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CLAUDIA SELDIN DA CAPITAL DE CULTURA À CIDADE CRIATIVA: RESISTÊNCIAS A PARADIGMAS URBANOS SOB A INSPIRAÇÃO DE BERLIM Tese apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor(a) em Urbanismo do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Faculdade da Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Área de concentração: História e Teoria do Urbanismo Orientação: Profª. Drª. Lilian Fessler Vaz (PROURB/FAU-UFRJ) Supervisão do Doutorado Sanduíche na Alemanha: Prof. Dr. Max Welch Guerra (Bauhaus-Universität Weimar) RIO DE JANEIRO – RJ 2015 i S464 Seldin, Claudia, Da capital de cultura à cidade criativa: resistências a paradigmas urbanos sob a inspiração de Berlim/ Claudia Seldin. – Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2015. xi,213f. Il.; 30 cm. Orientador: Lilian Fessler Vaz. Tese (Doutorado) – UFRJ/PROURB/Programa de PósGraduação em Urbanismo, 2015. Referências bibliográficas: p.168-184. 1. Planejamento urbano. 2. Revitalização urbana. I. Vaz, Lilian Fessler. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo. III. Título. CDD 711.4 i CLAUDIA SELDIN DA CAPITAL DE CULTURA À CIDADE CRIATIVA: Resistências a Paradigmas Urbanos sob a Inspiração de Berlim Tese apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor(a) em Urbanismo do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Faculdade da Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Área de concentração: História e Teoria do Urbanismo Aprovada em: 23 de fevereiro de 2015 BANCA EXAMINADORA: ii RESUMO SELDIN, Claudia. Da Capital de Cultura à Cidade Criativa: Resistências a Paradigmas Urbanos sob a Inspiração de Berlim. 224 f. 2015. Tese (Doutorado em Urbanismo) – Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Esta tese de doutorado é escrita a partir do princípio de que para compreender a cidade é necessário considerar sua esfera cultural. Isso é especialmente verdadeiro na época contemporânea, em que a cultura passa a ser utilizada como uma ferramenta para nortear o planejamento urbano. Entre o final dos anos 1970 e início dos 2000, diversas foram as revitalizações urbanas pontuais visando a implantação de equipamentos culturais e complexos de lazer capazes de transformar a imagem de diversas cidades, reavivando economias falidas e gerando modelos emblemáticos de ‘planejamento cultural estratégico’ que seriam perseguidos no mundo inteiro. Tratava-se da busca pelo paradigma da ‘capital de cultura’. Argumentamos aqui que, a partir dos anos 2000, com o fortalecimento de uma economia movida pelo conhecimento e pela provisão de serviços e de bens culturais, começamos a assistir a uma transformação nos discursos que embasam as políticas públicas, que agora passam a perseguir o status da ‘cidade criativa’ – um conceito extremamente influenciado pelo economista estadunidense Richard Florida, que prega a importância de cidades tolerantes e voltadas para a atração de profissionais produtores de capital cognitivo. Nossa pesquisa mostra que este novo paradigma urbano reforça muitos dos problemas e desigualdades gerados pelo anterior, atuando muitas vezes contra os interesses da ‘classe criativa’ que se alega privilegiar. Para ilustrar este argumento, nos aprofundamos em estudos de caso em Berlim (Alemanha), onde o discurso de instrumentalização da criatividade vem sendo aplicado desde 2001, culminando em movimentos de resistência cada vez mais fortes por parte da população local. Palavras Chave: Berlim; Classe e Economia Criativa; Planejamento Urbano Estratégico; Resistências Socioculturais, Squats. iii ABSTRACT SELDIN, C. (2015). From the Capital of Culture to the Creative City: Resistances to Urban Paradigms under the Inspiration of Berlin. Doctoral Dissertation (Urban Studies) – Postgraduate Program in Urban Studies, Faculty of Architecture and Urban Studies, Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. This doctoral dissertation is based upon the principle that, in order to understand the city, it is necessary to consider its cultural sphere. This is especially true in the contemporary era, in which culture is used as a tool to guide urban planning. Between the late 1970s and early 2000s, many were the punctual urban renewal projects aiming at the implementation of cultural facilities and leisure complexes capable of transforming the image of several cities, reviving bankrupt economies and generating flagship models of 'strategic cultural planning' that would be pursued worldwide. This reflected the search for the 'capital of culture' paradigm. We argue that, from the 2000s on, with the strengthening of an economy driven by knowledge and the provision of services and cultural goods, we began to see a transformation in the discourses supporting public policies, which now search for the status of the 'creative city'. This is a concept greatly influenced by the US economist Richard Florida, who preaches the importance of tolerant cities devoted to the attraction of professionals who produce cognitive capital. Our research shows that this new urban paradigm reinforces many of the problems and inequalities generated by the previous, often acting against the interests of the 'creative class', which it claims to privilege. In order to illustrate this point, we delve into case studies in Berlin (Germany), where speeches using creativity as a tool have been applied since 2001, culminating in increasingly strong resistance movements by the local population. Keywords: Berlin; Creative Class and Economy; Strategic Urban Planning; Social and Cultural Resistances; Squats. iv LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AEG Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft (Companhia de Eletricidade Geral) CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CDU Christlich Demokratische Union (partido União Democrata Cristã) CEO Chief Executive Officer (Diretor Executivo) CIAM Congrès Internationaux d'Architecture Moderne (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico DAAD DCMS DETR Deutscher Akademischer Austauschdienst (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico) Department for Culture, Media and Sport (Departamento de Cultura, Mídia e Esporte) Department of Environment, Transport and the Regions (Departamento de Meio-Ambiente, Transporte e das Regiões) dir. à direita DJ Disc Jockey (disco jóquei) e.V. eingetragener Verein (associação registrada) EAU Escola de Arquitetura e Urbanismo esq. à esquerda EU ou UE European Union (União Europeia) EUA Estados Unidos da América FAU Faculdade de Arquitetura e Urbanismo FIRE Finance, Insurance and Real Estate (Finanças, Seguros e Mercado Imobiliário) FLV Fondation Louis Vuitton (Fundação Louis Vuitton) GmbH GSW Gesellschaft mit beschränkter Haftung (tipo de sociedade comercial com responsabilidade limitada, semelhante ao ‘Ltda.’ em português) Gemeinnützige Siedlungs – und Wohnungsbaugesellschaft Berlin mbH (Cooperativa de Habitação e Construção de Berlim) HU Humboldt-Universität (Universidade Humboldt) IBA Internationale Bauausstellung (Exibição Internacional de Construção, também conhecida como Exibição Internacional de Arquitetura) Ku’damm Kurfürstendamm (avenida situada no lado ocidental de Berlim) MAR Museu de Arte do Rio de Janeiro MinC Ministério da Cultura do Brasil P&D Pesquisa e Desenvolvimento v PDS Partei des Demokratischen Sozialismus (Partido do Socialismo Democrata), posteriormente renomeado die Linke (A Esquerda) PDSE Programa Institucional de Doutorado Sanduíche no Exterior PPGAU Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo PR-2 Pró-Reitoria 2 PROBRAL Projeto de Cooperação Bilateral Brasil-Alemanha PROURB Programa de Pós-Graduação em Urbanismo RDA RFA República Democrática Alemã (em alemão: Deutsche Demokratische Republik ou DDR) República Federal da Alemanha (em alemão: Bundesrepublik Deutschland ou BRD) S-Bahn Stadtschnellbahn (trem urbano rápido, normalmente sobre a superfície) SPD Sozialdemokratische Partei Deutschlands (Partido Social Democrata Alemão) TBP The Busking Project TI Tecnologia da Informação TU Berlin Technische Universität Berlin (Universidade Técnica de Berlim) U-Bahn Untergrundbahn (metrô sob a superfície) UFF Universidade Federal Fluminense UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UN ou ONU United Nations (Organização das Nações Unidas) UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) YAAM Young African Art Market (Jovem Mercado de Arte Africano) vi AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer a todos que contribuíram direta ou indiretamente para a elaboração desta tese: À toda a minha família, em especial aos meus pais, Eliane e Jacob, pelo apoio incondicional, pelo amor, pelo suporte, pela paciência, pelos valiosos conselhos e pelas revisões. À minha irmã Renata, por ter me inspirado a retomar a vida acadêmica após sua defesa de doutorado. À minha tia Lucy, pelo exemplo de excelência acadêmica. À minha prima Andrea, pelo carinho. À Filomena, pela companhia. À professora e orientadora Lilian Fessler Vaz, minha mentora acadêmica – a quem admiro e respeito profundamente. Obrigada por compartilhar seu conhecimento, tornar minha trajetória acadêmica mais rica e por reacender meu interesse no campo do Urbanismo há mais de dez anos atrás. Ao professor Max Welch Guerra, pela supervisão do estágio doutoral na Alemanha. Às professoras Andréa Lacerda de Pessôa Borde, Clarissa da Costa Moreira, Fernanda Ester Sánchez García, Maria Cristina Nascentes Cabral e Maria Lais Pereira da Silva, pela leitura da tese, pela participação na banca examinadora e pelas contribuições a este trabalho. Ao PROURB/FAU-UFRJ pelo apoio institucional, em especial aos colegas das turmas de doutorado dos anos 2010, 2011 e 2012, à coordenação e aos funcionários da secretaria. À Bauhaus-Universität Weimar, instituição que me acolheu na Alemanha e, principalmente, à Ana Carolina Lima e Ferreira, do International Office, cujo auxílio foi essencial. Ao CNPq pela bolsa integral de doutorado e pelas que a antecederam e permitiram o desenvolvimento da minha trajetória acadêmica. À CAPES, pelo financiamento da bolsa de doutorado sanduíche PDSE e à PR-2 da UFRJ, em especial à Elaine Goulart, pelos muitos esclarecimentos. Às professoras de línguas estrangeiras no Brasil e na Alemanha: Marinete Sarmento, Angela Saules e Friederike Kronauer, pela imensa ajuda e pela amizade. Aos colegas e amigos pertencentes ao “Grupo de Pesquisa Cultura, História e Urbanismo” (GPCHU) nos últimos quatro anos: Ana Beatriz F. da Rocha e Silva, Caio César de Azevedo, Carlos Rodrigo Avilez B. da Silva, Ellen Rose Beserra F. dos Santos, Gabriella Ledo N. A. de Araújo, Gabriela Ribeiro, Patrícia Martins Assreuy, Raquel Ribeiro Martins e Rosa Richter Diaz Rocha. Aos amigos e colegas no Brasil e na Europa, que me auxiliaram, apoiaram e me acolheram, tornando a experiência do doutorado muito mais proveitosa e divertida: Alicia Young, Carina Santos Corrêa, Clara Cerqueira, Clarice Barreiro Grise, Eva Pfannes, Ingrid Sánchez, Isabela Ledo, João Marcelo Schiewe, Juliana Jabor, Juliana Povoleri, Larissa Sirsch e família, Laura Kawakami Carvalho, Maïwenn Lamy, Mara Eskinazi, Mariana Rossi, Raesoon Jung, Sabrina Camargo, Vilma Perla e família, Yeong Ki Kang e Young-U An. Aos organizadores do festival Berlin Unlimited, principalmente: Joanne, Philine, Emilie e Anja. vii A todos os indivíduos e grupos entrevistados durante esta pesquisa. Gostaria de agradecer principalmente aos artistas e colegas de alguma forma associados à Kunsthaus Tacheles e que contribuíram diretamente para o desenvolvimento desta tese: Angelo, Arda, Blacco, Claudio, Clava, Darko, Eggon, Elena, Falko, Franzi, Gaetano, Graziano, Imdat, Kerta, Özgur, Sabia, Stefano, Tom e Victor. Aos demais artistas do centro cultural Neu West Berlin. Aos movimentos MediaSpree Versenken e MegaSpree. Aos artistas de rua e profissionais criativos entrevistados e contatados: Michael; Carlos e Christian (Open Stage Berlin); Dawn, Nick e Vivian (The Busking Project); Anne, Grit, Michiko, Paul e Shauna (Geh8); Elena (Zentrum für Kunst und Urbanistik); Byron, Chloë, Dominik, Elliot, Hanna, Jackson, Nick, Ryan e todos os demais. ... Esta tese de doutorado é dedicada à memória de: Linda Barbosa Salgado Luiz Antônio Salgado Neto Masza Seldin Nuta Seldin Sergio Seldin Tuggy Seldin viii Lied vom Kindsein1 Canção da Infância Als das Kind Kind war, ging es mit hängenden Armen, wollte der Bach sei ein Fluß, der Fluß sei ein Strom, und diese Pfütze das Meer. Als das Kind Kind war, wußte es nicht, daß es Kind war, alles war ihm beseelt, und alle Seelen waren eins. Quando a criança era criança, ela andava com seus braços balançando, queria que o riacho fosse rio, o rio fosse uma torrente e essa poça, o mar. Quando a criança era criança, ela não sabia que era criança, para ela, tudo tinha alma e todas almas eram uma. Als das Kind Kind war, hatte es von nichts eine Meinung, hatte keine Gewohnheit, saß oft im Schneidersitz, lief aus dem Stand, hatte einen Wirbel im Haar und machte kein Gesicht beim fotografieren. Quando a criança era criança, ela não tinha opinião sobre nada, não tinha hábito, quase sempre sentava com pernas cruzadas, saía correndo, tinha um topete no cabelo, e não fazia caras quando fotografada. Als das Kind Kind war, war es die Zeit der folgenden Fragen: Warum bin ich ich und warum nicht du? Warum bin ich hier und warum nicht dort? Wann begann die Zeit und wo endet der Raum? Ist das Leben unter der Sonne nicht bloß ein Traum? Ist was ich sehe und höre und rieche nicht bloß der Schein einer Welt vor der Welt? Gibt es tatsächlich das Böse und Leute, die wirklich die Bösen sind? Quando a criança era criança, era o tempo para estas perguntas: Por que eu sou eu e por que não você? Por que eu estou aqui e por que não ali? Quando começou o tempo, e onde termina o espaço? A vida sob o sol não é apenas um sonho? O que eu vejo e ouço e cheiro não é só a ilusão do mundo antes do mundo? Existe de fato o mal, e pessoas que são realmente más? Wie kann es sein, daß ich, der ich bin, bevor ich wurde, nicht war, und daß einmal ich, der ich bin, nicht mehr der ich bin, sein werde? Como pode ser que eu, como eu sou, antes de eu ser, não era, e que, um dia, o eu como eu sou, não será mais quem eu serei? IMAGEM 01: Criança no bairro Scheunenviertel no distrito de Mitte, Berlim. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Fala do anjo Damiel, escrita por Peter Handke para o filme “der Himmel über Berlin” (‘o céu sobre Berlim’ ou “Asas do Desejo” na sua tradução brasileira), dirigido por Wim Wenders, 1987. 1 ix SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 1 NOTAS METODOLÓGICAS ........................................................................................................ 9 CAPÍTULO I: A LIQUEFAÇÃO DA MODERNIDADE .....................................................................17 1.1 Modernidade: Solidez e Liquefação.................................................................................... 17 1.2 Capital e Consumo .............................................................................................................. 22 1.3 Espaço e Poder ................................................................................................................... 24 1.4 Cidade e Cultura ................................................................................................................. 28 1.5 Indivíduo e Coletivo ............................................................................................................ 32 CAPÍTULO II: A ‘CULTURALIZAÇÃO’ DA CIDADE ........................................................................34 2.1 Desindustrialização e ‘Culturalização’ ................................................................................ 35 2.2 Rumo à Capital de Cultura .................................................................................................. 37 2.3 Planejamento Cultural Estratégico ..................................................................................... 47 2.4 Gentrificação ...................................................................................................................... 51 CAPÍTULO III: DA CAPITAL DE CULTURA À CIDADE CRIATIVA ....................................................54 3.1 Sobre Criatividade (e Capital Cognitivo) ............................................................................. 55 3.2 A Ascensão da “Classe Criativa” de Richard Florida ............................................................ 58 3.3 Economia criativa: Mais Perdedores do que Vencedores? ................................................. 67 CAPÍTULO IV: BERLIM: “POBRE, MAS SEXY” ............................................................................75 4.1 Contextualização ................................................................................................................ 75 4.2 Planejamento Cultural Estratégico Pós-Reunificação ......................................................... 88 4.3 A Berlim Criativa do Século XXI ......................................................................................... 102 4.4 O Outro Lado da Criatividade ........................................................................................... 111 x CAPÍTULO V: RESISTÊNCIAS URBANAS ................................................................................... 116 5.1 Afundem o MediaSpree! ................................................................................................... 118 5.2 Kunsthaus Tacheles: Autopsia de um Squat Cultural ........................................................ 132 5.3 As Vozes Criativas da Cidade: Os Artistas de Rua de Berlim ............................................. 148 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................... 158 FONTES DE REFERÊNCIA ........................................................................................................ 168 6.1 Principais .......................................................................................................................... 168 6.2 Notícias e Reportagens Jornalísticas ................................................................................. 176 6.3 Filmes e Mídia .................................................................................................................. 182 6.4 Websites da Internet ........................................................................................................ 183 ANEXOS................................................................................................................................ 185 xi INTRODUÇÃO O Dicionário Aurélio2 define o termo criatividade como a “capacidade de criar, de inventar” ou a “qualidade de quem tem ideias originais”. Podemos afirmar que esta capacidade ou qualidade sempre esteve diretamente conectada às cidades. Desde o surgimento da linguagem clássica grecoromana – e sua preocupação com a proporção, geometria, beleza e monumentalidade – até a reorganização do espaço modernista e sua controversa ênfase no funcionalismo; a criatividade sempre teve um papel relevante em nossa maneira de pensar e construir o espaço, em contestar padrões antigos e elaborar soluções urbanas novas. Mesmo assim, o conceito de criatividade vem assumindo extrema importância na última década, sendo incorporado nos discursos de políticas públicas e nas justificativas de projetos urbanos que buscam incessantemente a criação de imagens urbanas altamente competitivas. Esta tese de doutorado propõe investigar, através de uma abordagem histórica crítica, como e porque estas imagens são criadas, bem como as razões para o recente interesse nas atividades tidas como criativas. Para tal, serão consideradas as transformações nos discursos que embasam as políticas públicas urbanas e culturais nas metrópoles ocidentais desde o fim dos anos 1970, quando teve início uma tendência de elaboração de projetos urbanos com destaque especial para espaços e equipamentos culturais3. A esta tendência, que teve início nos EUA e na Europa e depois se expandiu pelo mundo, alguns autores se referem como “planejamento cultural” (EVANS 2001) ou “planejamento estratégico” (VAINER 2002; SANCHEZ 2010), como veremos no capítulo II. Defendemos aqui a hipótese de que este planejamento estratégico possui dois momentos distintos. O primeiro diz respeito ao período entre o fim da década de 1970 e início da década de 2000, quando os administradores urbanos almejavam para suas cidades o status de ‘capital de cultura’. Este termo faz uma alusão ao título de “cidade de cultura” (posteriormente renomeado “capital de cultura”), concedido pela Comissão Europeia às suas cidades a partir de meados dos anos 1980. Inicialmente, ele era concedido apenas às capitais ou grandes cidades dos países membros da União Europeia, passando depois a abranger cidades menores de países não-membros (ver anexo 01, p. 186). Apesar do título propriamente dito se limitar à Europa, consideramos que a ideia por traz dele reproduz uma tendência global, evidenciada até o início do século XXI, pela busca de uma imagem de cidade repleta de equipamentos culturais e opções de lazer e entretenimento. O segundo momento vem sendo vivenciado desde então e refere-se à perseguição do novo status de ‘cidade criativa’ através da introdução de um ‘planejamento criativo estratégico’. Cabe ressaltar que o desenvolvimento desta hipótese resulta de anos de pesquisa sobre a relação entre cidade e cultura no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB/FAU-UFRJ), onde a autora vem, desde 2004, 2 Dicionário Aurélio Online, disponível também em: <http://www.dicionariodoaurelio.com/criatividade>. Acesso em: 14 nov. 2014. Por equipamentos culturais “entende-se tanto edificações destinadas a práticas culturais (teatros, cinemas, bibliotecas, centros de cultura, filmotecas, museus), quanto grupos de produtores culturais (orquestras sinfônicas, corais, corpos de baile, etc.)” (COELHO 2004, p. 165). 3 1 atuando no Grupo de Pesquisa “Cultura, História e Urbanismo” (GPCHU)4 – inicialmente como bolsista de Iniciação Científica (2004-2005) e do curso de Mestrado (2006-2008) e, posteriormente, como bolsista de Apoio Técnico (2008-2009, 2010-2011) e do curso de Doutorado (2011-presente). Esta trajetória teve início com a análise de grandes equipamentos culturais nos EUA e na Europa, concebidos através de intervenções arquitetônicas e urbanas pontuais e com propósitos de revitalização de áreas estratégicas das cidades. Foram estudados casos de contextos diversos, como a multiplicação de centros culturais e museus em Paris durante o governo de François Mitterrand (1981-1995), a renovação da Potsdamer Platz em Berlim após a reunificação da cidade em 1990 e o projeto de revitalização da frente marítima de Barcelona em virtude das Olímpiadas de 1992. Estes exemplos apontavam para processos de revitalização, renovação ou requalificação das cidades, que acabaram sendo associados, ao longo dos anos, a diversos conceitos complementares ao de planejamento cultural estratégico, dentre eles: “abordagem culturalista da cidade” (ARANTES 2002, p. 14) e “culturalização” (VAZ 2004; ALLON 2013). Alguns autores chegavam, inclusive, a mencionar uma “renascença urbana” (EVANS 2001; ARANTES 2002), ressaltando a substituição de uma linha de planejamento modernista – em que a separação de funções imperava 5 – por outra, de desenvolvimento de projetos urbanos pontuais ou “acupunturais” (ARANTES 2002), com o objetivo claro de revitalizar apenas áreas estratégicas para a imagem das cidades. Neste contexto, havia um evidente destaque para intervenções em antigos centros históricos, zonas portuárias e vazios urbanos, em especial, os vazios industriais – abandonados e degradados. Naquele momento, foi possível perceber que esta tendência de planejamento, que vinha se intensificando desde as décadas de 1980 e 1990, começava a receber fortes críticas. Diversos autores6 ressaltavam as consequências negativas resultantes da supervalorização de centros históricos e do desenvolvimento de projetos arquitetônicos espetaculares voltados para atividades de cultura, lazer e entretenimento, condenando a espetacularização e ‘cenarização’ da paisagem, a gentrificação e a instrumentalização da cultura. Para eles, o uso da cultura nos projetos urbanos tinha como objetivo principal a construção de identidades urbanas artificiais, capazes de competir mundialmente e de atrair turistas e novos investimentos imobiliários passíveis de aquecer as economias locais em declínio, devido, principalmente, a intensos processos de desindustrialização ocorridos nos anos anteriores. A cidade começava a ser comparada a uma vitrine, a um local de venda da cultura através da imagem, como aponta Otília Arantes: Rentabilidade e patrimônio arquitetônico-cultural se dão as mãos, nesse processo de revalorização urbana – sempre, evidentemente, em nome de um alegado civismo [...] E para entrar neste universo de negócios, a senha mais prestigiosa [...] é a Cultura. Essa a nova grife do mundo fashion, da 4 Nos últimos dez anos, a autora atuou em diversos projetos de pesquisa centrados na relação entre cidade e cultura, alguns com foco na cultura da periferia carioca e outros com foco nos espaços públicos cariocas e alemães. Dentre eles: “A Cultura nas Políticas Urbanas: Possibilidades se seu Uso como Instrumento para o Desenvolvimento Social” (2004-2009), “As Transformações na Agenda de Políticas de Espaços Públicos: Intenções, Intervenções, Efeitos” (2005-2008) e “Culturas e Resistências na Cidade” (2010-presente) – os três coordenados pela professora Lilian Fessler Vaz e com bolsa integral do CNPq. 5 A conhecida divisão entre habitar, trabalhar, recrear e circular pregada na Carta de Atenas (1933). 6 Dentre os quais destacamos: Zukin (1983, 2006), Sorkin (1992), Bianchini (1993), Evans (2001), Vaz & Jacques (2001), Arantes (2002), Jeudy (2005), Sánchez (2010), entre outros. 2 sociedade afluente dos altos serviços a que todos aspiram (ARANTES 2013, p. 24). A constatação deste quadro pouco esperançoso de projetos urbanos encaixados em políticas públicas como forma de se alcançar um desenvolvimento predominantemente econômico levou à necessidade de investigação, durante o curso de mestrado em Urbanismo7, de formas alternativas de percepção da cultura nos estudos urbanos. Foi realizada, então, uma pesquisa em torno do objeto ao qual viemos chamar de ‘ações culturais’ – iniciativas de caráter contra hegemônico, calcadas em manifestações artístico-culturais diversas (música, dança, teatro, cinema, grafite, capoeira, entre outras) e provenientes de favelas e áreas periféricas do Rio de Janeiro. As ações culturais estudadas demonstravam uma preocupação maior com o desenvolvimento social em escala local, apresentando sempre uma forte relação com o espaço onde estavam inseridas. Ademais, elas eram praticadas por grupos que buscavam afirmar individual e coletivamente seu lugar na cidade na tentativa de reverter sua condição de invisibilidade e conquistar, assim, direitos básicos de cidadania. O estudo deste objeto naquele momento foi importante, pois sua existência qualificava um processo de resistência, através da cultura, de busca pelo sentimento pleno de pertencimento à cidade. Ele permitiu também a percepção de maneiras de apropriação cultural do espaço não atreladas a edificações ou equipamentos culturais tradicionais, apontando para formas alternativas de interação dos homens com as ruas, praças e vazios industriais em favelas através da prática cultural. Por fim, também foi observado que as ações culturais periféricas surgiam como resposta à falta de acesso aos equipamentos tradicionais e ao preconceito contra modalidades artísticas atreladas a especificidades étnicas, locais e etárias representativas de identidades discriminadas pelos demais habitantes da cidade. Esta constatação viria como um primeiro indicativo de que o maior problema dos grandes equipamentos culturais inseridos em projetos urbanos poderia estar mais intimamente ligado às desigualdades de distribuição e acesso do que simplesmente a falhas do projeto urbano propriamente ditas. Esta especificidade do caso brasileiro, cujo contexto envolve graves disparidades sociais, econômicas e espaciais, contribuiria para a curiosidade de investigar formas alternativas de resistência ao planejamento cultural estratégico em locais onde as desigualdades sociais não fossem tão acentuadas, onde os contextos fossem diferentes. Ainda durante os anos da realização do curso de mestrado (2006-2008), o tema da cultura começou a ganhar maior atenção no campo das políticas públicas no Brasil e no mundo. Em nosso país, esta atenção foi decorrente de uma nova direção política, que teve início a partir de 2003 com as administrações de Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura, propiciando o desenvolvimento de importantes programas de valorização da produção artística de camadas esquecidas da população8. Em outras partes do mundo, a literatura começava a apontar para a Também realizado no PROURB/FAU-UFRJ e concluído em 2008 com a defesa da dissertação “As Ações Culturais e o Espaço Urbano: O Caso do Complexo da Maré no Rio de Janeiro”, que focalizava a conceituação do termo "ações culturais" e apresentava três estudos de caso neste complexo de favelas. Para mais informações, ver Seldin (2008). 7 8 Referimo-nos ao período dos dois mandatos da presidência de Luís Inácio Lula da Silva (2002-2006 e 20062010), em que o Programa Cultura Viva foi o carro-chefe das políticas culturais desenvolvidas pelo Ministério da Cultura (MinC). Até então, a atuação desse órgão governamental privilegiava a produção e o consumo cultural de classes mais altas da população e investimentos no tradicional eixo Rio de Janeiro - São Paulo, 3 difusão de conceitos novos, como “cidade criativa” (LANDRY & BIANCHINI 1995), “economia criativa” (HOWKINS 2001) e, principalmente, “classe criativa” (FLORIDA 2005, 2011 [2002]), que se tornariam termos chave para dar início à pesquisa do doutorado em 2011. A revisão bibliográfica realizada para o desenvolvimento desta tese logo apontaria para a controversa obra do economista estadunidense Richard Florida, “A Ascensão da Classe Criativa” (2011 [2002])9, como um marco na transição entre a busca do status de ‘capital de cultura’ para o de ‘cidade criativa’, sendo sua teoria adotada e mencionada nos discursos de diversos gestores urbanos e políticos, como veremos no capítulo III. Este foi o caso, por exemplo, de Toronto (Canadá), onde os primeiros planos para a criatividade da cidade foram traçados entre 2001 e 2003, dentre eles a “Agenda de Desenvolvimento Econômico” e o “Plano de Cultura de Toronto” (DAVIES 2008). Foi também o caso de Berlim (Alemanha), onde o lema da cidade criativa adentrou com força o campo do marketing urbano a partir da administração do prefeito Klaus Wowereit em 2001, intensificando-se com sua inserção na Rede de Cidades Criativas da UNESCO em 2006. Para melhor compreender esta transição rumo a um paradigma de criatividade na esfera urbana, tornou-se necessário investigar o contexto histórico e as transformações econômicas que a propiciaram, havendo grande ênfase no fenômeno de desindustrialização das cidades e na substituição de uma economia baseada na produção de bens manufatureiros para uma economia baseada na provisão de serviços e produtos culturais. Se até a década de 2000, alguns interpretavam esta substituição como uma transferência de importância do capital financeiro para o capital cultural (ARANTES 2002; RIBEIRO 2006; ZUKIN 2006; LEES, SLATER & WYLY 2008); desde então tem sido possível perceber uma maior ênfase no conceito de capital cognitivo (KRÄTKE 2004, 2011; BENTES 2007) como nova força motora da economia urbana nas cidades criativas. Ou, nas palavras de Richard Florida, o “capital humano”, que seria “o segredo da produtividade” (2011 [2002], p. ix). Sob seu ponto de vista, algumas regiões urbanas se tornariam centros da “classe criativa” e da produção de conhecimento, enquanto outras permaneceriam fadadas a comportar apenas a classe trabalhadora e de serviços. Em outras palavras, a tese de Florida baseia-se na suposição de que os centros de classe criativa seriam “vencedores econômicos”, glorificando as desigualdades resultantes desta nova economia, como critica o alemão Stefan Krätke (2011, p. 37). Esta suposição a respeito de uma prosperidade econômica para todos os profissionais criativos, juntamente com a desconsideração das desigualdades provenientes deste novo paradigma, nos levou a questionar os reais efeitos da busca pela cidade criativa. Para tal, foi realizada uma investigação mais aprofundada das formas de resistência contra as políticas recentes em um lugar onde a imagem sempre precedeu a cidade e onde o conceito de criatividade está diretamente ligado às práticas de marketing urbano: Berlim, na Alemanha. O contexto urbano da cidade de Berlim fora conhecido pela primeira vez em 2007, durante o período como bolsista de mestrado sanduíche, no âmbito do Projeto de Cooperação Bilateral bem como a adoção de um conceito restrito de cultura, que desprezava as manifestações culturais baseadas em vivências, crenças, imaginários e conjunto de valores comunitários. A partir de 2003, o MinC passou por uma reestruturação que culminou em um discurso de incentivo à diversidade cultural e ao processo de integração social das comunidades marginalizadas. Esse processo seria revertido a partir de 2011, quando a nova administração mudou a direção destas políticas (SELDIN 2013). Em inglês, “The Rise of the Creative Class”. O livro foi publicado originalmente em 2002, mas teve sua primeira versão em português do Brasil apenas em 2011, o que serve de indicativo para a adoção tardia do conceito de criatividade dentro do planejamento urbano estratégico brasileiro. 9 4 Brasil – Alemanha (PROBRAL – CAPES/DAAD)10. Nesta ocasião, foram realizados workshops, visitas de campo e discussões sobre formas alternativas de apropriação dos espaços públicos locais para fins culturais como uma resposta crítica aos projetos arquitetônicos e urbanos mais espetaculares que se multiplicavam pela cidade há quase duas década. Esta experiência fez despertar o desejo de investigar de forma mais profunda a história urbana local. Ressaltamos aqui que, em se tratando da análise de imagens urbanas, a cidade de Berlim apresenta uma interessante complexidade histórica com rebatimentos espaciais, que merece ser mais conhecida e estudada pelos urbanistas brasileiros. Considerada por muitos como uma meca artística, ela mescla equipamentos culturais e projetos arquitetônicos e urbanos de grande porte com iniciativas e usos temporários de caráter alternativo e espontâneo – como ocupações informais ou ilegais de edifícios por coletivos de artistas – algo que contribui para o fortalecimento de sua percepção internacional como uma cidade ligada à subcultura. Esse fato aliado a um histórico de guerras, de divisão (territorial, econômica e política) entre leste e oeste através de um muro, de reunificação e de inserção tardia no sistema capitalista fez com que a cidade se tornasse um recorte ainda mais rico para este estudo. Tida como um “fascinante laboratório de mudanças urbanas” (COLOMB 2012, p. 07), Berlim apresentou, como nenhum outro local, um processo extremamente intenso de desindustrialização e urbanização pós-reunificação, tendo se transformado rapidamente de uma cidade marcada pela pobreza em uma potência europeia dotada de uma imagem ‘cool’, em virtude da adoção recente de políticas que beneficiam a entrada de capital cognitivo na cidade. Apesar da revitalização da imagem berlinense, nos últimos anos, vem sendo observada uma enorme polêmica e mobilização contra estas políticas, que impulsionaram a gentrificação em nome de empreendimentos residenciais e culturais para a “classe criativa”. A partir de 2010, inúmeras manifestações e ações populares passaram a receber destaque na mídia alemã e internacional11, dentre elas os protestos contra os despejos de famosos edifícios ocupados desde o início dos anos 1990 e contra a demolição de um pedaço remanescente do Muro de Berlim conhecido como East Side Gallery12. As reportagens jornalísticas mencionavam um fato interessante: o termo ‘gentrificação’ tornou-se de conhecimento geral da população berlinense, sendo inserido com frequência não apenas em discursos acadêmicos e políticos, mas em conversas do dia-a-dia entre pessoas que compartilham a experiência de ter que se realocar constantemente na cidade devido ao aumento da especulação imobiliária. O que se percebe no contexto local é que o debate sobre as consequências indesejadas e negativas resultantes do planejamento criativo estratégico passou de uma esfera restrita para ‘lugar comum’, gerando uma forte resposta sob a forma de movimentos de resistência. Com bolsa de três meses dentro do projeto de pesquisa “As Transformações na Agenda de Políticas de Espaços Públicos: Intenções, Intervenções, Efeitos” (2005-2008), coordenado pelos professores Lilian Fessler Vaz (Brasil) e Max Welch Guerra (Alemanha). 10 11 Destacamos, principalmente: Freeman (2010), Nippard (2010), Beaumont (2011), Cottrell (2011), Ternieden (2012), Borden et al (2013), Bowen (2013), Hermsmeier (2013), Shea (2013) e Slobodian & Sterling (2013). 12 Galeria de grafite a céu aberto em um dos poucos trechos originais restantes do muro de Berlim, situada no antigo lado oriental da cidade, às margens do Rio Spree e na região englobada no plano urbano MediaSpree, como veremos no capítulo IV. 5 Para o maior aprofundamento e investigação in loco destes movimentos de resistência, foi realizado, no ano de 2013, o estágio doutoral do tipo sanduíche 13 na cidade. Esta experiência resultou na escolha de alguns estudos de caso representativos da adoção do planejamento criativo estratégico berlinense e da resposta da população (e em especial da “classe criativa” local) ao mesmo. O primeiro diz respeito ao movimento “MediaSpree versenken” (afundem o MediaSpree), que luta contra os planos urbanos berlinenses para a criação de aglomerados criativos nas margens do Rio Spree; o segundo refere-se à tentativa de permanência de uma famosa ocupação cultural de um edifício histórico no centro da cidade, conhecido como Kunsthaus Tacheles; e o terceiro consiste na observação de artistas de rua de Berlim, que lá possuem uma aceitação muito positiva (diferente de outras cidades). Em suma, exemplos de resistência à manipulação da imagem urbana local, à excessiva especulação imobiliária e aos grandes projetos arquitetônicos e urbanos que implicam em imensos gastos de recursos públicos e privados. Tendo em mente os processos observados em Berlim a respeito da instrumentalização da criatividade, da criação de imagens de cidade e da apropriação de formas culturais espontâneas no planejamento e marketing urbano, propomos, através desta tese, ressaltar a importância do estudo da cidade através de sua relação com a cultura. Acreditamos que, assim, seja possível compreendêla além de sua dimensão físico-espacial, ou seja, como um produto de seus habitantes, que a modificam constantemente numa relação de reciprocidade. Implica também na consideração do genius loci 14 – conceito retomado proferido pelo arquiteto norueguês Christian Norberg-Schulz (1984) para se referir ao “espírito do lugar”, à realidade com o qual o homem se depara ao enfrentar os desafios da vida cotidiana (p. 05-06). Consideramos, como Norberg-Schulz, que a arquitetura e o planejamento urbano deveriam ter como papel fundamental a criação de lugares de significado, onde o sentimento de pertencimento fosse sempre possível. Seguindo este raciocínio, o entendimento da cultura não só como arte, mas como modo de vida e costumes de uma sociedade, torna-se um elemento essencial para projetar e pensar a cidade. Apesar de não ser objetivo desta tese discorrer a respeito do complexo conceito de cultura 15, cabe reconhecer aqui o caráter humano de sua definição e sua importância para nosso campo do conhecimento. Compreendemos a cultura como as práticas materiais e meios de expressão de uma comunidade e como "a resposta que os grupos humanos [dão] à sua existência social [...], o conjunto das representações e dos símbolos pelos quais o homem dá sentido à sua vida" (LATOUCHE 1999, p. 47-48). Todos os sujeitos almejam possuir uma significância cultural, de modo a não se sentirem deixados de lado. Mais do que isso, todos almejam a concretização de um sentimento de pertencimento a um local. O projeto urbano deveria ter como dever o respeito a este sentimento, possibilitando a concretização do genius loci e o usufruto pleno do espaço por aqueles que os vivenciam. No entanto, percebemos que, com frequência, não é isso o que acontece. Nas metrópoles ocidentais contemporâneas, os projetos urbanos têm sido cada vez mais utilizados para cumprir os 13 O doutorado sanduíche foi realizado entre abril e dezembro de 2013 em parceria com a BauhausUniversität Weimar sob a supervisão do professor Max Welch Guerra e com financiamento da bolsa CAPES/PDSE. O termo ‘genius loci’ (latim para ‘espírito do lugar’) é proveniente da Roma Antiga e, aplicado ao Urbanismo, denota a essência que dá vida aos locais e às pessoas. 14 15 Para considerações sobre o conceito de cultura ver Eagleton (2000), Edgar & Sedwick (2003), Coelho (2004), Eliot (2011) e Bauman (2011, 2012 [1999]). 6 objetivos de agendas políticas ou econômicas que mostram pouca preocupação com a experiências locais, com a solução de problemas e com as reais carências dos habitantes das cidades. Observamos atualmente uma falta de preocupação, nos campos da Arquitetura, do Urbanismo e do Planejamento Urbano, com a conexão entre o projeto da cidade – o desenho, e as reais experiências nela existentes – as histórias, as ações, as relações, os conflitos, as diferenças e as demais subjetividades que moldam as singularidades do espaço urbano. Para entender o porquê da desconexão entre nosso campo do conhecimento e as reais experiências urbanas, iniciamos esta tese com o capítulo, “A Liquefação da Modernidade”, que analisa o contexto atual de passagem de um período moderno (sólido) para um período pós-moderno ou de modernidade tardia (líquida), marcado por mudanças de valores e por novas relações entre o capital e o consumo, entre o espaço e o poder, entre a cidade e a cultura e entre o indivíduo e o coletivo. Para tal, buscamos suporte teórico nas obras de autores como Pierre Bourdieu (2010 [1984], 2011 [1989), David Harvey (1989a, 2009 [2000], 2011 [1989b], 2012, 2014 [2010]) e Zygmunt Bauman (1998 [1997], 1999 [1991], 2001 [2000], 2003 [2001], 2007 [2006], 2008 [2007], 2011, 2012 [1999]). O segundo capítulo, “A ‘Culturalização’ da Cidade”, apresenta uma abordagem histórica e crítica da problemática observada, retratando alguns exemplos do pareamento das esferas urbana e cultural nas políticas públicas das grandes cidades ocidentais entre o fim dos anos 1970 e o início dos anos 2000. Definiremos neste capítulo o que se entende por ‘planejamento cultural estratégico’, identificando suas origens, características e consequências e citando também alguns casos clássicos que apontam para a perseguição do status de ‘capital de cultura’. O terceiro capítulo, “Da Capital de Cultura à Cidade Criativa”, consiste na análise da transformação dos discursos que suportam as políticas urbanas a partir do início da década de 2000, apontando para a criação de um novo paradigma que vem sendo perseguido desde então: o da ‘cidade criativa’. Neste capítulo explicamos os conceitos de classe, cidade e economia criativas, tendo como base as teorias de Charles Landry & Franco Bianchini (1995), John Howkins (2001) e, principalmente, de Richard Florida, em especial a obra “A Ascensão da Classe Criativa”, publicada originalmente em 2002, e que enxergamos como um marco na transformação dos discursos aqui tratados. Em seguida, é apresentado o capítulo “Berlim, Pobre mas Sexy” sobre a evolução destes dois paradigmas no nosso recorte espacial, de modo a já contextualizar os estudos de caso realizados. Neles, será traçado um breve resumo das estratégias de marketing urbano nesta cidade desde o início do século XX até o período da Guerra Fria, sendo este seguido por uma investigação mais aprofundada das políticas urbano-culturais e projetos urbanos adotados após a queda do Muro de Berlim e a reunificação da cidade e do país, em 1989 e 1990, respectivamente. Atenção especial será dada ao forte discurso político calcado na instrumentalização da criatividade para a revitalização da imagem de Berlim, adotado a partir de 2000. No último capítulo “Resistências Urbanas”, apresentamos três estudos de caso que representam formas diferentes de resistência ao processo contemporâneo de instrumentalização da cultura e da criatividade tratado nesta tese. Os três foram realizados durante o período de doutorado sanduíche em Berlim. O primeiro, refere-se aos movimentos sociais organizados contra uma grande operação urbana intitulada MediaSpree e justificada pelo poder público local através da necessidade de incentivo à indústria criativa. O segundo apresenta o histórico de luta dos artistas de um dos mais famosos squats culturais da cidade, a Kunsthaus Tacheles; e o último diz respeito ao crescente número de artistas de rua em Berlim e seus efeitos sobre o espaço público local. 7 Por fim, é feita uma série de considerações finais a respeito da teoria desenvolvida e das experiências empíricas vivenciadas. A intenção deste capítulo não é a de fechar conclusões sobre a temática que relaciona cidade e cultura, mas sim abrir uma série de questionamentos e possibilidades de debate sobre o futuro desta relação. 8 NOTAS METODOLÓGICAS Tratar de um tema amplo, que envolve cidade e cultura, é uma tarefa árdua. Primeiramente porque a definição do conceito de cultura por si só implica em uma grande complexidade. Em segundo lugar, porque a apreensão da cidade por seus habitantes é pessoal e subjetiva, levando a interpretações e percepções distintas dos processos nela realizados. E, por último, porque a compreensão da relação entre cidade e cultura, na atualidade, implica também na consideração de tópicos como poder, capital e relações humanas interpessoais. Independente desta complexidade, consideramos que a investigação da relação entre cidade e cultura é essencial para o campo do Urbanismo, que tradicionalmente foca em questões de desenho e projeto, relegando, muitas vezes, a esfera social. Na esperança de contribuir para o reconhecimento e legitimação da corrente cultural como uma linha de pesquisa dentro de nossa disciplina, propomos aqui uma tese que trata de políticas públicas urbano-culturais. Mais do que isso, propomos investigar também os discursos que as embasam, ditando a maneira vigente de se pensar e de se construir espacialmente a cidade e contribuindo para a consolidação de paradigmas que passam a ser perseguidos por seus administradores. Ressaltamos que compreendemos o termo ‘paradigma’, conforme o definido por Edgar & Sedgwick (2003) no campo da Teoria Cultural, como uma “visão de mundo [...] dentro dos domínios de diversos campos científicos” ou uma teoria de sucesso em meio a outras teorias competidoras, que passa a definir o campo que ela cobre (p. 242243). Em outras palavras, trata-se de um modelo ou um conjunto implícito de regras que define certo quadro por um momento, eventualmente entrando em crise e sendo substituído por outro modelo. Neste sentido, o ‘paradigma urbano’ pode ser compreendido como um modelo de cidade que se deseja perseguir ou como um status tido como ideal. Em meio a um contexto contemporâneo marcado pela multiplicidade e sobreposição de paradigmas urbanos, trataremos especificamente de dois, que representam diferentes imagens almejadas para a cidade: o da ‘capital de cultura’, que teve seu auge durante as décadas de 1980 e 1990; e o da ‘cidade criativa’, vivenciado desde meados dos anos 2000 – ambos no contexto das grandes cidades ocidentais, principalmente as europeias. Para tal, realizamos aqui uma abordagem histórica e dissertativa crítica, de modo que este trabalho funcione como uma espécie de tradução do processo de transformação de um ideal urbano para o outro. Para compreender estes paradigmas urbanos – calcados em construções socioculturais, políticas, econômicas e espaciais –, optamos por uma abordagem plural e transdisciplinar, buscando suporte em campos que vão além da Arquitetura, do Urbanismo e do Planejamento Urbano, dentre eles: a Sociologia, a Geografia, os Estudos Culturais, a Economia, a Filosofia e a História. Acreditamos que, ao trazer conceitos de outras disciplinas para dentro do nosso campo do conhecimento, seja possível realizar uma melhor análise do objeto, bem como dos atores sociais e experiências envolvidos no contexto pesquisado, sendo, assim, possível apreender a cidade de forma mais eficiente – como um conjunto de vivências condicionadas por diferentes valores, poderes, interesses, vozes, corpos e linguagens. A investigação da ‘capital de cultura’ e da ‘cidade criativa’ passa, necessariamente, pela análise dos discursos, das estratégias e das tendências percebidas dentro do planejamento urbano de cada momento e local onde estes paradigmas foram consolidados. Aqui, utilizamos o termo 9 ‘discurso’, também conforme o empregado por Edgar & Sedgwick (2003). De acordo com os autores este termo carrega dois significados: o do campo da Linguística, “que designa a forma pela qual os elementos são unidos para constituir uma estrutura de significado maior que a soma de suas partes” (p. 88, grifo dos autores); e o da Teoria Cultural, que infere um “meio tanto de produzir quanto de organizar o significado dentro do contexto social” (idem). Ou seja, dentro do tema aqui proposto, o ‘discurso’ funciona como um instrumento de manutenção da ordem social vigente, utilizado pelos administradores urbanos para transmitir certas ideias a respeito da cidade, podendo ele possuir um papel inclusivo ou excludente. Ademais, ressaltamos a proposta do crítico literário alemão Andreas Huyssen (1997)16 em compreender a cidade como um texto ou como um conglomerado de sinais ou significados (p. 57-58). Para ele, o discurso da cidade nos anos 1970 era prioritariamente crítico, envolvendo arquitetos, autores, teóricos e filósofos empenhados em explorar e criar os novos vocabulários do espaço urbano após o descrédito do modernismo. O discurso iniciado nos anos 1980 e fortalecido nos anos 1990 passou a ser o da cidade como imagem, sendo proferido por um grupo mais limitado, de investidores e políticos, com o objetivo de aumentar os seus rendimentos financeiros através do turismo e dos alugueis (idem). Aos discursos e estratégias oficiais da cidade, se opõem os ‘discursos de resistência’ – as lutas por parte dos excluídos, dos não contemplados pelas políticas públicas e dos que não são beneficiados durante a busca dos paradigmas urbanos em voga. Neste sentido, a noção de ‘discurso’ é complementada pelas de ‘estratégia’ e de ‘tática’ proposta por Michel de Certeau (1994). A ‘estratégia’, segundo ele, funciona de acordo com interesses específicos daqueles que a propõe, podendo operar como uma imposição ou um instrumento de poder. Enquanto isso, a ‘tática’ surge, por vezes de forma improvisada, como uma resposta surgida em função de uma necessidade constatada 17. Argumentamos aqui que as estratégias urbanas transparecidas nas políticas públicas das últimas décadas servem para a imposição de um poder que é simbólico, conforme proferido por Pierre Bourdieu (2010 [1984], 2011 [1989]), como veremos mais adiante neste capítulo. Já as táticas estão presentes nos movimentos de resistência às políticas, discursos que as embasam. As ‘tendências’, por sua vez, devem ser entendidas como similaridades percebidas nos estilos de vida e nos projetos urbanos em diferentes cidades, apontando para algo que está em voga em nível global em determinado momento, porém que possui desdobramentos específicos em cada local. As tendências, portanto, influenciam e são influenciadas pelos discursos e pelas estratégias. Os discursos, estratégias, táticas e tendências apontam para a percepção de que o planejamento urbano não consiste em uma etapa única, mas sim em uma série de processos que possuem consequências para as cidades a curto, médio e longo prazo. Neste sentido, a análise dos processos urbanos também é de extrema importância, sendo eles indissociáveis do planejamento urbano como um todo. Justificamos a importância de considerar os processos através da obra do geógrafo brasileiro Milton Santos (2009, p. 120-121), que enfatiza a necessidade de apreender o 16 Nos referimos aqui especificamente à obra de Andreas Huyssen que analisava, ao final da década de 1990, os vazios urbanos de Berlim, resultantes, principalmente, dos bombardeios de guerra, do fenômeno de desindustrialização e da queda do muro. Naquele momento, evidenciava-se o auge do planejamento cultural estratégico local, que buscava desesperadamente o preenchimento dos vazios através de grandes projetos urbanos de caráter cultural. De acordo com Huyssen, nestes projetos havia uma clara seleção, por parte de quem estava no poder, das memórias que deveriam ser preservadas e das que deveriam ser esquecidas. Por isso, ele enxergava Berlim como “um texto sendo escrito e reescrito freneticamente” (1997, p. 57). 17 Ver de Certeau (1994) sobre a relação entre estratégia e tática. 10 todo através das partes e as partes, através do todo, em um esquema de interpretação dinâmica dos fenômenos. Para ele, a síntese e a análise são realizadas de forma eficiente apenas através do desmanche, da fragmentação e da recomposição de processos propostos e já existentes (históricos, por exemplo). Em se tratando do campo do Urbanismo, a ideia de ‘processo’ é essencial, pois o planejamento nada mais é do que uma série de processos que ocorrem durante o tempo, em etapas. Um dos pontos críticos observados durante a elaboração desta tese é que frequentemente os responsáveis pelo planejamento urbano visam apenas o seu resultado final, ignorando os passos que o compõem entre o momento de desenho e sua materialização completa, desconsiderando, portanto, os muitos efeitos que os processos intermediários podem gerar, como a gentrificação, conforme explicaremos no capítulo II. Em se tratando especificamente da metodologia utilizada, nos baseamos na obra da socióloga estadunidense Sharon Zukin (2006 [1995]), que alega ser necessário enxergar o processo de construção da cultura na cidade como uma “negociação contínua” (p. 290). Esta visão implica na necessidade de adoção, no meio acadêmico, de uma metodologia que contemple o objeto de pesquisa e as categorias analíticas como elementos em constante mudança. A autora segue afirmando que, frequentemente, a análise das problemáticas observadas nas teorias sociais pósmodernas requerem observações das relações interpessoais e íntimas no espaço público, havendo uma tendência à observação próxima de como as pessoas se comportam. A observação do comportamento, neste sentido é importante, porém deve ser aliada à observação da posição destes indivíduos na sociedade, bem como dos contextos social e histórico do espaço em si (p. 291). De forma semelhante, os geógrafos britânicos Loreta Lees, Tom Slater e Elvin Wily, em sua obra “Gentrification” (2008), apontam para a existência de dois enquadramentos metodológicos principais para estudos que envolvem processos de gentrificação e suas causas (temática na qual essa tese se enquadra, principalmente em se tratando dos estudos de caso realizados). De acordo com os autores, os interessados nos aspectos sociocultural e humanista da gentrificação tendem a apresentar o processo a partir da escala do indivíduo, usando pesquisas e entrevistas; enquanto aqueles mais preocupados com o aspecto político-econômico, apresentam o processo como um fenômeno de escala muito mais ampla, considerando os gentrificadores como um grupo social (classe) vinculados por uma racionalidade econômica, desconsiderando as motivações dos atores individuais (p. xxii-xxiii). A escolha do enquadramento implicaria, portanto, em resultados diferentes, uma vez que a escala e escopos do objeto são observados também de formas diferentes. Considerando as análises de Zukin e Lees, Slater & Wily, optamos aqui pela adoção de uma metodologia que articula o campo científico com as subjetividades, e que abrange tanto uma contextualização histórica, política e econômica dos paradigmas observados, quanto observações socioculturais pontuais. As tendências globais foram investigadas a partir da revisão bibliográfica acerca do tema, constituindo-se no quadro teórico desta pesquisa (capítulos I, II e III). A investigação e análise pontual está presente através da experiência empírica, refletida na realização dos estudos de caso a partir do método de observação participativa (capítulos IV e V). Acreditamos que, assim, tenha sido possível a realização de uma pesquisa abrangente, que objetiva examinar a temática proposta em diferentes escalas e sob diferentes perspectivas, o que condiz com a complexidade do tema. Podemos dizer que, em se tratando da teoria que embasa a tese, houve uma estruturação entre blocos de referenciais que se complementam. O primeiro bloco teórico, apresentado no próximo capítulo, consiste em uma contextualização do momento histórico em que foram 11 observados os dois paradigmas urbanos investigados: o momento de passagem da modernidade para a pós-modernidade e as transformações sociais, culturais, espaciais e, principalmente, econômicas atreladas a este momento. Neste bloco, apoiamo-nos especialmente na obra de Zygmunt Bauman e de David Harvey para explicar que, após a expansão do fenômeno de desindustrialização, a economia passou a focar-se não mais na produção de bens de consumo manufaturados, mas de cultura e serviços. As cidades passaram a competir por visibilidade através da venda de suas imagens e a cultura passou a ser instrumentalizada dentro de uma nova vertente do capitalismo em que prevalece o poder simbólico e em que os interesses individuais são privilegiados em detrimento dos interesses do coletivo. Zygmunt Bauman (1925-presente) – sociólogo polonês, judeu, expatriado na Inglaterra – foi escolhido devido à sua ampla produção literária a respeito da modernidade. Suas obras de maior destaque tratavam inicialmente do Holocausto e seu papel como marco de uma era, desenvolvendo-se, posteriormente, para a constatação da ambivalência da modernidade e do advento, no fim do século XX, de um processo de liquefação da mesma. Adotamos aqui o seu conceito de “modernidade líquida” (2001 [2000], 2007 [2006], 2008 [2007], 2011), pois ele carrega um importante componente espacial, ao esclarecer a transição de uma sociedade sólida e fixa baseada no modo de produção industrial para uma sociedade fluida e com fronteiras móveis, baseada na produção de capital simbólico, onde o consumismo impera e a noção de comunidade é enfraquecida. Ademais, sua obra enfatiza a relação entre a globalização, a cultura, o mercado e a sociedade, partindo de uma abordagem interdisciplinar consequente de suas influências teóricas, dentre elas os alemães Karl Marx, Theodor W. Adorno e Hannah Arendt, o italiano Antonio Gramsci e o finlandês Ji Caze. David Harvey (1935-presente) – geógrafo inglês – foi escolhido por seus esclarecimentos em relação à lógica do capital na pós-modernidade (2011 [1989b], 2014 [2010]) e por suas considerações a respeito dos movimentos sociais de resistência urbana conflagrados nos últimos anos em todo o mundo (2012). Sua obra reflete a influência marxista, bem como a de Henri Lefebvre, especialmente do livro “O Direito à Cidade” (2004 [1968]) – cujas reflexões são adaptadas para os dias atuais, tendo em vista os novos fluxos do capital. Outros autores escolhidos para complementar esse eixo teórico que trata da crise da modernidade, do fenômeno de desindustrialização e da transformação do valor do capital foram Pierre Bourdieu (2011 [1989]) e Stuart Hall (2006 [1992]), que escrevem sobre a utilização da cultura para a manutenção do poder simbólico. O segundo bloco teórico consiste em um apanhado histórico sobre as semelhanças entre os discursos, as estratégias, as tendências e os processos das políticas urbano-culturais evidenciadas nas grandes cidades ocidentais durante as décadas de 1980 e 1990. Apesar de utilizarmos referências datadas desde o início da década de 1980 como a obra “Loft Living: Culture and Capital in Urban Change” (1983) de Sharon Zukin, podemos perceber que há uma quantidade superior de artigos e livros tratando do tema a partir do início da década de 2000, o que reflete o grande impacto dos modelos de revitalizações urbanas de caráter cultural durante a década de 1990. Dentre os autores utilizados, destacamos Zukin (1982, 2006 [1995], 2010); Sorkin (1992); Bianchini (1993); Evans (2001); Vaz & Jacques (2001, 2006); Arantes (2002 [2000], 2013 [2012]); Vainer (2002); Ribeiro (2004, 2006); Lees, Slater & Wyly (2008); e Sánchez (2010). Ressaltamos que a obra da socióloga estadunidense Sharon Zukin também é de extrema importância para a pesquisa realizada, permeando toda a tese em função de sua contundente análise sobre o processo de ‘culturalização’ de Nova York durante quase quarenta anos na trilogia de livros “Loft Living” (1982), 12 “The Cultures of Cities” (2006 [1995]) e “Naked City” (2010) – este último uma crítica direta à obra de Jane Jacobs (2011 [1961]) e sua falta de consideração com os possíveis problemas sociais resultantes das muitas revitalizações urbanas da pós-modernidade, como explicaremos no capítulo III. O último bloco teórico inclui autores que discorrem sobre os temas da classe, cidade e economia criativa e cujas obras se tornaram referências nos discursos que glorificam a criatividade dentro das políticas urbano-culturais contemporâneas. Em geral, trata-se de autores que reforçam a noção de venda da imagem da cidade, ignorando as consequências sociais negativas apontadas pelas teorias críticas de Bauman e Harvey. Utilizamos como ponto de partida as obras “The Creative City” (1995) de Charles Landry e Franco Bianchini e “The Creative Economy: How People Make Money From Ideas” (2001) de John Howkins e aprofundamos a temática através da obra do economista estadunidense Richard Florida. Cabe destacar que enxergamos seu livro “A Ascensão da Classe Criativa” (2011 [2002])18 como um marco teórico na expansão do discurso de criatividade, uma vez que sua pesquisa vem sendo mencionada por políticos e administradores urbanos das mais diversas cidades do mundo. Para ressaltar a polêmica e as críticas surgidas contra a teoria de Florida, mencionamos autores como Rosler (2010, 2011a, 2011b, 2012); Krätke (2011, 2013 [2004]); e Novy & Colomb (2013). Cabe destacar que, para auxiliar na compreensão dos blocos teóricos que investigam os significados, processos e consequências dos paradigmas da ‘capital de cultura’ da ‘cidade criativa’, os capítulos II e III são finalizados com quadros-síntese, contendo os conceitos mais importantes utilizados na redação, bem como suas definições de acordo com autores selecionados. Em se tratando do recorte espacial escolhido – referente à cidade de Berlim, a revisão bibliográfica necessária para contextualizar o leitor brasileiro contou, além das observações da própria autora da tese, com obras como “Staging the New Berlin: Place Marketing and the Politics of Urban Reinvention Post-1989” (2012) de Claire Colomb e “The Berlin Reader: A Compendium on Urban Change and Activism” (2013) – um compêndio organizado por Matthias Bernt, Britta Grell e Andrej Holm. Estes autores defendem a necessidade de melhor compreensão da realidade local por autores estrangeiros ao constatar um número crescente de artigos, livros e eventos acadêmicos internacionais que analisam fenômenos urbanos em Berlim de forma descontextualizada, focando superficialmente em casos mais famosos, como a revitalização de Potsdamer Platz nos anos 1990, por exemplo. Assim, nesta tese, buscamos compreender os processos urbano-culturais berlinenses de acordo com os acontecimentos históricos, os atores políticos e o quadro econômico de cada momento, apoiando-nos, principalmente em autores alemães ou com larga experiência de atuação em Berlim. Isso porque, apesar de tratarmos de tendências globais de instrumentalização da cultura nos projetos e planos urbanos, consideramos que elas sempre são aplicadas de acordo com especificidades locais, sofrendo reações particulares, que expressam a singularidade de cada cidade e época. Logo, a escolha de Berlim como recorte espacial não implica na apresentação da cidade como um retrato estereotipado do cenário mundial, mas como um caso complexo, digno de reflexão em função de sua peculiar história urbana e das consequências locais de adoção de tendências globais. Ressaltamos que, para a elaboração desta contextualização da cidade de Berlim, diferentes fontes de referência foram utilizadas. Muitas das bases teóricas que discutem processos recentes de manipulação da imagem berlinense foram encontradas sob a forma de artigos em periódicos 18 Originalmente publicado em 2002 sob o título “The Rise of the Creative Class”. 13 acadêmicos internacionais na área de Estudos Urbanos e Geografia Cultural19, tendo sido realizada intensa pesquisa em bases de bibliotecas universitárias, em especial na biblioteca da Technische Universität Berlin (TU Berlin). Devido à atualidade e popularidade dos temas da gentrificação, migração da classe criativa e construção de uma imagem de Berlim como cidade ‘da moda’, a busca de notícias e textos de opinião em revistas e jornais disponibilizados na Internet também foi essencial, como pode ser percebido através de matérias de alcance internacional como "For Young Artists, All Roads Now Lead to a Happening Berlin" (2005) do jornal The New York Times; "Hip Berlin: Europe's Capital of Cool" (2009) da Time Magazine; "East Berlin Fights Back Against the Yuppy Invaders" (2011) do jornal The Guardian; "Save Berlin"(2013) da revista berlinense em língua inglesa Exberliner;, "Berliners Are Fighting a War against Hipster-Led Gentrification" (2013) da revista eletrônica VICE; e "Sacking Berlin" (2013) da revista The Baffler. Além das reportagens jornalísticas, foram utilizados na coleta de dados, os portais da municipalidade berlinense (Berlin Online Stadtportal), dos órgãos de marketing urbano (Berlin Tourismus & Kongress GmbH e Visit Berlin) e da agência de estatísticas local (Amt für Statistik BerlinBrandenburg). Estes dados oficiais foram sistematizados e utilizados na elaboração de gráficos, tabelas e quadros, a maior parte dos quais se encontram nos anexos, que comprovam os pontos levantados na tese. Material cinematográfico, como os filmes “Metropolis” (1927) de Fritz Lang, “Der Himmel über Berlin” (“Asas do Desejo”, 1987) de Wim Wenders e “Good Bye Lenin!” (“Adeus, Lênin”, 2003) de Wolfgang Becker também foram de grande importância para apreender formas de representação e percepção da cidade em diferentes épocas marcantes de sua história: o primeiro, uma ficção científica que retrata os receios do auge da modernização; o segundo, um poema em imagens que mostra os vazios urbanos e a fragmentação da vida na cidade dividida que adentrava a pós-modernidade tardiamente; e o último uma comédia sobre o choque cultural e o processo de ‘ocidentalização’ desencadeado pela queda do Muro de Berlim. Tendo em vista a grande variedade de fontes utilizadas, a listagem de referências foi subdividida entre fontes bibliográficas principais, reportagens jornalísticas e notícias, filmes e mídia e websites da Internet. Em relação à experiência empírica, durante o período de doutorado sanduíche em Berlim em 2013 e em nova visita à cidade realizada entre setembro e outubro de 2014, foram realizados três estudos de caso. O primeiro diz respeito à operação urbana MediaSpree – apoiada por discursos calcados no desenvolvimento urbano criativo – e aos movimentos de resistência surgidos contra a mesma. Uma parte deste estudo teve como base a pesquisa de arquivos junto ao Departamento de Desenvolvimento Urbano do Senado (Senatsverwaltung für Stadtentwicklung), incluindo plantas, memoriais e brochuras com os projetos, bem como uma pesquisa sobre o funcionamento dos instrumentos de participação disponíveis no aparato estatal berlinense. Ademais, foram realizadas visitas às regiões englobadas no plano urbano (documentadas através de registro fotográfico), bem como entrevistas e debates com foco especial neste projeto, principalmente durante o evento Berlin Unlimited – organizado por pesquisadores urbanos em outubro de 2014. O segundo estudo de caso consiste na Kunsthaus Tacheles – um centro cultural alternativo, fruto de uma ocupação ilegal iniciada imediatamente após a queda do Muro de Berlim e internacionalmente conhecido, e cujos artistas foram despejados entre 2012 e 2013. Este local foi Dentre eles, os periódicos “European Urban and Regional Studies”, “Cultural Geographies”, “International Journal of Urban and Regional Research” e “Space and Culture”, entre outros. 19 14 inicialmente conhecido pela autora em 2007, durante o período de mestrado sanduíche, e a justificativa para o novo estágio doutoral foi a possibilidade de acompanhar de perto a sua luta para permanecer no edifício após a primeira onda de despejo em 2012. Entre abril de 2013 e janeiro de 2014, a autora se tornou membro da associação Art Pro Tacheles e. V. – único grupo remanescente no pátio externo e jardim do terreno após despejo dos demais artistas do edifício em setembro de 2012. A opção pelo método de observação participante apresentou desafios, em especial pelo fato da proximidade implicar em um envolvimento pessoal com o objeto. Independente disso, considera-se que a inserção no grupo permitiu estabelecer relações de confiança, facilitando o diálogo com os artistas e a participação de reuniões semanais internas e de reuniões esporádicas com os advogados responsáveis pelos processos legais referentes às questões de propriedade do terreno. Até o fim de junho de 2013, foram realizadas visitas quase diárias ao pátio conhecido como Oficina de Metal (Metallwerkstatt). Durante este período, foi realizado o registro fotográfico do espaço e da rotina dos artistas, bem como dos eventos realizados pelo grupo na tentativa de impedir o fechamento total do local, como a manifestação “Festa Popular Tacheles” (Volksfest Tacheles) em 13 de abril de 2013 e o evento “Arte Caminha” (Kunst geht spazieren) em 24 de junho de 2013. Foram realizadas também anotações constantes no caderno de campo referentes aos acontecimentos presenciados e reflexões ao seu respeito, bem como entrevistas com os artistas ainda presentes na Metallwerkstatt e outros não ligados a este grupo específico, mas que haviam trabalhado dentro do edifício em algum momento. Devido à presença de indivíduos de nacionalidades variadas, comunicando-se através de diferentes línguas e com tempos de permanência muito disparates no local (entre 22 anos e meses), o questionário básico (ver anexo 11, p. 200) teve que comportar certa flexibilidade de modo a não desconsiderar as diferentes experiências e vivências dos sujeitos envolvidos na construção daquele território cultural. As entrevistas20 foram gravadas quando permitido e realizadas, em sua maioria, em inglês. Entrevistas foram realizadas também com proprietários e gerentes do comércio situado na rua Oranienburger Straße (onde se situa a entrada principal do edifício), a respeito do impacto do fechamento do local no fluxo de turistas e clientes, que diminuiu consideravelmente. Neste período foi ainda realizada pesquisa a respeito do status de patrimônio histórico do espaço e visita ao escritório de arquitetura responsável pelo projeto de renovação do edifício na década de 1990, tendo sido possível o acesso às plantas baixas e demais documentos relacionados à arquitetura do prédio. Cabe destacar que a autora estava presente no momento de despejo final dos artistas e fechamento do terreno por parte dos representantes do banco proprietário, tendo sido possível o registro fotográfico deste acontecimento. Após a obstrução do acesso ao local, o acompanhamento do grupo persistiu, apesar da diminuição no número de artistas e na intensidade de atuação do grupo, que se encontrava desmotivado em razão dos fatos recentes. Os encontros passaram a acontecer, em sua grande maioria, em um ateliê secundário – um pequeno espaço situado no jardim de um albergue em um distrito adjacente. Após a diminuição das atividades, houve um período mais intenso de coleta de informações históricas, de documentos oficiais e de material iconográfico antigo. Ainda sobre a Kunsthaus Tacheles, cabe ressaltar que houve uma grande dificuldade em se encontrar publicações e pesquisas de caráter acadêmico, apesar dos seus mais de vinte anos de 20 Todas as pessoas entrevistadas para esta tese são aqui identificadas a partir apenas de seu primeiro nome ou de pseudônimo artístico de modo a preservar suas identidades. 15 história, o que significa que esta tese constitui, muito provavelmente, uma das poucas publicações formais com a história do espaço desde sua abertura a seu fechamento. Em face desta dificuldade, os documentários cinematográficos “Unverwüstlich - Die Geschichte des Kunsthauses Tacheles” (2012) de Falko Seidel e “The Last Days of Tacheles: A Berlin Story” (2014) de Stefano Casertano (de cuja filmagem a autora fez parte em 2013) consistiram em fontes alternativas de depoimentos e material histórico. A maior parte das referências escritas sobre o edifício e os grupos que o ocupavam foi advinda de notícias de jornais e revistas, em sua maioria locais e através de matérias publicadas apenas online, havendo um aumento de seu número após 2009, quando foi intensificada a possibilidade de despejo. O desenvolvimento do terceiro estudo de caso, focado nos artistas de rua de Berlim, ocorreu em função da percepção da enorme aceitação desta atividade nesta cidade, bem como do grande número de jovens artistas de outras nacionalidades – membros da “classe criativa” cunhada por Richard Florida – a praticando no espaço público local. O estudo ocorreu de forma paralela aos anteriores com o objetivo de investigar o porquê da escolha de Berlim como destino destes jovens. Ele consistiu, principalmente, na realização de entrevistas (em sua maioria em inglês) através de questionário padronizado (ver anexo 14, p. 207). Este envolvia perguntas específicas sobre sua motivação em relação à performance de rua e à escolha dos espaços para realização destas performances no espaço urbano. Foram entrevistados apenas indivíduos previamente observados pela autora nas ruas, estações de metrô e parques. Devido à grande quantidade de performances assistidas durante os nove meses na cidade, o critério básico para a seleção dos entrevistados naturalmente se tornou sua capacidade de atrair público. Assim, artistas que apresentavam facilidade em agregar grande número de pessoas, modificando a dinâmica do espaço onde se encontravam, foram contatos posteriormente para a realização de entrevistas. Cabe destacar que, apesar da realização de algumas entrevistas com artistas circenses (mímicos, malabaristas, palhaços, entre outros), houve um foco maior nos músicos de rua, que conseguiam atrair o maior e mais variado público – de crianças a idosos. Ressaltamos também que, desde o início de 2013, a autora se manteve em contato com o grupo The Busking Project (TBP) – uma espécie de associação com base na Inglaterra que documenta artistas de rua do mundo todo visando a realização de um documentário sobre o tema, bem como a construção de uma plataforma online. Dentre os autores utilizados a respeito do papel e atividade do artista de rua e sobre o uso temporário do espaço através de atividades culturais, destacamos Franck & Stevens (2007), Simpson (2011) e Broad, Crawford & Smith (2014). É importante mencionar também que pretendemos continuar desenvolvendo este tema – acerca do uso temporário no espaço – durante o estágio de pósdoutorado, após a defesa desta tese. Em relação aos três estudos de caso realizados, destacamos que, além das pesquisas de material histórico e iconográfico e da observação participativa, foi propositalmente utilizado como método um extenso registro fotográfico, que mostra a evolução de certos espaços durante um período de sete anos – desde a primeira até a última visita a Berlim. A opção de utilizar um alto número de fotografias próprias ocorreu em função desta tese tratar da criação de imagens de cidade e de considerarmos que as percepções subjetivas e pessoais da paisagem urbana são de extrema importância para a apreensão de um lugar. Assim, acreditamos que além de auxiliar o leitor brasileiro na compreensão de um recorte espacial distante, as imagens selecionadas refletem a visão crítica sobre as recentes transformações na cidade por parte da autora da tese – uma pessoa que, teoricamente, se encaixa na descrição de profissional criativo internacional que os administradores urbanos locais pretendem atrair, como veremos mais adiante. 16 CAPÍTULO I A Liquefação da Modernidade Iniciei esse trabalho assumindo que os significados de cultura são instáveis. Eu não estou dizendo que o termo ‘cultura’ possui muitos significados. Antropologistas podem contar tantas definições de cultura quanto os franceses podem fazer queijos. Eu quero dizer, sim, que cultura é um processo fluido de formar, de expressar e de reforçar identidades, sejam elas identidades de indivíduos, grupos sociais ou comunidades espacialmente construídas. Muito da insistência teórica sobre fluidez, transformação e resistência ao controle reflete as preocupações da era relativamente longa da Modernidade. Muito do foco em identidade e multiplicidade refere-se ao prolongamento do fin de siècle pós-marxista, pós-positivista, pós-moderno (ZUKIN 2006 [1995], p. 289-290). 1.1 Modernidade: Solidez e Liquefação A virada do século XX para o século XXI, assim como todo fechamento de um ciclo, mostrouse um período propício para o surgimento de novas reflexões teóricas a respeito das crescentes transformações econômicas, sociais e culturais observadas em todo o mundo. A partir do final dos anos 1980, cientistas sociais das mais diversas disciplinas (principalmente geógrafos, sociólogos e filósofos) passaram a discorrer sobre uma suposta crise dos tempos, apreendida através de uma série de novos comportamentos e tendências em nível global, e que apontavam, dentre outras coisas, para o encurtamento das distâncias, a fragilização das fronteiras e o enfraquecimento da noção moderna de 'Estado-nação'. Neste contexto da euforia que antecipava a chegada do novo milênio e em que já se havia alguma distância para avaliar as consequências de uma década de intensas políticas neoliberais, diversos fins passaram a ser decretados: o fim da história, da geografia, dos territórios, da importância do espaço e do tempo e, fundamentalmente, o fim da modernidade21. Assim, enquanto alguns autores falavam de uma “modernidade tardia” (LACLAU 1990) ou mesmo de uma “modernidade líquida” (BAUMAN 2001 [2000], 2007 [2006], 2008 [2007], 2011), outros mencionavam o advento da pós-modernidade (HARVEY 2011 [1989]; HALL 2006 [1992]). Independente do nome adotado, ressaltamos que o recorte temporal desta tese representa um momento de mudanças extremas e em ritmo tão rápido que fogem, com frequência, de nossa capacidade de compreensão. Conforme apontado por Giddens (1991), trata-se de uma era marcada 21 O fortalecimento do fenômeno da globalização levou, no fim do século XX, a uma compressão das noções de espaço e tempo e, consequentemente a uma grande transformação na configuração dos territórios, o que fez com que muitos autores passassem a traçar uma perspectiva pessimista em relação à forma de organização das sociedades em geral, declarando uma série de ‘fins’. Neste contexto, destacamos a polêmica obra do urbanista filósofo Paul Virilio, que nos anos 1980 falava do “suposto desaparecimento do tempo e do espaço” (HARVEY 2011 [1989, p. 265) e, nos anos 1990, conectava o “fim da história e geografia” com o fenômeno da desterritorialização, colocando esta como a grande questão da passagem do século (VIRILIO 1997 apud HAESBAERT 2010, p. 19). 17 por descontinuidades e por novas formas de “interconexão social” do globo tão novas que “as transformações [nos parecem] mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos precedentes” (p. 14). Antes de nos aprofundarmos nestas mudanças, é necessário explicar o que entendemos por ‘modernidade’ e o que a difere do momento atual. Em sua obra de 1989, “Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural”, o geógrafo britânico David Harvey discorre sobre o que ele compreende por “projeto da modernidade” – um esforço intelectual consolidado durante o Iluminismo na Europa do século XVIII e que saudava a ruptura com a história anterior, “a criatividade humana, a descoberta científica e a busca da excelência individual em nome do progresso humano” (HARVEY 2011 [1989b], p. 23, grifos meus). Naquele momento, para que fosse possível a criação de um novo mundo no lugar do anterior, era necessário realizar um processo de “destruição criativa” (ibidem, p. 26) – das bases de pensamento ultrapassadas e dos espaços existentes para que houvesse a reconstrução dos mesmos. Dentro deste processo de “destruição criativa” da modernidade que se fortaleceu durante o século XIX e adentrou o século XX, os artistas e arquitetos possuíam um papel fundamental, uma “função heroica” (ibidem, p. 26-27): O artista, alegou Frank Llloyd Wright – um dos maiores arquitetos modernistas –, deve não somente compreender o espírito de sua época como iniciar o processo de sua mudança (HARVEY 2011 [1989b], p. 28). A passagem do século XIX para o XX e a época que precedeu a I Guerra Mundial foram marcadas pela ambivalência de um continente europeu que simultaneamente abraçava e temia as novidades que começavam a alterar os estilos de vida vigentes. Os novos meios e condições de produção (a máquina, a fábrica), de circulação (novos transportes) e de consumo (o mercado de massa) apontavam para a concretização da modernidade como um fenômeno fundamentalmente urbano. Em razão do crescimento populacional, da forte migração e da industrialização, tornou-se necessário reorganizar os ambientes, o que ocorreu através de intensos processos de urbanização das cidades, calcados em princípios de racionalismo, de progresso linear e de padronização dos espaços. Estes princípios foram fortalecidos no período seguinte, entre a I e a II Guerra Mundial, quando muitas cidades europeias foram devastadas, havendo a necessidade de reconstrução, tanto dos seus espaços quanto de suas economias. Esta época também foi marcada por descontentamentos políticos, o que influenciou uma forte tendência positivista muito compatível com as práticas de urbanismo e arquitetura da época. As cidades passaram a ser concebidas como “máquinas nas quais viver” (ibidem, p. 39) e até meados do século passado, o modernismo – como movimento intelectual, estético e arquitetônico – se tornaria parte do discurso oficial nas cidades, sendo utilizado pelo poder estatal e corporativo. De acordo com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001 [2000]), este período – que se estendeu por boa parte do século XX – poderia ser considerado como uma “modernidade pesada” – sólida, condensada, sistêmica, volumosa, imóvel, enraizada (p. 68). Tratava-se de uma época marcada não só pela racionalidade, mas pela rigidez. Seu símbolo maior era a indústria, em especial, a fábrica fordista, com sua mecanização extrema e a separação dos aspectos intelectual e manual 18 do trabalho. O modelo da fábrica fordista implicava na noção de uma rotina inquebrável, de uma padronização e predeterminação de movimentos que submetia o sujeito a uma lógica homogênea, bem como de uma dicotomia entre liberdade e obediência na relação entre detentores dos meios de produção e operários. Ademais, este modelo representava também a fixação do capital no solo e do trabalho e dos trabalhadores no espaço. Isso porque, na “modernidade pesada” – do hardware –, era vantajoso para os proprietários das fábricas que todo o processo de produção, as máquinas e os operários permanecessem no mesmo lugar, propiciando maior controle e limitando a necessidade de deslocamentos e de transporte, o que reduzia os custos e gerava maiores lucros (BAUMAN & MAY 2010 [1990]). Consequentemente, nesta era, prezava-se o assentamento: o sedentarismo era valorizado e os longos muros protegiam as fábricas. A conquista territorial e a manutenção das fronteiras eram urgências para consolidar a imagem de Estados-nações poderosos. A felicidade, a riqueza e o poder eram conceitos geográficos, atrelados à noção de propriedade em um lugar fixo: O tempo rotinizado prendia o trabalho ao solo, enquanto a massa dos prédios da fábrica, o peso do maquinário e do trabalho permanentemente atado acorrentavam o capital. [...] O tempo congelado da rotina da fábrica, junto com os tijolos e argamassa das paredes, imobilizava o capital tão eficientemente quanto o trabalho que este empregava (BAUMAN 2001 [2000], p. 135). Durante a segunda metade do século XX, no entanto, esta realidade passou a se transformar, especialmente a partir do fim dos anos 1960. De acordo com a artista e crítica de arte estadunidense Martha Rosler (2010), foi a partir deste período que, enquanto a geração mais velha focava suas atenções no trabalho e na família, os jovens de classe média (baby-boomers do pósguerra) passaram a se envolver com os movimentos sociais e, simultaneamente, com o consumo da contracultura, sob a forma de música, jornais, moda e demais produtos culturais que indicassem uma aversão a estilos de vida opressivos. Estes novos gostos passaram a ser observados com cuidado pela indústria da publicidade, então saturada e a procura de um novo nicho e de uma nova maneira de dialogar com as faixas etárias mais jovens (p. 09-10). Logo, a revolução contracultural seria apropriada e transformada em mercadoria, abrindo o caminho para a mercantilização e instrumentalização da cultura em vários níveis, como veremos mais à frente. Harvey (2011 [1989b]) acrescenta que o movimento contracultural surgiu acompanhado da crítica antimodernista, que condenava a racionalidade extrema na organização do espaço, as formas de poder institucionalizado, o capitalismo liberal e o imperialismo. Nos campos da Arquitetura e do Urbanismo, o planejamento em larga escala, a setorização, o funcionalismo e a monumentalidade modernistas passaram a ser vistos com maus olhos, principalmente, sob a influência da obra de Jane Jacobs, “Morte e Vida de Grandes Cidades” (2011 [1961]) (ver p. 68-69). Para Harvey, a turbulência global iniciada no ano de 1968 e estendida até 1972 representou um marco do amadurecimento do momento chamado por ele de “pós-modernismo”: 19 No campo da arquitetura e do projeto urbano, considero o pósmodernismo como uma ruptura com a ideia modernista de que o planejamento e o desenvolvimento devem concentrar-se em planos urbanos de larga escala, de alcance metropolitano, tecnologicamente racionais e eficientes, sustentados por uma arquitetura absolutamente despojada (as superfícies “funcionalistas” austeras do modernismo de “estilo internacional”). O pós-modernismo cultiva, em vez disso, um conceito do tecido urbano como algo necessariamente fragmentado [...]. Como é possível comandar a metrópole exceto aos pedaços, o projeto urbano (e observe-se que os pós-modernistas antes projetam do que planejam) deseja somente ser sensível às tradições vernáculas, às histórias locais, aos desejos, necessidades e fantasias particulares, gerando formas arquitetônicas especializadas, e até altamente sob o espetáculo, passando pela monumentalidade tradicional (HARVEY 2011 [1989b], p. 69, grifos meus). É necessário ressaltar, no entanto, que a sociedade que fechou o século XX e adentrou o século XXI permaneceu semelhante à da “modernidade pesada” no que se refere a sua sede de aperfeiçoamento e de superação incessante, à manutenção da polarização entre detentores e não detentores do capital e à já mencionada necessidade de “destruição criativa” para a construção de novas bases (HARVEY 2011 [1989b]; BAUMAN 2001 [2000]). Apesar disso, a nova fase conflagrada passou a diferenciar-se da anterior pela impossibilidade de imobilidade, pela necessidade de movimento constante em busca de uma satisfação inatingível, pelo enfraquecimento das fronteiras e diminuição das distâncias e pela consolidação do poder simbólico como motor do capitalismo. Para explicar este momento de transformações vivenciado desde os anos 1970, nos remetemos à teoria de Zygmunt Bauman referente à conflagração de uma era de “modernidade leve” e em processo de liquefação, e que, a partir dos anos 2000, se configura como uma “modernidade líquida” (2001 [2000]). Esta metáfora é explicada pelo caráter de “fluidez” do estado líquido da matéria: a forma líquida, diferentemente da sólida, nunca ocupa a mesma posição no espaço e muda constantemente, quase nunca retornando à sua configuração original (p. 08). Ademais, o líquido implica nas ideias de leveza, inconstância e rápida mobilidade – três noções muito presentes na realidade atual. Optamos aqui pela adoção do conceito de “modernidade líquida” considerando que ele é especialmente interessante para o campo do Urbanismo, já que implica em uma análise da sociedade em relação ao espaço e ao tempo. Cabe ressaltar que não rejeitamos o conceito de “pós-modernidade”, proferido por David Harvey. Porém, partimos do pressuposto, assim como Bauman22, de que a pós-modernidade não consiste em uma ruptura com o período anterior, mas sim em uma espécie de desdobramento do mesmo. Apesar da aparente oposição entre os períodos líquido e sólido da modernidade, eles se complementam, tendo suas características sobrepostas e não opostas. Bauman argumenta que, desde o início, a modernidade representou um processo de “liquefação”, referindo-se à célebre frase presente no “Manifesto do Antes de escrever sobre a liquefação da modernidade e sugerir o conceito de “modernidade líquida”, Bauman designava o período contemporâneo como uma “pós-modernidade” – um momento em que já se há distância para estabelecer uma “visão fria e crítica da modernidade na sua totalidade”, porém não existindo uma oposição total ao período anterior. A época atual não representaria o fim ou a rejeição da modernidade, mas sim sua “maioridade”, o ponto onde é possível fazer um balanço do que veio antes (BAUMAN 1999 [1991], p. 288). Visão similar é adotada por David Harvey (2011 [1989b]). 22 20 Partido Comunista”: “tudo o que era estável e sólido desmancha no ar” (MARX & ENGELS 2001 [1848], p. 29) – uma reflexão da autoconfiança e da racionalidade extrema do espírito moderno, descontente com a estagnação da sociedade naquele momento (BAUMAN 2001 [2000]) p. 06). O projeto da modernidade foi pensado para desmanchar as antigas bases ‘sólidas’ da sociedade e moldar novas e aperfeiçoadas bases, igualmente ‘sólidas’. Para o sociólogo, o desmanche dos sólidos que vem ocorrendo desde então culminou na “libertação da economia” (ibidem, p. 10) e no derretimento das ações coletivas e dos laços que antes nos uniam, como a família, a classe, o bairro (ibidem, p. 12-13). A “modernidade líquida” atual – de software – reflete um mundo complexo, múltiplo, rápido, ambíguo e plural; reflete uma época de transição para uma nova realidade que ainda está por vir e que não compreendemos totalmente. Ela é marcada pela instantaneidade, pela ação e pelo movimento rápidos, pela libertação, no tempo e no espaço, do capital e do trabalho, que se tornam igualmente leves e se movem pelo mundo (op. cit.). Seu grande trunfo foi o desenvolvimento de novos meios de comunicação – em especial da informática, que propiciou a transmissão de informações a longas distâncias “sem necessidade de uma pessoa ou qualquer outro corpo físico mover-se de um lugar para o outro” (BAUMAN & MAY 2010 [1990], p. 177). A partir do momento em que a informação passou a fluir de forma independente dos corpos e do espaço físico, as distâncias passaram a não importar tanto, pois o controle e o poder podiam ser exercidos de novas maneiras. “A comunicação [tomou] o lugar do transporte como principal veículo da mobilidade” e, graças à tecnologia, o mundo passou a viajar até nós enquanto permanecemos fixos no lugar (ibidem, p. 179-180). O sociólogo polonês acredita que as fronteiras reais e imaginadas (com a qual estávamos acostumados) são hoje atravessadas com tanta frequência que, ao invés de se ater aos marcos divisórios, deveríamos conceber nossa situação atual como “uma vida que se leva na zona de fronteira” e onde convivem “culturas em movimento”23 (2012 [1999], p. 76): Todos os residentes da zona de fronteira têm agora pela frente tarefa semelhante. Compreender, não censurar; interpretar, não ordenar; abandonar o solilóquio em favor do diálogo – parece ser este o preceito para as novas ciências humanas, mais humildes; porém, pela mesma razão, mais poderosas, prometendo aos homens e mulheres desnorteados que vivem em nossa era algum discernimento e um pouco de orientação para enfrentar a massa de experiências cada vez mais descoordenadas e amiúde contraditórias (BAUMAN 2012 [1999], p. 75). 23 A ideia de culturas em movimento é uma referência de Bauman ao conceito do antropólogo polonês Wojciech Burszta (apud BAUMAN 2012 [1999], p. 76). 21 1.2 Capital e Consumo Na era contemporânea de “modernidade líquida”, da vida em “zonas de fronteiras” e de “culturas em movimento”, as novas tecnologias propiciam a contínua aceleração do tempo e o rompimento de barreiras no espaço, enfraquecendo a diferença entre o que está próximo e o que está distante. Além da maior mobilidade de informação e de pessoas, há também uma maior fluidez do capital e, consequentemente, o surgimento de novas configurações de poder. Esta possibilidade de maior mobilidade do capital é essencial para compreender o aumento da competição entre as cidades e a necessidade de criação de imagens urbanas indicativas de poder. Harvey (2011 [2010], 2012), considera que o capital é, na realidade, um processo ocorrido no tempo e no espaço, e em que a continuidade do seu fluxo é um dos pontos mais importantes para sua maior acumulação. Isso porque, hoje, o dinheiro inicial aplicado, os meios de produção, os recursos envolvidos no trabalho e a mercadoria encontram-se todos em locais diferentes, o que implica na necessidade de um movimento contínuo e desobstruído. Obstáculos a este movimento no espaço implicam em maior tempo de circulação – o que é desfavorável para os investidores. Da mesma maneira, o processo não pode ser interrompido, porque interrupções implicam em perdas. Em contraposição, a sua aceleração implica em giros mais rápidos e em maiores lucros. Neste sentido, a diminuição de fronteiras e barreiras espaciais característica da “modernidade líquida” representa um elemento crucial para o processo contemporâneo do capital. Também crucial é a aplicação de novas tecnologias, o desenvolvimento de novos meios de transporte e de novas formas de comunicação, que se tornam facilitadores do fluxo, beneficiando certos produtos dentro da dinâmica de competição que move o capitalismo (p. 42-43). É, por isso, que a ideia de inovação (das técnicas, dos modos de produção...) passou a ser glorificada na entrada do século XXI, mais especificamente sob o mantra da ‘criatividade’ – que, além de acelerar o processo do capital, desperta também novos desejos e necessidades de consumo. A produção acelerada naturalmente leva à busca de novos mercados (localizações geográficas) e de novos nichos de mercado (modalidades) através dos quais seja possível expandir as trocas comerciais. Nas últimas décadas, os detentores do capital passaram a perceber que, nos setores econômicos de serviços e de entretenimento, é possível alcançar uma maior velocidade do fluxo, uma vez que mercadoria a ser vendida é, muitas vezes, o próprio processo de trabalho, não havendo um intervalo de tempo significativo entre o momento de produção e o de venda (ibidem). Este é o caso, por exemplo, de eventos culturais – realizados e consumidos quase instantaneamente; e dos estilos de vida – reproduzidos através dos setores da moda e do design, agora voltados para o consumo em massa. Ademais, o tempo de vida destes serviços e dos produtos culturais a eles atrelados é bem menor do que o de bens de consumo materiais da fase sólida da modernidade. Eles são voláteis e efêmeros e seu consumo precisa ser constantemente renovado, o que justifica ainda mais o investimento na produção dos mesmos, juntamente com as tecnologias, ideias e valores que sorrateiramente incentivam sua aceitação. Assim, dentre as transformações observadas por Bauman e Harvey na fase atual da modernidade, destacamos uma substituição do consumo de bens materiais/manufaturados pelo de serviços, especialmente aqueles ligados à diversão, aos espetáculos e às distrações. Não é de se espantar que apenas cerca de dez anos após as primeiras obras destes autores sobre as novas características da modernidade (desenvolvidas entre o fim da década de 1980 e o início da de 1990), o foco da economia se voltasse para a capacidade de gerar novas ideias com rapidez, de inovar, de ser criativo, como veremos no capítulo III. Para Harvey (2011 [1989b]), o resultado desta 22 volatilidade no consumo e produção foi a consolidação de uma “sociedade do descarte”, em que se jogam fora não apenas os bens produzidos e consumidos, mas também os valores, os relacionamentos, o apego às coisas e aos lugares e estilos de vida, dificultando qualquer tipo de planejamento de vida a longo prazo. Na visão de Bauman (2008 [2007]), a sociedade moderna líquida, em função da fluidez e leveza do capital, se transforma em uma “sociedade de consumidores”24, sendo que, hoje, quase todas as relações humanas passaram a ser moldadas a partir das relações entre consumidores e objetos de consumo (p. 19). Mais do que isso, tudo se torna uma mercadoria em potencial, tudo pode ser consumido – desde que seja publicitado como uma maneira de satisfazer necessidades ou desejos imediatos, pois o que mais estimula os consumidores é sair da invisibilidade e da imaterialidade “cinza e monótona”, dando-lhes a possibilidade de se destacarem em meio à massa (p. 21). Assim, se a sociedade moderna sólida era uma “sociedade de produtores”, orientada para a segurança a longo prazo e para o desejo de um ambiente confiável e resistente ao tempo; a “sociedade de consumidores” da modernidade líquida necessita ostentar bens que indiquem a satisfação de prazeres imediatos. Nela, o indivíduo deve colocar-se sempre à frente – das tendências, dos estilos e, por conseguinte, da competição. Para estar à frente, é necessário adquirir certos emblemas que indiquem status e anunciar publicamente a sua possessão para que todos fiquem cientes e almejem posição semelhante (p. 108). Se Bauman limita suas reflexões a respeito da “vida para consumo” (op. cit.) aos padrões de comportamento e à esfera humana das relações, estendemos aqui suas considerações para a esfera urbana, afirmando que muitas das características por ele retratadas aplicam-se à análise das grandes cidades ocidentais, que competem por turistas e investimentos, vendendo suas imagens urbanas como mercadorias através da adoção de emblemas de status, como o de ‘capital de cultura’ ou ‘cidade criativa’. O “fetichismo da mercadoria” já era condenado por Karl Marx, que observava uma omissão ou negligência da interação humana por trás do movimento das mercadorias, como se estas tomassem o papel de sujeitos responsáveis por ações e pelo travamento de relações entre si (BAUMAN 2008 [2007], p. 22). Do mesmo modo, Sánchez também retoma ideia semelhante ao citar o conceito de Lefebvre de uma “sociedade de consumo dirigido”, que implicava na “imposição de uma ideologia da felicidade graças ao consumo e graças a um urbanismo adaptado à sua nova missão, a edificação de centros de decisão, concentradores dos meios de poder” (LEFEBVRE 2004 [1968] apud SÁNCHEZ 2010, p.44). 24 23 1.3 Espaço e Poder Em se tratando dos desdobramentos espaciais dos novos fluxos de capital e padrões de consumo, salientamos a forte conexão entre capitalismo e urbanização – existente desde a fase ‘pesada’ da modernidade e hoje fortalecida. A urbanização sempre teve um papel crucial na absorção dos excedentes de capital e continua o tendo em escala cada vez maior em termos geográficos no mundo globalizado25: “o processo urbano agora é global em escopo e assolado por todo tipo de fissuras, inseguranças e desenvolvimentos geográficos desiguais” (HARVEY 2012, p. 22). Estes desenvolvimentos desiguais são consequências de uma hierarquização urbana do mundo globalizado, em que algumas cidades se destacam mais, acentuando a subordinação de outras, porém, simultaneamente fortalecendo as relações econômicas entre elas. A lógica do capitalismo tardio e neoliberal dita que, para que exista um maior desenvolvimento em certos lugares, é necessário um menor em outros, gerando disparidades. Em face destas, os administradores urbanos passaram a incentivar a competição entre as cidades 26, que buscam a superação constante umas às outras em termos de qualidade cultural, avanços tecnológicos, acumulo de informação e conhecimento. Para demostrar o seu potencial em meio à rede global, há uma preocupação cada vez maior com a produção de signos e imagens urbanas do que com bens materiais. Essa preocupação é intensamente refletida nos campos da Arquitetura e do Urbanismo contemporâneos, cujos profissionais passaram a enfatizar a criação excessiva de marcas de status urbano através de seus projetos: A qualidade de vida se tornou uma mercadoria para aqueles com dinheiro, o mesmo tendo ocorrido com a cidade, num mundo onde consumismo, turismo, indústrias culturais e do conhecimento [...] se tornaram grandes aspectos da economia política urbana [...]. A inclinação pós-modernista para encorajar a criação de nichos de mercado, tanto em escolha de estilos de vida urbanos quanto em hábitos de consumo, cerca a experiência urbana contemporânea com uma áurea de liberdade de escolha no mercado, provido que você tenha dinheiro [...] (HARVEY 2012, p. 14). Esta “áurea de liberdade de escolha no mercado” não é, porém, estendida a todos os habitantes urbanos. A crescente desigualdade social resultante da lógica do capitalismo tardio implica em diferentes graus de liberdade para as pessoas: quanto maior o poder aquisitivo e o acesso a recursos e serviços urbanos, maior é a gama de escolhas do indivíduo, maior é a sua mobilidade pelo espaço e mais poder ele possui. Bauman e May (2010 [1990]) definem o ‘poder’ como “a busca de objetivos livremente escolhidos para os quais nossas ações são orientadas e [o] controle dos meios necessários para alcançar esses fins” (p.103). Porém, o poder da “modernidade Para Harvey, o “que hoje chamamos de ‘globalização’ esteve na mira da classe capitalista o tempo todo” (p. 130), resultando em uma “compressão do tempo-espaço – um mundo no qual o capital se move cada vez mais rápido e onde as distâncias de interação são compactadas” (2011 [2010], p. 131). 25 26 E esta competição ocorre também entre nações, regiões de um país, estados e, até mesmo, zonas e/ou bairros de uma mesma cidade. 24 líquida”, diferentemente da era anterior, não consiste mais no controle dos meios de produção dos bens materiais, mas sim em um “poder simbólico”. O “poder simbólico” – conceito cunhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (2011 [1989]) na mesma época em que Harvey e Bauman discorriam sobre as transformações da modernidade – diz respeito a um tipo de poder invisível e onipresente, que só pode ser exercido "com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem" (p. 07-08): O que está em jogo é o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de divisão que, quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo (BOURDIEU 2011 [1989], p. 113). O estabelecimento do “poder simbólico” muitas vezes ocorre através da apropriação da cultura, que funciona simultaneamente como um instrumento de identificação e de distinção dos diferentes, sendo capaz de legitimar ou excluir opiniões e discursos que vão contra os objetivos dos detentores do capital. Este capital – leve, da modernidade líquida, que se move no espaço – está cada vez mais distante da noção de capital financeiro de outrora e mais próximo à noção de “capital simbólico”, ou seja, o acúmulo de bens de consumo (materiais ou imateriais) que atestam a distinção do seu detentor, contribuindo para a reprodução e legitimação da ordem socioeconômica estabelecida. Tratase, portanto, de um poder que obedece a interesses particulares que, no entanto, tendem a se apresentar disfarçadamente como interesses universais (ibidem, p. 1012). Para Bauman, este poder é “extraterritorial”, ou seja, não é mais limitado “pela resistência do espaço”, fugindo das restrições espaciais (2001 [2000], p. 18). Assim, se na modernidade sólida, as guerras visavam a conquista de territórios, agora elas visam a destruição das barreiras que impedem o fluxo contínuo dos poderes globais e a instalação do livre comércio (p. 19). Sob esta lógica, argumentamos aqui que o Muro de Berlim, erguido IMAGEM 02: O Muro de Berlim durante os anos 1960: fronteira real e simbólica entre Oeste capitalista e Leste socialista. | FONTE: Exposição Checkpoint Charlie, s/d. 25 em 1961, para separar o mundo capitalista do mundo socialista durante a Guerra Fria, e derrubado em 1989 (no auge da proclamação da crise da modernidade pelos acadêmicos), consiste ele próprio em um marco emblemático desta passagem de eras. Afinal, ele representava a dicotomia entre o poder simbólico de uma guerra ideológica marcada pela competição tecnológica, e as disputas por território através do estabelecimento de fronteiras físicas muito ‘sólidas’, como o próprio muro. Neste sentido, sua queda pode ser considerada como um dos mais significativos marcos simbólicos da mudança dos tempos – uma das razões pelas quais as transformações culturais ocorridas nesta cidade serão investigadas mais profundamente adiante. Acrescentamos ainda que não é coincidência que, em sua obra “Condição Pós-Moderna” (2011 [1989]), Harvey dê atenção especial a representação de Berlim através da análise do filme “Asas do Desejo” (der Himmel über Berlin)27 de Wim Wenders (1987) – que precedeu a queda do Muro em dois anos. Nele, Berlim é apresentada como uma paisagem de espaços fragmentados, pessoas isoladas e alienadas e acontecimentos efêmeros. Esta cidade certamente passou por mudanças extremas desde a análise de Harvey e do filme de Wenders, mas continua representando um ótimo exemplo da vida urbana fragmentada, acelerada em meio a uma realidade pós-moderna em constante transformação, como veremos no capítulo IV. O exemplo da queda do Muro de Berlim, neste sentido, contribui para refutar as teorias sobre os supostos fins que mencionamos anteriormente, em especial, o desaparecimento do tempo e do espaço, que permanecem sendo elementos de extrema importância para o fluxo do capital. Assim como Harvey, acreditamos que o enfraquecimento de fronteiras leva a um aumento da competição e faz com que os detentores do capital prestem mais atenção às “vantagens locacionais” (ibidem, p. 265), ou seja, às características específicas de certos lugares e seu potencial de gerar mais lucro. Isto também é percebido por Lees, Slater & Wyly (2008) ao afirmarem que, em uma economia de mercado competitiva, a localização aparece como fator essencial na decisão da melhor forma de uso de um terreno. Ressaltamos que a diferença entre terra (terreno) e localização é crucial. Hoje, a terra em si tem muito pouco valor intrínseco, encontrando seu poder atrativo na sua localização, na acessibilidade e no trabalho e tecnologia envolvidos para melhorar as condições do sitio: Isso significa que o valor da terra urbana é primariamente uma criação social coletiva: se um pequeno pedaço de terra localizado no coração de uma grande e vibrante cidade em crescimento comanda a recompensa do mercado é porque (1) centralidade e acessibilidade são valorizadas na sociedade e; (2) investimentos sociais coletivos ao longo do tempo produziram uma grande e vibrante cidade (LEES, SLATER & WYLY 2008, p. 51). No âmbito da modernidade líquida, a especulação sobre o valor da terra em relação à sua localização consiste em outro importante instrumento para a acumulação do capital. Atualmente, a valorização do local encontra-se diretamente conectada à possibilidade de uma boa qualidade de vida no mesmo, sendo esta medida pela farta oferta não apenas de infraestrutura urbana, mas também de experiências artísticas e culturais, de entretenimento, de lazer e de serviços. Em outras “A identidade desse lugar chamado Berlim é constituída por essas imagens estranhas, mas bastante belas” (HARVEY 2011 [1989b], p. 283). 27 26 palavras, na realidade contemporânea, a presença de cultura em um determinado recorte espacial – seja sob a forma de atividades artísticas, de certo estilo de vida ou mesmo de conhecimento – implica em um aumento do seu valor, bem como do seu potencial gerador de capital. 27 1.4 Cidade e Cultura Ao falarmos de cultura, não nos referimos apenas à arte ou atividades artísticas, mas ao estilo e modo de vida de uma sociedade em determinado tempo e espaço. Se na década de 1980, Bourdieu (2010 [1984], 2011 [1989]) apontava que a cultura do fim do século XX se manifestava como uma ferramenta de distinção, utilizada para reforçar as diferenças de classe, preservando-as juntamente com as hierarquias sociais; Bauman (2011) clarifica que o conceito original da palavra ‘cultura’ implicava sua compreensão como um agente de transformação e não de preservação de certo status quo. No contexto iluminista, a cultura deveria servir como “um instrumento de navegação que direcionasse a evolução para uma condição humana universal” (ibidem, p. 06). Seu propósito primário não era servir como registro de códigos, inventários e descrições da situação atual, mas sim apontar para um objetivo futuro. Sua função assimilava-se a uma missão – a educação28 das massas e o refinamento de seus hábitos com o objetivo de se aprimorar a sociedade, resgatando-a das superstições e retrocessos que marcavam o pensamento europeu até então (ibidem, p. 06-07). Assim, no início da modernidade, a cultura era vista como um encargo a ser empreendido e que incluía a abolição das diferenças de classe, como sugeria a obra “Cultura e Anarquia” publicada pelo poeta e crítico literário britânico Matthew Arnold em 1869. Apesar desta intenção, a aplicação do conceito presumia uma divisão entre os educadores – cultivadores do conhecimento e das boas maneiras a serem passados adiante – e os deseducados – sujeitos a serem cultivados. O processo da cultura inferia, portanto, uma ideia de acordo implícito entre as duas partes, porém, na prática, conhecido somente unilateralmente. Sob a justificativa do “projeto do iluminismo” (ibidem, p. 08) ou do “projeto da modernidade”, a cultura foi aos poucos ganhando status de instrumento para a construção do Estado-nação – sólido. Gradualmente ela foi se transformando em um instrumento nas mãos da classe educadora, branca e economicamente privilegiada, responsável pela teoria evolucionista e pregadora da conversão dos ‘selvagens’ em nome do progresso universal. Foi durante a consolidação da modernidade sólida que a cultura se transformou “de um estimulante em um tranquilizante, de um arsenal da revolução moderna para um repositório de conservação de produtos” (p. 10). Com sua liquefação, no século XX, a cultura passou a condicionar uma reprodução monótona da sociedade e funcionar como um instrumento de manutenção das classes, da ordem e do (des)equilíbrio social predominante. Ainda de acordo com Bauman (2011), este processo de transformação da cultura de um estimulante para um tranquilizante precedeu uma outra transformação de seu papel perante a sociedade no momento contemporâneo: a perda de sua posição como um determinante do coletivo e seu fortalecimento como instrumento para o desenvolvimento individual e pessoal. Assim, o novo papel da cultura na modernidade líquida é igualmente líquido. A “cultura hoje consiste em ofertas, não em proibições; em proposições, não em normas. Como Bourdieu propôs [1984] [...], a cultura hoje está empenhada em oferecer tentações e expor atrações, fascinando e seduzindo, e não com regulações normativas” (p. 13). Mais do que servir à divisão da sociedade, ela serve ao mercado de consumo, ela não pretende cultivar selvagens, mas sim seduzir clientes. “A [nova] função da cultura não é satisfazer necessidades existentes, mas sim criar novas” (p. 17). Harvey também aponta a “moldagem da cultura” (2011 [1989b], p. 63) como uma característica O papel dos educadores era a ‘cultura’ em seu sentido empregado na agricultura, que designa o cultivo. Durante o Iluminismo, o conceito foi emparelhado com a noção inglesa de ‘refinement’ (refinamento) e alemã de ‘Bildung’ (educação). Em sua essência o termo ‘cultura’ era eurocêntrico (BAUMAN 2011, p. 53). 28 28 representativa do capitalismo avançado, realçando o seu papel contemporâneo de produzir desejos e fantasias, bem como de sua própria transformação em mercadoria. Em se tratando da arte propriamente dita, Bauman ressalta que algo mudou nas últimas décadas na relação entre a arte e seus criadores, pois o processo artístico agora inclui gerentes e administradores, o que atribui à arte uma “funcionalidade” e um senso de “utilidade” que antes não existia (2011, p. 108). Neste sentido, o sociólogo menciona a polêmica figura de Andy Warhol como emblema da problematização da banalização da arte, ressaltando suas citações “o artista é alguém que faz coisas que ninguém precisa” e “fazer dinheiro é arte e trabalhar é arte e o bom negócio é a melhor arte” (apud BAUMAN 2011, p. 108-109). A mercantilização do processo de criação artística abriu as portas para que quem está no poder determine qual arte representará um “bom negócio”, favorecendo os bens culturais que permitam o menor intervalo de tempo entre uso e descarte para que haja consumo constante e maior lucro. Dentre as muitas outras contradições inerentes à utilização da cultura nos dias atuais – não só como arte, mas como estilo de vida – está seu papel ambivalente, tanto como instrumento para o pertencimento do indivíduo em um grupo, quanto para o seu destaque em meio às massas através de um senso de individualidade e originalidade. Ou seja, na modernidade líquida, vivenciamos o conflito entre o desejo de ser como os outros e o desejo de ser diferentes. Sobre a ambiguidade do conceito de cultura, Bauman ressalta: A ambiguidade que importa, a ambivalência produtora de sentido, o alicerce genuíno sobre o qual se assenta a utilidade cognitiva de se conceber o hábitat humano como o ‘mundo da cultura’, é entre ‘criatividade’ e ‘regulação normativa’. As duas ideias não poderiam ser mais distintas, mas ambas estão presentes – e devem continuar – na ideia compósita de ‘cultura’, que significa tanto inventar quanto preservar, descontinuidade e prosseguimento; novidade e tradição; rotina e quebra de padrões; seguir as normas e transcendê-las; o ímpar e o regular; a mudança e a monotonia da reprodução, o inesperado e o previsível (BAUMAN 2012 [1999], p. 18, grifos meus). Esta ambivalência é reproduzida na escala da cidade através da busca de paradigmas urbanos como o de ‘capital de cultura’ e de ‘cidade criativa’, criados para que haja simultaneamente a aceitação de uma cidade como componente importante da rede global e para que ela se destaque na mesma através de sua autenticidade, de sua imagem, de sua cultura. Em se tratando do binômio cidade-cultura, podemos afirmar que o próprio conceito de cultura vai se transformando conforme se transforma o conceito (ou o paradigma) da cidade. Essa ambivalência da cultura percebida na esfera individual e coletiva (urbana) reflete a nossa busca pelo estabelecimento de uma identidade, que hoje se transforma incessantemente. Stuart Hall (2006 [1992]) classifica esta inconstância pós-moderna como uma “crise de identidade” (p. 09), afirmando que hoje as identidades são fragmentadas – não são mais fixas, mas sim móveis e transitórias. No âmbito do enfraquecimento da noção de Estado-nação, um dos melhores exemplos de identidade fragmentada é a identidade nacional. Em um mundo em que a mobilidade se torna cada vez mais possível e encorajada, o sentimento que conecta a pessoa ao 29 lugar – seja à nação ou à cidade – também se enfraquece, pois são transitórios os elementos simbólicos que identificam aquilo que em alemão se chama ‘die Heimat’ – o lar, a pátria, o lugar aonde se pertence. Assim, os discursos oficiais da “modernidade líquida”, em meio às dificuldades de lidar com identidades simultaneamente múltiplas e fragmentadas, desconectadas dos lugares, acabam pregando a defesa do “multiculturalismo” – um termo que se encaixa no clichê do ‘politicamente correto’, mas que é criticado por autores como Zukin (2006 [1995]), Bauman (2011, 2012 [1999]) 29 e Sánchez (2010). Isso porque ao juntar identidades e vivências diversas sob um mesmo lema, a diferença acaba sendo neutralizada e banalizada, impossibilitando os conflitos. Neste sentido, Zukin (op. cit.) afirma que não o multiculturalismo ou a diversidade de culturas que devem ser glorificados, mas sim a fluidez, a fusão, a negociação entre os diferentes (p. 290). Na esfera urbana, o rebatimento do conceito de ‘multiculturalismo’ pode ser percebido através da criação de imagens homogêneas de cidades tolerantes, às quais Sánchez se refere como “imagens-síntese”: Ao operar com imagens-síntese, aqueles que as produzem retiram da cidade o que é politicamente essencial a ela: a multiplicidade como coexistência e possibilidade de conflito, de exercício da política (SÁNCHEZ 2010, p. 114). A busca incessante de uma imagem urbana de tolerância – tão prezada na ‘cidade criativa’, como veremos no capítulo III – também é percebida por Bauman (1999 [1991]), que afirma que a tríplice “liberdade, igualdade e fraternidade” que caracterizava a fase sólida da modernidade, hoje não se aplica mais, sendo substituída pelo lema “liberdade, diversidade e tolerância”. Porém, a liberdade de hoje refere-se à liberdade de consumo, que é, na realidade, quase imposta. A diversidade tolerada é apenas aquela que beneficia o mercado e implica em estilos de vida negociáveis e modas vendáveis. E a tolerância apoia apenas formas alternativas de vida que são de interesse do espectador interessado no espetáculo e no entretenimento e não nas questões sociais e políticas, levando à indiferença e fragmentação e a manutenção das formas de dominação social vigente (p. 288-291). Em meio a esta lógica de identidades fragmentadas, mobilidade constante das pessoas pelo mundo e da criação de “imagens-síntese” de cidade que pregam uma tolerância superficial, a cultura acaba sendo utilizada também para movimentar outros mercados proeminentes, como o imobiliário e o de turismo. As cidades do fim do século XX inseriram-se a fundo na economia simbólica, tendo a cultura, e mais especificamente o ‘turismo cultural’ (ver quadro 01, p. 63) como seu negócio principal e como base de seu poder competitivo em nível regional, nacional e global. Neste sentido, a figura do turista pós-moderno torna-se a epítome da evitação de qualquer tipo de fixação do indivíduo no espaço, bem como da fragmentação das identidades. Isso porque os turistas Bauman alerta para a atual pregação de termos como ‘multiculturalismo’ (e aqui acrescentamos também o termo ‘diversidade cultural’) como parte de um discurso político que postula a tolerância liberal, porém falha em promover uma real aceitação das diferenças ao pregar que todos são iguais (2011, p. 46-47; 2012 [1999]). Sánchez complementa que conceitos como ‘multiculturalismo’ e ‘diversidade’ funcionam como mais uma estratégia na elaboração da imagem da cidade tolerante, porém gerando “uma estetização das relações sociais, uma simplificação do diverso e dos potenciais conflitos que o diverso engendra. [...] as diferenças surgem domesticadas, pasteurizadas dentro da lógica da cidade-espetáculo” (2010, p. 505). 29 30 conhecem muitos lugares aos quais nunca pertencerão, de forma cada vez mais en passant. Não há interesse em entrar em contato com a real vida urbana da cidade visitada, mas apenas com as opções culturais que fazem parte da vitrine da cidade, pré-selecionadas pelos seus administradores (que seguem os interesses do capital). A vitrine do turismo cultural urbano exibe uma cidade ‘polida’, limpa e de identidades cuidadosamente escolhidas para representar apenas a memória e a história vendáveis. E, com isso, o turista pós-moderno visita uma realidade protegida: [Os turistas conseguem] o milagre de estar dentro e fora do lugar ao mesmo tempo. [...] É como se cada um deles estivesse trancado numa bolha de osmose firmemente controlada; só coisas tais como o ocupante da bolha aceita podem verter para dentro [...]. Dentro da bolha, o turista pode sentir-se seguro (BAUMAN 1998 [1997], p. 114). Bauman ainda aponta que, em razão de sua alta mobilidade e poder de deslocamento de acordo com seus desejos, os turistas se enchem de sentimentos de autonomia e liberdade. No entanto, seus movimentos pelas cidades são superficiais, pois, em sua trajetória, eles apenas “esbarram” com as pessoas locais, não havendo real interação com o ‘outro’ (ibidem, p. 115). Isso porque, na modernidade líquida, os projetos das cidades – e destacamos aqui especialmente os projetos para os espaços públicos – dificultam o encontro entre pessoas diferentes. Os espaços de hoje são projetados para a passagem e não para a permanência, de modo que a presença daqueles que não se encaixam no padrão seja “‘meramente física’ e socialmente pouco diferente” (BAUMAN 2001 [2000], p. 119). Se os espaços públicos deveriam ser por excelência “o sítio primário da cultura pública, uma janela para a alma da cidade” (ZUKIN 2006 [1995], p. 260) e o local de encontro dos ‘estranhos’, hoje ele é pensado para neutralizar o coletivo em função do indivíduo e para separar, segregar, como afirma Harvey: Os resultados da crescente polarização na distribuição de riqueza e poder são indelevelmente gravados nas formas espaciais de nossas cidades, que se tornam cada vez mais cidades de fragmentos fortificados, de comunidades muradas e espaços públicos privatizados sob constante vigilância (HARVEY 2012, p. 15). 31 1.5 Indivíduo e Coletivo Para Bauman (2003), assim como para David Harvey (2011 [1989b]), a crise da modernidade tem relação direta com a crescente ênfase no individualismo. O individualismo moderno seria fruto de uma “atitude blasé” criada como mecanismo de defesa do homem para lidar com as muitas e rápidas transformações em todas as esferas da vida, inclusive a rápida urbanização que modificou drasticamente seu espaço imediato de convivência. A ideia do surgimento de uma “atitude blasé” em face à modernidade, mencionada pelos dois autores, é uma referência direta às observações do sociólogo berlinense Geog Simmel, que, ao vivenciar a modernização da Alemanha da passagem do século XIX para o XX, afirmava que “somente afastando os complexos estímulos advindos da velocidade da vida moderna, poderíamos tolerar os seus extremos. Nossa única saída, [Simmel] dizia, é cultivar um falso individualismo através da busca de sinais de posição, de moda, ou marcas de excentricidade individual” (HARVEY 2011 [1989b], p. 34). Se a ênfase no indivíduo consiste em uma das marcas da modernidade desde sua fase sólida, como infere Simmel, este fenômeno vem se intensificando enormemente na sua fase líquida. Hoje, ao mesmo tempo em que o individualismo estimula a autonomia do homem, faz crescer nele uma insegurança, que é fruto da necessidade de dar um sentido especial à vida. Esse sentido especial faz como que, muitas vezes, o individualismo se confunda com a necessidade de criação de uma identidade de destaque, de distinção em meio às massas, conforme já mencionado. Portanto, no âmbito da modernidade líquida, em que identidade significa aparecer e se diferenciar, sua busca torna-se um instrumento de divisão e segregação (BAUMAN 2003). Com isso, o foco do homem se torna ele próprio e aqueles que ele julga semelhantes. Tudo que não se enquadra é renegado: os comportamentos, crenças e culturas diferentes. Neste contexto, os indivíduos e/ou grupos que não participaram com igualdade na construção dos padrões de valor cultural dominantes são menosprezados e condenados, colocados à margem. Com isso, fica clara outra característica fundamental da modernidade líquida: o desengajamento, o desinteresse, o fim da ilusão de atingirse uma condição de harmonia e de justa universalidade. Para Bauman (2001 [2000]), esta é uma das principais características que diferenciam o estágio líquido do sólido da modernidade: o declínio do que ele chama de “ilusão moderna” (p. 37), ou seja, da ideia de que um dia será alcançada a completude de um processo, de que existe um estágio de perfeição da evolução humana a ser atingido, uma meta final, um objetivo comum que implique um uma sociedade boa ou justa. Em outras palavras, não há mais utopia; mas também não há distopia. Há uma fragmentação da vida em comunidade e uma autoafirmação do indivíduo em detrimento do coletivo em um mundo cada vez mais voltado para o consumo. E o consumo é ele próprio uma atividade solitária e instantânea, que não exige nenhum tipo de cooperação entre as pessoas (p. 189). Com o fim da ilusão moderna e dos objetivos universais, o conceito de longo prazo é substituído pela importância do agora; e o durável, pelo transitório – consumido com maior rapidez e frequência. Em suma, vivemos uma fase da modernidade em que não há mais objetivos comuns, em que se desistiu da construção de um modelo de justiça social e do planejamento do futuro coletivo. Harvey enxerga o individualismo excessivo como parte do processo de “destruição criativa” da modernidade, em que as bases antigas (coletivas) são destruídas para a construção de bases novas (individuais). Para ele, a “destruição criativa” é intensificada pela competição de mercado, inclusive no campo estético. Os artistas passaram a lutar muito mais entre si para vender seus produtos do que a se preocupar em ir contra o ‘establishment’ ou a burguesia, o que fez crescer o 32 individualismo. Esta nova perspectiva individualista no campo da produção cultural indica “como a nossa realidade [pode] ser construída e reconstruída através da atividade informada pela estética” (2011 [1989b], p. 31). A observação de Harvey vai de encontro com o que é observado, nas últimas décadas, nos campos da Arquitetura e do Urbanismo, através dos quais os profissionais competem para definir quem ditará a estética da nova “imagem-síntese” da cidade através de concursos de projeto que contribuem para que a arquitetura assemelhe-se a uma marca, uma grife da moda. Em suma, o que podemos concluir em relação às observações de Zygmunt Bauman e David Harvey a respeito do momento de transição por nós vivenciado é que houve sim transformações profundas em relação ao início do “projeto de modernidade”, mas não necessariamente em uma direção completamente oposta ao mesmo. O que percebemos é a manutenção da ordem vigente através de novos discursos, que se reciclam, e hoje reforçam a mercantilização da cultura, o foco na imagem da cidade e o fortalecimento do individualismo. 33 CAPÍTULO II A ‘Culturalização’ da Cidade Só pessoas que não conhecem o vapor e o suor de uma verdadeira fábrica podem achar o espaço industrial romântico ou interessante (ZUKIN 1982, p. 59). Ao contrário do que muitos pensam, a prática de promoção do lugar através da exaltação da imagem não consiste em um fenômeno exclusivo dos tempos contemporâneos. Nos Estados Unidos, por exemplo, desde o século XIX já era observada uma ênfase na elevação da imagem de certas cidades e regiões como parte do processo de civic boosterism (ufanismo cívico), que visava a expansão em direção à costa Oeste do país – um reflexo dos processos de industrialização e urbanização capitalista que se intensificavam (COLOMB 2012, p. 12). A relação entre indústria e promoção das cidades já era, portanto, uma relação fundamental desde aquele momento. É sabido que o advento da industrialização e seu fortalecimento a partir do século XIX – em especial do setor manufatureiro que viabilizava a produção em larga escala – provocou uma série de mudanças estruturais nas cidades, dentre as quais se destacam os processos acelerados de desenvolvimento e crescimento, tanto espacial quanto populacional. Como consequência, tornou-se necessário “prever, direcionar e controlar as mudanças, [o que] fez surgir e desenvolver o urbanismo e o planejamento urbano” (VAZ & JACQUES 2001). O crescimento simultâneo da industrialização e dos processos de urbanização nos países capitalistas ocidentais fez com que a noção de ‘cidade industrial’ se fortalecesse. Através do planejamento urbano, a ‘cidade industrial’ passou a se adequar aos esquemas resultantes da divisão espacial do trabalho e às demais especificidades surgidas com a fase fordista do capitalismo. Ao mesmo tempo, o crescimento da capacidade produtiva, somado à ampliação do mercado, passou a contribuir para a emergência de empresas multirregionais, fortalecendo as relações entre as cidades e culminando, eventualmente, em sua interdependência e no estabelecimento de uma hierarquia urbana em nível global. A noção de ‘cidade industrial’ começaria a cair em desuso a partir dos anos 1970, em função do declínio do modelo de produção fordista e do surgimento de um novo tipo de economia baseada na provisão de serviços. Logo, os teóricos passariam a falar do advento da “sociedade e da cidade pós-industrial” (BELL 1974 apud KRÄTKE 2011, p. 19) – um fenômeno iniciado nos EUA e rapidamente expandido para a Europa Ocidental e para o mundo. De acordo com Peter Hall (1998), as transformações econômicas que levaram à transição da cidade industrial para a pós-industrial foram determinantes para o processo de ‘culturalização’ das cidades, como veremos adiante. 34 2.1 Desindustrialização e ‘Culturalização’ O fenômeno de desindustrialização, conflagrado nos chamados países desenvolvidos na década de 1970 e intensificado na década de 1980, foi resultante de um declínio do modelo de linha de produção manufatureira para consumo em massa e dos graduais avanços tecnológicos, que possibilitaram que as corporações transnacionais deslocassem partes menos especializadas dos processos produtivos para os países recém-industrializados (principalmente na América Latina e no Círculo do Pacífico). Tanto nos EUA quanto na Europa ocidental, as cidades com economias dependentes da produção e da distribuição industrial foram severamente abaladas. A gritante diminuição na oferta de empregos em setores tradicionalmente ligados à indústria foi acompanhada por uma aguda polarização entre a força de trabalho de acordo com seu grau de especialização. Intensificava-se a segregação espacial entre os trabalhadores mais bem pagos e mais especializados e os menos bem pagos e menos especializados, bem como a queda de população. Como consequência, os políticos e administradores urbanos se viram obrigados a desenvolver novas estratégias para atenuar as crescentes disparidades e problemas econômicos e sociais. Dentre estas estratégias, destacava-se uma reformulação das políticas culturais e sua articulação com as políticas urbanas orientadoras do planejamento das cidades (BIANCHINI 1993; KRÄTKE 2011; COLOMB 2012). A visão da cultura como possível instrumento de salvação das cidades em crise não aconteceu por acaso. De acordo com Bianchini (1993), no contexto europeu ocidental, a ênfase no desenvolvimento de políticas culturais se explicava pela diminuição das horas de trabalho nos novos setores dominantes da economia, o que levou a um aumento na proporção de renda e tempo disponível para gastos com lazer. Porém, mais do que isso, as crises de recessão de 1973 e 1979, e as subsequentes crises fiscais, impulsionaram a emergência de um contexto político e econômico neoliberal, tradicionalmente caracterizado pela diminuição da atuação do Estado e pelo abandono das formas de controle público sobre o espaço. Nos anos seguintes, as políticas públicas foram formuladas de modo a atrair investimentos privados para o desenvolvimento dos centros urbanos, utilizando o discurso de que a demanda por serviços seria impulsionada, os gastos aumentariam e novos empregos seriam criados (LEES, SLATER & WYLY 2008, p. xvii). Dentro desta lógica, houve um incentivo especial em serviços conectados às atividades culturais e de entretenimento, levando à construção de centros culturais e de convenções, novos estádios esportivos e espaços para festivais e feiras. Além disso, novas alianças políticas foram formadas unindo o poder público ao capital privado e transformando o papel das agências de desenvolvimento econômico e elites de negócios em coordenadoras de campanhas de marketing urbano – uma atividade capaz de transformar e vender as cidades através de sua imagem como centros pós-industriais de serviços, lazer e consumo (COLOMB 2012). Assim, a necessidade de atenuar problemas socioeconômicos somada à união de setores públicos e privados e às “expectativas exageradas em se tratando da capacidade da cultura em compensar a diminuição dos empregos perdidos” (KRÄTKE 2011, p. 22) tornaram-se fatores complementares para a criação de políticas públicas calcadas na regeneração do espaço urbano através da cultura. Esta regeneração, também tida como “revitalização, reabilitação, revalorização, reciclagem, requalificação, renascença” (ARANTES 2002, p. 31), tinha como objeto principal a modificação da imagem de áreas estratégicas da cidade, de modo a trazer visibilidade e atrair novos visitantes e turistas, reaquecendo as economias locais. 35 A maneira através da qual essa regeneração era colocada em prática podia variar, seguindo diferentes vertentes. Jacques (2004) destaca duas correntes urbanísticas de pensamento aparentemente opostas, mas que, com frequência, apresentavam consequências semelhantes. A primeira, denominada como “neoculturalista” ou “pós-modernista tardia”, seria mais conservadora – responsável pela supervalorização dos centros-históricos através de uma patrimonialização exacerbada em busca de potenciais turistas culturais, chegando a provocar um “congelamento da cidade”, que passava a ser tratada como “cidade-museu” (JEUDY 2005) ou, em casos mais extremos, até mesmo como “cidade parque-temático” (SORKIN 1992). A segunda corrente, definida como “progressista” ou “neomodernista”, retomaria alguns dos princípios do movimento modernista, como a grande escala e a internacionalização de modelos, aliando-os com o desenvolvimento de megaprojetos em áreas degradadas ou de expansão. Encaixados nessas correntes, podemos destacar alguns modelos (ou fórmulas) que ganharam popularidade nas últimas quatro décadas, dentre eles: a transformação de uso de antigos armazéns industriais em residências e ateliês para jovens e artistas; a requalificação de frentes marítimas e vazios urbanos como complexos de entretenimento, lazer e cultura; o desenvolvimento de grandes projetos arquitetônicos (principalmente equipamentos culturais, como museus e galerias de arte), assinados por profissionais internacionalmente famosos em centros históricos e áreas degradadas; a promoção de megaeventos internacionais, em especial esportivos; entre outros. Cabe ressaltar que estes modelos não são exclusivos e podem ser aplicados simultaneamente, mesclando-se e incorporando aspectos uns dos outros, como é possível observar através de um breve apanhado histórico. 36 2.2 Rumo à Capital de Cultura Nos EUA dos anos 1970, a transformação de armazéns abandonados de antigos distritos industriais em lofts para artistas, galerias de arte, restaurantes e boutiques era uma tendência comum. O exemplo mais emblemático, o bairro de SoHo em Nova York, foi analisado por Sharon Zukin na obra “Loft Living: Culture and Capital in Urban Change” (1982). A socióloga estadunidense mencionava, então, a tentativa por parte dos grandes investidores de superar e controlar o clima precário que pairava sobre os investimentos na paisagem construída, utilizando-se das indústrias culturais como instrumentos para atrair o capital. Já naquele momento, Zukin ressaltava como o capital incorporou a cultura para abrir o desvalorizado mercado imobiliário das antigas áreas industriais, num esquema ao qual ela se refere como um “acordo histórico entre cultura e capital no core urbano” (1982, p. 176). A apropriação de antigos armazéns e vazios industriais através da modificação de seu uso denotava que o passado industrial ia sendo romantizado ou mesmo apagado. As estruturas fabris passaram a ser consideradas autênticas e, por isso, possuíam potencial de mercado. A exploração imobiliária das fábricas desativadas teria continuidade nos EUA durante a década de 1980, quando se observou uma ênfase especial na revitalização de frentes marítimas e zonas portuárias degradadas – então vistas como focos de abandono e violência urbana. Antigos armazéns ao longo de orlas ganhavam novos usos através de projetos urbanos e arquitetônicos pontuais, criando faixas de complexos comerciais e de lazer. Este foi o caso do porto de Nova York, do Inner Harbor de Baltimore, do Waterfront e Quincy Market de Boston e do Fisherman`s Wharf de São Francisco, por exemplo30. As observações de Sharon Zukin a respeito da revitalização de antigos distritos industriais foram de imensa importância, não só no que diz respeito à tendência de ocupação destes recortes espaciais degradados, mas também ao papel do artista e do produtor de cultura no contexto de regeneração do espaço urbano. A autora sugeriu a emergência de um “modo de produção artístico” (artistic mode of production) que passava a ser apropriado dentro do capitalismo, discorrendo sobre a atração estética das fábricas como decorrência de uma mudança de valores surgida nos anos 1960: Talvez haja um componente estético à demanda [pelos espaços de fábrica] – um Zeitgeist31, que encontra expressão no habitar dos espaços da antiga fábrica e, assim, identifica-se, de alguma maneira existencial com um passado arcaico ou um estilo artístico de vida. Se isso for verdade, então a questão de timing se torna crucial. Fábricas exploradoras existem há muitos anos, e ninguém nunca tinha sugerido que se mudar para uma fosse chique. [...] Portanto, se pessoas acharam lofts atraentes na década de 1970, algumas mudanças de valores devem ter acontecido na década de 1960. Deve ter havido uma ‘conjuntura estética’. Por um lado, os hábitos de vida dos artistas se tornaram um modelo cultural para a classe 30 Para o caso de Nova York, ver Zukin (1982, 2006 [1995] e 2010). Para o caso de Baltimore, ver Harvey (2009 [2000]). 31 Termo alemão para designar o espírito de uma época, o clima intelectual e cultural do mundo em um determinado momento ou contexto. 37 média. Por outro lado, antigas fábricas tornaram-se um meio de expressão para uma civilização ‘pós-industrial’. Um senso elevado de arte e história, espaço e tempo foi dramatizado pela mídia de massa que fixa gostos (ZUKIN 1982, p. 14-15). Esta observação a respeito da mudança de valores advinda dos anos 1960 condiz com a teoria de Bianchini (1993) sobre a influência dos movimentos sociais no desenvolvimento das políticas de regeneração urbana no contexto europeu. Apesar das atuais críticas negativas à ‘culturalização’ das cidades, o autor coloca que inicialmente as políticas urbano-culturais do tipo aqui tratado foram enormemente influenciadas pelos movimentos sociais e urbanos pós-1968, como o feminismo, as revoltas juvenis, os movimentos gay e ambientalista e o ativismo de minorias raciais e étnicas. Isso porque essa herança cultural possibilitou o surgimento de um setor alternativo de produção artística, constituído por grupos de teatro experimental, bandas de rock, cineastas independentes, rádios abertas, pequenas editoras, revistas e jornais de conteúdo radical. O novo universo cultural dos anos 1970 desafiava as distinções tradicionais entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura32 e os movimentos sociais urbanos enxergavam a ação cultural e a ação política como indissociáveis. Esse discurso teria sido apropriado pelas elites europeias no início da década de 1980, que reconheciam o recente desenvolvimento cultural como uma parte integral da agenda política urbana, incentivando inclusive o acontecimento de festivais de arte dos grupos mais politizados e incorporando-os à promoção da imagem urbana. A partir dos anos 1980, as políticas urbano-culturais europeias passaram a deixar de lado as preocupações sociais características das décadas de 1960 e 1970, priorizando mais a esfera econômica. Este deslocamento de intenções foi acompanhado por um predomínio de administrações governamentais de direita em várias cidades que passavam a seguir o modelo neoliberal. Na Europa, o contexto neoliberal e neoconservador – que tinha sua principal figura na primeira-ministra britânica Margaret Thatcher – foi marcado por tendências de descentralização de funções e por pressões direcionadas à redução de despesas administrativas. Isso levou ao encorajamento de patrocínio de atividades e eventos culturais por parte do setor privado. Assim, o discurso político dos anos 1970 – focado em desenvolvimento pessoal e comunitário, participação, igualdade, democratização do espaço urbano e revitalização da vida pública – foi substituído, nos anos 1980, por um discurso de acentuação da potencialidade da cultura na regeneração física e econômica do lugar. Ainda de acordo com Bianchini (1993), as políticas urbano-culturais de muitas cidades europeias foram extremamente influenciadas pelas dos EUA, onde os interesses de artistas à procura de espaços e financiamento coincidiu com os interesses de políticos e investidores, que desejavam revitalizar certas regiões desvalorizadas através da implantação de equipamentos culturais e de lazer, de modo a alavancar o valor de venda dos imóveis residenciais e comerciais nas proximidades. Esta mesma fórmula se mostraria eficaz em cidades europeias de base industrial, como Londres, Rotterdam e Bilbao, que tentavam quebrar uma imagem de declínio através do financiamento de projetos ancorados na cultura. Cabe destacar que o nível de influência da experiência estadunidense variava em cada cidade e país europeu, o que fez com que a aplicação desta formula gerasse resultados também diversos, 32 Sobre a distinção entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura, ver Coelho (2004). 38 obedecendo às singularidades locais. Outros fatores que levaram à diversidade de resultados na aplicação das políticas europeias de ‘culturalização’ foram o nível de autonomia da administração municipal e a disponibilidade de recursos financeiros públicos em cada país. Assim, enquanto em países como Portugal, Grécia e Irlanda, a falta de independência financeira das municipalidades gerava políticas desiguais, que privilegiavam investimentos nas cidades capitais; na Alemanha, por exemplo, as políticas urbano-culturais tendiam à maior expansão e estabilidade, uma vez que as despesas em cultura constituíam parte do dever legal das autoridades locais. Em muitos contextos, o advento das estratégias de regeneração urbana através da cultura chegou a ser chamado de “renascença” ou “renascimento” urbano 33 (BIANCHINI 1993; EVANS 2001; ARANTES 2002; SÁNCHEZ 2010), por ter reerguido a imagem de algumas cidades que não eram capitais de seus países, mas que passavam a se transformar em ‘capitais de cultura’ – uma consequência de políticas de descentralização de poderes do nível nacional para o nível local. Em se tratando da Europa Ocidental, apesar da regeneração de frentes marítimas e portuárias ter se tornado uma forte tendência – conforme o evidenciado pelos exemplos de Docklands e Southbank em Londres (Inglaterra), do Diagonal Mar e Poblenou em Barcelona (Espanha) e do Parque das Nações em Lisboa (Portugal) –, o foco principal das políticas públicas recaiu sobre a implementação de grandes equipamentos culturais em centros históricos degradados. Isso porque os equipamentos culturais passaram a ser vistos como elementos relacionados à qualidade de vida da cidade, assim como festivais artísticos, grandes competições esportivas e outros eventos high-profile de cultura. IMAGENS 03-04: Bankside Gallery (esq.) e vista da Tate Modern para a Millenium Bridge (dir.) em Londres, Inglaterra: revitalização de frentes marítimas europeias. | FONTE: Claudia Seldin, 2013 (esq.) e 2007 (dir.) Um forte exemplo de política urbana de revitalização através de equipamentos culturais foi a adotada em nível federal na França durante a presidência de François Mitterrand (1981-1995), como aponta Arantes: 33 Evans (2001) questiona se o planejamento estratégico remete a uma renascença urbana, em que a cultura se destaca para o consumo, produção e como estratégia imagética, havendo uma preocupação especial com a criação de uma infraestrutura cultural, de equipamentos e amenidades. Já Sánchez (2010) define o “renascimento das cidades” como surgimento de espaços urbanos com resultados repetitivos que, paradoxalmente, provocam a sensação de descolagem com a identidade do lugar, muito embora a sua justificativa projetual ocorra em nome de um diálogo com a cidade existente. (p. 489). 39 Se tudo parece ter começado nos Estados Unidos, ao atravessar o Atlântico a máquina de crescimento foi azeitada, especialmente no que diz respeito à ênfase superlativa na Cultura e à convergência glamorosa entre high culture e big business. Desta junção nascia o mito bifronte da cidadecolagem-grande-projeto, e da qual a Paris de Mitterand será o exemplo máximo e seguramente o ponto de inflexão (ARANTES 2013, p. 25, grifos meus). Neste período, a cidade de Paris, tornou-se palco de uma série de projetos conceituados que contribuiriam para a formação da sua imagem como uma importante ‘capital de cultura’ europeia, dentre eles: o Museu d’Orsay (antiga estação ferroviária), o Museu de Ciência e Tecnologia em La Villette, a pirâmide do Museu Louvre (projeto do japonês I.M. Pei), o Instituto do Mundo Árabe (Institut du Mond Arabe, projeto de Jean Nouvel) e a Ópera da Bastilha (projeto do uruguaio Carlos Ott). IMAGENS 05-06: Interior do Museu D’Orsay (esq.) e pirâmide do Museu Louvre (dir.): uso de estrutura ferroviária e foco na arquitetura de grife dos grandes equipamentos culturais franceses na Paris de Mitterand. | FONTE: Claudia Seldin, 2009 (esq.) e 2013 (dir.) Esta imagem de ‘capital de cultura’ seria oficialmente incentivada a partir de 1985 pela União Europeia (European Union - EU), que passou a conceder anualmente a seus membros o título de “Cidade de Cultura Europeia”. O primeiro foi conquistado por Atenas (Grécia); Berlim (Alemanha) o recebeu no quarto ano em 1988 (pouco antes da queda do muro); e a Paris de Mitterrand, em 1989 (ver anexo 01, p. 186). A premiação, que implicava na realização de uma série de eventos culturais apoiados por um forte marketing urbano, objetivava assumidamente os seguintes pontos: ressaltar a riqueza e diversidade das culturas europeias, fomentar a contribuição da cultura para o desenvolvimento urbano, regenerar as cidades, elevar seu o perfil internacional, engrandecer a imagem das cidades aos olhos de seus próprios habitantes e aumentar o turismo34. A partir de 1999, 34 Informações oficiais retiradas de: EUROPEAN COMISSION. European Capitals of Culture. Disponível em: <http://ec.europa.eu/culture/tools/actions/capitals-culture_en.htm>. Acesso em: 07 dez. 2014. 40 o título foi modificado para “Capital de Cultura Europeia” e poucos anos depois, a premiação foi enquadrada como parte das políticas de criatividade incentivadas pela EU. Apesar do título oficial de ‘cidade/capital de cultura’ ser limitado aos países europeus, sua essência se expandiu para o resto do mundo, suscitando ainda mais a competição internacional através do estabelecimento de imagens urbanas culturais. Ainda na década de 1980, nos EUA e na Europa Ocidental, a nova direção da economia incentivou a expansão dos setores ligados ao turismo, ao lazer, à mídia e às chamadas “indústrias culturais”35. A noção de uma vida cultural cosmopolita se tornaria o ingrediente principal para o desenvolvimento do marketing urbano e da internacionalização de modelos de planejamento pensados para atrair o capital externo. Já no fim da década, David Harvey (1989a) mencionava pejorativamente as políticas culturais como “máscaras carnavalescas”, usadas por políticos para esconder a crescente desigualdade social, a polarização e os conflitos nas cidades. Mais do que isso, o geógrafo condenava o “desenvolvimento de uma cultura de museu”, alegando que, na Inglaterra, um museu era aberto a cada três semanas, o que apontava para uma “florescente ‘indústria da herança’” iniciada nos anos 1970 e afetada por uma virada populista na década seguinte (2011 [1989b], p. 64). Durante a década de 1990, a ‘culturalização’ das cidades se fortaleceu. Foi neste período que surgiram dois dos mais emblemáticos exemplos europeus: as revitalizações de Barcelona e Bilbao – ambas na Espanha. A cidade de Barcelona conseguiu unir em seus planos de regeneração várias das fórmulas anteriormente citadas como justificativa para o desenvolvimento imobiliário: a reativação dos vazios urbanos, o reordenamento da faixa marítima, a construção de edifícios projetados por arquitetos de renome e a realização de um megaevento esportivo – os Jogos Olímpicos de 1992 (que por si só já representam um dos maiores símbolos modernos de competição global de ordem simbólica). O reordenamento da frente marítima de Barcelona teve início em 1987 com a obra Moll de La Fusta (projeto de 1982 de Manuel de Solà-Morales) e foi seguido pela renovação da área conhecida como Poblenou, que abrigaria as Vilas Olímpicas (macroprojeto do escritório de Oriol Bohigas). Destacamos especialmente a renovação da Vila Olímpica instalada no lugar de antigas estruturas fabris e habitações de baixa renda, entre a Cidade Velha e o Rio Besós, articulando os quarteirões projetados por Cerdà com novos espaços projetados no âmbito dos Jogos. Após o megaevento esportivo, o uso das novas edificações foi convertido para habitação de média e alta renda conjugada a serviços e comércio de caráter turístico. O processo de requalificação urbana da cidade ainda contou com altos investimentos em equipamentos culturais 36 (SEGRE 2004; BORDE O termo “indústria cultural” (Kulturindustrie, em alemão) é associado com os filósofos Adorno e Horkheimer (1993 [1943] apud EVANS 2001, p. 137), que escreviam, durante a II Guerra Mundial na Alemanha, sobre uma imagem negativa referente à ‘máquina’ hollywoodiana e os aparatos de produção cultural em massa que começavam a se espalhar pela Europa. 35 36 Dentre os projetos incluídos no esquema de renovação da imagem de Barcelona, destacamos: a reconstrução do Pavilhão de Mies van der Rohe; a renovação do Museu de Cultura da Catalunha pela arquiteta Gae Aulenti; a ampliação do Museu Miró; a restauração do Centro de Arte Santa Mônica, da sede da Secretaria de Cultura na Casa de Caritat e do Museu Picasso; as requalificações e ampliações da Fundação Tapié, do Palácio da Música e do Museu da Ciência; a revitalização do porto velho (Port Vell) e sua transformação em centro cultural e comercial; o novo Museu de Arte Moderna de Richard Meier, o novo Teatro Nacional de Ricardo Bofill, e ainda os inúmeros estádios e centros esportivos assinados por arquitetos famosos, como Gregotti, Bofill e Isosaki. Os projetos da Cidade Olímpica envolviam nomes como Ghery, Martorell, Bohigas e Mackay. O intenso uso desta ‘arquitetura de grife’, aliado à repercussão dos projetos contribuiu para que a requalificação de Barcelona fosse recipiente de diversos prêmios importantes pelo seu 41 2006; SÁNCHEZ 2010; ARANTES 2013). De acordo com Arantes (2002, 2013), a fórmula de Barcelona teria sido importada dos EUA, porém a aplicação foi tão bem sucedida em termos de estabelecimento de políticas de marketing urbano e city branding que ficou a impressão de ter sido a pioneira do planejamento estratégico, identificando o paradigma urbano da ‘capital de cultura’. IMAGENS 07-08: Frente marítima de Barcelona| FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGEM 09: Frente marítima de Barcelona| FONTE: Claudia Seldin, 2013. O processo de ‘culturalização’ de Barcelona teve continuidade durante a década de 2000 com a construção de um edifício inicialmente projetado para abrigar o Fórum Universal das Culturas – evento de alcance internacional da UNESCO, realizado em 2004, para debater questões socioculturais, como a diversidade, o desenvolvimento sustentável e a paz através de exposições, conferências, debates, manifestações e espetáculos. O edifício do Fórum 37, um espaço de aproximadamente 300 mil metros quadrados, foi projetado pelos arquitetos suíços Jacques Herzog e Pierre de Meuron em uma área degradada de Barcelona conhecida como Zona del Levante, encaixando-se em um plano maior de revitalização, que implicava em intervenções urbanas pontuais ao longo de quatorze quilômetros da costa. Outros projetos incluíam um novo zoológico, a requalificação da Plaza de lãs Glorias Catalanas (projetada originalmente por Cerdà), a ampliação do aeroporto local, a implantação do distrito 22@ no Poblenou38, a construção da Torre Agbar conjunto urbano, como o Verônica Rudge Prize for Urban Design (1987), o Prêmio Especial Europeu de Urbanismo (1997) e a Royal Medal of Architecture (1999), apontando para a tendência atual de glorificação de uma arquitetura cada vez mais midiática. 37 Que atualmente abriga o Museu Blau de les Ciències Naturals. Ver Borde (2006) sobre a recuperação dos vazios urbanos; e Arantes (2013) sobre o “Plano Estratégico Barcelona 2000”, elaborado em 1989, e a criação do distrito @22 – uma região destinada a edifícios de serviços e tecnologia avançadas e que viria constituir o que hoje chamamos de ‘cluster criativo’. 38 42 (projeto de Jean Nouvel) e das torres residenciais Diagonal Mar (projeto de Robert Stern) e de novos hotéis, parques e centros comerciais (BORJA & MUXÍ 2004; SEGRE 2004). O caso de Bilbao foi igualmente emblemático devido ao enorme contingente turístico atraído à esta cidade portuária após a implantação, em 1997, de uma filial do Museu Guggenheim. O projeto do arquiteto norte-americano Frank Gehry39, com custo de mais de 100 milhões de dólares, é tido como uma atração em si e o espaço recebeu mais de quatro milhões de turistas em apenas três anos, movimentando cerca de 500 milhões de euros (CRAWFORD 2001) e reavivando o comércio, serviços e rede hoteleira locais. Só em 2010, o equipamento atraiu 954 mil visitantes (HOLLIS 2013, p. 98). O sucesso na nova posição da cidade como destino turístico essencial fez com que muitos autores se referissem ao exemplo como “efeito-Bilbao” (EVANS 2001; HOLLIS 2013) – o modelo mais almejado pelos gestores culturais, administradores e planejadores urbanos. Tanto a cidade, quanto a instituição Guggenheim40 viraram “marcas” a serem consumidas. O “efeitoBilbao” continua sendo muito copiado, tendo consolidado uma era de arquitetos ‘celebridades’, comissionados para desenhar destinações ícones. Grandes profissionais do campo apoiaram-se em experiências similares para firmar seus nomes: Frank Gehry, Norman Foster, Zaha Hadid, Richard Meier, Rem Koolhaas, entre outros ... nem sempre com sucesso, como mostra a reportagem do jornal estadunidense The New York Times, criticando a “trilha de decepção” deixada mundo a fora pelo arquiteto Santiago Calatrava (DALEY 2013) – o mesmo que assina o projeto do Museu do Amanhã no Rio de Janeiro, no âmbito da operação urbana Porto Maravilha. IMAGEM 10: Museu Guggenheim em Bilbao, na Espanha: transformação da cidade em parque temático da arte. | FONTE: Mario Roberto Durán Ortiz - Wikimedia Commons (2012). 39 Para mais sobre a arquitetura do museu Guggenheim de Bilbao, ver Cabral (2003). 40 A própria Fundação Solomon R. Guggenheim acabou por tornar-se sinônimo de espetacularização ao desdobrar-se em um número impressionante de franquias. Seguindo a inauguração, no ano de 1959 em Nova York, do Museu Solomon R. Guggenheim original (projeto de Frank Loyd Wright – ver CABRAL 2003), a ‘marca’ Guggenheim já foi responsável pelos seguintes empreendimentos: a Coleção Peggy Guggenheim (1979) em Veneza na Itália; o Guggenheim SoHo (inaugurado em 1992 e fechado em 2002) em Nova York (EUA); o Museu Guggenheim Bilbao (1997, projeto de Frank Gehry) na Espanha; o Deutsche Guggenheim (inaugurado em 1997 e fechado em 2013), construído em parceria com o Deutsche Bank, em Berlim na Alemanha; e o Guggenheim Hermitage Museum (2001, projeto de Rem Koolhas), situado dentro do hotel-casino-resort The Venetian, em Las Vegas (EUA) e vinculado ao Hermitage Museum de São Petersburgo na Rússia. Mesmo após o fracasso de outros famosos projetos de expansão, como o de Jean Nouvel no Rio de Janeiro e o de Zaha Hadid em Formosa, a fundação ainda tem planos para a construção de novas filiais, como é o caso de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. 43 Ainda que sejam considerados por muitos como casos de sucesso, o ‘modelo-Barcelona’ e o ‘efeito-Bilbao’ provocaram reações negativas em nível local. Apesar de grande parte das áreas revitalizadas em Barcelona terem provido a cidade de espaços públicos de qualidade, a transformação do distrito popular onde a Vila Olímpica foi implantada em um bairro de classe média e alta contribuiu negativamente para uma diminuição das opções de habitação a preços acessíveis na cidade (SELDIN & LEDO 2014). Ademais, desde sua inauguração em 2004, o Fórum, assim como o plano que o engloba, vem sendo alvo de diversas críticas, não somente em função dos grandes investimentos financeiros envolvidos nos projetos e construção 41, mas também pela sua inferior qualidade projetual e insucesso de público e frequentadores. Atualmente, o Fórum Universal das Culturas – transformado em museu – é visto por muitos como um grande exemplo do fracasso da revitalização urbana através de um grande equipamento cultural, sendo lembrado mais como um espaço vazio e um grande elefante branco em meio à paisagem de Barcelona do que como um local de prosperidade e vida cultural vibrante. Já em Bilbao, artistas, jornalistas e políticos locais indignaram-se com a criação de “ilhas de cultura” e a consolidação de guetos culturais em periferias das cidades (EVANS 2001). Além disso, no que se refere ao aspecto econômico, ressaltamos que, apesar da atração de turistas e capital externo ter sido evidenciada, o discurso de crescimento do mercado de trabalho se mostrou ilusório nestas experiências. Isso porque o tipo de emprego mais gerado nesses casos concentra-se nos setores hoteleiros, alimentícios e de vendas, remetendo frequentemente ao trabalho temporário ou em tempo parcial, com níveis baixos de satisfação, direitos e remuneração. Mesmo assim, em pouco tempo, os modelos de pareamento da cultura com o planejamento urbano seriam adotados em diversas cidades do mundo, ultrapassando o âmbito das administrações neoliberais e se tornando ‘lugar comum’ em termos de políticas públicas. No Reino Unido, o governo do partido dos trabalhadores (New Labour) incentivou o conceito da “renascença urbana” ao transformar o arquiteto (Sir) Richard Rogers – responsável, entre outros projetos pelo icônico Centro Georges Pompidou em Paris – em chefe da Força-Tarefa Urbana local (Urban Task Force) em 1998. O arquiteto pregava a “regeneração urbana fundada nos princípios da excelência do design, do bem-estar social e responsabilidade ambiental dentro de um quadro de trabalho econômico e legislativo viável” (DETR 1999, p. 01 apud LEES, SLATER & WYLY 2008, p. xviii, grifos meus). No mesmo ano, o World Bank iniciou um programa de “Desenvolvimento Cultural e Sustentável” com foco em conservação, patrimônio e nas “Culturas e Cidades”. Nos EUA, pouco depois, o relatório “State of the Cities” (1999), elaborado pelo Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano, propunha soluções similares aos britânicos para atenuar os problemas urbanos, mencionando o “redesenvolvimento” dos brownfields42, a sustentabilidade ambiental e a habitabilidade como diretrizes a se seguir em meio a um quadro de declínio do sentido de comunidade. Tratava-se da consolidação da instrumentalização da cultura no mundo. No Brasil, essas estratégias também começaram a adentrar as agendas políticas durante a década de 1990, reforçando-se a partir dos anos 2000. No Rio de Janeiro, por exemplo, o quadro de esvaziamento da região portuária vinha despertando a intenção da prefeitura local em realizar projetos e intervenções para a sua revitalização desde os anos 1980. Com a escolha da cidade como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, foi concretizado um grande projeto sob o nome de “operação 41 O plano contou com um investimento superior a 3,2 bilhões de euros financiados por parcerias entre o poder público e iniciativa privada (SEGRE 2004). 42 Sítios abandonados e muitas vezes contaminados devido ao uso industrial. 44 urbana” Porto Maravilha. Com a intenção admitida de promover o desenvolvimento econômico da região, o Porto Maravilha apresenta uma forte vertente de requalificação cultural do espaço urbano através da introdução de um programa de valorização do patrimônio histórico e dos pontos turísticos da região e de um programa de “implantação de projetos de grande impacto cultural” (PREFEITURA DO RIO 2014). Dentre estes projetos, destacamos um mirante no topo do Morro da Providência (acompanhado de teleférico e plano inclinado, que serviram de justificativa para o despejo de habitantes da favela local), o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) e o Museu do Amanhã (projeto do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, o mesmo criticado pelo The New York Times em função de sua “trilha de decepção”). Cabe destacar que o Museu do Amanhã será construído no mesmo local onde seria a filial carioca do Guggenheim – projeto do francês Jean Nouvel, criticado na época de sua concepção e nunca concretizado. Os dois museus são frutos de parceria do Estado com a Fundação Roberto Marinho e ilustram a tendência de parcerias público-privadas defendidas pela Prefeitura carioca em suas políticas recentes. Para Moreira (2011), o Porto Maravilha traz propostas explícitas de “verticalização, transformação radical da paisagem urbana, altos índices de construção [... e] semiprivatização do processo de desenvolvimento urbano local”, bem como uma “clara relegação do contexto local em sua pluridimensionalidade”. O momento vivenciado atualmente pela população carioca representa bem a utilização de megaeventos, como as Olimpíadas, como justificativa para o desenvolvimento do planejamento estratégico nas cidades. De acordo com Sánchez (2010), os megaeventos funcionam como espetáculos em escala mundial, atraindo atenção internacional às cidades e contribuindo para “redirecionar investimentos e amalgamar um novo projeto hegemônico” (p. 16). De fato, os grandes eventos esportivos, musicais e artísticos aparecem desde os anos 1990 como uma das formas mais recorrentes de se agregar valor à cultura. Zygmunt Bauman (2011) explica a fascinação dos administradores urbanos pelos eventos através da menor possibilidade de riscos financeiros do que a envolvida em projetos fixos no espaço e tempo, como galerias de arte e museus. Os eventos não implicam em clientes fiéis e podem ser pensados como atrações a curto prazo, gerando credibilidade e prestígio aos realizadores. Suas atividades nunca duram mais do que o tempo restrito de interesse do público na atualidade e, por isso, o seu formato efêmero se apresenta como uma vantagem em um mundo sintonizado com “caprichos, fragilidade e transigência da memória pública” (p. 112-113). David Harvey, por sua vez, coloca os eventos como “máquinas de produzir lucro” e “formas incorpóreas de investimento do capital” 43, ressaltando-os como uma das marcas da condição pós-moderna. Ao invés de se investir na produção de bens duráveis como se fazia até então, hoje é mais rentável apostar em espetáculos de rápido retorno: O colapso dos horizontes temporais e a preocupação com a instantaneidade surgiram em parte em decorrência da ênfase contemporânea no campo da produção cultural em eventos, espetáculos, happenings e imagens de mídia. Os produtores culturais aprenderam a explorar e usar novas tecnologias, a mídia e, em última análise, as possibilidades multimídia. O efeito, no entanto, é o de reenfatizar e até 43 Citação retirada da palestra proferida por David Harvey em 22 abril 2010 durante a abertura do Fórum Social Urbano no Rio de Janeiro. 45 celebrar as qualidades transitórias da vida moderna (HARVEY 2011 [1989b], p. 61). A partir dos anos 2000 e 2010, a perseguição do ‘modelo-Barcelona’ e do ‘efeito-Bilbao’ começou a perder força nos EUA e na Europa Ocidental, principalmente em função dos efeitos negativos de décadas de ‘culturalização’ de suas cidades, como veremos mais adiante. Nos últimos anos, diversas reportagens jornalísticas passaram a enfatizar a aversão por parte de administradores urbanos europeus a novas filiais do museu Guggenheim (LUSA 2012; REUTERS 2012; TARDÁGUILA 2012), bem como o abandono e esvaziamento de equipamentos urbanos projetados para as antigas sedes dos Jogos Olímpicos (BLOOR 2014) e a diminuição no número de candidaturas para sediar novos eventos esportivos similares (PETCHESKY 2014). Na Espanha, país que viu o boom das ‘capitais de cultura’ com Barcelona e Bilbao, um dos projetos mais recentes de ‘culturalização’ urbana – a “Cidade da Cultura” de Santiago da Compostela –, foi parcialmente inaugurado em 2011 em meio a críticas intensas por parte da população local, que ainda sofre as consequências da crise financeira de 2008. Idealizado em 1999, ainda no auge dos concursos de projetos de ‘arquitetura de grife’, o complexo cultural foi desenhado pelo estadunidense Peter Eisenman e seu custo já ultrapassou 400 milhões de euros (TREMLETT 2011). Em Paris, novas tentativas de parear a ‘arquitetura de grife’ com a indústria da moda também vêm sendo criticadas, principalmente após a inauguração da Fundação Louis Vuitton (FLV) no Bois de Boulogne em outubro de 2014. O edifício assinado por Frank Gehry vem sendo alvo de diversas polêmicas em função de seu alto orçamento e mesmo de seu desenho44. Financiada por um dos homens mais ricos da França – Bernard Arnault (que encabeça a Louis Vuitton) –, a fundação, construída com fundos privados em terras públicas, pretende funcionar como uma vitrine para sua coleção pessoal de arte moderna e contemporânea. Ela chegou a ter suas obras temporariamente interrompidas pelos tribunais franceses em função de uma campanha local de protesto, porém o projeto foi levado adiante, selando a imagem de Gehry como um “logorquiteto” (WAINWRIGHT 2014), que além de projetar edifícios, assina também uma nova coleção de bolsas e acessórios para a marca, junto com os designers de moda Karl Lagerfeld (Chanel) e Christian Louboutin, entre outros. Independente das críticas à culturalização da cidade e à espetacularização da arquitetura na regeneração das capitais de cultura estadunidenses e europeias, cidades de países em desenvolvimento, em especial na América do Sul, na Ásia e em países árabes, continuaram apostando na criação de imagens culturais calcadas em padrões tidos como superados. Este é o caso, além do Rio de Janeiro, de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, por exemplo. O projeto de transformação da Ilha de Saadiyat em um distrito cultural e destino turístico internacional inclui pelo menos três grandes museus com inauguração prevista para antes de 2017, dentre eles: o Louvre Abu Dhabi (projeto de Jean Nouvel), o Guggenheim Abu Dhabi (projeto de Frank Gehry) e o Museu Nacional Zayed (projeto de Norman Foster), somando mais de vinte e sete bilhões de dólares em investimentos (SHERWOOD 2011; CARVALHO 2012; MAIA 2013). 44 Para críticas ao projeto de arquitetura da FLV de Frank Gehry, ver Wainwright (2014). 46 2.3 Planejamento Cultural Estratégico O conjunto de políticas que visava a ‘culturalização’ das cidades e que ganhou força durante a década de 1990 tornou-se objeto de análise de diversos autores, que passaram a classificá-lo de acordo com suas características mais proeminentes. Para Sánchez (2010), tratava-se de “políticasespetáculo”45, que remetiam à produção de imagens orientadas para a internacionalização da cidade e sua promoção em escala global. Outros termos utilizados para designá-las foram: “políticas de marketing urbano” (city marketing policies) (ASHWORTH & VOOGD 1991); “políticas de imagemaking”, “business-oriented” ou “market-friendly” (ARANTES 2002, p. 14); “políticas de place marketing”, “place making”, “políticas de ‘reimagem’ da cidade” (politics of ‘reimaging’ the city’), “city branding” e “slogan making” (COLOMB 2012, p. 02). Da mesma forma, a própria cidade passou a ser referida como “cidade-mercadoria” (SASSEN, 1996); “cidade com projeto” (BORJA & CASTELLS 1997, p. 144 apud SÁNCHEZ 2010, p. 60); “cidade-empreendimento” (ARANTES 2002, p. 26); “cidade global”, “cidade-espetáculo” (CANCLINI 2005, p. 186-187); “cidade-modelo” (SÁNCHEZ 2010), “cidade-colagem-grande-projeto”, “cidade-empresa-cultural” (ARANTES 2013, p. 25); e assim por diante. Independente do nome adotado, o que observamos é que tendências projetuais similares passaram a ser incorporadas em locais com realidades e contextos muito diferentes, levando a uma “universalidade dos processos contemporâneos de produção e reprodução do espaço global” (SÁNCHEZ 2010, p.29), ou mesmo, a um “um pensamento único das cidades”, em que se casam o interesse econômico da cultura e as alegações culturais do comando econômico” (ARANTES 2013, p. 25). Neste contexto, o próprio planejamento urbano passou a ganhar denominações diversas. Aqui adotaremos a noção de ‘planejamento cultural estratégico’, que combina os conceitos de “planejamento cultural” (EVANS 2001) e de “planejamento estratégico” (VAINER 2002, p. 76; SÁNCHEZ 2010, p. 52). O primeiro se refere ao uso “de recursos culturais para o desenvolvimento integrado de cidades, regiões e países” (p. 07), em especial a combinação dos equipamentos culturais com o design urbano, implicando em um conceito ampliado de cultura, que vai além das artes visuais e performáticas, abrangendo também a indústria cultural, o turismo, o patrimônio histórico e o lazer. Já o segundo, carrega um caráter mais crítico e negativo, condenando a forma de pensar o espaço em função de interesses específicos dentro de um esquema de competição em nível internacional. A percepção desta competição passou a ser usada pelos gestores urbanos como justificativa para tomar decisões em nome da cidade. Vainer (2002), Sánchez (2010) e Colomb (2012) observam que o “empresariamento urbano” característico do planejamento estratégico acaba por ‘sujeitificar’ a cidade, que, nos discursos urbanos, oscila entre sujeito e objeto, como melhor convém. Como sujeito, a cidade torna-se capaz de competir e ganhar a nova identidade de ator econômico, de empresa, bem como poder de apropriação de instrumentos do poder público. Nela, são tomadas medidas para reforçar a segurança em espaços públicos através de maior vigilância e policiamento; para reestruturar a administração pública de modo mais “business-friendly”; ou para garantir o bem-estar de visitantes durante megaeventos. Essa ‘sujeitificação’ contribui para 45 A conflagração do espetáculo urbano consiste em um ponto fundamental para a compreensão do tema aqui tratado. Destacamos que este conceito foi inicialmente abordado no fim da década de 1960 pela crítica situacionista e tem como sua maior expressão a obra “A Sociedade do Espetáculo” (2004) do cineasta Guy Débord, publicada originalmente em 1967. Arantes (2013) menciona a noção de “espetáculo urbano” como “a substituição pós-moderna do espetáculo como forma de resistência ou de festa popular revolucionária pelo espetáculo como forma de controle social” (p. 16). 47 mascarar os verdadeiros atores sociais envolvidos nas políticas e projetos urbanos e para a atenuar possíveis resistências aos mesmos. Como objeto, a cidade é equiparada a uma “mercadoria que pode ser embalada, comercializada e vendida” através de sua imagem (COLOMB 2012, p. 14). TABELA 01: Competição no custo de atrações culturais em capitais culturais europeias em 2014 (em US$) Cidade Museu Galeria de Arte Sítio Histórico Balé Ópera Concerto Clássico TOTAL 01. Londres 0 0 33 151 195 46 425 02. Paris 16 15 0 125 187 59 402 03. Barcelona 15 15 20 61 216 61 386 04. Viena 18 16 15 123 99 86 357 05. Amsterdam 13 20 20 95 149 61 357 06. Moscou 10 08 07 94 97 83 299 07. Roma 21 15 16 79 51 29 211 08. Berlim 16 11 0 62 95 70 210 09. Dublin 0 0 12 65 45 42 164 10. Praga 05 07 0 42 47 42 143 FONTE: The New York Times (03 set. 2014) Obs. Figuras em dólares americanos seguindo preços de agências de turismo e websites oficiais dos equipamentos culturais. Para performances de música, ópera e balé, os preços dizem respeito a assentos de categoria 2 durante uma mesma temporada. O planejamento cultural estratégico difere-se do planejamento anterior – modernista –, por ser menos racionalista e relevar noções de zoneamento e plano diretor. A forma de pensar a cidade através da separação entre moradia, lazer, trabalho e circulação – proposta na Carta de Atenas de 1933 – deu lugar a projetos desconectados entre si, pontuais e voltados para recortes espaciais específicos, capazes de movimentar o mercado imobiliário e restaurar imagens danificadas ou ultrapassadas de uma cidade. No contexto de restauração da imagem urbana, a cidade inteira acaba representada através de uma ou de algumas faces limitadas, socialmente aceitas e, frequentemente estereotipadas, que reduzem as múltiplas dimensões urbanas à uma única identidade visual coerente, como apontam Bass, Warner & Vale (2001): Na maioria das vezes, a evocação de um nome de bairro ou cidade gera, não um branco mental, mas uma imagem claramente estereotipada sobre um lugar nunca visitado, baseada inteiramente no que foi visto e ouvido através de várias formas de mídia (BASS, WARNER & VALE 2001, p. xvi apud COLOMB 2012, p. 18). O tema da representação da cidade nos leva a considerar o aspecto político presente nos discursos que embasam o planejamento cultural estratégico, já que as representações, por mais 48 que aspirarem à universalidade, acabam sempre determinadas pelos interesses daqueles que as forjam. Elas não são nunca neutras, implicando em estratégias para imposições de valores e autoridade. Daí a importância de compreender a relação entre o discurso e a posição de quem o profere (CHARTIER 1990; DE CERTEAU 1994; EDGAR & SEDGWICK 2003; BOURDIEU 2011 [1989]). No caso das políticas urbano-culturais formuladas e fortalecidas pelos gestores e planejadores das cidades a partir da década de 1990, o discurso justificava-se por um quadro de crise econômica extrema e pela crença de que esta seria contornada apenas através da exploração e regeneração de novas regiões urbanas capazes de atrair interesse externo. A estratégia aplicada foi, portanto, a de mitificar a cidade para vendê-la como local cultural. A cultura passou, então, a ser instrumentalizada como legitimadora dos projetos urbanos devido à sua capacidade de evocar memórias individuais e coletivas e inferir noções de pertencimento aos locais revitalizados. Neste sentido, ela funcionou (e continua funcionando) como um eficiente mecanismo de controle das cidades, servindo para moldar e humanizar os espaços do desenvolvimento imobiliário (ZUKIN 2006). A instrumentalização da cultura não foi a única crítica surgida contra o planejamento cultural estratégico. Diante deste “empresariamento urbano” e da glorificação da ‘arquitetura de grife’, diversos autores 46 apontam para a desvirtuação do papel do arquiteto e do urbanista na atualidade, acusando-nos de contribuir para o enfraquecimento do planejamento como solução de crises e problemas urbanos, sociais e culturais. Acusam-nos também de compactuar com a redução das possibilidades de experimentação, mudança e inovação estética da cidade devido ao desenvolvimento de projetos “pasteurizados” e da importação de modelos internacionais. Enquanto Otília Arantes (2002) compara o arquiteto e urbanista a um personagem urbano que reúne em uma só figura o empreendedor e o intermediário cultural (p. 29-30); Michael Sorkin (1992) refere-se ao arquiteto como “designer urbano” – mais preocupado com a reprodução de formas já existentes e com a criação de “disfarces urbanos” do que com a criação de espaços de conteúdo (p. xiv). Sorkin (1992) segue sua crítica afirmando que as cidades passaram a se assemelhar a um parque temático47 a partir dos anos 1990 – um conceito próximo ao de ‘disneyficação’ inferido por David Harvey (2011 [1989], p. 62) e Sharon Zukin (2006 [1995], p. 68-69) na mesma época. A ideia da cidade como parque temático implica na impossibilidade de se enxergar o espaço coletivo como espaço público democrático. Nela são constantes os elementos de aparência prazerosa e feliz, sempre destacados na arquitetura. Como no parque temático, seu entorno, aparentemente benigno, passou a ser organizado de forma a estabelecer um esquema de controle absoluto, onde a ideia de interação autêntica entre seus cidadãos desaparece. A socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (2004) conflagra quadro semelhante, apontando para uma redução da complexidade urbana e salientando que os lugares tenderam a perder sua “uniqueness”. A qualidade da cultura como campo facilitador da diferenciação das cidades foi sendo substituída pela sua aplicação como instrumento de homogeneização do espaço. Assim, a propagação de modelos muito semelhantes em contextos muito diferentes começou a dificultar a multiplicidade de leituras dos espaços urbanos, cada vez mais parecidos. Neste sentido, enfatizamos aqui a observação de Harvey a respeito do papel essencial do “simulacro” no contexto da pós-modernidade, ou seja, de “um 46 Ver Sorkin (1992), Arantes (2002), Jacques (2004), Fortuna & Silva (2005) e Harvey (2009). 47 Ver também Häußermann & Siebel (2013 [1991]). 49 estado de réplica tão próxima da perfeição que a diferença entre o original e a cópia é quase impossível de ser percebida” (HARVEY 2011 [1989], p. 261). IMAGENS 11-12: Faixas presas nas fachadas de edifícios do bairro El Born em Barcelona em protesto contra a abertura do “El Born Centre Cultural” em 2013 (à esquerda). Dentre os dizeres: “O bairro não quer ser um parque temático” (à direita), “fora de nosso bairro, políticos especuladores” e “El Born já não é o nosso bairro, é um negócio”. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Esse processo de “alisamento” das diferenças da cidade implicou, além da criação de espaços homogêneos, em desigualdades de representação e de acesso aos equipamentos e à cultura reproduzida. Em primeiro lugar, destacamos que deveria haver maior reflexão no momento do planejamento sobre quais culturas acabam sendo representadas e ressaltadas nas cidades espetaculares e para quem são direcionadas essas representações. Observamos que os meios comunicacionais dominantes contribuem com frequência para neutralizar as possíveis resistências sociais e culturais, a espontaneidade e a participação no processo de construção espacial. Isso porque quanto mais grupos sociais se envolvem nas apropriações culturais do espaço, mais a cultura se torna um bem público que contribui para a politização e para os debates sobre distribuição, algo que não vai de encontro com os interesses dos gestores urbanos (ZUKIN 2006 [1995]). Em segundo lugar, indagamo-nos sobre o que acontece com as culturas que permanecem invisíveis na cidade e com as camadas da população não contempladas pelos projetos e/ou com acesso limitado aos espaços renovados. Cada vez mais percebemos que, independente da cidade, não são todos os grupos sociais que têm acesso à oferta urbano-cultural espetacular. Como consequência, as diferentes camadas da população não frequentam mais os mesmos locais, não se misturam e não compartilham dos mesmos valores, o que contribui para processos de segregação, exclusão e fragmentação cultural, social, política, espacial e territorial. São criadas, assim, independentemente da diminuição das fronteiras da modernidade líquida, barreiras invisíveis, que, associadas à implementação de políticas públicas desconectadas com as práticas populares, acabam por interromper o diálogo espontâneo entre diferentes classes (EVANS 2001; RIBEIRO 2006). Sob este ângulo, conclui-se que a revitalização a partir da espetacularização contribui para um controle social dentro da cidade, delimitando zonas mais e menos favorecidas com possibilidades de crescimento futuro diferenciado. 50 2.4 Gentrificação As desigualdades de acesso aos espaços renovados são ainda muitas vezes acompanhadas pela ‘expulsão’ dos habitantes originais dessas regiões, constituindo um dos fenômenos mais criticados do planejamento cultural estratégico: a gentrificação. A noção de gentrificação como transformação de uma área vazia ou habitada pela classe trabalhadora em uma área de uso residencial ou comercial da classe média teve seu nascimento em Londres e em cidades da costa Leste dos EUA durante os anos 1950 e 1960 48. O termo “gentrificação” conforme compreendido hoje, foi cunhado em 1964 pela socióloga britânica Ruth Glass49 – marxista e fugida na Alemanha nazista. Ela descrevia, naquele momento, novos e distintos processos de transformação urbana que começavam a afetar o centro londrino, em especial a “invasão” da classe média em quarteirões antes habitados pela classe trabalhadora da cidade, destacando que quando os contratos de aluguéis antigos expiravam, novos locatários transformavam as residências em imóveis elegantes e caros (LEES, SLATER & WYLY 2008, p. 04). O debate acerca da gentrificação foi esquecido durante muito tempo e retomado nas décadas de 1980 e 1990 com o advento do planejamento cultural estratégico. De acordo com Lees, Slater & Wyly, autores da obra “Gentrification” (2008), a gentrificação é altamente conectada ao contexto político e econômico neoliberal e ao fortalecimento do processo de globalização. Ela própria se tornou global e passou a não se restringir mais às capitais e aos centros das cidades ou metrópoles dos chamados países desenvolvidos, espalhando-se pelo mundo (p. xvii). Os autores ainda destacam que a gentrificação propriamente dita pode ser vista não como uma consequência das políticas urbanas, mas como uma estratégia em si: A gentrificação tem se inserido nos discursos de planejamento das agendas de política urbana para melhorar o panorama econômico, físico e social de locais centrais ‘desinvestidos’ das cidades ao redor do mundo. Muitas vezes disfarçada como ‘regeneração’, ‘renascença’, ‘revitalização’ ou ‘renovação’, a gentrificação se tornou [...] ‘uma estratégia global’ e ‘a ‘expressão consumada de um urbanismo neoliberal emergente’ (LEES, SLATER & WYLY 2008, p. xxi). Em 1988, o Conselho de Artes de Toronto já mencionava a gentrificação como um fenômeno urbano negativo, realçando o papel dos artistas no seu surgimento (BIANCHINI 1993, p. 202). O estabelecimento de certas áreas das cidades como ‘distritos culturais’ passou a ser visto como receita certa para o desencadeamento deste fenômeno, que deslocava os habitantes e 48 O debate em torno da gentrificação ganhou força a partir dos anos 1980, porém processos semelhantes já eram evidenciados no fim do século XIX e início do XX, dentre eles: a reforma urbana de Haussmann em Paris, que levou à demolição de áreas residenciais habitadas pela classe pobre, realocando-a para dar lugar aos grandes bulevares; e a reconstrução das paisagens destruídas durante a II Guerra Mundial em cidades como Viena e Berlim (ZUKIN 2006 [1995]). 49 "Uma vez iniciado este processo de 'gentrificação' em um distrito, ele evolui rapidamente até que todos ou a maioria dos ocupantes originais da classe trabalhadora sejam deslocados e o caráter social do distrito seja modificado" (GLASS 1964, p. xviii-xix apud LEES, SLATER & WYLY 2008, p. 04). 51 comerciantes locais em função do aumento dos valores dos imóveis, dos alugueis e mesmo do custo de vida. Ironicamente, os próprios artistas e produtores culturais que agregavam valor a estas áreas acabavam vendo-se obrigados a mudar para outras regiões da cidade, tido que vivem, em geral, de rendas relativamente baixas. De fato, uma das maiores características da gentrificação é que as pessoas e lugares considerados autênticos, ‘da moda’ e, até mesmo, culturalmente subversivos, se tornam rapidamente apropriados como parte da imagem do espaço a ser ‘vendido’. Este é o caso, por exemplo, de Berlim, onde o marketing urbano concentra-se exatamente na atração destas pessoas, como veremos no próximo capítulo. IMAGEM 13: Tirinha cômica de 1980 explicando a gentrificação: “Um empreendedor compra uma casa dilapidada em um bairro deprimido. Ele a ajeita e a revende para um casal jovem de classe média. Isso encoraja o resto da ‘gentry’ a comprar no bairro e, antes que seja tarde, um mercado imobiliário fantástico tem seu boom onde nenhum mercado existia antes.” “E o que acontece aos inquilinos de baixa renda que são deslocados? Alguém se importa?” “Claro que sim. Essas pessoas são muito importantes para todo o processo [...] Elas seguem em frente para desvalorizar outras propriedades. Sem elas, todo o sistema desmoronaria”. | FONTE: LEES, SLATER & WYLY (2008, p. 02). A relação entre os artistas e gentrificação é de imenso interesse para esta tese e será retomada posteriormente, porém é importante realçar aqui que as causas, tanto da gentrificação, quanto das políticas que a geram, são condicionadas por dinâmicas sociais e econômicas determinadas por contextos específicos, não sendo possível generalizá-las completamente. Até porque trata-se de fenômenos mutantes, como apontam Lees, Slater & Wyly (2008) ao salientar a necessidade de estudos urgentes que abordem as implicações das transformações de classe, do deslocamento e despejo dos mais pobres e das experienciais desiguais de fruição da cidade (p. xxi). Neste sentido, o porquê da gentrificação acaba sendo não mais importante do que o ‘como’ e as repercussões do processo (VAN WEESEP 1994 apud LEES, SLATER & WYLY 2008, p. xv). 52 QUADRO 01: Conceitos relativos à ‘culturalização’ da cidade Conceito Equipamento Cultural Indústria Cultural Turismo Cultural Planejamento Estratégico Planejamento Cultural Gentrificação Definição Edificações destinadas a praticas culturais (teatros, cinemas, bibliotecas, centros de cultura, filmotecas, museus) ou grupos de produtores culturais. Tornam operacional o espaço cultural. Produção da cultura em série e de bens simbólicos como estratégia que gera necessidades ilusórias. Incorporação da arte na indústria de forma padronizada e superficial para o consumo. No fim do século XX, o termo foi ampliado para englobar outros setores da economia que implicavam no consumo cultural, como comunicação, publicidade e turismo. Vem perdendo espaço para o conceito de indústria criativa. Visitação de equipamentos culturais e locais históricos considerados como patrimônio de uma comunidade. Considera prioritariamente os modos culturais ditos “de elite” (p. 359), gerando invisibilidade a espaços representativos da cultura popular de uma cidade. Turismo visando o consumo do capital cultural de um lugar. Huyssen menciona “turista urbano” (urban vacationer) e “maratonista metropolitano” para ressaltar a substituição do flaneur pelo turista. Aquele, apesar de se sentir um estranho na cidade, ainda a habitava; enquanto este é um visitante em movimento (p. 58). Alocação de recursos macroeconômicos do poder público, às vezes em parceria com a indústria privada corporativa, para assegurar um tipo específico de desenvolvimento urbano em um determinado local. Gerenciamento da cidade através de parceria público-privada visando a competitividade entre as cidades e a sua transformação em mercadoria. Apropriação da cidade por interesses empresariais. Abordagem cultural do planejamento urbano. Utiliza a infraestrutura de equipamentos culturais e espaços de produção cultural, bem como mecanismos como design urbano, arte pública inseridos em projetos urbanos. Objetivo de moldar a imagem de uma cidade Fenômeno global condicionado às especificidades locais, que implica na necessidade de deslocamento da classe trabalhadora de uma área que foi valorizada devido a processos de revitalização Autores Coelho (2004 [1997]) Adorno & Horkheimer (1993 [1943]) Evans (2001) Coelho (2004 [1997]) Huyssen (1997) Evans (2001) Vainer (2002 [2000]) Sánchez (2010) Evans (2001) Glass (1964) Zukin (2006) Lees, Slater & Wyly (2008) Holm (2013) FONTE: Claudia Seldin, 2015. 53 CAPÍTULO III Da Capital de Cultura à Cidade Criativa A criatividade não é nova e nem a economia, mas o que é novo é a natureza e a extensão da relação entre criatividade e economia (ONU 2010, p. 08 apud HOLLIS 2013, p. 106-107). A passagem do século XX para o século XXI serviu para reforçar imensamente a chamada economia simbólica, bem como seus efeitos nas cidades pós-industriais. O fim da década de 1990 mostrou-se como o auge da homogeneização das cidades – fruto da expansão do planejamento cultural estratégico. A perseguição do ‘efeito-Bilbao’ e do ‘modelo Barcelona’ ampliou-se pelo mundo, juntamente com o consumo de serviços e de bens culturais em massa e com a glorificação do capital cultural como motor econômico. Em pouco tempo, as cidades foram ficando cada vez mais interconectadas em função da internacionalização da economia e do avanço das tecnologias de ponta que permitiram a integração e a ampla difusão dos meios de comunicação. O desenvolvimento da informática, em especial da Internet, possibilitou a diminuição das distâncias físicas através de um espaço cibernético virtual dotado de um tipo totalmente novo de vínculos, relações, redes e sentidos, em que a interação passou a se desvincular dos locais geográficos, contribuindo para a descentralização das atividades, especialmente as profissionais. Simultaneamente, intensificava-se a competição entre as cidades por atenção e investimentos na rede global. A crescente homogeneização das ‘capitais de cultura’, já nos anos 2000, fez com que a multiplicação de equipamentos culturais, de entretenimento e lazer se tornasse não mais um fator diferenciador e de destaque, mas ‘lugar comum’ em termos de políticas públicas. A falta de autenticidade e singularidade na experimentação da vida urbana começava a apontar para a necessidade de novos discursos de venda da imagem da cidade. Foi neste contexto que a noção de ‘criatividade’ começou a ganhar espaço nos discursos de políticas públicas. A criatividade como conceito aplicado às cidades era incentivada desde meados da década de 1990 (LANDRY & BIANCHINI 1995), porém a sua instrumentalização e a sua expansão mundial como parte dos discursos de venda da imagem urbana veio se intensificar apenas a partir da década de 2000, quando o conceito foi moldado em uma vertente econômica passível de utilização por gestores e administradores urbanos à procura de uma ‘atualização’ de suas plataformas eleitorais. Esta atualização deveria implicar em custos baixos de investimentos públicos sem transformar significativamente as relações de mercado surgidas nas décadas anteriores, sem danificar as parcerias consolidadas entre setores públicos e privados e sem invalidar os programas já concretizados de ‘culturalização’ das cidades. Foi exatamente isso que a “teoria de classe” (class theory) de Richard Florida (2005, 2011) propiciou. 54 3.1 Sobre Criatividade (e Capital Cognitivo) A partir do início da década de 2000, o grande desenvolvimento das tecnologias de ponta contribuiu para que as noções de economia e capital cultural começassem a perder momentum para a noção de uma economia baseada na informação e no conhecimento. Essa substituição foi acompanhada pela popularização do termo ‘capital cognitivo’, que implicava na exploração da produção do conhecimento e no pressuposto de que “a economia ‘material’ [passava a depender] cada vez mais dos elementos ‘imateriais’ [...] que a ela se agregam e a qualificam: ou seja, da produção de conteúdos simbólicos, afetivos, linguísticos, estéticos, educacionais” (BENTES 2007, p. 01). Esta exploração econômica de elementos imateriais já era abordada há alguns anos por diversos teóricos50, que buscavam compreender o novo papel da cidade em meio à produção de conhecimento. Entretanto, segundo o economista alemão Stefan Krätke (2011), teria sido apenas a partir de 2001 que as políticas públicas de regeneração urbana começaram a ser acompanhadas de novas estratégias que enfatizavam a “cidade baseada no conhecimento” (knowledge-based city) (p. 22), onde tecnologia e as atividades intensas de pesquisa se tornavam os novos propulsores da imagem urbana. Essa nova nomenclatura seria rapidamente acompanhada por uma ênfase no conceito de ‘criatividade’, tido como ferramenta essencial para a inovação em se tratando da produção simbólica. A noção de criatividade não é nova no que diz respeito à economia urbana. Ela já era valorizada nos anos 1940 e 1950 no âmbito da produção industrial para referir-se à solução de problemas advindos da linha de produção da chamada “era organizacional” industrial, marcada pela divisão rígida de funções (FLORIDA 2011 [2002], p. 66). Em 1994, o primeiro-ministro australiano Paul Keating intitulou um discurso a respeito do futuro econômico do país como “Creative Nation” (Nação criativa) (REIS 2012, p. 25). Em 1995, a criatividade foi abordada pela primeira vez de forma significativa em relação ao contexto urbano pelo urbanista Charles Landry e pelo professor de planejamento cultural Franco Bianchini (o mesmo que havia escrito em 1993 sobre as revitalizações urbano-culturais na Europa) em uma publicação intitulada “The Creative City: A Toolkit for Urban Innovators” (A Cidade Criativa: Um Kit de Ferramentas para Inovadores Urbanos). Os autores introduziam com essa obra a ideia de uma conexão direta e urgente entre a produção do espaço e a criatividade. Apesar de não possuir um forte caráter economicista, como obras posteriores, o livro trazia algumas considerações sobre as transformações das cidades percebidas no momento próximo à virada do século e uma definição do conceito de “pensamento criativo”: Pensamento criativo é uma maneira de se livrar das preconcepções rígidas e de nos abrir para fenômenos complexos que não podem sempre ser tratados de maneira estritamente lógica. É também um meio de descobrir possibilidades inéditas. Todo mundo é potencialmente criativo, mas estruturas organizacionais, hábitos mentais e práticas de trabalho podem espremer a criatividade para fora. O raciocínio lógico/racional/técnico é Na década de 1960, Peter Drucker e Fritz Machlup falavam de “trabalhadores do conhecimento”. Nos anos 1970, Daniel Bell mencionava a “economia pós-industrial”. Erik Olin Wright falava de “profissionais gerenciais” e Robert Reich, de “analistas simbólicos” (FLORIDA 2011 [2002], p. 67). 50 55 uma ferramenta útil, mas é apenas uma das muitas. […] a maioria concorda que a criatividade genuína envolve pensar um problema de forma nova e a partir de princípios primordiais, experimentação e originalidade; da capacidade de reescrever as regras; de ser nãoconvencional; para descobrir pontos em comum entre os aparentemente díspares; de olhar para as situações lateralmente e com flexibilidade. Essas formas de pensar encorajam inovação e geram novas possibilidades (LANDRY & BIANCHINI 1995, p. 17-18, grifos meus). Dentre as suas demais observações a respeito da ‘nova cidade’ em surgimento, os autores destacam a perda de importância de antigos fatores moldadores do desenvolvimento urbano, como meios de transporte, elementos naturais da paisagem e proximidade com matéria prima. Isso porque a produção agora podia ser gerenciada de fora da cidade. A ciência e a tecnologia – cujas etapas da produção poderiam localizar-se em lugares distintos simultaneamente – constituiriam os principais setores da indústria do século XXI. Para os autores, com isso, as comunidades passavam a ser mais definidas através de interesses comuns do que de seu local geográfico (ibidem, p. 15), levando à uma diminuição do sentido de localidade e de compartilhamento do espaço. Landry e Bianchini desenvolveram sua teoria de transformação da experiência urbana do fim de século XX salientando a tendência de uma mudança de foco da indústria para setores ligados não apenas à ciência, mas também à publicidade e comunicação, à organização e ao gerenciamento de negócios, às artes e a uma apropriação das subculturas jovens e movimentos coletivos (ibidem, p. 20). Esses dois últimos itens refletiam sua visão de que as cidades da passagem do milênio vivenciavam momentos mais “reais” apenas em ocasiões especiais, como feiras e festivais de rua que se destacavam das atividades “normais” do dia-a-dia. Essa vitalidade advinda de momentos não-planejados e de um desenvolvimento “levemente caótico” das cidades exprimia, na sua visão, a criatividade e a espontaneidade inerentes à vida urbana (ibidem, p. 23-24). Contraditoriamente à esta noção de espontaneidade do não-planejamento, os autores propõem que criatividade deva ser controlada e explorada nas cidades. Eles sugerem, então, alguns meios para sua propulsão, dentre eles o incentivo à imigração de pessoas com experiências (background) sociais e culturais diferenciadas e a construção de espaços atrativos às pessoas criativas. Esta “cidade criativa” de Landry e Bianchini implicava em terrenos e edifícios com preços acessíveis, com frequência localizados nas “franjas urbanas” e em áreas onde os usos estivessem se modificando, como antigas zonas portuárias e industriais – espaços baratos com riscos financeiros reduzidos e que encorajassem a experimentação. Ela implicava também no desenvolvimento da prática do branding urbano, ou seja, do desenvolvimento de uma marca publicitária que identificasse os lugares de acordo com seus atributos particulares. De fato, para autores como Krätke (2011), Colomb (2012) e Hollis (2013), a noção de ‘cidade criativa’ surgiu como uma nova etapa do marketing urbano e do processo de venda da imagem da cidade – um novo slogan a ser explorado na competição entre cidades, sendo seu conceito tomado como uma mensagem de esperança e inspiração para o desenvolvimento de sucesso no futuro. Essa nova ideologia impulsionaria, na última década, a criação de estratégias de desenvolvimento espacial com base na expansão de setores industriais especializados das cidades globais, em especial serviços financeiros e corporativos do tipo FIRE – “finance, insurance & real estate” em inglês; ou “finanças, seguros e mercado imobiliário” em português (KRÄTKE 2011, p. 20). Dentre 56 estas estratégias estariam os projetos de extensão dos centros de negócios urbanos e a reconversão de sítios industriais abandonados, não mais em espaços de cultura e artes, mas em complexos de escritórios e empresas ligados às indústrias criativas e tecnológicas, como ilustram os exemplos do distrito @22 em Barcelona e do plano MediaSpree em Berlim, do qual trataremos no capítulo V. Para Krätke (2011), observamos não exatamente o advento da “cidade criativa” (que para ele seria uma ficção, uma vez que o conceito de criatividade é subjetivo), mas sim da “cidade como metrópole de serviço” (p. 20). Independente da crescente ênfase na provisão de serviços, a mensagem de esperança trazida pelo lema da criatividade começou a ganhar bases mais fortes quando houve o pareamento deste conceito com o campo da economia. Em 1998, o Departamento de Cultura, Mídia e Esportes do Reino Unido (Department for Culture, Media and Sport – DCMS) publicaria um primeiro mapeamento sobre as “indústrias criativas” locais, definindo-as como indústrias com “origem na criatividade individual, habilidade e talento e que têm potencial para a criação de riqueza e de emprego através da geração e da exploração de propriedade intelectual” (DCMS 1998, p. 07 apud CUNNINGHAM & HIGGS 2008, p. 04, grifos meus). O documento 51 destacava treze setores econômicos de importância: publicidade, arquitetura, arte e mercado de antiguidades, artesanato, design, moda de designers, filme e vídeo, software interativo de lazer, música, artes performáticas, publicação, software e serviços informáticos, televisão e rádio. Em 2000, a revista Business Week mencionou pela primeira vez a emergência de uma “economia criativa” e, no ano seguinte, o designer urbano e produtor de mídia britânico John Howkins aprofundou o conceito em seu livro “The Creative Economy: How People Make Money From Ideas” (A Economia Criativa: Como as Pessoas Ganham Dinheiro com Ideias) (2001), apontando para a necessidade de se parear o conceito de criatividade com o de propriedade intelectual (leis de copyright e patentes). Porém, seria apenas após 2002, com a publicação da polêmica obra “A Ascensão da Classe Criativa” (The Rise of the Creative Class) do economista estadunidense Richard Florida, que a noção de criatividade seria intensamente instrumentalizada e absorvida como novo paradigma para o desenvolvimento urbano52. 51 O mapeamento foi um resultado direto da subida ao poder de Tony Blair no país e sua organização de uma força tarefa com representantes de instituições públicas e privadas no sentido de identificar setores econômicos de potencial para o Reino Unido (REIS 2012, p. 25). O mapeamento foi repetido em 2001, contendo pesquisa específica a respeito de cada um dos treze setores mencionados. Ver DCMS (2001). Cabe destacar aqui que, conceitos semelhantes ao da “classe criativa” de Richard Florida já haviam sido proferidos anteriormente. Para Rosler (2014), ele deriva claramente do discurso do Primeiro Ministro australiano Paul Keating na década de 1990, porém sob o nome de “indústrias culturais”. A própria administração do ex-ministro britânico Tony Blair teria utilizado o termo “indústrias criativas” em 1997 no momento de branding do Reino Unido como “Cool Britannia”. Porém, foi a teoria de Florida que se espalhou mais notoriamente pelo mundo, influenciando os administradores urbanos a incorporarem a noção da criatividade em seus discursos políticos. 52 57 3.2 A Ascensão da “Classe Criativa” de Richard Florida Entre 2002 e 2005, com suas obras “A Ascensão da Classe Criativa” e “Cities and the Creative Class”, Richard Florida contextualizava o início do século XXI como um momento de declínio das restrições físicas das cidades e comunidades, no qual a criatividade se tornava a principal força motriz do crescimento e desenvolvimento urbano regional. O economista apontava que o elemento chave para a competição de uma cidade na rede global não era mais a troca de bens, mercadorias e serviços ou fluxos de capital, mas sim a sua capacidade em desenvolver e reter a energia criativa de sua própria população, bem como atrair as pessoas criativas de outras partes do mundo. Em outras palavras, tratava-se do advento do “capital humano” como “segredo da produtividade” (2011 [2002], p. ix). Sua teoria pregava o novo papel das cidades como potencializadoras e incentivadoras deste capital humano, justificando, através de suas pesquisas com grupos focais, que locais com índices mais altos de criatividade cresciam mais rápido. Ou seja, a chave para a competição regional estaria na habilidade em atrair para uma cidade as pessoas altamente qualificadas, produtoras de ideias. Apesar de Florida não especificar exatamente ao que se refere com os termos “crescimento” e “desenvolvimento urbano”, ele enfatizava a importância da urbanização como um processo subordinado ao aumento da inovação e da produtividade (2005, p. 06). Assim, não seriam mais as diferentes pessoas que deveriam construir o espaço a partir de suas variadas experiências, práticas e necessidades, mas sim, o espaço que passaria a se adequar para atrair um grupo específico de profissionais dotados de qualidades capazes de mover a economia. Na visão de Florida (2005, 2011 [2002]), estes profissionais constituiriam uma nova classe econômica dominante em surgimento – um reflexo do período contemporâneo de profunda transformação. Dentro de sua “teoria de classe” (class theory), a “classe criativa” surge como uma nova classe social, pois possui um forte papel econômico53 e molda valores e hábitos socioculturais. Não se trata, em suas palavras, de uma classe no sentido marxista tradicional, pois não envolve termos de propriedade ou meios de produção físicos. Seus membros não controlam os meios de produção, pois sua produção é imaterial, fruto de sua mente. Eles estão envolvidos em atividades cujo objetivo é a constante inovação e acabam agregando valor econômico por meio da criatividade (2011 [2002], p. 68). A classe criativa é ainda extremamente móvel e almejada pelas empresas atuais, tendo, portanto, a opção de se alocar em quase todos os lugares. Ou seja, ela possui o poder de escolha sobre em que parte do mundo habitar. Em sua “teoria do capital criativo”, Florida propõe que “o crescimento econômico regional é promovido pelas escolhas geográficas dos indivíduos criativos – os detentores do capital criativo -, que preferem lugares diversificados, tolerantes e abertos a novas ideias” (ibidem, p. 223). A noção de que esta escolha geográfica estaria disponível para um setor considerável da população também é abordada pelo jornalista britânico Leo Hollis em sua obra excessivamente positiva e pouco crítica “Cities are Good For You: The Genius of the Metropolis” (As Cidades são Boas Para Você: O Gênio da Metrópole) (2013). Nela, Hollis reforça alguns pontos propostos por Florida e sugere que a população mundial vem se tornando mais fluida – fato que levará a cidade 53 Entre 2002 e 2005, a classe criativa dos EUA abrangia aproximadamente 40 milhões de pessoas, representando cerca de trinta por cento da força de trabalho do país, sendo que doze por cento pertencia ao Centro Hipercriativo (FLORIDA 2005, 2011 [2002]). 58 do futuro a ser mais aberta e adaptável à classe criativa. Para atrai-la, as regiões se tornarão cada vez mais especializadas em relação ao que podem oferecer ao público, como é o caso, por exemplo, de Hollywood com o cinema, Milão com a moda e Wall Street com as finanças. Reconhecendo que em um mundo globalizado e desigual não seria possível que todos habitantes escolhessem onde se alocar ou que cada cidade fizesse seu marketing a partir de uma atividade criativa específica, Hollis se contenta com a conclusão de que o mundo ficará dividido entre as pessoas que tem mobilidade e as pessoas que estão presas ao lugar. Mais do que isso, o autor avança seu argumento comparando o contexto contemporâneo das cidades com os estágios de produção de um telefone celular do tipo iPhone. Enquanto a ideia é concebida em Cupertino na Califórnia, o design do chip do telefone é feito em Cambridge, o chip em si é produzido na Coreia e a aparelhagem do telefone, na China (2013, p. 111). Os estágios da produção do telefone refletiriam, em sua visão, as vantagens, desigualdades e os custos da globalização, bem como a nova divisão espacial do trabalho, ou seja, quanto melhor a posição da cidade na rede global, maior o foco na produção de uma ideia; quanto pior a posição da cidade, maior a força de seu papel na produção de bens materiais manufaturados. O mundo no século XXI, regido pelos interesses do capital criativo acumulado pela classe glorificada por Florida, ficaria dividido, então, entre os “perdedores” e os “vencedores” das transformações estruturais advindas com a era pós-industrial, em um esquema de intensificação das desigualdades já existentes, como critica Krätke (2011, p. 19). IMAGEM 14: Ranking das cidades mais criativas do mundo em 2006, de acordo com Richard Florida. | FONTE: ACHCAR (2011, original adaptado pela autora). Richard Florida considera estes locais privilegiados do mundo – os “vencedores” urbanos, onde as ideias são produzidas – como “centros criativos” (2011 [2002], p. 218). Trata-se de regiões favorecidas economicamente, com crescimento do setor de alta tecnologia e bons sinais de “vitalidade regional generalizada” (idem), ou seja, índices positivos de crescimento populacional e de oferta no mercado de trabalho. Esses centros não chamam a atenção ou prosperam em razão 59 de ações e investimentos governamentais, mas pelo simples motivo da classe criativa desejar habitar neles. O que eles oferecem é um “habitat ou ecossistema integrado em que todas as formas de criatividade – artística e cultural, tecnológica e econômica – podem criar raízes e florescer” (idem). A polêmica teoria da classe criativa de Florida, bastante classificatória e segregante, define valores específicos possuídos e almejados pelos seus indivíduos, dentre eles: a busca pela individualidade e autoafirmação (em oposição ao interesse do coletivo), a meritocracia e o apreço por metas e conquistas, a valorização da diversidade e a predileção por um estilo de vida bastante específico, como veremos mais adiante. Ela propõe também a divisão da força de trabalho em três categorias: o “Centro Hipercriativo”, os “profissionais criativos” e a “classe de serviços”. O Centro Hipercriativo, principal grupo, inclui “cientistas, engenheiros, professores universitários, poetas e romancistas, artistas, atores, designers e arquitetos, bem como líderes visionários da sociedade moderna: escritores de não-ficção, editores, personalidades culturais, pesquisadores influentes, críticos e outros formadores de opinião” (ibidem, p. 69) – pessoas que se envolvem por completo no processo criativo. Os “profissionais criativos” seriam o “pessoal de tecnologia da informação (TI), indivíduos na área de serviços financeiros, profissionais de saúde, advogados e administradores de empresa” (idem), ou seja, profissionais dotados de um conhecimento complexo e com especialização na resolução de problemas. Fora desta classe criativa composta pelos dois primeiros grupos, encontram-se todas as outras categorias ligadas aos serviços secundários, a “classe de serviços”: trabalhadores em tempo parcial, garçons e atendentes de rede de fast-food, empregados domésticos e de outras áreas que envolvem a repetição e a padronização intensa de tarefas, bem como a baixa remuneração. Essa classe serviçal cresce imensamente, respondendo à demanda da classe criativa. GRÁFICO 01: A economia do século XXI, de acordo com Richard Florida. | FONTE: Claudia Seldin, 2015. O economista não aborda diretamente em suas obras o problema das desigualdades resultantes desta genérica classificação que une artistas, advogados e cientistas de um mesmo lado e renega imensas camadas da população do outro. Ele oferece, porém, alguns insights sobre as características dos dois primeiros grupos citados, componentes da classe criativa. Estes seriam nascidos da transcendência de duas categorias culturais específicas – os burgueses e os boêmios, constituindo um “novo éthos criativo” (p. 68). Para criar seu conceito, Florida baseou-se assumidamente no trabalho do sociólogo estadunidense conservador David Brooks e seu livro bestseller “Bobos in Paradise: The New Upper Class and How They Got There” (‘Bobos’ no Paraíso: A 60 Nova Classe Alta e Como Eles Chegaram Lá) (2000). O termo “bobos” propunha a junção das palavras “boêmios” e “burgueses” (bohemian and bourgeois, em inglês) para classificar um novo agrupamento social então emergente e que tinha como características principais sua excentricidade e o apreço por uma cultura alternativa. O conceito teria sido desenvolvido para ilustrar como os valores da subcultura54 haviam adentrado o mundo dos negócios nos EUA e como a nova elite, com altos níveis de educação formal, possuía agora “um pé no mundo boêmio da criatividade e outro pé na esfera burguesa da ambição e do sucesso mundial” (ROSLER 2010, p. 12). De certa forma, podemos propor uma atualização do conceito de “bobos” do início dos anos 2000 para o conceito de “hipsters” predominante na década de 2010 e sobre o qual nos aprofundaremos no capítulo seguinte, em relação ao contexto berlinense. QUADRO 02: Os personagens (e estereótipos) da ‘culturalização’ das metrópoles ocidentais Personagem Definição Década Yuppies ou Yups Jovens profissionais urbanos (ou em inglês: young urban professionals), ligados à corrente dominante da cultura (mainstream). Geralmente possuem profissões bem remuneradas e um estilo de vida de alto custo, mostrando apego aos bens materiais e tendências de investimentos no mercado financeiro. Muito característicos do início do movimento neoliberal estadunidense e europeu ocidental. 1980-90 Bobos Jovens “boêmios” e “burgueses” (ou em inglês: bohemian and bourgeois), marcados pela excentricidade do seu estilo de vida e pelo apreço por uma cultura alternativa, porém simultaneamente pelo envolvimento com o mundo dos negócios e pelo desejo de sucesso profissional. Termo usado principalmente nos EUA. 2000 Hipsters Jovens urbanos intelectuais ligados ao setor criativo da indústria, que valorizam o pensamento independente e a política progressista, admiram a subcultura e têm desapego à corrente dominante da cultura. Vestem-se de maneira alternativa, possuindo uma aparência facilmente identificável. Deriva do adjetivo “hip” em inglês, que teve sua origem no jazz negro dos EUA nos anos 1940 e, mais recentemente, passou a designar algo da moda. 2010 Imagem55 FONTE: Claudia Seldin, 2015. 54 O termo foi cunhado por Thorton (1997 apud BADER & SCHARENBERG 2013, p. 243) e designa uma cultura subversiva, porém elitista/seletiva. Ela indica o que está ‘na moda’ e, portanto, não pode ser compreendida como avessa à corrente cultural dominante, como era a contracultura dos anos 1960. A subcultura relacionase com a competição e nasce em cidades já gentrificadas ou em processo de gentrificação (ibidem, p. 244). 55 Desde os anos 1980, diversos livros foram publicados como manuais destes estilos de vida. As imagens deste quadro representam algumas de suas capas (de cima para baixo): PIESMAN & HARTLEY (1984); BROOKS (2000) e GRIT (2013). 61 Neste momento, cabe ressaltar que, apesar das grandes críticas ao conceito de Brooks56, ele foi apropriado por Florida, que passou a utilizar um “índice de boêmia” em suas pesquisas, mapeando a capitalização das subculturas nos EUA na década de 2000. Sua justificativa para tal consistia na conquista do elemento “cool”57 pelo capitalismo, culminando em uma mistura entre negócios e subcultura em um novo tipo de consumismo cultural do que está na moda. Tratava-se, portanto, da transformação conjunta do capital cultural, subcultural e cognitivo em capital criativo, implicando na necessidade, por parte dos gestores urbanos do século XXI, de potencializar os modos de vida “excêntricos” nas cidades (FLORIDA 2005, p. 114-115). Para embasar sua tese, Florida utilizou uma série de índices polêmicos que mediam a influência das populações alternativas no crescimento econômico das cidades estadunidenses. Além do “índice da boêmia”, ele aplicava também o “índice gay” e um índice de abertura à imigração intitulado “the melting pot index” (em uma tradução livre “índice do caldeirão”) – métodos de coleta de dados encaixados em seu conceito dos “3Ts: Tecnologia, Talento e Tolerância” (ibidem). Estes três atributos configurariam os elementos necessários existentes em conjunto em uma cidade para impulsionar a inovação e o crescimento econômico. Cabe ressaltar aqui que a incorporação da subcultura e sua instrumentalização direcionada ao fortalecimento da economia vai de encontro com a teoria de David Harvey a respeito da incessante busca, na pós-modernidade, por certos status e sinais de excentricidade como uma forma de lidar com a rápida urbanização e a velocidade das transformações da realidade urbana que nos rodeia (ver p. 32). O que constatamos através da teoria de classe de Richard Florida, vastamente apropriada por prefeitos e administradores de cidades (como Toronto, Londres e Berlim) é que, na realidade, a cultura não perdeu espaço nos discursos das políticas públicas, mas sim ganhou uma nova dimensão. Se antes o tipo de cultura envolvido na negociação do espaço urbano era mais relacionado à atividade artística e/ou ao espaço equipamento/cultural propriamente dito, ele agora incorpora a cultura como um estilo de vida a ser apropriado para o consumo. Segundo os grupos de foco de Florida (2011 [2002]), a escolha geográfica da cidade ideal para a classe criativa é condicionada pelos seguintes fatores, que, compõem o que chamaremos nesta tese de planejamento criativo estratégico das cidades no século XXI:  Estilo de vida: É necessário que a cidade propicie uma diversidade de “cenas” condizentes com os gostos da classe criativa: cena musical, artística, tecnológica, esportiva e de lazer e saúde (como trilhas em parques). Seus indivíduos exigem qualidade de vida, o que explica o grande número de rankings sobre as melhores cidades para se viver e visitar publicados nos últimos anos (ver WILLIAMS 2009; ACHCAR 2011; THOMAS 2013; TRIP ADVISOR 2014). Atenção especial deve ser dada às cenas noturna e musical (pequenos espaços de apresentações e performances, pequenas casas de show e cafés, etc.), que refletem a vibração da cidade. Para isso, é necessária uma boa infraestrutura de transporte público, seguro e circulando durante a madrugada; 56 Martha Rosler (2010) salienta que a maior parte das pessoas nos EUA e no mundo não desfrutam da crescente riqueza do grupo denominado “bobos”, possuindo outros pontos de vista sobre questões de merecimento, justiça e distribuição de riqueza, desqualificando o termo como uma classificação representativa. O termo ‘cool’ em inglês se assemelha à gíria ‘descolado’ em português, que designa algo em voga, da moda, uma tendência apreciada (pelos jovens) e a ser seguida. Por falta de termo equivalente em nossa língua e devido à sua importância na teoria de Florida, manteremos aqui o termo em inglês ‘cool’. 57 62  Possibilidades de interação social: É necessário dar atenção especial e prover uma opção numerosa dos chamados “terceiros lugares” (2011 [2002], p. 226), que não são nem a casa, nem o trabalho. Ou seja, livrarias, cafés e bares – locais onde se possa estabelecer relacionamentos informais longe do âmbito da família e do trabalho, que se apresentam cada vez mais instáveis;  Diversidade: As cidades devem ser conhecidas pela abertura a estilos de vida tidos como alternativos, onde se encontrem diversas etnias e raças, idades, orientações sexuais e pessoas com visual diferente (modo de vestir, de se portar – alguma autenticidade transmitida através da aparência física). O autor explica que a diversidade e a tolerância são importantes porque a classe criativa se desloca com frequência e facilidade pelo mundo, sendo necessário que se sinta bem vinda em uma nova cultura, mesmo quando se encontra fora do ‘padrão’. A ideia é prover, portanto, um local onde expatriados possam ter contato simultâneo, tanto com seus conterrâneos quanto com a cultura local. Trata-se, porém, de uma diversidade relativa – de elites –, já que se trata de um conjunto de pessoas com alta educação e bom poder aquisitivo, conforme admitido pelo próprio autor;  Autenticidade: O espaço urbano deve ser singular e não um local com lojas e restaurantes de cadeia e experiências que alguém poderia ter em qualquer outro lugar. Nas palavras de Florida: “a autenticidade deriva de vários aspectos da comunidade – construções históricas, bairros de renome, uma cena musical singular ou atributos culturais específicos. Ela deriva de um amálgama – da mistura de decadência com renovação urbana: da convivência de jovens e velhos, figuras excêntricas e yuppies58, modelos e mendigos” (ibidem, p. 228);  Identidade: A identidade da pessoa criativa passa a ser ligada à sua tarefa profissional e ao lugar onde escolhe morar. Ao contrário da época industrial, o papel da empresa específica para qual se trabalha perde espaço na identidade pessoal, pois não há um desejo de se permanecer durante muito tempo com o mesmo empregador. Assim, o local que se escolhe para viver naquele momento deve se tornar um indicador da personalidade da pessoa criativa;  “Qualidade de lugar”: um termo cunhado por Florida para substituir o termo “qualidade de vida”, já identificando especificamente as características do lugar que o tornam atraente: uma combinação do ambiente construído com as características naturais, a diversidade das pessoas e o que acontece no local, em especial, a vitalidade das ruas, a cultura dos cafés, as artes, a música, as atividades ao ar livre – o “conjunto de empreendimentos ativos, estimulantes e criativos” (ibidem, p. 232). A qualidade do lugar diz respeito ao conjunto de experiências possíveis no mesmo. No caso das ruas, a qualidade do lugar remeteria à possibilidade de participar da “cena” e não observá-la passivamente, ou seja, a ênfase não deve ser no espetáculo que acontece alheio à pessoa: “Num restaurante temático de rede, num estádio esportivo onde impera o espetáculo multimídia ou em regiões voltadas para o entretenimento e o turismo pré-fabricados, você não ajuda a criar a experiência nem controla sua intensidade; nesses lugares, a experiência lhes é imposta” (idem). A classe criativa deseja, portanto, fazer parte da experiência urbana e procura lugares que não estejam ‘prontos’, onde possa participar da construção. ‘Yuppie’ ou ‘Yup’ é uma gíria que foi popularizada nos anos 1980 para designar os jovens profissionais urbanos, ou em inglês: (Y)oung (U)rban (P)rofessionals. Trata-se, em geral, de pessoas com profissões bem remuneradas e um estilo de vida de alto custo (URBAN DICTIONARY 2014). É também mencionado por David Harvey (2011 [1989b]) em “Condição Pós-Moderna”, como um termo incluído em um novo tipo de discurso. 58 63 O item referente à qualidade do lugar é de especial interesse para nós, pois aponta que, dentro desta teoria, a preferência por uma cidade encontra-se diretamente ligada à quantidade e qualidade de amenidades que ela oferece. A preferência por lugares onde se encontram muitas amenidades estaria diretamente relacionada à natureza das carreiras baseadas no conhecimento, ou seja, profissões muito estressantes e que demandam muitas horas de trabalho. A grande oferta de atividades ligadas aos estilos de vida de cada um seria, neste sentido, uma forma de aliviar o stress do dia-a-dia (FLORIDA 2005, p. 84). A teoria de Florida, no entanto, sugere que a nova economia criativa é diferente da anterior, que enfatizava grandes equipamentos culturais e esportivos, as belas artes e a alta cultura (ópera, música clássica, teatro, museus e exibições de arte). Os lugares mais procurados pela classe criativa envolvem atividades ligadas aos seus estilos de vida alternativos e devem ser ao ar livre e recreativas, abertas, participativas, inclusivas e de fácil acesso (a pé, com bicicleta ou transporte público, pois a jovem classe criativa não deseja se locomover de carro e prefere regiões onde não precise dele). Assim, os equipamentos culturais de outrora são desejáveis, mas não indispensáveis. Mais do que isso, de acordo com suas pesquisas, hoje, os equipamentos de arte e cultura tradicionais e as cadeias de grandes times esportivos consistem em pobres indicadores para a conflagração do crescimento de alta tecnologia de uma região (ibidem, p. 73-74). Florida percebe que regiões bem conceituadas na provisão de arte e cultura podem possuir baixos indicativos criativos e econômicos. Dentre as suas constatações, a que mais o impressiona é o fato das ‘mega-atrações’ não se provarem mais eficazes em atrair as pessoas talentosas nem o fomento à inovação e à tecnologia. Existe uma preferência por espaços de menor porte e prestígio, que possuem a qualidade cool que interessa à classe criativa: As atrações que a maioria das cidades se concentra em construir – estádios, vias expressas, centros de compras, áreas de lazer e turismo semelhantes a parques temáticos – são irrelevantes, insuficientes ou mesmo desinteressantes para a maioria dos integrantes da classe criativa (FLORIDA 2011 [2002], p. 218, grifos meus). Esta constatação implica na maior prova da hipótese proposta aqui sobre a substituição de paradigmas observada, a partir dos anos 2000, nos discursos que embasam as políticas urbanoculturais de certas cidades, bem como na transição do planejamento cultural estratégico para o que argumentamos ser um ‘planejamento criativo estratégico’. Enquanto muitos administradores urbanos continuam apoiando-se no modelo que incentiva a proliferação de arquiteturas espetaculares e grandes eventos como fórmulas para a regeneração urbana – como no Rio de Janeiro e Abu Dhabi –, outros vêm incorporando em suas políticas a teoria de Richard Florida e apostando no desenvolvimento da imagem de cidades criativas – autênticas, tolerantes, jovens e com uma imagem ligada à subcultura, como é o caso de Berlim. Em 2004, pouco depois da publicação da “Ascensão da Classe Criativa”, a UNESCO criou uma Rede de Cidades Criativas (Creative Cities Network) com os objetivos de promover o seu desenvolvimento socioeconômico e cultural através das indústrias criativas e de conectar social e culturalmente comunidades diversas, de modo a propiciar um ambiente urbano saudável (UNESCO 2013). Os setores incluídos pela UNESCO como representantes da economia criativa foram: 64 Artesanato e Artes Folclóricas, Design, Filme, Gastronomia, Literatura, Artes Midiáticas e Música. Enquanto esta ação trouxe bastante atenção à instrumentalização do conceito de criatividade, Hollis (2013) considera que a crescente expansão desta teoria no fim da década de 2000 teve mais sucesso em função da crise financeira de 2008, quando o setor criativo mostrou-se um dos menos afetados da economia global, gerando 592 bilhões de dólares só naquele ano. Como consequência, até 2011, pelos menos 60 cidades do mundo já haviam adotado políticas sob o lema da cidade criativa (p. 107). Oficialmente, porém, apenas 69 cidades são consideradas hoje como membros oficiais da rede da UNESCO (tendo vinte e oito delas sido incluídas só em 2014). São elas, de acordo com sua especialidade:  Literatura: Cracóvia, Dublin, Dunedin, Edimburgo, Granada, Heidelberg, Iowa City, Melbourne, Norwich, Praga e Reykjavík;  Filme: Bradford, Busan, Galway, Sofia e Sydney;  Música: Bogotá, Bolonha, Brazzaville, Gand, Glasgow, Hamamatsu, Hanover, Mannheim e Sevilla;  Artesanato e Arte Popular: Aswan, Fabriano, Hangzhou, Icheon, Jacmel, Jingdezhen, Kanazawa, Nassau, Paducah, Pekalongan, Santa Fé e Suzhou;  Design: Berlim, Bilbao, Buenos Aires, Curitiba, Dundee, Graz, Helsinki, Kobe, Montreal, Nagoya, Saint-Étienne, Seul, Shenzhen, Pequim, Torino e Xangai;  Artes Midiáticas: Dakar, Enghien-les-Bains, Gwangju, Linz, Lyon, Sapporo, Tel Aviv-Yafo e York;  Gastronomia: Chengdu, Florianópolis, Jeonju, Östersund, Popayán, Shunde, Tsuruoka e Zahle. IMAGEM 15: Cidades membros da Rede de Cidades Criativas até 2013. Em dezembro de 2014, 28 novas cidades de 19 países foram adicionadas à Rede após uma chamada por candidaturas. Dentre elas, Curitiba e Florianópolis no Brasil.| FONTE: UNESCO (2013). 65 O que podemos perceber é que, com poucas exceções, a maioria destas cidades é desconhecida no cenário internacional. Muitas não exercem função de capital administrativa e não possuem um histórico de desenvolvimento econômico favorável. A esperança de seus gestores é que o status de ‘cidade criativa’ contribua para alavancar sua visibilidade e crescimento. A classificação da UNESCO vem contribuindo para TABELA 02: As 10 Melhores Cidades que as cidades compitam cada vez mais para fazer parte de do Mundo para Jovens em 2013 um grupo seleto, algo impulsionado pela mídia, como 1 Toronto provam as crescentes publicações jornalísticas com 2 Berlim resultados de pesquisas sobre as melhores cidades para se 3 Nova York viver e visitar no mundo. Dentre elas, destacamos: o 4 Dallas “índice cool” da revista canadense POV, que media a qualidade de uma região através de sua vida noturna, bares 5 Paris e restaurantes (apud FLORIDA 2005); a lista da revista 6 Chicago Época Negócios, classificando as cidades brasileiras mais 7 Londres criativas (ACHCAR 2011); a lista das vinte e cinco melhores 8 Los Angeles cidades turísticas do website e aplicativo para celular Trip 9 Tóquio Advisor (2013-2014); a lista da revista de moda Vogue dos quinze bairros mais cool do mundo (na qual o bairro 10 Seoul berlinense de Kreuzberg figurou como 14º) (REMSEN Fonte: Youthful Cities apud The Huffington Post (2013) 2014); a lista as das cidades mais divertidas do mundo pela pesquisa GetYourGuide (na qual Berlim foi eleita a primeira) (SEAGER 2014); e a lista das cidades mais jovens elaborada pela organização Youthful Cities59. Esta última mostra-se especialmente interessante por relacionar as amenidades necessárias em uma cidade para que seja considerada ideal para abrigar e atrair habitantes jovens, dentre elas: a forte participação cívica; a diversidade; a disponibilidade e eficiência dos meios de transportes; a conectividade global e regional da cidade; a qualidade do acesso digital; a sustentabilidade ambiental; a boa segurança; a possibilidade de saúde mental; o acesso à educação, ao emprego jovem e ao financiamento; o empreendedorismo; o status econômico; a alimentação e a vida noturna; as cenas de música e cinema; a moda e a arte; os bons espaços públicos; a possibilidade de praticar esportes e jogos. Em 2013, a cidade considerada mais jovem foi Toronto, seguida por Berlim, quase empatada. A capital alemã ganhou nos itens referentes à música e filme, devido, principalmente à sua forte cena de música eletrônica e festivais de cinema. Outro destaque foi o seu eficiente sistema de transporte público: mais de 82% da população berlinense vive a menos de 300 metros de distância de estações de transporte, o que rendeu à cidade, em 2012, o Prêmio de Cidade Acessível da Comissão Europeia (THOMAS 2013). 59 A iniciativa Youthful Cities classifica as metrópoles mais apropriadas para os jovens através de 80 indicadores diferentes, que vão desde as possibilidades de negócios até entretenimento e estilo de vida. Se dizem parte de uma iniciativa para desafiar a juventude a construir melhores cidades (YOUTHFUL CITIES, 2013). 66 3.3 Economia criativa: Mais Perdedores do que Vencedores? Apesar da expansão da instrumentalização do conceito de criatividade pelo mundo, a noção de cidades criativas, e em especial a teoria de classe de Richard Florida, vem sendo o alvo de diversas críticas por parte de artistas, economistas e acadêmicos que discordam com os índices e métodos científicos subjetivos e aleatórios utilizados para a obtenção dos dados e com o caráter elitista e excludente de suas classificações. Em se tratando da ideia de criatividade em si, o economista alemão Stefan Krätke salienta que, apesar de geralmente possuir uma conotação positiva, a criatividade como conceito é algo vago e passível de diversas interpretações. Isso porque se trata de uma atividade essencialmente humana, e portanto, subjetiva. O autor afirma que é o ator humano, e não as coisas ou territórios, que são criativos. Logo, para ele, a noção de ‘cidade criativa’ não passaria de uma ficção (2011, p. 03). Ele sugere, então, o conceito de “economia do conhecimento intensivo”60 (knowledge intensive economy) (2013 [2004]) no lugar da “economia criativa” de Howkins (2001) e “classe criativa” de Florida (2011 [2002]). Isso porque, na definição de “economia criativa”, o peso maior fica com a indústria cultural e de mídia. Na “economia do conhecimento intensivo”, o peso é dividido entre estas e as indústrias de software e o todo o setor de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Ideia semelhante é mencionada de forma crítica pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini, que fala da emergência de "cidades do conhecimento" (2008, p. 16-17), que unem a imagem do espetáculo cultural com a da pesquisa e da tecnologia. A observação de Krätke a respeito da subjetividade do conceito de ‘criatividade’ é interessante pois nos leva a constatar que a noção de capital criativo acaba por implicar numa simplificação da essência humana e, até mesmo, em sua materialização. Enquanto no capítulo anterior, mencionamos a tendência do planejamento cultural estratégico dos anos 1970-1990 em ‘sujeitificar’ a cidade; o que percebemos com o advento da estratégia criativa é uma instrumentalização do próprio ser humano, sua ‘coisificação’. Essa tendência das estratégias políticas e econômicas que implicam na inversão dos papéis – em cidades que se tornam sujeitos e homens que se tornam objetos – certamente merecem ser analisadas e debatidas no momento contemporâneo. Ademais, apontamos que a cidade criativa constada hoje não se mostra necessariamente aberta para acolher ideias inovadoras, diferentes e que rompem com padrões estabelecidos, implicando no incentivo apenas de processos que se mostrem economicamente criativos. Neste sentido, a criatividade, ao invés de espontânea, acaba pré-determinada através de categorias e setores econômicos rentáveis em um esquema de perversão do conceito original de originalidade e autenticidade. No âmbito do planejamento, observamos que este novo paradigma acaba surgindo como mais um jargão urbano utilizado para justificar projetos e políticas que atendem a interesses específicos dos detentores do capital. A criatividade começa a somar-se a termos como ‘sustentabilidade’, ‘legado social’, ‘diversidade cultural’ ou ‘multiculturalismo’ – que vêm sendo despidos e esvaziados de seu conteúdo devido ao uso repetitivo. Em se tratando da teoria de classe de Florida propriamente dita, as críticas também são vastas. Diversos autores apontam para a ausência de claridade nos seus conceitos, para falhas em seu método científico e para a agregação de profissionais de áreas muito diferentes e com 60 Cabe destacar, que o conhecimento aqui não se limita à noção de educação (pesquisas universitárias e similares), incorporando também a ideia de conhecimento inerente ao processo industrial de criação de produtos e serviços considerados inovadores (p. 135). 67 características heterogêneas em um grande grupo classificatório (KRÄTKE 2011; ROSLER 2011a e 2011b; NOVY & COLOMB 2013). A junção em uma categoria homogênea de profissionais que não dividem o mesmo interesse pela arte ou pelo chamado “estilo de vida boêmio” incomoda os artistas e produtores culturais, como a crítica literária e artista nova-iorquina Martha Rosler (2011a). Ela aponta que esta classificação ignora os interesses divergentes entre empregadores e empregados, entre trabalhadores jovens e mais velhos e entre as diferentes profissões, salientando a posição do urbanista inglês Max Nathan (do Centre for Cities) sobre a inexistência de evidências científicas a respeito de uma única e coesa classe criativa no Reino Unido ou nos EUA. Segundo Nathan, as teorias sobre o crescimento endógeno existentes já há mais de vinte anos apontam para a crescente importância econômica do conhecimento e do capital humano, porém a criatividade e o elemento cool que vêm sendo associados a este fenômeno representariam só a “cobertura, e não o bolo” (idem). Rosler ressalta ainda que a “ascensão da classe criativa” de Florida se remete ao que Sharon Zukin já constatava em 1982 como “modo de produção artístico” (ver p. 37), agora com uma nova roupagem. Porém, enquanto Zukin tratava de questões cruciais decorrentes desse processo, como a expulsão e deslocamento dos artistas e das classes mais pobres em decorrência da ‘culturalização’ das cidades, o economista estadunidense deixou de lado as consequências sociais e espaciais negativas incentivadas por sua teoria. Os autores Lees, Slater e Wyly (2008) também condenam a tese de Florida, acusando-a de convidar a gentrificação e sufocar a diversidade e a criatividade ao expulsar os artistas de baixas rendas dos centros criativos. Mais do que isso, eles alertam para a glorificação de uma classe – seja de artistas, cientistas ou boêmios – como pioneiros da gentrificação ou “bravos exploradores” (p. 122). Ainda sobre a aplicação do termo “classe” para a designação dos profissionais em questão, consideramos necessário salientar dois pontos: o primeiro é que a definição dada por Florida não vai de encontro com a conceituação marxista tradicional do termo, pois os profissionais criativos não possuem todos as mesmas relações com os meios de produção: alguns são empregadores e outros empregados, alguns são detentores do capital e outros não, suas condições sociais e econômicas são diversas. Não se trata, portanto, de um conjunto “de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, com toda a probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes”, como definiu Bourdieu (2011 [1989], p. 136). O segundo ponto, é que, ainda de acordo com Bourdieu, a própria definição tradicional de classe acabou por cair em um “relativismo nominalista” (idem) nas últimas décadas, contribuindo para anular diferenças ao juntar pessoas com aparentes similaridades em grupos ditos homogêneos. O uso do termo parecia inapropriado para o sociólogo francês em 1989, quando analisava o papel das ‘classes’ em meio ao fortalecimento do poder simbólico, e ele certamente não fazia sentido treze anos mais tarde no contexto analisado por Richard Florida. Demais críticas a Florida recaem sobre seu discurso pouco flexível que segrega positivamente os “vencedores” e “perdedores” econômicos/urbanos, indicando uma inevitabilidade de transformação social das camadas mais pobres da população, que aparecem consolidadas como eternos perdedores, bem como dos espaços urbanos onde estas camadas se concentram. Abrimos parênteses aqui para explicar a relação de Richard Florida com o campo teórico do Urbanismo, salientando a autoproclamada influência da obra de Jane Jacobs no desenvolvimento de sua teoria (FLORIDA 2011 [2002], p. 41-42), em especial o livro “Morte e Vida de Grandes Cidades” (2011 [1961]), que enfatiza a necessidade de diversidade, originalidade e autenticidade no espaço urbano. 68 O que Richard Florida desconsiderou, no entanto, é que o contexto em que este livro foi escrito era totalmente diferente do momento de publicação de sua “teoria da classe criativa” em 2002. O início da década de 1960 marcava o auge das críticas ao urbanismo modernista dominante havia mais de três décadas. Naquele momento, no âmbito das transformações vivenciadas em Nova York, Jacobs criticava os projetos urbanos de Robert Moses para esta cidade, bem como o conceito de cidadesjardim de Ebenezer Howard, as ideias de Le Corbusier e a dominância dos CIAMs, enfatizando a necessidade de usos mesclados em oposição ao funcionalismo e a setorização racional do “urbanismo ortodoxo” (JACOBS 2011 [1961], p. x). Ela pregava que a vida cotidiana deveria ser considerada no planejamento da cidade e que isso deveria ocorrer através de “iniciativas de reurbanização [que conseguissem] promover a vitalidade socioeconômica nas cidades” (ibidem, p. 02). Apesar de sua contundência na época, precisamos considerar que muito ocorreu desde o momento da redação de “Morte e Vida de Grandes Cidades”. Destacamos, em especial: a publicação da teoria de gentrificação da socióloga Ruth Glass em 1964 (vide p. 61) e suas muitas atualizações desde então; o movimento da contracultura que teria seu auge pouco depois, em 1968; o fenômeno de desindustrialização e as revitalizações urbanas de caráter culturalista que o seguiram; e, mais fundamentalmente, as transformações do capitalismo que levaram à consolidação do poder simbólico, aprofundando as desigualdades sociais e econômicas nas mais diversas cidades do mundo. Se Jacobs apontava em 1961 que o planejamento urbano modernista deixava “as pessoas estigmatizadas pelos planejadores [...], intimidadas, expropriadas e desenraizadas, como se eles [planejadores] fosse o poder dominante” (ibidem, p. 03), a substituição pós-moderna do planejamento pelo projeto pontual calcado na ‘culturalização’ a partir do fim dos anos 1970 certamente apenas contribuiu para reforçar este estigma. Isso porque, ao contrário do que esta frase de Jacobs leva a entender, o poder dominante não encontrava-se necessariamente nas mãos dos profissionais de urbanismo, mas sim dos detentores do capital, como explicam Bauman e Harvey (ver capítulo I). O que a investigação para a elaboração desta tese mostra é que as grandes cidades ocidentais vêm sendo, há tempos, projetadas e construídas de acordo com os interesses do capital, sempre em busca do lucro para poucos, o que, consequentemente, acaba fortalecendo disparidades econômicas, sociais, territoriais e culturais. Em outras palavras, o que se modifica são os discursos que embasam os processos embutidos no ato maior do planejamento urbano, porém as consequências dele vêm se mostrando de cunho semelhante, como elucida a socióloga Sharon Zukin, que é simultaneamente admiradora e uma das maiores críticas da obra de Jane Jacobs, em função de sua falta de preocupação social com fenômenos de exclusão e gentrificação em nome da ‘autenticidade’: O terreno urbano fértil da criação cultural está sendo destruído por ostentações conspícuas de riqueza e poder, típicas dos desenvolvedores privados e oficiais públicos, que constroem para os ricos e esperam que os benefícios 'gotejem' para os pobres através de promoções de mídia, que traduzem identidade de bairro como uma marca, e de gostos das novas classes médias urbanas, que são inicialmente atraídas por essas identidades, mas em última análise as destroem. [...] A tensão entre origens e novos começos produz o desejo de preservar a cidade "autêntica", que tem sido, desde os anos 1960, o objetivo de preservacionistas históricos, e de desenvolver centros de inovação cultural, que se tornaram, desde os anos 1980, o objetivo de muitos que 69 desejam achar um motor mágico de redesenvolvimento comercial rápido (ZUKIN 2010, p. xi, grifos meus). A importância da ‘autenticidade’ inferida na obra de Jacobs foi reciclada por Florida, que passou a incorporá-la em sua “teoria da classe criativa”, juntamente com a noção de ‘humanização dos espaços’, afirmando que “as cidades precisam mais de uma atmosfera humana que de um clima de negócios” (2011 [2002], p. 283, grifos do autor), porém ressaltando que esta atmosfera humana deve ser selecionada – de “primeira linha” (ibidem, p. 293), uma vez que a nova classe criativa engloba apenas os “líderes naturais e únicos da sociedade do século XXI” (ibidem, p. 315). Fechamos nossos parênteses acrescentando que a ideia de ‘autenticidade’ na vida urbana foi melhor compreendida por Zukin no último livro de sua trilogia sobre Nova York61, “Naked City: The Death and Life of Authentic Urban Places” de 2010 – uma alusão clara à célebre obra de Jane Jacobs –, em que Zukin aponta para o caráter escorregadio do termo ‘autenticidade’, afirmando que os espaços autênticos estão diretamente ligados a transformações constantes da cidade e podem ser facilmente descaracterizados. A ‘autenticidade’ é limitada ou destruída quando espaços são (re)apropriados por “forças homogeneizantes de redesenvolvimento [...], perdendo suas identidades” (ZUKIN 2010, p. xi). As muitas desigualdades resultantes da aplicação prática da “teoria da classe criativa” em busca de uma artificial ‘autenticidade’ tem sido tal que, em 2013, o próprio Richard Florida tentou retificar partes de seu discurso, enfatizando que agora observa mais “perdedores” do que “vencedores” na economia do século XXI (FLORIDA 2013; MACGILLIS 2013). Apesar disso, suas obras do início e meados da década de 2000 continuam fazendo sucesso e ganhando atenção entre políticos e administradores municipais, em especial nas chamadas cidades de “segundo escalão” (ROSLER 2011a). Ou seja, cidades que procuram desesperadamente uma identidade para ser consumida como mercadoria e que tendem a glorificar a acumulação de amenidades como meio de salvação de crises ou mesmo de uma história pouco interessante. Esse seria o caso, por exemplo, de grande parte das cidades incluídas na Rede de Cidades Criativas da UNESCO e em locais como Toronto, onde foi desenvolvido um Plano de Cultura para a atração específica de pessoas criativas e trabalhadores do conhecimento. Neste caso, no entanto, houve uma preocupação com os vínculos da população com o espaço e com a prevenção de antemão de consequências indesejadas da gentrificação. De acordo com Davies (2008, p. 77), as estratégias de captação do capital criativo em Toronto ocorreram em parceria com uma política intitulada “Sem Perda Líquida de Espaço Cultural”, que determinava o trabalho integrado entre a comunidade artística e os departamentos locais de planejamento e desenvolvimento econômico e jurídico. Tratava-se de um processo de regulamentação dos incorporadores, de modo a assegurar a delimitação e proteção dos espaços onde a cultura era produzida para que artistas pudessem permanecer nas suas áreas de origem, vivendo, trabalhando e acrescendo valor à vizinhança. No entanto, a importação deste modelo criativo por outras cidades ignora que a teoria de Florida, além de controversa, foi desenvolvida com base na experiência estadunidense e A trilogia foi composta por “Loft Living” (1982), “The Cultures of Cities” (2006 [1995) e “Naked City: The Death and Life of Authentic Urban Places” (2010). Este último ainda não foi traduzido ou publicado no Brasil. 61 70 posteriormente canadense62, apoiando-se em dados coletados nestes contextos específicos e, portanto, desconsiderando certas desigualdades que são muito mais acentuadas em outras partes do mundo, como acontece no Rio de Janeiro, por exemplo. Como constata Wanis (2013), existe uma conexão entre o discurso da economia criativa e o atual “momento Rio”, marcado pela eminência dos megaeventos esportivos (Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016). O que observamos, no entanto, é que os planos de renovação urbana carioca vêm adotando o dito discurso da economia criativa, porém incentivando um modelo de planejamento estratégico de fundo cultural mais condizente com o observado nos EUA e na Europa na década de 1990. A construção de grandes equipamentos culturais, o incentivo aos megaeventos e à produção de espaços espetaculares em meio à pobre infraestrutura urbana, altos preços e pouca tolerância social chocam-se com a ideia de uma cidade que deveria buscar atrair profissionais do conhecimento e possuir amenidades de caráter subcultural, alternativo e cool. Essa mistura de discursos contribui para o desenvolvimento de políticas urbano-culturais disparates, confusas e pouco eficientes, focando, não nas reais necessidades locais, mas em um ideal embaçado do que a cidade deveria ser. A confusão a respeito do paradigma da criatividade é muito presente em uma das poucas obras sobre o tema escritas no Brasil, o livro “Cidades Criativas” (2012) de Ana Carla Fonseca Reis, que traz um olhar excessivamente economicista e pouco crítico da aplicação do discurso criativo no país, relegando os problemas sociais e urbanos decorrentes da mesma. Um bom exemplo do choque provocado pela confusão de discursos político-culturais no Rio de Janeiro consiste no caso da Antiga Fábrica da Bhering, situada no bairro do Santo Cristo – centro da cidade e parte da região contemplada pela operação urbana Porto Maravilha (vide p. 54-55). A antiga fábrica de doces foi transformada em um núcleo alternativo de ateliês artísticos em meados da década de 2000, obtendo um tímido reconhecimento no cenário carioca. Em julho de 2012, o local atraiu visibilidade em nível nacional quando seus locatários foram ameaçados de despejo. Devido a questões mal resolvidas de propriedade, o prédio havia sido vendido em um leilão compulsório e o novo dono pretendia transformá-lo em um grande centro cultural e comercial. Os protestos dos locatários contra a operação urbana Porto Maravilha somados à repercussão na imprensa em plena época de campanha eleitoral fez com que o prefeito reeleito do Rio, Eduardo Paes, se envolve-se no caso, tombando o imóvel e garantindo sua posse. Sua solução foi transformá-lo em um edifício público de uso privado, permitindo a permanência dos artistas no local em troca da sua inserção no âmbito do Porto Maravilha. A interlocução entre artistas e poder municipal foi realizada pelo arquiteto Washington Fajardo, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e um dos gestores urbanos identificados por Teixeira (2013) como adepto dos conceitos de cidade e economia criativa na linha de Richard Florida. Como consequência, os artistas foram obrigados a concordar com o estabelecimento compulsório de uma associação administrativa coletiva (a Associação Criativa Orestes 28), se tornar responsáveis pela restauração e manutenção do imóvel e garantir o desenvolvimento de atividades de fomento à economia criativa, de modo a fortalecer o caráter de “corredor cultural” intentado para a região portuária (SELDIN 2012). Nos últimos dois anos, conflitos entre os membros da associação sobre os rumos e objetivos do edifício fizeram com que vários dos antigos artistas abandonassem o ‘coletivo’. As novas iniciativas internas passaram a figurar constantemente nos jornais e revistas locais em decorrência 62 Após o sucesso de sua teoria, Richard Florida se realocou para o Canadá, onde se tornou professor da University of Toronto. 71 da abertura de lojas de móveis e produtos de design, bem como da realização de pequenos eventos culturais63. A nova veia ‘criativa’ da fábrica fez com que a Bhering tivesse sua imagem rapidamente transformada de um pequeno núcleo cultural alternativo com potencial de resistência contra a homogeneização da zona portuária em um polo de criatividade conectado ao projeto Porto Maravilha e gerido por artistas de classe média ligados à corrente cultural dominante (mainstream), à administração pública e sem interação com o entorno local imediato (as favelas e comunidades próximas onde brota aquele que configuraria o real capital subcultural carioca), constituindo, assim, um quadro bem diferente do proposto pelo próprio Richard Florida. IMAGENS 16-17: Fábrica da Bhering: o edifício industrial decadente constitui uma das maiores esperanças da Prefeitura do Rio para a criação de um polo criativo na Zona Portuária. À esquerda: fachada principal vista do estacionamento; à direita: loja de móveis no interior da fábrica. | FONTE: Claudia Seldin, 2012. A polêmica na adoção de estratégias de instrumentalização da criatividade e sua confusa aplicação não é restrita, porém, a cidades de países em desenvolvimento, como o Brasil, em que o conceito da ‘economia criativa’ chega através de uma violenta imposição de discurso. Em Londres, na Inglaterra, a aplicação de discursos de incentivo à criatividade, conflagrada desde o fim da década de 1990, tem se chocado com crescentes políticas de intolerância à imigração, que vêm inibindo a entrada e permanência de profissionais estrangeiros dos setores criativos na cidade. Em 2013, o departamento de imigração (Home Office) lançou uma campanha de vans pela cidade com os dizeres “Vá para casa ou seja preso” (go home or face arrest)64, direcionada, em teoria, aos estrangeiros ilegais na capital inglesa, porém recebida como uma política racista e segregante pelas associações de direitos humanos locais e grupos independentes, que criaram suas próprias vans em protesto aos escândalos de corrupção do governo. 63 64 Como o demonstrado, por exemplo, através da reportagem de Ribeiro (2014). Ver reportagem de Wintour (2013). 72 IMAGENS 18-19: Em Londres, a OXO Tower na frente marítima revitalizada de Southbank se autoproclama como o “coração da Londres criativa”. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 20-21: Em Londres, do outro lado do Rio Tâmisa, próximo ao Palácio de Westminster e ao Big Ben, um grupo protesta contra a política intolerante do governo e seus recentes escândalos financeiros com sua própria van com os dizeres: “Membros do parlamento: acham seu emprego estressante? Vão para casa, para sua segunda ou terceira casa, obviamente” e “Membros do parlamento: alegando despesas ilegalmente? Devolvam ou sejam presos”. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Já em Berlim, na Alemanha – recorte espacial desta tese – a adoção de uma imagem de cidade criativa é parte integral dos discursos que embasam a políticas públicas desde 2000 e vem sendo avidamente combatida pela própria “classe criativa” local, como veremos no próximo capítulo. 73 QUADRO 03: Conceitos relativos à economia simbólica Conceito Capital Capital Simbólico Capital Cultural Capital Subcultural Capital Cognitivo Capital Criativo (capital humano) Definição “É um processo de reprodução da vida social por meio da produção de mercadorias em que quase todas as pessoas do mundo capitalista estão profundamente implicadas. Suas regras internalizadas de operação são concebidas de maneira a garantir que ele seja um modo dinâmico e revolucionário de organização social que transforma incansável e incessantemente a sociedade em que está inserido” (p. 307). Conjunto dos instrumentos de apropriação dos bens de consumo que atestam o gosto e a distinção de quem os possui, contribuindo para a reprodução da ordem já estabelecida. Implica na constante demonstração de símbolos e distinção social e é um elemento representativo da vida urbana pós-moderna. É sustentado por noções de ‘moda’ e ‘tendência’. Conjunto dos instrumentos de apropriação dos bens simbólicos relacionados à arte e à cultura. Estes bens simbólicos são representativos de uma cultura específica e devem ser desejados através do consumo, distribuição e troca. Está vinculado à existência de uma sociedade imagética e sua promoção por meio da publicidade midiática. Conjunto dos instrumentos de apropriação dos bens simbólicos que não representam a corrente cultural principal dominante (mainstream), mas que implicam em distinção social. Ligado à produção alternativa de cultura e à competitividade em cidades gentrificadas ou em processo de gentrificação. Diferente da contracultura dos anos 1960/70. Conjunto dos instrumentos de apropriação do conhecimento e sua produção, implicando na sua exploração. Indica uma dependência cada vez maior dos bens imateriais por parte da economia. Ligado, principalmente, aos setores de pesquisa e desenvolvimento e produção de softwares e tecnologia de ponta e da informação. Conjunto dos instrumentos de apropriação dos bens culturais materiais e imateriais ligados ou não à corrente dominante, do conhecimento e de sua produção e da produção simbólica e material de todos os profissionais constituintes da “classe criativa” (capital cultural + capital subcultural + capital cognitivo). Referências HARVEY (2011 [1989b]) Bourdieu (2011 [1989]) HARVEY (2011 [1989b]) Bourdieu (2011 [1989]) Canclini (2011 [1989]) Coelho (2004 [1997]) Thorton (1997) Bader & Scharenberg (2013) Krätke (2004, 2011) Ribeiro (2006) Bentes (2007) Howkins (2001) Florida (2005, 2011 [2002]) FONTE: Claudia Seldin, 2015. 74 CAPÍTULO IV Berlim: “Pobre, mas Sexy” Mas, as mãos que construíram a Torre de Babel nada sabiam dos sonhos do cérebro que a havia sonhado (METROPOLIS de Fritz Lang, 1927). 4.1 Contextualização A cidade de Berlim consiste em um interessante recorte espacial para a análise da evolução dos discursos envolvidos nas políticas urbano-culturais devido a sua peculiar história – marcada por impérios, guerras, divisão entre sistemas políticos e modos de produção e pela repetida necessidade de regeneração, não só do espaço construído, mas da imagem urbana local. Em sua obra “Staging the New Berlin” (2012), a socióloga Claire Colomb apresenta esta cidade como um “fascinante laboratório de mudanças urbanas” (p. 07), em que o conceito de ‘transição’ assume importância extrema: seja a transição para uma cidade reunificada, a transição para uma cidade capitalista em uma nação tentando redefinir sua identidade ou a transição de uma metrópole industrial para pós-industrial ou pós-fordista (idem). Este caráter de constante modificação e reestruturação da identidade de Berlim é intenso e perceptível através de uma evolução de diferentes slogans criados para a promoção da imagem da cidade desde o fim do século XIX. Berlim é a capital e um dos 16 estados constituintes da Alemanha (circundada pelo estado de Brandemburgo). É também a maior cidade do país, possuindo cerca de 3,4 milhões de habitantes. Como estado federal (Land Berlin) é governada pelo Senado local, constituído pelo prefeito e até oito senadores. É dividida em distritos, que possuem certa autonomia administrativa. Como sede do governo federal, abriga os equipamentos do parlamento, atualmente chefiado pela Chanceler (Bundeskanzler) Angela Merkel, pertencente ao partido União Democrata Cristã (Christlich Demokratische Union CDU). IMAGEM 22: Localização geográfica. | FONTE: Wikipedia (original adaptado pela autora, 2015). 75 TABELA 03: Contextualização de Berlim - Uso e Ocupação do Solo em 2012 Área total da cidade 892 m² Nº de distritos 12 Área construída (incluindo espaços abertos associados aos lotes) 41,5% Área industrial 0,6% Área de agricultura 4,4% Área recreativa 11,9% Área de circulação (tráfego) 14,9% Área florestal 18,3% Lagos e corpos d’água 6,7% Outros usos 1,7% FONTE: Amt für Statistik Berlin-Brandenburg (2014) IMAGEM 23: Divisão de Berlim por distritos | FONTE: SenStadtUm, 2012 A grande intensificação do caráter industrial de Berlim teve início durante as últimas três décadas do século XIX, que seguiram a unificação e fundação do Império Germânico em 1871 (conhecida como Gründerzeit). Neste período, a cidade vivenciou uma intensa urbanização acompanhada de um crescimento demográfico significativo65. Berlim se tornou o centro industrial 65 A população de Berlim cresceu de 800 mil habitantes em 1871 para dois milhões em 1905 (COLOMB 2012, p. 40). 76 da Alemanha, abrigando proeminentes empresas ligadas à produção de aparelhos eletrônicos, à provisão de energia e de meios de transporte, destacando-se nomes como a AEG e a Siemens. Após a I Guerra Mundial e a configuração do território alemão como República de Weimar em 1918-19, teve início uma série de atividades de propaganda para a promoção do turismo local, apoiadas na criação de departamentos e órgãos específicos financiados pelo governo. Neste momento, Berlim era vista como a “metrópole moderna paradigmática” (STEWART 2006, p. 195 apud COLOMB 2012, p. 40), constituindo a quarta maior cidade do mundo, com cerca de 3,8 milhões de habitantes até o fim da década de 1920 66. Tratava-se também da era dourada da produção cultural local, sendo a cidade considerada um centro de referência para a arte e arquitetura modernistas, para o entretenimento, para atividades comerciais e, até mesmo, para a liberação sexual. De acordo com Peter Hall (1998), a Berlim dos anos 1920 era quase uma paródia da cidade criativa que seria idealizada oitenta anos depois (p. 23). Campanhas publicitárias como “Jeder einmal in Berlin” (em uma tradução livre: “pelo menos uma vez em Berlim”) e “Berlin im Licht” (“Berlim iluminada”) – financiadas com recursos públicos – eram organizadas para atrair atenção de turistas à cidade (COLOMB 2012, p. 44). Na pintura, literatura e artes performáticas, a representação de Berlim era dúbia, sendo ressaltadas tanto suas qualidades de metrópole organizada, racional e cosmopolita, símbolo da indústria e da modernidade cultural, da vanguarda e dos avanços tecnológicos; quanto os males advindos da intensa urbanização e da mecanização industrial. O rápido crescimento assustava muitos, fato ilustrado pelo emblemático filme de ficção científica Metropolis (1927) de Fritz Lang, que revelava o medo de um eminente colapso social relacionado à máquina anônima, à luxúria e à crescente cultura comercial da grande cidade. Para as correntes mais radicais, tanto de direita quanto de esquerda, as apropriações identitárias de Berlim por judeus, americanos e bolcheviques, que contribuíam para o crescimento da cidade, tornavam-se um perigo para a população local. (op. cit., p. 47). IMAGENS 24-25: A ambiguidade da cidade industrial em cenas do filme Metropolis: o distrito subterrâneo das máquinas que fornecem energia à cidade (esq.) versus o distrito de Yoshiwara, onde os ricos praticam atividades de entretenimento ilícitas (dir.). | FONTE: METROPOLIS (1927 - DVD). 66 Em 1920, após a da união de oito cidades, 59 cidadelas e 27 distritos, Berlim havia se transformado na Grande Berlim (Groß Berlin). As outras três grandes metrópoles mundiais eram Nova York, Chicago e Londres (idem). 77 A partir de 1933, quando o Partido Nazista subiu ao poder, o discurso político oficial do Nacional-Socialismo baniu palavras como ‘metrópole’ da linguagem oficial. A Berlim da República de Weimar foi desconsiderada, condenada como corrupta e decadente, e suas noções de cosmopolitismo foram desacreditadas. A celebração da modernidade foi gradualmente substituída pela promoção do patrimônio histórico e da cultura popular alemã tradicional67. Os discursos de promoção e abertura da cidade deram lugar à propaganda de exaltação da superioridade do povo alemão. Neste sentido, os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 – os primeiros televisionados da história – acabaram por consolidar o início da utilização de eventos espetaculares para a exaltação da imagem de um local (COLOMB 2012, p. 47-48). Em 1945, após a rendição das autoridades nazistas ao exército soviético, a administração da cidade em ruínas teria que lidar com os resultados de 363 ataques aéreos realizados ao longo de cinco anos, dentre eles a perda de um quarto da capacidade de produção industrial local, a diminuição da população em quase 1,5 milhões de habitantes, a destruição de aproximadamente 50 mil edifícios e as consequentes 75 milhões de toneladas de detritos (TAYLOR 2004). Essa administração refletia a nova divisão geográfica da cidade em quatro setores diferentes, sob o poder das forças aliadas (França, Reino Unido e EUA) e da União soviética. Entre 1948 e 1989-90, a cidade manteve-se partilhada em dois blocos distintos de acordo com sua localização físicogeográfica e sistema político e econômico adotado: as forças aliadas tomavam conta de Berlim Ocidental – capitalista, que ocupava 488 quilômetros quadrados da área urbana; enquanto a união soviética exercia sua influência em Berlim Oriental – socialista, que ocupava 403 quilômetros quadrados (GEMBUS 2008). IMAGEM 26: Mapas esquemáticos de divisão da Alemanha e Berlim durante a Guerra Fria. | FONTE: ComoTudoFunciona (2009, original adaptado pela autora). 67 Para mais sobre a assimilação cultural na Alemanha durante o nazismo e sua relação com o conceito de modernidade, ver Bauman (1999 [1991]). 78 Berlim Ocidental, sob a condição de cidade-Estado, obedecia à constituição berlinense de 1948, que apontava uma autoridade local única dentro da República Federal da Alemanha (RFA), fundada em maio de 1949. Bonn foi escolhida como a nova cidade capital da RFA. Meses depois, a parte oriental de Berlim foi declarada como cidade capital da recém formada República Democrática Alemã (RDA). A partir deste momento, a cidade de Berlim e, mais especificamente suas duas partes distintas, tornaram-se uma espécie de vitrine para os regimes capitalista ocidental e socialista oriental, tanto em termos materiais quanto simbólicos. A competição imagética que permeava os dois lados podia ser percebida especialmente na arquitetura, que refletia a rivalidade ideológica dos blocos mundiais. Cada sistema político buscou expressar seu poder através da reforma parcial do espaço construído, bem como através de um incentivo ao turismo cultural com foco em novos projetos urbanos emblemáticos, como o Hansaviertel no Oeste e a avenida Stalinalle no Leste. O Hansaviertel – região bombardeada durante a II Guerra Mundial e reconstruída entre 1957 e 1961 – foi inserido no contexto da Exibição Internacional de Construção (Internationale Bauausstellung – IBA), representando, já naquela época, um exemplo precoce de glorificação do processo de renovação do tecido urbano através do uso de grandes nomes da arquitetura, dentre eles: Oscar Niemeyer, Alvar Aalto e Walter Gropius. A avenida Stalinalle (posteriormente renomeada Karl-Marx-Allee) estendia-se por quilômetros a partir de Alexanderplatz (uma das mais famosas praças da cidade), contando com altos edifícios residenciais também modernistas 68. IMAGENS 27-28: Traçado modernista ainda presente na morfologia urbana da antiga Berlim Oriental – a Stalinallee (atual Karl-Marx-Allee) vista da Torre de TV (Fernsehturm). | FONTE: Claudia Seldin, 2007. 68 A IBA foi retomada em 1979 e continuou até 1987, quando foi celebrado o aniversário de 750 anos de fundação da cidade de Berlim. Para mais sobre os diferentes projetos de arquitetura desta época, ver Eskinazi (2007). 79 Durante quarenta anos, a situação de Berlim Ocidental era bastante peculiar devido a sua conformação de ‘ilha’ isolada em meio ao território socialista. Depois da II Guerra Mundial, grandes fábricas, entre elas a AEG e a Siemens, transferiram suas sedes para outras cidades, como Frankfurt e Munique. As indústrias restantes penavam devido aos baixos níveis de inovação tecnológica e de investimento privado. O setor terciário encontrava-se subdesenvolvido e a economia de Berlim capitalista era largamente financiada pelo governo alemão ocidental, que, através de subsídios e incentivos financeiros, tentava atrair e manter habitantes e comércio neste lado da cidade. Podemos afirmar que a desindustrialização chegou antecipadamente a Berlim, porém, o “estado de exceção” da cidade (como é comumente referida sua situação peculiar de partilha) fez com que o lado capitalista se mantivesse relativamente imune às pressões globais para reestruturação econômica que impactavam os governos dos demais países ocidentais durante as décadas de 1960, 1970 e 1980. De acordo com Strom (2001), essa “folga de quarenta anos das pressões especulativas” (p. 52) permitiu que os governos, tanto do leste quanto do oeste, exercessem maior controle sobre a reforma do espaço urbano de Berlim, permitindo a implantação de políticas generosas para a construção de habitação e equipamentos de educação e cultura. A construção do Muro de Berlim, em agosto de 1961, mudou dramaticamente a imagem da cidade. Se do ponto de vista político, a estrutura era condenada, do ponto de vista econômico, o muro se tornou uma das maiores atrações locais69, incentivando um tipo de ‘turismo de guerra fria’ bastante rentável (tanto durante quanto após a queda do muro em 1989). Os traços deste turismo permanecem até hoje através da ‘cenarização’ de antigos pontos de passagem do muro (como a região do Checkpoint Charlie70, onde pessoas fantasiam-se de soldados e cobram pelo carimbo da RDA em passaportes); da venda de pedaços do muro como souvenires; e de tours em antigos bunkers nucleares subterrâneos. IMAGENS 29-30: Checkpoint Charlie: um dos antigos pontos de passagem do Muro de Berlim; hoje atração turística. | FONTE: Claudia Seldin, 2007. 69 Até os dias atuais, como o evidenciado através dos muitos eventos comemorativos públicos e privados em função do 25º aniversário de queda do muro em 2014. Para exemplos das intervenções urbanas realizadas no âmbito da comemoração, ver: <http://www.berlin.de/mauerfall2014/en/25-years-fall-of-the-wall/>. Acesso em: 10 dez. 2014. 70 Antigo posto militar de passagem entre os dois lados da cidade, onde hoje situam-se exposições abertas, um famoso museu sobre o muro de Berlim e trechos do muro grafitados por artistas renomados. 80 IMAGENS 31-32: Pedaços remanescentes do Muro de Berlim expostos na Potsdamer Platz (esq.) e em Checkpoint Charlie (dir.). | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 33-35: Um dos poucos bunkers nucleares remanescentes na antiga Berlim ocidental transformado em atração turística pelo museu Story of Berlim. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Na tentativa de escapar das sombras históricas do nazismo e do crescente ‘turismo de guerra fria’, a partir do fim dos anos 1970, novos temas foram agregados à propaganda urbana de Berlim Ocidental pelo departamento de turismo local, entre eles: os prazeres urbanos aliados ao consumo, à vida noturna e à cultura e a presença de habitantes jovens que contribuíam para o escape da rotina e para um ar cosmopolita da cidade. O berlinense da época era representado como jovem, desafiador, artístico, dotado de ótimo caráter e orgulho de sua cidade. Tratava-se dos primórdios da promoção urbana através da exaltação da qualidade cool do local, como sugeriria Richard Florida décadas depois. A incorporação dos jovens autênticos, politicamente engajados e culturalmente ‘antenados’ como símbolo de Berlim estava diretamente conectada com a herança sociocultural das décadas de 1960 e 1970, quando o movimento estudantil local adquiriu força. Apesar de hoje a cena cool e subcultural da cidade concentrar-se no antigo lado oriental (como veremos mais adiante), naquela época, a mídia nacional e internacional a associava com o lado capitalista da cidade, em especial com o distrito de Kreuzberg – adjacente ao muro e onde predominava uma imagem de IMAGEM 36: Localização do distrito de Kreuzberg. | FONTE: Claudia Seldin, 2015. 81 rebeldia jovem, de protestos indisciplinados e de estilos de vida alternativos – culturais e sexuais. Para Shaeffer (2014), o caráter subcultural adquirido por Kreuzberg pode ser explicado por duas razões: primeiramente, pela forte concentração de imigrantes turcos (que hoje ocupa mais de trinta por cento da região) em procura de áreas mais baratas onde pudessem se estabelecer na Europa Ocidental. A segunda razão seria uma brecha na lei da RFA, que retirava a obrigatoriedade do serviço militar para aqueles que habitassem em Berlim Ocidental. Naturalmente, essa brecha fez com que camadas ligadas à contracultura, como artistas e punks, se mudassem para áreas baratas da cidade, próximas ao muro. A concentração de jovens politicamente engajados levou a experiências alternativas de apropriação do espaço urbano, como a prática de ‘squats’71 – um tipo de ocupação informal ou ilegal de edifícios muito forte em Berlim e na Europa, dotada geralmente de caráter social e/ou político, sendo muitas vezes relacionada a formas de protesto contra políticas urbanas vigentes (habitacionais, culturais, de migração, entre outras). No início da década de 1980, um escândalo do mercado imobiliário fez com que o número de squats aumentasse exponencialmente, levando a conflitos e episódios de violência urbana72. Bader & Bialluch (2009) apontam que, só entre 1980 e 1981, cerca de 170 imóveis abrigavam squats em Berlim Ocidental, recebendo forte apoio popular, incluindo por parte dos imigrantes turcos, que tinham dificuldades em encontrar apartamentos devido ao preconceito. Este fato, somado a um enorme crescimento da imigração e do desemprego, fez com que o Senado berlinense73 tomasse medidas diplomáticas para conter os ânimos locais sem perder, no entanto, o seu tradicional controle sobre a cidade. Dentre estas medidas, estava a mediação de um acordo entre squatters e proprietários que garantia a permanência dos ocupantes por vinte ou trinta anos mediante o pagamento de alugueis fixos e predeterminados. O financiamento deste acordo ocorreu por meio de programas de bem-estar social e de renovação urbana, representando uma vitória para muitos movimentos sociais locais. Como consequência, Berlim Ocidental passou a ser vista como a única cidade alemã onde a prática de squat era apoiada oficialmente pelo governo – algo que logo transformou a cidade em um destino atraente para jovens e movimentos alternativos (HÄUßERMANN & SIEBEL 2013; LANZ 2013a [2011], 2013b; HUBMANN & PERKOVIC 2014). A necessidade de atrair investidores e capital externo fez crescer o mito do distrito de Kreuzberg como meca cultural e centro boêmio e alternativo europeu, sendo ele incorporado em O termo “squat”, em inglês, também adotado na Alemanha, denota uma ocupação de caráter habitacional e/ou cultural de uma casa, edifício ou terreno abandonado ou ameaçado, sendo normalmente realizada por um grupo de indivíduos que não possuem a propriedade legal da terra. Implica, portanto, no uso da propriedade sem o consentimento prévio de seu dono, podendo este ser uma instituição pública, um indivíduo particular, uma corporação privada ou qualquer tipo de organização. Muitas vezes adquirem caráter político, de reinvindicação ao direito à moradia ou de resistência ao sistema capitalista. Utilizamos o termo ‘squatters’ para designar as pessoas que praticam estas ocupações. Ver Cattaneo & Martínez (2014) sobre os movimentos de squatters na Europa. 71 72 Para resistir à política conservadora do Partido Cristão Democrata (CDU) e chamar atenção e atrair adeptos, os movimentos de squatters berlinenses realizavam protestos e eventos festivos, distribuíam panfletos e livretos e coordenavam ações de destruição de propriedade. Durante as duas ondas de squats – no início da década de 1980 e no início da década de 1990 –, o número de pessoas mobilizadas pelos movimentos podia chegar a quinze ou trinta mil. Em 22 de setembro de 1981, os protestos foram marcados pela morte de Klaus Jürgen Rattey, que, perseguido pela polícia durante uma passeata contra os despejos de oito squats, se escondeu debaixo dos pneus de um ônibus, sendo arrastado por várias centenas de metros (MARTÍNEZ & AZOZOMOX 2014, p. 221-223). 73 O senado berlinense foi liderado pelo partido União Cristã Democrata (CDU) de 1981 a 2000. 82 brochuras e propagandas oficiais do governo, veiculadas inclusive em língua inglesa. Em termos internacionais, a estadia dos famosos músicos do glam-rock David Bowie e Iggy Pop em Kreuzberg, entre o fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, contribuiu imensamente para a expansão da imagem cool do distrito por todo o mundo (BADER & SCHARENBERG 2013; SHAEFFER 2014). A nova linha de promoção da cidade nos anos 1980, que pregava a tolerância com squats e subculturas como forma de amenizar tensões, fazia parte de um discurso de planejamento urbano mais amplo. Enquanto as décadas anteriores haviam sido dominadas por uma ideologia modernista que orientava o necessário processo de reconstrução da cidade bombardeada, a partir de meados dos anos 1970, o oeste berlinense começou a absorver as críticas do mundo ocidental sobre o excesso de funcionalismo e radicalidade da abordagem tabula rasa. O fortalecimento do Partido Verde local, juntamente com o apoio às formas alternativas de vida em Kreuzberg, levou à emergência de debates públicos sobre a necessidade de novos modelos urbanos para o desenvolvimento da cidade. O resultado foi o surgimento, nos anos 1980, de uma linha de profissionais – principalmente arquitetos e urbanistas – que pregavam a “renovação urbana cuidadosa” (behutsame Stadterneuerung) – baseada na renovação física dos edifícios, mas preservando a malha urbana herdada do século XIX, com atenção especial à manutenção da estrutura do lote, das quadras internas (Höfe) e das densidades habitacionais. Em outras palavras, tratava-se de uma forma de evitar demolições desnecessárias e impedir que a modernização excessiva dos imóveis se tornasse justificativa para o aumento de preço dos alugueis. No âmbito de retomada da IBA, muitos experimentos de renovação urbana seriam financiados pelo Senado berlinense do Oeste, que passou a criar mecanismos de controle de alugueis e participação ativa de inquilinos no processo de renovação com o objetivo de evitar desalojamentos74. De acordo com Colomb (2012), o crescimento da desindustrialização e a necessidade de atração de capital externo fez com que o governo local, sob o poder do CDU, iniciasse um processo intenso de organização e promoção de eventos culturais como instrumentos de marketing para atrair visitantes à cidade. Essa “festivalização da política urbana”, como foi chamada por Häußermann & Siebel (1993), não era particular das políticas de Berlim, encontrando-se em peso em outras cidades da Alemanha e Europa Ocidental, como já vimos no capítulo II. Dentre os eventos de destaque, ressaltamos o jubileu de 750 anos de Berlim e a sua designação, em 1988, como “Cidade de Cultura Europeia”. IMAGENS 37-39: Imagens comemorativas do título de Cidade Cultural Europeia em 1988 | FONTE: Wikipedia, 1988. Em se tratando do lado oriental de Berlim – capital da RDA –, os mecanismos de promoção do turismo eram ligados a órgãos estatais, não havendo atividades explicitas de marketing urbano como no lado ocidental. O único tipo de propaganda percebida era aquela conectada à 74 Esses controles se provaram importantes nos dias atuais para ajudar na contenção dos preços de aluguéis, significativamente aumentados em decorrência da aplicação do modelo de planejamento estratégico descrito no capítulo II. Um deles consistia no Millieuschutz, que coloca barreiras à conversão de antigos flats em apartamentos luxuosos através da construção de itens como varandas e da sua reforma com a utilização de materiais de acabamento de qualidade muito superior aos originais. Apesar de não prevenir a gentrificação, ele se mostra hoje como um obstáculo a sua expansão desenfreada (BORDEN et al 2013). 83 representação do regime socialista e seus princípios, conforme satirizado no filme “Adeus Lênin” (Good Bye Lenin!, 2003) de Wolfgang Becker. A maior dessas representações consistia na própria arquitetura, especialmente no distrito central de Mitte, cujo grande símbolo era a monumental avenida Stalinallee. Neste lado de Berlim, o planejamento urbano apoiado pelo governo condizia com as diretrizes modernistas de zoneamento e funcionalismo. Uma das obras arquitetônicas de maior destaque do Leste, realizada entre 1964 e 1976, consistia em um enorme complexo de edifícios projetado para abrigar a sede do governo socialista em uma ilha do Rio Spree. Esta região constituía um vazio urbano abandonado desde a demolição do Palácio Imperial prussiano (Berliner Stadtschloß) em 1950 e foi transformada em um novo bloco governamental contendo espaços multiuso para atividades culturais, sociais e de entretenimento e um grande edifício denominado de Palácio da República (Palast der Republik), que funcionava como sede da câmara popular da RDA. Este complexo acabou por tornar-se muito associado à imagem da administração socialista, o que levaria a debates públicos sobre sua permanência após a reunificação da cidade (ver p. 95-96). IMAGENS 40-41: O Palast der Republik, sede da câmara popular oriental. | FONTE: Humboldt Box, 2014. Os anos 1980 foram marcados pelo crescimento do número de movimentos de oposição ao regime soviético dentro da RDA, especialmente fortes na Berlim Oriental e em cidades como Leipzig. Dentro destes movimentos, não só dissidentes políticos e ativistas, mas também jovens estudantes e artistas lutavam por uma ‘revolução pacífica’. A partir de junho de 1989, protestos públicos demandando reformas democráticas eram realizados mensalmente na Alexanderplatz (COLOMB 2012, p. 71). Essa época de transformações, que teria seu auge com a queda do muro e culminaria na reunificação da Alemanha (deutsche Wiedervereinigung) ficou conhecida como “a virada” (die Wende). Em 09 de novembro de 1989, após o anúncio de uma diminuição considerável das restrições de viagens entre os dois lados da cidade pelo governo da RDA, o movimento de entrada de berlinenses orientais no lado ocidental ocorreu com intensidade gigantesca. Nos dias seguintes ao anúncio, imagens poderosas de pessoas colocando abaixo o Muro de Berlim rodaram o globo, tornando-se parte da memória coletiva mundial. As imagens de destruição do muro eram acompanhadas por cenas de familiares e amigos se reunindo e de gestos e ações artísticas espontâneas de celebração, como foi o caso do violoncelista soviético exilado Mstislav 84 Leopoldovich Rostropovich tocando em frente a um pedaço do muro para um grupo de passantes (e jornalistas). A própria queda do muro – um ato de fundo político e social – ganhou caráter espetacular. O momento referido como die Wende trouxe uma espécie de aceleração da história para a cidade de Berlim, que sobrevivera durante quarenta anos dentro de uma espécie de bolha social, econômica e cultural. Agora, como unidade municipal única, seus gestores deveriam confrontar subitamente os problemas econômicos que já faziam parte da realidade de outros países europeus ocidentais desde a década de 1970, dentre eles: a rápida desindustrialização, o crescimento do desemprego e a transição de uma economia de produção de bens manufaturados para uma economia baseada em serviços. A reunificação da Alemanha implicou em uma série de transformações drásticas tanto para a população quanto para a configuração do espaço urbano berlinense. Isso porque representou a imposição do modo de vida ocidental por toda a cidade e em diversas esferas. Em termos administrativos, a transição da capital nacional de Bonn para Berlim implicou na criação de uma nova centralidade política, na eliminação ou substituição de órgãos governamentais da RDA e na construção e renovação arquitetônica de edifícios que representassem o país como uma forte potência política europeia e mundial, como foi o caso da sede do parlamento (Reichstag) e adjacências75. Ademais, o novo status de capital implicou na chegada de mais de cem mil novos residentes envolvidos no setor administrativo (HÄUßERMANN & SIEBEL 2013 [1991]), em sua maioria com um poder aquisitivo muito superior aos habitantes locais da época. Simultaneamente, os antigos funcionários dos órgãos administrativos de Berlim Oriental foram exonerados e tiveram seus cargos eliminados, o que contribuiu para o crescimento de desigualdades e de tensões urbanas. Na esfera econômica, conflagrou-se uma enorme crise da indústria, que movia os dois lados da cidade até então. Os setores mais afetados foram os das indústrias química, elétrica, automobilística, de aço e de bens de consumo. A partir de julho de 1990, com a unificação da moeda em todo território, houve uma diminuição de trocas comerciais com o bloco soviético, o que contribuiu ainda mais para diminuição da produção local de bens manufaturados. O desemprego repentino e em grande número contribuiu imensamente para uma crise financeira, que implicaria em baixas taxas de remuneração, não superadas até hoje. Calcula-se que, entre 1989 e 1998, o número de empregos no setor industrial caiu de 400 mil para 130 mil (KRÄTKE 1992). A economia de Berlim nunca se recuperou totalmente, tendo a cidade figurado como líder em desemprego e pior PIB da Alemanha durante a maior parte dos anos 1990 e 2000. Esta instabilidade foi, e ainda é, sentida principalmente pelos imigrantes turcos e do sul da Europa, atingidos pelo preconceito oriundo da febre nacionalista que seguiu o período da reunificação. Em termos urbanos, isso significou que os imigrantes – que já viviam em comunidades mais fechadas e às sombras do muro (como no distrito de Kreuzberg) – teriam ainda mais dificuldades para se integrar social, econômica e culturalmente à nova capital alemã. No entanto, a depreciação do modo de vida e a queda no status social não atingiu apenas os imigrantes. O quadro de crise vivenciado na época da “virada” foi agravado pelo fato dos antigos moradores do Leste não possuírem, muitas vezes, o mesmo nível de qualificação profissional que os demais, impossibilitando uma justa concorrência pelas novas posições criadas, o que acabou 75 Ver Guerra (2008). 85 gerando uma marginalização dos berlinenses orientais na cidade unificada. Socialmente, esta marginalização era percebida por um sentimento generalizado de “desvalorização da experiência oriental alemã” como consequência de um processo de “colonização do Leste pelo Oeste”, como propõem Bernt, Grell & Holm (2013, p. 15). A junção, sob o mesmo rótulo de cidade única, de duas Berlins muito diferentes culminaria em uma brusca transformação da forma como os antigos habitantes orientais vivenciavam a cidade. Quase que da noite para o dia, seus caminhos e formas de circular pela cidade foram alterados, os números de suas linhas de transporte foram modificados, suas ruas foram renomeadas, seus edifícios foram demolidos, seus estabelecimentos e marcas de confiança foram extintos e seus marcos destruídos, como mostra a caricata cena da comédia “Adeus, Lênin” (2003), em que a estátua de Lênin voa pelos céus de Berlim, removida por um helicóptero, apontando para o fim da memória socialista da cidade. Após a queda do Muro era percebida uma clara rejeição das estruturas urbanas remanescentes da RDA, assim como de sua arquitetura, cujas técnicas de construção e valores estéticos eram considerados ultrapassados. Até os dias atuais, é possível perceber uma aversão aos grandes blocos residenciais em concreto pré-moldado do tipo Plattenbau na Berlim Oriental – tidos como uma lembrança indesejada de uma memória que se gostaria de apagar. Essa rejeição somada à crise da indústria implicou no crescimento de edifícios abandonados durante toda a década de 1990 e parte da década de 2000. No entanto, enquanto uma parcela da população oriental rumava ao Oeste, deixando para trás décadas de repressões do regime socialista; jovens e artistas faziam o caminho contrário. Nos meses que seguiram a queda do muro, uma segunda onda de squats dominou os edifícios abandonados no lado oriental da cidade, principalmente as antigas sedes de empresas desativadas, as fábricas e os armazéns localizados nos distritos de Mitte, Prenzlauer Berg e Friedrichshain. Muitos destes espaços foram transformados em centros de referência subcultural na cidade. No distrito central de Mitte, grupos artísticos ocuparam uma antiga loja de departamentos judaica, inaugurando a Kunsthaus Tacheles (ver capítulo V); próximo à Potsdamer Platz, outro grupo ocupou o porão de um banco, inaugurando o clube noturno de música eletrônica Tresor (um dos mais famosos do mundo)76. Ao longo das margens do Rio Spree, bares temporários, áreas de banho de sol e boates foram instalados em zonas industriais desativadas. Em suma, novos usos eram livremente designados para os vazios urbanos locais, que IMAGEM 42: Localização do distrito de se transformaram em playgrounds para a Mitte. | FONTE: Claudia Seldin, 2015. experimentação urbana e para a produção alternativa de cultura e entretenimento. A ocupação de edifícios abandonados, bem como a transformação de seus usos, foi possível naquele momento porque, após a queda do muro, o status de propriedade dos imóveis era pouco claro e o controle público era fraco. Este quadro somado à possibilidade do estabelecimento de atividades culturais livres de obrigações institucionais acabou propiciando um fortalecimento da já 76 O clube Tresor tornou-se tão célebre que foi transformado em selo musical. Inicialmente situava-se na Leipziger Platz, tendo sido despejado em 2005. Em 2008, foi reaberto na Köpenickerstraße. Sobre a trajetória do clube Tresor e a cultura de música eletrônica na cidade de Berlim, ver Bader & Scharenberg (2013 [2009]) e Carlos (2014). 86 tradicional prática de squats berlinense, como afirmou em entrevista o fundador do clube Tresor, Dimitri Hagemann: O que aconteceu naquele momento, com a queda do muro, só pôde acontecer porque Berlim Ocidental havia colecionado pessoas especiais com mentes abertas. O que conectava essas pessoas era a falta de espaço no oeste de Berlim e a vontade de experimentar. [Em Berlim Oriental], não havia problemas de espaço, não havia controle, não havia polícia. Nós não precisávamos pedir, nós tomávamos o lugar. Mas, a imagem inteira da cidade mudou. O que eles chamam hoje de cidade criativa era a nossa subcultura. O que nós conseguimos com aquele movimento foi dar espaço aos jovens. (Dimitri Haggeman, fundador do clube Tresor, em entrevista pessoal concedida no âmbito do festival Berlin Unlimited, 08 out. 2014) A partir de agosto de 1990, uma nova política, conhecida como “a linha berlinense” (die Berliner Linie) foi implementada, impedindo novos squats e funcionando como uma rápida resposta do Senado unificado às numerosas ocupações evidenciadas durante o tumultuado período entre a queda do muro e a reunificação. No Tratado de Reunificação Alemã de 1990 (Einigungsvertrag) foi determinado que as propriedades confiscadas durante o regime nazista entre 1933 e 1945 e as expropriadas ou colocadas sob a administração estatal socialista entre 1949 e 1989 deveriam ser devolvidas aos antigos donos. Como resultado desta polêmica decisão, quase 75 por cento das propriedades foram reivindicadas para restituição no antigo lado oriental, principalmente nos distritos de Mitte, Prenzlauer Berg e Pankow, sendo 20 por cento dos pedidos relacionados a antigas propriedades judaicas (EVANS 2001; COLOMB 2012). Mesmo com esta medida, anos se passaram até que a nova administração decidisse judicialmente sobre as complexas questões legais imobiliárias em Berlim. Uma vez negociadas as questões de propriedade, durante a década de 1990, a grande maioria dos novos donos vendeu seus imóveis para investidores e compradores que buscavam obter lucro futuro através da especulação imobiliária. 87 4.2 Planejamento Cultural Estratégico Pós-Reunificação A recém unificada Berlim adentrou a década de 1990 enfrentando pressões internas e globais para se inserir no cenário econômico mundial, o que desencadeou um processo de busca por uma identidade coletiva renovada. Seguindo o exemplo das demais cidades europeias ocidentais e das cidades estadunidenses, a capital nacional alemã começou a passar por um processo de intensas transformações urbanas que visavam a revitalização da imagem local. Em pouco tempo, diversas porções da área central e oriental da cidade se tornaram enormes canteiros de obras resultantes de projetos urbanos e arquitetônicos pontuais, porém grandiosos – uma característica que ainda identifica a paisagem urbana local, altamente marcada pela presença de guindastes, andaimes, tratores e tubulações aéreas coloridas. IMAGENS 43-44: À esquerda: vista da cidade do topo do Reichstag. À direita: caminho bloqueado por obras na avenida Unter den Linden. | FONTE: Claudia Seldin, 2013 e 2014. IMAGEM 45: Vista para o distrito central de Mitte do topo da Humboldt Box. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. 88 Seguindo a tendência internacional de planejamento cultural estratégico dominante na época, a revitalização da imagem local objetivava a inserção competitiva de Berlim na rede mundial, bem como a atração de investimentos externos, havendo um foco claro na construção de equipamentos culturais e na promoção de eventos. Essa orientação ilustrou-se através da candidatura de Berlim para sediar as Olimpíadas de 2000 – o que mobilizou o Senado entre 1991 e 1993, implicando na criação de novos órgãos voltados para o marketing urbano 77. Apesar do fracasso, estes órgãos permaneceram atuantes, impulsionando o chamado Hauptstadmarketing (marketing da capital) (COLOMB 2012, p. 17). Vale destacar que a candidatura implicou também no surgimento de diversos movimentos de oposição à realização dos jogos, principalmente por grupos que haviam visitado Barcelona e concluído que o evento não gerara impactos positivos na criação de habitação social e empregos a longo prazo (ibidem, p. 100). As novas estratégias de marketing criadas para Berlim foram pareadas com noções empresariais e neoliberais de governança urbana. O discurso pós-reunificação do Senado (liderado pelo CDU) refletia um caráter empresarial, defendendo a intensa reurbanização através de processos de “metropolização” e de “alcance da modernização” (nachholende Modernisierung), deixando de lado a cultura de “renovação urbana cuidadosa” dos anos 1980. No antigo lado oriental, esta nova tendência de planejamento teve consequências especialmente fortes, em função do extenso processo de privatização de bens públicos, da criação de novas leis urbanas e do surgimento de novos atores, como os investidores privados e os especuladores imobiliários. Em meio à euforia provocada pela reunificação, os institutos de pesquisa de Berlim lançaram previsões extremamente otimistas a respeito do futuro econômico da cidade, o que acabou por direcionar os discursos políticos para o desenvolvimento do mercado imobiliário. Alegando “falta de espaço”, foi calculada necessária a construção, até 2010, de cerca de 800 mil unidades habitacionais, vinte milhões de metros quadrados de escritórios e 22,5 milhões de metros quadrados para a indústria e o comércio (Häußermann & Siebel (2013 [1991], p. 27). Estes números provavam a emergência de uma espécie de mentalidade de “corrida do ouro” (ibidem, p. 23), que culminaria no desenvolvimento de projetos arquitetônicos e urbanos megalomaníacos e daquilo que o crítico literário alemão Andreas Huyssen chamaria de “arquitetura de imagens” (1997, p. 67). Esta arquitetura de imagens se concentraria principalmente na parte central da cidade – mais especificamente na antiga fronteira entre leste e oeste, onde predominavam os vazios urbanos78 e onde crescia o interesse imobiliário. Isso porque a reunificação de Berlim implicou em uma reordenação territorial completa da cidade, transformando as antigas periferias (próximas ao muro) em centralidades urbanas geográficas. Neste processo, áreas antes tidas como decadentes e deterioradas ganharam importância física e simbólica. E, assim, teve início uma série de intervenções nas mesmas, de modo a revitalizar a imagem dos vazios, seguindo a tendência global de “reverter os impactos negativos que [eles significavam] para a produção e acumulação do capital” (BORDE 2004, p. 04). Este foi o caso da extensa rua Friedrichstraße e da praça Potsdamer 77 Após a reunificação da cidade, o escritório de turismo de Berlim Ocidental, o Berliner Fremdenverkehrsamt, foi substituído por uma parceria público-privada intitulada Berlin Tourismus Marketing GmbH (BTM), posteriormente renomeada Visit Berlin. Em 1994, foi fundado outro órgão para auxiliar no marketing urbano local: o Partner für Berlin Gesellschaft für Hauptsadt-Marketing mbH, hoje conhecido como Berlin Partner (COLOMB 2012; LANZ 2013a [2011]). Cabe ressaltar que compreendemos os vazios urbanos conforme proferido por Borde, ou seja, “espaços residuais, gerados pelo processo capitalista de construção e reconstrução permanente da cidade” (2004, p. 01). 78 89 Platz – esta última uma antiga ‘faixa da morte’79, subitamente transformada em área estratégica para a criação de um novo centro de negócios e cultura representativo da Berlim unificada. Para facilitar a entrada de capital privado nos investimentos destas áreas estratégicas, foram criadas políticas específicas de isenções fiscais, atraindo investidores externos e empresas multinacionais. No caso de Potsdamer Platz – tida como um dos grandes exemplos locais da renovação urbana –, subsídios públicos foram disponibilizados para auxiliar grandes corporações, como a Sony, a Daimler-Chrysler e a A+T, na compra de terras que já eram de posse do Estado. O objetivo deste repasse de recursos era a realização de projetos que contribuíssem para a concretização de uma “metrópole de serviços” (KRÄTKE 2013 [2004], p. 146). Ali deveria ser construído um complexo de uso misto obedecendo a um plano maior, resultante de uma competição projetual internacional de modo a constituir o “mostruário de arquitetura mais up to date do star system mundial exposto a céu aberto” (ARANTES 2013, p. 09). A competição80 mobilizou mais de dezessete escritórios de arquitetos renomados, incluindo Richard Rogers, Renzo Piano, Arata Isozaki, Helmut Jahn e Hans Kollhoff, e implicou em custos superiores a treze bilhões de marcos alemães 81, representando uma verdadeira disputa em torno de quem assinaria o símbolo monumental de unificação das duas Berlins. Em 1995, durante o período de obras, um edifício em forma de grande caixa vermelha foi instalado na praça adjacente – a Leipziger Platz –, sob o nome de Info Box (Caixa de Informação). Tratava-se de uma instalação temporária através da qual visitantes poderiam subir ao terraço e admirar a vista panorâmica do grande canteiro de obras da Potsdamer Platz como se este constituísse uma exibição artística. A glorificação do processo de renovação urbana deste território foi levada tão literalmente que a Info Box passou a configurar, no ano seguinte, como parte da exibição municipal Schaustelle Berlin (em uma tradução livre ‘vitrine Berlim’)82. O evento incluía uma programação cultural que envolvia mais de 200 tours guiados por canteiros de obras, 800 horas de shows musicais, acrobacias e outras atrações espetaculares pela cidade, promovida então através do slogan “Bühnen, Bauten, Boulevards” (palcos, construções e bulevares) (HUYSSEN 1997, P. 70-71). Para Huyssen (1997) a antiga faixa da morte se transformou de vazio para mis-en-scène e, então, para imagem – “imagens no vazio” (ibidem, p. 71). 79 Em alemão Todesstreifen. Designa o trecho de aproximadamente 400 quilômetros entre as partes componentes do Muro de Berlim, incluindo cercas de arame farpado e torres de vigília que controlavam e impediam a passagem da população de um lado para o outro da cidade. 80 Para mais detalhes sobre a competição e os arquitetos envolvidos, ver Arantes (2002, 2013). 81 Sendo cinco bilhões de marcos alemães só de contrapartida do Estado para infraestrutura (ibidem, p. 122). 82 Após 1989, cerca de metade da população local foi embora, sendo substituída por um grande número de pessoas vindas de outras cidades e países, o que levou à realização de uma série de eventos que exaltassem a moral local sob o nome de “Vitrine Berlim” (Schaustelle Berlin). 90 IMAGEM 46: Potsdamer Platz: cenário constante de obras da cidade de Berlim. | FONTE: Claudia Seldin, 2013 O equipamento cultural de maior destaque nesta região, inaugurado em 1998, foi o Sony Center (projeto de Helmut Jahn) – um complexo de entretenimento construído em estrutura metálica, dotado de uma praça semiaberta, restaurantes de cadeia, museus, um parque de diversões da marca Lego e salas de cinema do tipo multiplex voltadas para a exibição de filmes em língua inglesa. Hoje, ele constitui uma importante atração turística da cidade, porém as reações ao ambiente criado não são necessariamente positivas, havendo muitas críticas à sua ambiência fria, superficial e monumental. IMAGENS 47-49: Sony Center na Potsdamer Platz. | FONTE: Claudia Seldin, 2007 e 2013. 91 Além do Sony Center, cerca de sete milhões de metros quadrados de área de escritório foram construídos nas adjacências entre 1990 e 1998 – muitos dos quais permanecem desocupados até hoje. O mais recente projeto inaugurado na região foi o shopping center LP12 - Mall of Berlin, situado na Leipziger Platz. Aberto ao público em 25 de setembro de 2014, ainda incompleto, este novo empreendimento vem sendo o alvo de duras críticas devido ao seu alto custo (mais de um bilhão de euros), aos imensos atrasos envolvidos no projeto e à suposta exploração de um grupo de operários romenos empregados na construção 83. IMAGENS 50-51: Novo shopping center LP12 Mall of Berlin, situado na Leipziger Platz, em proximidade com a Potsdamer Platz: escândalos nas obras. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. IMAGEM 52: Mapa esquemático da antiga ‘faixa da morte’, revitalizada entre 1990-2015. | FONTE: Mapquest (2014, base original alterada pela autora). 83 Ver críticas de Riceburg (2014). 92 Ainda na década de 1990, outros pontos de Berlim foram contemplados com projetos urbanos em que a cultura era instrumentalizada não apenas para consolidar a imagem de uma metrópole cultural e de serviços, mas também para reforçar o simbolismo de uma nova força política da União Europeia. Por isso, foram investidos, nas obras locais, recursos da municipalidade e do governo federal, especialmente na construção e renovação de museus, embaixadas e prédios administrativos. Hain (2013 [1997]) destaca que a influência do discurso político na arquitetura pode ser percebida através da adoção do estilo prussiano tardio em grande parte dos equipamentos inaugurados. Para o autor, os planejadores ignoraram a pluralidade arquitetônica do momento e acabaram “inventando uma tradição” (p. 57) na tentativa de minimizar a desconfortável história recente e reproduzir uma época de ouro alemã. Para Arantes (2002), a mistura de referências neoclássicas com o chamado estilo internacional causava estranheza em alguns, que passaram a perceber a cidade como um grande “show room de arquitetura [do] final de século (segundo alguns, menos entusiastas, um verdadeiro bricabraque)” (p. 65). Um bom exemplo desta mistura de estilos somada à afirmação do caráter político da nova Berlim era a sede do parlamento federal (Plenarbereich Reichstagsgebäude ou apenas Reichstag). Uma competição arquitetônica internacional foi realizada em 1992 para a restauração do edifício datado de 1894 e bombardeado durante a II Guerra Mundial. O projeto vencedor, do inglês Norman Foster, implicava a destruição quase total do seu interior e uma nova redoma de vidro. Nos meses de junho e julho de 1995, o casal de artistas Christo e Jeanne-Claude realizou uma intervenção espetacular no edifício, cobrindo-o completamente com uma espécie de véu em um evento que antecipava o início das obras. O evento “Reichstag Embrulhado” (Wrapped Reichstag) atraiu mais de cinco milhões de visitantes84. Em 1999, o edifício foi reinaugurado. A redoma de vidro, aberta à visitação pública e dotada de escadas e vista panorâmica transformou-se em uma atração à parte, contribuindo para reforçar o turismo cultural neste equipamento administrativo. IMAGEM 53: Vista externa do Reichstag revitalizado pelo arquiteto Norman Foster. | FONTE: Claudia Seldin, 2013 84 Dados obtidos do Berlin Online Stadtportal. Imagens do evento Wrapped Reichstag estão disponíveis em: <http://www.berlin.de/berlin-im-ueberblick/politik/reichstagsgebaeude.en.html>. Acesso em: 29 out. 2014 93 IMAGEM 54: Vista interna do Reichstag | FONTE: Claudia Seldin, 2013 IMAGENS 55-56: Vistas da cúpula projetada por Foster para o Reichstag. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Outro grande projeto de regeneração urbana de fundo cultural consistia na ilha de museus (Museumsinsel) do Rio Spree. Contando com cinco museus construídos entre 1824 e 1930, o complexo foi tombado pelo patrimônio local em 1999, quando foi aprovado também o plano de sua revitalização85. Pouco depois, tornou-se parte do patrimônio mundial da UNESCO, acarretando em gastos superiores a 900 milhões de euros (BUTLER 2001). IMAGENS 57-58: À esquerda: Bode Museum. À direita: Pergamonmuseum. | FONTE: Claudia Seldin, 2007. 85 O Altes Museum foi construído em 1824 e o Neues Museum entre 1843-6 pelo arquiteto, Karl Friedrich Schinkel. Vinte anos depois houve a construção da National Gallery e, posteriormente, do Kaiser-FriedrichMuseum (renomeado em 1956 como Bode Museum) (EVANS 2001, p. 64). 94 IMAGEM 57: Maquete eletrônica da Ilha de Museus (Museumsinsel) com previsão de finalização em 2015. | FONTE: Stiftung Preußischer Kulturbesitz, 2014. Em meio à criação de um parque temático da arquitetura mundial, os arquitetos, planejadores e administradores urbanos acabaram escolhendo quais memórias eram válidas e deveriam estar representadas na paisagem urbana da nova Berlim e quais deveriam ser renegadas. Tratava-se de uma “política de esquecimento intencional” (HUYSSEN 1997, p. 60) em que os passados nazista e comunista eram negociados através de sítios memoriais artificiais enquanto seus verdadeiros monumentos simbólicos eram demolidos. Um exemplo claro desta ‘política de esquecimento’ consiste no antigo Palast der Republik (ver p. 84) – sede da câmara popular do governo socialista. Os debates a respeito da demolição do palácio tiveram início logo após a reunificação e estenderam-se durante toda a década de 1990. Mesmo com a maioria da população apoiando a permanência do edifício, o parlamento alemão tomou a decisão de destruí-lo em 2003, alegando a presença de asbesto no local. A demolição, concluída apenas em 2008, sofreu graves atrasos, acarretando custos superiores a dez milhões de euros (BORDEN et al 2013). No terreno atualmente está sendo reconstruída uma réplica do antigo Palácio Imperial prussiano barroco, que havia sido demolido em 1950, agora sob o nome de “Berliner Schloss - Humboldtforum” (Palácio Berlinense – Fórum Humboldt). Seguindo o exemplo de Potsdamer Platz, ali foi instalado um edifício temporário sob o nome de Humboldt Box (Caixa Humboldt), através do qual o visitante pode obter informações sobre o projeto e admirar a vista panorâmica do canteiro de obras (ver anexo 02, p. 187). O novo edifício, com custo de 600 milhões de euros (ibidem), funcionará como museu, centro cultural e de pesquisa em parceria com a Humboldt-Universität (Universidade Humboldt), cujos campi encontram-se próximos, demonstrando já a nova veia criativa da cidade, que aposta no pareamento da cultura com o conhecimento como motores da economia local. A demolição de uma obra arquitetônica monumental representativa de um passado histórico renegado da cidade para dar lugar a uma réplica de um passado mais distante reflete bem a tradição berlinense de planejamento estratégico pós-reunificação, calcada na ‘cenarização’ da paisagem e na desconsideração da história tida como prejudicial à imagem atual da cidade. 95 IMAGEM 60: Processo de demolição do Palast der Republik em 2007. | FONTE: Claudia Seldin, 2007. IMAGEM 61: Processo de reconstrução do Berliner Schloss – Humboldtforum no mesmo local, com a Humboldt Box à direita em 2013. O canteiro de obras é parte da exposição deste centro cultural temporário. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 62-63: Evolução do processo de reconstrução do Berliner Schloss – Humboldtforum em 2014. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. 96 A drástica transformação da cidade foi diretamente abordada pelas campanhas oficiais de marketing urbano berlinenses durante a década de 1990 através de slogans estampados em letreiros e fachadas pela cidade, dentre eles: “Berlim está se tornando (Berlin wird) e “Berlim está se tornando uma cidade mundial (Berlin wird Welt-Stadt); e de programas como “Berlim: Cidade Aberta. A Cidade como Exibição” (Berlin: offene Stadt. Die Stadt als Austellung), que acabariam por transformar o próprio espaço urbano em um palco no qual os projetos arquitetônicos eram a maior atração. Tratava-se da “educação dos berlinenses e visitantes sobre o planejamento urbano e o design” local (COLOMB 2012, p. 189) – uma iniciativa que acabou contribuindo para a transformação da população local em turistas e consumidores da paisagem de sua própria cidade. O auge desta tendência viria em 2000, quando o país ganhou a campanha para sediar a Copa do Mundo de futebol de 2006, justificando ainda mais os investimentos no setor turístico e cultural da cidade. TABELA 04: Berlim – Espaços e amenidades culturais / turísticas da cidade entre 2011-2013 Palcos e companhias de teatro ± 150 Salas de cinema ± 130 Museus ± 180 com ± 15,9 milhões de visitantes em 2011 Galerias de arte ± 440 Casas de ópera 03 com 4.411 assentos Orquestras sinfônicas 08 com ± 80 produções ativas Eventos culturais diários ± 1.500 Sítios de Patrimônio da Humanidade da UNESCO 03 Bares, boates e pubs ± 235 com ± 10.000 visitantes por fim de semana Restaurantes, sorveterias e lojas de fast-food ± 9.840 Área total de shopping centers ± 1.190.000 m² Universidades, escolas de arte e faculdades técnicas 15 Parques ± 2.500 (e 02 zoológicos) FONTE: Berlin Tourismus & Kongress GmbH (2013, 2014) Como consequência dos crescentes processos de ‘cenarização’, ‘ocidentalização’ e ‘turistificação’ de Berlim, muitos habitantes locais passaram a deixar a cidade no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, rumando para os subúrbios e para o estado circundante de Brandemburgo86. Para amenizar e reverter os efeitos deste êxodo, foram propostas duas medidas principais para a virada do século: a elaboração de um plano diretor para toda a área central e a implantação de um programa de gestão comunitária em regiões tidas como ‘problemáticas’. O plano diretor (Planwerk Innenstadt) visava estancar o êxodo populacional da classe média através de um upgrade dos antigos distritos de classe trabalhadora e do incentivo à permanência de profissionais 86 Na primeira metade da década de 2000, 35 mil berlinenses deixavam a cidade a cada ano rumo ao circundante estado de Brandemburgo (MAYER 2013 [2006], p. 97). 97 especializados. Em um primeiro momento, o foco seria a revitalização dos bairros centrais e, depois, a revitalização de toda a área metropolitana, estendendo o centro até as franjas da cidade e a transformando em uma metrópole totalmente cosmopolita (LEVINE 2004; ALLON 2013). O que aconteceu na prática, no entanto, foi uma concentração de investimentos apenas do antigo lado oriental, mais especificamente na região entre Alexanderplatz e Schlossplatz87, descrita no plano como “em necessidade de transformação” (MAYER 2013 [2006], p. 102). Para alavancar o desenvolvimento da região, foi proposta a construção de vinte mil novos apartamentos de luxo e lofts – um grande equívoco, que ignorava a predileção histórica da população local pelo aluguel ao invés da compra do imóvel. Ademais, os preços das novas residências, apesar de baixos quando comparados a outras metrópoles europeias, foram considerados altos para o poder aquisitivo dos berlinenses, mesmo aqueles com posições gerenciais. O plano ainda foi acompanhado por uma política habitacional que implicava na diminuição do financiamento público de habitação social e em um afrouxamento no sistema de controle de alugueis, fazendo com que, a cada ano, cerca de 30 mil unidades fossem liberadas de seus contratos, podendo ser aprimoradas e convertidas para locatários de maior poder aquisitivo. Como consequência, o Planwerk Innenstadt passou a ser visto como uma tentativa de substituição da população de baixa renda existente por classes mais altas, capazes de ‘limpar’ o centro da cidade. O discurso voltado para a criação de um ambiente mais atrativo às classes altas somado à previsão de demolição em grande escala no lado oriental eventualmente levaria ao crescimento de movimentos de protestos por parte dos cidadãos locais, enfurecidos por não terem sido diretamente envolvidos na elaboração do plano. IMAGEM 64: Mapa do Planwerk Innenstadt de 1999 com realce (em vermelho) para a área onde realmente se concentraram os investimentos. | FONTE: Senatsverwaltung für Stadtentwicklung (1999, original adaptado pela autora). A segunda medida para amenizar o êxodo populacional consistia em um programa de gestão comunitária em distritos considerados ‘problemáticos’ – com altas taxas de imigrantes, baixa renda e outros indicadores econômicos desfavoráveis. De acordo com Eick (2013 [1995]), após a reunificação, a pobreza passou a ser vista como uma ameaça à segurança e não mais como um 87 A Schlossplatz é a área onde atualmente está sendo construído o Berliner Schloss – Humboldtforum. 98 problema de natureza social e de ordem pública (p. 35). Se até então, havia uma maior liberdade para os estilos de vida alternativos dos imigrantes, prostitutas, pedintes, sem-teto, squatters e usuários de drogas, a partir da reunificação, eles passaram a ser perseguidos, expulsos do espaço público e de locais próximos às atrações turísticas 88. O programa elaborado em conjunto com o Planwerk, propunha mobilizar os recursos locais para a capacitação das populações, auxiliando na criação de empregos e na atração de pequenos negócios para estas áreas. Seu objetivo declarado não era o fim da segregação dos mais pobres e imigrantes (tido como impossível), mas sim a tentativa de mitigar os piores efeitos provocados pela reestruturação da cidade. Para tal, foram estabelecidos novos órgãos no nível dos bairros que deveriam agir como gestores locais, com a função de captar recursos dos programas ligados à União Europeia. Apesar da aparente preocupação social, estes órgãos acabaram funcionando como uma estratégia do Senado berlinense para anular o poder das muitas associações e organizações de moradores já existentes, ignorando suas demandas principais e acabando com parte da sua infraestrutura. Para Mayer (2013 [2006],), ambas medidas acabaram por reforçar a dualidade e as disparidades entre centralidade e marginalidade numa tentativa de aumentar a atratividade da cidade. Em função da renovação da imagem urbana local, que combinava a alta cultura dos novos equipamentos e a subcultura das ocupações e usos temporários remanescentes das duas ondas de squats vivenciadas, Berlim começou a receber grandes contingentes de jovens e artistas, que buscavam moradias a baixos preços, logo transformando-se na versão alemã dos bairros nova iorquinos da moda (LEVINE 2004). A reputação boêmia e cool da região, somada a um processo de modernização de imóveis da antiga RDA e à proliferação de galerias de arte, cafés e restaurantes, culminou, durante as décadas de 1990 e 2000, numa elevação da imagem de certos distritos acompanhada do aumento de aluguéis. Esse modelo – de instalação de jovens e artistas em áreas decadentes, seguida de modernização e concretização de uma imagem cool e do aumento de custos de vida que acabava na necessidade de realocação – se espalharia por Berlim, deixando um rastro de gentrificação muito perceptível na cidade, como aponta Holm (2013). Os distritos mais afetados neste sentido foram os mais centrais – inicialmente Mitte e Prenzlauer Berg, posteriormente Kreuzberg e Friedrichshain e, mais recentemente, Neukölln. Em geral, podemos afirmar que os grandes projetos incluídos no planejamento estratégico de Berlim durante a década de 1990 causaram tensão, devido à transformação de uso da terra e à extensão dos princípios capitalistas por toda a cidade. O contexto de regeneração urbana era particularmente complexo em se tratando de terrenos e assentamentos onde a propriedade era dúbia ou indefinida e onde houve grande especulação imobiliária. De acordo com Evans (2001), o aumento no valor da terra levou a consequências catastróficas, em particular, para os artistas locais, que começavam a não conseguir arcar com os novos aluguéis de seus estúdios e ateliês. No entanto, o autor salienta que, tradicionalmente em Berlim, os artistas sempre desenvolveram uma resposta coordenada contra à perda de infraestrutura considerada necessária para suas atividades, consistindo em uma importante força de resistência à gentrificação. Um exemplo disso foi a ação do Kulturwerk des BBK (o instituto cultural da associação de artistas visuais de Berlim), que buscou estabelecer cláusulas protetoras nos planos estruturais da cidade, bem como a instituição de 88 Aumentou também a caçada a estrangeiros em situação ilegal e a preocupação com o crescimento do número de habitantes em trailers (Wagenburgen) – estes últimos, até então, usados nas campanhas de marketing urbano do Senado como atração turística. Diversos despejos foram realizados e reportados pela mídia local com justificativas de criminalidade, epidemia de doenças e mal uso de terras em localidades valorizadas. A nova imagem da Alemanha reunificada deveria contar com uma capital de imagem purificada e uma arquitetura que representasse isso. 99 representação e participação direta dos artistas nos comitês de desenvolvimento dos grandes projetos locais (EVANS 2001, p. 176). Simultaneamente, foram surgindo movimentos de inquilinos a favor de uma renovação urbana sem despejos ou deslocamentos, dentre eles o notório “Wir bleiben alle” (nós permaneceremos todos) – transformado em slogan de resistência estampado em fachadas de edifícios ameaçados até os dias atuais. IMAGENS 65-66: Squat despejado na rua Brunnenstraße 186 (distrito de Mitte): resistência por parte do movimento “Wir bleiben alle”. À direita, pichação com os dizeres “a cidade permanece nossa”. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGEM 67: Repaginação do antigo squat Brunnenstraße 186 (distrito de Mitte): inspiração em design novaiorquino para o novo edifício de flats de classe média. | FONTE: ASMUTH (2014). 100 Este cenário de tensão social foi intensificado no começo do milênio com a conflagração de um escândalo bancário89, que aprofundaria ainda mais a já histórica crise financeira berlinense. Através da criação, pela coligação política no poder (CDU e SPD), de um consórcio bancário intitulado Berlin Bankgesellschaft, foram realizadas diversas transações fraudulentas de especulação imobiliária com recursos públicos, envolvendo atividades criminosas e de corrupção política. A falência do consórcio desencadeou um quadro de “emergência orçamentária” (BERNT, GRELL & HOLM 2013, p. 16), que implicou no resgate do banco (bail out) e em uma dívida pública para a cidade que chega, hoje, aos 60 bilhões de Euros (idem). No âmbito do escândalo financeiro, muitos dos caros projetos realizados nos dez anos desde a queda do muro passaram a ser criticados90, juntamente com os imensos gastos de recursos públicos em instituições culturais 91. A população berlinense começou a perceber os impactos financeiros das políticas que apoiavam o intenso planejamento cultural estratégico da cidade e suas consequências negativas, dentre elas: a irônica queda no turismo da cidade a partir de 1997, uma vez diminuída a inicial euforia de reunificação (HUYSSEN 1997, p. 59) e a perda de mais de 150 mil empregos entre 1991 e 2001 (KRÄTKE 2013 [2004], p. 132). O escândalo bancário e imobiliário, somado a um quadro generalizado de crise econômica, acabou contribuindo fortemente para a ascensão ao poder, em 2001, de uma nova coligação de esquerda – formada pelos partidos SPD e PDS/die Linke92 –, que prometia, em seus discursos, transformar Berlim em uma ‘cidade social’. Na prática, a imensa dívida pública acabou tornando-se uma justificativa para a continuidade de práticas neoliberais e para adoção de medidas de austeridade, dentre elas: a privatização de terras públicas e de companhias de serviços e infraestrutura urbana (eletricidade, gás e água); imensos cortes orçamentários em programas tradicionais ligados ao bem-estar social (saúde, educação e habitação social93) e cortes nos salários de funcionários públicos (BERNT, GRELL & HOLM 2013, p. 127). Ainda na prática, a transformação de Berlim em uma ‘cidade social’ foi substituída pela sua transformação em uma ‘cidade criativa’. 89 De acordo com Krätke (2013 [2004]), o Bankgesellshaft Berlin, criou títulos imobiliários, que foram ofertados para os cidadãos considerados “proeminentes”, em particular políticos e seus associados, que até hoje lucram com a especulação no mercado imobiliário local. Como resultado da intensa especulação imobiliária berlinense, mais de um milhão de metros quadrados de escritórios permaneceram desocupados até o fim da década de 2000 (p. 147). 90 Dentre eles: a revitalização da Potsdamer Platz, a construção da nova estação ferroviária central (Hauptbahnhof) e de diversas arenas esportivas e os projetos para o aeroporto de Brandemburgo – até hoje não finalizado e cujos gastos já ultrapassam a casa dos quatro bilhões de euros (ver anexo 03, p.190). 91 Até 1999, o governo federal tinha a responsabilidade de contribuir com 50 milhões de euros anuais às instituições culturais de Berlim, sendo metade destinada apenas a seis: Staatsoper, Deutsche Oper, Deutsches Theater, Konzerthaus Berlin/Schauspielhaus, Orquestra Filarmônica e à renovação do centro MartinGroupius-Bau. A outra metade era destinada a projetos culturais de caráter internacional. A partir de 2000, com as medidas de austeridade, os repasses de recursos ficaram limitados ao Museu Judaico, à Casa de Culturas do Mundo, ao centro cultural Martin-Groupius-Bau e a festivais (ARANTES 2013, p.132). 92 A partir de 2007, o Partido do Socialismo Democrata (Partei des Demokratischen Sozialismus) foi renomeado “die Linke” (a esquerda). 93 Em 2003, o Senado berlinense aboliu todos os subsídios relacionados à habitação e, no ano seguinte, vendeu a Cooperativa de Habitação e Construção (Gemeinnützige Siedlungs- und Wohnungsbaugesellschaft Berlin mbH - GSW) para as firmas de Wall Street, Goldman Sachs e Cerberus Capital Management (BERNT, GRELL & HOLM 2013, p. 128). 101 4.3 A Berlim Criativa do Século XXI A transformação do discurso orientador do planejamento estratégico de Berlim teve como marco temporal o ano de 2001, quando subiu ao poder o prefeito Klaus Wowereit, que incorporou a figura do ‘prefeito empreendedor’94. A partir deste momento, foi adotada uma postura de benefício às indústrias criativas com objetivo de reforçar o status de Berlim como ‘metrópole cosmopolita’, agora publicitada como uma cidade excitante, socialmente liberal e dotada de uma cena cultural dinâmica e de vastos espaços disponíveis para o desenvolvimento de atividades criativas. Tratava-se de uma clara transição das políticas aplicadas nos anos 1990 pelos partidos mais conservadores, que pregavam uma imagem de cidade ordenada e de capital alemã fechada à imigração e oposta às ocupações e formas alternativas de apropriação do espaço. De acordo com a diretora sênior de políticas culturais da Associação de Cidades Alemães, (Kulturund Bildungspolitik beim Deutschen Städtetag), Bettina Heinrich, Berlim sempre foi uma “uma anã econômica e uma gigante cultural” (2008, p. 96). A ênfase no desenvolvimento de políticas públicas centradas na criatividade consistiam, portanto, em uma tentativa de capitalizar em cima da tradição cultural alternativa local e de se inserir com força na rede global financeira: Cidades estão competindo na ‘liga’ regional, nacional, continental ou mundial. [...] Berlim está em algum ponto entre a liga europeia e a liga mundial. Cidades estão competindo para atrair turistas globais, o investimento global e a classe criativa global. Para enfrentar essa competição, as cidades grandes e pequenas investem numa identidade coerente e numa política de imagem. E: a cultura é uma ferramenta importante para serem competidoras bem sucedidas. Assim, muitas cidades da Europa, e também a cidade de Berlim, alegam ser não só metrópoles, mas ‘metrópoles culturais’ (HEINRICH 2008, p. 9 grifos meus). TABELA 05: Berlim – Economia na última década Índice 2004 2008 2012 População total ± 3.388.000 ± 3.432.000 3.375.222 População economicamente ativa ± 1.742.600 ± 1.781.300 ± 1.858.000 ± 81 bilhões ± 95.1 bilhões ± 103.6 bilhões ± 23,2 bilhões ± 27,7 bilhões ± 28,9 bilhões Dívida pública ± 55,13 bilhões ± 57,0 bilhões ± 61,34 bilhões Desemprego 298.661 = 17.7% 233.322 = 13.8% 215.353 = 12.3% PIB (total) PIB seguros, serviços e mercado imobiliário 95 FONTE: Amt für Statistik Berlin-Brandenburg (2014) 94 Klaus Wowereit permaneceu no poder de Berlim de 2001 até dezembro de 2014. Ele foi substituído por um de seus aliados, Michael Müller, que trabalhava especificamente com a área de desenvolvimento urbano. 95 No censo berlinense, o PIB para comunicação e informação é calculado juntamente com o de comércio, transporte, serviços de alimentação e hospedagem, sendo, portanto, genérico demais para sua consideração como indicador da economia criativa. De acordo com Bader & Scharenberg (2013 [2009]), a indústria criativa berlinense cresceu mais de 23% entre 2000 e 2005, gerando cerca de 18,5 bilhões de euros (p. 245). 102 A visão da criatividade como potencial salvadora econômica da cidade de Berlim, que, no início da década de 2000, possuía uma dívida pública de aproximadamente 50 bilhões milhões de euros e uma surpreendente taxa de desemprego de 19 por cento (KUECHEN & ARMANSKI 2008), foi bem exprimida pela famosa frase do prefeito Wowereit pouco depois de sua eleição: “Berlim é pobre, mas sexy” (Berlin ist arm, aber sexy”)96. Em outras palavras, Berlim está financeiramente falida, mas podemos explorar sua imagem atrativa para reverter essa situação. A insuficiência de recursos financeiros constituía uma realidade com a qual a cidade e seus habitantes vinham lidando há anos. No contexto europeu, Berlim sempre foi famosa pelo estilo de vida “chique barato” (EEAZYP & TESFAI s/d), atraindo muitos jovens, boêmios e artistas, seduzidos pelos relativamente baixos aluguéis e custos de vida (principalmente em comparação com outras cidades europeias e alemães, como Paris, Londres, Hamburgo e Munique). Por isso, a postura inicialmente adotada pelo prefeito para a exploração da faceta sexy e pobre de Berlim foi o apoio às empresas startup de jovens, a melhoria de financiamentos para as artes, a facilitação da entrada e concessão de vistos para artistas estrangeiros e a provisão de um ambiente urbano que fosse de encontro com as necessidades das indústrias criativas, encorajando sua aglomeração em espaços degradados. Essas medidas faziam parte de um plano maior, de dez anos, que vislumbrava o desenvolvimento de uma “meca para a classe criativa”, de uma cidade de designers, que levariam suas ideias às grandes corporações mundiais (NOVY & COLOMB 2013). O resultado destas medidas foi um aumento considerável da migração temporária de estudantes e artistas, que passaram a estender suas estadias em Berlim a partir de meados dos anos 2000 (ver anexo 04, p. 191). Em outras palavras, a ideia de uma cidade jovem e culturalmente interessante, pregada no início dos nos anos 1980, passava a adentrar novamente os discursos políticos locais. Cabe destacar, no entanto, que o turismo – em especial o turismo cultural – não deixou de ser incentivado em Berlim. A diferença é que ele passou a configurar apenas um dentre uma série de mecanismos vistos como possíveis impulsionadores da economia local, havendo agora uma prioridade na atração e manutenção dos profissionais criativos interessados em fixar residência temporária na cidade e contribuir para consolidar sua nova imagem. A influência da teoria de Richard Florida sobre a importância destes profissionais da classe criativa teve seu auge em Berlim entre 2005 e 2008, quando a cidade entrou oficialmente para a Rede de Cidades Criativas da UNESCO sob a especialidade do design97 e quando foram realizados os primeiros relatórios sobre as indústrias criativas locais, tendo o jornal der Spiegel98 a selecionado como a cidade mais criativa da Alemanha. A pesquisa de 2007 mostrava que o setor criativo – incluindo o desenvolvimento de software, a arquitetura e as telecomunicações – tinha obtido um faturamento de 119 bilhões de euros (cerca de 18 por cento do PIB da cidade) e empregado 168 mil profissionais só naquele ano. A partir de então, o Senado definiu como prioridades para o desenvolvimento de Berlim os seguintes subsetores: livros e imprensa; cinema, TV e rádio; indústria musical; mercado de arte, design e moda; publicidade e relações públicas; arquitetura; tecnologia 96 A frase “Berlin ist arm, aber sexy” foi proferida pelo prefeito durante uma entrevista de TV em 2004. 97 Em 2006, Berlim foi a primeira cidade europeia a entrar oficialmente na rede em função da presença de cerca de 6.300 empresas especializadas em design na cidade e de iniciativas como o Roundtable Design e a rede Create Berlin. Foi alegado também o número crescente de feiras e plataformas comerciais e a existência de uma estreita cooperação entre empreendedores e gestão municipal (URBAN CATALYST 2007, p. 130). Para mais informações, ver <http://www.creative-city-berlin.de/en/>. Acesso em: 12 dez. 2014. 98 O jornal der Spiegel fez seu relatório seguindo os índices dos 3Ts de Richard Florida (ROSLER 2011b). 103 da informação e telecomunicações (HEINRICH 2008). Na mesma época, a própria chanceler alemã Angela Merkel pregava a teoria de Florida como uma doutrina a se seguir e como o reflexo do modo de vida alemão, que deveria ser baseado nos 3Ts – tecnologia, talento e tolerância: Senhoras e senhores, o cientista americano Richard Florida conduziu pesquisas sobre as condições para o desenvolvimento bem sucedido nas regiões do mundo. Ele identificou três fatores: tecnologia, talento e tolerância. Ele explica que só é possível obter crescimento econômico sustentável nos campos de desenvolvimento que são chave para o futuro quando todos os três fatores são combinados - tecnologia, talento e tolerância. Que boa mensagem para nós. Que boa regra para nossas ações. Nossas vidas são baseadas em tecnologia, talento e tolerância. Nós somos dependentes de inovação, de desenvolvimento científico e tecnológico, de progresso econômico e social (discurso de Angela Merkel na Universidade de Estudos Judaicos em Heidelberg, 12 jul. 2007 apud KRÄTKE 2011, p. 37). Com a crença de que apenas a criação de uma nova imagem seria capaz de reerguer Berlim e diminuir suas dívidas, o prefeito Wowereit anunciou, em 2008 – em plena época de crise financeira mundial –, uma nova estratégia de branding para a cidade, baseada na criação de um slogan urbano capaz de competir com os de Amsterdam (I amsterdam) e Nova York (I  NY). O slogan da nova campanha, criada pela agência Partner für Berlin/Visit Berlin, foi “be Berlin” (seja Berlim, em inglês), e inferia a incorporação dos habitantes na construção da imagem da cidade. Assim, o novo foco das políticas urbano-culturais não era mais só o turista, mas sim o novo habitante local – autêntico, singular, criativo e, por vezes, estrangeiro. A música tema desta campanha de dez milhões de euros, disponível para download, consistia em um toque de celular de oito segundos criado por um DJ de música Techno e com ritmo turco, anunciando “be Berlin, be Berlin, be Berlin” (HEINRICH 2008; COLOMB 2012). IMAGENS 68-69: Campanha “be Berlin”, calcada em princípios de incentivo à criatividade. À esquerda: “seja jovem, seja pesquisa, seja Berlim”; à direita: “seja informado, seja orientado, seja Berlim”. | FONTE: Partner für Berlin/Visit Berlin (2008). 104 A abordagem da diversidade e tolerância empregadas na teoria de Richard Florida serviam como justificativa para a promoção da abertura de Berlim aos profissionais criativos do mundo, que agora eram extremamente bem vindos, como ilustram os discursos do comissário de integração e do prefeito Wowereit nos comunicados de imprensa e no website oficial da cidade: Bem-vindo(a) aos rios Spree e Havel! Berlim - a maior cidade da Alemanha - conta com você como um novo residente para trazer novas ideias, impulsos e experiência. Nós esperamos que você compartilhe sua experiência conosco para que a comunidade se beneficie disso. É por isso que estamos contentes em ver novos residentes e estender-lhes uma recepção calorosa! Eu espero que você contribua para o desenvolvimento de nossa cidade como uma metrópole cosmopolita e tolerante, onde todas as pessoas gostam de viver, independente de seus planos de vida e perspectivas, independente de onde eles vêm, independente da religião que praticam, se praticam alguma, e independente de sua filosofia de vida (Günter Piening, comissário de integração e imigração apud GEMBUS 2008, grifos meus). Berlin é cosmopolita e excitante. É uma metrópole internacional e, ao mesmo tempo, um lar habitável para milhões de pessoas, um lugar que visa o equilíbrio social e valoriza diferenças culturais. Diversidade é a chave, junto com um senso de responsabilidade social e tolerância no diaa-dia. [...] A cidade precisa da mistura certa. Boas escolas e pesquisa de ponta, excelentes opções de creche e destaques culturais, alto valor recreativo e um senso de comunidade - essas são apenas algumas das coisas que Berlim tem a oferecer (Klaus Wowereit apud PRESSE UND INFORMATIONAMT DES LANDES BERLIN 2013, p. 03, grifos meus). A campanhas de marketing urbano de Berlim, lançadas a partir de 2008, funcionariam como um apelo à ação pública, um chamado a todos os residentes, especialmente aqueles recémchegados a Berlim e que deveriam mostrar envolvimento cívico e trabalhar em conjunto para o bem da cidade. Os discursos por trás da nova política retratavam a cidade como uma metrópole onde se valia a pena viver, onde todos tinham lugar – inovadora e competitiva, um polo para pessoas criativas. O resultado da aplicação desta política foi um crescimento considerável no número de imigrantes (estrangeiros e de outras cidades alemães e, principalmente, nos distritos ‘da moda’ de Mitte, Friedrichshain-Kreuzberg e Neukölln); de turistas; de habitantes jovens; e de estudantes e funcionários nos setores de cultura e P&D (ver anexo 04, p. 191). Com o objetivo de continuar impulsionando o crescimento econômico da cidade, o Senado berlinense passou a divulgar periodicamente seus indicadores positivos em documentos e comunicados de imprensa (em inglês, ou seja, voltados para a comunidade internacional)99, nas quais são ressaltados dados considerados essenciais para sua qualificação como centro, não só da Dados mais recentes retirados do relatório “Berlim – Uma História de Sucesso” (Berlin - A Sucess Story), publicado pelo Escritório de Imprensa e Informação do Estado Federal de Berlim (Presse- und Informationamt des Landes Berlin) em 2013. 99 105 economia criativa, mas também da “economia do conhecimento intensivo”, como já propunha Krätke no início dos anos 2000 (op. cit.). Dentre os dados enfatizados nas estatísticas oficiais, destacamos:  A taxa de natalidade positiva (uma das poucas da Alemanha);  A presença de habitantes originários de 186 países, sendo sua maioria entre 18 e 32 anos;  A internacionalização do setor de serviços, em que se emprega muitos imigrantes;  O grande número de novas empresas startup na cidade, especialmente nos setores de comunicação e TI;  O alto número de profissionais autônomos na cidade, principalmente, no setor digital;  Os altos investimentos de fundos públicos em P&D, o grande número de instituições de ensino superior e sua qualificação como “a mais popular cidade universitária da Alemanha” (p. 26), com altas taxas de alunos estrangeiros;  Seu status de “cidade verde”, onde a relação com a natureza é importante, o uso de carros e as emissões de gás carbônico são os menores do país;  O transporte público de qualidade, muito utilizado e pensado em termos de acessibilidade;  O alto número de eventos esportivos locais (com destaque para maratonas e esportes de times – futebol, handebol, hóquei no gelo, voleibol, polo aquático, entre outros). Cabe destacar, que dentre as atividades culturais, o único dado mencionado nos indicadores oficiais refere-se ao número recorde de visitas em museus. Isso porque, desde o início da década de 2000, houve uma diminuição dos demais equipamentos culturais em Berlim – algo que reflete a transição do ‘planejamento cultural estratégico’ para o ‘planejamento criativo estratégico’, mas que é convenientemente deixado de lado nos discursos de promoção da cidade. TABELA 06: Berlim - Equipamentos Culturais Tipo 2004 2008 2012 Palcos em equipamentos públicos (peças, ballet, etc.) 51 51 44 Salas de cinema 279 284 261 Bibliotecas 108 86 86 Museus 125 126 138 FONTE: Amt für Statistik Berlin-Brandenburg (2014) O que se percebe através desta diminuição no número e nos incentivos públicos aos equipamentos culturais tradicionais, ligados à ‘alta’ cultura, é que, em Berlim, a indústria criativa foi especialmente impulsionada em função da tradição de espaços subculturais já existentes. De 106 acordo com Bader & Scharenberg (2013 [2009]), a cena alternativa berlinense tem sido de imensa importância para o desenvolvimento da economia criativa local, principalmente da indústria da música eletrônica, que é extremamente dependente da acumulação de “capital subcultural” em uma cidade. Em outras palavras, ela depende da presença de uma cultura subversiva, que diverge da corrente principal, porém exercendo uma função de distinção social, particularmente entre os jovens. Neste sentido, artistas marginalizados, squats, bares e clubes noturnos ilegais são importantes lugares para a experimentação, o encontro, a troca de informações e ideias e o estabelecimento de redes entre os profissionais criativos (p. 248). IMAGENS 70-72: Em meio à paisagem ‘limpa’ de Mitte, o pátio interno (Hof) de uma antiga fábrica têxtil se apresenta como um point de subcultura, contando com bar, galerias de arte e de exposição rodeadas por fachadas decadentes e grafitadas. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Ainda em consonância com as teorias de Florida, a partir de meados da década de 2000, as agências de marketing urbano passaram a concentrar seus esforços na promoção desta subcultura como ponto turístico da cidade, dando atenção especial aos espaços dotados de ‘uso temporário’ (Zwischennutzung) – vistos como autênticos e como centros da subcultura berlinense. Atenção especial foi dada às ‘praias urbanas’ (áreas de banho de sol montadas na margem do Rio Spree durante o verão, dotadas de bares e eventos culturais), aos cafés e bares de aparência mais decadente (tidos como ‘descolados’), aos mercados de pulgas/brechós (Flohmärkte), aos squats culturais e aos apartamentos com vistas para pátios internos (Höfe) – em suma, espaços cuja aparência remetesse à ambiência comunitária e afetiva do recorte espacial e comunitário alemão conhecido como ‘Kiez’100. Igualmente celebrados foram os festivais e eventos culturais com temas remetentes à diversidade da população local, como a parada gay “Love Parade” e a feira 100 O termo alemão Kiez, usado em Berlim e em partes do norte do país, remete à noção de um bairro ou pequena comunidade dentro de uma cidade maior. Não constitui um recorte que possa ser definido pela municipalidade ou poder público, inferindo a ideia de afinidades sociais e culturais entre as pessoas que o habitam. 107 multicultural “Carnaval das Culturas” (Karneval der Kulturen) – que retratavam uma Berlim cosmopolita, metropolitana e tolerante: A ampla gama de projetos de uso temporário em Berlim se tornou uma publicidade e um fator econômico para a cidade. Seja como motor para a criação de empregos, catalisador para a realocação de companhias internacionais ou como atração para turistas, o estímulo financeiro gerado pelos usuários temporários é cada vez mais importante para Berlim como uma metrópole criativa. As microeconomias dos usuários temporários em distritos estruturalmente fracos da cidade também são um crescente interesse para a Prefeitura e outros elaboradores de políticas (URBAN CATALYST 2007, p. 41, grifos meus). Esclarecemos que, em Berlim, a cultura do uso temporário foi possibilitada pela presença abundante de vazios intersticiais, lacunas e brechas espaciais – em sua maioria resultantes de processos de desindustrialização ou da queda do muro, que deixou exposta extensas áreas antes consideradas como ‘faixa da morte’ ou ‘terra de ninguém’ 101. Tratava-se de antigas áreas industriais, de companhias de transporte e serviços urbanos (armazéns portuários e ferroviários desativados), terrenos de edifícios demolidos, entre outros espaços, onde os custos de revitalização mostravam-se muito altos devido à poluição do solo, à ausência da infraestrutura necessária, às restrições ou burocracia legislativas ou, mesmo, ao contexto imobiliário desfavorável. Por isso, foram deixados de lado, tanto pelo Estado quanto por seus proprietários, que o alugavam por preços muito baixos ou simplesmente permitiam sua ocupação em troca da proteção contra o vandalismo ou contra a degradação. O resultado observado foi que, com pouco capital e muita força de vontade e IMAGEM 73: Mercado de pulgas/brechó do inovação, os usuários temporários foram Mauerpark: uma das atividades preferidas dos capazes de revitalizar os espaços através de habitantes locais nos domingos, quando o comércio suas atividades, remodelando sua imagem e está fechado. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. contribuindo para aumentar seu valor imobiliário. Essa percepção fez com que a prática do uso temporário começasse a ser incentivada e recomendada pelos administradores urbanos locais, que passaram, inclusive, a financiar pesquisas acadêmicas e institucionais102 que ressaltassem a capacidade deste tipo de uso em renovar o tecido 101 Em 2007, calculava-se a existência de cerca de 500 hectares de área vazia e/ou disponível apenas em antigos terrenos industriais (URBAN CATALYST 2007, p. 29). 102 Destacamos aqui a pesquisa intitulada Urban Catalyst, realizada entre 2001 e 2003 com financiamento da Comissão Europeia por um grupo interdisciplinar de arquitetos, planejadores urbanos, advogados, sociólogos 108 urbano degradado de forma barata (ou seja, sem investimentos do Estado) e de atrair turistas. Para os planejadores urbanos berlinenses, o uso temporário acabou por se tornar uma espécie de fórmula mágica – uma nova estratégia –, que reacendia o interesse por regiões esquecidas ou degradadas, “transformando espaços banais e cotidianos em terreno fértil para novas formas de arte, música e cultura popular, bem como [para o] desenvolvimento econômico, invenções tecnológicas e startups” (ibidem, p. 273). IMAGENS 74-75: ‘Praias urbanas’ e bares nas margens do Rio Spree em proximidade à Ilha de Museus (dir.) e à estação ferroviária principal (Hauptbahnhof): abertos somente durante o verão. | FONTE: Claudia Seldin, 2007. IMAGENS 76-77: O parque Rosengarten em Prenzlauer Berg antes (esq.) e durante (dir.) uma sessão de cinema grátis ao ar livre: o uso do parque público é incentivado por atividades culturais idealizadas pelos donos de um bar, que abre somente durante alguns meses do ano. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. e representantes das municipalidades. Ela contava com onze parceiros em seis países e era coordenada pela Technische Universität Berlin (TU Berlin). A pesquisa investigava como o uso temporário não planejado poderia ser incorporado no planejamento e gerenciamento das cidades, ressaltando os seus efeitos positivos a longo prazo. Englobava como estudos de caso as seguintes cidades: Berlim, Helsinki, Amsterdã, Viena e Nápoles – tidas como exemplos tanto de sucesso quanto de crise econômica. Seu mérito foi compreender a importância do uso temporário para a esfera urbana. Seu problema foi enquadrá-lo como um processo estratégico de desenvolvimento econômico a partir do planejamento urbano, enfatizando seu potencial para a valorização e especulação imobiliária das áreas em questão. Sob este olhar, o uso temporário acaba por se enquadrar como um passo em direção à gentrificação, glorificada pelo discurso dos autores. 109 IMAGENS 78-79: Palco a céu aberto no Mauerpark em Prenzlauer Berg sem movimento durante a semana (esq.) e lotado aos domingos quando há apresentações improvisadas e de graça (dir.): antiga ‘terra de ninguém’ do Muro de Berlim. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 110 4.4 O Outro Lado da Criatividade A glorificação do uso temporário como um instrumento eficiente para a especulação imobiliária acabou levando, nos últimos anos, após a valorização das terras e revitalização de suas imagens, à expulsão de muitas atividades culturais e squats, cujos contratos de permanência fixados durante as décadas de 1980 e 1990 chegavam ao fim. A partir de 2010, diversas ocupações residenciais e culturais que figuravam nas brochuras promocionais do Senado foram despejadas ou ameaçadas de despejo pelos proprietários – em sua maior parte instituições financeiras e incorporadoras interessadas em transformar os terrenos em aglomerados de negócios ligados à indústria criativa. Para o sociólogo alemão e professor da HU Andrej Holm (2013), este tipo de despejo qualifica um processo de gentrificação muito específico, o qual ele chama de “gentrificação simbólica” ou “fase pioneira [da gentrificação]” (p. 172). Este fenômeno ocorre em decorrência do aumento do número dos chamados “lugares pioneiros”: boates, galerias de arte, livrarias de segunda mão e outros negócios similares (p. 174). Estes lugares seriam pioneiros no sentido de serem os primeiros a atraírem atenção para a região em razão do seu caráter subcultural, atraindo a atenção de jovens e profissionais culturais e criativos. Como consequência, ocorre uma transformação da imagem do local. O novo status cool faz aumentar o interesse de outras pessoas, que IMAGEM 80: Mapa esquemático do movimento de concordam em pagar preços mais altos gentrificação em Berlim. | FONTE: HOLM (2013, original não só pelo aluguel ou compra de adaptado pela autora). imóveis, mas também pelos serviços prestados naquela rua, bairro ou distrito. Holm destaca que essa fase simbólica e pioneira é sempre seguida de investimentos no mercado imobiliário, gerando realocações das classes mais baixas e, consequentemente, exclusão. Ele observa que os ciclos de gentrificação em Berlim têm ocorrido a cada cinco anos, aproximadamente – um fator resultante não apenas do aumento dos preços, mas também da necessidade, embutida no discurso dos atores criativos, de encontrar sempre um lugar novo e autêntico (ibidem, p. 175). Em Berlim, este tipo de gentrificação simbólica pioneira seguiu um movimento claro, iniciando-se em Kreuzberg, ainda na década de 1980 (antes da queda do Muro) em decorrência, principalmente, da presença de jovens e squats; dirigindo-se à Mitte e Prenzlauer Berg na década de 1990, em virtude dos grandes equipamentos culturais e dos projetos habitacionais para as classes média e alta concomitantes ao planejamento cultural estratégico da cidade; seguindo em direção à Friedrichshain no início da década de 2000, onde a brecha entre o fim dos contratos de alugueis antigos e novos permitiu um aumento dos preços devido a reformas dos apartamentos; e finalmente chegando a Neukölln no fim dos anos 2000 e início dos 2010, onde novos artistas (muitos deles estrangeiros), bares e cafés acabaram por se instalar. 111 O caso de Neukölln é bastante interessante, pois este distrito surgiu como local em voga de Berlim após o desenvolvimento e fortalecimento das teorias que mencionam a economia e a classe criativa, sendo estes termos incorporados na publicidade a respeito da ambiência local (tanto na mídia formal, quanto no ‘boca-a-boca’). Em outras palavras, a imagem de Neukölln passou a ser vendida como a de um Kiez criativo e alternativo. Hoje, com os preços aumentando exponencialmente neste distrito, muitos debatem para onde irão se deslocar os gentrificadores pioneiros berlinenses agora. Alguns apostam no distrito de Wedding, ao norte da cidade, e outros no de Marzahn, no extremo leste, porém a crescente distância do centro e as manifestações de intolerância nestes locais (como a presença de grupos neonazistas e facções mafiosas, por exemplo) parecem brecar estes deslocamentos. Independente de qual será o novo distrito da moda, o fato é que este movimento migratório da classe criativa em Berlim não é novo, representando apenas uma espécie de nova roupagem para um fenômeno que já foi evidenciado em cidades como Nova York (SoHo, East Village) e Londres (Hoxten, Southbank). Para Holm (p. 181), a grande diferença talvez seja o fato de em Berlim este fenômeno estar cada vez mais desconectado das experiências locais e mais preso a um movimento global, comandado pela classe criativa internacional. Nos últimos anos, a classe criativa internacional passou a demonstrar interesse em Berlim por diversas razões: aluguéis baratos, espaços públicos abundantes, pouca vigilância policial (que incentivava a cena noturna de boates e clubes), tradição de comunas e squats, políticas esquerdistas, a presença de uma população de baixa faixa etária e uma atitude laissez-faire singular à cidade (STAHL 2008). Em 2009, a revista norte-americana Time referiu-se a Berlim como “a capital do cool” (GUMBEL 2009); em 2010, o The New York Times noticiou uma “onda de tipos criativos” migrando para os bairros de Kreuzberg e Neukölln, atrás de seus cafés, bares, lojas orgânicas e mercados de pulgas (SLOBODIAN & STERLING 2014). Em pouco tempo, um novo personagem urbano passou a marcar a paisagem berlinense, despertando sentimentos controversos na população local: o ‘hipster’ – um conceito cada vez mais importante para se compreender o paradigma urbano contemporâneo da ‘cidade criativa’. O “Dicionário Urbano” (Urban Dictionary)103 define os hipsters como homens e mulheres entre 20 e 40 anos, que valorizam o pensamento independente, a subcultura, a política progressista, a arte, a música independente, a criatividade e a inteligência. Tendem a se concentrar em bairros cosmopolitas, têm desapego à corrente dominante da cultura (mainstream), vestem-se de maneira alternativa, possuindo uma aparência ‘descolada’ sem muitos esforços. De certo modo, podemos afirmar que essa nova categoria consiste na evolução do yuppie e do bobo, os gentrificadores dos anos 1980, 1990 e do início dos 2000 (ver quadro 02, p. 71-72). Slobodian & Sterling (2013) enxergam a proliferação da figura estereotipada do hipster pela capital alemã como um dos fatores que levaram à percepção da chegada em massa da classe criativa e, consequentemente, do aumento dos preços dos aluguéis nos antigos distritos da cidade ligados à subcultura, como Kreuzberg e Neukölln. 103 Disponível em <http://www.urbandictionary.com/define.php?term=hipster>. Acesso em: 15 maio 2014. 112 O aumento do preço dos aluguéis não foi, no entanto, a única consequência negativa advinda das políticas e estratégias de instrumentalização da criatividade adotadas pelo Senado berlinense. O início da década de 2010 veio acompanhado de enormes gastos em obras públicas (como o Berliner SchlossHumboldt Forum e o Aeroporto de Brandemburgo – ver anexos 02 e 03, p. 87 e 190), de uma estagnação econômica, de um GRÁFICO 02: Disparada dos alugueis no antigo lado oriental de aumento considerável nos custos Berlim desde 2000. | FONTE: der Spiegel (2014, original adaptado de vida local e de um pela autora). fortalecimento das medidas de OBS: Dados referentes a novos alugueis; média do aluguel para apartamento de três austeridade do governo, o que cômodos com 70 metros quadrados, edifício construído após 1949 e em área implicava na diminuição de residencial. serviços providos pelo Estado, bem como em um alto índice de berlinenses dependentes de assistência social. Isso porque o prefeito Wowereit privatizou cerca de 110 mil antigas unidades habitacionais estatais e cortou os subsídios para outras 28 mil, levando a um aumento de vinte por cento nos aluguéis sociais (SLOBODIAN & STERLING 2013). Os efeitos foram particularmente dramáticos nos distritos de Friedrichshain-Kreuzberg e Neukölln – os mais procurados pelos criativos –, onde tanto os índices de desemprego quanto os preços de aluguéis superaram a média da cidade. Em pouco tempo, a população local começou a perceber que uma grande parte se tornava pobre, mas não sexy; que as políticas adotadas contribuíam para o acúmulo de riquezas de apenas uma pequena parcela da população; e que a visão de crescimento criativo da cidade contribuiu para a segregação, a exclusão e a marginalização de certos grupos e comunidades desconsiderados neste processo de branding urbano, como as classes trabalhadoras e os imigrantes turcos. Mais do que isso, houve uma constatação, por parte dos habitantes locais nos últimos cinco anos, que a cidade de Berlim passou a constituir o lar de “turistas permanentes” (ALLON 2013), tornando-se refém da constante luta entre a manutenção de seu caráter alternativo e sua transformação em um parquetemático não só para turistas, mas para artistas desempregados e hipsters – os novos ‘bodes expiatórios’ do processo de ‘empresariamento’ e venda da cidade. Essa noção começou a despertar um novo tipo de relacionamento entre os ‘reais cidadãos’ e os ‘estrangeiros’, entre os ‘berlinenses autênticos’ e os ‘hipsters’; trazendo à tona antigos (e históricos) problemas de intolerância e de dificuldades de lidar com a diferença presentes na mentalidade local. No verão de 2011, adesivos expressando “Berlin não ama você(s)” em inglês eram colados pela cidade e placas eram colocadas nas portas de bares, restaurantes e galerias com os dizeres “Proibida a entrada de hipsters” e frases similares (SLOBODIAN & STERLING 2013). Em fevereiro de 2011, o Partido Verde local (Grüne Partei) elaborou um evento intitulado “Socorro, os turistas estão vindo” (NOVY 2013, p. 226). Um artigo na revista de esquerda radical Interim sugeriu “roubar seus celulares e carteiras [...], queimar seus carros, quebrar suas janelas de hotel, jogar lixo 113 e coisas nas janelas dos ônibus” (ibidem, p. 228) – tudo isso com o objetivo de assustar turistas e desencorajar os investidores imobiliários. Em 2012, a revista local Zitty – publicação das atividades culturais semanais – estampou em sua capa uma reportagem sobre o hipster de Neukölln como o maior inimigo da cidade (RÖGER 2012). Essa ideia foi reforçada por outras reportagens jornalísticas, que apontavam o descontentamento da população original com a “invasão” de profissionais estrangeiros altamente qualificados, com a transformação do espaço público em cenários fotográficos de cartões postais, com a modificação na ambiência do Kiez e o desaparecimento dos espaços autênticos (NOVY 2013, p. 227). IMAGENS 81-83: Capa da revista Zitty mostra o hipster de Neukölln como o objeto de ódio de Berlim (esq.) e adesivos com “Berlim não ama você(s)” espalhados pela cidade (dir.) | FONTE: RÖGER (2012, esq.) e desconhecida (dir.). O grande aumento do número de estrangeiros em Berlim a partir dos anos 2010 104 tem levado a debates sobre como o turismo impacta o espaço urbano a curto e longo prazo. Lanz (2013a [2011]) ressalta que, apesar das consequências negativas, transformar os turistas nos alvos das críticas é inútil, devendo haver maior atenção às políticas que encorajam o “consumo do lugar” (p. 228). O autor ressalta também que não se deve cair nos clichês disseminados sobre o turista, defendendo que “o turista”, como uma figura única e homogênea, não existe. Os profissionais criativos, por exemplo, não podem ser vistos nem como turistas, nem como residentes, constituindo um novo grupo – móvel, cosmopolita, consumista, temporário e heterogêneo – e que O número de pernoites mais que dobrou na cidade entre 2002 e 2012 – de 11 milhões para 25 milhões. Desde 2009, Berlim é a terceira cidade no ranking de popularidade de destino europeu, perdendo apenas pra Londres e Paris (BERNT, GRELL & HOLM 2013, p. 11). 104 114 precisa ser investigado separadamente, considerando suas variações e as consequências específicas de sua passagem em cada lugar. A crítica berlinense à ‘turistificação’ da cidade nos faz remeter à observação de Bauman (1998 [1997]) sobre o papel do turista como um dos principais personagens da pós-modernidade (a que ele depois se referiria como “modernidade líquida”). Naquela época, mal imaginaria o sociólogo polonês que, cerca de quinze anos depois, com o fortalecimento da economia de serviços e das tecnologias de comunicação, os profissionais criativos seriam capazes de viver uma vida cosmopolita e móvel ao ponto de configurar uma categoria nova, entre o habitante local e o turista que está apenas de passagem. Assim, se o turista era o epítome da pós-modernidade para Bauman nos anos 1990 (ver p. 30), a chamada “classe criativa” de Richard Florida apresenta-se hoje como a atualização deste epítome e como um reflexo representativo da realidade em liquefação sobre a qual o sociólogo polonês tanto discorreria a partir dos anos 2000. Independente da classificação que se atribua a este novo grupo que consome a cidade criativa, o que percebemos é que, ironicamente, a aplicação prática de políticas baseadas no discurso de tolerância acaba por gerar dificuldades de aceitação das diferenças devido a suas consequências excludentes e a seu caráter altamente segregacionista. No caso de Berlim, as políticas urbano-culturais vêm intensificando fronteiras invisíveis e aumentando a polarização e a segregação através de padrões antes desconhecidos. Ao contrário dos quarenta anos que marcaram a divisão física entre leste e oeste, as novas linhas de fragmentação são diversas e representam ilhas de criatividade, ilhas de riqueza, ilhas de qualificação profissional e ilhas de migração105 na cidade. 105 A questão da migração é importante para esta tese porque a evolução na forma como o estrangeiro é percebido em Berlim nos fornece importantes pistas sobre a maneira como certas culturas são apropriadas para a formação da imagem de um local. Se na década de 1920 e 30, os estrangeiros eram indesejáveis (ao ponto de haver um imenso apoio popular ao partido nazista); e na década de 1980, eles eram mantidos a uma distância segura, reconhecidos em sua marginalidade como um ‘outro’ étnico-cultural; hoje sua presença é incentivada e glorificada, desde que possuam as características necessárias para propiciar um maior crescimento econômico e melhorar a posição de Berlim no cenário mundial. Essa transformação de posição é acompanhada também por uma transformação no próprio conceito de cultura, que passa a ser compreendida como um instrumento dinâmico de desenvolvimento econômico. 115 CAPÍTULO V Resistências Urbanas How long is now (quão longo é o agora)106 A percepção do fortalecimento da gentrificação e das crescentes desigualdades sociais e econômicas como resultados diretos das políticas urbano-culturais vem gerando um forte movimento de reação por parte da população berlinense, historicamente acostumada a reivindicar sua participação no processo de construção da cidade 107. Ironicamente, esta reação tem sido encabeçada por uma parte considerável da própria “classe criativa” local, principalmente dos profissionais dos setores pior remunerados da indústria cultural, como artistas autônomos (pintores, escultores, atores, músicos, artesão, grafiteiros...) e pequenos empreendedores (donos de bares temporários de ‘praia urbana’, organizadores de mercados de pulga...) – constantemente ameaçados de despejo, endividados com altos alugueis e indignados com a transformação da paisagem urbana e com a apropriação dos espaços por eles criados. Campanhas, passeatas, panfletagem, grafite e protestos urbanos contra os novos grandes projetos têm sido cada vez mais recorrentes na rotina da cidade, alguns possuindo resultados positivos e outros, nem tanto. Neste capítulo, apresentaremos três estudos de caso, que exprimem tanto o sucesso quanto o fracasso dos movimentos sociais contra a instrumentalização da criatividade em Berlim – representantes dos discursos e das táticas de resistência na cidade. Trata-se de experiências em escalas distintas e que refletem, cada uma a sua maneira, os desafios provenientes da recente transformação na imagem local para a conformação com o paradigma da ‘cidade criativa’. A resistência da qual tratamos aqui é aquela sugerida por Bourdieu (2011 [1989]) – a das lutas coletivas contra as estratégias que impõem uma identidade dominante, exprimindo uma revolução simbólica contra uma dominação também simbólica (p.124). Independentemente de seu resultado, estes movimentos exprimem, como aponta Sánchez (2010), uma “fuga da passividade” (p. 87) e “maneiras de viver e reapropriações da cidade afastadas das previsões da ordem urbana promovida pela imagem oficial” (p. 116). Trata-se de formas que exprimem a real criatividade urbana – o improviso, a espontaneidade e a originalidade na luta por direitos e igualdade. Mais do que isso, 106 Frase estampada no mural da Kunsthaus Tacheles, de autoria desconhecida. 107 Bernt, Grell & Holm (2013) explicam que a cultura de participação da população berlinense nos projetos urbanos é uma herança direta da corrente urbana que pregava a “renovação urbana cuidadosa” nos anos 1980 – responsável por criar mecanismos de controle de alugueis e de participação ativa de inquilinos no processo de renovação com o objetivo de evitar desalojamentos. Essa noção contribuiu para a cultura de planejamento que se instalaria em Berlim nos anos 1990, envolvendo processos participativos e a cooperação entre habitantes, ONGs e alianças políticas. Apesar deste quadro já ter se transformado e hoje haver grande reclamação por parte dos cidadãos sobre a diminuição das possibilidades de participação nas decisões relacionadas ao planejamento urbano, ainda existe em Berlim uma convicção de que os habitantes devem estar diretamente envolvidos nas decisões que os afetam – algo não tão comum nas demais metrópoles ocidentais. 116 são formas de agregar e recuperar o sentimento de coletividade em detrimento do sucesso e lucro individual. O primeiro estudo de caso diz respeito aos movimentos sociais resultantes da aplicação de um plano de renovação urbana no Leste berlinense, a partir de meados dos anos 2000, intitulado MediaSpree. Este plano era embasado por um discurso de investimento no potencial criativo da região e, através de sua análise, complementamos o histórico de políticas urbano-culturais da capital alemã iniciado no capítulo anterior. Este exemplo comprova os impactos negativos do ‘planejamento criativo estratégico’ recente e expõe também alguns dos instrumentos criados em Berlim para permitir e inibir a participação pública no processo de construção do espaço urbano. O segundo estudo de caso consiste na investigação de um dos mais conhecidos centros culturais da cidade – a Kunsthaus Tacheles, que teve início como uma ocupação de artistas durante a segunda onda de squats local, seguindo a queda do muro. Após sua incorporação no marketing urbano berlinense, que a colocava como um dos exemplos autênticos da subcultura local, visando atrair a “classe criativa”, seus artistas foram ameaçados de despejo, passando a lutar por sua permanência. Nossa pesquisa revelou o histórico deste espaço – que configurava um verdadeiro território cultural construído simbolicamente durante mais de vinte anos. O último estudo de caso, referente aos artistas de rua em Berlim, também passa pela análise da relação da cultura com o território, porém conflagrando territórios culturais efêmeros, criados a partir de itinerâncias e de sentimentos de “coletividade temporária” (SIMPSON 2011), que nos levam a uma nova percepção de possibilidades culturais em meio à fluidez da “modernidade líquida” pregada por Bauman (2001 [2000]). Este estudo de caso é quase inteiramente escrito a partir dos depoimentos dos artistas de rua de Berlim através de entrevistas, consistindo, portanto, na real voz da “classe criativa” local. Eles são, em sua maioria, jovens estrangeiros dotados de alta mobilidade, mas que almejam a criação de arte e cultura fora dos padrões estabelecidos pela indústria criativa, gerando alternativas à lógica de mercado que predomina na cidade, como veremos mais adiante. 117 5.1 Afundem o MediaSpree! De acordo com o economista alemão Stefan Krätke (2013 [2004]), para uma cidade ser considerada como uma potência econômica contemporânea, é necessário que ela possua um alto número de sedes de empresas, constituindo o que ele chama de “headquarter city” (p. 134). No caso das cidades criativas, ele aponta ainda, que deve haver uma tendência específica à formação dos chamados clusters (aglomerados de pessoas ou firmas) criativos – ligados à indústria cultural e/ou do conhecimento intensivo. O processo de aglomeração deste tipo acontece principalmente em áreas caracterizadas como subculturais, onde são maiores as possibilidades de se encontrar outras pessoas criativas, com estilos de vida similares e, portanto, onde existem boas oportunidades de se consolidar conexões e redes economicamente produtivas. Durante o século XX, Berlim perdeu muitas sedes de empresas para outras cidades alemãs em decorrência da divisão da cidade e do seu cenário político instável. Com a queda do muro e a reunificação, poucas foram as companhias que se deslocaram novamente para a capital. Apesar disso, uma tendência espontânea de formação de clusters criativos passou a ser observada no lado oriental da cidade. No caso da indústria de multimídia, uma concentração de startups e atividades ligadas à produção de software e de TI (dentre elas a plataforma de áudio SoundCloud e a loja virtual Zalando) podia ser observada na região de Prenzlauer Berg, apelidada de ‘Silicon Allee’ – uma alusão ao Vale do Silício (Silicon Valley) na Califórnia. No caso da indústria musical108, a formação espontânea de clusters aconteceu nas margens do Rio Spree, com especial concentração entre os bairros de Friedrichshain e Kreuzberg (na região conhecida como Spreeraum Ost), que foram combinados em um único distrito/municipalidade em 2003. Deixado de lado durante muitos anos pelo poder público, que concentrava seus investimentos em Mitte, este distrito eventualmente se tornaria um dos mais ‘badalados’ da cidade. Isso porque a falta de interesse do mercado imobiliário tornou possível ali o surgimento de uma variedade de usos temporários, muitos deles ligados à música. Clubes noturnos, bares, raves e shows, nascidos na ilegalidade, cresceriam muito entre 1990 e meados dos anos 2000, ganhando seriedade e contribuindo para IMAGEM 84: Localização do distrito de Prenzlauer Berg. | FONTE: Claudia Seldin, 2015. IMAGEM 85: Localização do distrito de Friedrichshain-Kreuzberg, combinado em 2003. | FONTE: Claudia Seldin, 2015. 108 Lembramos aqui que, em sua teoria, Richard Florida (2011 [2002]) destacava a cena musical como um elemento essencial para elevar o nível de atração de uma cidade. Isso porque as memórias sonoras e musicais são de fácil evocação, proporcionando uma sensação subjetiva de sociabilidade e propiciando a articulação de uma identidade coletiva (p. 229). Ainda de acordo com Florida, as regiões ligadas à alta tecnologia possuem identidades sonoras específicas. No caso de Berlim, esta certamente encontra-se ligada ao estilo Techno (que remete à tecnologia pelo seu nome). 118 o fortalecimento de uma rentável cena de música eletrônica. A instalação de selos do estilo Techno (como Tresor Records, Kitty Yo e Kanzleramt) nas margens do Rio Spree apontaria para a formação dos primeiros clusters criativos locais que, apesar de surgidos em Berlim, passaram a ganhar reconhecimento internacional, transformando-se em importantes marcas globais. Este acontecimento não passou desapercebido pelo poder público, que logo após a finalização das obras de Potsdamer Platz, desengavetou um plano urbano para a região. Elaborado inicialmente na década de 1990 sob o nome de “Requalificação Urbana Oriental” (Stadtumbau Ost), o plano pregava, então, a demolição de aproximadamente 185 edifícios em mais de 140 hectares (URBAN CATALYST 2007, p. 29). Em consonância com a teoria de Richard Florida e com o caráter natural de aglomeração observado no início dos anos 2000, ele foi modificado em 2002, sendo renomeado como “Requalificação Urbana das Margens Leste do Spree – Kreuzberg” (Stadtumbau West-Spreeufer Kreuzberg) e redirecionando seu objetivo, a partir daquele momento, para a criação de um ambiente urbano propicio à formação de clusters criativos na orla do Spree. Para tal, ele previa o desenvolvimento de 44 projetos individuais de médias e grandes empresas ligadas ao setor cultural e de entretenimento (sendo doze arranha-céus), bem como a implantação de arenas de eventos e milhares de metros quadrados de escritórios, hotéis e apartamentos de luxo sob a promessa de criação de 40 mil novos empregos. Em suma, tratava-se do maior projeto de renovação urbana em uma frente marítima realizado na cidade, estendendo-se por uma faixa de 3,7 quilômetros em ambos lados do rio (entre as pontes Jannowitzbrücke e Elsenbrücke) e totalizando uma área de 180 hectares (BADER & BIALLUCH 2009; DOHNKE 2013; NOVY & COLOMB 2013). Seus objetivos oficiais eram:  O desenvolvimento daquela parte da cidade de acordo com a “nova economia”, que beneficiaria toda a área metropolitana;  A integração da área do Spree com a estrutura urbana adjacente;  A conexão do distrito com regiões adjacentes “desfavorecidas”, de modo a propiciar uma requalificação sustentável;  O impedimento de “desenvolvimentos descoordenados entre proprietários, investidores e usuários” (BADER & BIALLUCH 2009, p. 97). Após a relocação, em 2002, da sede alemã da Universal Music de Hamburgo para a região, foi criada uma empresa privada de marketing com o objetivo de publicitar o desenvolvimento urbano local em nome dos proprietários de terra e de dezenove incorporadoras imobiliárias (ibidem, p. 96). O nome da empresa – MediaSpree – ficaria conectado de tal forma com o plano, que este eventualmente passaria a ser reconhecido pelo mesmo nome. Após a transferência da sede da MTV Europa para a região em 2004, a empresa privada foi transformada em uma associação sem fins lucrativos (eingetragener Verein ou e. V.) sob o nome de MediaSpree Regionalmanagement. Para justificar a transição de caráter da empresa foi instalado um órgão consultivo, composto por alguns membros do distrito, representantes do Senado berlinense, a agência de empregos local e a câmara de comércio. Cabe ressaltar que este novo status de ‘e. V.’ inferia que, por representar interesses públicos, a associação ficava isenta do pagamento de impostos. 119  Jannowitzbrücke Elsenbrücke IMAGEM 86: Stadtumbau West-Spreeufer Kreuzberg. | FONTE: Senatsverwaltung für Stadtentwicklung und Umwelt (2006, original adaptado pela autora). Em 2008, a gestão do MediaSpree, através de sua intensa publicidade acerca do caráter subcultural da região, conseguiu incorporar no plano mais um grande empreendimento, a O2 World – uma arena de espetáculos da companhia de telecomunicação Telefónica / O2 – com capacidade para dezessete mil pessoas. Junto com os edifícios da Universal Music e da MTV, a O2 World deveria funcionar como âncora para o plano urbano, atraindo a atenção de novas empresas e reforçando o potencial criativo do local, conforme inferido pelo CEO da Universal Music na época: “Nós construímos nosso palácio em um pântano intencionalmente e é melhor o pântano não secar” (URBAN CATALYST 2007, p. 139). IMAGENS 87-88: Fachada da sede da Universal Music da Alemanha (esq.) e fundos às margens do rio (dir.): privatização e esvaziamento do espaço público da orla. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. 120 IMAGENS 89-90: Vista para o outro lado da ponte Oberbaumbrücke: construções de edifícios de escritórios na área do East Side Gallery (esq.) e arena de espetáculos O2 World (dir.). | FONTE: Claudia Seldin, 2014. IMAGEM 91: Vista panorâmica do edifício da Universal Music para o Porto Leste (Osthafen) – região contemplada pelo plano urbano apelidado de MediaSpree. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. Apesar das esperanças dos empreendedores e do poder público, a grande transformação da região em um novo centro criativo de alcance global nunca aconteceu. Pelo contrário, desde sua criação, o MediaSpree acabou por acarretar em mais controvérsias e conflitos do que no desenvolvimento econômico da cidade. A aversão da população local ao plano ocorreu em função de alguns fatores básicos: primeiramente, a transformação da região em um hub criativo era fruto de uma parceria público-privada, o que implicava na venda de grandes parcelas de terras públicas para investidores privados através de leilões, bem como na elaboração de contratos imobiliários que negligenciavam a legislação urbana vigente. Em segundo lugar, a demanda por espaços comerciais e de escritórios se mostrou muito inferior ao inicialmente estipulado, de maneira semelhante ao ocorrido com Potsdamer Platz. Os milhares de novos empregos propostos não eram novos, e sim deslocados de outros lugares da cidade. Por último, o plano previa a retomada e renovação de antigos armazéns e edifícios industriais em ambos os lados do rio – muitos dos quais eram ocupados por squats residenciais e culturais, bares e clubes subculturais há décadas, muitos com extrema popularidade. Ademais, a proposta contrastava imensamente com o estilo de vida da população local, composta por um alto número de imigrantes (em sua maioria turcos) e por ativistas de esquerda radical e anarquistas, como aponta Dohnke (2013). Em outras palavras, o MediaSpree representava um exemplo ‘clássico’ de planejamento urbano estratégico que desconsiderava as particularidades da população local, porém em uma cidade onde a participação em decisões públicas sempre foi exigida pelo povo. Mais do que isso, foi conflagrado um quadro de choque entre um planejamento urbano imposto e um outro tipo de desenvolvimento urbano muito comum naquele Kiez, marcado 121 pelos usos temporários, não-planejados, alternativos, espontâneos e por vezes caóticos, mas que contribuíam imensamente para a singularidade e o caráter local. IMAGENS 92-93: Protesto na paisagem urbana: os dizeres “Fuck off MediaSpree” (esq.) e “Fuck MediaSpree” (dir.) pichados nas fachadas posteriores de edifícios ameaçados de demolição. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Após as primeiras anulações de contratos temporários e expulsões de bares de ‘praia urbana’, que apontavam para o fortalecimento da gentrificação na região, um grupo de indivíduos ‘criativos’ se juntou em 2006 para formar um dos maiores e bem sucedidos movimentos sociais da última década em Berlim, o “Mediaspree Versenken!” (afundem o MediaSpree!). Composto por jovens, artistas, donos de bares e clubes noturnos e membros de squats e comunas radicais (como a Køpi e o New Yorck/Initiative Zukunft Bethanien), o movimento possuía como objetivo impedir o futuro “desenvolvimento criativo” da área, sendo contra a grande escala e a natureza dos projetos, contra a privatização do acesso à orla e contra o despejo dos moradores e dos negócios locais. Seus membros “enxergam-se como residentes socialmente engajados e demandam certas garantias por parte dos atores políticos e agências envolvidas”, desafiando “o modelo de desenvolvimento urbano hegemônico numa metrópole globalmente competitiva” (LANS 2013b). Dentre os slogans do movimento destacavam-se “salve sua cidade”, “lute por sua cidade” e “parem a privatização”. Em setembro de 2007, o MediaSpree Versenken se utilizou de um instrumento legal introduzido recentemente na política berlinense e intitulado Bürgerbegehren (em uma tradução livre, ‘iniciativa de cidadãos’) – criado em 2006 para permitir maior participação popular nas decisões na esfera distrital. Para que seja bem sucedida, a iniciativa precisa ser aprovada pela administração distrital e em seguida devem ser coletadas assinaturas de pelo menos três por cento dos eleitores registrados naquele distrito durante um período máximo de seis meses. Se isso for conseguido, a administração local discute as possibilidades de implementação e viabilidade da iniciativa e propõe um referendo público, que deve ser realizado no prazo de três meses. Apenas os habitantes daquele distrito podem votar no referendo para aprovar ou reprovar a iniciativa proposta. Para que o referendo seja aprovado, é necessária, além da maioridade dos votos, o comparecimento de pelo menos quinze por cento dos eleitores registrados à votação. Cabe destacar que o referendo serve como uma forte recomendação popular ao governo da cidade, não implicando em uma medida judicialmente válida. Independente disso, ignorar este instrumento 122 representa uma decisão extremamente arriscada para os políticos locais, principalmente quando o comparecimento às urnas é alto (DOHNKE 2013, p. 266-267). O Bürgerbegehren foi proposto sob o nome de “Spreeuffer für alle” (margens do Spree para todos), com a justificativa de conscientizar a população a respeito do plano urbano, envolvendo-a nas decisões referentes ao seu futuro. Suas demandas principais eram três: impedir a construção na faixa marginal de 50 metros do rio, de modo a preservar as atividades e usos (temporários) existentes nesta área; limitar o gabarito das novas construções para a altura máxima de vinte e dois metros, em conformidade com a legislação urbana, visando a preservação da densidade ocupacional da região; e impedir a construção de uma nova ponte viária, para que não aumentasse a circulação de carros, porém propiciando conexões para bicicletas e pedestres. IMAGEM 94: Iniciativa Spreeufer für alle estampada nas margens do clube YAAM (Young African Art Market) – um dos ameaçados de despejo. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 95-96: Outdoor do movimento MediaSpree Versenken, pedindo o fim da privatização (esq.) e logomarca do movimento (dir.). | FONTE: Claudia Seldin, 2014. O Bürgerbegehren referente ao MediaSpree foi bem sucedido: mais de quinze mil assinaturas foram coletadas e, em 2008, um referendo foi realizado após intensas campanhas e passeatas de conscientização, que serviram para reforçar a aliança entre uma camada mais politizada dos profissionais criativos e os ativistas de esquerda do distrito. Cerca de vinte por cento dos eleitores registrados compareceram às urnas – uma vitória direta dos pequenos empreendedores locais, que 123 se utilizaram de atitudes criativas para incentivar o comparecimento, como foi o caso dos gerentes do Bar25, que providenciaram carruagens puxadas a cavalo para levar seus clientes até as urnas (JOOST 2012, p. 324). A Spreeufer für alle foi aprovada com cerca de 87 por cento de votos dos habitantes de Kreuzberg-Friedrichshain (aproximadamente 300 mil pessoas) e, como resultado, foi estabelecido um comitê especial para rever o plano. Este comitê contava com nove representantes do parlamento distrital e quatro membros da iniciativa popular (DOHNKE 2013, p. 267). O período que se seguiu foi marcado por mais de dezoito meses de tentativas de negociações entre as partes interessadas, deixando clara a dificuldade de participação efetiva por parte da população em um modelo de planejamento urbano orientado para os negócios financeiros. Ao mesmo tempo em que o movimento social perdia seu dinamismo devido à demora da tomada de uma decisão, os administradores do distrito alegavam temer as consequências econômicas da quebra de contratos assinados com investidores privados em decorrência da modificação do projeto original. Com essa justificativa, o Senado berlinense pode retirar da esfera distrital a responsabilidade sobre o planejamento da região, colocando-se no comando e mantendo as diretrizes originais do projeto, declarando se tratar de um “interesse urgente de alcance municipal” (ibidem, p. 269). Através de sua interferência, o Senado berlinense conseguiu garantir a continuidade de diversas obras previstas no plano MediaSpree, porém o fez através de ações de empresas estatais, sem colocar seu nome diretamente em evidência como culpado de desrespeitar uma medida popular. Ademais, a existência de membros da iniciativa Spreeufer für alle no comitê especial – que pregava, na teoria, discussões abertas sobre as questões de propriedade e privatização, mas na prática, calava os debates – acabou servindo para a disfarçar a participação popular e legitimar a política urbana. A proteção dos interesses dos investidores privados por parte do Senado berlinense representou uma desqualificação da opinião pública em relação às diretrizes de planejamento da cidade, bem como um desrespeito à histórica cultura de participação populacional nas decisões urbanas sobre Berlim. Porém, apesar do aparente fracasso da ‘iniciativa de cidadãos’, algumas vitórias foram conquistadas nos terrenos ainda pertencentes ao Estado, dentre elas: a remoção de um dos arranha-céus do plano inicial e um acréscimo de área ao espaço público das orlas do rio. A maior vitória, no entanto, foi a conscientização da população sobre as questões urbanas locais e o fato do nome MediaSpree ter se tornado mais comumente associado com o movimento social do que com o planejamento propriamente dito. A conotação negativa do nome foi tão grande que a associação sem fins lucrativos homônima tirou do ar seu website oficial e os novos projetos para a região passaram a evitar qualquer relação com o termo MediaSpree. Apesar dos reveses, os movimentos contra os projetos urbanos da área conhecida como Spreeraum Ost tiveram continuidade, tanto por parte do MediaSpree Versenken, quanto por parte de outros grupos. Em julho de 2010, um novo movimento intitulado MegaSpree organizou uma grande passeata em frente à Prefeitura da cidade, chamando habitantes dos mais diversos distritos para protestar contra o planejamento IMAGEM 97: Flyer do MegaSpree. | FONTE: MegaSpree, 2010. 124 estratégico e políticas urbanas aplicadas ‘de cima para baixo’. Eles se autodenominavam “uma aliança entre o setor de artes e cultura, grupos políticos, sociais e ambientais, habitantes despejados e donos de clubes, afetados pelos processos de reestruturação em curso” (MEGASPREE 2010). Até hoje a aliança continua acompanhando os desenvolvimentos da operação urbana, mobilizando-se em parceria com outros movimentos sociais, como o MediaSpree Versenken e o Wir bleiben alle (ver p. 100) quando alguma ação do poder público ou do mercado imobiliário ameaça a população local. Uma destas ações ocorreu em março de 2013, quando uma construtora mobilizou-se para retirar um trecho de vinte e três metros da famosa East Side Gallery – maior trecho remanescente do Muro de Berlim, galeria de grafite a céu aberto e importante ponto turístico da cidade. Os 1.300 metros da galeria são tombados pelo patrimônio, porém o Senado autorizou parte de sua remoção para facilitar a construção de um condomínio de luxo de quinze andares entre o muro e o Rio Spree. Vinte e quatro anos depois da enorme euforia que levou à destruição deste símbolo de divisão da cidade, seis mil pessoas se reuniram em uma passeata para manifestar contra mais uma tentativa de apagamento da história e memória locais em favor do desenvolvimento imobiliário (BOWEN 2013). Por um momento, o protesto pareceu funcionar e o investidor envolvido prometeu reunirse com o prefeito Klaus Wowereit para encontrar uma solução. Pouco tempo depois, no entanto, ele quebrou sua promessa e removeu oito metros do monumento. Outras partes preservadas do antigo Muro de Berlim já haviam sido removidas antes, porém nunca levando a esta escala de reação coordenada entre os berlinenses. De acordo com Shea (2013), os manifestantes estavam menos preocupados com o muro e mais preocupados com os apartamentos caros que o substituiriam, salientando que o medo da gentrificação se tornou ‘lugar comum’ no dia-a-dia da população local. A comoção inspirou uma edição especial da revista local Exbeliner sob o título “Salve Berlim” (Save Berlin - ver anexo 05, p. 194), denunciando, em uma série de artigos, a colisão entre comércio e história em vista do desenvolvimento do setor imobiliário, que prevê a construção de 137 mil apartamentos do tipo flat até 2025 (BORDEN et al 2013). IMAGENS 98-99: Trecho da East Side Gallery próximo ao O2 World: a construção de apartamentos de luxo ameaça o patrimônio histórico local. | FONTE: Claudia Seldin, 2013 e 2014. O novo embate levou a uma retomada de reuniões de conciliação entre investidores, proprietários e usuários temporários da região em junho de 2013, desta vez sob o nome de “Fórum 125 Spree Urbano” (Forums Stadtspree), como uma forma de evitar o já infame título MediaSpree. De acordo com Schmidl (2013), temas como o barulho foram abordados, já que muitos novos apartamentos residenciais de luxo estão sendo construídos em uma região marcada pela presença de marcos turísticos (como a East Side Gallery) e por um estilo de vida alternativo de bares e clubes noturnos, o que implica em uma ambiência desfavorável para a vida em família. Outro tema debatido foi a promessa de uma nova solução para clubes como o lendário YAAM, que, meses depois da reunião, foi despejado de seu terreno original e realocado para uma área a cerca de cem metros de distância. Apesar das discussões, poucas decisões foram tomadas, o que nos leva a concluir que, em termos gerais, o Fórum serviu para fazer um balanço dos projetos concretizados até então (ver anexo 06, p. 195), para a cobrança de posições sobre as obras em andamento e para esclarecimentos sobre os projetos ainda previstos. IMAGENS 100-101: Fracassos e vitórias na disputa pelas margens do Rio Spree: transformação da lendária fábrica de sorvete Eisfabrik em flats de luxo (esq.) e deslocamento do clube YAAM para um terreno a alguns metros de distância do original, propiciando sua continuidade (dir.). | FONTE: Claudia Seldin, 2014. Apesar da polêmica em torno do MediaSpree, ainda em 2013, foi consolidado um novo plano urbano para o trecho do rio adjacente à ponte Jannowitzbrücke (na fronteira entre os distritos de Mitte e Friedrichshain-Kreuzberg) sob o nome de Holzmarkt. Seu objetivo é o estabelecimento de uma espécie de vila urbana de uso misto, que sirva de espaço de encontro para jovens, estudantes e artistas atuando em cooperativa em prol de atividades criativas. Já prevendo possíveis reações negativas da população local, o discurso que embasa esta intervenção urbana alega pleno conhecimento das demandas da iniciativa Spreeufer für alle, pregando um desenvolvimento urbano integrado e sustentável que objetiva agregar valor à cidade. 126 IMAGEM 102: Vista aérea da região onde será implantado o novo empreendimento Holzmarkt. | FONTE: Claudia Seldin, 2007. A proposta conceitual do projeto enfatiza a reprodução, neste quarteirão, da ambiência alternativa característica da cidade, ou seja, de sua cultura alternativa, sua juventude, seu senso de comunidade e de tolerância. Mais do que isso, ele se apresenta como um “modelo” baseado em um princípio de "atividade econômica democrática", em que "o espaço criativo [é] protegido contra os interesses do capital" (HOLZMARKT PLUS 2013, p. 17). O discurso é complementado com a proposta de criação de um número factível de novos empregos (entre 200 e 600) e com um autoproclamado “manifesto” por parte do grupo de investidores envolvidos: A cooperativa está comprometida com seus membros e com a preservação dos bens, mas não busca maximizar retornos monetários. A cooperativa se enxerga como uma parceira para o desenvolvimento de modelos de financiamento que requerem e encorajam uma ação e um gerenciamento responsáveis. [...] a cooperativa apoia exclusivamente companhias e projetos que se encaixem nos critérios definidos neste manifesto (HOLZMARKT PLUS 2013, p. 22, grifos meus). Dentre estes critérios está “a criação de habitats saudáveis, amigáveis e agradáveis, assim como de espaços criativos livres” e a proibição da instalação de restaurantes e lojas de cadeia e de companhias ecologicamente irresponsáveis ou ligadas à indústria bélica ou nuclear (idem). Cabe destacar que o projeto Holzmarkt ainda é muito recente e não foi colocado em prática, não tendo havido, até o fechamento desta tese, ações concretas que permitissem as análises de suas consequências para a região. Independente disso, algumas conclusões podem ser tiradas a respeito de seu real caráter ao se analisar o material divulgado pelos empreendedores. Se a partir de um primeiro momento, a ideia parece interessante, logo fica claro que seus responsáveis estão 127 fazendo uso de um discurso extremamente cuidadoso – e que inclui termos como ‘cooperativa’ e ‘sustentabilidade’ – para defender aquilo que pode vir a se tornar um grande parque temático da criatividade berlinense, onde as atividades realizadas não são espontâneas, mas cuidadosamente planejadas e selecionadas de acordo com os interesses envolvidos. A chamada “cooperativa” refere-se, na realidade, à atuação das quatro partes envolvidas: o grupo Holzmarkt plus eG – descrito como um corpo gestor de mentes criativas, cidadãos e investidores, cuja responsabilidade é garantir o caráter do espaço a longo prazo; o grupo Genossenschaft für urbane Kreativität eG (GuK) – uma organização de investidores com direitos sobre a propriedade da terra e que gerencia o capital investido; a fundação Abendrot109 – um fundo de pensão com base na Suíça e que atua como parceiro e principal fonte de capital; e, por último a associação sem fins lucrativos Mörchenpark e.V. – que representa a participação cívica. Esta última é responsável pelas áreas públicas incluídas no projeto e pelo design do calçadão na orla do rio. Ela é aberta aos residentes locais e funciona a partir de doações e do pagamento de taxas de associação. IMAGENS 103-104: Primeiras ações observadas no Holzmarkt: instalação da associação Mörchenpark e.V. (esq.) e placa na entrada do mercado de pulgas (dir.)110. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. Em se tratando do terreno arrebatado em leilão pela Fundação Abendrot, houve uma divisão em quatro partes, sendo apenas uma delas destinada à vila urbana propriamente dita. As outras três englobam a construção de um hotel, de um viaduto e de um espaço intitulado Eckwerk (próximo à Alexanderplatz) e descrito como um centro tecnológico para estudantes, pesquisadores e companhias que contribuam para o caráter produtivo da área através de uma mistura de 109 A fundação, criada em 1985 na Suíça, se denomina como um "fundo de pensão sustentável" que preza por direitos igualitários e por "critérios éticos" para o investimento das pensões por ele asseguradas no mercado imobiliário, em fontes de energia renováveis e em projetos sustentáveis (HOLZMARKT PLUS 2013, p. 19). Tradução: “Este lugar mágico e sua história: ele foi e aqui está de novo: bem-vindo ao Holzmarkt. Um país das maravilhas, cheio de histórias. Um espaço para pessoas de todas as cores. Um lugar para ideias e unicórnios, sonhos, fantasias e cães sem coleira. Aqui os indivíduos livres moldam o lugar: juntas as pessoas decidem, costuram, colhem, trabalham e com frequência celebram. Nós somos todos Holzmarkt. Então, trate como você desejaria ser tratado - apreciado, respeitado e amado. Nós estamos nos transformando constantemente: nós crescemos, desenvolvemos, pesquisamos e nós nos temos diversão e alegria. Vamos trabalhar juntos para que o Holzmarkt seja um lugar de sucesso, paz e alegria. Porque viemos para ficar”. 110 128 conhecimento com startups. No lote destinado à vila, prevalece o conceito de uso e alugueis temporários (entre cinco e dez anos) para estudantes, artistas, artesãos, músicos e outros ‘tipos criativos’. O conceito de alugueis curtos é justificado pela necessidade de “promover e estimular a mudança” (ibidem, p. 27), de modo que haja uma reciclagem do talento jovem na região, que deverá ser selecionado cuidadosamente pela “cooperativa” visando “a mistura certa” para uma “vila animada e trabalhadora” (ibidem, p. 30). Dentro da vila, 1.500 metros quadrados são destinados à habitação de pessoas que devem, necessariamente, se filiar ao GuK (1.500 m²), 1.670 m² metros quadrados são destinados à habitação temporária de profissionais criativos e 700 metros quadrados são destinados para a atividades profissionais temporárias de cultura e conhecimento. Ademais, o projeto prevê um clube noturno, um restaurante, um alojamento estudantil e uma creche 24 horas, totalizando um custo superior a 50 milhões de euros até o momento (HUBMANN & PERKOVIC 2014, p. 33). IMAGEM 105: Projeto inicial do Holzmarkt. | FONTE: Berliner Zeitung (2013, original adaptado pela autora). IMAGENS 106-107: O terreno: entulho (esq.) e mercado de pulgas (dir.). | FONTE: Claudia Seldin, 2014. Apesar da sua inteligente autodenominação como um manifesto urbano que engloba interesses diversos, o Holzmarkt corre o risco de se tornar apenas mais uma nova roupagem para uma fórmula urbana que vem sendo aplicada desde o início deste século, quando Richard Florida propôs a criação de centros criativos ‘autênticos’ para a atração de um público muito específico. Neste caso, a fórmula parece estar sendo levada ao pé da letra através de um estrito processo de seleção dos usuários por um grupo que determina, como seguranças de um clube exclusivo, quais são os membros aceitos ou não no laboratório de experiência urbana berlinense. Mais do que isso, 129 planos urbanos como o MediaSpree e o Holzmarkt provam que a tendência de revitalização de zonas portuárias mencionada no capítulo II ainda permanece forte no século XXI. Observamos, porém, uma espécie de rebranding do processo, que agora não é mais justificado através da instalação de equipamentos culturais (museus e complexos de entretenimento), como nos anos 1990, mas sim de empresas, negócios e pessoas criativas. Este deslocamento implica em uma maior privatização e menor acesso às frentes marítimas, na diminuição dos espaços públicos a elas adjacentes e na anulação das experiências que surgem espontaneamente. A mais recente anulação ocorreu em setembro de 2014, quando a pressão imobiliária levou ao despejo do squat conhecido como Cuvry na região contemplada pelo MediaSpree. Situada na margem do rio oposta à sede da Universal Music, em Kreuzberg, esta ocupação, que teve início em 2012, contava com cerca de sessenta pessoas, dentre elas refugiados estrangeiros, artistas, ativistas e sem-teto, que protestavam contra a construção de um shopping center e apartamentos de luxo no terreno. Devido à presença caótica de barracas, o local foi apelidado pela imprensa como a primeira “favela de Berlim” (TÖRNE, WALECZEK & FELBER 2014). Em dezembro do mesmo ano, como forma de protesto ao despejo, os artistas grafiteiros Blu e Lutz Henke pintaram de preto os seus famosos murais, que tomavam conta das empenas dos edifícios na divisa do terreno desde 2007, atraindo diversos turistas em busca de arte urbana internacionalmente célebre. Sua justificativa foi não querer que sua arte contribuísse para a valorização do IMAGEM 108: Cartão postal comprado em lote e o processo de gentrificação da cidade, como loja berlinense com a imagem do mural de explica Henke em um manifesto publicado no jornal Blu e Henke. | FONTE: Cartão postal, s/d. inglês The Guardian em 19 de dezembro de 2014: Sete anos após a criação dos murais monumentais, nós sentimos que era hora deles desaparecem, junto com o desvanecimento da era de Berlim que eles representavam. [...] A primeira peça, uma colaboração entre Blu e o artista francês JR, retratava duas figuras no ato de desmascarar uma a outra, mostrando sinais de gangues do lado leste e oeste [de Berlim]. Em 2008, Blu e eu tínhamos decidido renovar as duas figuras, mas, ao invés disso, adicionamos espontaneamente o segundo mural [na empena do edifício] ao lado: um homem de negócios acorrentado pelos seus relógios de ouro. [...] Sem querer, nós fizemos uma representação visual ideal da Berlim imaginária dos anos 2000 e suas promessas: uma cidade cheia de terrenos baldios oferecendo muito espaço para habitação acessível e para experimentação criativa entre as ruínas de sua história recente. Essas características se tornaram as atrações principais e o mantra da Berlim "pobre, mas sexy" do agora ex-prefeito Klaus Wowereit. Os murais tomaram seu lugar involuntário nesta realidade como sítios de peregrinação de tours guiados de arte urbana [...]. A cidade começou a usar a estética de resistência para suas campanhas de marketing. [...] Para mim este banho preto significa um renascimento: um alarme para acordar a cidade e seus habitantes, um lembrete da necessidade de preservar 130 espaços acessíveis e animados de possibilidades, ao invés de produzir taxidermias de arte (HENKE 2014). IMAGENS 109-110: Processo de demolição das estruturas remanescentes do Cuvry (esq.). Squat despejado e mural pintado de preto (dir.). | FONTE: Claudia Seldin, 2014 (dir.) e HENKE (2014) (esq.). O despejo do Cuvry prova que, neste momento, o futuro nas orlas do Spree é incerto e que alguns projetos para a região permanecem. Porém, eventos inesperados também ocorrem: ao fim de janeiro de 2015, foi anunciada a mudança de nome da arena de espetáculos O2 World – uma das âncora representante do setor de telecomunicação e mídia da indústria criativa no plano urbano MediaSpree –, para Mercedes-Benz Arena Berlin (SEELING 2015). Apesar do uso cultural permanecer, o novo título, que remete à aquisição do terreno pela marca automobilística homônima, aponta para o fracasso na manutenção e atração de novas marcas e nomes de empresas criativas e para uma necessidade de abertura da região para outros tipos de indústria. Independente da continuidade dos projetos na região, podemos afirmar que a onda de protestos contra o planejamento estratégico local não foi em vão, gerando importantes desdobramentos para a cidade como um todo. Em maio de 2014 outro referendo foi realizado com base no instrumento da ‘iniciativa de cidadãos’, desta vez no terreno do antigo aeroporto de Berlim Oriental, o Tempelhof – uma área de cerca de 356 hectares, transformada em parque público em 2010 (ver anexo 07, p. 196). Mais de 65 por centro dos eleitores votaram contra a construção de apartamentos de luxo e uma grande biblioteca central no terreno, o que diminuiria a área de recreação em mais de 40 por centro. Ainda no fim de 2014, mais protestos foram realizados contra a construção de apartamentos de luxo em outro parque da cidade, o Mauerpark em Prenzlauer Berg. Ao que tudo indica, a possibilidade de convocação de um novo referendo neste distrito em 2015 ou 2016 também é muito forte (ver anexo 08, p. 197). IMAGENS 111-112: Jardim comunitário (esq.) e lazer (dir.) no aeroporto vazio. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. 131 5.2 Kunsthaus Tacheles: Autopsia de um Squat Cultural111 A lenda do Tacheles é de um lugar fantástico. A realidade é outra (artista italiano Angelo em UNVERWÜSTLICH de Falko Seidel, 2012). No início da década de 2010, ao mesmo tempo em que os cidadãos de FriedrichshainKreuzberg se mobilizavam contra a gentrificação resultante do MediaSpree, outra batalha começava a ser travada no distrito central de Mitte. Ali, um dos squats culturais mais famosos do mundo começava a sofrer ameaças de despejo. Tratava-se da (casa de arte) Kunsthaus Tacheles – ocupada entre 1989 e 1990, imediatamente após a queda do Muro de Berlim. A história da Kunsthaus Tacheles remete-se ao início do século XX, quando o terreno de cerca de 22 mil metros quadrados foi adquirido para a implantação de uma grande galeria comercial no bairro judaico conhecido como Scheunenviertel, no distrito de Mitte. Naquele momento, crescia o número de lojas de departamento em Berlim e os proprietários vislumbravam vencer a competição com a construção de uma enorme estrutura arquitetônica, que servisse como passagem entre os eixos viários de Friedrichstraße e Oranienburger Straße. As obras do edifício foram executadas pela corporação Berliner Terrain - und Bau - Aktiengesellschaft entre 1907 e 1909, seguindo o projeto do alemão Franz Ahrens, que mesclava elementos modernos, góticos e clássicos. Em termos arquitetônicos, a Friedrichstraßenpassage, como foi então intitulada, destacava-se pela inovadora utilização de concreto armado na estrutura, pela presença de esculturas ornamentais em pedra calcária (desenhadas pelos artistas Hans Schmidt e Richard Kuehn) e por uma imensa cúpula de vidro. A galeria possuía acessos através das duas ruas e contava com várias lojas independentes, distribuídas pelos seus cinco andares, bem como uma área central de caixas de pagamento. Apesar da sua monumentalidade e do conceito revolucionário, as atividades comerciais não foram bem sucedidas e a Friedrichstraßenpassage foi à falência meses após a sua inauguração, muito provavelmente em função dos altos custos do projeto, estimados em sete milhões de marcos. Em 1909, a galeria foi transformada em uma loja de departamentos, porém esta também foi obrigada a fechar suas portas em 1914, pouco antes da I Guerra Mundial (SENATSVERWALTUNG FÜR STADTENTWICKLUNG UND UMWELT 2013). IMAGENS 113-115: A Friedrichstraßenpassage no início do século XX. | FONTE: Kunsthaus Diaspora, s/d. 111 Parte deste estudo de caso, desenvolvido pela autora, foi traduzido para o inglês e incorporado no memorial “Das neue Tacheles 2013-2033”, disponibilizado ao público no website da associação Art Pro Tacheles e.V. como parte das ações que buscavam a permanência no terreno. 132 IMAGEM 119: Mapa cadastral com destaque para o edifício e terreno da Kunsthaus Tacheles, lotes 54-56A da Oranienburger Straße. | FONTE: Planta cadastral de Berlin-Mitte (2013, original adaptado pela autora). O uso do edifício é desconhecido para o período entre 1914 e 1928, quando ele foi designado como Casa de Tecnologia (Haus der Technik) pelo seu dono, o banco Berlin Commerzbank. A partir de então, passou a ser utilizado pela companhia elétrica Allgemeine Elektrizitäts-Gesellschaft (AEG), que o transformou em uma espécie de showroom para seus produtos. Acredita-se que a primeira transmissão de televisão do mundo ocorreu neste edifício durante a década de 1930. Neste mesmo período, ele passou a ser cada vez mais utilizado pelo Partido Nazista, que mantinha capturados ali, alegadamente, seus prisioneiros franceses (KUNSTHAUS DIASPORA 2011). Durante a II Guerra Mundial, toda a região foi alvo de devastadores bombardeios, o que implicou na destruição da maior parte dos edifícios. A antiga Friedrichstraßenpassage foi uma das poucas construções sobreviventes aos ataques, o que acabou por render-lhe, na década de 1990, o status de patrimônio histórico (Baudenkmal)112. IMAGENS 116-117: O edifício como showroom da AEG (esq.) e após os bombardeios (dir.). | FONTE: Kunsthaus Diaspora, s/d. 112 O tombamento foi realizado pelo Landesdenkmalamt, que representa a autoridade local para assuntos técnicos de arquitetura, arte e paisagismo, preservação histórica e arqueológica. A proteção se estende à toda área referente à antiga Friedrichstraßenpassage. Para mais informações sobre o status de tombamento, ver: <http://www.stadtentwicklung.berlin.de/denkmal/ landesdenkmalamt/>. Acesso em: 19 abr. 2013. 133 Em 1948, o edifício – agora pertencente a Berlim Oriental – passou a ser utilizado pela Federação dos Sindicatos de Livre Comércio Alemão (Haus vom Freien Deutschen Gewerkschaftsbund). A partir deste momento, diversos outros usos foram atribuídos ao local, dentre eles um teatro e um cinema, até hoje existentes. Durante o período socialista, muitas alterações foram realizadas pelo governo na estrutura do edifício, incluindo demolições parciais nunca finalizadas devido à insuficiência de fundos. A mais notável delas ocorreu em 1977, quando quase metade do imóvel foi destruído sob a justificativa de necessidade do alargamento da rua, porém constituindo, na realidade, uma “demonstração de poder político através da condenação da história da casa” (STUCKERT 1992, p. 169). Os múltiplos usos, os bombardeios e a falta de cuidados por parte do governo socialista levaram à extrema deterioração do edifício. Após a queda do muro, sua demolição completa foi marcada para fevereiro de 1990, porém, durante a segunda onda de squats berlinenses, ele foi ocupado por um coletivo de artistas oriundos de Berlim Oriental, eventualmente denominado como Künstlerinitative Tacheles (iniciativa IMAGEM 118: Demolição parcial realizada pelo governo de de artistas Tacheles). O nome Berlim Oriental. | FONTE: Kunsthaus Diaspora, s/d. Tacheles foi escolhido por derivar do termo iídiche ‘tachlis’ (‫)תילכת‬, que significa ‘falar diretamente, sem rodeios’ – uma referência não apenas ao bairro judaico onde o edifício fora construído, mas também ao sentimento de liberdade que tomava conta da época. O escultor de metal turco Arda, que chegou à casa para atuar como dançarino dois meses após o grupo inicial, em 1990, explica este sentimento: Tacheles era uma utopia. Com o muro caindo, havia espaço livre para todos, em todos os lugares. E Tacheles era um lugar onde você realmente podia concretizar algo. [...] Eu já fiz muitas coisas aqui: fui dançarino, gerente do Café Zapata, segurança da discoteca... Mas, tudo aqui estava cheio de metal e eu achei que alguém precisava usar este material que estava abandonado. Eu achei que seria fácil aprender [a esculpir] sozinho, porque isso aqui era como um playground (escultor Arda, 07 maio 2013, em entrevista pessoal). Em pouco tempo, diversos outros artistas e grupos de variadas nacionalidades 113 juntaramse à ocupação do edifício, que passou a ser conhecido como Kunsthaus Tacheles. A partir daquele momento, a casa se consolidou não só como um squat cultural, mas também residencial, já que 113 De acordo com Stuckert (1992), em 1991-92, o squat possuía artistas de 42 nações diferentes, dentre eles: Turquia, Israel, Palestina, Índia, Austrália, EUA, além de países africanos, da Europa Oriental e da antiga União Soviética (p. 170). 134 cerca 60 artistas ocupavam os dois edifícios de apartamentos adjacentes ao terreno e que encontravam-se em estado de abandono. Apesar das iniciais divergências entre indivíduos do Leste e do Oeste, a organização dos squatters se mostrou eficiente para que diversas conquistas fossem alcançadas. Inicialmente, as decisões eram tomadas coletivamente em reuniões semanais intituladas Plenum (op. cit., p. 175), onde todos podiam falar abertamente e obter atualizações a respeito das questões de propriedade do imóvel – desconhecida durantes os primeiros quatro anos que seguiram a queda do muro. A transformação do coletivo em uma associação formal, ainda nos primeiros anos, possibilitou a aquisição de vistos para artistas estrangeiros e o apelo bem sucedido por um investimento do governo no valor de um milhão de marcos para renovações do edifício (idem). Mais notadamente, a associação conseguiu negociar com a administração distrital de Mitte para que houvesse o reconhecimento do valor histórico da construção. Após diversas análises técnicas, foi descoberto que, apesar da deterioração aparente, a estrutura de concreto armado datada do início do século mantinha-se em ótimo estado. A nova casa de arte foi tombada em fevereiro de 1992, juntamente com dois edifícios residenciais ocupados. A partir daquele momento ficou decretado por lei que o edifício deveria possuir uso artístico e cultural. IMAGENS 120-121: O edifício logo após a queda do muro em 1990 (esq.) e em 1995 (dir.). | FONTE: Kunsthaus Diaspora, 1990 (esq.) e 1995 (dir.). Apesar do reconhecimento oficial, nenhum outro investimento governamental foi feito para que o edifício passasse pelo necessário processo de sanitização e reforma exigido para as construções da antiga Berlim Oriental. A fachada posterior havia sido demolida antes da reunificação da cidade e muitos ateliês foram montados nos vãos sem paredes. O edifício também não possuía sistema de aquecimento e contava com infraestrutura precária. Assim, os próprios artistas ficaram encarregados das obras necessárias para tornar os espaços habitáveis e a casa de arte passou a ser customizada de acordo com seus desejos: paredes foram erguidas e pintadas, estúdios foram delimitados e esculturas foram presas à estrutura. Durante este período, o coletivo enxergava Tacheles como uma ideologia – calcada na liberdade de criação e na democratização da arte, que ali podia ser produzida fora dos padrões de curadoria vigentes. Porém, mais do que isso, naquele momento, a casa representava o posicionamento crítico de uma parcela da sociedade em relação à iminente ocidentalização e transformação da imagem berlinense, como já antevia a atriz e diretora teatral Heike Stuckert, que a visitou em 1992: 135 As pessoas de Tacheles enxergam sua casa como um Gesamtkunstwerk – uma peça de arte única e unificada. Mas, eu a vejo de forma mais impressionante, como uma ruína salva da destruição. Tacheles possibilita que algo seja criado de uma história volátil, uma história que o governo alemão talvez venha querer censurar, apresentando no seu lugar uma cultura polida como mercadoria (STUCKERT 1992, p. 176, grifos meus). Em meados dos anos 1990, foi determinado que o terreno era de posse estatal. Neste momento, a casa já havia se tornado uma referência na cena alternativa local, possuindo extrema popularidade. Isso, somado ao apoio recebido dos Partidos Verde e PDS/die Linke, fez com que, apesar da dura política adotada contra squats (a Berliner Linie – ver p. 87), o governo local optasse por uma postura leniente, tolerando a ocupação livre até 1998. Neste ano, o edifício foi vendido para a companhia Johannishof GmbH – uma subsidiária da incorporada imobiliária alemã FundusGruppe – pelo valor aproximado de 233 milhões de marcos. Para realizar a compra, o grupo realizou um empréstimo com o banco HSH Nordbank, baseado em Hamburgo. Naquele momento, foi assinado um contrato de aluguel temporário de dez anos, que permitia a permanência dos artistas em troca da quantia mensal simbólica de um marco alemão por metro quadrado (posteriormente convertida em 50 centavos de euro). O acordo assegurava também a recuperação do edifício, que passou por uma reforma considerável em 2000, quando os vãos na fachada danificada foram fechados com panos de vidro, o sistema de aquecimento foi modernizado e novas unidades sanitárias foram instaladas114. A partir dos anos 2000, a visibilidade do espaço cresceu tão rapidamente que ele passou a figurar nos guias turísticos internacionais sobre a cidade e a ser utilizado nas campanhas de marketing urbano do Senado como um exemplo da ação jovem, da subcultura e do ativismo que caracterizavam a cena criativa berlinense (ver anexo 09, p. 198). Neste momento, o complexo cultural instalado no lote contava com ateliês, galerias de arte e salas de exposição, um teatro, um cinema, um famoso bar/restaurante intitulado Café Zapata, diversos bares e uma casa de shows. As atividades realizadas na casa passaram a exercer um enorme impacto sobre o entorno, contribuindo positivamente não apenas para os negócios locais (restaurantes, bares e hotéis), mas também para a economia informal – em especial, traficantes e prostitutas, cuja presença contribuía para a consolidação da imagem da rua Oranienburger como um ponto cool da cidade. Estima-se que aproximadamente 400 mil pessoas visitassem a casa a cada ano (THE LOCAL 2014). IMAGENS 122-123: Kunsthaus Tacheles em uma quarta-feira à noite em 2007. | FONTE: Claudia Seldin, 2007. 114 Dados retirados do documentário “Unverwüstlich” (2012) de Falko Seidel. 136 IMAGENS 124-125: Interior da Kunsthaus Tacheles: o ambiente decadente marcado por pichações e grafite contribuía para a consolidação da imagem cool do espaço cultural. | FONTE: Claudia Seldin, 2007. IMAGENS 126-127: Fachada principal na rua Oranienburger Straße e o icônico mural de sua empena com os dizeres: How long is now (quão longo é o agora, em uma interpretação livre). | FONTE: Claudia Seldin, 2013. O crescimento da fama da Kunsthaus Tacheles acabou por contribuir também para o fortalecimento das disputas internas por espaço e notoriedade. Como consequência, a rotatividade de artistas passou a se tornar frequente. Grupos mais antigos, indignados com a administração ditatorial dentro da casa, realocaram suas atividades para outros locais da cidade ou para outros pontos do terreno. Este foi o caso, por exemplo, da Oficina de Metal (Metallwerkstatt), que se instalou no pátio externo ao edifício, montando uma espécie de exibição permanente ao ar livre. A partir de 2001, cerca de 150 batalhas legais 115 foram travadas entre a associação sem fins lucrativos Tacheles e.V. (que representava o grupo interno) e os demais grupos, principalmente os negócios de gastronomia. As brigas eram frequentemente registradas pela mídia e envolviam discussões a respeito de quem era o maior responsável por atrair visitantes ao local. Isto, somado à crescente ‘turistificação’ do espaço, acabou causando um enorme desgaste da imagem da casa de arte, que passou a ser mal vista por outros grupos subculturais berlinenses em função da transformação de seu caráter inicial. 115 Dados retirados do documentário “Unverwüstlich” (2012) de Falko Seidel. 137 Em 2008, o contrato temporário de permanência dos artistas chegou ao fim e, apesar de tentativas de negociação, ele não foi renovado. Em função da crise financeira mundial do mesmo ano, a incorporadora proprietária do terreno quase declarou falência e o imóvel foi transferido para o banco HSH Nordbank, que havia fornecido os empréstimos para sua aquisição. Prejudicado na transação e também abalado pela crise, este passou a ameaçar os artistas, que permaneceram na casa sem o pagamento de alugueis. A partir de 2009, ações judiciais foram movidas e os ocupantes da casa – novamente transformados em squatters – foram condenados a pagar um valor superior a cem mil euros. Devido à ausência de fundos, a Tacheles e.V. optou por declarar falência e permanecer no edifício, acreditando que o banco desistiria de ações judiciais individuais contra cada artista, pois isso implicaria em um processo muito custoso e pouco lucrativo. A partir daquele momento, no entanto, as tensões internas foram acirradas e três grupos principais surgiram como representantes de diferentes interesses dos squatters: a Tacheles e.V. – a falida associação dos artistas com ateliês dentro do edifício, liderados pela polêmica figura do seu autoproclamado diretor; o Gruppe Tacheles – formado pelos negócios operantes no edifício, em especial o Café Zapata, o cinema e o restaurante; e o grupo Pro Tacheles – formado pelos escultores da Oficina de Metal e artistas situados no pátio externo. O período entre 2009 e 2012 seria marcado por uma série de protestos, passeatas e intervenções urbanas por parte dos três grupos com objetivo de salvar os artistas do despejo. Dentre as muitas ações, destacamos: a campanha “Eu apoio Tacheles” (I Support Tacheles), que recebeu suporte do movimento MegaSpree e levou diversos artistas e visitantes de todo mundo a tirarem fotos segurando cartazes com o slogan homônimo demonstrando sua solidariedade com o squat; e uma intervenção urbana em 2012, através da qual 175 mil assinaturas coletadas através de um abaixo-assinado foram espalhadas na praça Parisier Platz, em frente ao icônico Portão de Brandemburgo. IMAGENS 128-129: Ações criativas de resistência ao despejo da Kunsthaus Tacheles | FONTE: desconhecida. Apesar da criatividade e do apoio para lutar contra os despejos, as divergências internas impediram que todos os ocupantes da casa se unissem de forma coordenada e eficiente, como ocorreu com o MediaSpree Versenken, para realizar uma ‘iniciativa de cidadãos’ e lutar pelo objetivo comum de manter o imóvel. Em 2011, muitos artistas foram pegos de surpresa quando foi anunciado que o Gruppe Tacheles havia aceitado uma oferta de um milhão de euros do banco para se retirar do edifício e fechar seus negócios. Após sua saída voluntária, um grupo de oitenta artistas prometeu permanecer nos ateliês e pátios. Como consequência, uma semana depois, a maior parte dos espaços abertos do terreno foi cercada e um muro de três metros de altura foi construído bloqueando o acesso principal à casa pela Oranienburger Straße, separando o pátio do edifício. Em 138 setembro de 2012, cerca de 60 artistas cederam à pressão e deixaram a casa – alguns foram ressarcidos e outros não. IMAGENS 130-131: Acesso da Kunsthaus Tacheles pela rua Oranienburger Straße em 2009 e, após seu fechamento, em 2013. | FONTE: Google Street View, 2009 e Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 132-133: Acesso da Kunsthaus Tacheles pela rua Oranienburger Straße em 2009 e, após seu fechamento com uma cerca em 2013. | FONTE: Google Street View, 2009 e Claudia Seldin, 2013. O único grupo remanescente no terreno foi o Pro Tacheles, cujos artistas recusaram as ofertas financeiras e permaneceram ocupando o pátio externo do edifício através de tendas improvisadas. Seu coletivo foi formalizado através do estabelecimento da associação sem fins lucrativos Art Pro Tacheles e.V. Na esperança de reaver a posse do imóvel, a Art Pro Tacheles contratou representação legal e elaborou um memorial conceitual com suas novas ideias de uso para o edifício (ver anexo 12, p. 203), sustentando sua ocupação durante nove meses, apesar das ameaças, das subsequentes ações judiciais, da falta de aquecimento, água e eletricidade e das muitas restrições: Tacheles era um espaço livre. Ela abriu todos os dias, nunca fechou desde sua inauguração em 1990! [...] E agora há muitas restrições... restrições para trazer material para a oficina porque [os proprietários] alegam que podemos tentar construir algum tipo de edificação aqui dentro. Então, nós temos de trazer o metal escondido para conseguirmos trabalhar (escultor Arda, 07 maio 2013, em entrevista pessoal). 139 Tacheles é um lugar onde todos podem ir e vir. As pessoas fazem o lugar e o lugar faz as pessoas. É uma rua de duas mãos. [...] A partir de 2008, era possível sentir a decadência deste lugar. Eu tinha um ateliê no terceiro andar e eu queria fazer arte, mas o foco das pessoas não era mais na arte. Em março [de 2012, quando o acesso ao edifício foi fechado], eu fiquei preso dentro do prédio e houve violência física. [...] Eu não aceitei o dinheiro que me ofereceram porque era errado. O espaço não era meu! Eu não vou vender minha alma, minha experiência (artista italiano Blacco, 16 maio 2013, em entrevista pessoal). Além disso, o acesso ao pátio pelo portão principal permaneceu obstruído. Isso obrigou o grupo a improvisar uma nova entrada, através de uma rua estreita e não pavimentada, sendo necessária a distribuição pelo bairro de cartazes com um mapa explicativo para que os muitos turistas, que continuavam seguindo as indicações dos guias, conseguissem chegar ao seu destino. Ademais, agentes de segurança foram contratados para patrulhar a área durante todo dia e câmeras de segurança foram instaladas para controlar suas atividades. A insistência do grupo possibilitou que a Kunsthaus Tacheles completasse, em fevereiro de 2013, seu 23º aniversário, nunca tendo cessado suas atividades durante todos estes anos. IMAGEM 134: Após o fechamento do edifício, um grupo de artistas permaneceu fazendo squat em uma pequena faixa do pátio da Kunsthaus Tacheles. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 140 IMAGENS 135-136: Apesar dos reveses, visitantes continuaram comparecendo ao pátio ocupado. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Consideramos que as tentativas de permanência observadas neste centro cultural o o qualificam como um território de resistência, no qual algumas das pessoas responsáveis por sua construção tentavam evitar um inevitável processo de desterritorialização e desqualificação de sua história. O conceito de território 116 aplicado aqui é similar aquele aplicado pelo geógrafo brasileiro Rogério Haesbaert (2010 [2004]), que o apresenta como um recorte complexo – identitário e espacial, contingente, marcado por apropriações e questões de poder e composto por esferas distintas e complementares – cultural, política, econômica; física e simbólica. No caso da Kunsthaus Tacheles, o território formado certamente era de caráter cultural, porém suas transformações ocorreram em função de motivações econômicas e políticas, tanto de atores externos quanto internos. IMAGENS 137-138: Em seu último manifesto, os artistas empurraram as letras de metal com o nome Tacheles até a Prefeitura de Berlim em um evento intitulado “Arte Caminha” (Kunst geht spazieren). No dia seguinte, o grupo foi despejado do pátio. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 116 A análise do território a partir da dimensão cultural vem sendo adotada por diversos autores, como Joel Bonnemaison (2002), que o apresenta como um recorte expressivo da relação existente entre a cultura e o espaço, enfatizando a articulação indissociável e complementar entre um grupo social, sua cultura e seu território. A dimensão sociocultural do território também é defendida por Milton Santos (2009 [1996]), que o apresenta como um sistema composto de objetos e ações fixos e fluxos, dotado de significado e expressividades particulares para aqueles que o constroem ou que dele usufruem. O que é possível se perceber através destas definições é a importância, para a conformação dos novos territórios culturais, da relação entre um grupo, suas ações e o espaço em que estas se desenvolvem. 141 Após inúmeras manifestações, eventos e intervenções urbanas de protesto (ver anexo 13, p. 204), a associação foi finalmente despejada no fim de junho de 2013. O acontecimento implicou em um desgaste do grupo e em novos conflitos internos, que ameaçam seu status formal até hoje. Com imensas dívidas em função das ações judiciais movidas pelos proprietários do terreno contra a prática de squat, a única solução vislumbrada hoje pelos seus líderes é a declaração de falência. Enquanto isso, alguns fundadores da Oficina de Metal realocaram-se para uma área vazia no cemitério Alter Luisenstädtischer Friedhof, entre os distritos de Kreuzberg e Neukölln – este último o mais recentemente afetado pela “gentrificação simbólica” apontada por Holm (2013). Seu novo projeto, apropriadamente intitulado “Genius Loci – O Espírito do Lugar” (Genius Loci – der Geist des Ortes), foi elaborado com o consentimento dos administradores do cemitério, dentre os quais uma organização polonesa que espertamente enxergou a possibilidade de tirar partido de sua localização de alta demanda e de transformar seu espaço em um “sítio de cultura” sob o nome Lilienkulturgarten117. IMAGENS 139-141: Início da implantação da nova Oficina de Metal no cemitério onde recentemente teve início o projeto Lilienkulturgarten. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Alternadamente, alguns pintores e artesãos do grupo também trabalham em uma pequena galeria intitulada Cuboid, fundada ainda durante o período de squat no pátio da casa de arte Tacheles como um local de trabalho secundário para o caso do despejo iminente. Esta galeria funciona no jardim de um albergue da rede internacional Plus, situado em um terreno próximo à região englobada pelo plano MediaSpree, na fronteira entre os bairros de Friedrichshain e Kreuzberg. Outros escultores de metal jovens e dessatisfeitos com a liderança atual de Art Pro Tacheles se realocou para o distante bairro de Marzahn, juntando-se a outros artistas e a um grupo de empreendedores locais que adquiriram um antigo abatedouro de animais (Magerviehhof Friedrichsfelde) e planejam a revitalização do enorme terreno através do uso cultural, apostando neste distrito como o próximo destino da gentrificação simbólica berlinense. A associação chama-se “Empreendedora Polonesa NIKE” (NIKE Polnische Unternehmerschaft e. V.) e o lema do projeto Lilienkulturgarten era “de cemitério a sítio de cultura” (vom Friedhof zur Kulturstätte). Ver mais informações em: <http://www.nike-ev.com/>. Acesso em: 20 dez. 2014. 117 142 IMAGENS 142-144: A galeria Cuboid - jardim do albergue Plus. | FONTE: Claudia Seldin e Raesoon Jung, 2013. IMAGENS 145-146: Grupo de escultores de metal em Alte Börse Marzahn: conflitos com os administradores do terreno em 2014 apontam para a saída do grupo do local. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Ademais, os outros artistas que trabalharam em algum momento na Kunsthaus Tacheles se espalharam por Berlim, por outras cidades da Alemanha e pelo mundo. Muitos continuaram a ocupar temporariamente alguns espaços abandonados, degradados ou ameaçados em virtude dos planos urbanos de maior escala que visavam a ‘revitalização criativa’ da cidade. Um dos casos mais interessantes consiste no centro cultural Neu West Berlin (nova Berlim Oriental, em português) – um edifício situado na rua Köpenickerstraße – área contemplada pelo projeto MediaSpree. O alto edifício é tomado por galerias, ateliês, um bar e um restaurante e conta ainda com um enorme pátio posterior, onde há uma exibição permanente ao ar livre de pedaços remanescentes do muro de Berlim grafitados. O local já consiste em um ponto de referência local, porém, apesar de seu sucesso, os artistas já têm data para deixá-lo: em março de 2015, o proprietário iniciará as obras para sua transformação em um edifício residencial de luxo, em consonância com a proposta do MediaSpree e com os demais projetos já em construção na rua. Quando indagado sobre uma possível preocupação em ter que deixar sua nova ‘casa’, o artista Blacco (que fora carregado por policiais e seguranças para fora da Kunsthaus Tacheles no dia de seu fechamento – ver anexo 13, p. 204), expressa bem o sentimento da real ‘classe criativa’ berlinense: Não estou preocupado. Quando tiver que ir embora, eu irei. Para onde? Não sei... Aonde a vida me levar, afinal isso aqui é Berlim. Sempre haverá um novo lugar para ir (artista Blacco, 06 out. 2014, em entrevista pessoal). 143 IMAGEM 147: Fachada posterior do centro cultural Neu West Berlin: nove andares ocupados por ateliês, estúdios, bares e um restaurante. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. IMAGENS 148-149: Neu West Berlin: o novo centro cultural já possui data para o despejo em março de 2015. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. IMAGENS 150-151: Terreno à frente e ao lado do Neu West Berlin na Köpenickerstraße: anúncios para empreendimentos residenciais de luxo em inglês. Claramente, o seu público alvo é a ‘classe criativa’ internacional, atraída à região por seu enorme caráter subcultural. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. 144 IMAGEM 152: Área de influência berlinense dos grupos artísticos investigados provenientes da Kunsthaus Tacheles, após seu fechamento. | FONTE: Google Maps (2014, original adaptado pela autora). Cerca de quatorze meses após o despejo dos últimos artistas, foi anunciada, no fim de setembro de 2014, a venda da Kunsthaus Tacheles para a incorporadora estadunidense Perella Weinberg Real Estate (PWRE) com negócios em Nova York, Londres, Abu Dhabi e Dubai. O valor de compra divulgado pela imprensa foi de 150 milhões de euros (PAUL 2014) – uma quantia muito inferior ao seu custo estimado. Até este momento, os planos para a área incluem apartamentos de luxo, lojas e, possivelmente, hotéis. Em função do tombamento do imóvel, o uso artístico é obrigatório no lote. Por isso, um porta-voz da PWRE afirmou que a casa será utilizada para eventos culturais: Ficamos contentes em despertar esta área de seu sono e iniciar um novo capítulo com a criação de uma nova atração em Mitte. [...] Estamos convencidos do potencial da capital alemã e queremos que uma parte do centro da cidade participe ativamente deste projeto (Léon Bressler, porta voz da PWRE apud PAUL 2014, grifos meus). Até o fechamento desta tese, o terreno em questão permanecia vazio e nenhuma obra havia sido iniciada. Cabe destacar que, durante o doutorado sanduíche em 2013, uma pesquisa foi conduzida com os gerentes e donos dos restaurantes e negócios de gastronomia da rua Oranienburger Straße. Sete dos onze estabelecimentos alegaram uma diminuição considerável em sua receita após o fechamento da casa de arte. O gerente de um restaurante situado no lado oposto da rua alegou uma queda de cerca de trinta por cento em seu faturamento. Segundo ele, seus clientes ainda indagam sobre Tacheles e reclamam que não há nenhum atrativo na região, ao contrário do indicado em seus guias turísticos. O gerente ainda teme que a instalação de um grande canteiro de obras na rua afaste mais os turistas e que um novo grande empreendimento ameace os negócios já existentes na região. 145 IMAGENS 153-154: Kunsthaus Tacheles fechada e restaurantes vazios na Oranienburger Straße. | FONTE: Claudia Seldin, 2013/2014. Durante sua vida útil, a Kunsthaus Tacheles representou muito mais do que um squat subcultural na paisagem de Berlim. Em uma época em que o processo de ‘culturalização’ da cidade se consolidava, ela se fortaleceu, provando que os habitantes e turistas procuravam alternativas aos museus, galerias e centros culturais – cada vez mais genéricos, em função do pareamento da ‘arquitetura de grife’ com políticas urbano-culturais de pouca preocupação social. Mais do que isso, a casa de arte ultrapassava os limites do edifício ou do equipamento cultural, representando um território cultural, uma filosofia e um estilo de vida para pessoas de origens diversas e que acreditavam na necessidade da ação coletiva, do diálogo aberto e da valorização do processo livre de produção artística. Em uma região como Mitte – centro de Berlim – em que a paisagem urbana vai sendo cada vez mais ‘higienizada’, formando uma vitrine para o mundo externo, a Kunsthaus Tacheles se destacava no entorno não apenas por provocar sentimentos dúbios de repulsa e fascinação, mas por ser uma lembrança real e teimosa de uma história que muito se tentou apagar na cidade. Neste sentido, podemos afirmar que a insistência dos seus artistas em mantê-la aberta ultrapassava a simples defesa de seus interesses e a vontade de permanecer no imóvel e representava uma resistência maior: ao processo de mercantilização da cidade. Além disso, cabe destacar que, no caso de Tacheles, a maior parte dos artistas não eram alemães, possuindo não só variadas nacionalidades, como também raças, crenças e valores. De certa forma, eles constituíam o retrato perfeito da “classe criativa” idealizada por Richard Florida em sua pesquisa: jovens (em sua maioria), internacionais, com alta mobilidade, produtores da subcultura e construtores de uma ambiência coletiva de tolerância e comunidade. Mesmo assim, eles foram expulsos após a valorização do terreno, provando que esta ‘tolerância’ incluída nos discursos oficiais a favor do multiculturalismo na cidade é apenas superficial, servindo a interesses específicos. A Kunsthaus Tacheles era tolerada como um ‘monstro feio’ porém rentável em uma região central da cidade que passava por um intenso processo de ‘culturalização’ e revitalização enquanto ela valorizava a área. A partir do momento em que começou a interferir com o fluxo de capital em Berlim, ela foi eliminada. Independente disso, cabe ressaltar que o edifício continua atraindo turistas, mesmo com suas portas fechadas, funcionando como uma espécie de território cultural fantasma. Em outras palavras, a memória de Tacheles permanece – pelo menos até que haja novo uso –, resistindo ao estranho hábito do poder berlinense de tentar apagar do espaço urbano as recordações de culturas que não foram oficialmente construídas. 146 O fechamento de Tacheles – e da possibilidade de se falar abertamente e sem rodeios – constitui, portanto, um marco importante na história urbana berlinense e um alerta para os squats remanescentes na cidade, que começaram a perceber que sua abertura ao público e eventual popularidade poderiam gerar consequências indesejadas. Em virtude disso, muitos deles resolveram se prevenir e adotar posturas mais radicais, impedindo muitas vezes a entrada de pessoas externas, recusando entrevistas à mídia, proibindo o registro fotográfico ou mesmo o contato com pesquisadores acadêmicos, como é o caso do lendário squat residencial e cultural Køpi 137, situado na área contemplada pelo plano urbano MediaSpree. De fato, há uma perversidade observada na dinâmica do squat em relação à cidade, especialmente de um squat cultural. Se por um lado ele necessita de certa visibilidade para que seus artistas consigam público para suas atividades, performances e consumo de seus produtos; por outro lado, a atenção exacerbada faz com que a imagem do sítio degradado seja revitalizada, atraindo o interesse imobiliário e fazendo com que o proprietário – seja ele um indivíduo, uma companhia, uma incorporadora ou o Estado – enxergue a ocupação apenas como um uso temporário lucrativo e cuja imagem pode ser apropriada para a instalação de negócios institucionalizados, domados e polidos. IMAGENS 155-156: O radicalismo do lendário squat Køpi 137 na rua Köpenickerstraße: vegetação cobrindo a fachada e cartazes com os dizeres “sem fotos”. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. IMAGEM 157: Muro do squat Køpi 137: “aqui crescemos, aqui queremos envelhecer sem renovação ou operações de beleza”. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. 147 5.3 As Vozes Criativas da Cidade: Os Artistas de Rua de Berlim A música de rua é a trilha sonora da cidade (Elliot e Chloë – músicos e atores neozelandês, 2013). Os artistas de rua fazem estranhos se juntarem por um momento de alegria, que pode ser compartilhada. [A arte de rua] faz as pessoas rirem, chorarem. Ela mostra a nossa humanidade (Dawn – malabarista e estátua humana canadense, 2013). Os artistas de rua trazem cor para a cidade, dão vida a lugares chatos, vazios ou sem uso. Além disso, eles fazem as pessoas se engajarem (Jackson – músico australiano, 2013). Estar na rua é importante, e não apenas circulando de edifício em edifício. Existe vida entre os edifícios (Byron – músico equatoriano, 2013, grifos meus). Em meio ao contexto dos movimentos sociais e squats que surgem contra os novos projetos urbanos voltados para o incentivo da indústria criativa e do mercado imobiliário – como ilustram os casos do MediaSpree Versenken e dos artistas da Kunsthaus Tacheles –, outras formas de resistência urbano-culturais podem ser percebidas em Berlim, também por parte da chamada “classe criativa” de Richard Florida (2011 [2002], 2005). Apesar da crescente transformação de sua imagem de um paraíso de subcultura espontânea para uma ‘cidade criativa’ movida pelos interesses do mercado cultural, um número imenso de jovens de diversas nacionalidades continua migrando para a capital alemã (ver anexo 04, p. 191), em busca de oportunidades de fazer arte fora dos padrões convencionais. Este é o caso dos artistas de rua, que multiplicam-se pela cidade, atuando às margens da indústria cultural e criativa formal enquanto contribuem, simultaneamente, para a recuperação do espaço público local como um espaço de sociabilidade, diferenças e encontro entre estranhos. Trata-se de uma resistência, por vezes, não premeditada, mas com fortes consequências para a vida e para a paisagem urbana de Berlim. Simpson (2011) define a arte de rua como atividades culturais diversas que são realizadas em busca de algum tipo de doação por parte dos passantes e cujo caráter artístico e performático é constantemente menosprezado (p. 416). A performance, segundo ele, consiste em uma atividade corporificada que transgride, resiste e desafia estruturas sociais, uma vez que os artistas intervêm na organização espacial e temporal através de eventos dinâmicos, mutantes e vivos, capazes de mudar os fluxos das pessoas (idem). 148 De acordo com Broad, Crawford & Smith (2014, p. 02), fundadores do “The Busking Project” (TBP) , a arte de rua consiste em uma das profissões mais antigas do mundo. Em inglês, o ato de se apresentar na rua é frequentemente referido através do verbo ‘to busk’, sendo os artistas chamados de ‘buskers’. Curiosamente, esta palavra faz referência ao verbo ‘buscar’ em espanhol, cujo significado é o mesmo que em português. Ou seja, originalmente os artistas de rua eram reconhecidos por sua relação com o espaço, com o ato de buscar o próximo lugar de performance, o próximo público, a próxima maneira de se sustentar. 118 Ainda de acordo com os autores, o ‘nomadismo’ associado com os artistas de rua remonta, possivelmente, a uma comunidade de milhares de ciganos músicos, que passaram a vagar o mundo após sua expulsão da Pérsia no século XV (idem). Independente das origens incertas da arte de rua, o fato é que até o século XXI, seus praticantes mantém o hábito da constante mobilidade pelas mais diversas cidades do mundo, constituindo, por vezes, uma espécie de ‘rede’ em que são divididas experiências e dicas sobre os melhores e piores locais para suas atividades. Em meio a esta ‘rede’, Berlim é considerada como uma cidade de alta aceitação de sua prática, um local onde o estigma do ‘pedinte’ – a eles geralmente associados – é substituído pela admiração, pelo reconhecimento e pela possibilidade de garantir o sustento através da arte e fora dos padrões impostos pela indústria cultural vigente. Esta reputação positiva da cidade foi percebida através da observação de um alto número de artistas durante o período de doutorado sanduíche, das entrevistas realizadas com doze deles (ver anexo 14, p. 207) e através de sua presença espontânea no espaço público ou no âmbito de grandes festivais locais como o “Carnaval das Culturas” (Karneval der Kulturen) e “Berlim Ri” (Berlin Lacht)119. IMAGEM 158: Apresentação de um palhaço durante o festival aberto Berlin Lacht, na Alexanderplatz. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 118 TBP é um projeto fundado em 2010 por três escritores (um inglês e dois estadunidenses) com o objetivo de trazer atenção para a importância da arte de rua. Em 2011, seus três fundadores realizaram uma viagem pelo mundo para filmar um documentário sobre esta atividade cultural em quarenta cidades de trinta países. Atualmente, além do documentário (ainda em fase de pós-produção), o grupo já lançou um livro (homônimo, em 2014) e criou uma plataforma online que funciona como uma rede internacional de artistas de rua. Para mais informações, ver: <http://www.thebuskingproject.com>. Acesso em: 02 jan. 2015. 119 O Berlin Lacht consiste em um festival internacional voltado especificamente para o teatro de rua (Straßentheater). Em 2013, ele estava em sua sexta edição, tendo sido realizado entre 01 e 18 de agosto de 2013 na praça Alexanderplatz, no distrito de Mitte 149 IMAGEM 159: Apresentação de um duo de malabaristas de fogo durante o festival aberto Berlin Lacht, na Alexanderplatz. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Para Simpson (2011), o grande trunfo da performance de rua em relação à esfera urbana é sua capacidade de diminuir as distâncias entre artista e audiência. Isso porque, no espaço público, quase sempre não há um ‘palco’, o que implica não só em uma maior proximidade física, mas também em uma maior interação entre as duas partes humanas envolvidas no processo. Acrescentamos que, como consequência, há também uma desmistificação do artista em si, visto como um semelhante e não como uma figura glorificada. O músico australiano Jackson 120, de 21 anos, que atualmente habita em Berlim, explica que ao se apresentar na rua, o artista não pode se preocupar tanto com o ego, pois todo tipo de elogio e crítica é escutado. Isso implica, não só em uma maior humildade, mas também em um fortalecimento do próprio caráter, em uma maior capacidade de suportar a rejeição e na necessidade de habilidade de improvisação para lidar com situações inesperadas. Sobre o mesmo tópico, a malabarista e estátua humana canadense Dawn, de 33 anos, que também faz parte do TBP, percebe as críticas recebidas não tanto como um reflexo direto do trabalho realizado, mas como uma opinião representativa das pessoas a respeito da arte de rua: As pessoas te elogiam com frequência e dizem quão ‘fantástica’ você é. Mas, o outro lado da moeda é que também dizem que você é horrível e que está arruinando a cidade. Você percebe que estas coisas não estão necessariamente ligadas a você. São as ideias das outras pessoas, que surgem nas suas mentes porque você está lá naquele momento, e você representa liberdade, ou você representa a criminalidade, ou o que quer que elas decidiram que você representa. Na verdade, não tem muito a ver com você, mas com a percepção delas sobre o que você faz. (Dawn, malabarista e estátua humana, em entrevista realizada em 08 out. 2013). 120 Os depoimentos dos artistas de rua aqui mencionados foram todos retirados de entrevistas pessoais realizadas pela autora da tese em Berlim em 2013 (com exceção da malabarista Dawn, cuja entrevista foi realizada em Londres, juntamente com outros membros do TBP, na Inglaterra). As datas das entrevistas aqui mencionadas foram: Jackson – 15 maio 2013; Carlos e Christian (Open Stage Berlin) – 23 maio 2013; Dominik – 13 jun. 2013; Nick – 20 jul. 2013; Byron – 24 jul. 2013; Ryan – 25 ago. 2013; Hanna – 03 out. 2013; Eliott e Chloë – 27 nov. 2013. 150 Independente das críticas, todos os artistas entrevistados em Berlim concordam que, ao se juntar um pequeno grupo de espectadores, é formada também uma espécie de sociabilidade temporária, que modifica a dinâmica do espaço naquele momento. De acordo com Simpson (2011), trata-se de um sentimento de “coletividade temporária”, que caracteriza profundamente a performance de rua. Para o baixista estadunidense Nick, o que se constata é algo semelhante a um “sentimento de bairro”: O espaço público de Berlim é diferente dos outros. Há lugar para o improviso, há lugar para o entretenimento grátis. Isso é algo que não se vê tanto nos EUA, por exemplo. [...] Quando se está na rua, o artista tem que capturar a atenção, criar uma vibração para fazer as pessoas se aproximarem. [...] Eu acho que as performances de rua permitem o estabelecimento de novas relações, novas conexões entre as pessoas e entre as pessoas e a cidade. O tipo de sentimento produzido é quase como se fosse um ‘sentimento de bairro’, de comunidade. É [uma atividade] muita inclusiva (baixista estadunidense Nick, em entrevista em 20 de julho de 2013). O alemão Dominik, cantor de uma banda de ritmos latinos, afirma que, em se tratando da música de rua especificamente, há um maior e mais aparente contato entre pessoas diferentes, uma vez que, através da música, as pessoas se mexem, interagindo não só com o(s) artista(s), mas umas com as outras. Seu colega, o músico equatoriano Byron, de 26 anos, ressalta a importância deste contato em um país como a Alemanha. Para ele, um expatriado latino americano, as experiências sociais e as relações humanas na Europa são muito diferentes das que está acostumando, havendo “distâncias maiores entre as pessoas” em Berlim. Tocar música nas ruas o faz sentir parte da cidade e da sociedade. Neste sentido, a arte de rua atua como uma forma de romper as barreiras entre os alemães e entre os alemães e os estrangeiros. A observação de Byron é interessante, pois reflete os contrastes de diferentes experiências pessoais dos artistas em relação à vida urbana em cada cidade. A cantora sueca Hanna, de 22 anos, aponta o favoritismo de Berlim como um destino popular para artistas de rua europeus exatamente pela razão oposta ao equatoriano. De acordo com ela, na Suécia, as pessoas tendem a ignorar mais os músicos de rua, por ser um país com relações mais frias que a Alemanha. Em sua opinião, em Berlim, existem maiores trocas pessoais, bem como uma “cultura da gorjeta”, ou seja, as pessoas estão mais predispostas a dar uma quantia em dinheiro quando assistem a algo de que gostam. As diferentes percepções sociais de Hanna não se limitam apenas a questões de nacionalidade, mas também de gênero. Ela afirma que existem muito poucas mulheres fazendo arte nas ruas sozinhas (algo evidenciado também pela autora durante a pesquisa de campo). Para ela, isso é um reflexo da sociedade e da própria indústria da música, que beneficia os artistas homens. A relação entre a arte de rua e a indústria também foi mencionada por quase todos os outros entrevistados. Para eles, apresentar-se nas ruas é sair da lógica da indústria cultural dominante e que seleciona apenas as modalidades artísticas e ritmos vendáveis naquele momento. Segundo Jackson, tocar nas ruas acaba sendo uma maneira mais eficiente de promover a própria música, de forma independente das gravadoras, que controlam o que deve tocar nas rádios e quais artistas recebem maior publicidade. Tanto Dominik quanto o cantor neozelandês Ryan, de 21 anos, seguem 151 uma perspectiva ainda mais radical, afirmando que a arte de rua deve representar uma cultura livre e grátis. Este último acrescenta que não gosta de vender CDs durante suas performances (uma prática comum), por ser uma forma de mídia ultrapassada. Ele afirma preferir “dar [sua] música de graça ou por alguma doação através de download na internet”, mas apenas caso o ouvinte ache que deva contribuir com algo. Atitudes como a de Ryan contribuem para desmistificar a ideia do artista de rua como ‘pedinte’ – predominante em muitas cidades, como no Rio de Janeiro – e apontam para uma ideologia alternativa IMAGEM 160: Cartaz do neozelandês Ryan cultivada pelos jovens, que infere na arte vista não durante sua performance musical na Alexanderplatz com os dizeres: “Olá! Eu sou como meio para o alcance de um status de Ryan da Nova Zelândia, viajando na e pela celebridade, mas como uma maneira de se Europa. Obrigado por escutar. Baixe meu EP compartilhar a cultura com o próximo. Cabe ressaltar de graça”. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. que grande parte dos entrevistados possuíam outras fontes de renda fixa (muitas vezes menos lucrativas que a arte de rua). Byron, Nick e Dominik, por exemplo, são professores particulares de instrumentos musicais, sendo o primeiro formado em música por uma universidade alemã. Já Hanna trabalha como guia turística. Ainda a respeito da distribuição livre da cultura, destacamos aqui o trabalho dos cineastas/produtores de vídeo Carlos (colombiano) e Christian (alemão), que juntos fundaram um projeto semelhante ao TBP, intitulado Open Stage Berlin121, cujo objetivo é contribuir para o fortalecimento de “uma economia paralela, não filtrada pela economia oficial da cidade de Berlim”. O Open Stage Berlin consiste em uma plataforma online que auxilia na divulgação de músicos de rua através da produção de vídeos de baixo custo, com a utilização de uma ou duas câmeras. Os artistas são escolhidos pelos fundadores do projeto e os vídeos são filmados nos espaços de Berlim representativos das canções selecionadas. Assim, é possível registrar qual é o tipo de música realmente existente no dia-a-dia da cidade, que muitas vezes se difere do estilo Techno ou eletrônico através dos quais sua imagem é internacionalmente vendida. Neste sentido, a plataforma funciona como um “mapa musical e interativo da cidade” ou como uma “crônica em vídeo da cena musical berlinense”. Ainda de acordo com Carlos e Christian, seu foco é na música de rua porque ela representa uma das modalidades artísticas mais móveis de todas: “é difícil transportar um quadro ou uma escultura, mas a música não necessita nem de instrumentos. Pode ser só uma voz, uma pessoa” 122. É curioso ressaltar que o escritório do projeto fica situado em outro antigo squat cultural da cidade, conhecido como RAW Tempel123, também na área contemplada pela operação urbana MediaSpree. Assim como os demais profissionais criativos da região, a continuidade das atividades dos fundadores do Open Stage Berlin pode ser ameaçada a qualquer momento. 121 Para mais informações ver: <http://www.openstageberlin.de>. Acesso em: 03 jan. 2015. 122 Para maiores reflexões a respeito da modalidade da música como arte de rua, ver Doumpa (2012). 123 Para o caso específico do RAW Tempel, ver Rostalski (2012). 152 A escolha da cidade de Berlim por parte dos artistas de rua muitas vezes está ligada à esta possibilidade de fazer arte de forma paralela ao mercado formal. Porém, mais do que isso, ela está conectada também à ambiência local. O duo musical neozelandês Charity Children, formado pelos ex-atores Eliot e Chloë, de 24 e 26 anos, respectivamente, afirmam que em seu país não existem oportunidades criativas comparáveis à Alemanha, especialmente a Berlim. O também neozelandês Ryan diz o mesmo, afirmando que, para escolher o lugar onde tocar na cidade, é necessário andar por ela, observar sua dinâmica, ver onde estão as pessoas. Ao seu ver, em Berlim, existem mais espaços abertos à cultura. Ademais, o centro de sua cidade natal fora destruído por um grande terremoto, impossibilitando atividades culturais no mesmo. Esta observação é interessante pois infere que fatores condicionantes da vida urbana, como desastres naturais ou o próprio clima, são determinantes também para este tipo de arte. Isto é reforçado pelos cineastas do Open Stage Berlin, especialmente pelo latino-americano Carlos: No inverno, a vida em Berlim é difícil. É muito frio, as pessoas saem menos de casa, há menos interação social. Um músico surge no metrô e parece que acontece um milagre. As pessoas se comunicam através da música. Ela muda o comportamento social (cineasta Carlos, em entrevista em 23 de maio de 2013). Outro ponto mencionado pelos entrevistados sobre esta cidade foi a presença de leis pouco restritivas e mais tolerantes com os artistas de rua, principalmente em comparação com outras metrópoles europeias, como Londres, em que cartazes são espalhados alertando sobre a proibição da prática de busking, especialmente nas áreas renovadas através de projetos urbanos, como é o caso da região de Southbank/Southwark – famosa frente marítima onde se situa o museu Tate Modern. Para Dawn, que permaneceu algum tempo na capital inglesa em função de seu trabalho com o TBP, isso reflete uma “privatização do espaço público”. IMAGENS 161-163: Diversos cartazes espalhados pela região de Southbank/Southwark, em Londres, proibem as performances de rua na região, sob o nome de ‘busking’. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 153 IMAGENS 164-165: À esquerda: cartaz da câmara municipal de Southbank/Southwark, em Londres, proibindo as performances de rua com a justificativa de “causar um incômodo para os residentes locais” e alertando sobre a possibilidade de processos legais e confiscação de bens em caso de obstrução da passagem de pedestres ou barulho excessivo. À direita: um policial apreende os instrumentos de artistas no bairro de Notting Hill em Londres. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Em Berlim, licenças legais são requeridas para práticas diversas no espaço público, como a venda de CDs na rua, o uso de amplificadores, o transporte de grandes instrumentos musicais e para performance dentro das estações de metrô. Apesar disso, muitas vezes elas são ignoradas. Por exemplo, a atividade dos artistas dentro dos vagões de transporte público é proibida, mas permanece sendo extremamente comum, não havendo punições consideráveis aos IMAGEM 166: Estátuas humanas imitando soldados de infratores. Ao que tudo indica, no entanto, guerra em frente ao Portão de Brandemburgo – certas modalidades de arte de rua começam banidas a partir de 2014 | FONTE: Claudia Seldin, 2013. a ser cada vez mais controladas em função do processo de ‘limpeza’ da cidade. Em abril de 2014, as autoridades berlinenses aprovaram uma lei para banir artistas de rua caracterizados como personagens de cinema e de TV, bem como estátuas humanas imitando soldados de guerra, em frente ao famoso Portão de Brandemburgo – um dos mais populares pontos turísticos da cidade (GANDER 2014). Músicos de rua, desenhistas e caricaturistas continuam sendo permitidos no local, levando a debates sobre até que ponto o poder público deveria ser responsável por definir que tipo de arte é acessível ao público ou não e onde. Enquanto a maior parte dos entrevistados acredita que deva haver algum tipo de medida legal que impeça que elementos como o barulho incomodem as vizinhanças, quase todos afirmam que as leis em vigor precisam ser revistas para considerar uma maior liberdade de uso do espaço público, como aponta Byron: Eu acredito que os métodos que se aplicam nas cidades, as leis, não são para atacar a música em si, mas para prevenir pedintes. Mas, ninguém é dono da rua e eu não sei se deveria haver esse tipo de restrição. O que eu acho é que a cidade tem que ter espaços para se expressar a música. Por 154 exemplo, em Berlim, você não pode tocar música [nas ruas] depois das 22h. Mas, em alguns lugares, esta cidade vive mais depois das 22h (músico equatoriano Byron, entrevistado em 24 de julho de 2013). IMAGEM 167: Território de culturas em movimento: os pontos preferidos de Berlim pelos artistas de rua: Mauerpark, Hackescher Markt, Alexanderplatz, Warschauer Straße, Bergmannstraße e Friedrichstraße. | FONTE: Google Earth (2014, original adaptado pela autora). Em se tratando da relação da cultura com o espaço público, podemos afirmar que as performances de rua em Berlim consistem em uma das mais interessantes formas de uso temporário de caráter cultural observadas na cidade e responsáveis pela sua imagem de subcultura (ver capítulo IV). Para melhor compreendê-las apoiamo-nos aqui nas considerações de Franck & Stevens (2007) a respeito da relevância para a cidade de espaços que abrigam atividades espontâneas, frequentemente não planejadas, e onde não existe necessariamente um “uso fixo”. Estes locais são tratados pelos autores como “espaços soltos”124 (p. 02). A existência de “espaços soltos” é possível através da atividade direta das pessoas – da ação humana –, bem como de sua criatividade para percebê-los e apreender o seu potencial, enxergando novas possibilidades para seu aproveitamento. Argumentamos que essa criatividade, que sempre existiu nos processos de produção e apropriação do espaço, é uma criatividade diferente daquela instrumentalizada e neutralizada nos discursos das políticas urbanas e culturais recentes, discutidas em capítulos anteriores. Ela reside na percepção da flexibilidade dos espaços, de novas formas de acessibilidade e de arranjo dos elementos físicos que o compõem. Utilizamos aqui uma tradução livre para o português do termo original empregado “loose spaces”, que faz uma referência direta ao título do livro de Robert Sommer de 1974 “Tight Spaces” (espaços apertados), em que ele analise a arquitetura de salas de aula de acordo com seu design (p. 02). Apontamos também referências para conceitos complementares sobre o espaço e suas possibilidades de uso, dentre eles: os “terrain vagues” de Solá-Morales (1995), as “terras de ninguém” de Grojin e Corijn (2005), os “espaços indeterminados” e “zonas livres” da “post-it city” de La Varra (2001) (apud FRANCK & STEVENS 2007, p. 08) e os “vazios urbanos” de Borde (2004, 2006). 124 155 IMAGENS 168-169: A banda de ritmos latinos do alemão Dominik modificou a dinâmica de uma estação de metrô em um dia chuvoso no distrito de Prenzlauer Berg. A quantidade de público agregado nos degraus de acesso às plataformas foi percebida através das câmeras de segurança e a polícia foi até o local. O público se recusou a sair e o show improvisado teve continuidade. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. Franck & Stevens (op. cit.) explicam o conceito de “soltura” (looseness) associando-o, principalmente aos espaços públicos e ao ar livre (em oposição aos mais restritivos – fechados e privados), onde as expectativas são mais fluidas, onde a acessibilidade é comparativamente maior e onde há liberdade relativa de se exercer uma variedade de atividades (p. 02-03). Para eles, esses são os “espaços de respiração da cidade” (p. 03), que oferecem oportunidades de exploração e descoberta, de encontro com o inesperado, com o não regulado, com o espontâneo e com o risco. A maior parte das atividades ligadas à soltura implicam em formas de lazer, de entretenimento, de autoexpressão, de expressão política, de reflexão ou de interação social, de modo que se encontram fora da rotina diária e estável das pessoas. Para o duo musical Eliott e Chloë, a vida nas grandes cidades pode ser extremamente solitária, e, neste sentido, a presença inesperada do artista nas ruas propicia a criação de novas conexões humanas, de momentos especiais, de interrupção de fluxos de pessoas em nome do envolvimento emocional. Segundo eles, tanto o artista quanto o espectador têm que se expor – um para conseguir uma reação e o outro para se mostrar movido. Neste sentido, a atitude blasé típica da modernidade, observada por Simmel, Harvey e Bauman (conforme proferido no capítulo I), é neutralizada. O espaço solto constituiria, neste sentido, uma esfera além do ambiente controlado e homogêneo de lazer e consumo das cidades contemporâneas, onde nada imprevisível deve ocorrer. Na maior parte das vezes, as atividades que fazem do espaço solto são temporárias, durem elas alguns segundos ou alguns anos. Mesmo que sejam mais duradouras, frequentemente ocorrem sem sanção oficial ou segurança de continuidade e permanência. Por isso, muitas vezes adquirem caráter transgressivo, indo contra as normas e leis aceitas e/ou socialmente estabelecidas. Através da diversidade e da multiplicidade de atores urbanos que ele convida, o espaço solto nutre uma autenticidade na esfera urbana, sustentando práticas locais e permitindo que certas identidades e culturas floresçam (ibidem, p. 20-21). Neste sentido, a arte de rua no espaço solto proporciona à cidade vitalidade, contribuindo para que as pessoas tenham a possibilidade de relaxar, observar, protestar ou celebrar. Ela permite a vivência para além de uma realidade em que há um aumento de privatização da terra, mercantilização e sanitização do espaço público da cidade. Ela contribui para o encontro dos 156 diferentes, o contato com o outro, para o exercício do direito à participação e apropriação do espaço, do direito à cidade. IMAGENS 170-171: Reações diversas e não planejadas à arte de rua no Mauerpark. À direita: uma cantora se apresenta sem sucesso. À esquerda: no mesmo dia e horário, a alguns metros de distância, a palhaça e dançarina francesa Salomé atrai um imenso público, que lota os degraus do parque formando uma relação improvisada entre artista e plateia. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 172-173: À direita: um magico de rua se apresenta próximo ao parque Tempelhofer Feld em um fim de semana, no distrito de Neukölln. À esquerda: o músico australiano Jackson se apresenta no primeiro dia após o fim do rigoroso inverno de 2013 no Mauerpark em Prenzlauer Berg. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. No caso de Berlim, a arte de rua consiste em um exemplo de como a cultura pode adquirir um papel diferente de quando é instrumentalizada dentro dos discursos de políticas públicas. Não é um papel predeterminado ou planejado. Ao invés de ser incorporada de forma selecionada e segregante em espaços pré-delimitados e visando o desenvolvimento da indústria criativa, como ocorre no caso do MediaSpree e do Holzmarkt, ela surge espontaneamente, nas ruas, a partir de coletividades temporárias. Mais do que isso, ela representa uma atividade que carrega em si a alta mobilidade característica da “modernidade líquida” pregada por Bauman (2001 [2000]), porém sendo dotada também do potencial de criar novas sociabilidades e novas relações econômicas em nível micro, apontando para um raio de esperança em meio à fluidez da cultura contemporânea. 157 CONSIDERAÇÕES FINAIS [...] a palavra ‘criativo’ tem sido removida do domínio da realização e aplicada inteiramente a outro domínio. O que significa agora é uma atitude voltada para o indivíduo próprio; e não pertence mais à estética, mas à psicologia pop (ZUKIN 1982, p. 98). Alguns habitantes do mundo estão em movimento; para os demais, é o mundo que se recusa a ficar parado (BAUMAN 2001 [2000], p. 70). No decorrer desta tese, tratamos da transição do paradigma urbano da ‘capital de cultura’ para o da ‘cidade criativa’, constando que os diferentes status almejados pelas cidades contemporâneas se sobrepõem como melhor convir para a formação de uma imagem vendável e competitiva. Nosso objetivo aqui não é traçar conclusões fechadas a respeito do nosso objeto, mas sim abrir questionamentos e debates sobre os significados, os processos, as consequências e as resistências envolvidas em um tema extremamente atual. Sobre a relação Cidade-Cultura Inicialmente, contextualizamos o momento contemporâneo de “pós-modernidade” (HARVEY 2011 [1989b]) ou “modernidade líquida” (BAUMAN 2001 [2000]), em que intensas e rápidas transformações são percebidas, principalmente em se tratando das noções de espaço e tempo. Vimos como as distâncias vêm se encurtando em função de novas tecnologias e como o espaço passa a ser pensado estrategicamente pelos administradores e planejadores urbanos, visando favorecer os fluxos de capital em um mundo cada vez mais interconectado. Enfatizamos como, desde o fim dos anos 1970, devido aos processos de desindustrialização e da revolução contracultural, as relações entre capital e consumo, espaço e poder, cidade e cultura e indivíduo e coletivo passaram a se transformar consideravelmente. Com o fortalecimento do “poder simbólico” (BOURDIEU 2011 [1989]), do consumo de bens imateriais, da globalização e da competição entre cidades, estas passaram a ser pensadas como mercadorias, despertando uma tendência internacional de criação de imagens urbanas capazes de atrair investimentos e turistas. O que observamos aqui é que, conforme os paradigmas e discursos urbanos se transformam, transforma-se também o próprio conceito de cultura – hoje cada vez mais instrumentalizado e dotado de um novo papel: o de ferramenta potencial para a acumulação do capital. A cultura não remete mais simplesmente ao ato de fazer arte ou às tradições e modos de vida, passando a figurar como um elemento essencial no planejamento urbano estratégico, e, mais precisamente, em projetos pontuais, através do desenho de espaços e equipamentos culturais por nomes célebres da arquitetura em regiões de interesse para o mercado imobiliário. A este fenômeno chamamos aqui de ‘culturalização’ da cidade. Durante a década de 1990, cidades europeias como Paris, Berlim e, 158 principalmente Barcelona e Bilbao, se tornaram modelos deste fenômeno, que se expandiu para outros pontos do mundo. É necessário ressaltar, no entanto, que o estudo separado destes locais aponta que, apesar de global, a ‘culturalização’ do espaço gera processos, desenvolvimentos e consequências específicas em cada lugar, variando de acordo com os contextos políticos, econômicos e sociais específicos e com as singularidades do tecido urbano. O caso de Berlim – uma ‘cidade-laboratório de experimentação urbana’ – ilustra bem este argumento, uma vez que ali a incorporação da cultura nos projetos de revitalização urbana seguiu um acontecimento muito particular: a Reunificação da Alemanha, marcada pela a queda do Muro de Berlim. A cidade, antes dividida e agora reunificada, tinha sua paisagem marcada por vazios urbanos e espaços tidos como incompatíveis com seu novo status de potencial poder europeu. Assim, as intenções para sua renovação não foram somente econômicas, mas também políticas. Ademais, a adoção do modelo de ‘culturalização’ ali culminou, além das consequências mais comuns de espetacularização e gentrificação, em um processo muito específico de ocidentalização da antiga população do Leste, neutralizando ou mesmo banalizando estilos de vida não condizentes com seu novo status de ‘capital de cultura’ global (e capitalista). O exemplo de Berlim prova, portanto, que precisamos ter cuidado, não apenas como profissionais responsáveis pelo desenho da cidade no momento de importar fórmulas de projeto, mas também como acadêmicos que estudam tendências internacionais de forma generalizada, sem considerar as singularidades dos processos de sua aplicação. Considerando a importância da relação cidade-cultura para nosso campo científico e das transformações, dos significados e das onsequências resultantes da culturalização da cidade, reforçamos a necessidade de refletir sobre novas maneiras de pensar o espaço, bem como sobre as atuais soluções e decisões de planejamento urbano – extremamente características do sistema neoliberal – que vêm gerando protestos dos cidadãos, claramente contrários aos projetos de grande escala que beneficiam apenas uma pequena parcela da população. Sobre o paradigma da criatividade Vimos, através desta tese, que, em função das muitas consequências negativas conflagradas através da perseguição do paradigma urbano de ‘capital de cultura’, houve um certo esgotamento do modelo. Este fato pareado à crescente importância dos setores do conhecimento, dos serviços especializados e da tecnologia para o fortalecimento da economia, fez surgir um novo paradigma – o da ‘cidade criativa’. Há muitas considerações a se fazer a respeito deste conceito, que ganha cada vez mais atenção na agenda das políticas públicas. Primeiramente é necessário esclarecer que a ‘cidade criativa’ não anula a ‘capital de cultura’. Elas não são opostas, mas sim complementares, sobrepostas de acordo com as especificidades de cada local. Neste sentido, a ‘cidade criativa’ consiste em uma espécie de repaginação do paradigma urbano anterior. Ela ainda é uma cidade extremamente rica em cultura, porém da cultura que se mostra lucrativa no momento. E o que o caso de Berlim esclarece é que a acumulação do capital do século XXI não ocorre mais prioritariamente através da cultura do espetáculo, mas sim da apropriação de estilos de vida subculturais, ou como coloca Sharon Zukin (2010), através da ideia de “autenticidade”. Esta noção é essencial na atualidade pois, hoje, o criativo é vendido como autêntico; e a opinião sobre o que é autêntico é definida por um grupo seleto e pode variar e se renovar constantemente, contribuindo, no caso da cidade, para infindáveis imagens urbanas mercantilizadas como for mais propício. 159 Esta constatação nos leva a um ponto importante a ser debatido, que diz respeito ao conceito de criatividade propriamente dito e à sua aplicação atual. Como já mencionamos, a noção de criatividade não é nada nova, especialmente em se tratando da forma de pensar a cidade. Hoje em dia, no entanto, a criatividade – como conceito – apresenta-se mais como um grande ‘guardachuva’ que abriga todas as atividades capazes de movimentar a economia. Isso porque, com a transição de importância da produção de bens manufaturados para a de tecnologia, cultura, informação e conhecimento, qualquer atividade que inove, recicle e facilite o fluxo do capital tornase bem-vinda ao mercado. Seu grande ‘guarda-chuva’ abriga, portanto, os mais diversos setores da economia e os detentores do capital podem ditar quais deverão ser acrescentados ou eliminados na definição da ‘indústria criativa’ com extrema rapidez e facilidade. Assim, a criatividade, que deveria ser a antítese do paradigma – autêntica, original, espontânea – é instrumentalizada e transformada em modelo de cidade, pré-definida de acordo com os interesses de poucos. Neste sentido, observamos uma perversidade que acompanha o discurso (por vezes bruscamente imposto) da ‘cidade criativa’ – um paradigma urbano em que apenas alguns dos habitantes são convidados a participar do processo de construção da cidade. Isso é claramente percebido através da igualmente perversa “teoria da classe criativa” de Richard Florida (2005, 2011 [2002]), que agrega profissionais muito distintos em uma única categoria, simplesmente pela característica comum de serem trabalhadores dos setores econômicos que mais produzem lucro na época contemporânea. Sob o rótulo da “classe criativa”, a obra de Florida – socialmente cega – acaba contribuindo não apenas para instrumentalizar a criatividade como conceito, mas também para neutralizá-la, banalizá-la e, mais notadamente, esvaziá-la de seu significado. E talvez mais ironicamente, apesar desta característica de englobar tudo que gere lucro, ela acaba sendo extremamente exclusivista, pois deixa de lado todos os que não fazem parte dos estilos de vida e condições urbanas ideais por ele descritos e que são, quase sempre, inatingíveis. Em outras palavras, nenhum profissional ou cidade se encaixa perfeitamente nas expectativas descritas por Florida. E, assim, sua teoria acaba segregando mais do que sendo tolerante como prega, neutralizando diferenças ao invés de aceitá-las. Seu status de ‘tese científica’ realizada através de pesquisa acadêmica duvidosa e de métodos polêmicos, acaba servindo apenas para legitimar discursos que selecionam que tipo de arte e cultura é produzida na cidade, por quem e para quem, servindo, no fundo, como um instrumento de controle para o papel transformador da cultura. Como profere Rosler (2011a), Florida surge como um pivô no que aqui consideramos como uma segunda fase do fenômeno de ‘culturalização’ do espaço urbano, ditando que o que importa para as cidades não é mais “a arte ou as pessoas que a produzem, mas a aparência de que [ela] está sendo produzida em um local próximo” (p. 03, grifos meus). A esta constatação soma-se a de Harvey (2011 [1989b]) e Krätke (2013 [2004]) sobre o potencial poder destrutivo da criatividade. Se o primeiro já apontava a “destruição criativa” como uma parte essencial da modernidade, que precisa destruir bases antigas para construir novas; o segundo afirma que: [...] a criatividade pode ser direcionada para esforços social e economicamente produtivos, bem como para atividades destrutivas e social e economicamente negativas. Dentro de uma cidade ou região em particular, os dois extremos da ação criativa podem ser seguidos ao mesmo tempo por diferentes atores sociais. O resultado dependerá do equilíbrio dessas forças (KRÄTKE 2013 [2004]), p. 152). 160 Sobre Berlim – vitrine da transição de paradigmas urbanos A face destrutiva da criatividade no momento contemporâneo é evidenciada quando analisamos Berlim como uma vitrine para a transição dos paradigmas urbanos aqui analisados e como uma ‘cidade criativa’ em estado avançado de consolidação. Através desta vitrine, percebemos que a adoção de políticas que favorecem a indústria criativa vem contribuindo para fortalecer a polarização e a segregação espacial, bem como as desigualdades entre os locais que aglomeram os setores econômicos em voga e os demais. Em Berlim, as regiões onde se encontram o cluster da indústria de mídia (no distrito de Prenzlauer Berg), o cluster de museus (em Mitte) e o cluster da música eletrônica (ao longo do Rio Spree em Friedrichshain-Kreuzberg) são aquelas que recebem os investimentos das parcerias entre poder público e privado, renegando as demais regiões da cidade, onde reside a maior parte da população local. Isso comprova as críticas à teoria de Florida, que ressaltam a existência de mais “perdedores” do que “vencedores econômicos” (FLORIDA 2005) na cidade criativa. O que podemos concluir através de Berlim – ‘cidade criativa’ – é que ela permanece pobre, com sua dívida pública superior a 60 bilhões de euros, suas grandes obras não acabadas e seus milhares de metros quadrados vazios de escritórios e apartamentos de luxo construídos para a “classe criativa”. Porém, ela não é mais tão sexy, uma vez que o que a tornava interessante e autêntica era sua história subcultural, hoje apropriada e embalada superficialmente sob o rótulo da criatividade. A apropriação de seus espaços ocupados, usos temporários e squats e sua dilapidação em um modelo limpo e vendável vêm sendo alvo de críticas não apenas por parte da população local, mas também pelos visitantes, que começam a se decepcionar ao encontrar uma metrópole global semelhante às demais ao invés de uma cidade diferente – meca da cultura alternativa, conforme prometido pelo seu marketing urbano. Cada vez mais é possível observar protestos, na própria paisagem urbana berlinense, contra a mercantilização da imagem da cidade. IMAGENS 174-175: À esquerda: “Berlim à venda” escrito em um poste. À direita: “A profissionalização está matando a arte” no muro por onde passa o S-Bahn. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. 161 IMAGEM 176: Outdoor de empreendimento imobiliário na rua Köpenickerstraße, próximo ao Rio Spree, com a pichação “Capitalismo é um crime”. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. IMAGEM 177: Protesto contra a remoção de um pedaço do antigo Muro de Berlim transformado em galeria de grafite a céu aberto sob o nome de East Side Gallery no âmbito do plano urbano MediaSpree. | FONTE: NBC News (2013). Se nos anos 1990, a Berlim pré-‘capital de cultura’ era tomada por um sentimento de euforia, de liberdade e por uma esperança de mudança seguindo décadas de história turbulenta e repressora; nos últimos anos este sentimento tem sido abafado. Os nossos estudos de caso provam que a ‘culturalização’ da capital alemã e, mais recentemente, a busca do status criativo, vem prejudicando e neutralizando a ação de muitos dos atores que contribuem para sua autenticidade. Nos espaços ameaçados pelo MediaSpree, bem como na Kunsthaus Tacheles, o uso planejado pelos 162 novos empreendimentos deverá ser obrigatoriamente criativo ou cultural 125, porém as atividades antes existentes já cumpriam com estes usos, nos levando a indagar o porquê da sua expulsão. A resposta mais pertinente remete à necessidade de embelezamento das áreas tidas como ‘feias’, bem como à tendência do Estado em definir, junto com seus parceiros detentores do capital, qual é o tipo de cultura que deverá ser incluída na imagem oficial de Berlim. Remete também à uma necessidade de investimentos de capital nos setores rentáveis da economia berlinense no momento – em especial o cultural e o imobiliário, pois seus gestores urbanos sabem que esta cidade não conseguirá trazer de Frankfurt os setores tradicionais da indústria, já consolidados. Este “alisamento”126 dos espaços autênticos berlinenses remete também a uma outra consideração importante propiciada através da pesquisa realizada: o crescente papel da especulação imobiliária dentro do planejamento urbano. Os estudos de caso provam como a subcultura, o uso temporário e os espaços improvisados berlinenses vêm sendo incentivados para elevar o valor de sítios e de terrenos deteriorados, vazios ou em desuso. Isso porque, apesar dos usuários temporários não possuírem capital para investir, eles têm iniciativa e a capacidade de reutilizar materiais e espaços, enxergando potencial onde outros não o veem. Além disso, como apontam Oswalt, Misselwitz & Overmeyer (2007) da pesquisa Urban Catalyst, eles possuem a real criatividade para transpassar obstáculos e se ajudar mutuamente para converter o existente no desejado, modelando a imagem de um lugar através de trabalho não remunerado. Eles são espontâneos, são pioneiros e utilizam-se apenas de sua força de vontade, da arte e de atividades autossustentáveis para transformar o banal e o degradado em algo positivo e que traz vida para a cidade. O que observamos em Berlim hoje é a apropriação destes usos verdadeiramente criativos por atores externos, que enxergam neles a possibilidade de exploração visando o lucro. Esta apropriação dos usos temporários pelo mercado imobiliário nos faz perceber que o discurso que norteia o paradigma da ‘cidade criativa’ permanece, em sua essência, estratégico, porém hoje com um foco nos ‘atores criativos’ que aumentam os valores de terra em certas localizações de interesse da cidade. Em Berlim, no entanto, a especulação imobiliária não atinge apenas os usos temporários, havendo uma obsessão deste mercado também em ocupar e preencher os vazios urbanos com uma culturapor vezes ‘superficial’, desconsiderando que, nesta cidade, eles poderiam ter um significado muito maior sendo deixados como vazios – representantes da história urbana local. O caso do referendo popular em que se votou contra qualquer tipo de construção no antigo Aeroporto Tempelhof prova que a população berlinense aprecia seus espaços livres e não planejados, para o uso espontâneo. Isso é percebido também através do estudo de caso dos artistas de rua, que representam uma outra forma de resistência inovadora à instrumentalização da cultura dentro das políticas públicas, atuando à margem do mercado e se movendo pela cidade. Na Berlim Criativa do século XXI, a multiplicação de atividades efêmeras nas ruas – festivais autoproduzidos de circo, músicos itinerantes, grafiteiros, entre outros – consiste em uma das maiores respostas à mercantilização da cultura e à institucionalização dos espaços onde ela é produzida. O movimento de artistas de rua pela cidade apresenta-se como uma alternativa de 125 No caso da Kunsthaus Tacheles o uso cultural é obrigatório em função do tombamento e no caso do MediaSpree ele é previsto no plano urbano. 126 Termo usado por Ana Clara Torres Ribeiro (2004) para se remeter às revitalizações que preservam, higienizam e estetizam o espaço e “reduzem a possibilidade de diálogo criador e criativo entre gerações e culturas” (p. 98). 163 sobrevivência de modos culturais originais, o que, curiosamente, acaba por remeter a antigas relações entre cidade e cultura, em que o contato da população com a arte acontecia diretamente no espaço público através do teatro mambembe, dos músicos itinerantes e semelhantes. Lembramos aqui que, em sua própria descrição sobre a “cidade criativa”, Landry e Bianchini (1995) diziam que as cidades vivenciam momentos mais “reais” através de feiras e festivais de rua que se destacam das atividades cotidianas e exprimem a vitalidade de momentos não-planejados, a criatividade e a espontaneidade inerentes à vida urbana (p. 23-24). Sobre as resistências urbanas Nossa crença é que esta mobilidade da arte e cultura pela cidade reflete a realidade contemporânea, que impulsiona o desenraizamento das práticas artísticas em relação ao espaço urbano. Essa transformação na relação cidade-cultura e na própria definição de cultura conforme surgem e se sobrepõem novos paradigmas urbanos nos levam a considerar a necessidade de revisão das políticas públicas para que propiciem e incentivem maior flexibilidade dos usos do espaço através de ações espontâneas e não planejadas e que enxerguem a cultura como mais do que um instrumento de estratégia e de criação de imagens de cidade para reforçar seu status e sua inserção global. Consideramos que deve haver maior articulação entre políticas urbanas e culturais, que orientem e incentivem os modos como o indivíduo se relacionará social e culturalmente com o espaço. Estas políticas urbano-culturais devem ser de proximidade e reconhecimento das diferenças, valorizando a pluralidade dos atores em sua espacialidade. Devem ser calcadas numa cultura participativa, visando o desenvolvimento humano e atentando para processos já existentes de produção cultural e transformação urbana, uma vez que as revitalizações efetivas só ocorrem quando há uma apropriação popular e participativa no espaço público urbano e quando há o entendimento de que este nunca será totalmente planejado, controlado e predeterminado, devendo ser, no entanto, incentivado e estimulado, como proferem Vaz e Jacques (2006). Em suma, as políticas urbano-culturais e o planejamento urbano nelas embutido devem ter como papel a promoção de uma vida social mais democrática, sendo capazes de converter os espaços públicos em lugares de maior participação, de heterogeneidade cultural e social, de afirmação da diversidade de comportamentos – espaços de cidadania disputada, onde se observam lutas em torno do reconhecimento dos direitos e identidades de diferentes grupos sociais. Algumas destas lutas estão presentes em nossos estudos de caso, que configuram diferentes níveis e discursos de resistência às estratégias urbano-culturais impostas na contemporaneidade. Para compreendê-las, nos remetemos ao livro “Rebel Cities” (2012) de David Harvey, em que o geógrafo enfatiza a importância de se investigar os novos movimentos de reivindicação ao direito à cidade127. Sob a influência direta do filósofo francês Henri Lefebvre, Harvey demanda que as pessoas enxerguem claramente o contexto de crise da época em que se encontram e criem realidades urbanas alternativas, menos alienadas e mais significativas, aberta aos encontros (tanto os agradáveis quanto os amedrontadores). Segundo Harvey, a reivindicação atual deste direito Em “Rebel Cities” (2012), Harvey explica o contexto social e político vivenciado por Lefebvre quando este escreveu “O Direito à Cidade” (1968). Ele explica a importância de Lefebvre ter publicado seu livro pouco antes da “irrupção” de 1968, pois ele retrata as exatas condições em que tal irrupção foi não apenas possível, mas inevitável. Ao invés de aplicar diretamente as ideias de Lefebvre ao contexto atual, como parece corriqueiro hoje em dia, o geógrafo britânico se preocupa em explicar o quadro de crise contemporânea de acordo com a fase corrente do capitalismo. 127 164 implica na retomada radical das rédeas dos processos de urbanização e da maneira como nossas cidades são “feitas e refeitas” (p. 05). Para ele, a reivindicação do direito à cidade emerge das ruas, especialmente em tempos de desespero (como o conflagrado após a crise econômica de 2008), e necessita assumir um caráter que valorize não o direito individual, mas o direito coletivo à cidade. Neste sentido, os movimentos sociais devem buscar a superação dos isolamentos e das renovações urbanas, visando atingir uma imagem social diferente daquela que nos é dada pelos seus atuais administradores, apoiados pelo capital corporativo e por um Estado dotado de mente empresarial (p. 16): O direito à cidade é constituído pelo estabelecimento do controle democrático sobre a distribuição dos excedentes através da urbanização, [...] [porém] todo o projeto neoliberal dos últimos trinta anos tem sido direcionado para a privatização do controle dos excedentes (HARVEY 2012, p. 23) De acordo com Harvey (2012), as transformações nas imagens das cidades têm seguido as grandes crises econômicas mundiais e vêm sendo acompanhadas de revoltas e protestos igualmente frequentes 128. Para ele, os recentes protestos urbanos evidenciados em Londres, Istambul, Rio de Janeiro e em diversas outras grandes cidades, resultam de uma combinação dos sentimentos de perda provocados pelas demolições de marcos históricos, pelas renovações, pela marginalização, pela opressão policial e pela negligência aos desfavorecidos (ibidem, p. x-xi). Isso é muito percebido no contexto berlinense dos movimentos MediaSpree Versenken! e MegaSpree e na luta por permanência dos artistas da Kunsthaus Tacheles – todos claramente insatisfeitos com as direções do planejamento urbano na cidade, com os efeitos da venda da imagem berlinense e com a perseguição de uma ideia de economia criativa, que visa interesses particulares, falhando em propiciar uma fruição mais justa e igual da cidade por todos os seus habitantes e reforçando as disparidades e contradições urbanas já existentes. Sobre as contradições da cidade criativa A constatação destas disparidades urbanas nos levam a concluir que a busca do paradigma da ‘cidade criativa’ não surge em locais que funcionam como “vencedores econômicos”, mas sim naqueles que ainda não atingiram seu auge, como é o caso de Berlim e de outras cidades que tiveram que lidar, no passado recente, com crises e colapsos políticos e/ou financeiros. Em outras palavras, no que diz respeito ao novo paradigma urbano, não podemos mais falar nas ‘capitais de cultura’ dos anos 1980 e 1990 – centros que concentravam poder administrativo, econômico e político, representando destinos turísticos consagrados129 –, porque trata-se de “cidades de 128 Harvey ressalta que a revolta contracultura de 1968 ocorreu juntamente a um contexto de crise, que teria seu auge em 1973, e que o momento de protestos urbanos atual tem como uma de suas razões a crise de 2008 (2012, p. 11). Assim, de certo modo, as crises econômicas indicam uma exaustão do modelo anterior através dos qual a cidade era pensada. 129 A pontamos aqui o caso de Bilbao como a exceção que comprova a regra, ressaltando que o aparente sucesso da ‘culturalização’ desta “cidade de segundo escalão” durante os anos 1990 foi, em grande parte, 165 segundo escalão” (ROSLER 2011a). A própria lista da Rede de Cidades Criativas da UNESCO deixa transparecer que as ‘cidades criativas’ são cidades com economias instáveis – muitas delas pouco conhecidas no cenário ocidental e em países em desenvolvimento – a procura de seu lugar na rede global. Neste sentido, apontamos que a ‘cidade criativa’ é uma cidade extremamente contraditória em sua essência, carregando consigo a ambiguidade e a complexidade que, segundo Bauman (2011, 2012 [1999]), caracterizam a época contemporânea “líquida”. Ressaltamos aqui algumas razões que provam essa característica: a primeira refere-se ao fato deste paradigma ser apresentado pelos gestores urbanos como uma solução econômica milagrosa emblemática do mundo do século XXI, mas que se concentra em cidades que passam por contextos de profunda crise. Ademais, a aglomeração dos profissionais internacionais que tanto se deseja captar hoje visando o desenvolvimento criativo também ocorre em virtude de colapsos financeiros ou falta de oportunidades em suas cidades de origem, deixando clara a dicotomia entre crise e prosperidade envolvida na ‘cidade criativa’. A segunda razão, muito perceptível através dos estudos de caso berlinenses, diz respeito ao duplo papel do artista (tanto na ‘capital de cultura’ quanto na ‘cidade criativa’) como agente e vítima dos processos de transformação urbana e gentrificação, conflagrados em virtude da instrumentalização e mercantilização da cultura e da criatividade nas políticas urbanas. Isso é especialmente forte em se tratando dos artistas que possuem rendas mais baixas e não têm condições de arcar com o aumento dos valores de alugueis de seus estúdios e ateliês ou que não dispõem ou conhecem os mecanismos existentes para fazer valer seus direitos. No caso da Kunsthaus Tacheles, e mais especificamente dos artistas squatters do seu pátio externo em 2013, havia uma grande consciência deste duplo papel, porém muitos deles se sentiam impotentes para reivindicar a propriedade da terra junto ao poder público em função do seu status de imigrantes. Temendo ficar sem espaços para praticar suas atividades, muitos estavam dispostos a compactuar conscientemente com o processo de ‘culturalização’ de outras regiões mal vistas de Berlim 130, mesmo cientes de que seriam novamente expulsos após o fim dos curtos contratos em função da sua valorização imobiliária. Apontamos aqui para a necessidade de uma maior conscientização por parte dos próprios artistas do seu papel influente na cidade, não se deixando cooptar pelos discursos que o instrumentalizam como fonte de lucro para terceiros. Isso nos leva à terceira razão que prova a contradição da ‘cidade criativa’: o fato de que a “classe criativa” que a sustenta é a que mais se organiza em movimentos de resistência aos projetos urbanos criados em seu nome. Em Berlim, onde há uma forte tradição de reivindicação social por questões urbanas e de participação da população no planejamento da cidade, isto é muito claro. Tendo aprendido com os recentes escândalos financeiros ligados ao mercado imobiliário e aos grandes projetos pós-reunificação, os profissionais criativos parecem mais cientes e atentos para os discursos políticos que apresentam certas intervenções como soluções milagrosas para a cidade, ignorando problemas urbanos e disparidades latentes. Desde o início da década de 2010, a responsável pela adoção de modelos semelhantes em outras cidades de países em desenvolvimento que desconsideravam a excepcionalidade de seu caso. 130 Como o distrito de Marzahn, famoso pela intolerância e pela concentração de neonazistas e de cujos gestores procuram avidamente uma renovação da imagem; ou mesmo o caso do centro cultural Neu West Berlin na rua Köpenickerstraße, que é o alvo recente de diversos empreendimentos imobiliários, já havendo data para a saída dos artistas em março de 2015. 166 população berlinense passou a se organizar e a utilizar os instrumentos políticos disponíveis para impor seus reais desejos, evitar despejos e protestar contra um possível aumento de sua já imensa dívida pública. Foi assim com o MediaSpree (mesmo que seu futuro hoje seja incerto), com os projetos para o antigo aeroporto Tempelhof e, ao que tudo indica, o será também com o Mauerpark – uma região marcada pelo uso temporário e onde há projetos para construção de diversos apartamentos de luxo. Estes exemplos provam que a ‘cidade criativa’ envolve movimentos de ação e reação constante, de experimentações urbanas, sucesso e fracasso. Ainda sobre as contradições inerentes ao paradigma da ‘cidade criativa’, apontamos que, em função da indústria criativa ser completamente dependente de autenticidade e de novas tendências de inovação, há de se considerar que a ‘cidade criativa’ em voga em cada momento esteja sempre em transição. Assim, se Berlim hoje representa o destino mais almejado pelos jovens criativos devido à sua efervesceste cena cool e subcultural, é provável que, em breve, uma nova cidade tome o seu lugar, substituindo-a da mesma forma que locais como Nova York e Londres foram por ela substituídas. Neste sentido, cabe indagar: o que será, no futuro próximo, de uma cidade como Berlim, que hoje aposta todas as suas cartas (e todo o seu futuro desenvolvimento econômico) em um modelo fadado a ser constantemente superado? O que será de Berlim com suas crescentes desigualdades e polarização quando a classe criativa não a desejar consumir mais e se mudar para o próximo destino? E qual será este próximo destino? Estas perguntas nos levam a questionar também a perseguição do status de ‘cidade criativa’ no Rio de Janeiro, já que não podemos ignorar que esta tese é escrita a partir da perspectiva de alguém que tem a vivência da cidade carioca. O Rio de Janeiro, como Berlim, também perdeu importância econômica no cenário nacional durante o século XX com a passagem da capital para Brasília e seus políticos e administradores vêm se agarrando nas últimas duas décadas na instrumentalização da cultura para achar seu lugar na rede mundial. Os gestores urbanos cariocas hoje começam a inserir o conceito de criatividade em seus discursos, porém ainda realizando intervenções urbanas mais características do paradigma anterior, como a adoção de arquiteturas de grife e a realização de megaeventos esportivos (como a Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016). Se na capital alemã, onde há maiores provisões por parte do Estado, as recentes políticas urbanas de incentivo à indústria criativa vêm intensificando as disparidades sociais e causando polarização espacial, nos indagamos quais serão os efeitos do desenvolvimento destas políticas rumo à ‘cidade criativa’ em um contexto onde as desigualdades são ainda profundas, como o carioca. Estas perguntas não possuem respostas neste momento. Mais do que isso, elas nos levam a questionar e refletir sobre a possibilidade de continuidade do próprio paradigma da ‘cidade criativa’ em uma época de “modernidade líquida”, em que tudo é efêmero e passageiro e em que os interesses do capital levam a constantes revisões dos discursos que norteiam o planejamento urbano. É provável que, assim como o paradigma da ‘capital de cultura’ e o da ‘cidade industrial’ antes desta, a ‘cidade criativa’ não dure muito e seja logo substituída por um novo modelo ideal de cidade – igualmente complexo e contraditório. Isso porque vivenciamos uma era em que as imagens urbanas se transformam tão rápida e intensamente, que se torna cada vez mais difícil, para nós mesmos, compreender qual é a identidade da cidade onde vivemos, da cidade que visitamos. Assim, em meio è frenética mudança dos tempos, nos indagamos – como sugere a profética e provocadora frase grafitada no muro da antiga casa de arte Tacheles: Quão longo é o agora (how long is now)? 167 FONTES DE REFERÊNCIA 6.1 Principais ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. The Culture Industry: Enlightenment as Mass Deception. In: DURING, S. The Cultural Studies Reader. Londres: Routledge, 1993 [1943], p. 29-48. ALLON, F. Ghosts of the Open City. Space and Culture, Sage, 16 (3), p. 288-305, jun. 2013. AMT FÜR STATISTIK BERLIN-BRANDENBURG. Die kleine Berlin-Statistik 2013. Berlin: Amt für Statistik Berlin-Brandenburg, fev. 2014. Disponível em: <http://www.statistik-berlinbrandenburg.de>. Acesso em: 28 nov. 2014. ARANTES, O. B. F. Uma Estratégia Fatal: A Cultura nas Novas Gestões Urbanas. In: ______; VAINER, C.; MARICATO, E. (Ed.). A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando Consensos. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2002 [2000], p. 11-74. ______. Berlim e Barcelona: Duas Imagens Estratégicas. 2. ed. 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Produção: ______. ; Dana Goldenberg. Berlim: Inconstant Becoming, 2014. 1 DVD (93 min), cor. UNVERWÜSTLICH - Die Geschichte des Kunsthauses Tacheles. Direção / Produção: Falko Seidel. Berlim: Open Frames / Berlin 21, 2012. 1 DVD (104 min), cor. 6.4 Websites da Internet BERLIN ONLINE STADTPORTAL GmbH. Berlin.de - Das offizielle Hauptstadtportal. Disponível em: <http://www.berlin.de>. Acesso em: 13 jun. 2014. BÜRGERBEGEHREN SPREEUFER FÜR ALLE. Disponível em: <http://www.spreeufer-fueralle.de/Verh.html>. Acesso em: 22 jan. 2015. COMO TUDO FUNCIONA. A construção do Muro de Berlim: o auge da Guerra Fria, 2009. Disponível em: <http://pessoas.hsw.uol.com.br/muro-de-berlim1.htm>. Acesso em: 25 maio 2014. DICIONÁRIO AURÉLIO ONLINE. Disponível em: <http://www.dicionariodoaurelio.com/>. Acesso em: 14 nov. 2014. EUROPEAN COMISSION. European Capitals of Culture. Disponível em: <http://ec.europa.eu/culture/tools/actions/capitals-culture_en.htm>. Acesso em: 07 dez. 2014. HOLZMARKT. 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Acesso em 28 nov. 2014. 184 ANEXOS Número Título Página 01 Cidades que receberam título de “cidade / capital de cultura europeia” 186 02 Novo Berliner Schloss – Humboldtforum (construção / projeto) 198 03 Aeroporto de Brandemburgo 201 04 Estatísticas de Berlim 202 05 Capa do nº 115 da Revista Exberliner 205 06 MediaSpree em 2013 206 07 Tempelhofer Feld – usos temporários 207 08 Mauerpark – usos temporários 208 09 Utilização da Kunsthaus Tacheles em guias turísticos e propagandas oficiais 209 10 Registro fotográfico do squat no pátio externo da Kunsthaus Tacheles 210 11 Questionário base para entrevista com squatters da Kunsthaus Tacheles 211 12 Plantas esquemáticas: o uso ideal da Kunsthaus Tacheles 214 13 Resistências dos artistas da Kunsthaus Tacheles 215 14 Questionário base para entrevista com artistas de rua 218 15 Registro fotográfico dos artistas de rua de Berlim 223 185 Anexo 01 Cidades que receberam título de “cidade / capital de cultura europeia” Ano Cidade 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 Atenas (Grécia) Florença (Itália) Amsterdã (Holanda) Berlim (Alemanha) Paris (França) Glasgow (Escócia) Dublin (Irlanda) Madrid (Espanha) Antuérpia (Bélgica) Lisboa (Portugal) Luxemburgo (Luxemburgo) Copenhagen (Dinamarca) Thessaloníki (Grécia) Estocolmo (Suécia) Weimar (Alemanha) Avignon (França), Bergen (Noruega), Bologna (Itália), Bruxelas (Bélgica), Helsinki (Finlândia), Cracóvia (Polônia), Praga (República Tcheca), Reykjavík (Islândia), Santiago de Compostela (Espanha) Rotterdam (Holanda) e o Porto (Portugal) Bruges (Bélgica) e Salamanca (Espanha) Graz (Áustria) Genova (Itália) e Lille (França) Cork (Irlanda) Patras (Grécia) Sibiu (Romênia) e Luxemburgo (Luxemburgo) Liverpool (Inglaterra) e Stavanger (Noruega) Vilnius (Lituania) e Linz (Áustria) Essen (Alemanha, representando Ruhr), Istanbul (Turquia) e Pécs (Hungria) Turku (Finlândia) e Tallinn (Estônia) Guimarães (Portugal) e Maribor (Eslovênia) Marselha (França) e Košice (Eslováquia) Riga (Latvia) e Umeå (Suécia) Mons (Bélgica) e Plzeň (República Tcheca) Donostia-San Sebastián (Espanha) e Wrocław (Polônia) Aarhus (Dinamarca) e Paphos (Cyprus) Leeuwarden (Holanda) e Valetta (Malta) 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 FONTE: EUROPEAN COMISSION – EUROPEAN UNION. European Capitals of Culture. Disponível em: <http://ec.europa.eu/culture/tools/actions/capitals-culture_en.htm>. Acesso em: 07 dez. 2014. 186 Anexo 02 Novo centro cultural Berliner Schloss – Humboldtforum IMAGENS 178-179: Stadtschloß no início do século XX e depois dos bombardeios da II Guerra Mundial. | FONTE: Gesellschaft Berliner Schloss e.V., 2014. IMAGEM 180: Corte esquemático da Humboldt Box – edifício temporário com exposição sobre o futuro Berliner Schloss - Humboldtforum. | FONTE: Flyer Humboldt Box Berlin, s/d. 187 IMAGEM 181: Maquete do futuro Berliner Schloss - Humboldtforum. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. IMAGEM 182: Maquete digital do futuro Berliner Schloss - Humboldtforum. | FONTE: FLYER Berliner Schloss – Humboldtforum, s/d. IMAGEM 183: Maquete digital do futuro Berliner Schloss - Humboldtforum. | FONTE: FLYER Berliner Schloss – Humboldtforum, s/d. 188 IMAGEM 184: Maquete digital e programa do futuro Berliner Schloss - Humboldtforum. | FONTE: FLYER Berliner Schloss – Humboldtforum (original adaptado pela autora, 2015). 189 Anexo 03 Aeroporto de Brandemburgo – Obras O Flughafen Berlin Brandenburg Willy Brandt (Aeroporto Berlim Brandemburgo Willy Brandt) funcionará como aeroporto internacional principal de Berlim e substituirá os dois aeroportos já existentes na cidade, o Flughafen Schönenfeld (que aloca companhias de custo mais baixo, voos domésticos e europeus) e o Flughafen Tegel (que aloca companhias de maior renome e voos domésticos, europeus e intercontinentais). Foi projetado para se tornar o terceiro maior aeroporto alemão e deveria ter sido inaugurado em 2010. Diversos problemas no planejamento e qualidade das obras, bem como escândalos referentes à alocação de recursos levaram a uma série de adiamentos na sua abertura, que hoje não tem data prevista, o que causa extrema insatisfação na população local. Ao fim de 2014, o jornal alemão Der Spiegel131 estimava que, além do alto custo original, um adicional de cerca de 3,2 bilhões de euros seria gasto com o projeto IMAGENS 188-189: Obras inacabadas e atrasadas do Aeroporto de Brandemburgo já custam mais de 4 bilhões de euros. | FONTE: Esquerda: Sabino (2014); direita: Neumann (2014). IMAGEM 190: Entrada proibida no Aeroporto de Brandemburgo inacabado. A inauguração já atrasada em 2012 foi cancelada sem nova previsão. | FONTE: NEUMANN (2014) 131 BER-AUSBAU nach Eröffnung: Mehdorn wünscht sich Extras für 3,2 Milliarden Euro. Spiegel Online, Berlim, 02 nov. 2014. Disponível em: <http://www.spiegel.de/wirtschaft/unternehmen/flughafen-berlinbrandenburg-ber-3-2-milliarden-mehrkosten-moeglich-a-1000611.html>. Acesso em: 15 jan. 2015. 190 Anexo 04 Estatísticas de Berlim 1) MIGRAÇÃO TABELA 07: Berlim - Migração (legal) nas fronteiras da cidade no ano Tipo 2004 2008 2012 Imigrantes totais 115.267 132.644 164.577 Imigrantes estrangeiros 45.854 49.203 79.360 Total de Estrangeiros 450.900 470.100 503.900 FONTE: Amt für Statistik Berlin-Brandenburg (2014) GRÁFICO 03: Migração por distrito em 2012 | FONTE: Amt für Statistik Berlin-Brandenburg (2014) 191 2) FAIXA ETÁRIA TABELA 08: Berlim - Faixa Etária de Todos os Habitantes Idade 2004 2008 0-5 5% 5,1% 6-17 10,4% 9,2% 18-24 8,8% 8,8% 25-34 14,5% 15,1% 35-44 18,1% 16,2% 45-54 14% 15,2% 55-64 12,7% 11,7% Acima de 64 16,6% 18,8% FONTE: Amt für Statistik Berlin-Brandenburg (2014) GRÁFICO: FAIXA ETÁRIA DOS IMIGRANTES EM 2012 GRÁFICO 05: Faixa etária dos imigrantes em 2012. | FONTE: Presse und Informationamt des Landes Berlin (2013) 192 3) TURISMO TABELA 09: Berlim - Turismo Índice 2004 2008 2012 Estabelecimentos de hospedagem 564 656 794 Camas 75.009 97.205 125.166 Turistas ± 4.278.000 ± 5.151.000 ± 6.764.000 Turistas internacionais ± 1.646.000 ± 2.754.000 ± 4.085.000 Pernoites ± 13.260.000 ± 17.770.000 ± 24.896.000 FONTE: Amt für Statistik Berlin-Brandenburg (2014) GRÁFICO: NÚMERO DE PERNOITES POR ANO GRÁFICO 04: Número de pernoites por ano | FONTE: Presse und Informationamt des Landes Berlin (2013) 4) CONHECIMENTO E CRIATIVIDADE TABELA 10: Berlim - Educação e Classe Criativa Índice 2004 2008 2012 Estudantes universitários 106.496 96.945 108.330 Estudantes de arte e música 5.157 4.820 5.113 Funcionários - setores de educação e arte 18.869 21.119 24.225 FONTE: Amt für Statistik Berlin-Brandenburg (2014) 193 Anexo 05 Edição nº 115 da Revista Exberliner dedicada às transformações urbanas locais em 2013 IMAGEM 191: Capa da revista Exberliner dedicada à transformação urbana de Berlim. | FONTE: BORDEN et al (2013). 194 Anexo 06 MediaSpree em 2013 IMAGEM 192: Mapa esquemático do plano para o MediaSpree em 2013: construções concluídas, obras em andamento e projetos planejados. | FONTE: SCHMIDL (2013, original adaptado pela autora) 195 Anexo 07 Tempelhofer Feld – usos temporários IMAGENS 193-194: Um referendo votado pelos habitantes locais determinou a não construção no grande vazio urbano que é o parque Tempelhofer Feld, antigo aeroporto de Berlim Oriental. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. IMAGENS 195-196: Usos temporários no Tempelhofer Feld: área de churrasco e jardim comunitário. | FONTE: Claudia Seldin, 2013/2014. IMAGEM 197: Mapa esquemático do Tempelhofer Feld. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. 196 Anexo 08 Mauerpark – usos temporários IMAGENS 198-199: Uso do Mauerpark aos domingos. | FONTE: Claudia Seldin, 2014. IMAGEM 200: Chamada para protestos no Mauerpark pelos novos movimentos Mauerpark-Alliaz e Freunde des Mauerpark e.V. | FONTE: Mauerpark-Alliaz e Freunde des Mauerpark e.V, 2014. 197 Anexo 09 Utilização da Kunsthaus Tacheles em guias turísticos e propagandas oficiais IMAGEM 201: Descrição da Kunsthaus Tacheles no guia internacional Lonely Planet, versão em português. | FONTE: SCHULTE-PEEVERS, A. Lonely Planet: Berlim - Guia da Cidade. São Paulo: Ed. Globo, 2011. IMAGENS 201-202: Tacheles no portal oficial da cidade. | FONTE: Berlin.de, 2014. 198 Anexo 10 Registro fotográfico do squat no pátio externo da Kunsthaus Tacheles IMAGEM 203: Terreno da Kunsthaus Tacheles visto da Torre de TV (Fernsehturm). | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 203-204: Squat da Oficina de Metal no pátio da Kunsthaus Tacheles. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 205-206: Squat da Oficina de Metal no pátio da Kunsthaus Tacheles. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 199 Anexo 11 Questionário base para entrevista com squatters da Kunsthaus Tacheles (Aplicado entre abril e junho de 2013) EXEMPLO 01 Data: 07 de abril de 2013 Nome: Michael Clava Naturalidade / Nacionalidade: Gothenburg / Suécia Idade: 26 Modalidade artística (quando aplicável): Pintura (entre outras) Quando você visitou pela primeira vez a Kunsthaus Tacheles? Eu era estudante de arte na Suécia e vim a Berlim pela primeira vez com a escola. Nós passamos aqui. Quando e sob que circunstâncias você passou a trabalhar aqui? Eu conheci pessoas que conheciam pessoas que trabalhavam aqui. Eu não fiz planos, meio que aconteceu. Quando eu cheguei os processos de despejo já estavam acontecendo. Acho que foi em 2011. Era claro que o lugar estava caindo aos pedaços, mas isso não importava. Não parecia que estava acontecendo um despejo. Meu foco era a arte, não o que estava em volta. Em sua opinião, qual foi o melhor momento para se trabalhar na Tacheles? Desde que eu cheguei a situação já estava estranha. Mas, eu gostaria que o lugar fosse como antes, como eu ouço falar que era, no auge – há uns dez anos atrás. Mas, a gente tem que trabalhar com o que tem no momento. Não adianta olhar para trás. Mas, o melhor era quando a gente podia focar só na arte e não em todos esses problemas. Nós não devíamos ter que lidar com tudo isso. Por que você permaneceu no pátio após o despejo/desistência dos demais artistas da casa? Qual é a sua opinião sobre a situação atual de squat no pátio? Na verdade, a oficina dos escultores já era do lado de fora da casa há algum tempo. Então, não houve uma mudança tão brusca quanto parece quando os artistas de dentro da casa foram embora. Nós continuamos onde já estávamos. A diferença é que agora nossas condições são essas [falta de eletricidade, água, instalações precárias]. Mas, a arte é mais importante que o dinheiro. Se você pudesse fazer o que quisesse com a casa, o que faria? Como organizaria as atividades? (Pergunta incluída para auxiliar no desenvolvimento do conceito do edifício, caso fosse possível recuperar a propriedade do mesmo) 200 Eu gostaria de um lugar onde eu possa trabalhar com outras pessoas, em conjunto. Eu não quero uma Tacheles ‘vendida’. Honestamente, eu não quero um lugar para crianças e idosos, como os outros estão sugerindo. Eu quero um lugar sem restrições. Nós não deveríamos adicionar coisas novas que acabem tirando a liberdade que nós temos hoje. Nós temos que ter cuidado para não transformar isso aqui em um museu da Tacheles. Cada um está aqui por razões diferentes, mas eu não tenho desejo de ficar em uma Tacheles ‘user-friendly’. Nós estamos lutando para manter Tacheles do jeito que era. O que Tacheles significa para você? O que faz de Tacheles diferente? Tacheles é liberdade, o sentimento de liberdade de fazer o que você quiser. É um sentimento de encorajamento (an enabling feeling). O que faz de Berlim uma cidade diferente? Berlim significa arte alternativa. Os políticos de Berlim veem a cidade como se ela estivesse doente e como um lugar que precisa de consertos. Nós estamos lutando para manter Berlim como ela era. Se abrirmos Tacheles de novo como uma coisa nova, diferente, estaremos dizendo que Berlim realmente não é mais a mesma. Tacheles do jeito que era, era um reflexo de Berlim. Pergunta adicional: Michael, será que é mesmo possível manter Tacheles como era mesmo considerando que Berlim mudou? Eu espero que sim... ... EXEMPLO 02 Data: 09 de abril de 2013 Nome: Michael Clava Naturalidade / Nacionalidade: Paris / França Idade: 27 Modalidade artística (quando aplicável): Escultura de Metal Quando você visitou pela primeira vez a Kunsthaus Tacheles? 2009. Quando e sob que circunstâncias você passou a trabalhar aqui? Na mesma época. Eu queria fazer esculturas de metal e comecei a trabalhar como assistente para H. Arda durante seis meses. No começo foi estranho, mas, ao mesmo tempo, eu queria ficar e me 201 desenvolver como artista fora do sistema. E eu não sabia nada sobre os problemas que estavam ocorrendo já naquela época. Em sua opinião, qual foi o melhor momento para se trabalhar na Tacheles? Em 2010, até a primeira tentativa de despejo. Por que você permaneceu no pátio após o despejo/desistência dos demais artistas da casa? Qual é a sua opinião sobre a situação atual de squat no pátio? Eu recusei o dinheiro que me ofereceram. Algumas pessoas aqui da Oficina de Metal também foram embora pelo dinheiro, sabe? As pessoas que foram embora não possuíam a ideologia. Na realidade, só houve um despejo realmente legal. De resto, foram as pessoas que aceitaram ir embora. Elas só ligavam para o dinheiro mesmo. Foram 23 anos de seres humanos tentando viver fora da sociedade. Os problemas começaram a nos afetar quando entramos na realidade. Nós temos que escolher tudo juntos, mas as pessoas que estão aqui há muito tempo não entendem que é necessário que todos se deem bem. Eles acham que porque é um squat não deve haver regras. Se você pudesse fazer o que quisesse com a casa, o que faria? Como organizaria as atividades? (Pergunta incluída para auxiliar no desenvolvimento do conceito do edifício, caso fosse possível recuperar a propriedade do mesmo) Tem que ser estruturado como era antes. Precisa haver um restaurante e um bar. Um lado do edifício deveria ser para trabalho ‘calmo’ e a nossa oficina poderia ser no térreo. O ideal seria ter um pedaço dela dentro do edifício e outro fora. E mais uma galeria. Eu acho que uma creche era importante. A gente podia incluir a vida do bairro, para integrar o bairro. Mas, não dá para colaborar com nenhum grande museu. Isso seria ruim. O edifício é grande do jeito que é, é perigoso. Acho que seria importante dividirmos entre modalidades para ser mais fácil controlar, no sentido de deixar tudo transparente. E uma pessoa devia ser responsável por cada tipo de lugar. O que Tacheles significa para você? O que faz de Tacheles diferente? Tacheles é um lugar para você desenvolver a si próprio, é um lugar sobre instintos. É um lugar para iniciantes, onde você consegue liberdade artística e política. O aspecto humano é muito importante aqui... Tacheles é um laboratório para a criação e para lidar com a natureza humana. É como uma utopia. E cheira aos anos 1990... É uma experiência social. O que faz de Berlim uma cidade diferente? É algo que não dá para explicar. 202 Anexo 12 Plantas esquemáticas: o uso ideal da Kunsthaus Tacheles Desenhos realizados pela autora de acordo com as entrevistas realizadas com as lideranças da associação Art Pro Tacheles em junho de 2013. IMAGEM 209: Plantas esquemáticas dos novos usos propostos pela liderança da Art Pro Tacheles para o edifício em 2013. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 203 Anexo 13 Resistências dos artistas da Tacheles IMAGEM 210: O artista Blacco é removido forçosamente da casa onde ficou fechado em março de 2012. Protesto com sua arte: “Tacheles Berlim - Nós ficamos” (Tacheles Berlim – We Stay). | FONTE: Berliner Zeitung, 2012. IMAGENS 211-212: O muro impedindo o acesso do pátio à casa e as cercas limitando a área do squat no pátio. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 204 IMAGENS 213-215: Obstáculos à continuidade do squat da Oficina de Metal: acesso obstruído e câmera de alta tecnologia fazendo o controle da rotina dos artistas. | FONTE: Claudia Seldin (fotos) e Art Pro Tacheles e.V. (mapa), 2013. IMAGENS 216-217: Panfletagem e arte nas ruas em evento para conscientizar o público sobre o novo squat dos artistas no pátio. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 205 IMAGENS 218-219: Ação “Arte Caminha” (Kunst geht spazieren) – letras de metal foram empurradas do squat à prefeitura no dia anterior ao despejo. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGEM 220: Ação “Arte Caminha” (Kunst geht spazieren) – letras de metal foram empurradas do squat à prefeitura no dia anterior ao despejo. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 221-222: Despejo final de todas as atividades do Tacheles (à direita). O sentimento foi expresso na escultura dos artistas (à direita). | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 206 Anexo 14 Questionário base para entrevista com artistas de rua EXEMPLO 01 Data: 24 de julho de 2013 Nome: Byron Carrasco Naturalidade / Nacionalidade: Quito / Equador Idade: 26 Modalidade artística: Música EXPERIÊNCIAS PESSOAIS Quando e por que você começou a se apresentar nas ruas? Eu comecei a tocar música quando tinha 8 anos. Não lembro exatamente quando comecei a tocar na rua, mas foi em um dia em que eu estava viajando pelo Peru e simplesmente comecei a tocar. Eu achava que a música tinha um papel fundamental na rua... A minha banda principal agora, que é a Musicalle, começou na rua. Em espanhol o nome dela é uma mistura entre música e rua. Para você, ser artista de rua é uma atividade temporária ou um comprometimento a longo prazo? Você possui outro tipo de emprego/fonte de renda? Eu também dou aulas particulares de guitarra e violão. E faço parte de bandas. Eu me formei em música na Universidade (na cidade de Potsdam, próxima a Berlim). Ser artista de rua mudou sua vida de alguma maneira? Houve alguma transformação significativa em nível pessoal? Na verdade, ajudou muito na minha carreira universitária porque eu aprendi a falar com as pessoas. Além disso, tocar na rua me faz sentir parte da sociedade, e da cidade também. Principalmente na Europa, porque aqui sempre há distâncias. Há distâncias entre os alemães. Por isso, eu também sempre prefiro tocar em grupo. Eu sempre formo um grupo para ir tocar. Qual foi a melhor experiência que já teve se apresentando na rua? E a pior? Houve algumas muito bonitas. Em Montpelier, na França, no ano passado, teve uma ocasião em que tocamos à noite numa praça. Tocávamos por prazer e não por dinheiro. Se formou um grupo tão grande de gente e chovia. Eles cantavam e dançavam e não quisemos recolher dinheiro. A pior acho que foi uma vez no U-Bahn (metrô). Eu estava focado em mim mesmo e nos meus problemas, como se fosse um zumbi. Eu senti que havia uma grande distância entre eu e o público, um sentimento de vazio, de desconexão. Na sua opinião, qual é o maior desafio de ser um artista de rua? 207 Apresentar-se é o maior desafio, no sentido se expor. Se você não der o seu melhor e não fizer o seu melhor, é como se não fizesse nada. Além disso, na Alemanha e na Europa tocar na rua no inverno é muito difícil. O clima aqui influencia muito na performance de rua. Você tem que encontrar métodos para tocar no inverno. É um desafio. O que você considera como uma boa reação do público quando está se apresentando? Eu acho que eu já ultrapassei a fase de tocar somente por dinheiro. O melhor, o ideal, é mesclar ganhar dinheiro com o prazer de tocar. E este é mais importante. A satisfação principal não é só o dinheiro, mas é claro que é um ‘quantificador’ válido. Mas, o mais importante é transmitir a música e isto é algo que se sente. Eu nunca quero deixar de tocar nas ruas... mesmo que um dia eu fiquei famoso. Para mim, tocar na rua é um luxo. ARTE DE RUA E A CIDADE Como você escolhe os lugares para se apresentar na cidade? Eu escolho os lugares onde há mais gente, mas eu tenho que pensar também na acústica do local. No Mauerpark [parque situado no distrito de Prenzlauer Berg, com muitos turistas e músicos de rua aos domingos e muito perto de onde Byron mora], por exemplo, não se pode tocar sem amplificador e eu não gosto de ter que tocar com amplificadores. Você acha que a arte de rua é importante para a cidade? Como? Estar em contato com a arte, com a cultura, com a tradição é importante. Viver a rua é importante. Não estar só dentro de edifícios... A rua é uma parte importantíssima da cidade. Estar em contato com a arte permite a conexão, o contato entre as pessoas. Estamos formando uma rede interessante entre pessoas. A rua é o melhor lugar! ARTE DE RUA EM BERLIM Como/por que você começou a se apresentar em Berlim? Eu fiz a Universidade em Potsdam. Eu cheguei em Berlim em 2007 e comecei a tocar no U-Bahn (metrô) em 2008. Eu tocava no metrô mesmo sendo ilegal. Como a experiência de se apresentar em Berlim se difere da sua cidade natal? Existem muitas diferenças entre a América Latina e a Europa em geral. A música que eu tocava na América Latina era muito mais focada no público local, era uma música mais tradicional. Lá eu não tocava para estrangeiros, como aqui. Eu não tocava essas músicas “prostituídas”. Aqui em Berlim, a minha música fica muito estereotipada por eu ser latino. Mas, na América do Sul, como você sabe, a carreira do músico é vista, assim, como se você fosse alguém que não sabe fazer nada. Na Alemanha, tem-se um melhor conceito sobre músicos de rua. Mas, na minha opinião, o melhor lugar para tocar é na França porque lá existe um fundo estatal para dar dinheiro para todos os músicos. Além disso, Berlim é saturada de músicos, de todas as qualidades. Há uns muito bons, mas há outros muito ruins também. E isso afeta a reputação da música de rua. 208 Quais são os seus lugares favoritos para se apresentar nesta cidade e por que? O meu local favorito é uma praça na Bergmannstraße, ali em Kreuzberg. É uma praça pequena, não tem muitos turistas, mas há muita gente. ARTE DE RUA E A LEI Qual é a sua opinião sobre leis que banem ou restringem a performance de rua? Eu acredito que os métodos que se aplicam nas cidades, as leis, não são para atacar a música em si, mas para prevenir pedintes. Mas, ninguém é dono da rua e eu não sei se deveria haver esse tipo de restrição. O que eu acho é que a cidade tem que ter espaços para se expressar a música. Por exemplo, em Berlim, você não pode tocar música depois das 22h. Mas, em alguns lugares esta cidade vive mais depois das 22h. Você já teve algum problema com a polícia por se apresentar na rua? Eu nunca tive problemas... Eu quero manter boas vibrações! ... EXEMPLO 02 Data: 03 de outubro de 2013 Nome: Hanna Mia Brekkan Naturalidade / Nacionalidade: Estocolmo / Suécia Idade: 22 Modalidade artística: Música EXPERIÊNCIAS PESSOAIS Quando e por que você começou a se apresentar nas ruas? Eu comecei em Estocolmo, quando eu tinha 17 anos. Eu estava trabalhando em uma colônia de férias e comecei a tocar violão. Eu tinha o violão comigo e era um dia de verão bonito. Depois, eu comecei a tocar com alguns amigos enquanto viajávamos pela Europa. E eventualmente, eu fiquei sozinha e precisava de dinheiro. A primeira vez que você toca sozinha é como se você estivesse fazendo algo completamente novo. Você fica realmente exposta. Mas, aí veio uma mulher vestida de roxo e me disse que eu deveria fazer isso da vida. Para você, ser artista de rua é uma atividade temporária ou um comprometimento a longo prazo? Você possui outro tipo de emprego/fonte de renda? 209 Eu trabalho como guia turística aqui em Berlim e na Islândia e divido meu tempo entre os dois lugares. Eu moro parte do tempo em Berlim desde 2011. Eu queria fazer parte de uma banda, mas é muito difícil conhecer pessoas. Atualmente, eu já não toco mais tanto nas ruas. Eu já estou fazendo pequenos shows [em lugares fechados, casas de show, bares]. Ser artista de rua mudou sua vida de alguma maneira? Houve alguma transformação significativa em nível pessoal? Todo passo que você dá fora da sua zona de conforto te leva mais à frente. Agora eu me sinto confiante na frente de pessoas que eu não conheço. Qual foi a melhor experiência que já teve se apresentando na rua? E a pior? A moça de roxo (risos). Ela me deu coragem para eu fazer com a minha vida aquilo que eu queria. E o que eu queria era algo que trazia felicidade às pessoas. A pior foi um homem que gritou “Não toca! Eu estou cansado de vocês, filhos da p*!”. Todas as pessoas que estavam sentadas no café se levantaram para me defender. Mas, em geral, quando as pessoas olham pro lado, te ignoram, é o pior. Ser ignorada como ser humano é a pior coisa. Na sua opinião, qual é o maior desafio de ser um artista de rua? Ter que ficar se provando constantemente. Você sempre tem que convencer os outros de que você é boa. E isso tira a alegria da música às vezes. E tem outra coisa: eu tenho uma voz muito forte e você precisa disso quando é mulher tocando nas ruas. Não tem muitas mulheres fazendo isso sozinhas. Quando você vê as meninas se apresentando na rua, elas sempre têm um cara do lado se apresentando junto ou ajudando a vender os CDs. Eu acho que isso reflete a indústria da música, que menospreza as mulheres... como se faz na maior parte das profissões. Aliás, as mulheres sempre me dão mais dinheiro quando eu toco. O que você considera como uma boa reação do público quando está se apresentando? Quando compram o CD é legal. Mas, é uma combinação das coisas: o aplauso, o elogio, o dinheiro. ARTE DE RUA E A CIDADE Como você escolhe os lugares para se apresentar na cidade? Eu gosto de tocar na frente dos cafés e de circular. Você acha que a arte de rua é importante para a cidade? Como? Tocar nas ruas é legal porque não é algo ligado à indústria/negócios. As pessoas te julgam, mas elas também se divertem. E te faz sair da sua zona de conforto e faz os outros saírem das zonas de conforto deles. Às vezes é bom, às vezes é engraçado. A vida é muito mais divertida quando há músicos em volta. A arte de rua faz a vida mais interessante. 210 ARTE DE RUA EM BERLIM Como/por que você começou a se apresentar em Berlim? Eu vim morar aqui em 2011. O primeiro lugar onde eu toquei foi aqui na frente do Markthalle [um pavilhão de venda de produtos orgânicos em Kreuzberg, do outro lado da rua do café onde a entrevista era realizada]. Alguns outros músicos me deram dicas. Eles disseram para eu não ficar parada, para andar por aí enquanto tocava. Me falaram que eu tinha que me apresentar antes de começar a tocar. Eu acabei ganhando muito dinheiro naquela época. Eu paguei o meu aluguel aqui por uns 3 ou 4 meses só com aquele dinheiro. Como a experiência de se apresentar em Berlim se difere da sua cidade natal? O que aconteceu foi que as pessoas começaram a me reconhecer aqui nos supermercados e nos cafés [quando ela não estava tocando] como a ‘garota que toca na rua’. E eu comecei a me sentir com vergonha e meio desconfortável. Eu sempre tocava quando eu precisava de dinheiro, mas agora eu estou começando a parar porque eu não gosto do sentimento de ser reconhecida. Mas eu poderia ganhar muito mais dinheiro aqui em Berlim se eu quisesse, porque existe uma ‘cultura da gorjeta’ para o artista. Aqui você dá gorjeta para tudo, as pessoas dão mais em geral. Isso não existe na Suécia. Lá você não ganha gorjetas. E as pessoas te ignoram mais na Suécia. Elas se sentem mais desconfortáveis com o ‘espontâneo’. Se eu andasse de café em café tocando lá, as pessoas olhariam para outro lado. Quais são os seus lugares favoritos para se apresentar nesta cidade e por que? Eu prefiro tocar na Bergmannstraße ou perto deste bairro [em Kreuzberg]. É onde eu me sinto confortável, tem muitos cafés. ARTE DE RUA E A LEI Qual é a sua opinião sobre leis que banem ou restringem a performance de rua? Eu acho que em Berlim não existem muitas. Talvez essa seja a razão para haver tantas pessoas tocando em Berlim. É muito relaxado. Você já teve algum problema com a polícia por se apresentar na rua? Não, quando eu sinto a presença dela, eu simplesmente vou embora. 211 Anexo 15 Registro fotográfico dos artistas de rua de Berlim IMAGENS 223-224: À esquerda: banda em frente à estação de S-Bahn Hackersher Markt, em Mitte. À direita: banda africana tocando próxima ao festival Karneval der Kulturen, em Kreuzberg. | FONTE: Claudia Seldin, 2007/ 2013. IMAGEM 225: Grafiteiros pintando o mural de um Hof alternativo à estação de S-Bahn Hackersher Markt, em Mitte. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGEM 226: A banda The Trouble Notes em frente à estação de U/S-Bahn Friedrichstraße, em Mitte. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 212 IMAGEM 227: O australiano Jackson tocando perto do Mauerpark, em Prenzlauer Berg. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. IMAGENS 228-229: À esquerda: banda Mauerpark, em Prenzlauer Berg. À direita: atores no mercado de Natal em Potsdamer Platz. | FONTE: Claudia Seldin, 2013. 213