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Fantasmagorias Coloniais Currículo resumido: Paola Barreto Leblanc (Rio de Janeiro, 1971), também conhecida como paoleb ou Dr. Fantasma, é artista e pesquisadora, realizadora de filmes, videoinstalações e performances, premiada no Brasil e no exterior. Graduada em Cinema pela UFF (1996), Mestre em Tecnologia e Estéticas pela ECO - UFRJ (2009), foi bolsista do Programa Capes Doutorado Sanduíche no Exterior na Universidade de Artes de Berlim - Alemanha (2014/ 2015) e é Doutora em Poéticas Interdisciplinares pela EBA - UFRJ (2016). Desde 2017 é Professora de Artes, Estéticas e Materialidades do IHAC - UFBA, onde desenvolve pesquisa sobre fantasmagorias, circuitos eletrônicos e digitais e sistemas híbridos. Resumo: Através de uma luz intensa, que ofusca e cega, os discursos higienistas importados pelas autoridades brasileiras ao longo do século XIX se empenharam no projeto de desvitalizar a herança africana no centro de Salvador. As violências geradas nesse contexto criaram territórios fantasmas e sujeitos invisíveis, que sobrevivem na resistência e na obscuridade. À medida em que trazem à tona elementos recalcados ou preteridos em nossa realidade histórica e social, as práticas e teorias fantasmagóricas reterritorializam esses lugares, produzindo uma materialidade e uma consistência que vão além do jogo ilusionista dessa “arte da aparição”. Ao operar uma lógica inversa à da hipervisibilidade atrofiada das luzes, a fantasmagoria se apresenta como uma forma de ativar um território e fazê-lo falar; uma linguagem das coisas e dos corpos, do que existe em uma área do espectro à qual somos pouco sensíveis: uma tecnologia mística, uma forma de sensibilização. palavras chave: ​fantasmagoria, decolonialidade, mulheres negras 1. Introdução A fantasmagoria é um conceito complexo que ganha força no contexto da expansão colonial das potências européias ao longo do século XIX. Atuando na convergência entre práticas e saberes físicos e metafísicos através da exploração de campos eletromagnéticos - de povos e territórios - suas diferentes aplicações produzem um amplo espectro de ciência e ficção. Como forma espetacular reúne as (con)tradições da ótica e da alquimia, inspirando e sendo inspirada pela invenção de ​media diversos para a impressão e registro de formas que sobrevivem, como herança ou legado, mesmo após sua suposta morte ou desaparecimento. Trata-se de um conceito chave na constituição da modernidade capitalista, essa mesma podendo ser entendida como uma enorme fantasmagoria, produtora em série de apagamentos históricos e epistemicídios. Derrida define a ciência dos fantasmas - ​hauntologia ​- como resultado da soma entre duas invenções que florescem no final do século XIX: o cinema e a psicanálise. De Munsterberg a Derrida, há bibliografia extensa e consolidada que estabelece a conexão histórica e genealógica entre psicanálise e cinema, demonstrando como cada um, à sua maneira, elaborou a relação entre pulsões e inconsciente. Para trabalhar a fantasmagoria colonial, contudo, gostaria de trazer outros espectros para essa encruzilhada, considerando que é também no ocidente oitocentista que disputas em territórios do continente africano e das Américas contribuem para a constituição da noção psicanalítica do “outro”, em oposição ao sujeito colonizador. O imaginário alimentado por registros fotográficos e fonográficos - os novos ​media ​de então - transformam esse “outro” em arquivo e acervo de museu, instituição que, não por acaso, também se consolida no período. A constituição dessa alteridade fantasmagórica, potencial ou virtual, é personificada no corpo daquele que difere do homem branco europeu e precisa ser controlado ou exterminado: o índio, o negro, a mulher. Se, no final do século XVIII vemos o surgimento da fantasmagoria como espetáculo na Europa, no final do século XIX testemunha-se a explosão de suas formas nas Américas - o “novo mundo” - definição essa que encerra em si mesma uma produção fantasmagórica, desconsiderando a imensa história pré-colombiana do continente que procura dominar, também através de um projeto de apagamento. O contato do homem branco europeu com o “novo mundo” marca a fantasmagoria da modernidade em suas sucessivas marchas de conquista do oeste. A indústria do cinema contribui para eternizar o mito do caubói que, em nome da “civilização”, espalha rastros de ódio que produzem “danças fantasmas”, como as executadas pelos índios Sioux e captadas pelo Kinetoscópio de Edison em 1894. Fôssemos contudo levar ao pé da letra o emprego do adjetivo “novo” para qualificar o mundo americano, deveríamos pensar esse “outro” não como primitivo, mas como vanguarda, no que se refere aos modos de convivência entre humanidade, espiritualidade e ancestralidade. As cosmovisões dos muitos povos originários do Brasil, dos Yanomami aos Tupinambás, também nos fazem sugerir essa interpretação. Nestas páginas contudo não irei abordar a fantasmagoria ameríndia, à qual pretendo voltar, oportunamente, a fim de aprofundar as pesquisas iniciadas com Maracanã”1. a “Assombração Aqui pretendo apresentar, por meio das escavações realizadas em conjunto com dois artistas pesquisadores do Balaio Fantasma (Grupo de Pesquisa que lidero na Universidade Federal da Bahia), a fantasmagoria negrofeminina, conceito elaborado por Rebeca Carapiá (2018) e que utilizo para definir aquilo que emerge da escavação iniciada por Lucas Brasil (2017) a partir do território onde viriam a se estabelecer os primeiros cine-teatros da cidade. Fig. 1. Intervenção na fachada do antigo Cine Roma. Foto de Rebeca Carapiá 1 Video intervenção realizada na fachada da Aldeia Maracanã no Rio de Janeiro em 2014. Documentação disponível em: https://paoleb.wordpress.com/projects/assombracao-maracana/ Considerando o cinema como um ​medium​, isto é, aparato técnico desenvolvido nesse contexto de investigação material e imaterial acerca da natureza do tempo e dos corpos, venho desde 2013 me dedicando à escavação fantasmagórica de salas de cinema extintas e seus arredores. Esse trabalho de pesquisa-intervenção já aconteceu em cidades como Belo Horizonte (MG), Berlim (Alemanha), Fortaleza (CE), Rio de Janeiro (RJ), Roma (Itália) e São Paulo (SP), entre outras. Em Salvador, onde a pesquisa está sediada desde 2017, venho utilizando a fantasmagoria como método de trabalho para empreender uma leitura dos rastros, vestígios, memórias e ruínas da cidade, colecionando pistas segundo um paradigma indiciário (Ginzburg, 1993). As pesquisas de campo, entrevistas com fontes primárias, levantamento de documentos em bibliotecas, matérias de jornal, fotos, filmes, músicas, caricaturas, crônicas, sons, mapas, diagramas e materiais os mais heterogêneos são reunidos através da edição, mixagem e projeção audiovisual no espaço público. Desse modo, em nosso Balaio Fantasma procuramos estabelecer um diálogo com as múltiplas camadas que se sobrepõem no tecido que constitui o lugar de investigação, atentos às dinâmicas predatórias das obsolescências programadas, sempre a produzir novos fantasmas - o cinema hoje, as irmandades e devoções negrofemininas ontem. Observando os arredores da Praça Castro Alves, espaço que desempenha papel central para a implantação das primeiras salas de exibição da cidade temos de um lado o então imponente e hoje desaparecido Teatro São João. “O teatro foi inaugurado em 1812, mas o cinematógrafo ali se introduziu em 1899.” (BOCANERA, 2007, p. 55.) Em 1919, quatro anos antes das chamas que consumiram para sempre o Teatro São João em um incêndio histórico, foi inaugurado o cine teatro ​Kursaal Baiano. O nome em alemão pode ser traduzido literalmente por “sala de cura” e era utilizado para definir um tipo de construção disseminada na Europa do século XIX compreendendo sala de teatro, jogos e restaurante, o que em francês seria traduzido por ​casino​. Em polêmica se por “nacionalismo ou indigenismo” (BOCANERA, 2008, p. 93) o nome seria alterado posteriormente para Teatro Guarani. No mesmo prédio, após sucessivas reformas, funciona, ainda hoje em 2018, o Espaço Itaú Glauber Rocha, um nome curioso que evidencia uma terra em transe, ao reunir o célebre cineasta baiano que definiu a estética da fome e o banco que tem nome tupi e tanto lucrou nos últimos governos brasileiros. Mas vamos aqui propor um passo anterior e escavar mais fundo esse território, olhando para o que a chegada do cinema desterritorializa e reterritorializa. Como era essa região antes da limpeza étnica que varreu esses arredores? O que exatamente “cura” a higienização que é parte das condições de possibilidade para a instalação do cinema, esse elemento “civilizador” e operador de fantasmagorias que chega a Salvador em 1899? Se hoje, das dezenas de salas que funcionaram nos arredores da Praça Castro Alves ao longo do século XX, se mantém de pé apenas o Glauber Rocha com o apoio da rede ligada ao banco, logo ali ao lado, na Igreja da Barroquinha, um centro de cultura e resistência de territórios ancestrais permanece vivo. É um pouco dessa história que busco contar nas breves páginas que seguem. 2. Paris, França “A fantasmagoría encena certas contradições da arte e da representação na era moderna (e mesmo pós-moderna). A natureza da percepção, as bases materiais das obras de arte, o papel da ilusão, a estimulação dos sentidos, a convergência do realismo e da fantasia essas questões tão claramente colocadas pela fantasmagoria não apenas representam questões essenciais da epistemologia moderna, mas também questionam o que os artistas trabalham com o século XXI.” (GUNNING, 2004, online, tradução nossa) No final do século XIX os chamados shows de fantasmagorias se tornaram populares na França, sobretudo a partir dos espetáculos realizados pelo físico aeronauta Étienne Gaspard Robert (1763 – 1837), também conhecido por Robertson, nome que utilizava em shows de mágica. Em 1790, Paris vivia o período da terreur, com a banalização de execuções que faziam a população conviver de forma muito próxima com a morte e os cadáveres em decomposição. No prefácio de suas memórias, Robert afirma que através de seus espetáculos de fantasmagorias exorcizava as visões e os espectros de um terror real e cotidiano, o que o levou a incluir a aparição do fantasma de Marat, entre outros personagens históricos falecidos, em seus shows. Ele aprimorou a lanterna mágica de Athanasius Kircher utilizando lentes ajustáveis que permitiam alterar o tamanho das imagens projetadas, incluindo ainda jogos de espelhos, efeitos de fumaça e sonoplastia executada ao vivo. Após um período de suspensão de seus shows pelas autoridades parisienses, que consideraram que ele manipulava a audiência de forma perigosa, Robert encontrou o pavilhão Échiquier ocupado por outro fantasmagorista, vendo-se forçado a procurar um novo espaço para suas apresentações. Foi então que decidiu ocupar não mais uma casa de espetáculos, mas o Convent de Capucines, em uma ação que hoje poderíamos definir como site-specific. “Percebe-se facilmente que, se as ideias filosóficas deviam elevar o espírito acima do pavor involuntário que podem inspirar os fantasmas, o efeito do espetáculo exigia que as aparições repercutissem, ao menos enquanto ocorriam, uma espécie de terror religioso. Eu não poderia deste modo ter escolhido um lugar mais conveniente do que uma vasta capela no interior de um claustro.” (ROBERT, 1831, p. 276, tradução nossa) Desse ponto de vista suas fantasmagorias podem ser pensadas como formas de comunicação com o espírito da cidade e os mortos da revolução, e esta parece uma boa razão para explicar o sucesso que as manteve por quatro anos em cartaz em Paris, bem como meu interesse por este dispositivo para uma leitura de territórios físicos e simbólicos no Brasil. É da natureza do sistema capitalista de produção desassociar as forças sociais do trabalho dos bens comercializados, ou seja apagar como (e por quem) foram produzidos. O conceito de fetiche da mercadoria de Marx encerra um aspecto fantasmagórico, que reside justamente na alienação do trabalho dos bens a ele associados. A partir de uma perspectiva marxista da fantasmagoria, como sugere Derrida (1993), mais uma vez, se podem conceber modos de exposição das contradições inerentes ao sistema de produção, como uma forma de revelação das forças mascaradas pelas dinâmicas do capitalismo industrial. O marxismo contudo, não dá conta das lutas coloniais que se precipitam no Brasil no mesmo momento em que Marx escreve, em 1867, o seu Capital. De que modo então pensar a fantasmagoria como um conceito que abarque também o projeto de apagamento e ruína produzido no contexto brasileiro? Uma fantasmagoria que dê conta das contradições inerentes ao processo de modernização da Bahia, considerando ainda que Salvador, como o slogan da Prefeitura nos “lembra para esquecer”2, é “a primeira capital do Brasil”? 3. Salvador, Bahia Fanon acredita, portanto, que o trauma do povo negro se origina não apenas dos eventos familiares, como argumenta a psicanálise clássica, mas do contato traumatizante com a desrazão violenta do mundo branco, isto é, com a irracionalidade do racismo que nos coloca, sempre como "Outro". O "Outro" do sujeito branco. KILOMBA, 2010, on line, tradução nossa) 2 Expressão empregada por Rogério Daflon em matéria a respeito do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Disponível em ​https://apublica.org/2016/07/o-porto-maravilha-e-negro/​. Consultado em: 15.06.2018. Em 1890 Rui Barbosa, então ministro da Fazenda da recém-proclamada República, ordena a destruição de todos registros tributários do Ministério do Tesouro relacionados à escravidão, sob o argumento de romper com a herança colonial e libertar-se rumo a um novo mundo republicano. Um gesto dramático e literal de queima de arquivo, cometido pelo estado brasileiro contra a memória e a história não apenas da população afrodescendente, mas da própria formação do Brasil. Nega-se o passado e projeta-se o futuro com uma política oficial de embranquecimento e desafricanização, associando os ideais de progresso e desenvolvimento ao apagamento da herança dos povos africanos. A fantasmagoria colonial tem cor, e sua escavação traz à tona faces da luta contra o racismo no Brasil. Entre o final do século XVIII e meados do século XIX chegam a Salvador, escravizados, quase cem mil negros da costa da mina africana (FILHO, 1946). Quem eram esses homens e mulheres que passam a compor, junto a outras etnias africanas quase 70% da população da cidade? Ainda que os arquivos oficiais sejam escassos e que os relatos da história oral apresentem múltiplas contradições, estima-se que com as guerras que culminaram na queda do Império de Oyó, situado na costa do Benin e no território onde hoje fica a Nigéria, muitos membros da elite Ketu foram escravizados e enviados ao Brasil (SILVEIRA, 2006). Eram sacerdotes e sacerdotisas que ocupavam cargos administrativos e religiosos em suas comunidades de origem e que trouxeram, na fantasmática de seus corpos, o culto à ancestralidade. Muitas dessas personalidades, ainda como escravizadas ou já libertas, organizaram-se em sociedades secretas no Brasil no início do século XIX, constituindo devoções e irmandades que, além de perpetuar a cultura, a língua e as tradições iorubá, contribuíram ativamente com os movimentos pela independência e pela abolição da escravidão no país. As negras de ganho, como eram chamadas em Salvador as mulheres que vendiam produtos diversos pelas ruas da cidade, chegaram a deter o monopólio de gêneros de primeira necessidade na capital, garantindo lucros que possibilitaram a compra de alforrias e o auxílio a fugidos ou aquilombados. As tentativas de minimizar ou esconder o protagonismo e a liderança dessas mulheres no Brasil nos ensina que a fantasmagoria colonial tem, além de cor, gênero. In “O negro na Bahia”, publicação de Luiz Vianna Filho de onde extraímos os dados estatísticos sobre o tráfico negreiro, o prefácio de Gilberto Freyre (FILHO, 1946, p. 17) exalta os “quindins sexuais” da “negra capaz de servir de exemplo dos extremos de graça, de delicadeza de gestos, de elegância de porte, de doçura de voz, de encanto pessoal que pode atingir a mulher de origem africana, mesmo quando preta ou quase preta.” (sic) Essa descrição romântica e racista das africanas mascara o destaque das mulheres negras nas lutas políticas da Bahia, e é contra esse apagamento que a fantasmagoria negrofeminina vem se posicionar. A devoção da Nossa Senhora da Boa Morte, fundada pela negras de partido-alto, elite feminina nagô-iorubá da Barroquinha, é um grande exemplo de organização que conecta a espiritualidade a outras esferas da existência humana: intelectual, econômica e social. Atuando estrategicamente na implantação do Candomblé na Bahia, financiando inclusive o trânsito de libertos entre Salvador e Nigéria como parte de um programa de formação e iniciação, essas mulheres trabalharam para a estruturação de uma organização não apenas religiosa, mas política e cultural na Salvador oitocentista. A procissão da Boa Morte, que “chegou a ser uma das mais espetaculares da cidade”, nas palavras de Renato da Silveira (2006), é apenas a ponta de um iceberg do que esse movimento representou em termos de força econômica e influência política. Ao estabelecer a associação sincrética entre orixá e santos católicos, o Candomblé se fixa como estratégia de sobrevivência, conquistando durante algum tempo espaço dentro da própria Igreja da Barroquinha para o assentamento do primeiro terreiro de Ketu na Bahia. Contudo, essas manifestações de força, riqueza e poder africano no centro da cidade não eram percebidas positivamente pelas autoridades. Em 1850, a Barroquinha sofreu o que se poderia chamar de limpeza étnica. O presidente da província à época, Francisco Gonçalves Martins, o Visconde de São Lourenço, expulsou os negros da Irmandade e destruiu várias construções populares deles em nome de uma modernização necessária ao centro da metrópole baiana. (OLIVEIRA, 2005, p.71) A presença africana causava desconforto na sociedade soteropolitana de mentalidade escravocrata, que tinha a elite parisiense como modelo civilizatório. Através de teorias respaldadas pelo racismo científico o estado brasileiro identificava a população negra e afrodescendente como uma ameaça ao avanço da civilização, e o candomblé e os afoxés foram varridos do centro. Não se tratava apenas de “reurbanizar as cidades mas de consolidar a ideia de república a partir do modelo da Paris burguesa e monumental de Haussmann.” (FONSECA, 2002, p. 23). Nesse cenário “as costumeiras formas coletivas de divertimento como o entrudo deveriam dar lugar a práticas civilizadas como o cinematógrafo.” (FONSECA, Apud, p. 25) Nesse contexto o cinematógrafo era apresentado não apenas como uma curiosidade mas também como um instrumento para educar e civilizar a população da capital baiana, atendendo a seus anseios de modernização à imagem e semelhança dos grandes centros cosmopolitas europeus. Esse espelhamento na Europa em geral e na França em particular teve na chegada da corte portuguesa ao Brasil em 1808 seu grande marco. É interessante lembrar que Dom Pedro II foi possivelmente o primeiro fotógrafo do país quando, em 1840, adquiriu em Paris seu daguerreótipo. Foi ainda na cidade imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro, que teve lugar em 1o. de maio de 1897 a primeira exibição de filmes realizados no Brasil.3 Nessa época, na França e em outros países da Europa, assim como nos EUA, era comum encontrar nos entusiastas dos novos ​media da fotografia, do rádio e da projeção cinematográfica o interesse pelo espiritualismo. Este era considerado, em altos círculos intelectuais, como uma doutrina científica que se utilizava desses ​media para manter comunicações espirituais. Na Bahia esse tipo de abordagem terá que negociar com o culto aos orixás e aos egunguns, entre outras formas de invocação estabelecidas em terreiros em Salvador, Itaparica e no Recôncavo, onde as técnicas de conexão com os mortos, os ancestrais e os deuses são parte de rituais sagrados e secretos, restritas a iniciados. Em Salvador a primeira sessão do cinematógrafo acontece também em 1897, no Teatro Politheama, no dia 04 de dezembro (Boccanera, 2007; 2008), dia de Santa Bárbara, sincretizada na Bahia com a orixá Iansã, Senhora dos Eguns (espíritos dos mortos)​. Acredito que a escolha dessa data poderia ser interpretada como uma intencionalidade de correspondência com tradições anteriores de projeção de imagens, invocação de espíritos e aparições fantasmagóricas. Se é ​Iansã a divindade dos ventos que zela pelos espíritos dos 3 O Cine Fantasma realizou escavação e intervenção em Petrópolis em 2014. Documentação disponível aqui: ​https://cargocollective.com/cinefantasma/Cine-Fantasma-Imperial​. mortos, me pergunto se poderíamos considerá-la como orixá à qual vêm se sobrepor a fantasmagoria cinematográfica. Desse modo ​a coincidência da estréia do cinematógrafo na Bahia com o dia da santa poderia ser pensada como mais uma estratégia sincrética. Para a Griot Ebomi Cici (em entrevista realizada em julho de 2018) essa é uma possibilidade a ser considerada, se levarmos em conta que Iansã “projeta o fogo em forma de faíscas”. Mas estabelecer essa correspondência seria como fazer “uma pesquisa de pós doutorado”, nas palavras da sábia. Para a Yalorixá Mãe Walkiria de Oxum (em entrevista realizada em julho de 2018) “cinema e candomblé não se misturam”, e essa é uma suposição que não faz sentido. De todo modo ainda não obtivemos dados suficientes para afirmar que a festa de Santa Bárbara já obtivesse grande projeção em Salvador em 1897. Mas sabendo que Iyá Nassô, figura mítica pertencente ao grupo nagô responsável pela fundação do Candomblé da Barroquinha era comerciante de carnes com quitanda no mercado de Santa Bárbara (SILVEIRA, 2006, p. 414), essa parece ser um hipótese que merece ser investigada. Um projeto epistemicida é violento no sentido de que mata pela linguagem e pelo pensamento. Mas a resistência da luta negra é uma resistência também no corpo. As tentativas de neutralizar, sobrepor ou aniquilar as manifestações da cultura africana na Bahia, apesar de violentas e reincidentes, não parecem ter logrado êxito. Ainda que o fantasma do racismo esteja bem presente no desenho da sociedade soteropolitana contemporânea, é inconteste a presença, a penetração e a força dos ritos, das festas, dos ritmos e dos espíritos africanos que continuam a vibrar na cidade. De modo que quando falamos em fantasmagoria colonial e negrofeminina não estamos falando de apagamento, mas de sobrevivência. Estamos nos referindo à potência desses corpos. 4. Considerações finais: Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela Nas páginas anteriores procurei traçar as bases para a compreensão de uma fantasmagoria colonial e negrofeminina na Bahia. É um tarefa grandiosa, como Ebomi Cici bem compreendeu, e da qual estou aos poucos me aproximando, impulsionada “para horizontes pluriepistêmicos e para a prática de ações comprometidas com o combate às injustiças cognitivas/sociais.” (RUFINO, 2016) Gostaria, a título de conclusão dessa breve incursão, de apresentar uma série de fotografias realizadas por Rebeca Carapiá na cidade de Saubara, pois creio que ilustra, de maneira exemplar, o que as contradições coloniais são capazes de encenar, considerando o panorama oitocentista baiano. Rebeca buscou, em suas palavras, “(re)produzir imagens de mulheres negras em consonâncias e dissonâncias com o contexto histórico”, acompanhando, com sua câmera fotográfica, a procissão noturna conhecida como Caretas do Mingau. Trata-se de uma fantasmagoria genuína do Recôncavo Baiano, que resiste nos corpos e nas tradições orais e recentemente ganhou a forma de dissertação de mestrado em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia sob o título de ​A guerra tem rosto de mulher: as Caretas do Mingau! Narrativas da Independência da Bahia em Saubara​, de Vanessa Pereira de Almeida. As Caretas do Mingau são uma procissão anual que acontece durante os festejos da comemoração da independência baiana, o dois e julho, de modo a recriar as caminhadas dos bandos de mulheres que saíam na calada da noite, cobertas por lençóis e véus brancos assustando as tropas imperiais. Essa forma combativa de produção fantasmagórica serviu de disfarce para que as bravas mulheres levassem em suas panelas de mingau comida, armamentos e munição aos combatentes que lutavam pela independência. O legado das Caretas permanece vivo não apenas como manifestação folclórica, mas como força e resistência de corpos políticos na luta pela liberdade. “Ao pensar em reexistências, ou seja, estratégias de enfrentamento para modos de existência frente às opressões que sofrem os corpos de mulheres negras, as Caretas fazem surgir ou tornam visíveis imagens do imaginário”, continua Rebeca. ​Nessa perspectiva o conceito de fantasmagoria se apresenta não apenas como espetáculo, jogo ilusionista, ritual de invocação ou meio de comunicação com o além, mas como forma de luta, enfrentamento e resistência. “Articulando inconsciente e imaginário de maneira a experimentar formas, elementos técnicos e efeitos estéticos para a produção de imagens, estou interessada em elaborar uma escrita fotográfica, onde as imagens se apresentam como vestígios que instigam a reflexão, a curiosidade e o pensamento crítico.” (CARAPIÁ, 2018) Referências BOCCANERA JR, Silio. ​Os cinemas da Bahia, 1897-1918. 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