Fantasmagorias Coloniais
Currículo resumido:
Paola Barreto Leblanc (Rio de Janeiro, 1971), também conhecida como paoleb ou Dr.
Fantasma, é artista e pesquisadora, realizadora de filmes, videoinstalações e performances,
premiada no Brasil e no exterior. Graduada em Cinema pela UFF (1996), Mestre em
Tecnologia e Estéticas pela ECO - UFRJ (2009), foi bolsista do Programa Capes Doutorado
Sanduíche no Exterior na Universidade de Artes de Berlim - Alemanha (2014/ 2015) e é
Doutora em Poéticas Interdisciplinares pela EBA - UFRJ (2016). Desde 2017 é Professora de
Artes, Estéticas e Materialidades do IHAC - UFBA, onde desenvolve pesquisa sobre
fantasmagorias, circuitos eletrônicos e digitais e sistemas híbridos.
Resumo:
Através de uma luz intensa, que ofusca e cega, os discursos higienistas importados pelas
autoridades brasileiras ao longo do século XIX se empenharam no projeto de desvitalizar a
herança africana no centro de Salvador. As violências geradas nesse contexto criaram
territórios fantasmas e sujeitos invisíveis, que sobrevivem na resistência e na obscuridade. À
medida em que trazem à tona elementos recalcados ou preteridos em nossa realidade histórica
e social, as práticas e teorias fantasmagóricas reterritorializam esses lugares, produzindo uma
materialidade e uma consistência que vão além do jogo ilusionista dessa “arte da aparição”.
Ao operar uma lógica inversa à da hipervisibilidade atrofiada das luzes, a fantasmagoria se
apresenta como uma forma de ativar um território e fazê-lo falar; uma linguagem das coisas e
dos corpos, do que existe em uma área do espectro à qual somos pouco sensíveis: uma
tecnologia mística, uma forma de sensibilização.
palavras chave: fantasmagoria, decolonialidade, mulheres negras
1. Introdução
A fantasmagoria é um conceito complexo que ganha força no contexto da expansão colonial
das potências européias ao longo do século XIX. Atuando na convergência entre práticas e
saberes físicos e metafísicos através da exploração de campos eletromagnéticos - de povos e
territórios - suas diferentes aplicações produzem um amplo espectro de ciência e ficção.
Como forma espetacular reúne as (con)tradições da ótica e da alquimia, inspirando e sendo
inspirada pela invenção de media diversos para a impressão e registro de formas que
sobrevivem, como herança ou legado, mesmo após sua suposta morte ou desaparecimento.
Trata-se de um conceito chave na constituição da modernidade capitalista, essa mesma
podendo ser entendida como uma enorme fantasmagoria, produtora em série de apagamentos
históricos e epistemicídios.
Derrida define a ciência dos fantasmas - hauntologia - como resultado da soma entre duas
invenções que florescem no final do século XIX: o cinema e a psicanálise. De Munsterberg a
Derrida, há bibliografia extensa e consolidada que estabelece a conexão histórica e
genealógica entre psicanálise e cinema, demonstrando como cada um, à sua maneira,
elaborou a relação entre pulsões e inconsciente. Para trabalhar a fantasmagoria colonial,
contudo, gostaria de trazer outros espectros para essa encruzilhada, considerando que é
também no ocidente oitocentista que disputas em territórios do continente africano e das
Américas contribuem para a constituição da noção psicanalítica do “outro”, em oposição ao
sujeito colonizador. O imaginário alimentado por registros fotográficos e fonográficos - os
novos media de então - transformam esse “outro” em arquivo e acervo de museu, instituição
que, não por acaso, também se consolida no período. A constituição dessa alteridade
fantasmagórica, potencial ou virtual, é personificada no corpo daquele que difere do homem
branco europeu e precisa ser controlado ou exterminado: o índio, o negro, a mulher.
Se, no final do século XVIII vemos o surgimento da fantasmagoria como espetáculo na
Europa, no final do século XIX testemunha-se a explosão de suas formas nas Américas - o
“novo mundo” - definição essa que encerra em si mesma uma produção fantasmagórica,
desconsiderando a imensa história pré-colombiana do continente que procura dominar,
também através de um projeto de apagamento. O contato do homem branco europeu com o
“novo mundo” marca a fantasmagoria da modernidade em suas sucessivas marchas de
conquista do oeste. A indústria do cinema contribui para eternizar o mito do caubói que, em
nome da “civilização”, espalha rastros de ódio que produzem “danças fantasmas”, como as
executadas pelos índios Sioux e captadas pelo Kinetoscópio de Edison em 1894. Fôssemos
contudo levar ao pé da letra o emprego do adjetivo “novo” para qualificar o mundo
americano, deveríamos pensar esse “outro” não como primitivo, mas como vanguarda, no
que se refere aos modos de convivência entre humanidade, espiritualidade e ancestralidade.
As cosmovisões dos muitos povos originários do Brasil, dos Yanomami aos Tupinambás,
também nos fazem sugerir essa interpretação.
Nestas páginas contudo não irei
abordar a fantasmagoria ameríndia, à
qual pretendo voltar, oportunamente,
a fim de aprofundar as pesquisas
iniciadas
com
Maracanã”1.
a
“Assombração
Aqui
pretendo
apresentar, por meio das escavações
realizadas em conjunto com dois
artistas
pesquisadores
do
Balaio
Fantasma (Grupo de Pesquisa que
lidero na Universidade Federal da
Bahia),
a
fantasmagoria
negrofeminina, conceito elaborado
por Rebeca Carapiá (2018) e que
utilizo para definir aquilo que emerge
da escavação iniciada por Lucas
Brasil (2017) a partir do território
onde viriam a se estabelecer os
primeiros cine-teatros da cidade.
Fig. 1. Intervenção na fachada do antigo Cine Roma.
Foto de Rebeca Carapiá
1
Video intervenção realizada na fachada da Aldeia Maracanã no Rio de Janeiro em 2014.
Documentação disponível em: https://paoleb.wordpress.com/projects/assombracao-maracana/
Considerando o cinema como um medium, isto é, aparato técnico desenvolvido nesse
contexto de investigação material e imaterial acerca da natureza do tempo e dos corpos,
venho desde 2013 me dedicando à escavação fantasmagórica de salas de cinema extintas e
seus arredores. Esse trabalho de pesquisa-intervenção já aconteceu em cidades como Belo
Horizonte (MG), Berlim (Alemanha), Fortaleza (CE), Rio de Janeiro (RJ), Roma (Itália) e
São Paulo (SP), entre outras. Em Salvador, onde a pesquisa está sediada desde 2017, venho
utilizando a fantasmagoria como método de trabalho para empreender uma leitura dos rastros,
vestígios, memórias e ruínas da cidade, colecionando pistas segundo um paradigma indiciário
(Ginzburg, 1993). As pesquisas de campo, entrevistas com fontes primárias, levantamento de
documentos em bibliotecas, matérias de jornal, fotos, filmes, músicas, caricaturas, crônicas,
sons, mapas, diagramas e materiais os mais heterogêneos são reunidos através da edição,
mixagem e projeção audiovisual no espaço público. Desse modo, em nosso Balaio Fantasma
procuramos estabelecer um diálogo com as múltiplas camadas que se sobrepõem no tecido
que constitui o lugar de investigação, atentos às dinâmicas predatórias das obsolescências
programadas, sempre a produzir novos fantasmas - o cinema hoje, as irmandades e devoções
negrofemininas ontem.
Observando os arredores da Praça Castro Alves, espaço que desempenha papel central para a
implantação das primeiras salas de exibição da cidade temos de um lado o então imponente e
hoje desaparecido Teatro São João. “O teatro foi inaugurado em 1812, mas o cinematógrafo
ali se introduziu em 1899.” (BOCANERA, 2007, p. 55.) Em 1919, quatro anos antes das
chamas que consumiram para sempre o Teatro São João em um incêndio histórico, foi
inaugurado o cine teatro Kursaal Baiano. O nome em alemão pode ser traduzido literalmente
por “sala de cura” e era utilizado para definir um tipo de construção disseminada na Europa
do século XIX compreendendo sala de teatro, jogos e restaurante, o que em francês seria
traduzido por casino. Em polêmica se por “nacionalismo ou indigenismo” (BOCANERA,
2008, p. 93) o nome seria alterado posteriormente para Teatro Guarani. No mesmo prédio,
após sucessivas reformas, funciona, ainda hoje em 2018, o Espaço Itaú Glauber Rocha, um
nome curioso que evidencia uma terra em transe, ao reunir o célebre cineasta baiano que
definiu a estética da fome e o banco que tem nome tupi e tanto lucrou nos últimos governos
brasileiros.
Mas vamos aqui propor um passo anterior e escavar mais fundo esse território, olhando para
o que a chegada do cinema desterritorializa e reterritorializa. Como era essa região antes da
limpeza étnica que varreu esses arredores? O que exatamente “cura” a higienização que é
parte das condições de possibilidade para a instalação do cinema, esse elemento “civilizador”
e operador de fantasmagorias que chega a Salvador em 1899? Se hoje, das dezenas de salas
que funcionaram nos arredores da Praça Castro Alves ao longo do século XX, se mantém de
pé apenas o Glauber Rocha com o apoio da rede ligada ao banco, logo ali ao lado, na Igreja
da Barroquinha, um centro de cultura e resistência de territórios ancestrais permanece vivo. É
um pouco dessa história que busco contar nas breves páginas que seguem.
2. Paris, França
“A fantasmagoría encena certas contradições da arte e da representação na era moderna
(e mesmo pós-moderna). A natureza da percepção, as bases materiais das obras de arte,
o papel da ilusão, a estimulação dos sentidos, a convergência do realismo e da fantasia essas questões tão claramente colocadas pela fantasmagoria não apenas representam
questões essenciais da epistemologia moderna, mas também questionam o que os
artistas trabalham com o século XXI.” (GUNNING, 2004, online, tradução nossa)
No final do século XIX os chamados shows de fantasmagorias se tornaram populares na
França, sobretudo a partir dos espetáculos realizados pelo físico aeronauta Étienne Gaspard
Robert (1763 – 1837), também conhecido por Robertson, nome que utilizava em shows de
mágica. Em 1790, Paris vivia o período da terreur, com a banalização de execuções que
faziam a população conviver de forma muito próxima com a morte e os cadáveres em
decomposição. No prefácio de suas memórias, Robert afirma que através de seus espetáculos
de fantasmagorias exorcizava as visões e os espectros de um terror real e cotidiano, o que o
levou a incluir a aparição do fantasma de Marat, entre outros personagens históricos
falecidos, em seus shows. Ele aprimorou a lanterna mágica de Athanasius Kircher utilizando
lentes ajustáveis que permitiam alterar o tamanho das imagens projetadas, incluindo ainda
jogos de espelhos, efeitos de fumaça e sonoplastia executada ao vivo. Após um período de
suspensão de seus shows pelas autoridades parisienses, que consideraram que ele manipulava
a audiência de forma perigosa, Robert encontrou o pavilhão Échiquier ocupado por outro
fantasmagorista, vendo-se forçado a procurar um novo espaço para suas apresentações. Foi
então que decidiu ocupar não mais uma casa de espetáculos, mas o Convent de Capucines,
em uma ação que hoje poderíamos definir como site-specific.
“Percebe-se facilmente que, se as ideias filosóficas deviam elevar o espírito acima do
pavor involuntário que podem inspirar os fantasmas, o efeito do espetáculo exigia que
as aparições repercutissem, ao menos enquanto ocorriam, uma espécie de terror
religioso. Eu não poderia deste modo ter escolhido um lugar mais conveniente do que
uma vasta capela no interior de um claustro.” (ROBERT, 1831, p. 276, tradução nossa)
Desse ponto de vista suas fantasmagorias podem ser pensadas como formas de comunicação
com o espírito da cidade e os mortos da revolução, e esta parece uma boa razão para explicar
o sucesso que as manteve por quatro anos em cartaz em Paris, bem como meu interesse por
este dispositivo para uma leitura de territórios físicos e simbólicos no Brasil.
É da natureza do sistema capitalista de produção desassociar as forças sociais do trabalho dos
bens comercializados, ou seja apagar como (e por quem) foram produzidos. O conceito de
fetiche da mercadoria de Marx encerra um aspecto fantasmagórico, que reside justamente na
alienação do trabalho dos bens a ele associados. A partir de uma perspectiva marxista da
fantasmagoria, como sugere Derrida (1993), mais uma vez, se podem conceber modos de
exposição das contradições inerentes ao sistema de produção, como uma forma de revelação
das forças mascaradas pelas dinâmicas do capitalismo industrial. O marxismo contudo, não
dá conta das lutas coloniais que se precipitam no Brasil no mesmo momento em que Marx
escreve, em 1867, o seu Capital. De que modo então pensar a fantasmagoria como um
conceito que abarque também o projeto de apagamento e ruína produzido no contexto
brasileiro? Uma fantasmagoria que dê conta das contradições inerentes ao processo de
modernização da Bahia, considerando ainda que Salvador, como o slogan da Prefeitura nos
“lembra para esquecer”2, é “a primeira capital do Brasil”?
3. Salvador, Bahia
Fanon acredita, portanto, que o trauma do povo negro se origina não apenas dos
eventos familiares, como argumenta a psicanálise clássica, mas do contato
traumatizante com a desrazão violenta do mundo branco, isto é, com a irracionalidade
do racismo que nos coloca, sempre como "Outro". O "Outro" do sujeito branco.
KILOMBA, 2010, on line, tradução nossa)
2
Expressão empregada por Rogério Daflon em matéria a respeito do Cais do Valongo, no Rio de
Janeiro. Disponível em https://apublica.org/2016/07/o-porto-maravilha-e-negro/. Consultado em:
15.06.2018.
Em 1890 Rui Barbosa, então ministro da Fazenda da recém-proclamada República, ordena a
destruição de todos registros tributários do Ministério do Tesouro relacionados à escravidão,
sob o argumento de romper com a herança colonial e libertar-se rumo a um novo mundo
republicano. Um gesto dramático e literal de queima de arquivo, cometido pelo estado
brasileiro contra a memória e a história não apenas da população afrodescendente, mas da
própria formação do Brasil. Nega-se o passado e projeta-se o futuro com uma política oficial
de embranquecimento e desafricanização, associando os ideais de progresso e
desenvolvimento ao apagamento da herança dos povos africanos. A fantasmagoria colonial
tem cor, e sua escavação traz à tona faces da luta contra o racismo no Brasil.
Entre o final do século XVIII e meados do século XIX chegam a Salvador, escravizados,
quase cem mil negros da costa da mina africana (FILHO, 1946). Quem eram esses homens e
mulheres que passam a compor, junto a outras etnias africanas quase 70% da população da
cidade? Ainda que os arquivos oficiais sejam escassos e que os relatos da história oral
apresentem múltiplas contradições, estima-se que com as guerras que culminaram na queda
do Império de Oyó, situado na costa do Benin e no território onde hoje fica a Nigéria, muitos
membros da elite Ketu foram escravizados e enviados ao Brasil (SILVEIRA, 2006). Eram
sacerdotes e sacerdotisas que ocupavam cargos administrativos e religiosos em suas
comunidades de origem e que trouxeram, na fantasmática de seus corpos, o culto à
ancestralidade. Muitas dessas personalidades, ainda como escravizadas ou já libertas,
organizaram-se em sociedades secretas no Brasil no início do século XIX, constituindo
devoções e irmandades que, além de perpetuar a cultura, a língua e as tradições iorubá,
contribuíram ativamente com os movimentos pela independência e pela abolição da
escravidão no país. As negras de ganho, como eram chamadas em Salvador as mulheres que
vendiam produtos diversos pelas ruas da cidade, chegaram a deter o monopólio de gêneros de
primeira necessidade na capital, garantindo lucros que possibilitaram a compra de alforrias e
o auxílio a fugidos ou aquilombados. As tentativas de minimizar ou esconder o protagonismo
e a liderança dessas mulheres no Brasil nos ensina que a fantasmagoria colonial tem, além de
cor, gênero.
In “O negro na Bahia”, publicação de Luiz Vianna Filho de onde extraímos os dados
estatísticos sobre o tráfico negreiro, o prefácio de Gilberto Freyre (FILHO, 1946, p. 17)
exalta os “quindins sexuais” da “negra capaz de servir de exemplo dos extremos de graça, de
delicadeza de gestos, de elegância de porte, de doçura de voz, de encanto pessoal que pode
atingir a mulher de origem africana, mesmo quando preta ou quase preta.” (sic) Essa
descrição romântica e racista das africanas mascara o destaque das mulheres negras nas lutas
políticas da Bahia, e é contra esse apagamento que a fantasmagoria negrofeminina vem se
posicionar.
A devoção da Nossa Senhora da Boa Morte, fundada pela negras de partido-alto, elite
feminina nagô-iorubá da Barroquinha, é um grande exemplo de organização que conecta a
espiritualidade a outras esferas da existência humana: intelectual, econômica e social.
Atuando estrategicamente na implantação do Candomblé na Bahia, financiando inclusive o
trânsito de libertos entre Salvador e Nigéria como parte de um programa de formação e
iniciação, essas mulheres trabalharam para a estruturação de uma organização não apenas
religiosa, mas política e cultural na Salvador oitocentista. A procissão da Boa Morte, que
“chegou a ser uma das mais espetaculares da cidade”, nas palavras de Renato da Silveira
(2006), é apenas a ponta de um iceberg do que esse movimento representou em termos de
força econômica e influência política. Ao estabelecer a associação sincrética entre orixá e
santos católicos, o Candomblé se fixa como estratégia de sobrevivência, conquistando
durante algum tempo espaço dentro da própria Igreja da Barroquinha para o assentamento do
primeiro terreiro de Ketu na Bahia. Contudo, essas manifestações de força, riqueza e poder
africano no centro da cidade não eram percebidas positivamente pelas autoridades.
Em 1850, a Barroquinha sofreu o que se poderia chamar de limpeza étnica. O
presidente da província à época, Francisco Gonçalves Martins, o Visconde de São
Lourenço, expulsou os negros da Irmandade e destruiu várias construções populares
deles em nome de uma modernização necessária ao centro da metrópole baiana.
(OLIVEIRA, 2005, p.71)
A presença africana causava desconforto na sociedade soteropolitana de mentalidade
escravocrata, que tinha a elite parisiense como modelo civilizatório. Através de teorias
respaldadas pelo racismo científico o estado brasileiro identificava a população negra e
afrodescendente como uma ameaça ao avanço da civilização, e o candomblé e os afoxés
foram varridos do centro. Não se tratava apenas de “reurbanizar as cidades mas de consolidar
a ideia de república a partir do modelo da Paris burguesa e monumental de Haussmann.”
(FONSECA, 2002, p. 23). Nesse cenário “as costumeiras formas coletivas de divertimento
como o entrudo deveriam dar lugar a práticas civilizadas como o cinematógrafo.”
(FONSECA, Apud, p. 25)
Nesse contexto o cinematógrafo era apresentado não apenas como uma curiosidade mas
também como um instrumento para educar e civilizar a população da capital baiana,
atendendo a seus anseios de modernização à imagem e semelhança dos grandes centros
cosmopolitas europeus. Esse espelhamento na Europa em geral e na França em particular teve
na chegada da corte portuguesa ao Brasil em 1808 seu grande marco. É interessante lembrar
que Dom Pedro II foi possivelmente o primeiro fotógrafo do país quando, em 1840, adquiriu
em Paris seu daguerreótipo. Foi ainda na cidade imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro,
que teve lugar em 1o. de maio de 1897 a primeira exibição de filmes realizados no Brasil.3
Nessa época, na França e em outros países da Europa, assim como nos EUA, era comum
encontrar nos entusiastas dos novos media da fotografia, do rádio e da projeção
cinematográfica o interesse pelo espiritualismo. Este era considerado, em altos círculos
intelectuais, como uma doutrina científica que se utilizava desses media para manter
comunicações espirituais. Na Bahia esse tipo de abordagem terá que negociar com o culto aos
orixás e aos egunguns, entre outras formas de invocação estabelecidas em terreiros em
Salvador, Itaparica e no Recôncavo, onde as técnicas de conexão com os mortos, os
ancestrais e os deuses são parte de rituais sagrados e secretos, restritas a iniciados.
Em Salvador a primeira sessão do cinematógrafo acontece também em 1897, no Teatro
Politheama, no dia 04 de dezembro (Boccanera, 2007; 2008), dia de Santa Bárbara,
sincretizada na Bahia com a orixá Iansã, Senhora dos Eguns (espíritos dos mortos). Acredito
que a escolha dessa data poderia ser interpretada como uma intencionalidade de
correspondência com tradições anteriores de projeção de imagens, invocação de espíritos e
aparições fantasmagóricas. Se é Iansã a divindade dos ventos que zela pelos espíritos dos
3
O Cine Fantasma realizou escavação e intervenção em Petrópolis em 2014. Documentação
disponível aqui: https://cargocollective.com/cinefantasma/Cine-Fantasma-Imperial.
mortos, me pergunto se poderíamos considerá-la como orixá à qual vêm se sobrepor a
fantasmagoria cinematográfica. Desse modo a coincidência da estréia do cinematógrafo na
Bahia com o dia da santa poderia ser pensada como mais uma estratégia sincrética. Para a
Griot Ebomi Cici (em entrevista realizada em julho de 2018) essa é uma possibilidade a ser
considerada, se levarmos em conta que Iansã “projeta o fogo em forma de faíscas”. Mas
estabelecer essa correspondência seria como fazer “uma pesquisa de pós doutorado”, nas
palavras da sábia. Para a Yalorixá Mãe Walkiria de Oxum (em entrevista realizada em julho
de 2018) “cinema e candomblé não se misturam”, e essa é uma suposição que não faz
sentido. De todo modo ainda não obtivemos dados suficientes para afirmar que a festa de
Santa Bárbara já obtivesse grande projeção em Salvador em 1897. Mas sabendo que Iyá
Nassô, figura mítica pertencente ao grupo nagô responsável pela fundação do Candomblé da
Barroquinha era comerciante de carnes com quitanda no mercado de
Santa Bárbara
(SILVEIRA, 2006, p. 414), essa parece ser um hipótese que merece ser investigada.
Um projeto epistemicida é violento no sentido de que mata pela linguagem e pelo
pensamento. Mas a resistência da luta negra é uma resistência também no corpo. As
tentativas de neutralizar, sobrepor ou aniquilar as manifestações da cultura africana na Bahia,
apesar de violentas e reincidentes, não parecem ter logrado êxito. Ainda que o fantasma do
racismo esteja bem presente no desenho da sociedade soteropolitana contemporânea, é
inconteste a presença, a penetração e a força dos ritos, das festas, dos ritmos e dos espíritos
africanos que continuam a vibrar na cidade. De modo que quando falamos em fantasmagoria
colonial e negrofeminina não estamos falando de apagamento, mas de sobrevivência.
Estamos nos referindo à potência desses corpos.
4. Considerações finais: Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da
sociedade se movimenta com ela
Nas páginas anteriores procurei traçar as bases para a compreensão de uma fantasmagoria
colonial e negrofeminina na Bahia. É um tarefa grandiosa, como Ebomi Cici bem
compreendeu, e da qual estou aos poucos me aproximando, impulsionada “para horizontes
pluriepistêmicos e para a prática de ações comprometidas com o combate às injustiças
cognitivas/sociais.” (RUFINO, 2016) Gostaria, a título de conclusão dessa breve incursão, de
apresentar uma série de fotografias realizadas por Rebeca Carapiá na cidade de Saubara, pois
creio que ilustra, de maneira exemplar, o que as contradições coloniais são capazes de
encenar, considerando o panorama oitocentista baiano. Rebeca buscou, em suas palavras,
“(re)produzir imagens de mulheres negras em consonâncias e dissonâncias com o contexto
histórico”, acompanhando, com sua câmera fotográfica, a procissão noturna conhecida como
Caretas do Mingau. Trata-se de uma fantasmagoria genuína do Recôncavo Baiano, que
resiste nos corpos e nas tradições orais e recentemente ganhou a forma de dissertação de
mestrado em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas pela Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia sob o título de A guerra tem rosto de mulher: as Caretas do
Mingau! Narrativas da Independência da Bahia em Saubara, de Vanessa Pereira de Almeida.
As Caretas do Mingau são uma procissão anual que acontece durante os festejos da
comemoração da independência baiana, o dois e julho, de modo a recriar as caminhadas dos
bandos de mulheres que saíam na calada da noite, cobertas por lençóis e véus brancos
assustando as tropas imperiais. Essa forma combativa de produção fantasmagórica serviu de
disfarce para que as bravas mulheres levassem em suas panelas de mingau comida,
armamentos e munição aos combatentes que lutavam pela independência. O legado das
Caretas permanece vivo não apenas como manifestação folclórica, mas como força e
resistência de corpos políticos na luta pela liberdade.
“Ao pensar em reexistências, ou seja, estratégias de enfrentamento para modos de existência
frente às opressões que sofrem os corpos de mulheres negras, as Caretas fazem surgir ou
tornam visíveis imagens do imaginário”, continua Rebeca. Nessa perspectiva o conceito de
fantasmagoria se apresenta não apenas como espetáculo, jogo ilusionista, ritual de invocação
ou meio de comunicação com o além, mas como forma de luta, enfrentamento e resistência.
“Articulando inconsciente e imaginário de maneira a experimentar formas, elementos
técnicos e efeitos estéticos para a produção de imagens, estou interessada em elaborar
uma escrita fotográfica, onde as imagens se apresentam como vestígios que instigam a
reflexão, a curiosidade e o pensamento crítico.” (CARAPIÁ, 2018)
Referências
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CARAPIÁ, Rebeca. F
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DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993.
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FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. Fazendo fita: cinematógrafos, cotidiano e
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GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. Companhia das Letras:
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Disponível
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Acesso em 15.06.2018
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OLIVEIRA, Rafael Soares de. O feitiço de oxum: um estudo sobre o ilê axé iyá nassô oká e
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ROBERTSON, Etienne Gaspard. Mémoires : récréatifs, scientifiques et anecdotiques. Paris :
Chez l'auteur et à la Librairie de Wurtz, 1831-1833. Disponível em:
https://lccn.loc.gov/32006148
RUFINO, Luiz. Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas. Seminário dos Alunos
PPGAS-MN/UFRJ. Rio de Janeiro, 2016. ISSN: 2359-0211
SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha: Processo de constituição do primeiro
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