenômeno em seu aspecto intrasubjetivo, pelo fato de que em sua gênese, a percepção
reificada do mundo físico deve ser entendida como uma derivação do reconhecimento
do mundo social. Para comprovar esta assertiva Honneth (2007b), apropria-se do
pensamento de Adorno, afirmando que o acesso cognitivo ao mundo objetivo só ocorre
diante da identificação com figuras de referência, ou seja, somente é possível falar de
reconhecimento em relação a objetos quando o Outro nos orienta à percepção do mundo
físico diante dos aspectos e significados por ele atribuídos.
Assim, a reificação objetiva ocorre quando os indivíduos passam a não
reconhecer as sensações subjetivas possíveis acerca dos objetos não humanos, bem
como os significados atribuídos a eles, percebendo-os apenas como instrumentos
despidos de qualquer outro tipo de sentido:
Como no caso da reificação dos seres humanos, ocorre aqui também uma classe
especial de cegueira do conhecer: percebemos os animais, as plantas ou as
coisas identificando-os somente como coisas, sem ter em conta que possuem
uma multiplicidade de significados existenciais para as pessoas que nos rodeiam
e para nós mesmos (Honneth, 2007b, p. 104, tradução nossa).
Já a dimensão intersubjetiva caracteriza-se por um tratamento instrumental do
Outro, uma postura ou forma de conduta que distorce nossa perspectiva, criando um
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tipo de hábito de pensamento, em virtude do qual as pessoas perdem sua capacidade de
implicação com o mundo:
Ela funciona como uma espécie de capa de dessensibilização para que o
indivíduo não sinta compaixão pelo outro, levando-o assim, à perda da atitude
original com ele e com seu entorno social (Trevisan; Rossato, 2010, p. 278).
Nesta dimensão, existem duas causas possíveis para a adoção do comportamento
reificante: quando as pessoas participam de uma práxis social na qual a mera
observação do Outro se torna um fim em si mesma e, neste caso, a consciência acerca
do engajamento existencial se perde; ou quando seus atos passam a ser governados por
um sistema ideológico de convicções, o que automaticamente impõe aos indivíduos
uma denegação do reconhecimento elementar (Honneth, 2007b).
No primeiro caso, temos a participação dos indivíduos numa práxis unilateral,
exercida de forma tão contínua que seu objetivo imediato autonomiza-se e leva à
reificação, relegando as referências apreendidas no processo de socialização. Aqui, a
ação (de observação) torna-se mais importante do que as referências de mundo que a
antecederam, ocasionando o esquecimento do reconhecimento elementar.
No segundo caso, na execução da práxis rotineira, o indivíduo está envolvido
por sistemas ideológicos de convicções tão socialmente efetivos, que o conduzem a uma
cegueira sistemática da condição humana de determinados grupos de sujeitos,
normalmente sustentada por preconceitos e estereótipos vigentes. Neste caso o autor
refere-se não a um tipo de esquecimento, mas a uma condição de “negação ou
resistência” do reconhecimento elementar (Honneth, 2007b).
A percepção reificada de si, ou dimensão subjetiva do fenômeno é denominada
por Honneth (2007b) autorreificação e diz respeito à vivência distorcida adotada pelo
sujeito em relação aos próprios desejos, sensações e vontades, de modo que estes são
experimentados de duas formas: ou como elementos fixos e rígidos, definitivamente já
existentes e prontos para serem descobertos; ou como se tais sentimentos e desejos
fossem simplesmente produtos de nossa vontade, instrumentos a serem dispostos de
acordo com as necessidades da situação apresentada.
De qualquer maneira, no processo de autorreificação os próprios desejos,
sensações e sentimentos são tratados como elementos que podem ser observados
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passivamente ou produzidos ativamente (Honneth, 2007b), de acordo com uma
condição “interesseira” (Habermas, 1983).
Para Honneth (2007b), a principal causa social da reificação passa pelas práticas
institucionalizadas, que sugerem um modelo de apresentação de si padronizado, em
acordo com as exigências hegemônicas. No contexto atual, diversas instituições exigem
dos sujeitos formas públicas de apresentação que se adequem a uma gama desmedida de
expectativas. Neste processo, cada vez mais os indivíduos são impelidos a simular
sensações ou a fixar determinadas características de forma conclusiva, como se as
próprias qualidades fossem objetos manipuláveis. A exemplo disto, temos os sites de
busca de pares amorosos, as entrevistas de emprego ou determinadas redes de
prestações de serviço que impõem diversas exigências, potencializando uma
apresentação estereotipada de si na arena pública.
A consequência disto é uma instrumentalização subjetiva, que ocasiona a
simulação de sensações e a re-produção de padrões estereotipados de personalidade
visando interesses específicos e produzindo indivíduos presos a identidades
convencionais (Habermas, 1983) – que no afã de serem reconhecidos pelo exogrupo,
ignoram os próprios anseios, desejos ou sentimentos, tratando-os como elementos
indignos de atenção.
REIFICAÇÃO DE HABERMAS A HONNETH
Do mesmo modo que a relação intersubjetiva dos indivíduos com o mundo não
deve ser entendida como uma mera apreensão cognitiva dos objetos, a relação do
indivíduo consigo mesmo não deve ser concebida como um mecanismo completamente
independente, mas como uma construção articulada ao processo de socialização, na qual
as vivências intersubjetivas, à medida em que ocorrem, constituem vivências psíquicas,
sentimentos e desejos em relação a si mesmo como componentes do mundo da vida
compartilhados mediante a linguagem (Honneth, 2007b).
Aqui podemos situar articulações e tensões possíveis em relação ao pensamento
de Honneth e de Habermas.
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Diferentemente de Habermas (2002), Honneth defende a tese de que o tecido da
interação social não se constitui através do ato cognitivo, mas pelo reconhecimento
elementar (Dalbosco, 2010). Mas Honneth (2007b) não ignora a importância do
desenvolvimento cognitivo ao processo de socialização (desenvolvido por Mead); ele
antepõe, como condição necessária à construção do pensamento simbólico, a relação
reconhecimento em sua dimensão existencial.
Com Mead (1973) Honneth (2007b) reitera o fato de que a gênese das
capacidades de interação ocorre pelo mecanismo de “adoção de perspectiva”, citando
inclusive a leitura habermasiana do autor. Para ele, a compreensão dos códigos sociais
compartilhados torna-se elemento essencial à formação das primeiras relações
comunicativas, pois o indivíduo só toma consciência de si mesmo na condição de objeto
“[...] na medida em que ele aprende a perceber sua própria ação da perspectiva,
simbolicamente representada, de uma segunda pessoa” (Honneth, 2003, p. 131).
Tal acepção remete às elaborações de Mead (1973) sobre o processo de
socialização, que ele ilustra também a partir da atividade lúdica infantil denominada
play, diante da qual o indivíduo torna-se capaz de adquirir consciência das próprias
ações a partir da relação com um Outro. Temos então, que na medida em que o sujeito
consegue colocar-se na perspectiva do Outro e perceber o mundo através dela, também
será capaz de compreender os objetos como entidades de um mundo que existe
independentemente de nossos comportamentos individuais (Honneth, 2007a).
A crítica de Honneth (2007b) ao trabalho de Mead (1978), diz respeito ao fato
dele considerá-lo um autor que apresenta certa propensão ao cognitivismo, pelo fato de
não demarcar a importância do investimento afetivo da criança para com as pessoas de
referência na gênese do processo de socialização.
Neste sentido Honneth (2007b) complementa suas asserções com os estudos de
Peter Hobson, Michael Tomasello e Adorno, partindo do pressuposto de que no
surgimento das atividades intelectuais (a partir do ponto de vista comunicativo), a carga
emocional investida no Outro constitui a condição necessária para permitir a adoção de
perspectiva que leva ao desenvolvimento do pensamento simbólico. Assim, não é
possível um processo de aprendizagem interativo sem o anterior desenvolvimento de
um sentimento primário de afinidade com as pessoas de referência, pois:
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Colocar-se na perspectiva da segunda pessoa requer uma forma de
reconhecimento que não pode ser plenamente apreendida a partir de conceitos
cognitivos ou epistêmicos, porque contém sempre um momento de abertura,
entrega ou amor involuntários (Honneth, 2007b, p. 69, tradução nossa).
Dessa forma, Honneth (2007b) sustenta que a capacidade cognitiva (ou racional)
de tomada de perspectiva diante do Outro está intrinsecamente relacionada a uma forma
de interação prévia, a saber, o conceito de reconhecimento elementar.
E esta condição transcendental de reconhecimento atua como pressuposto à
socialização dos indivíduos. Logo,
No processo de socialização, indivíduos aprendem a interiorizar as normas de
reconhecimento específicas da respectiva cultura; desse modo eles enriquecem
passo-a-passo aquela representação elementar do próximo, que desde cedo lhes
está disponível por hábito, com aqueles valores específicos que estão
corporificados nos princípios de reconhecimento vigentes (Honneth, 2007b, p.
74, tradução nossa).
Para Honneth o propósito teórico do conceito se assenta em pensarmos este
reconhecimento elementar como uma condição apriorística, à luz do qual serão postos
estágios de reconhecimento cada vez mais sofisticados, encontrando uma forma de
interligar a dimensão existencial do reconhecimento aos propósitos de uma Luta pelo
Reconhecimento (Honneth, 2003), tal como ele a desenvolveu eu seu texto anterior.
A REIFICAÇÃO NO TERRENO DA PRÁXIS
Em Honneth (2007b; 2008), o conceito de práxis não se reserva apenas ao
terreno da atividade produtiva (como em Lukács ou Marx). Utilizando-se de uma base
teórico-crítica habermasiana, o autor amplia o conceito de práxis aos termos de uma
atitude intersubjetiva - que inclui tanto a esfera pública e as relações políticas de
reconhecimento quanto suas dimensões existenciais aqui delineadas. Além disto, como
autor referenciado nos parâmetros de uma Teoria Crítica, Honneth também visa uma
leitura crítico-emancipatória dos fenômenos, assim como seu antecessor.
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Dessa forma, a própria reificação situa-se no terreno da práxis, relaciona-se às
patologias da intersubjetividade humana e suas manifestações nas rotinas diárias do
vivido (Trevisan; Rossatto, 2010). Aqui, a construção identitária dos indivíduos fica
atrelada à condição do reconhecimento elementar, bem como às vicissitudes deste
processo.
Com Honneth (2007b) consideramos que a raiz de toda a sociabilidade humana
reside no reconhecimento elementar. Somente esta experiência irá levar o indivíduo a se
compreender e apreender os Outros como sujeitos de intencionalidade, ou seja, sujeitos
humanos. De forma que a própria construção do self é gerada a partir das dimensões
existenciais do reconhecimento5 (Saavedra, 2008) – e corroborada a partir do
desenvolvimento cognitivo da linguagem – já que esta condição elementar é também
fundadora da condição humana em Honneth (2007b).
Compreender o destino das dimensões existenciais do reconhecimento significa
também compreender como se dão as relações afetivas originalmente estabelecidas
pelos indivíduos, que, como elementos fundadores da percepção sobre o mundo e sobre
si, têm um papel essencial na formação das capacidades interativas necessárias às ações
emancipatórias.
Ao explicitarmos a forma como tais relações se estabelecem, supomos também
esclarecer a gênese de uma capacidade reflexiva essencial para a percepção das
exigências da realidade: a forma como se dá a constituição das expectativas morais que
serão expostas nas relações comunicativas. Pois de acordo com Honneth (2008) o
reconhecimento elementar opera como pressuposto essencial à apropriação de valores
morais, diante dos quais poderemos reconhecer o outro de uma forma determinada,
normativa.
Por conseguinte propomos uma articulação conceitual que inclua dimensões
existenciais do reconhecimento apontadas por Honneth (2007b; 2008), devidamente
aplicada à realidade sócio-racial do contexto acadêmico brasileiro.
5
A partir de textos inéditos e ainda não traduzidos do alemão, Saavedra (2008) - orientando de
Honneth - conduz uma análise ativa da obra honnetiana sobre o conceito de reificação,
chegando a este raciocínio.
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NOVOS PARÂMETROS AO CONCEITO DE AUTONOMIA
A reificação em sua dimensão existencial (Honneth, 2007b) constitui, portanto,
uma postura ou forma de conduta que distorce nossa perspectiva, distorce nosso olhar
diante do universo. Ela pode evidenciar a abjeção (no sentido de degradação) da
condição humana do Outro, dos próprios sentimentos e desejos, bem como dos
significados existenciais atribuídos aos objetos não humanos.
A percepção reificante em sua dimensão existencial torna-se um hábito tão
impregnado no cotidiano que acaba determinando comportamentos individuais dos
sujeitos. E, se a construção do self é gerada a partir das dimensões existenciais do
reconhecimento (Saavedra, 2007b), para que as relações no contexto da práxis sejam
menos assimétricas, faz-se mister a superação da reificação em sua dimensão
existencial, já que esta opera na difusão e solidificação de práticas que agem
sistematicamente para manter relações desiguais no contexto vigente (Honneth, 2007b).
Vejamos agora como esta conceituação pode ser articulada ao contexto sócioracial brasileiro.
O MODO EXISTENCIAL DE REIFICAÇÃO E SEUS EFEITOS NO
CONTEXTO RACIAL BRASILEIRO: APORTES PARA DISCUSSÕES DE
POLÊMICAS CONTEMPORÂNEAS
A reificação em Honneth (2007b) representa uma postura que distorce nossa
perspectiva, evidenciando a degradação da condição humana do Outro e, por
consequência, dos objetos com significados existenciais e/ou de si mesmo.
Segundo Honneth (2007b) o núcleo da reificação reside no esquecimento do
reconhecimento. Neste sentido o processo de reificação não se relaciona diretamente à
sua gênese, mas à solidificação das práticas ou mecanismos sociais que, quando se
transformam em hábitos tornam-se tão cristalizados que impedem o acesso original ao
significado qualitativo que possa ter o próximo ou mesmo os próprios sentimentos e
desejos. Afirma Melo (2010) que a tarefa fundamental da teoria crítica é buscar suas
fontes sociais nas práticas e mecanismos que perpetuam este tipo de reconhecimento.
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Compreendemos a partir dessa articulação que a reificação pode ser ocasionada
pela instituição de práticas sociais que impedem o acesso à condição existencial de
reconhecimento ou reconhecimento elementar – como designado por Honneth (2007b;
2008).
Como já vimos anteriormente, na dimensão subjetiva do conhecer ou
autorreificação, o sujeito adota uma vivência distorcida em relação aos próprios desejos,
sensações e vontades, tratando-os como elementos fixos e pré-determinados ou como
instrumentos (Honneth, 2007b). Neste caso, as práticas relacionadas são operadas pelos
próprios sujeitos, como a simulação de sensações e/ou a reprodução de padrões de vida
estereotipados. Aqui, a percepção reificada de si implica na adoção de uma postura de
observação em relação às próprias pretensões e desejos, que ocasiona a
instrumentalização da subjetividade através do esquecimento dos próprios reclames
individuais (Honneth, 2007b) ambicionando maior aceitabilidade no contexto social.
Esta discussão nos remete à condição heterônoma de vida dos sujeitos, que, ao
reproduzirem um padrão de vida pressuposto pela sociedade, confirma uma espécie de
sentença que se realiza pela interiorização dos conteúdos convencionados pelo sistema
normativo. A situação de heteronomia se expressa pela recusa de uma identidade que vá
para além das convenções e estereótipos prescritos.
Facilmente identificamos a complexa situação dos negros que se omitem em
relação à própria condição racial ou simplesmente renegam-na. Souza (1983), em seu
brilhante texto Tornar-se negro, discute a conquista da ascensão social paga ao preço do
massacre da própria identidade. Aqui, a deformação da própria existência ocorre através
de um mecanismo subjetivo de inferiorização e/ou supressão da própria condição racial,
concretizando a submissão a um código de comportamento que denega a própria
imagem corporal e materializa a figura racista do “negro de alma branca”.
No depoimento seguinte, retirado das elaborações da autora, podemos perceber
claramente como o modo existencial de reconhecimento é esquecido em função de uma
prática na qual a condição de artista toma relevo no processo identitário; para corroborar
a negativa da própria condição racial: “Eu estava crescendo como artista e então ia
sendo aceito. Aí eu já não era negro. Perdi a cor [...] Eu era aceito sem cor e ia
vivendo. Esse jogo era meu jogo também” (Souza, 1983, p. 65).
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Muitas são as estratégias elencadas pela autora, dentre elas, a aceitação da
mistificação dada pela perda da cor, negação das tradições negras ou simplesmente a
omissão de um posicionamento em relação à discussão racial.
De qualquer forma, vale demarcarmos que quando ocorre a autorreificação, o
indivíduo torna-se incapaz de se expressar em suas pretensões de validade, porque há
uma instrumentalização subjetiva, visando uma aceitação por parte do exogrupo. Esta
instrumentalização é resultado de um processo socializador carregado de contradições,
do qual o negro torna-se produto, vitimando-se em função dos ditames sociais.
Já a dimensão intersubjetiva do processo de reificação torna evidentes os
impedimentos societários aos objetivos emancipatórios dos sujeitos, como veremos
adiante. Para Honneth (2007b), em tal dimensão o tratamento instrumental do outro é
gerado por um tipo de hábito de pensamento tão recorrente que a consciência sobre o
engajamento existencial acaba se dissipando ou é denegada.
No primeiro caso (quando a consciência se dissipa, ou seja, ocorre o
esquecimento do reconhecimento), o hábito de pensamento materializa-se, suscitando
uma práxis social em que a mera observação do outro se torna um fim em si mesma.
Neste contexto, toda a consciência do engajamento existencial é esquecida, de modo
que a prática se converte em algo unilateral, cristalizado e autônomo (2007b, 2008). É o
caso dos atos de guerra, mencionados pelo autor:
[...] em tais contextos é possível ver ou ler como, no transcurso dos
acontecimentos, a finalidade da destruição do adversário se autonomiza a tal
ponto, que mesmo na percepção de pessoas não participantes [...]
gradativamente se perde toda a atenção para suas características humanas; no
final, todos os membros dos grupos que presuntivamente são atribuídos ao
inimigo são considerados apenas como objetos inanimados, coisificados, face
aos quais a morte ou violação são justificadas sem dificuldade (Honneth, 2008,
p. 76, grifos nossos).
Sobre esta questão, podemos associar as diferentes práticas institucionalizadas
de discriminação descritas por Munanga (1990). Segundo este autor, o racismo de
assimilação corrobora-se através de práticas de imposição cultural, religiosa e de certos
costumes, cujos efeitos podemos perceber de forma clássica no etnocídio indígena e das
culturas negras que migraram para o Brasil na condição escravista.
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Mas estas práticas também podem ser percebidas em atitudes um tanto sutis,
quando, a partir da introdução de determinados costumes, padrões de beleza e da
homogeneização da imagem do povo brasileiro, os resquícios culturais advindos da
diáspora negra são relegados à mera folclorização. Desse modo acaba ocorrendo, ainda
que de maneira velada, uma resistência dos professores do ensino fundamental a
aprenderem e lecionarem disciplinas renovadas, incluindo a resolução de impasses em
situações discriminatórias, ao invés da valorização da cultura negra no cotidiano das
crianças, para além das comemorações pontuais de 13 de maio e 20 de novembro
(Santana; Alves, 2010).
Com relação a isto, o maior reclame e preocupação dos professores diz respeito
à própria formação. Entretanto, o que se verifica muitas vezes é um imobilismo em
relação à equipe, pois pouco é feito para que este quadro se modifique. Para Santana e
Alves (2010), a educação escolar entra numa crise de sentido com a instituição da lei
10639/03 e a falta de uma ação mais concreta por parte dos professores (que acaba
sendo justificada pelo desconhecimento do tema) reforça a manutenção de práticas
pedagógicas assentadas em princípios de homogeneidade e, portanto, de imposição
cultural.
Avaliamos, por conseguinte, que o foco excessivo na condição professoral e o
temor por uma atitude de desconhecimento perante os alunos, ocasionam resistência por
parte dos professores em apreenderem algo novo, fato que implica em se colocarem na
condição de “construtores de saberes” e não de “meros portadores do conhecimento” –
como discute Chauí (1981).
Por consequência, as demandas acerca da discussão racial tanto na teoria quanto
na prática escolar são ignoradas, a despeito de uma postura pretensamente “neutra” que
ignora os conflitos e as peculiaridades acerca deste segmento. Com efeito, reitera-se a
marginalização dos valores das culturas negras pela via da exclusão, de maneira que o
debate sobre as diferenças é neutralizado, ignorado (Santana; Alves, 2010) e como
resultado a própria condição humana dessas crianças é relegada – pois uma formação
humanizante implica também na compreensão acerca das características que
singularizam os grupos sociais.
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Assim, as atitudes de resistência ao cumprimento da lei 10.639/03 também
contribuem ao etnocídio da cultura negra, afinal de contas, não há nada mais
efetivamente violento do que a omissão da história de um povo e suas raízes às gerações
futuras, objetivando sua morte cultural e a manutenção de uma história do Brasil que
sustente as contribuições afro-diaspóricas como algo estritamente acessório.
As práticas que perpetuam o racismo diferencialista também são demarcadas por
Munanga (1990) através da segregação institucionalizada dos diferentes e/ou sua
eliminação física. No âmbito internacional, o fenômeno conhecido como Apartheid
ilustra o caso extremo de segregação instituída, bem como o genocídio aos judeus, por
ocasião da segunda guerra mundial.
Entretanto, afirma o autor, “[...] a segregação por hábito comum é possível até
nos países como o Brasil” (Munanga, 1990, p. 53). Neste contexto, não seria um tipo de
racismo institucionalizado pela segregação física, as imensas estatísticas de pobreza, a
segregação geográfica dos negros às favelas e aos bairros periféricos em comparação à
população não-negra, além, é claro, da histórica falta de acesso ao sistema educacional
de melhor qualidade discutida ao longo deste texto?
Nestes casos, as práticas que sustentam o racismo diferencialista e de
assimilação (Munanga, 1990) demonstram claramente o quanto contribuem perpetuam a
reificação (Honneth, 2007) e podem ser efetivas ao futuro de um segmento; instituindo,
do ponto de vista da sociedade, a simples existência destes sujeitos como algo
inadmissível, em casos mais extremos.
A imagem do diferente torna-se inconcebível aos olhos da sociedade, de forma
que a simples existência e/ou ocupação de determinados lugares sociais apresenta-se
como algo intolerável em acordo com os ditames da política hegemônica, isto é, não há
o reconhecimento intrasubjetivo da condição de sujeitos destes indivíduos.
A segunda proposição de Honneth (2007b), relacionada à denegação do
reconhecimento elementar, diz respeito a situações cotidianas nas quais a aderência a
certos ditames ideológicos leva à rotinização cega de práticas despersonalizantes.
Lembrando que aqui não ocorre o “esquecimento” (Honneth, 2007b), mas a negativa do
reconhecimento elementar, ocasionada pela assunção de preconceitos e estereótipos.
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Podemos facilmente compreender a partir destes parâmetros, o porquê dos
questionamentos tácitos sobre o fato de negros brasileiros estarem ocupando o lugar de
professores, pesquisadores e intelectuais, lugares “inatingíveis” para sujeitos
considerados de acordo com o imaginário dominante, indivíduos historicamente
inferiorizados pela sua condição racial. Perde-se de vista a proposição de humanização
do Outro, de forma que a associação entre raça e inferioridade é quase que automatizada
pelo hábito.
Tais acontecimentos perduram em função de uma ideologia do branqueamento –
muito mais complexa no caso brasileiro, por carregar consigo o mito de democracia
racial. Assim, a academia não se percebe racista, por priorizar de forma prescrita o
discurso do mérito e da não existência do racismo, utilizados como formas de
escamotear, num emaranhado de informações, a verdadeira face do racismo à brasileira
(Pereira, 1998): um racismo cordial – que se converte em racismo acadêmico6, neste
contexto.
O negro no meio acadêmico é relegado a uma espécie de subcidadania (isolado,
questionado e discriminado negativamente), assim como sua condição legítima de
acadêmico acaba sendo obstruída dos olhares pela leitura distorcida de um contexto
racial agonístico – conjuntura que há muito já deveria ter sido superada. A condição de
negro aparece na visão hegemônica, sobreposta à condição de acadêmico, mas ao
mesmo tempo, obscurecida pelo discurso da ideologia do mérito7: prática que constitui,
nesta situação específica, a principal causa da reificação em seu modo existencial.
Segundo Carvalho (2006, p. 08), “existe racismo onde o resultado do convívio social multiracial é a exclusão sistemática e generalizada do grupo racial negro”. O mesmo autor, ao chamar
a atenção para o “racismo acadêmico”, demarca a centenária impunidade de nossas
universidades diante do silenciamento crônico das situações de exclusão racial.
7
No Brasil, o sistema jurídico (do ponto de vista formal) e o discurso de funcionamento da
sociedade estão impregnados pelo ideal do mérito, como política de avaliação do desempenho e
apuração do merecimento, “[...] ideal considerado moralmente correto para toda e qualquer
ordenação social, principalmente no que diz respeito à posição socioeconômica das pessoas”
(Barbosa, 1996, p. 67-68). Contudo, no contexto brasileiro a igualdade fica exclusivamente no
plano das ideias, pois o sistema social de desigualdades é soberano em relação ao ideal jurídico,
ou seja, os sujeitos deveriam nascer “livres e iguais”, mas são discriminados no plano social,
seja pelas relações sociais estabelecidas, pela origem socioeconômica ou pela condição racial. A
consequência disto é que as produções individuais são incomparáveis entre si (Barbosa, 1996),
de forma que toda e qualquer avaliação justificada pelo critério meritocrático, tem em suas
raízes a função de alienar os sujeitos das deficiências estruturais do Estado. O discurso
6
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Esta situação obtusa pode ser ratificada pelo silenciamento sobre a situação de
desvantagem do negro; o qual se deve, em grande parte, ao fato de que a própria
academia não se vê racializada (Carvalho, 2006). Assim, em muitos segmentos ainda é
incontestável a crença de que apenas os critérios de excelência sustentam a configuração
atual (e eminentemente não-negra) de nossas universidades públicas.
(IN)CONCLUSÕES: PENSANDO A QUESTÃO RACIAL A PARTIR DO MODO
EXISTENCIAL DE RECONHECIMENTO
Acreditamos que as teorizações honnethianas acerca do modo existencial do
reconhecimento contribuam de maneira profícua para pensarmos as relações raciais no
Brasil, principalmente a partir da concepção de um momento prévio de implicação
afetiva; inaugurando a ideia de um re-conhecer primordial, que condiz tanto com a
impressão da própria imagem, quanto como a expressão de legitimidade do Outro nas
relações interativas. Vejamos como esta teorização nos pode ser útil.
No caso da autorreificação, ocorre uma instrumentalização subjetiva, de forma
que o indivíduo, produto de um processo socializador estigmatizante, cede aos ideais
hegemônicos, aceitando a mistificação dada pela cor ou omitindo-se em relação a
situações que tangem à discussão racial. Assim, os sujeitos acabam tornando-se
incapazes de se expressarem em suas pretensões de validade, facilitando a manifestação
de atitudes racistas.
Já em ambos os processos descritos para a dimensão intersubjetiva da reificação,
ocorre o seguinte fenômeno: quando não há o reconhecimento intrasubjetivo e, por
vezes, objetivo – pois ambos estão intrinsecamente relacionados segundo Honneth
(2007a) – o processo de assunção da perspectiva do Outro (ou implicação) é denegado
ou esquecido, de modo a ocasionar atitudes de contemplação e indiferença, nas quais o
próximo é tratado como objeto inanimado, degradando sua condição humana (Honneth,
2008). As ações então passam a ser guiadas por relações coercitivas e distorcidas.
meritocrático toma função de instrumento de dominação, estabelecendo-se como ideologia do
mérito (Carvalho, 2006).
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No primeiro caso citado, temos a conversão do reconhecimento elementar numa
prática cega aos ideais de autonomia. Dessa forma, na prática escolar, as demandas
acerca da discussão racial acabam sendo ignoradas, neutralizadas em função de um foco
na condição “professoral”, reiterando a marginalização da cultura negra e ocasionando a
negação de uma formação humanizante às crianças - que implique minimamente na
discussão sobre características que singularizam os grupos sociais.
Já no segundo caso, o lugar ocupado por sujeitos negros na academia constitui,
levando-se em consideração o olhar hegemônico, a representação deformada daquilo
que é tido como adequado, pois a condição de negro e intelectual não é prescrita como
um hábito, de acordo com os procedimentos da norma vigente.
Dessa maneira, o racismo toma espaço em nossa sociedade e manifesta-se a
maioria das situações de modo silencioso, (e por vezes, inexprimível para muitos); de
maneira que a condição de implicação (seja por parte de um Outro, da sociedade ou das
instituições) em relação a este segmento é denegada ou esquecida, ocorrendo o
fenômeno da reificação.
Isto significa, de forma prática, que o preconceito e suas manifestações
continuam vigorando em solo brasileiro, entretanto, prosseguem repetidamente
obscurecidos por atos de contemplação e indiferença. Estes ocorrem tanto por via da
interiorização subjetiva, quanto através das relações sociais e como vimos, a discussão
se estende a temas polêmicos em solo brasileiro quer sejam: a educação em nível
fundamental, os atos governamentais institucionalizados e as relações nos mais altos
estratos da profissionalização acadêmica.
De forma que a condição humana dos negros fica degradada, pois tais indivíduos
não são sequer re-conhecidos como sujeitos; abrindo-se espaços para o estabelecimento
de relações desiguais no cotidiano, que vão desde a violação dos direitos fundamentais
até as ações institucionalizadas de eliminação do segmento.
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Recebido em março de 2013
Aprovado em maio de 2013
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