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FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA AUTONOMIA HISTÓRICA E AUTONOMIA INSTITUCIONAL Conceitos fundamentais para compreender a arte como prática histórica e pós-histórica Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da Arte Orientador: Rodrigo Antônio de Paiva Duarte Mónica Herrera Noguera Belo Horizonte, MG, Brasil 2015 1 100 N778a 2015 Noguera, Monica Herrera Autonomia histórica e autonomia institucional [manuscrito]: conceitos fundamentais para compreender a arte como prática histórica e pós-histórica / Monica Herrera Noguera. - 2015. 206 f.: il. Orientador: Rodrigo Antônio de Paiva Duarte. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia 1. Filosofia – Teses. 2. Arte - Teses. 3. Arte – História Teses. I. Duarte, Rodrigo A. de Paiva (Rodrigo Antônio de Paiva). II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. 2 3 Como la cigarra María Elena Walsh Tantas veces me mataron, tantas veces me morí, sin embargo estoy aquí resucitando. Gracias doy a la desgracia y a la mano con puñal porque me mató tan mal, y seguí cantando. Cantando al sol como la cigarra después de un año bajo la tierra, igual que sobreviviente que vuelve de la guerra. Tantas veces me borraron, tantas desaparecí, a mi propio entierro fui sola y llorando. Hice un nudo en el pañuelo pero me olvidé después que no era la única vez, y volví cantando. Cantando al sol como la cigarra después de un año bajo la tierra, igual que sobreviviente que vuelve de la guerra. Tantas veces te mataron, tantas resucitarás, tantas noches pasarás desesperando. A la hora del naufragio y la de la oscuridad alguien te rescatará para ir cantando. Cantando al sol como la cigarra después de un año bajo la tierra, igual que sobreviviente que vuelve de la guerra. 4 A meu irmão, Jorge Luis Herrera, que não chegou a me ver começar este doutorado (In memoriam, 1979-2009) À minha mãe, Berta Noguera, que não chegou a me ver acabar este doutorado (In memoriam, 1943-2015) Ao meu pai, Walter Herrera, que venceu o câncer nos últimos dois anos e meio e hoje está aqui comigo 5 AGRADECIMENTOS À minha família; Ao Professor Dr. Rodrigo Duarte pela paciência, confiança e orientação deste trabalho; Às Professoras Virginia Figueiredo e Imaculada Kangussu por aceitarem fazer parte da Banca de Qualificação — que trabalhou com muita celeridade — permanecendo na Banca de Defesa; Aos Professores que aceitaram o convite de integrar a Banca de Defesa, Bruno Guimarães e Verlaine Freitas, assim como às suplentes Alice Serra e Debora Pazzeto, que também aceitaram trabalhar com celeridade nesta tese; A Juan Introini, meu professor de latim, por sua paixão pela literatura e Antiguidade (In memoriam); À Maria Fernanda Pallares, amiga e colega, a quem faltam palavras de agradecimento, por tudo o que contribuiu para comigo e para com este trabalho; A Marco Antônio Alves, pela acolhida em Belo Horizonte, amizade, paciência e mão sempre aberta para me ajudar; À Gisele Seco, amiga do peito e colega, pela ajuda neste trabalho e por compartilhar tantas coisas da vida e da filosofia desde meus primeiros dias no Brasil até hoje; Ao Pablo Bartkevicius pela ajuda neste trabalho e amizade inquebrantável; A Adrián Castillo, amigo e Professor de língua e literatura gregas, pela amizade, parceria e o assessoramento; A Inga Heilmann, amiga e intérprete de alemão, castelhano, português e inglês, pela amizade e o assessoramento; À “equipe de resgate” do português: Gisele Secco, Daniel Nascimento, Kelin Valeirão, Marco Antônio Alves e Juliano do Carmo, por revisar o texto em momentos 6 de pouco tempo e muita nervosia. Por fortuna, se algo ganhei por ter escolhido desenvolver parte da minha formação acadêmica no Brasil, foi conhecer alguns dos amigos mais maravilhosos do mundo; Aos Professores Romero Freitas e Christian Klotz, por responderem às minhas perguntas sempre que foi preciso; Ao Professor Mario Gonzalez Porta, pela amizade e importantes conselhos; A Aníbal Corti, a Juliano do Carmo, a João Gabriel Dominguez, a James Garrison, à Susana Gonzalez, a Jóse Guzman, à Mariella Magliano, à Florencia Martinez, à Florencia Santangelo, à Lorena Segal, à Carolina Pereira Soares, à Kelin Valeirão e família, à família Valentini Carducci e à Eugenia Villarmarzo pela amizade e por me ajudarem sempre que foi preciso; Às minhas amigas e aos amigos do bairro Ermelinda: Ana, Greici, Jaqueline, Lamón, Maria Vitória e Mirandinha, por me receberem e me tratarem como família; À Mercedes Sarubbo, pela ajuda precisa; A Ernesto Anzalone e família, pela colaboração durante o período das provas e nos primeiros três anos do doutorado; Ao revisor Eduardo Almeida e à tradutora e revisora Tatiana Zismann, pelo labor e paciência; Aos meus colegas do Espacio de Formación Integral Teorías estética contemporáneas en diálogo con el arte callejero, Pablo Bartkevicius, Hekatherina Delgado, Alejandro Gortazar, Washington Morales, Katherine Perdomo, José Stagnaro, Fernando Suárez, Guillermo Uria pela amizade, parceria e solidariedade, tanto na hora de tomar conta do curso de Estética II, como durante alguma urgência da tese que me obrigou a deixar de lado as minhas tarefas como responsável do Espacio. 7 A Washington Morales, amigo e colega no debate em Estética, pela solidaridade constante cada vez que as demandas da tese me obrigaram a deixar de lado minhas responsabilidades docentes; À Inés Moreno por tomar conta das aulas de Estética tanto durante o meu afastamento na FHCE-UDELAR, e durante os imprevistos — tanto da vida quando da tese —, que me obrigaram a deixar de lado as minhas responsabilidades docentes. À Malvina Ruiz, a Sebastián Bosch, à Sala de Filosofia do Centro Regional de Profesores Suroeste, aos Professores Daniel Calcagno, Martín Fleitas, Guillermo Nigro, Mónica Planchón, Sergio Rozas, Luciana Soria e ao Diretor do Centro Regional de Profesores Litoral, Professor Victor Pizzichillo, pelo apoio para que eu pudesse trabalhar nos últimos meses da tese; Aos meus estudantes do primeiro semestre de 2015, do Centro Regional de Profesores Suroeste (Colonia del Sacramento), da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación e do Centro Regional de Profesores Litoral (Salto): Juliana Acerenza, Nicolás Acosta, Valeria Alvez, Marcela Bacigalupi, Pablo Bartkevicius, Valentina Bentos, Favio Dauria, María José Duarte, Gretel Ernst, Federica Folco, León García, Gonzalo Gómez, Horacio Mantero, Camila Pedreira, Tiago Rama e Diego Valiñas, pela paciência ou pela impaciente paciência com a qual sobrelevaram minha presença ausente; Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento da pesquisa; Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG, por me conceder todas as prorrogações possíveis, dentro do regulamento; 8 À Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de la Universidad de la República, por me conceder o afastamento do cargo, necessário para me deslocar a Belo Horizonte. 9 AGRADECIMENTO ESPECIAL No ano 2001, concorri a uma vaga de Professor Ajudante de Estética para o Instituto de Filosofía da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación da Universidad de la República. Entre os temas para a prova escrita incluia-se uma análise do livro de Pedro Figari — pintor e pensador uruguaio — Arte, estética, ideal. Durante a preparação do tema, li no artigo Pedro Figari: pensamiento y pintura”1 de Juan Fló, então Professor Titular da disciplina, o seguinte: Para evitar certas simplificações, que tendem a ser acriticamente aceitas, vem à tona lembrar que o surgimento de uma consciência social clara da autonomia da arte não é uma invenção da modernidade nem propriedade da burguesia. Não é este o lugar para discutir a questão, mas considero suficiente, para dar por resolvida a questão, lembrar a situação das obras no mercado romano, tal e como está documentado em Plínio, por quem sabemos da existência de colecionadores ou “amateurs” dispostos a pagar preços muito altos por obras das quais não importa nada mais a autoria.2 Eu estava, nessa época, estudando língua e literatura latina, e esse fragmento funcionou como bússola tanto para a minha monografia do Seminário da área, como para outros textos apresentados em eventos de Filologia clássica. Mas também, com o tempo, devo reconhecer que tem-se convertido em um dos problemas filosóficos mais importantes da minha atividade acadêmica. Por esse motivo, e tantos outros, quero fazer um agradecimento especial a Juan Fló, mestre e amigo que, seja por estimular minhas pesquisas, seja por compartilhar o seu saber comigo e com todos, permitiu-me traçar uma tese ambiciosa e abrangente sem 1 Em: Claps, M. (ed.) (1995) Ensayos en homenaje al doctor Arturo Ardao. Montevideo: Departamento de Publicaciones de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la República, 98-130. 2 “Para no incurrir en ciertas simplificaciones, que tienden a ser admitidas algo acríticamente, no está demás recordar que la aparición de una clara conciencia social de la autonomía del arte no es un invento de la modernidad ni del dominio de la burguesía. No es el lugar para discutir esta cuestión, pero creo que alcanza, para que la cuestión quede zanjada, con recordar la situación de las obras en el mercado romano, tal como aparece documentada en Plinio, por quien sabemos de la existencia de coleccionistas o “amateurs” dispuestos a pagar precios altísimos por obras en las que no importa otra cosa que la autoría.” 10 temor de perder o rigor, tanto na filosofia da arte, quanto na sua história e no valor mesmo da prática artística. Se, como parece ter falado Bernardo Des Chartres, somos anões nos ombros de gigantes, eu, então, tenho o privilégio de enxergar essa disciplina desde os “ombros” deste grande Professor e Filósofo. 3 3 Por óbvio, isto não faz ele responsável pelos erros nos quais possa ter sido capaz de desaproveitar esta grande oportunidade. 11 RESUMO Autonomia histórica e autonomia institucional: conceitos fundamentais para compreender a arte como prática histórica e pós-histórica Quando a arte, através de processos internos e externos, atingiu um estado de autonomia como prática com saberes e fazeres próprios, começaram a surgir problemas sobre o seu sentido e/ou justificativa. O mundo da arte tornou-se uma instituição especializada dependente do mercado e/ou dos Estados que, exceto onde conflui com o entretenimento, se estrutura autotélicamente. Assim, resta pouca margem para questionamentos e para um grande número de receptores que não são interpelados pelo produzido no âmbito da cultura lhes é tanto alheio como indiferente. Cada vez mais, uma obra de arte é apresentada como uma comunicação em um Congresso, algo feito por conhecedores para os conhecedores. De outra parte, a filosofia e a teoria da arte têm considerado essa prática como alheia a conhecedores, como algo que, muitas vezes, nem sequer pode ser considerado arte, embora compartilhando técnicas e referências semelhantes às que fizeram possível a autonomia da qual falamos. A arte heterônoma é, num sentido radical, uma arte que não sabe que o é. Os saberes e fazeres em seu entorno eram outros, devido a eles foi possível que surgisse a arte heterônoma. Nossa tese defende que o conceito arte inclui a autonomia mesmo que seja num grau mínimo, relacionado sempre com a heteronomia, e que essa relação permite compreender o mesmo conceito arte como uma prática com história na sua relação com as técnicas e a recepção. Compreender alguns dos bojos históricos e filosóficos dessa relação, como sua articulação hegeliana para o que hoje chamamos “fim da arte” é um passo prévio inevitável para compreender a autonomia institucional, essencial na contemporaneidade e no fenômeno da pós-história. Palavras-chaves: Autonomia institucional; heteronomia; historia da arte; fim da arte. 12 ABSTRACT Historical and institutional autonomy: fundamental concepts to understand art as an historical and posthistorical practice When art, through internal and external processes, reached a state of autonomy as a practice with its own knowledge and practices, a set of problems concerning its meaning and/or justification emerged. The artworld became a specialized institution dependent on the market and/or the government, which is structured autotelically, except when it comes to entertainment. Thus, there only remains a narrow margin for anything that questions art or for a large number of receivers who are not challenged by what is produced as culture, which is either alien or indifferent to them. More and more, a work of art is presented as a communication in a Conference, something done by one specialist for other specialists. On the other hand, philosophy and art theory have considered this practice as foreign to connoisseurs, as something that often cannot even be considered art while sharing techniques and references similar to those made possible the autonomy of which we speak. Heteronomous art is, from a radical point of view, an art that would not know that is such a thing in any way; the knowledge and practices surrounding it were different and because of that was that heteronomous art itself was made possible. Our thesis hold that the concept “art” includes autonomy even if it is in a minimal degree always related with heteronomy, and that this relation allows us to understand the concept “art” as a practice with its own history, given its relationship with the techniques and the reception. Understand some of the historical and philosophical landmarks of this relationship, as its articulation on what we call, nowadays, the Hegelian theory of the “end of the art”, it’s a necessary previous step to understand the "institutional autonomy", essential for contemporaneity and the post-historical or phenomenon. Keywords: institutional autonomy; heteronomy; art history; end of art. 13 SUMÁRIO Introdução ....................................................................................................................... 17 Capítulo 1: Autonomia da arte: um fenômeno exclusivamente moderno? .................... 23 .................................................................................................................................... 25 1.1. Um enigma escultórico ........................................................................................ 27 1.2. A elegia erótica.................................................................................................... 42 1.3. Alguns aportes finais ........................................................................................... 53 Capítulo 2. As coordenadas da autonomia para o discurso filosófico em Immanuel Kant ........................................................................................................................................ 56 2.1. O desinteresse ...................................................................................................... 56 2.2. A espontaneidade da arte .................................................................................... 70 2.3. Normatividade do gosto e autonomia.................................................................. 88 Capítulo 3: Os românticos alemães: a zona úmbria entre heteronomia e autonomia da arte .................................................................................................................................. 94 3.1. Os direitos do artista na cidade das artes e a crise da ideia de mimese como simples imitação ......................................................................................................... 96 3.2. O gênio criador ................................................................................................. 108 3.3. Obra de arte e símbolo ...................................................................................... 117 Capítulo 4. Fim da arte heterônoma e fim da arte ....................................................... 124 4.1. A autonomia da arte como resultado dialético diferenciado entre duas formas de entender a relação entre natureza e liberdade......................................................... 125 4.2. O desenvolvimento dialético do Espírito na arte até o seu fim ......................... 138 4.2.1. A arte e o real.............................................................................................. 140 4.2.1.1. A arte como produto do espírito .......................................................... 141 4.2.1.2. Críticas hegelianas à mimese............................................................... 147 4.2.1.3. Observações finais ............................................................................... 152 4.2.2. A arte e o sensível....................................................................................... 152 4.2.2.1. A pintura e o realismo pictórico .......................................................... 161 4.2.2.2. Observaçoes finais ............................................................................... 175 14 4.2.3. Ilusão de realismo? ..................................................................................... 177 4.3. “A arte tem que ser poesia ou prosa?” ............................................................. 178 Conclusões .................................................................................................................... 186 Bibliografía ................................................................................................................... 192 15 “Se este peixe no dia do Juízo Final se levantar contra você e disser que ganhou um corpo, mas não uma alma viva, como você vai se justificar perante esta acusação?” Turco de Abissínia ao explorador inglês James Bruce 16 Introdução Non intret Cato theatrum meu, aut si intraverit, spectet. Que não entre Catão [“O Censor”] ao meu teatro, porém se chega a entrar, que assista. Martial. Epigrama I 4 A arte é crítica? Como se faz arte crítica se a arte forma parte de uma instituição? Pelo reconhecimento, valoração e inserção numa narrativa que unifique a arte autônoma com a arte heterônoma? Pelo reconhecimento dos poderes que permitem que um objeto seja arte e outro não? Pela própria arte? Voltando-se ao universo onde a arte heterônoma era possível? É possível voltar pela mera vontade do artista a uma arte heterônoma? Todas essas perguntas podem ser encontradas na literatura contemporânea sobre a arte, mas também podem ser rastreadas até estágios mais ou menos precoces da filosofia. Nossa tese fundamental será a de que a autonomia da arte consolidada no início do século XX desembocou em uma institucionalização da prática artística, que devora e neutraliza qualquer tentativa de viver a arte fora da distância estética e sua consequente subjetividade idiossincrática, como pode-se propor tanto a arte engajada como as formas contemporâneas de arte religiosa. Desse modo, a potencialidade crítica perde sua relevância na exata medida em que a estetização oca e a originalidade vã se tornam o único produto que a arte produz, expõe e armazena. Tudo isso, é claro, além das intenções dos artistas, do público, dos financiadores ou diretamente num sistema de mercado que forma parte deste processo de anulação, mas que não é o único que explica sua falta de sentido vinculante da arte. 4 Todas as traduções do latim ao português são nossas. 17 A presente tese pretende mostrar que o processo prévio a tal autonomia institucionalizada não é menor na hora de compreender nem a arte autônoma, nem as consequências da sua autonomia. Defenderemos que o conceito arte — em todos os tempos e formas prévias ao da autonomia institucionalizada — inclui uma noção de autonomia, mesmo que seja num grau que está sempre relacionado à heteronomia, e que essa relação nos permite compreender o conceito arte como uma prática com uma história relacionada com as técnicas e recepção. Aliás, o título final desta tese deveria ter sido “Autonomia e heteronomia da arte. Duas categorias fundamentalmente ligadas para compreender a arte como prática histórica e pós-histórica”, na medida em que pouco se consegue falar da autonomia institucional, por causa da ênfase no processo histórico-filosófico que levou até ela. Esperamos mostrar que tanto compreender alguns dos bojos históricos e filosóficos desta relação entre autonomia e heteronomia, como sua especial articulação hegeliana para o que hoje chamamos “fim da arte” é ainda mais importante do que reduzir a longas discussões a pretensão de estabelecer um conceito preciso da autonomia, geralmente associado hoje a algum tipo de definição da arte e, portanto, cada vez menos caraterizável nas suas mutações históricas. A autonomia da arte é geralmente pensada como um processo que se iniciou no Renascimento e chegou ao seu apogeu e consolidação no início do século XX com as vanguardas europeias.5 Esse processo envolve o afastamento da arte de outras funções, especialmente religiosas, rituais, metafísicas; símbolos que configuraram as principais formas de ver o mundo em várias épocas e culturas. Sendo assim, podemos dizer que a arte heterônoma tem sido um fenômeno de valor duplo (interno e externo), com uma significação tal que era capaz de interpelar a um público que não necessariamente se 5 Cf. BELTING, H.: 2006; 2009. 18 deliciava no valor artístico, mas que se reconhecia no valor extra-artístico e, destarte, chegava a formar parte da sua subjetividade tanto individual como coletiva — o que tornou sempre tão violento a destruição ou saqueio da arte de uma comunidade. A forma mais radical é aquela que afirma que aquilo que entendemos por arte heterônoma simplesmente não é arte. Esta arte sequer poderia ser considerada como tal, embora compartilhe técnicas e referências semelhantes às que tornaram possível as obras autônomas sobre as quais falamos hoje. A arte heterônoma é, num sentido radical, uma arte que nunca soube que o era, e que os saberes e fazeres que tornaram possíveis tais objetos se conectaram por uma curiosa perversidade da história, que de forma arbitrária os colocou em museus aos quais não pertenciam. Tal concepção tem sido tão persuasiva que, mesmo na chamada pós-história, é mister apelar a ela para compreender como os objetos, que não foram produzidos para serem apresentados ao mundo da arte,6 formam hoje parte da história da prática.7 Ao desconsiderar as visões radicais tanto da autonomia como da heteronomia, procuraremos dar conta dos aspectos fundamentais do processo que os vincula em termos de graus em quatro capítulos. No primeiro, apresentaremos a relação produção-técnica-recepção que encontramos própria da Antiguidade, a qual tenta deslocar o olhar a respeito da tradição pré-moderna sobre a autonomia da arte, mostrando que nem toda a história da arte pode se reduzir a uma fase heterônoma e a uma fase autônoma nem do escopo extraestético, nem do escopo intraestético. Destarte, procuraremos mostrar como os conceitos de autonomia e heteronomia poderiam ser aplicados em conjunto e de forma frutífera para história da arte. 6 Ou seja, para cumprir o requisito fundamental da definição de arte conforme G. Dickie e, ao que se pode deduzir, foi reconhecido também por Arthur Danto no artigo “O mundo da arte”. 7 Algumas considerações a este respeito serão fornecidas nas conclusões. 19 Em segundo lugar, e para dar início à história da consolidação filosófica que acompanhou o percurso de autonomização da arte, pretendemos analisar o lugar da autonomia do gosto através da perspectiva de Immanuel Kant em sua conhecida Crítica da Faculdade do Juízo — autor de fundamental importância para a legitimação contemporânea da arte, referente e precursor de várias linhas de interpretação das artes e dos fenômenos estéticos em geral. Ao se compreender a autonomia da arte, num sentido muito geral, como o fenômeno pelo qual esta prática adquire legitimação social com fins próprios, tradicionalmente datado no percurso dos séculos XVII e XVIII, podemos situar a perspectiva de Immanuel Kant em uma fase de transição de uma arte antes concebida como meio ao serviço de outras funções para uma arte feita para si mesma, ou a arte pela arte como costuma aparecer na literatura corrente sobre o tema. Porém, a presente tese sustenta que o filósofo de Königsberg é importante não somente por fazer parte deste processo, nem por ter sido muito apreciado por aqueles que continuaram com ele — o que já não é pouco. Consideramos que Kant estabeleceu as coordenadas do debate em torno da autonomia da arte e que essas coordenadas ou pontos fundamentais da forma de ver o problema ainda interpelam a todos aqueles que pretendem trabalhar com a questão. Nossa estratégia será a de considerar tais coordenadas em três instâncias: a do desinteresse, a da relação arte/natureza, e a do espaço da autonomia da arte enquanto uma esfera específica além da definição do que a própria arte seja. No capítulo 3, faremos um percurso pelas mutações do gosto entre os românticos, a rejeição do valor normativo do gosto, a ideia de genialidade e uma nova concepção da importância da arte servirão para esclarecer o novo lugar que a crítica passa a ter no século XIX. Esse lugar terá ressonâncias fundamentais na consolidação do artista como máxima autoridade em matéria de arte, obrigatórias para compreender a consolidação de 20 sua autonomia e a subordinação da crítica a ela. A teoria da arte como um todo orgânico e da arte como símbolo darão aos artistas a oportunidade de desenvolver novas narrativas em torno de suas práticas, e mais adiante no tempo, fornecerão também um programa ao qual os artistas da Vanguarda opor-se-ão, tanto no que diz respeito à forma programática como à criativa. Finalmente, no caso de G. W. F. Hegel, a heterenomia e a autonomia irão percorrer um caminho conjunto, onde a primazia da importância do conteúdo levará Hegel a pronunciar-se em favor de uma arte como superior e a considerar, no desenvolvimento da arte como forma do Espírito, que ela tinha se esgotado por ter chegado a um estágio de autonomia muito peculiar. Neste capítulo, pretendemos mostrar, em primeiro lugar, que o desenvolvimento dialético da história da arte não necessariamente leva ao fim da mesma, colocando C. F. Schiller como oposto antagônico de Hegel, na medida em que sua concepção da história como um sem fim, e da humanidade como uma infinita tarefa criativa estéticomoral, faziam da arte algo que viveria tanto quanto a própria humanidade. Schiller tentou mostrar que a arte não poderia se afastar do cotidiano da vida, sendo parte essencial da formação desta, no sentindo de que, mesmo aceitando a nova ética não tradicional, pretendia manter uma forma essencial de nos relacionar aos valores. Hegel desenvolveu a oposição heteronomia-Ideal e a autonomia-predomínio da Forma, que o levou a acabar com a espiritualidade da arte, na medida em que a mesma foi-se desenvolvendo em uma forma mais aprimorada do ponto de vista técnico, entendendo do lado da técnica as possibilidades de verossimilhança e variedade (originalidade do artista). Assim, o filósofo de Stuttgard revaloriza a arte heterônoma desde a sua metafísica, um lugar privilegiado, onde é parte do caminho do Espírito Absoluto, porém, quase profeticamente, adianta que a arte vai perder esse aspecto 21 formador fundamental da subjetividade e espiritualidade — entendida como triunfo da verdade, do bem e da Razão —, na medida em que seu vínculo com o Absoluto e com a Razão vai se perder no universo do ponto de vista e no da experiência subjetiva individual. Apesar de seguir existindo, ela não figurará mais como aquilo que vincula a comunidade, senão como um produto residual da consciência subjetiva que compartilha com outras subjetividades sem outro propósito do que o de mostrar um ponto de vista que não almeja um mínimo de intersubjetividade. 22 Capítulo 1: Autonomia da arte: um fenômeno exclusivamente moderno? Conforme já foi assinalado na Introdução, geralmente se considera o processo de autonomia da arte como algo especificamente moderno, que germinou no Renascimento. Certamente temos bons motivos para acreditar que, efetivamente, é na modernidade que a autonomia da arte se instala como forma definitiva — e talvez única — de produção, circulação e recepção das obras de arte. No entanto, a falta de uma palavra específica para a arte na Grécia ou de um marco definido de tudo o que mais tarde passou a ser conhecido como Belas Artes, não deve, necessariamente, levar-nos a considerar que todas as artes da época eram produzidas com outros fins, e não com o desejo de produzir arte e fomentar a contemplação e a compreensão das obras para além da sua mensagem ou sem hesitar em trocar uma por outra na medida em que o fim fosse cumprido. A dimensão especificamente artística parece ter sido uma variável importante da produção grega e romana, mesmo sem que ela tenha se estabelecido com uma instituição do tipo que temos hoje: as pessoas produziam, vendiam e compravam arte. Não por isso deixou de existir uma arte religiosa, política, ritualística em sentido amplo. Porém, a artisticidade da arte foi credenciada como uma variável não menor das obras em circulação e das preocupações que podiam explorar sem a premência de um líder que não se importasse com os desenvolvimentos da sua prática, da prática dos artistas. O fato de ser figurativa, ou de tentar se aproximar da realidade perceptível, não faz a arte heterônoma, na medida em que tal alvo seja encaminhado na experimentação e na prática das técnicas próprias das obras. Da mesma forma, os cantos e danças nem sempre tiveram uma forma espontânea ritual ou uma censura restritiva que “engaiolasse” a obra no estado de outra coisa além de — em segredo — arte. Ainda que não nos seja possível, nesta tese, investigar a autonomia da arte na Grécia, indicaremos sua existência através de alguns exemplos, como a enorme 23 produção, aliás, supranumerária em relação aos fins cultuais, de esculturas e pinturas, assim como a popularidade dos espetáculos de teatro e concursos de interpretação, que tinham um público de conhecedores e outro que, pelo menos, achava gratificante participar do acontecimento. O comércio das obras de arte, mesmo não fazendo do modo de produção da época um assemelhado do nosso, mostra que o produto obra de arte seguia um padrão diferenciado de outros produtos tanto do artesanato como do culto. De outra parte, no que tem a ver com as técnicas, podem ser encontradas múltiplas formas de representação que apontam para uma liberdade do artista, certamente impensável em relação às artes heterônomas e mais ainda em relação àquela heteronomia que se satisfaz com o mínimo necessário para a sua função. Sem pretender fazer considerações sobre o progresso ou não da arte, desnecessárias para a nossa questão, podemos considerar — apresentando três fotos de pinturas como referência — o retrocesso do contorno na pintura e a consequente importância da tinta e o traço ou, o que é a mesma coisa, a capacidade de representar menos centrada nos esquemas de representação rígidos ou canônicos, como ocorre com o impressionismo no século XIX. Moça colhendo flores. Pintura em muro de Stabie. Século 1 a.C. 24 No caso da jovem que segura uma flor, podemos também estabelecer uma conexão com outro aspecto que foi importante para a posterior institucionalização da autonomia, a saber, a pintura que trata temas banais, como acontecera com o rococó.8 O balanço. Jean Jonore Fragonard. Óleo em tela. 1767 La Japonaise (or Camille Monet in Japanese Costume). Claude Monet. Óleo em tela. 1876 Finalmente, para fornecer um exemplo filosófico, citemos a República de Platão para mostrar que, mesmo para seu clássico opositor, a ideia da arte como prática específica, e valiosa, formava parte do imaginário da época. Com respeito às artes imitativas da pintura e da poesia, Platão considera, no Livro X da República, que elas se afastam duas vezes da verdade: da ideia e do uso e/ou produção. Essas artes reduziam-se ao ponto de vista e, destarte, careciam de valor de 8 Ambas as considerações podem auxiliar ou ser auxiliadas pelas teses de Ernst Gombrich em Arte e Ilusão, sem coincidir ou se derivar das premissas deste historiador e teórico das artes. GOMBRICH, E. 2007, especialmente pp. 99-125. 25 verdade, ao mesmo tempo em que abundavam em falsidade e capacidade de sedução. Por isso deveriam ser banidas da cidade ideal: Podemos, pois, com justiça censurá-lo e considerá-lo como o par do pintor; assemelha-se-lhe, por produzir ainda, por produzir apenas obras sem valor do ponto de vista de verdade, e assemelha-se-lhe ainda, por ter comércio com o elemento inferior da alma, e não com o melhor. Assim, eis-nos bem fundamentados para não recebê-lo em um Estado que deve ser regido por leis sábias [...]9 Surpreende, então, encontrar trechos como o do Livro V do mesmo diálogo, onde, mesmo sem refletir sobre a pintura, utiliza o pintor como um análogo do filósofo pintando com beleza um homem exemplar — o filósofo elabora modelos de cidades conformes à ideia de justiça, mesmo que não seja possível saber se existem o homem belo do pintor, ou a cidade justa do filósofo: [Sócrates] — Ora pois, pensas que a habilidade de um pintor fica diminuída se, depois de pintar o mais belo modelo de homem que seja capaz e infundir à sua pintura todos os traços convenientes, é incapaz de demonstrar que tal homem possa existir? [Glauco] — Não, por Zeus, não o penso. [Sócrates] — Mas o que fizemos nós mesmos neste colóquio, senão traçar o modelo de uma boa cidade?10 No “descuido” vemos, portanto, que não era tão evidente a doutrina da falsidade da obra do artista, nem tão desprezável seu labor.11 Neste capítulo, mais por uma deficiência e uma proficiência nossa — um conhecimento do grego muito elementar e um bom conhecimento do latim — tentaremos mostrar como o universo das artes tinha uma constelação específica, que 9 PLATÃO: 1965, 235/605 a-e. Ibidem, 44/472c-473b. 11 Para uma boa seleção de fragmentos de Platão sobre as artes e a beleza, consistentes ou não, ver TATARKIEWICZ, W. (1987). Confrontar estes fragmentos e outros possíveis não foi uma ideia nossa, foi aprendida como uma leitura “de prache” nas aulas de Estética da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación da UDELAR, ministradas pelo Professor Juan Fló, a Professora Inés Moreno e o restante dos professores que ditaram o curso. 10 26 obriga a considerar sua autonomia como variável central para a compreensão das próprias obras. Assim sendo, longe do anacronismo, sugerimos que uma compreensão da autonomia de um conjunto de práticas vai além da existência de uma palavra e uma definição por extensão, e precisa de uma análise de textos e objetos. Tekné e ars, sem dúvida incluíam práticas muito diversas. Porém, ao referir-se ao que hoje se chama “arte”, não se pode ignorar o conceito de autonomia, inevitavelmente vago pela falta de uso específico, mas fundamental para a compreensão das obras e comportamentos da época.12 1.1. Um enigma escultórico A especificidade da arte romana foi alvo de controvérsia em mais de uma oportunidade. Dado o consenso do reconhecimento da nudez — com a sua respectiva idealização — como algo propriamente grego e do retrato realista — atento ao detalhe e à fidelidade no que diz respeito ao retratado — algo propriamente romano, pode-se apresentar como controversa a interpretação da hibridação entre “corpos gregos” e “cabeças romanas”, que pode ser datada a partir de meados do século II a.C. ao já avançado Império. Como composições nos resultam bastante esquisitas e alheias a qualquer tradição de representação do tempo em que foram criadas, poderíamos supor que suscitariam a inveja de qualquer artista contemporâneo. Uma das mais antigas, encontrada em Delos — possivelmente datada do período anterior ao ano 69 a.C. — mostra: [Um] corpo nu, atlético, de formas robustas; a sua arrogância e porte heroico são notas de ascendência puramente grega. No entanto, a cabeça que coroa este esbelto nu de semideus é a de 12 Outro exemplo da necessidade de introduzir a noção de autonomia no reconhecimento do valor artístico de uma obra pode ser encontrado na recepção da arte pré-colombiana pelos conquistadores. Sobre alguns objetos que se salvaram de ser destruídos, como os ídolos, ou conforme a prática comum, fundidos para capitalizar o material, podemos encontrar trechos nos textos de Dürer exaltando o domínio da técnica e a artisticidade dos objetos da nova terra, formas certamente alheias a qualquer estereótipo de beleza conhecida na época. Sobre a recepção da arte pré-colombiana ver FLÓ, J.: 2002b. 27 um simples mortal. Imagem fidedigna de um itálico retratado “à romana” com todos os traços faciais bem individualizados, sem faltar duas orelhas enormes em leque. É o mesmo caso que vemos na estátua de Chieti, que depois vai aparecer também no militar anônimo de Tívoli [...] (García y Bellido, A.: 1990, 934) Outro exemplo que provocou um grande pavor entre os historiadores mais clássicos é o de uma mulher de idade avançada representada como Vênus, já na época de Adriano. Figuras de mais renome podem ser encontradas nos retratos de imperadores sobre corpos de Ares, Júpiter ou Poseidon, ou na adaptação, certamente mais sutil, do retrato de um orador romano ainda sem identificação, com um Hermes, feita por Kleómenes. 13 Essas obras têm sido consideradas marginais do ponto de vista da história da arte, tanto pelo seu escasso valor original — trata-se, na maior parte delas, de cópias de obras clássicas gregas feitas com um critério quase industrial — quanto pelo seu escasso valor compositivo, tomando como referência um grupo de obras canônicas, dentro das margens utilizadas para avaliá-las tanto pelos modernos como por seus próprios contemporâneos. Face aos estudos sociais da história e da arte, surge uma nova atitude que pergunta a essas obras pelas formas de autorepresentação e sobre seu significado no marco geral tanto do acontecer político e social como no das crenças sobre os fins e efeitos da representação pictórica e/ou escultórica. Assim sendo, vamos problematizar algumas das possíveis interpretações dessas esculturas, relacionando o significado da nudez — 13 GARCÍA y BELLIDO, A.: 1990, 96-7 e 317. 28 sendo que a tradição romana nem sempre mostrou uma relação infensa a problemas no que diz respeito à exposição do corpo14—, com a situação geral das artes no período. A exposição do corpo, a nudez referida tem sido um elemento pouco considerado para essas obras tanto do escopo “internalista”, que o despreza, como do “externalista” que se tem ancorado a uma interpretação que defende a total heteronomia da arte que apresenta anomalias para dar conta da arte desse período. Atentos às críticas de autores destacados, como Paul Zanker, a história internalista da arte, aquela que mostra um “desinteresse pelo lugar histórico concreto que ocupam as obras artísticas”,15 tentaremos mostrar como, igualmente, considerar que os romanos valoravam a arte como uma prática autônoma pode esclarecer muitas das relações da arte com outras áreas da experiência, e mesmo ajudar a compreender melhor as formas da arte que se encontravam efetivamente a serviço de fins políticos, religiosos ou de outro tipo (ou seja, sua heteronomia). As fontes disponíveis representam os setores econômico e social melhor estabelecidos — embora não necessariamente mais cultos —, motivo pelo qual não podemos estender estas considerações a todos os romanos empíricos, mas sim a uma 14 15 Para uma posição contrária, ver RAMPINI, M.: 1995. ZANKER, P.: 1992, 14. 29 forma de interpretar a arte fundamental para a hermenêutica do período, pela sua capacidade de debilitar outras interpretações e favorecer a polissemia na procura de — nas palavras de Ovídio — o magis utile daquilo que nil utilitatis habent.16 Mesmo assim, parece contraditório escolher para valorar uma possível percepção da arte como uma esfera autônoma estes retratos-estátua, cujo fim é, evidentemente, alcançar uma imagem do retratado que lhe seja satisfatória e não demonstrar a maestria do artista ou uma novidade importante dentro do terreno das artes. Aquilo que resulta de fundamental interesse é o fato de que não se trata de originais, mas de cópias gregas ou de reproduções de modelos consagrados pelos quais podem se identificar os grandes artistas da antiguidade, que eram principalmente gregos. A indústria da cópia grega floresceu em Roma desde a helenização inicial da capital latina e eram adquiridas por particulares como ornamento das suas casas e dos seus retratos.17 Esse mercado da cópia fornece dois elementos fundamentais: de um lado, a afeição a tipos de obras ou estilos — fáceis de vincular à fama de alguns artistas, como já foi assinalado, por parte dos consumidores, e, por outro lado, a degradação da aura religiosa que as representações de deuses, heróis míticos e reis tinham em função do sucesso do anterior. Todavia, aquilo que produziu o florescer das cópias poderia ser uma difusão intensa de algumas crenças não artísticas, motivo pelo qual não temos outra escolha a não ser continuar nos perguntando qual tipo de relacionamento se estabeleceu com as cópias através das obras aqui estudadas e o que se pode concluir em consequência da situação da arte em geral. 16 Magis utile nil est artibus his, quae nil utilitatis habent. (Não existe nada mais útil que aquelas artes que não têm utilidade nenhuma.) Ov. Pont. I, IV, 53. 17 Sobre a enorme importância das oficinas neoáticas e a produção de cópias ver GARCÍA y BELLIDO, A. op. cit. 113-133. 30 Uma das fontes latinas de referência é a Historia Naturalis de Plínio, o Velho. Infelizmente, somente encontramos uma referência especifica a essas obras. Nela, as obras são consideradas uma degradação da arte. Eis suas palavras: A pintura de retratos, utilizada para que as imagens mais fiéis se perpetuem através dos anos, tem-se extinguido completamente. Agora se expõem escudos de cobre com retratos de prata, com obscuras linhas divisórias entre as figuras dos homens; as cabeças das estátuas são trocadas trocam, tendo-se divulgado faz tempo algumas epígrafes sobre o assunto. Destarte, todos preferem a contemplação do mero material que a semelhança reconhecível nelas. Até enchem as suas pinacotecas com pinturas antigas e veneram retratos de estrangeiros, achando que a honra está só no preço, para que ao final, o herdeiro as destrua e as jogue fora com um laço. Assim sendo, não existindo imagem viva de ninguém, deixam por trás a imagem do seu dinheiro e não a sua própria. 18 O que se pode notar na citação de Plínio é como certos modelos de escultura foram extraídos dos seus contextos originais como signos de prestígio, prestígio este que parece se limitar aos altos preços pagos na hora, e, sobretudo, dos materiais utilizados. A pergunta será, então, se efetivamente o único valor dessas estátuas era o material — que para alguns herdeiros claramente era sim —, ou se, na vontade de erigir uma estátua, pode ter influído alguma coisa a mais. Podemos considerar alguns indicadores do princípio de valoração das artes pela qualidade do trabalho dos artistas na República tardia e no percurso do Império. Bons exemplos desta valorização serão, sem dúvida, a grande quantidade de anedotas que Plínio reúne no livro já citado, e também como resultam ser cobiçadas as obras desses artistas na época. O autor lamentará, no livro XXXIV que pelo alto valor do trabalho do artista tenha-se perdido o valor dos metais com os quais a obra era realizada: 18 Imaginum quidem pictura, qua maxime similes in aevum propagabantur figurae, in totum exolevit. Aerei ponuntur clipei argêntea facie, surdo figurarum discrimine; statuarum capita permutantur, volgatis iam pridem salibus etiam carminum. Adeo materiam conspici malunt omnes quam se nosci, et inter haec pinacothecas veteribus tabullis consuunt alienasque effigies colunt, ipsi honorem non nisi in pretio ducentes, ut fragan heres forasque detrahat laqueo. Itaque nullius effigie vivente imagines pecuniae, non suas, relinquunt. Plin. Nat. XXXV, 2, 4-5. 31 Antigamente o cobre fundia-se numa mistura de ouro e prata, e como a arte nunca era mais custosa que o material utilizado, surpreendentemente, quando os custos das obras se elevou infinitamente, a autoridade da arte extinguiu-se. A causa disso, como a de tudo, está em que aquilo que agora se faz somente faz-se pelo afã de lucro, antes costumava-se fazer por amor à glória — e, portanto, costumava-se atribuir o trabalho aos deuses, e os líderes das pessoas procuravam a celebridade por esse caminho. 19 Plínio não deixa de mostrar um interesse moral a respeito da arte20, manifestado em mais de uma oportunidade nas suas sententiae contra o luxo, os custos aos quais as obras chegavam, o desligamento das mesmas dos fins religiosos e sociais que estiveram na origem das obras e do privatus usus delas.21 Não se hesita em colocar estes fenômenos como causas da decadência da arte do seu tempo, sintomático da mudança na valoração das artes a partir da época imperial e, sobretudo, na tendência à associação tanto do sucesso como do fracasso das mesmas com as suas faces não artísticas.22 Certamente foi na República onde surgiram os grandes colecionistas romanos, período em que também o Estado virou colecionador. Estes excelentes consumidores de arte eram conhecidos pelo nome de filokaloi23 ou “adoradores do belo”, e podemos encontrar entre eles Cícero24 que, além disso, vai mostrar posição ambivalente entre a arte útil e aquela meramente bela, o próprio César25 e sem deixar de lado Verres — que dedicou sua vida a roubar tudo aquilo que ad oculos animunque acciderit, sem se 19 Quondam aes confusum auto argentoque miscebatur, et tamen ars pretiosior erat; nunc incertum est, peior haec sit an materia, mirumque, cum ad infinitum operum pretia creverit, actoritas artis extinta est. Quaestus enim causa, ut omnia, exerceri coepta est quae gloriae solebat — ideo etiam deorum adscripta operi, cum proceres gentium claritatem et hac via quaerent [...] Plin. Nat. XXXV, 3, 5. 20 Entenda-se “arte” num sentido abrangente, envolvendo ourivesaria e outros artigos que no contexto de Plínio eram avaliados junto às obras de arte que depois a história considerou como artes maiores, sem por isso deixar a esses ofícios um lugar especial entre os eles. 21 LE BONNIEC, H.: 1983, 97. 22 A heteronomia era considerada a grande causa do sucesso da arte, enquanto a arte pela arte, ou a arte como ornamento, era uma das causas do seu fracasso. Cf. TATARKIEWICZ, W.: 1987 23 GARCÍA y BELLIDO, A. op. cit., 44-46 oferece documentação que inclui muitas das fontes da obra de Plínio aqui considerada como fundamental. 24 Cic. Att. I, 8. 25 Suet. Ces. XLVII. 32 importar minimamente com o que não fosse propriedade Siculum ou civem Romanum, porém também não com o fato de que fossem obras profani ou sacri.26 Já no primeiro período do Império, um nome nada menor da febre do bom gosto vai ser o do próprio Augusto.27 A maior parte dos textos fazem alusão às signa — acepção latina para o genérico estátua, e às statua, acepção latina para aquela espécie de signa de deuses e seres humanos — como a circular de acordo com o gosto dos compradores, geralmente se associando ao “bom gosto” com a da arte grega. Como indica Plínio, começou-se também a comprar veteribus tabullis e effigies alienas. Na época de Plínio, chegou-se a oferecer sacrifícios a essas estátuas: neste caso seria digno de se estudar como um conjunto de obras que, num primeiro momento, tinham sido feitas como oferendas votivas, mas passaram a ser as destinatárias de tais oferendas.28 Contudo, provavelmente o mais valioso desde o ponto de vista da valoração do trabalho dos artistas não esteja no terreno do retrato, que consideramos incerto quanto aos seus fins desde o início, porém num comentário de Plínio — que não se pode considerar um caso escandalosamente isolado — sobre o valor dos trabalhos não acabados. Algo verdadeiramente esquisito e digno de lembrar é aquela última obra dos artistas e as pinturas sem acabar [...] sendo mais admiradas ainda que aquelas acabadas, porque nelas podem- -se achar os traços restantes tanto quanto os próprios pensamentos dos artistas, e na afetação do estilo, pode-se valorar a dor das suas mãos que, enquanto as faziam, morreram.29 26 Ver, por exemplo, em Cic. Verr. II, 2-4. Trata-se de uma boa referência para conferir o enorme valor das obras de arte que ad caelum ferunt em relação ao prestígio dos artistas, do seu nomina artificum. 27 Cf. GARCÍA y BELLIDO, A. op. cit., 213. 28 Plin. Nat. XXXV, 145. 29 Illud vero perquam rarum ac memoria dignum est suprema opera artificiam imperfectasque tabulas ... in maiore admiratione esse quam perfecta, quippe in iis liniamenta relíquia ipsaeque cogitationes artificum spectantur atque in lenociniis commendationis dolor est manus, cum id ageret, exstinctae. Plin. Nat. XXXV, 2. 33 Não seria essa a primeira vez que o historiador natural mostrara ambiguidades nas suas considerações: tudo parece indicar que convivem nele tanto a convicção de que a arte que tem um uso público e alheio à ostentação é aquela arte que deve ser produzida, porém também a tradição de erudição artística e valoração das artes resgata aspectos que, mais que outra coisa, são ligadas à obra pelo seu valor artístico. Evidentemente, o valor das artes era muito grande e os efeitos do fenômeno eram observados com preocupação por muitos dos principais atores da história de Roma. É claro que isso não responde por aquelas motivações que puderam ter aqueles que viram nos retratos-estátua, nos statuarum capita permutantur, uma coisa que merece ser exibida e, chegado o caso, alguma coisa com a unidade compositiva que Plínio se lhes nega a reconhecer, sugerindo que não o tinham. As histórias modernas, aquelas que chamamos de “internalistas”, costumam oferecer uma versão muito semelhante à de Plínio, considerando a tradição romana do retrato como simplesmente oposta à tradição grega, e fazendo do corpo um simples suporte.30 Caberia então perguntar quais razões puderam levar os romanos a realizar uma coisa tão absolutamente supérflua. Não podiam eles simplesmente comprar um pedestal num material qualquer e com isso dar por feita a obra? Evidentemente podiam, porém não o quiseram fazer. Além do que possam considerar Plínio e os críticos modernos, os corpos com figuras conhecidas e reconhecíveis (Vênus, Júpiter, etc.) ou as cópias de modelos consagrados não são um simples suporte, nem valiam — pelo menos para aquele que era retratado — somente pelo material utilizado. A pergunta seria, então, se estava em questão alguma coisa mais que uma estetização dos retratos e/ou se estes corpos tinham algum valor simbólico ou foram 30 Cf. GARCIA y BELLIDO, A. op. cit., 96-7. 34 associados a algum poder real, que pudesse ter fugido à interpretação do Naturalista e dos críticos. É aqui onde a nudez ocupa um espaço especial. Na medida em que não formava parte da forma comum de representação romana, é mister se perguntar qual era o seu sentido neste tipo de retrato. Na medida em que seja possível desligar o sentido da nudez de algum tipo de mensagem, se poderá compreender o tipo de necessidades e/ou expectativas a que estas cópias satisfaziam. Nesta disputa intervém Paul Zanker, em seu livro Augusto e o poder das imagens,31 ao colocar esses “fenômenos” escultóricos como a expressão de um conflito de valores. O autor reforça a sua posição com textos latinos onde encontramos expressões do desgosto que os romanos sentiam ante a nudez e os costumes gregos, condenando ambos tanto pela impudicícia como pelo efeito negativo que tiveram as estátuas gregas para alguns célebres romanos como Catão, o Censor. As referências a Catão são fundamentais se for levado em conta que era um modelo de moral em quase toda disputa de índole.32 Contudo, o eixo deste livro é a arte imperial na época de Augusto. Sua tese principal postula a existência de uma luta simbólica desenvolvida no terreno da arte que, com o sucesso de Augusto, resolverá o conflito de valores próprio do período imediatamente anterior. Augusto teria “re-signado” 33 a romanidade apropriando-se das imagens arcaicas de diferentes origens e das clássicas gregas para o seu próprio programa de valores, purgando aqueles aspectos problemáticos das mesmas (entre eles, a nudez e a sensualidade). 31 Do qual só possuímos a edição em castelhano já citada. A exemplaridade de Catão pode-se encontrar em autores como Plutarco ou Tito Lívio. 33 Jogamos com a palavra latina para indicar que Augusto teria trocado os velhos signos (e signae) por novos. 32 35 Importa destacar, neste autor, um forte engajamento com a concepção de que a arte romana era heterônoma. Ao supor que a nudez das esculturas são o resultado de um processo de turbulências durante a República, Zanker pretende defender que a introdução de símbolos gregos no ambiente romano resultou em uma disputa de valores morais, na qual os defensores da tradição romana confrontavam-se com aqueles que encontravam nas figuras gregas símbolos congruentes com uma moral contrária ao decoro.34 O programa de confrontações que sugere Zanker supõe que a nudez honorífica foi um elemento dissolvente, que combinou a imoralidade do nu com a potenciação das rivalidades de Generais que se apresentavam como semideuses e diferentes do resto dos romanos. Assim sendo, se chocava com a mentalidade da época e a nova linguagem de Augusto foi aquela que “consertou” a falha. A confrontação viria a ser, então, entre a nudez honorífica e a toga honorífica, traduzindo-se na oposição entre valores gregosnegativos e valores romanos-positivos. Conforme Zanker, o enaltecimento das qualidades sobre-humanas das estátuas gregas que apresentavam o indivíduo com as qualidades de um deus ou um herói era alheia à tradição romana, na qual a figura togada era representante da sobriedade e da igualdade entre os cidadãos. A honra estava no fato de ter uma estátua, na representação do indivíduo como primus inter pares, e não como excepcional. 35 Em o artigo “The ‘problem’ with nude honorific statuary and portraits in late Republican and Augustan Rome”, Tom Stevenson tentará refutar as teses expostas, sustentando que, mesmo que a tentativa de associar a arte a valores morais seja interessante (i.e. a heternomia), não seria correta a forma em que Zanker a aplica nestes casos. Apostando na prudência, Stevenson trata de provar que não estamos diante de 34 35 ZANKER, P.: 1992, 19. Ibidem, 23. 36 contradições, mas de ambivalências tanto de estilo como de ideias. Isto supõe uma menor força da heteronomia da arte, enquanto entidade subscrita a valores e interpretações múltiplas: Particularmente, vai se argumentar, em primeiro lugar, que a própria forma da arte não seria compreensível se tivesse existido uma grande confrontação com os estilos gregos como as generalizações das fontes literárias pareceriam implicar; em segundo lugar, que a nudez parcial ou total das estátuas-retrato de um nobre ou de um imperador vivo não era problemática em Roma como se costuma acreditar; e terceiro, consequentemente com o anterior, que a visão de Zanker no que diz respeito ao conflito moral no estilo das estátuas e retratos da República tardia, e a respeito da resolução do suposto “conflito” sob o Império de Augusto, deve ser modificada substantivamente.36 A tese de Stevenson vai-se afirmar em toda uma série de literatura crítica gerada a partir do livro de Zanker. Naquela vai começar a ganhar valor a ideia de uma ambiguidade de sentido na arte augustana que, quando muito, haveria de ser pensada à luz de uma linha de interpretação dominante, paralela a uma série de linhas de interpretação alternativas. Essa possibilidade estabelecer-se-ia em um patamar já situado por Zanker e ligado a um “espontaneismo”, contraposto a uma determinação pura e simplesmente ideológica. A ambiguidade deslocaria, então, a contradição, e a resolução do conflito vai ser deslocada pela ideia de um aproveitamento da tal ambiguidade por parte de Augusto. O que significa ambiguidade neste contexto? Embora Stevenson não o esclareça expressamente, trata-se da mistura de duas tradições de representação de valores: de uma parte, a tradição grega da nudez honorífica e associada ao valor heroico, de outra, a tradição romana do retrato que, no seu entender, longe de ser realista, é a expressão dos 36 “[I]t will be argued, firstly, that the form of the art does not really make sense if there was as much conflict with Greek ideas and styles as generalizations from the literary sources might imply; secondly, that a nude or partially nude portrait statue of a living noble or emperor was not as problematic at Rome as is commonly believed; and thirdly, as a consequence, that Zanker's views about moral conflict in the style of Late Republican statues and portraits, and about the stylistic resolution of this 'conflict' under Augustus, should be substantially modified.” STEVENSON, T.: 1998, 45. 37 valores associados à autoridade do indivíduo e da velhice.37 Assim sendo, a mistura de tradições viria a ser potencialmente conflitiva na prática, porém não sempre. A ideia de decadência de um modo de representação seria uma extensão sem fundamento da decadência da religião e do prolongamento do expresso nas fontes literárias a respeito da nudez dos homens vivos em todas as áreas da experiência. Destarte, Stevenson vai defender a diferença entre a nudez de um homem vivo e a nudez de uma estátua. As referências a Catão, o Censor, têm a ver tanto com a nudez dos homens vivos como com a decadência das imagens tradicionais dos deuses. No entanto, essas críticas não aparecem juntas em nenhuma parte. Além disso, coloca Stevenson, a verdade é que os romanos já deveriam estar suficientemente acostumados com a nudez, após a enorme quantidade de obras gregas que chegaram a Roma como despojos de guerra.38 Quanto à resolução estilística de Augusto, afirma-se que não foi resolução nenhuma, e que a ambiguidade e polissemia se mantiveram durante a arte do Império todo, incluindo a sequência dos modelos discordantes da República tardia. Isso o levará a reconsiderar um aspecto essencial do argumento de Zanker: a internalização das imagens augustanas conformando o imaginário da nova romanidade. Para isso, Stevenson vai apelar para a história do Império posterior a Augusto, a fim de mostrar que a luxuria e a adulatio Graeca não somente não vão ser deixadas de lado, mas atingir níveis altamente grotescos.39 Como conclusão geral, Stevenson afirma que “não houve o tipo de conflito moral e de tensão estilística na arte das estátuas de nús honoríficos e no retrato da República 37 Ibidem, 47. Ibidem, 48. 39 Ibidem, 65-7. Exemplos clássicos são as obras de Petrônio e Juvenal e, nem que se fale, os famosos gostos de Nero. 38 38 tardia que Zanker viu porque o processo de helenização operou de uma forma muito diferente da como ele a concebeu. ”40 Certamente a bibliografia indica que a nudez não foi banida da arte romana no Império. Mesmo assim, Zanker é muito claro a respeito de como, no período de Augusto, se desenvolveu um programa, nas artes, que formou uma identidade gráfica para todas as formas de convívio social que pudessem virar símbolos acordes com as diferentes tradições que se visava reforçar.41 A toga como símbolo da romanidade é um elemento essencial esta linguagem de símbolos de poder, tanto quanto as sutis deificações de Augusto em um estilo muito clássico, à moda grega. Como poderíamos solucionar essa dificuldade? O que Zanker não considera é que a vestimenta nunca foi, e provavelmente nunca vai ser, uma marca de igualdade, mas uma forma de enfatizar a distinção. Dado que não estamos falando da Grécia, onde a nudez tinha adquirido tal função na distinção dos corpos frios dos quentes, e mesmo a partir de uma construção do erotismo relacionada particularmente com o corpo masculino42, não vemos por que temos que considerar que em Roma foi alguma vez assim. Não encontramos, é verdade, em todos os trechos em que Plínio fala da nudez das estátuas, alguma coisa que possa mostrar algum aspecto da relação dessas com a sexualidade das estátuas-retrato aqui consideradas ou de quaisquer outras. Poderíamos pensar que naquelas epigramas que assinala Plínio, poderiam estar inclusas algumas referências de tipo sexual no que diz respeito à audácia dos retratados particulares, mas mesmo assim, seria um problema marginal frente ao problema do luxo.43 40 […] “there was not the kind of moral conflict and stylistic tension in the nude honorific statuary and portrait art of the Late Republic that Zanker saw because the hellenization process operated differently to the way he conceived of it.” Ibidem, 66 41 ZANKER, P.: 1992, 20. 42 Cf. SENNET, R.: 2003 e STEINER, D.: 1998. 43 O atrativo das estátuas, que certamente fomentava a tensão entre uma arte capaz de promover a virtude e uma arte corrosiva, vai ser expresso em versões que pretendem sublimá-la no mito de Pigmaleão. Cf. BARTSCH, S.: 1998, RICHLIN, A.: 1992. 39 O único comentário que temos conseguido encontrar — como os de Plínio um pouco posterior ao período que seria de maior importância para nós — mostra a todas luzes a permissibilidade da nudez na arte, por acaso fazendo referência a uma anedota de Lívia, a esposa de Augusto: Que uma vez salvou a uns homens que tinham aparecido nus e deviam por isso ser condenados a morte, tendo falado que para as mulheres castas tais homens não se distinguem das estátuas.44 Independentemente da verdade da anedota, o importante aqui é que os historiadores posteriores a Augusto não dão conta de um problema de impudicícia nos desnudos na arte e dado que não temos nenhuma prova de que no período anterior houvesse existido — muito pelo contrário o que achamos são estas estátuas e mais outros exemplos que, no modelo de Zanker, ficariam no canto das “exceções à regra” 45 — não vemos por que deveríamos supor qualquer coisa de diferente. Mas, quem se opunha à toga na Roma antiga? Nada melhor que perguntar às Saturnais, festa de inversão dos valores desta sociedade. Os nobres nas Saturnais trocavam suas togas por túnicas domésticas.46 A toga era símbolo da romanidade, porém não de todos os habitantes de Roma, senão de alguns romanos no poder, e isto é o que pretende fixar Augusto na nova linguagem iconográfica: a ordem e o poder daqueles que devem tê-los. Que acontecia então com a nudez honorífica? Certamente os nus que ficaram têm, sobretudo, uma caraterística comum, o fato de pertencer a desconhecidos e que a única referência que temos a eles, como já foi bem assinalado, não os posiciona no lugar de obras importantes. Provavelmente Stevenson esteja certo e o nu nas estátuas fosse 44 Dio Cassius Historia Romanae. LVIII 4-5. Trad. Adrián Castillo. Exemplo não pouco importante seria o dos restos daquelas exposições de obras que caracterizaram a publica magnificentia do Império, como o conjunto homoerótico de Pan e Olimpo. Cf. ZANKER, P. op. cit., 174. 46 “Vestir toga no período das Saturnais era próprio de um tolo [...]” INTROINI, J.: 1996, 29. 45 40 socialmente aceito, sendo ou não uma forma de divinizar as pessoas. A própria divinização como método já tinha perdido os seus efeitos — o que também se relaciona com o fato de que as novas estátuas religiosas da época de Augusto voltassem aos traços arcaicos, embora estes também fossem parte das artes decorativas da época. Favorece esta interpretação o fato de que a aura de divindade ou heroísmo ou bem estava na própria estátua ou bem era salientada com outros símbolos como tronos o coroas de louro, os quais ajudam muito na interpretação.47 Assim, nada evitou que aqueles que tiveram o dinheiro suficiente seguissem representando-se dessa forma, cada vez que o desejassem, sem que ninguém se escandalizasse pela nudez ou pela assimetria de idades entre a maior parte dos corpos e cabeças. Inclusive, o fato de considerar esses exemplos desde uma perspectiva mais sublimada em relação aos seus efeitos sociais, permite-nos identificar neles uma possibilidade de ver como a República romana não foi o reino da igualdade, e que os Generais provavelmente estivessem interessados em se representar como a força corporal do Império, frente às cabeças dos Senadores. Também, mas agora contra Stevenson, consideramos que o programa de Augusto se adaptou muito bem às demandas dos romanos da época, apropriando-se de uma arte já valorada como tal e identificando-se com ela. Acreditamos também que, não tendo o programa cristalizado-se em uma internalização da sua ideologia que atingisse a completa expulsão da luxuria e da adulatio, isso foi porque a internalização de uma ideologia não é uma reprogramação de mentalidades. Trata-se, mais bem, de gerar uma linguagem determinada que — neste caso em relação às imagens — possa se converter em parte da identidade dos indivíduos, algo que, certamente, pode ser 47 Cf. VEYNE, P.: 1991b. 41 processado de muitas e variadas formas, como podemos ler no texto do próprio Stevenson a respeito da incorporação das ambivalentes normas artísticas gregas. Existem, então, boas razões para pensar que a nudez nas estátuas honoríficas não tenha sido tão significativa como pensa Zanker e também para desestimar o sentido impudico que lhes adjudica. Nada indica que essa nudez tivesse um caráter política ou religiosamente importante. A maioria dos romanos foram testemunhas de um desenvolvimento técnico das artes que tinha fugido por completo às adscrições institucionais tradicionais, gerando assim, o conflito próprio daquilo que é considerado muito valioso, porém inútil. Esperamos ter mostrado, ou quando menos, termos deixado aberto um espaço para a dúvida que o retrato-estátua nu desse período é um exemplo de uma forma de interpretar a arte como valiosa per se, uma forma popular de reconhecimento desse fenômeno. Assim, podemos compreender melhor como algumas imagens têm melhor credenciamento que outras para servir ou confrontar ao poder. 1.2. A elegia erótica A elegia surge na Grécia como um canto de lamentação apropriado para os enterros. Com o tempo, ela foi perdendo o seu caráter de lamento, porém preservando a caraterística de ser uma poesia na qual se exprimiam sentimentos. Após um largo percurso, foi na Roma de Augusto que a elegia desenvolveu a forma de poema passional, melancólico, misturando sentimentos e mitos num lamento do poeta pela sua amada, às vezes mais ou menos ligados aos prazeres carnais do amor, de forma mais ou menos detalhada. Sexto Propercio foi um dos poetas mais importantes do gênero, junto a Tíbulo e Ovídio, o mais conhecido. A história tentou exprimir as elegias, às vezes, como fontes sobre a vida dos poetas, noutras vezes como exemplo da crise dos valores romanos, mas 42 uma das caraterísticas históricas mais importantes deste gênero é que foi cultivado e chegou àquelas consideradas como suas formas mais livremente aprimoradas no primeiro ano do Império. Nosso objetivo, nesta seção, será mostrar como a liberdade e o reconhecimento das qualidades artísticas, como vários dos componentes essenciais de uma arte autônoma, oferece uma melhor leitura das fontes da época. O poeta selecionado, Propercio, além de ser do nosso agrado, formou parte do movimento na sua melhor época, sendo reconhecido pela sua obra e nunca parece haver tido problemas políticos nem por causa dela nem por outros motivos. 48 Para compreender o poeta Propercio é preciso começar por situá-lo no círculo de Mecenas. Entre os homens de confiança de Augusto, especialmente os vinculados às artes, encontrava-se Mecenas. Este foi “Ministro de Cultura” de Augusto, mas também poeta e promotor das artes, com um estilo que pouco tinha a ver com aquele que o Império queria promover. 49 Neste labor, foi especialmente lúcido, e enquanto sustentava o círculo de poetas que se dedicavam especificamente ao seu trabalho, também escolhia aqueles que considerava melhores para cumprir as tarefas solicitadas por Augusto. Entre elas, vale mencionar a encomenda de A Eneida a Virgílio e da prece a Apolo e Diana, encomendada a Horácio, para depois ser utilizada nos rituais de mais importância, nos quais o próprio Augusto e seu séquito eram os primeiros em cantá-la. Consideramos que foi fundamentalmente o respeito, o conhecimento e a valoração da arte que permitiram a Mecenas que a utilizasse para outros fins, ou fins não artísticos. Diferentemente de uma arte heterônoma, que é avaliada simplesmente pela sua idoneidade para atingir outros fins. Para Mecenas, somente uma arte idônea como 48 Lembre-se a ambiguidade na qual caiu a obra de Ovídio quando foi exilado, sendo que é bastante dúbio que sua obra fosse a verdadeira causa da fúria do Imperador. 49 ANDRÉ, J. M.: 1967. Interessante, neste sentido, é o comentário de Suetonio sobre a tentativa de Augusto para que Mecenas se expressasse com maior austeridade retórica. Cf. Suet. LXXXVI. 43 arte podia ser utilizada para atingir com sucesso esses outros valores. Temos boas razões para pensar que não estava errado. Ele colocou a arte ao serviço do Império (officium) após ter se preocupado em conhecer e praticar a arte por si própria (studium).50 No caso em que a poesia fosse entendida como officium, o artista não era mais que um servo de causas mais nobres — ou seja, as políticas e as religiosas —, o que inclusive gerava um problema no que diz respeito ao status social e à dignidade daquele que se dedicasse à poesia. No caso em que fosse um studium, a tarefa se dignificava, na medida em que virava contemplativa e digna para um indivíduo livre. Contudo, essa explicação não fica livre de ambiguidades, muito menos no pragmático universo romano, dado que podemos pensar que enquanto a pessoa era dona de um officium, o poeta estava obrigado a cumprir a sua tarefa e ao mesmo tempo considerar a poesia como studium, caso fosse somente um hobby (como no caso de próprio Mecenas, e indo mais longe atrás no tempo, a pintura e a poesia para Platão). Destarte, caso servisse a um interesse mais nobre, virava uma ocupação obrigatória enquanto no outro caso podia ser considerada uma atividade própria do tempo livre. A ambiguidade desta situação, certamente, não foi superada nem por Mecenas nem pertence somente à Antiguidade. Nesse ambiente, onde se misturavam sem uma distinção rígida a arte pela arte e a arte política, temos que localizar o corpus de elegias de Sexto Propercio. A confusão a respeito de quanto da sua própria vida aparece nelas ainda permanece. Portanto, vamos nos guiar pelas seguintes perguntas: foi Propercio o integrante rebelde do círculo de Mecenas? E, em caso de que o fosse, foi rebelde no aspecto pessoal ou no aspecto artístico? 50 ANDRÉ, J.: 1967, 141. 44 Tradicionalmente se procurou na elegia erótica romana uma expressão da vida emocional do seu autor: o eu lírico não era outra coisa que uma versão estetizada do eu real, ou diretamente uma expressão desse eu real. Isso trazia consigo alguns problemas a respeito das infrutuosas pesquisas de elementos que permitissem reconstruir as histórias de vida dos poetas. Aquilo que ninguém conseguia dar conta era de como, naquela época, foi possível que os poetas tivessem tanta liberdade, ou que fossem diretamente uns libertinos. Porém, foi Propercio um libertino? Por que sua poesia não foi simplesmente censurada? Como eram vistas pela sociedade as declarações das paixões mais profundas de um homem que se declara escravo de um amor fatal? Por que não temos mais informação a respeito das mulheres que viram suas vidas levadas a público nas letras dos poetas? Como podemos ordenar os livros de Propercio seguindo a linha da fé para uma única e eterna dedicação para a sua amada Cintia? Paul Veyne, no seu livro A elegia erótica romana: o amor, a poesia e o Ocidente,51 defende a tese de que todas essas perguntas dos filólogos são perguntas malfeitas. Para o historiador, a elegia vai ser, inicialmente, um simulacro da realidade e o poeta coloca-se como eu ficcional, mas, ao mesmo tempo, descobre a si mesmo como um farsante.52 Assim, o elegíaco pretende ser aquilo que não é, mas denuncia sua própria impostura com as contradições que mostra nas suas composições. No caso de seguir a tese de Veyne, temos um sucesso duplo: explicarmos o que é a elegia e, ao mesmo tempo, damos conta de por que a filologia não atingiu um consenso 51 52 Do qual também só possuímos a edição em castelhano de 1991. VEYNE, P.: 1991a, 8. 45 para dar coerência ao corpus que constitui essa poesia, na sua tentativa de lê-la como uma expressão da vida do poeta. 53 Uma das caraterísticas fundamentais da elegia viria a ser, conforme Veyne, a falta de naturalidade, o maneirismo. Aquilo que tinha sido interpretado como uma expressão lírica de um indivíduo que sofria atormentado pelo amor aparece, nos versos da elegia, de uma forma que pode resultar esquisita para o leitor moderno, em uma montagem de apelações a mitos que mal podem formar parte de uma reação espontânea de alguém. A outra caraterística era o ambiente mundano no qual se desenvolve a elegia. Isso gerava um efeito estético que de forma nenhuma poderia ser procurado.54 A combinação das duas caraterísticas tem como resultado, ao dizer de Veyne, um “quadro de gênero de indumentária mitológica”.55 Trata-se assim de uma poesia “sem ação, sem intriga que leve a um desenlace ou sustente a tensão, e por isso o tempo não tem nela realidade nenhuma”.56 Encontramo-nos frente a tipos, situações exemplares, nada que possa nos dar uma informação minuciosa para a reconstrução de mais que um ambiente de referência — ao qual se refere como “a má sociedade” — e uma concepção estética do amor: a paixão que faz do amante um escravo. Esta ausência de ação estruturante traz à tona uma terceira caraterística da elegia, que vem a explicar a falta de coerência na história ou anedota que, em teoria, está centrada. Encontramos a coerência tanto nas obras completas como nas peças que a compõem — não é estranho encontrar, entre os editores, formas diferenciadas de apresentar os diferentes fragmentos como um ou mais poemas; inclusive, em muitos casos, fragmentos completos têm sido considerados apócrifos. Para o historiador, isso 53 Ibidem, 9. Ibidem, 13. 55 Ibidem, 47. 56 Ibidem, 73. 54 46 tinha a ver com uma opinião estética: “o essencial é que o leitor se encontre atordoado”. 57 Tudo isso tem como resultado a elegia, gênero no qual o poeta renuncia explicitamente à sinceridade, substituindo-a pelo humor, de maneira que “o poeta está constantemente em retirada”, escrevendo com um sorriso nos lábios. Podemos ver nele o sorriso de Calímaco, poeta alexandrino do qual os poetas elegíacos consideravam-se seguidores, e cuja caraterística fundamental foi o maneirismo do mito e a utilização de o mito e as formas tradicionais tendo-se desligado de suas funções religiosas por meio da incredulidade geral de que gozam entre os espectadores — espoliadas daquela intencionalidade que tinha lhes dado origem — passam a servir ao deleite de uma pequena elite de indivíduos cultos que as valorizam pela sua beleza literária.58 A elegia viria a ser, então, uma piada altamente sofisticada e refinada. Sua existência é possível por um pacto entre o leitor e o escritor, convocados pelo deleite estético do vácuo, do nada apresentado em forma elegante e de efeito. Consonante ao exposto, não somente se pode dizer que Propercio não era um libertino, senão que nem sequer pode-se considerar o integrante rebelde do círculo de Mecenas, na medida em que todo romano compreendia perfeitamente que se tratava de uma piada estilizada, conforme algumas pautas estéticas. Embora a tese de Veyne ajuste-se muito bem no que diz respeito à crítica realizada à interpretação tradicional, obliterada pela concepção do gênio e sua expressão lírica, não resulta muito convincente o resultado final de considerar a elegia romana como uma “piada sem consequências”.59 Assim, para o historiador, não se pode falar de ideologia ou sociologia da elegia, porque esta última só procura um efeito estético e não se refere 57 Ibidem, 16. Propercio chamou a Roma de “pátria de Calímaco”. FEDELI, P.: 2012, 67. 59 Ibidem, 50. 58 47 à realidade para “tentar mudá-la”.60 O pacto entre o leitor e o poeta, entre indivíduos de cultura e status social semelhante — aqueles capazes de compreender as cenas míticas eram realmente muito poucos — conduzia-os a viver experiências estereotipadas. A realidade, a existência desse mundo, não vai além de uma necessidade do jogo. Enquanto a análise de Veyne, dos lugares comuns e dos estereótipos das amadas dos elegíacos é muito convincente, as especulações que realiza no tocante aos aspectos formais da elegia têm altas probabilidades de serem justas e as suas respostas aos amantes da reconstrução das biografias a partir da consistência interna das obras, demolidoras, a explicação do lugar da elegia no mundo antigo, como arte pela arte, pode gerar algum desconforto. Num primeiro momento, não parece claro que a condição necessária para ser uma arte autônoma seja a intenção do artista de não intervir com a realidade política e social da sua época.61 Do mesmo modo, não fica claro por que, se todos compreendiam de que se tratava de uma simples piada, foi necessário exibir a impostura e muito menos ficar em constante troca de ideias em relação à função da poesia. Certamente nem sempre o Império considerou com simpatia as criações dos elegíacos. Se não houvesse sido assim, por que Mecenas insistiu tanto, e ao mesmo tempo, aceitou tantas negativas a respeito da necessidade de produzir uma poesia com fins mormente políticos e/ou cívicos? Mesmo se a poesia pudesse, usando a expressão do escritor argentino Jorge Luis Borges, “entretecer naderias”, não se pode resumir por isso toda a questão do seu valor ou dos seus efeitos em uma concepção que se pode considerar simplificadora.62 60 Ibidem, 42. Ibidem, 45. 62 Do poema El remordimiento: “He cometido el peor de los pecados / que un hombre puede cometer. No he sido / feliz. Que los glaciares del olvido /me arrastren y me pierdan, despiadados. / Mis padres me engendraron para el juego / arriesgado y hermoso de la vida, / para la tierra, el agua, el aire, el fuego. / Los defraudé. No fui feliz. Cumplida / no fue su joven voluntad. / Mi mente se aplicó a las simétricas 61 48 Podemos concordar com Veyne no primado da forma sobre o conteúdo, na maior seriedade do poeta com respeito às regras de estilo em detrimento da verdade ou falsidade daquilo que era dito. Porém, justamente porque se trata de um âmbito específico, o do estetizado, acreditamos que nos pronunciarmos sobre o humor da obra é uma ousadia muito grande. Estetizar não é parodiar, mesmo que parodiar seja uma forma de estetizar. Ainda mais, se a elegia não diz nada sobre as opiniões ou sobre a vida do autor, como sabemos que foi um cavalheiro? Não se trata acaso de uma especulação fundada no suposto de que, dado que a moral do Império era incorruptível e indiscutivelmente contraria à “má sociedade”, é impensável que um não cavalheiro pudesse ser admitido e lido entre os Senhores?63 No entanto, os pactos entre leitores e poetas podem ser de índole diversa quando existe uma arte consagrada como tal. Temos apontado que o próprio Mecenas se questionava quanto o sentido do poetizar, e embora o mundo e as certezas internas dos indivíduos não se desmoronavam devido ao que as elegias diziam, afirmar que essas não eram tidas como corrosivas dos seres humanos seria um erro. O próprio Augusto encarregou-se de sugerir a Mecenas um maior cuidado no seu estilo florido, e ainda se concordamos com Veyne a respeito de que Ovídio queria ser perdoado mais pelos seus atos do que pelas suas poesias, ninguém achou disparatado que o poeta pedisse porfías / del arte, que entreteje naderías. / Me legaron valor. No fui valiente. / No me abandona. Siempre está a mi lado / La sombra de haber sido un desdichado.” Não é equivocado lembrar que frente à defesa de Borges de uma arte pura em um Congresso realizado em Berlim no ano 1964, por considerar que o compromisso era uma traição à arte, Guimarães Rosa reagiu contra ele por considerar que as “palavras de Borges revelaram uma total falta de consciência da responsabilidade”, como pode-se ler na entrevista que lhe fez Günter Lorenz em janeiro de 1965. 63 “Qual é, então, a regra de emprego dos prazeres venéreos? Duas morais se sucederam, tão restritivas uma quanto a outra, a dos deveres do serviço, que é a velha moral de Cato, e a da pilotagem interior pela consciência, que vai ser a ética estoica. A primeira era a rainha sem discussão no século dos elegíacos.” VEYNE, P.: 1991a, 226. O destaque é nosso. 49 desculpas por elas, o que seria absurdo no caso de que todos soubessem que não eram mais que piadas que se autodelatavam!64 A verdade é que desde a República vinha-se gestando uma discussão que envolvia as mores maiorum e o lugar do otium na vida do cidadão romano. Se fosse o caso de que Propercio fizesse piadas ou não é também indecidível, porque aquilo que se julgava mesmo para os interesses políticos e morais do Império era o estilo, certamente a moral do Império foi dirigida com mais astúcia que força, ou melhor, com astúcia e não somente com força, sendo a arte uma das suas ferramentas principais. No entanto, para isso, não foram censuradas estupidamente as formas consagradas, porém fez-se uma intervenção dirigida com sensibilidade à moda do momento. Os poetas dedicavam-se à arte e à cultura, e era por isso, e não por militar nas filas do amor que renunciavam à carreira das armas ou do Foro. A molície, a qual Veyne considera ociosidade, era considerada como a mãe das debilidades do amor, uma tendência ao prazer que podia até mesmo ser tomada como incontrolável. Mas quando era considerada uma dedicação aos estudos ternos ou um mollius studium, parece razoável pensar que o termo aceitava mais de um significado. Aquela chamada pelo historiador “antropologia da molície”, que coloca esta tendência com causa de todos os males da virtude, foi considerada entre os poetas como algo menos trágico e desatinado, como uma afetação do estilo. A mollis poética era uma arte delicada, uma arte sutil.65 O adjetivo mollis podia ser utilizado para referir o luxo helênico: mollis qua tendit Ionia.66 Aos versos elegíacos: et frustra cupies mollem componere versum, nec tibi subiciet carmina serus Amor67. Para qualificar a retórica de livros completos: quaeritis, unde mihi totiens scribantur amores, 64 A posição de Veyne sobre Ovídio pode-se ler nas páginas 155-6 do livro citado. Ibidem, 44. 66 “[...] onde se extende a delicada Jonia. ” Prop. I, 6, 31 67 “[...] e em vão desejaras compor versos macios, e retrasado Amor não vai te inspirar nos teus cantos. ” I, 7, 19-20 65 50 unde meus veniat mollis in ore liber68. Nas metáforas sobre a atividade poética do elegíaco: mollia sunt parvis prata terenda rotis69 é o conselho de Apolo com respeito a dúvida de Propercio em não poder dedicar-se à épica, a qual seria uma grande roda destinada a arar os terrenos mais fortes. Não fica claro por que, para Veyne, esta arte deva ser considerada uma arte pura que se disfarça de sensual para o leitor e o poeta que sorriem frente ao excesso. Por que não simplesmente pensar que se trata de uma arte que manipula a sensualidade para gerar prazer estético, e que esse é o pacto entre leitores e autores? Não é um paradoxo que o historiador nos inste a considerar o conteúdo excessivamente sensual quando atender ao conteúdo é aquilo justamente que Veyne insiste em que não devemos fazer? O debate sobre a mollis, suas virtudes e os seus defeitos encontra-se já em Roma, pelo menos desde os tempos de Cícero. Com este autor, um primeiro estoicismo já tinha apontado suas armas contra a poesia helenística.70 Os seus defensores promoviam-na em uma associação com a serenidade, uma forma de vida pastoril, e certamente não com roupas de cidade, porém com quaisquer roupas. Dessa maneira acontecia em círculos de influência epicúrea, como era o de Mecenas. Assim, Propercio recomenda a Linceo um rival que se dedicava à poesia trágica, que se este almejava ter sucesso no amor, deveria preferir a elegia e libertar-se dos estilos pesados: et ad molles membra resolve choros.71 Assim, a disputa não somente está relacionada a uma forma de vida — poderíamos até prescindir dela — mas fundamentalmente a um modo de entender a produção poética. As discussões com Mecenas abundavam nesses detalhes sobre a escolha da épica ou da elegia, e as respostas de Propercio sempre foram em defesa da sua dedicação à última. 68 “Me perguntas por que sempre escrevo sobre amores, e por que meus livros viram macios na língua.” II, 1, 1-2 69 “[...] os prados delicados têm que ser arados com rodas pequenas” III, 3, 18 70 ANDRÉ, J.: 1966, 245. 71 “e liberta os pés para as suaves danças” II, 34, 42. 51 A tese que propomos mudar é a de que o tipo de arte pura próprio da elegia erótica é aquele no qual a intenção do artista a faz ser uma boutade. A tese que defendemos é a de que em períodos nos quais a arte se consagrou como autônoma, o especificamente artístico está menos na intenção do artista que nos recursos e técnicas disponíveis para a criação e recepção da obra de arte. Ou seja, trata-se mais de um estado da arte do que de um jogo especial, e tanto as elegias como outras obras de arte foram afetadas por essa situação que permite compreender melhor a política do Império para com todas as artes e não somente para com a elegia. Partindo dessa interpretação, nada impede que a elegia fosse um canteiro de contrassensos e paradoxos, pois nada a compromete com um roteiro realista. Da mesma forma, nada lhe impede ser fonte de discussões ligadas à arte, à moral e à política, porque o próprio estilo converte-se em um âmbito específico pelo qual os diferentes grupos de interesses lutam por se apropriar. Um poeta podia ser tolerado ou não, podia-se até questionar os seus deveres para com a cidade e a arte, e nada disso impedia que sua obra fosse desfrutada por aqueles que procuravam o prazer estético de uma arte cultivada, irritando assim, os caráteres mais autoritários, temerosos dos desbordes libertinos. O sorriso de Calímaco viria a ser, então, um rictus que não poderíamos decifrar. Não podemos saber se Propercio foi ou não um libertino. No que diz com a sua figura contestatória no círculo de Mecenas sim, porque conseguiu resistir aos impulsos deste último a respeito dos deveres cívicos e coletar uma arte onde estas preocupações somente figuram em forma marginal. Nem sempre, talvez nunca, a arte que renuncia à intenção moral e política explícita tem-se convertido no paradigma da estética dominante, embora neste caso fosse capaz de se colocar no epicentro da cultura e a teoria da arte. 52 1.3. Alguns aportes finais Assinalamos anteriormente que as obras de arte se tinham deslocado dos circuitos religiosos e políticos, gerando com o público, um vínculo muito diferente ao do ritual sacro ou cívico. Na vontade de colecionar obras de diversos tipos podemos observar uma prática social de uso privado das mesmas que é alheia às formas mais estritas da arte heterônoma, que tem uma recepção comunitária e forma parte da identidade da comunidade como tal. Novos personagens surgem da mão da autonomia e do colecionismo. Assim, os falsos conhecedores, familiares antigos daqueles que hoje chamamos esnobes, mostram que não levar a sério as obras não era uma heresia, ingenuidade ou malícia, simplesmente era uma forma de se distinguir na sociedade. Na já mencionada ambiguidade de Plínio sobre a crítica e a arte sem valores e a estima à arte por si própria, encontramos um comentário sobre os indivíduos que “parecem estar simulando seu conhecimento, mais interessados em se diferenciarem dos outros do que em serem conhecedores sutis de coisas como estas.” 72 Plínio também critica o fato de que as atividades do cotidiano não permitiam um maior tempo para se relacionar com as obras que requerem concentração por parte do público. Eis suas palavras: Mas é verdade que em Roma, a grande quantidade de obras e o seu posterior esquecimento e, mais ainda, a multitude de obrigações e negócios distraem a todos da contemplação, enquanto uma admiração desta índole requer estar livre de atividades e de um grande silêncio no lugar.73 72 No original: ac mihi maior pars eorum simulare eam scientiam videtur ad segregandos esse a ceteris magis quam intellegere ibi suptilius. Plin. Nat. XXXIV, 3, 6. 73 Romae quidem multitudo operum et iam obliteratio ac magis officiorum negotiorumque acervi omnes a contemplatione tamen abducunt, quoniam otiosorum et in magno loci silentio talis admiratio est. Plin. Nat. XXXVI, 4, 27 53 Mas não somente as considerações sobre o público nos levam a acreditar que a arte gozava de um status autônomo. Também encontramos passagens que salientam os aspectos técnicos das obras e a competência na valoração das mesmas. Em primeiro lugar, destaca-se que Plínio, como foi costumeiro na sua época e muito depois, considera a história da arte como uma sequência de progressos técnicos na conquista do realismo. Assim, os diferentes artistas são apresentados em consideração aos aportes que realizaram para este projeto artístico de representar a realidade perceptível de forma eficaz. Até são incluídos como exemplo dos alcances da proficiência na área, aqueles que conseguiram desafiar as leis do decoro. Além do anedótico, ou talvez melhor se de uma simples história sem base real se tratasse porque o autor poderia mostrar coisas que os compromissos políticos com o seu presente poderiam reprimir se fosse um fato recente, vem à tona um dos exemplos de realismo que Plínio apresenta: Ctesiles fez-se famoso pela injúria à Rainha Satronice. Como ele não foi recebido com nenhuma honra por parte dela, pintou-a de uma forma muito liberal na companhia de um pescador pelo qual, de acordo com os rumores, ela estava apaixonada, e, além disso, exibiu a pintura no porto de Éfeso, enquanto fugia com as velas içadas. A rainha proibiu que a pintura fosse levada porque a semelhança com cada um estava maravilhosamente representada.74 A respeito da valoração da obra, encontramos em outro trecho a importância dos artistas como avaliadores uns dos outros, de uma forma certamente muito peculiar se nos restringimos às interpretações heterônomas que fazem deles artesãos e homens de baixa categoria. Mesmo os [artistas] mais laureados vinham e participavam da competição, pois tinham que ser feitas estátuas de Amazonas que eram consagradas no Templo de Diana de Éfeso. Entendeu74 Ctesicles [innotuit] reginae Stratonices iniuria, nulla enim honore exceptus ab ea pinxit voluntatem cum piscatore, quem reginam amare sermo erat. Eamque tabulam in portu Ephesi proposuit ipse velis raptus, regina tollli vetuit, utriusque similitudine mire expressa. Pin. Nat. XXXV, 40, 140. 54 -se apropriado então que fossem os próprios artistas aqueles que escolheram a melhor de todas as obras, de acordo com a opinião de todos os presentes. Assim, fez-se evidente que a melhor era aquela obra que cada artista tinha julgado melhor em segundo lugar após a sua própria. Esta foi a de Policleto, muito perto da de Fídias, no terceiro lugar a de Cresilas, quarta a de Cydonis e quinta a de Fradmonis.75 Certamente o dilema autonomia/heteronomia não pode ser resolvido somente mostrando que a ideia de autonomia pode ajudar a hermenêutica de uma determinada época da arte. No entanto, oferece uma constelação de elementos que, mesmo sendo possível articulá-la a outros elementos relativos ao culto ou ao poder, credencia a arte para ter seu lugar na análise das interações técnica — público — objetivo da arte76 de forma mais aprimorada tanto no seu uso autônomo quanto heterônomo. 75 Ita distinctis celeberrimorum aetatibus, raptim transcurram, reliqua multitudine passim dispersa venere autem et in certamen laudatissimi, quamquam diversis aetatibus geniti, quoniam fecerant Amazonas, quae cum in templo Dianae Epgesuae dicarentur, placuit eligi probatissimam ipsorum artificum, que praesentes erant, iudico, cum apparuit eam esse, quam omnes secundam a sua quisque iudicassent haec est Plycliti, proxima ea Phidiae, tertia Cresilae, quarta Cydonis, quinta Phradmonis. Plin. Nat. XXXIV, 19, 53. 76 A hélice tripla forma parte de uma teoria da arte do Prof. Juan Fló, a quem tivemos o prazer de ouvir falar sobre ela, porém não temos dados escritos sobre a mesma. Caso a interpretação aqui fornecida esteja errada, a culpa é, obviamente, nossa. 55 Capítulo 2. As coordenadas da autonomia para o discurso filosófico em Immanuel Kant Entende-se por autonomia da arte, num sentido muito geral, o fenômeno pelo qual essa prática adquire legitimação social como prática com fins próprios. Esse fenômeno é tradicionalmente datado no percurso dos séculos XVII e XVIII, consolidando-se no século XIX e tornando-se totalmente aceito, no Ocidente, no século XX. Dessa maneira, Immanuel Kant encontrar-se-ia numa fase de transição de uma arte concebida como meio a serviço de outras funções para uma arte feita por si mesma, ou “arte pela arte” como se conhece na literatura corrente sobre o tema. Porém, nossa tese sustenta que o filósofo de Königsberg é importante não somente por formar parte desse processo, nem por ter sido muito lido por aqueles que continuaram com ele — o que não é pouco. Consideramos que Kant estabeleceu as coordenadas do debate em torno da autonomia da arte e que essas coordenadas ou pontos fundamentais da forma de ver o problema ainda interpelam a todos que pretendem trabalhar com a questão. No nosso entender, podemos considerar essas coordenadas em três instâncias: a do desinteresse, a da relação arte/natureza (que logo vai seguir conforme outras teorias, mas não vai deixar de ser fundamental até o século XX), e a do espaço da autonomia da arte como uma esfera específica além da definição do que seja a própria arte. 2.1. O desinteresse Immanuel Kant integra-se à disputa sobre a beleza no século XVIII com sua Crítica da Faculdade do Juízo, de 1790. Nesta obra, apresenta seu intento mais aprimorado de fundamentação da validade dos juízos sobre o belo, ou juízos de gosto. Para isso, pesquisa a estrutura desses juízos de acordo com o método da análise transcendental, 56 onde o primordial é buscar as condições de possibilidade de um juízo em seus componentes a priori, isto é, independentes de toda experiência empírica. Se o ajuizamento sobre a beleza fosse empírico, deveria ser ou bem radicalmente subjetivo — dependente dos gostos de cada um — ou bem deveria ser possível estabelecer conceitualmente sua objetividade (através de conceitos empíricos sobre o que o objeto deve ter para ser belo); porém, para Kant nenhum destes caminhos é válido. Segundo o filósofo, os juízos sobre o belo são juízos reflexionantes. Isso implica que não existe nenhuma determinação geral que justifique sua não arbitrariedade, universalidade e necessidade, senão que existe uma condição subjetiva de reflexão sobre o particular que nos justifica na hora de atribuir um fundamento transcendental ao juízo. O princípio do juízo reflexionante é o princípio da finalidade da natureza ou sua adequação aos fins. O juízo de gosto haverá de mostrar-se como um caso dessa condição transcendental subjetiva, incluindo uma relação com o sentimento de prazer e desprazer, que o vincula com a beleza de forma fundamental. O juízo do belo é, além disso, estético, pelo que será considerado uma espécie peculiar de juízo reflexionante. Assim sendo, o juízo do belo pode-se decompor em quatro instâncias constitutivas: de acordo com sua qualidade, é desinteressado; de acordo com sua quantidade, aspira à universalidade; de acordo com a estrutura teleológica, tem finalidade, porém não tem fim; e, de acordo com a modalidade, é necessário. Ele é o resultado do livre jogo entre as faculdades de imaginação e entendimento, livre de conceitos, induzida pela mera forma da recepção da representação (considerada como adequada para o conhecimento em geral). 57 No parágrafo dois da Analítica do Juízo Estético da Crítica da Faculdade do Juízo, Kant expõe aquilo que entende por prazer interessado [interesse] e desinteressado [uninteressirten Wollgefallen]: Chama-se interesse a complacência que ligamos à representação da existência de um objeto. Por isso, um tal interesse sempre envolve ao mesmo tempo referência à faculdade da apetição [Begehrungsvermögen], quer como seu fundamento de determinação, quer como vinculando-se necessariamente ao seu fundamento de determinação. Agora se a questão é se algo é belo, então não se quer saber se a nós ou a qualquer um importa, ou sequer possa importar algo da existência da coisa, e sim como a ajuizamos na simples contemplação [bloßen Betrachtung] (intuição ou reflexão).77 Essa noção é introduzida de forma geral num momento-chave da obra, pois lança mão de uma mudança na ordem tradicional de apresentar os quatro momentos do juízo, ou tabela das categorias, colocando a qualidade no primeiro lugar. Isso significa que, no nível dos juízos estéticos sobre o belo ou o não belo, a qualidade é fundamental e determina os outros momentos. A definição do gosto, posta aqui a fundamento, é de que ele é a faculdade de ajuizamento [Beurteilung] do belo. O que, porém, é requerido para denominar um objeto belo tem que a análise dos juízos de gosto a descobri-lo. Investiguei somente momentos, aos quais esta faculdade do juízo, em sua reflexão, presta atenção, segundo orientação das funções lógicas para julgar (pois no juízo de gosto está sempre contida ainda uma referência ao entendimento). Tomei em consideração primeiro os da qualidade, porque o juízo sobre o belo encara este em primeiro lugar. 78 Em que sentido Kant está falando de “qualidade” no contexto dos juízos estéticos é um ponto que requer esclarecimento. Podemos nos remeter à definição de qualidade que faz Leibniz nos Princípios metafísicos da matemática, de acordo com a qual: 77 78 Ak. V 204. Ak. V 203. 58 [a] qualidade […] é aquilo que pode ser conhecido nas coisas quando são observadas em sua singularidade, sem que seja necessária a copresença. Tais são os atributos que são explicados na definição ou pelas diversas determinações que envolvem. 79 É claro que se pensamos em objetos matemáticos, a definição é essencial para a singularidade do objeto.80 Porém, se essa singularidade é estética, então podemos pensar que se trata de uma avaliação do aspecto inefável de toda representação singular enquanto é avaliada em si própria. Nas palavras de Andrea Esser: “[O] atributo ‘belo’ expressa, tal como é entendido por Kant, uma qualidade especial que se refere à forma externa do objeto, mas que não consegue significá-la. ”81 Certamente é peculiar a estrutura da “Analítica do Belo”, uma vez que não encontramos uma análise dos quatro momentos do juízo noutras obras de Kant — com a exceção das Lições sobre Lógica que hoje conhecemos como Lógica Jäsche, devido ao estudante a quem Kant encomendou sua edição. Essas Lições estão datadas entre os anos 1765-66, motivo pelo qual se inscrevem no período pré-crítico. Neste caso, encontramos a análise dos quatro momentos do juízo aplicados à “perfeição lógica do conhecimento”, a qual, por definição, é diferente da avaliação estética. Porém, encontram-se relações com o aspecto intuitivo do mesmo, na medida em que o conhecimento sensível necessita ter, para Kant, uma perfeição e também uma dimensão estética. Esta dimensão tem algumas semelhanças com a experiência analisada como beleza, enquanto supõe a possibilidade de compartilhar uma sensação, mas o faz com fins estritamente didáticos, ou seja, como formas de apresentação do 79 “La cualidad […] es aquello que puede conocerse en las cosas cuando se las observa en su singularidad, sin que haga falta la compresencia. Tales son los atributos que se explican en la definición o por las diversas determinaciones que envuelven.” LEIBNIZ, G.: 1982, 582. 80 Assim, definir o ponto sem relação à linha, por exemplo. 81 “Doch das Prädikat ‘schön’ drükt nach Kants Verständis eine besondere Qualität aus, die zwar die äußere Gestalt eines Gegenstandes betrifft, aber an dieser dennoch nicht dingfest gemacht werden kann.” ESSER, A.: 1995, 9-10. 59 conhecimento que podem facilitar a compreensão dos entendimentos menos sagazes. Mesmo assim, isso supõe um interesse no gosto: Ao ampliar os nossos conhecimentos ou ao aperfeiçoá-los quanto à sua grandeza extensiva, convém fazer uma estimativa da medida em que um conhecimento concorda com os nossos fins e aptidões. Este exame diz respeito à determinação do horizonte de nossos conhecimentos, pelo que se deve entender a adequação da grandeza dos conhecimentos às aptidões e fins do sujeito. […] [Este horizonte pode ser determinado] [e]stéticamente, segundo o gosto, no que diz respeito ao interesse do sentimento. Quem determina esteticamente o seu horizonte, procura organizar a ciência ou, de modo geral, procura adquirir tão-somente conhecimentos que se deixam comunicar universalmente e nos quais até mesmo os não doutos encontrem o que lhes agrade e interesse 82 Contudo, o que chama mais a atenção nesse texto é que a qualidade não está no primeiro momento da análise do conceito de perfeição lógica do conhecimento, nem no segundo (como nas tabelas da lógica aristotélica e suas adaptações na Crítica da Razão Pura e na Crítica da Razão Prática), mas sim no terceiro. Assim sendo, a qualidade indica, nesse contexto, a claridade ou lucidez que podem fornecer caracteres que podem ser considerados ou como notas características ou como “uma parte do conhecimento da mesma [coisa]; ou — o que dá no mesmo — uma representação parcial na medida em que é considerada como uma razão de conhecimento da representação inteira.” 83 Kant distingue um uso interno, com “o intuito de conhecer a coisa mediante características, enquanto razão de seu conhecimento”; e um uso externo, que supõe a comparação entre, pelo menos, duas coisas (ibidem). Isso parece remeter à definição de Leibniz, já citada. Além dessa conexão com a singularidade, enquanto representação da coisa, dificilmente se obtém algo mais no que diz respeito ao espaço que a qualidade possa ocupar na análise dos juízos. E mesmo assim, não parece tão claro por que o 82 83 Ak. IX 40. Ak. IX 58. 60 aspecto estético do juízo relaciona-se especialmente com a qualidade, sendo que poderia estar relacionado com qualquer um dos outros momentos do juízo. O que nos parece indicar maiores elementos no que diz respeito a esse juízo é o aspecto sentimental envolvido na relação com o sujeito. Sendo que não se trata de um juízo sobre o objeto, mas sobre o sentimento que a representação produz no sujeito, esta última parece ser a chave na qual a qualidade deva ser levada em conta: como representação singular que se refere só ao sentimento do sujeito: Dadas representações, em um juízo, podem ser empíricas (portanto, estéticas); o juízo, porém, que é emitido através delas, é lógico, se simplesmente, no juízo, aquelas são referidas ao objeto. Inversamente, porém, mesmo que as representações dadas fossem racionais, mas em um juízo, fossem referidas meramente ao sujeito (ao seu sentimento), seriam, nessa medida, sempre estéticas. 84 Porém, diferentemente da Lógica Jäsche, já não se trata de um sentimento interessado por sua função cognitiva. A ênfase que Kant vai dar ao desinteresse na existência do objeto vai estar diretamente vinculada ao prazer ou desprazer específico da beleza, e para isso vai compará-lo com os sentimentos do agrado e do bom. Isso quer dizer que o sentimento não pode ser avaliado na sua singularidade, e tem que ser considerado na “copresença” de outros? Para começar, cabe dizer que embora pareça claro que o objeto é avaliado em singular — como se pode ver no segundo momento da Analítica do Belo— isto não é tão evidente para o sentimento. Ainda assim, Paul Guyer tem achado que deve ser considerado este primeiro momento como uma descrição da experiência de reconhecimento da beleza e não como parte de uma análise dos componentes essenciais. 85 84 85 No entanto, achamos boas razões para pensar que não se trata de uma caracterização Ak. V 204. GUYER, P.: 1997, 148-183. 61 nem psicológica nem fenomelógica do sentimento, ainda que o próprio lugar da sentimentalidade no projeto transcendental seja sempre problemático. Isso diz respeito ao fato de que Kant coloca o sentimento como chave desta experiência singular, e ao espaço do desinteresse na filosofia moral que Kant herdou do sentimentalismo inglês. Destarte, compreender que se trata de uma experiência qualitativa e estética é o mesmo que dizer que é uma experiência singular e sentimental. O passo seguinte, que será dado no parágrafo dois, será o de especificar que esse sentimento é desinteressado, ou seja, que não está interessado pela existência do objeto que o produz. Ora, o que significa dizer que no juízo sobre a beleza o prazer não produz um interesse pela existência do objeto? Num primeiro olhar, pareceria uma trivialidade afirmar que se algo nos produz satisfação, logo nos interessará a existência desse algo. Isto é, se reconhecemos que um objeto nos produz um prazer (se tem a propriedade de causar prazer), então, estaremos interessados na sua existência. Mas isto é exatamente o que Kant está negando enfaticamente: “Não se tem que simpatizar minimamente com a existência da coisa, mas ser a esse respeito completamente indiferente [gleichgültig] para em matéria de gosto desempenhar o papel de juiz.”86 É aqui que achamos ser pertinente uma referência à tradição. As teorias do gosto do século XVIII desenvolvidas na Inglaterra são o ponto de partida do tratamento filosófico da matéria da beleza enquanto vinculada ao desinteresse. Assim, o problema do sentimento de beleza foi conectado com uma ampla gama de respostas estéticas que incluíam a resposta à sublimidade, à grandeza, etc. No entanto, esse ponto de partida nutriu-se mais de considerações morais que estéticas. O egoísmo radical de cunho hobbesiano tinha marcado a época com uma imagem do ser humano que desterrava qualquer conduta que não estivesse fundada no 86 Ak. V 205. O destaque é nosso. 62 próprio interesse. Desse modo, o prazer e a procura da própria felicidade apresentavamse como único motivo para o agir humano, reduzido, neste sentido, a um cálculo de benefícios pessoais. De acordo com a teoria de Hobbes, esse procedimento encontravase nas bases mesmas da natureza humana, e a tendência ao prazer era sua evidência irrefutável. Qualquer restrição ao prazer só podia justificar-se em nome de um maior prazer futuro ou aos efeitos de evitar o desprazer. As respostas dos que passaram a ser conhecidos como “moralistas ingleses” não se fizeram esperar. Lord Shaftesbury apelou a um sentimento desinteressado, independente dos nossos interesses pessoais ou privados. A apelação a um sentimento, destoante nesse filósofo de convicções neoplatônicas, visava a refutar a fonte de evidência hobbesiana, estabelecendo uma resposta estética natural e imediata. A resposta ante o belo consolidou-se como caso paradigmático desse tipo de sentimento. Porém, o fundamento da mesma não era, em absoluto, independente de outros valores como a moral e a verdade, mas identificava-se com ambos. Evidentemente, essa solução expressa acima e, sobretudo, suas bases metafísicas foram objeto de controvérsia. Francis Hutcheson, discípulo de Shaftesbury, ainda que seu primeiro grande crítico, rapidamente tocou um dos pontos centrais da teoria de seu mestre: sendo que o belo nem sempre é bom, nem tem de ser verdadeiro, a resposta ao belo estaria fundada num sentido específico, interno (isto é, relativo às faculdades cognoscitivas, porém não diretamente a uma qualidade perceptível por um dos cinco sentidos externos), independente de qualquer reflexão sobre a utilidade ou a vantagem. Sua proposta conservava a natureza e o imediato da resposta estética, mas agregava um elemento essencial: a especificidade da reação ante o belo. Embora, como todo homem de seu tempo, tenha-se sentido obrigado a encontrar certa familiaridade entre o belo e o bom (como o bom poderia ser feio e ao mesmo tempo os seres humanos se sentirem 63 motivados a isto?), deixou a semelhança numa mera analogia entre o sentido do belo e o da virtude. De qualquer forma, o problema das motivações não egoístas aproximava o belo à virtude, na medida em que o primeiro prescindia por natureza de considerações acerca da utilidade e da vantagem. Esta caracterização do sentimento do belo como originário de um sentido interno impeliu Hutcheson a tentar estabelecer o tipo de qualidades que o objeto haveria de ter para produzir a reação adequada. Preocupado, agora sim, mais em estabelecer as características dos objetos belos que com a identificação de um sentimento não egoísta, o filósofo moralista torna-se tratadista da beleza e da arte. A fórmula com que caracterizará a beleza será a de uniformidade na variedade, locus clássico do que diz respeito à percepção da beleza herdeira da Antiguidade Clássica, que manteria um papel privilegiado nas teorias cognitivistas acerca deste fenômeno. O próprio autor deu valor teórico a esta uniformidade, porém cuidou de não atribuir o prazer ao reconhecimento reflexivo das qualidades objetivas. Edmund Burke, por sua vez, escreverá a célebre Pesquisa filosófica acerca da origem de nossas ideias sobre o sublime e o belo, rejeitando tanto o sexto (ou sétimo) sentido de Hutcheson — principal defeito de qualquer teoria que em nome do empirismo queira se desfazer de entidades metafísicas, como o era a hutchesoniana a respeito de seu mentor — e estabelecendo as bases empíricas do prazer e do desprazer em dois princípios muito simples: a autopreservação e a sociabilidade. Certamente, a rejeição da utilidade de Burke será um dos eixos fundamentais de suas considerações sobre a beleza. Ele reclamará, contra os defensores do utilitarismo estético, que nada é mais adequado e/ou útil para o cumprimento de sua função específica que o focinho de um porco cheio de lama, objeto a que nenhum dos quais ele se dirigia teve o atrevimento de considerar belo. 64 Este breve excurso por aquilo que o sentimentalismo inglês chamou de desinteresse é um ponto importante para compreender a postura kantiana. O interesse é, para Kant, parte das motivações que podemos encontrar para o agir. Assim, encontramos pelo menos dois sentimentos que motivam o ser humano a realizar uma ação e, portanto, a interessar-se pelo objeto dessa ação: o agrado e o respeito 87. Em uma nota importante sobre este tópico na Fundamentação da Metafísica das Costumes, Kant afirma: Chama-se inclinação a dependência em que a faculdade de desejar se encontra das sensações, sendo sempre a inclinação sinal de uma necessidade. Quanto à dependência em que poderá estar uma vontade que pode ser determinada de uma forma contingente dos princípios da razão, dá-se-lhe o nome de interesse. Este interesse apenas se encontra numa vontade dependente que não está por si mesma sempre em conformidade com a razão; na vontade divina não é concebível a existência de qualquer interesse. Mas a vontade humana pode também tomar interesse por qualquer coisa sem contudo por essa razão agir por interesse. A primeira expressão designa o interesse prático na ação, na segunda o interesse patológico no objeto da ação. A primeira manifesta apenas a dependência da vontade em face dos princípios de razão em si mesma, a segunda, a dependência da vontade face aos princípios da razão posta ao serviço da inclinação, visto que, neste caso, a razão se limita a fornecer a regra prática dos meios pelos quais podemos satisfazer a necessidade de inclinação. No primeiro caso, é a ação que me interessa; no segundo, é o objeto da ação (na medida em que me é agradável). Vimos na primeira seção que numa ação realizada por dever se deve considerar, não o interesse que se possa ter no objeto dessa ação, mas apenas aquele que se reporta à ação em si mesma e ao seu princípio racional (a lei).88 De acordo com esta caracterização, o interesse pelo objeto só pode ser patológico. Não havendo ação na avaliação da beleza, a única forma de suprimir esta condição animal parece ser a negação do interesse. Na Crítica da Razão Prática, Kant considera que: O prazer decorrente da representação da existência de uma coisa, na medida em que deve ser um fundamento determinante do apetite por essa coisa, funda-se sobre a receptividade do 87 “Todo o chamado interesse moral consiste simplesmente no respeito pela lei.” Fundamentação da Metafísica da Costumes, 155 n10 88 Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 82, n1. 65 sujeito, porque ele depende da existência de um objeto; por conseguinte pertence ao sentido (sentimento) e não ao entendimento, que expressa uma referência da representação a um objeto segundo conceitos, mas não ao sujeito segundo sentimentos. 89 Kant estabelece que a relação que possa ter o sentimento de prazer com o entendimento não pode pensar a existência e o prazer juntos em relação com o entendimento. Assim, a relação entre o aparelho cognoscitivo (ou sujeito) não pode se referir, através de sentimentos, ao objeto, dependendo de sua existência se este não for prático. O agradável, de fato, produz inclinação, mas o conhecimento que poderíamos ter das causas do aprazimento (necessidades biológicas, componentes químicos em relação à receptividade do paladar, etc.) não é a mesma coisa que a inclinação, embora a explique. Neste sentido, o lugar especial do juízo de gosto é estabelecido por Kant no Prólogo à edição de 1790: E, contudo, a investigação crítica de um princípio da faculdade do juízo nos mesmos [juízos de gosto] é a parte mais importante de uma crítica desta faculdade. Pois embora eles por si só em nada contribuam para o conhecimento das coisas, eles apesar disso pertencem unicamente à faculdade do conhecimento e provam uma referência imediata dessa faculdade ao sentimento de prazer e desprazer segundo algum princípio a priori, sem o mesclar com o que pode ser fundamento de determinação da faculdade de apetição, porque esta tem seus princípios a priori em conceitos da razão. 90 Nada no primeiro momento de a “Analítica” faz-nos pensar que Kant tivesse mudado de opinião. O que parece ser mais alarmante é que as qualidades que fazem um objeto atraente do ponto de vista sensível, útil ou desejável do ponto de vista moral, esgotem todas as instâncias do existente (e mesmo do existente na fantasia, como os desejos de felicidade). Destarte, a beleza não pode ser pensada como algo que se acrescenta ao 89 90 Ak 40. Ak. V 169. 66 objeto existente, ou que deixa de lado esses aspectos do objeto para atender a suas qualidades estéticas; tem que ir além, desvencilhar-se do fato de que o objeto exista ou não. Assim sendo, não podemos dizer que o prazer no belo gere interesse na existência da coisa, porque qualquer especificação do que a coisa seja parece supor uma conceitualização que anularia o sentimento ou avaliação estética. Seria, então, o caso de que só podemos falar “isto é belo”, sendo irrelevante o que “isto” seja para a avaliação da beleza. Só o sentimento parece estar à base do juízo. 91 Neste sentido devemos considerar o problema sistemático que um interesse não patológico num objeto poderia trazer: a incorporação, no domínio do sensível, de uma distinção entre objetos que não é permitida por nenhuma regra teórica (o que ocorre com a existência dos objetos). Podemos explicar o prazer patológico teoricamente, mas não podemos fazer isso com o prazer no gosto. Destarte, o desinteresse garante a separação dos objetos belos das regras da sensibilidade e, ao mesmo tempo, coloca-o em analogia com a moral. O próprio Kant assinala esta analogia no § 59 “Da beleza como símbolo da moralidade”, sendo que o belo “[a]praz independentemente de todo interesse (o moralmente-bom na verdade apraz necessariamente ligado a um interesse, mas não a um interesse que preceda ao juízo sobre a complacência e sim que é pela primeira vez introduzido através dele).” 92 A afirmação de que a existência do objeto belo não produz interesse revela-se chocante e tem gerado uma ampla polêmica, muito embora também tenha um interessante sucesso na medida em que foi interpretada como um dos primeiros reconhecimentos da autonomia do estético frente a outras esferas da vida, sendo conservada como um princípio de ajuizamento da beleza fundamental. Aliás, foi recuperada como uma justificativa da necessidade de uma atitude contemplativa — não 91 92 Neste sentido, discordo de GUYER, P.: 1997, 155. Ak. V 354 67 necessariamente passiva, porém muito semelhante à relação com um mistério sacro —, que também era o resumo do intuito do século XVIII a respeito do je ne sais pas quoi da beleza. Mas, o desinteresse pela existência do objeto, que Kant afirmou na Crítica da Faculdade do Juízo, pode se resumir à contemplação de um objeto cuja existência pode interessar-nos para ser contemplado? Por que Kant haveria negado o interesse pela existência de coisas belas podendo só estabelecer nossa relação com as mesmas como “contemplativa” de coisas existentes e que nos interessam na medida em que possam ser contempladas? Em princípio, poderíamos responder negativamente, porque não se trata de uma caracterização psicológica ou fenomenológica da experiência estética, mas de uma análise das condições sistemáticas em que se coloca o juízo sobre a beleza. Trata-se tão somente de uma negação do interesse sensível no agrado ou na utilidade, o que levaria Kant a propor o desinteresse pela existência como fundamental? Novamente não, na medida em que a analogia com o interesse moral não pode ser desconsiderada no que diz respeito ao lugar do sentimento de gosto. Podemos afirmar que esse desinteresse pela existência do objeto ou sua mera contemplação nos permitem expandir o juízo de gosto da forma a fazê-lo extensivo a todo tipo de objeto e artefato? Não eliminaria isso o momento de julgamento próprio da faculdade de julgar? Certamente podemos pensar que qualquer objeto se ofereça ao juízo de gosto; no entanto, ignorar todos os requisitos que se impõem pela mesma caracterização de desinteresse na terceira Crítica pareceria nos levar a uma redução, sem argumentos, da 68 posição kantiana que não facilita as coisas no âmbito da filosofia da arte. Assim sendo, esse desinteresse implica uma reação especial que supõe a avaliação de um objeto singular sem considerá-lo de acordo com a sua utilidade ou com o prazer que pode nos proporcionar antes da realização de qualquer juízo (analogamente à moral que, no entanto, produz o prazer como consequência do juízo). Se qualquer objeto pode ser avaliado deste modo, então o juízo de gosto não é um juízo reflexionante que leve em conta a aparição de objetos que gerem o prazer envolvido, mas um a priori de qualquer representação colocada desse jeito. No entanto poderíamos considerar que não há problemas em fazer esta interpretação; estaríamos apenas a desconsiderar que ela não pode ser o resultado de uma argumentação dentro do sistema e ficaria descolada dos seguintes momentos do juízo. Assim sendo, se pensamos em ter em conta só o desinteresse como avaliação da mera forma do objeto singular, esta não terá uma caracterização kantiana; e, ainda assim, é bem possível que os resultados, por exemplo, no que diz respeito à incorporação dos objetos comuns nas artes, a tornem mais empobrecida que beneficiada. Nesse caso, sim, podemos insistir em que não se entende o não interesse pela existência do objeto. Só como restrição ao interesse patológico e moral pode-se entender o interesse a posteriori (empírico e intelectual) que o belo produz. Sem isso, só sendo desinteresse, nossa relação estética com o mundo pareceria ficar constituída como a de uma série de prazeres permanentes, mas sem sentido; um universo de prazeres misteriosos, porém triviais, que ficam muito longe da utopia de um mundo cotidiano mais significativo e prazeroso. 69 2.2. A espontaneidade da arte Para que seja possível a existência de um objeto que será avaliado como o resultado de uma técnica, é necessário um conceito que seja sua causa.93 Embora na natureza isso possa ser prescindível, é um fato que nas produções humanas o plano que guia o técnico é imprescindível. Assim, não temos que ser conscientes de que uma flor é o órgão reprodutor das plantas para julgá-la como bela; mas, para compreender a possibilidade da existência do organismo, sim. Esta é, de fato, a diferença entre a beleza natural e a teleologia natural. Isso coloca Kant numa encruzilhada da qual será muito difícil sair, pois aquilo que ficava em suspenso na beleza natural, a saber, a fonte da representação, deve ser explicitado no caso da obra de arte bela. Para compreender as possíveis caracterizações de Kant acerca do que configura uma obra de arte como tal, fixaremos nossa atenção sobre duas peculiaridades das obras de arte nas quais poderíamos encontrar o papel do conceito procurado: as regras fornecidas pelo gênio e o conceito de beleza aderente como possível introdutor de conceitos no juízo de gosto.94 O conceito de obra de arte poderia ser a regra fundamental que guia o gênio para produzir objetos que aprazam no gosto. Toda arte estética, tem por guia na sua realização uma intenção elementar: a produção de um sentimento de prazer. 95 Mas, essa produção requer certas regras que, por exemplo, no caso das artes agradáveis pode-se fundar em princípios teóricos ou pragmáticos, que ordenam o desenho — uma elaboração conceitual — do aparelho ou as condutas mais indicadas para atingir esse 93 “Se quisermos explicar o que seja um fim segundo suas determinações transcendentais (sem pressupor algo empírico, como é o caso do sentimento de prazer), então fim é o objeto de um conceito na medida em que este for considerado como causa daquele (o fundamento real de sua possibilidade)." Ak. V 219-20 94 Cabe lembrar de que, nesse caso, o juízo de gosto nunca será puro. 95 Ak. V 305. 70 estado prazeroso na maioria das pessoas ou num grupo determinado (por exemplo, o grupo das pessoas de boa educação com respeito aos prazeres da mesa). Como poderíamos pensar as regras que guiam o artista? No caso da arte bela, no entanto, temos o problema de que tal como tinha se estabelecido na “Analítica do Belo”, o prazer da beleza deve ser desinteressado, universal, sem conceitos determinados que operem como causas, e, ainda, necessário. E isto parece engendrar uma contradição: por um lado, encontramos-nos com um prazer não imediato, cujo dar-se ao gosto encontrase mediado por um plano (um conceito); por outro, é um prazer próprio dos juízos sobre a beleza que, por definição, não admitiam conceitos como causas. Paul Guyer trabalha o problema da situação especial do conceito arte em seu artigo “Kant's Conception of Fine Art.” 96 Para Guyer, é um conceito geral da obra de arte aquilo que regula a sua execução. Este é um conceito geral que define objetos como os produtos de uma ação intencional orientada ao fim de produzir a devida harmonia entre a imaginação e o entendimento, que está na base do juízo de gosto (e assim ao prazer da beleza). A razão pela qual, segundo Guyer, o conceito de obra de arte não obstrui o juízo de gosto que possa deste modo permanecer sem fim, está em que o próprio conceito a realizar é o de produzir um prazer sem conceito. Essa explicação não parece satisfatória, pois supor que o conceito de obra de arte se realiza somente se não se realiza nenhum conceito, mas que nessa não realização produz-se um prazer especial, não nos dá nem um conceito de obra de arte, nem uma explicação adequada da própria justificativa kantiana para a satisfação da beleza em geral. Isso não é o mesmo que dar uma noção geral (prazer do doce) que descreve um efeito que se quer explicar (o prazer do chocolate), ou fornecer um conceito que 96 GUYER, P.: 1994, 275-285. 71 explique a possibilidade da existência do objeto que produz o efeito e o porquê do mesmo (o prazer). Na bela natureza não podemos encontrar o conceito que produz o prazer, porque não há nenhum prazer produzido de forma intencional. Isto é o que justifica o interesse intelectual relativo à beleza natural. 97 Nesse sentido, a beleza não é mais que um efeito sobre o sujeito. Guyer confunde o efeito com a causa, ou neste caso, o resultado — que pode ser isolado como prazer estético e analisado com respeito aos seus fundamentos a priori, independentemente da possibilidade do objeto — com seu fundamento de possibilidade. Para Kant, no entanto, os dois permanecem bem diferenciados. De fato, a própria introdução do gênio como talento natural do artista mostra que, por mais difusamente que se conceba a ideia que o gênio tem na hora de produzir arte, esta não pode ser a de produzir um prazer, porque isto simplesmente não é uma regra para a realização de um objeto, como a intenção de produzir um prazer através de uma boa comida não é suficiente para a realização de um prato saboroso. Penso que o problema fundamental de Guyer está no fato de que, em seu afã analítico, ele pretende encontrar em Kant algo sobre o que este não refletiu de forma profunda: um conceito geral de obra de arte. Embora a noção de Guyer possa ser considerada a única síntese possível do argumento kantiano da definição de arte (isto é, a noção mais geral que encontramos na Crítica da Faculdade do Juízo, ainda que não encontremos um fundamento para ela), deve-se aceitar que o vácuo que gera é problemático, sobretudo porque o vácuo que podemos aceitar na natureza pede-nos uma justificativa ainda maior quando se trata de uma obra humana. 98 97 Cf. Ak. V 401-2 citada adiante. Henry Allison, por exemplo, acrescenta a noção de estar guiada por um conceito (Zweck-condition), à noção de assemelhar-se à natureza na sua espontaneidade (Natur-condition). Assim, sem especificar um conceito geral das artes, sustenta que a naturalidade seria uma dimensão ordenadora dos conceitos ou fins internos num todo. Nesse sentido, a obra de arte seria o espelho do organismo, muito embora quando 98 72 Tentemos com a segunda via, a saber, a beleza aderente. Eva Shaper, por exemplo, retoma a consideração do conceito geral de obra de arte, mas afirma que, no caso de ser procurado no juízo de gosto puro, pelo qual a obra pode ser julgada, perder-se-iam aspectos substanciais da experiência estética especificamente artística. 99 Esta distinção remete a uma diferença entre tipos de beleza que propõe Kant no parágrafo 16, de acordo com a qual podemos julgar a beleza de modo livre ou de modo aderente. Este último caso compreende os fenômenos em que a beleza encontra-se ligada, aderida a um conceito do quê a coisa deva ser. O próprio Kant afirma que se podem dar ambos juízos de gosto sobre o mesmo objeto.100 Embora também possam se dar juízos de beleza aderente sobre objetos da natureza, como é o exemplo do cavalo, é importante considerar que, na arte, o fato de que seja um produto intencional é parte constitutiva da apreciação da mesma. Pensamos, com Shaper, que o processo que dá origem uma obra de arte se compreende melhor quando esta é avaliada como uma beleza aderente. Contra Guyer e Shaper, no entanto, não cremos que seja o conceito de obra de arte em geral que está envolvido na produção dos objetos artísticos. Os conceitos que parecem estar envolvidos na produção da obra parecem ter mais a ver com o modo de conhecimento associado à representação e, portanto, ao conteúdo que guia a execução da obra e sua concreção num objeto material.101 Também as regras de produção mecânicas próprias realizada de acordo com um fim possa ser olhada como natureza; enquanto que o organismo, conquanto natureza, deva ser pensado como fim. Mas, por que nem todo objeto belo tem a forma de um organismo? No final das contas, a natureza também tem que ser pensada como arte nos juízos de beleza. Parece então que o argumento de Allison nos deixa nas portas do argumento de Guyer. Cf. ALLISON, H.: 2001b. De fato, ao afirmar que a diferença entre uma estátua e a arquitetura está em que a primeira só pode ser avaliada na mera contemplação como beleza livre, sem restrições conceituais, Allison introduz uma noção de obra de arte muito semelhante à de Guyer. Ibidem, 297-8. 99 SHAPER, E.: 1999 100 Ak. V 231 Isto não há de supor, em princípio, uma diferença de valor para cada um dos juízos. 101 É importante recordar que a finalidade para a qual um objeto é construído pela mão do homem inclui necessariamente um conceito. 73 de cada arte particular parecem estar envolvidas na produção da obra de arte. Isto é, são conceitos particulares vinculados a cada obra em particular. No parágrafo 42, Kant trata sobre o interesse intelectual da existência do belo, e já adianta que a satisfação produzida pela beleza artística articula uma resposta sentimental complexa: O fato de no juízo de gosto puro o aprazimento na bela arte não pode estar ligado a um interesse imediato do mesmo modo que o aprazimento na natureza bela é fácil de explicar. Pois a arte bela ou é uma imitação desta a ponto de chegar ao engano: e então ela produz o efeito de (ser tida por) uma beleza da natureza; ou ela é uma arte visível e intencionalmente dirigida ao nosso aprazimento: mas neste caso o aprazimento nesse produto na verdade ocorreria através do gosto, e não despertaria senão um interesse mediato pela causa que se situaria no fundamento, a saber, por uma arte que somente pode interessar pelo seu fim, jamais em si mesma.102 É claro que a obra de arte é concebida por Kant como uma representação de outra coisa, e nessa outra coisa, que é a causa da mesma, ele coloca o conceito que guia sua execução. Uma razão para isto poderia estar em que, se pensássemos num conceito geral da obra de arte (mesmo que seja o conceito de produzir um prazer sem conceito), e não nos efeitos deste como a fonte do prazer, ver-nos-íamos obrigados a deixar outros aspectos do juízo de gosto. Por exemplo, parece claro que na intenção e realização de um objeto obra de arte a qualidade ou o desinteresse pela existência do objeto fica anulado automaticamente. O artista produz objetos, faze-os existir, logo tem que produzir conceitos que garantam a existência do mesmo, embora não tenha nenhum outro objetivo (como obter dinheiro, fama ou educar os ímpios). Neste sentido, cremos que há que se interpretar o fato de que a arte não gera prazer por si mesma. Assim, pensamos que não é a criação do objeto obra de arte através de um conceito geral do que esses objetos possam ser, como belezas, o que leva Kant a dar à arte um 102 Ak. V 301-2. 74 lugar na sua crítica das faculdades. Isto é, se temos um objeto x (neste caso, a obra de arte), sua produção envolverá um conceito do que qualquer objeto deva ser para que seja efetivamente um caso de x. No entanto, para a arte, como no caso da beleza natural, este conceito não é o que produz um interesse pela beleza e — é fácil derivar disso — não é o que produz o prazer estético próprio da arte (embora, inevitavelmente, esteja envolvido na produção do objeto). O problema na arte é que, embora não seja a causa do prazer, temos que estar cônscios de que houve uma ação orientada à sua produção (como em um objeto obra de arte, uma estátua representando uma mulher, uma mulher tranquila, boa, e assim por diante). O que significa dizer que Kant não estava pensando em um conceito de obra de arte? É claro que não significa que houvesse desconsiderado o problema de diferenciar a arte de outros objetos que não o eram. Que as exigências que hoje estabeleceríamos para a definição de arte não são as mesmas da época de Kant, onde o universo de objetos considerados obras de arte não era questionado. Embora Kant trabalhe as diferenças entre as belas artes e outros objetos, o que ele não aborda são as coincidências entre esses objetos (as obras de arte, o que as estátuas têm em comum umas com as outras e com a pintura, por exemplo), além de não caracterizar esses objetos como símbolos em seu sentido duplo: tanto sensíveis quanto expressivos de algo mais. Destarte, podemos concluir que o texto kantiano não oferece um conceito geral de obra de arte (de belas artes), e remete-nos às obras de arte particulares e aos conceitos nelas envolvidos. Todavia, o artista tem que fazer alguma coisa com esses conceitos para que a faculdade de julgar estética responda à obra. Para isso, vamos distinguir 75 sumariamente entre purificação e naturalização do exemplar.103 No primeiro processo, temos um regresso à pureza do objeto feito aderidamente. No segundo, a obra atinge um status equivalente ao da natureza. 104 O que ocorre com este regresso à pureza do exemplar, e na sua relação com os conceitos? É claro que todo o avanço no que diz respeito aos conceitos envolvidos na produção artística, mesmo os conceitos indeterminados para a sensibilidade ou ideias de razão, ficam recolhidos na armadura do gosto, do mesmo modo que todos os conceitos relevantes para a experiência da beleza da rosa são desconsiderados na sua avaliação pelo gosto. Porém, como já falado, gostaríamos de manter uma distinção entre a purificação do exemplar, ou proceder ingênuo do olho (ou ouvido) que percebe a obra, e o paradoxo sistemático fundamental que está inserido, desde o início na caracterização, tanto da beleza natural como da arte, esta última, a saber, o da técnica da natureza. Desse modo, o problema apresenta-se não só para a arte, mas também para a natureza, sendo que a equiparação das duas deve fornecer-nos algumas respostas às perguntas que nos fizemos sobre o fato de Kant ter preservado a estrutura da conceitualidade (na finalidade sem fim), mesmo eliminando o conceito que deveria ter por base. Destarte, salientamos também o papel diferente entre a experiência da beleza e a experiência da reflexão na produção conceitual, seja esta empírica, pura ou qualquer uma das suas instâncias intermediárias. Embora a naturalização da arte seja um fenômeno que nos diz muito a respeito do porquê da necessidade de purificação do exemplar, ela certamente vai um passo adiante na caracterização sistemática deste último à medida em que coloca o belo artístico como 103 104 Chamamos exemplar a cada obra de arte em sua singularidade. Para um desenvolvimento maior desta distinção, cf. HERRERA NOGUERA, M.: 2006. 76 uma baliza a mais na construção da mediação entre conhecimento e liberdade, e na especificação do sentimento ou prazer estético que, como já consideramos, deve mostrar não ser o resultado de um ato de conhecimento comum. Por isso, consideraremos esta naturalização como algo mais que um simples dizer ao receptor: “esqueça tudo o que sabe da obra, e simplesmente se permita aprazê-la, deixando de lado os possíveis conhecimentos que tenha sobre ela” (o que seria a instância mais ingênua da purificação estética do exemplar). Outrossim, consideramos que também não é muito complexo dizer ao receptor: “leve em conta todos os seus conhecimentos, liberte-se dos interesses pessoais, e vá além de todo o determinável pelo pensamento.” Nessas duas indicações, poder-se-ia resumir a função de purificação do exemplar. De modo diferente, a naturalização pode ser analisada como uma argumentação a favor da autonomia da experiência estética, não em sua negativa em responder à regra alguma, mas em seu descobrir da normativa própria do fenômeno da beleza. Essa normativa que era impensável no caso da beleza natural, onde o universo dos objetos não podia sair da experiência singular sem ser forçado, encontra na discussão sobre a arte um espaço que, embora possa questionar os resultados da “Analítica do Belo”, também pode nos ajudar a esclarecer algumas das noções kantianas sobre os fenômenos ocultos sob os conceitos vagos desta primeira parte da análise da faculdade de julgar a estética. Conforme já referido, pensamos que na relação entre exemplar e regras da arte há uma recuperação do problema do conceito geral de obra de arte a partir de restrições nas propriedades formais do objeto. Neste ponto, queremos introduzir outra noção que, consideramos, acrescenta um aspecto importante para que o sacrifício da conceitualidade não seja um sacrifício de qualquer tentativa para distinguir entre o que 77 seja arte e o que não seja, a saber, o que chamaremos de “espontaneidade da forma” do objeto belo. O objeto não pode ser qualquer objeto porque tem que ser belo e tem que parecer natureza. Para isso, deve ele ocultar sua artisticidade e renegar os aspectos mais mecânicos de sua execução. Somente desta forma conseguirá mostrar esteticamente um conteúdo, sem alegorias nem sentidos dependentes do contexto, o que é, para Kant, a forma do universalmente compartilhável, mas também sem conceitos que nos permitam estar conscientes de sua essência além do prazer que nos provoca. Ainda assim, nem o objeto belo nem o artístico podem ser qualquer objeto (tampouco natural ou artificial), pois devem preencher aquela condição que os fazem integrar o universo dos objetos técnicos, embora não definidos hipoteticamente (quer dizer, da finalidade sem fim que não é nem a de uma lei particular que consegue se inserir num sistema, nem a do organismo vivo). Assim, diz-nos Kant no parágrafo 45 da Crítica da Faculdade do Juízo: Face a um produto da bela arte temos que tomar consciência que ele é arte e não natureza. Todavia, a conformidade a fins na forma do mesmo tem que parecer tão livre de toda a coerção de regras arbitrárias, como se ele fosse um produto da simples natureza. [...] Portanto, embora a conformidade aos fins no produto da arte bela, na verdade, seja intencional, ela, contudo, não tem que parecer intencional; isto é, a bela arte tem que passar por natureza, conquanto na verdade tenhamos consciência dela como arte. 105 Como interpretar arte e natureza nessa afirmação de Kant? Uma primeira interpretação que pode nos vir à mente é a da arte como um produto intencional (teleológico) e da natureza como um produto não intencional (não teleológico). Destarte, poderíamos apresentar o parágrafo da seguinte forma: 105 Ak. 306-7. 78 Face a um produto da bela arte temos que tomar consciência que ele é teleológico e não não teleológico. Todavia, a conformidade a fins na forma do mesmo tem que parecer tão livre de toda a coerção de regras arbitrárias, como se ele fosse um produto da simples não teleologia. [...] Portanto, embora a conformidade aos fins no produto da arte bela, na verdade, seja intencional, ela, contudo, não tem que parecer intencional; isto é, a bela arte tem que passar por não teleológica, conquanto na verdade tenhamos consciência dela como teleológica. O problema desta substituição está em que a primeira oração fica trivial e a segunda parece implicar uma contradição. Uma segunda interpretação é a de Henry Allison, no seu livro Kant’s Theory of Taste, para quem a arte é um produto intencional (teleológico) e a natureza um produto orgânico (não só organizado, mas que se organiza a si mesmo): Visto isoladamente, a primeira condição [de que sejamos cônscios do objeto como arte] é de alguma maneira sugestiva da conhecida posição de Arthur Danto sobre a natureza da arte. Apelando às caixas de Brillo como caso paradigmático, Danto sugere que a questão do que faz algo uma obra de arte [bela] não pode ser respondida pela referência a nenhuma propriedade formal do objeto. Porque em termos destas propriedades, não pode ser distinguida de uma caixa de Brillo ordinária que pode ser achada em uma loja; e o mesmo pode ser dito do urinol de Duchamp e semelhantes. O que as faz obras de arte, então, desde a posição de Danto, é seu “ser sobre algo”; quer dizer, elas procuram fazer uma declaração (para Danto uma declaração reflexiva, teorética) sobre a própria natureza da arte, e para que nós as olhemos como obras de arte temos justamente que olhá-las nesta luz (como objetos que podem ser interpretados). [Arthur Danto, Beyond the Brillo Box.] De modo semelhante, para Kant, ser cônscio de uma coisa como arte é tê-la como o resultado de um intento consciente de parte do artista e, por essa razão, como envolvendo “ser sobre algo” ou intencionalidade que, outrossim, a faz objeto de interpretação. [...] No entanto, o segundo requisito (que a obra de arte seja semelhante à natureza), que para Kant é claramente o mais importante, diferencia nitidamente sua posição da de Danto. 106 106 “Viewed in isolation, the first requirement (that we be conscious of the object as art) is somewhat suggestive of Arthur Danto’s well-known account of the nature of art. Appealing to Andy Warhol’s Brillo Box as a paradigm case, Danto suggest that the question of what makes something a work of [fine] art cannot be answered by reference to any observable properties of the object. For in terms of such properties, it is indistinguishable of the object. For in terms of such properties, it is indistinguishable from an ordinary Brillo box that one finds un a store; and the same may be said of Duchamp’s urinal and 79 À procura da naturalidade, Allison vai lançar mão da organicidade da natureza, o que condiz com muitas das ideias que Kant considera a respeito do uso dos princípios teleológicos na filosofia, conforme já referido. Certamente, o interesse fundamental estará no fato de combinar causas mecânicas com causas finais, em uma nova versão da causa eficiente que é o gênio, permitindo às duas causas coincidirem no mesmo objeto, e fazendo de Kant um formalista que preserva a idéia do todo e da sistematicidade diferente da máquina, que não se auto-organiza, mas recebe sua organização de uma causa exterior.107 No entanto, além de colocar a obra como requerendo uma causa natural especial, e de diferir de Danto e Christel Fricke108, pouco mais nos diz Allison a respeito de uma caracterização do que possa ser esta condição de natureza da obra de arte. Podemos, portanto, tomar a noção de organicidade como referência no que diz respeito ao termo natureza109, e ler o parágrafo que nos resulta problemático da seguinte forma: Face a um produto da bela arte temos que tomar consciência de que ele é teleológico e não orgânico. Todavia, a conformidade aos fins na forma do mesmo tem que parecer tão livre de toda a coerção de regras arbitrárias, como se ele fosse um produto da simples organicidade. [...] Portanto, embora a conformidade aos fins no produto da arte bela, na verdade, seja intencional, ela, contudo, não tem que parecer intencional; isto é, a bela arte tem que passar por orgânica, conquanto na verdade tenhamos consciência dela como teleológica. the like. What makes these works of art, then, on Danto’s view, is their “aboutness”; that is to say, they endeavor to make a statement (for Danto a reflexive, theoretical statement) about the nature of art itself, and for one to regard them as works of art is just to view them in this light (as objects susceptible to interpretation. [...] Nevertheless, the second requirement (that the work of art seem like nature), which for Kant is clearly the most important one, differentiates his view sharply from one such as Danto’s. [...] Similarly, for Kant, to be conscious of something as art is to take it as a product of a conscious intent on the part of the artist and, therefore, as involving an “aboutness” or intentionality that likewise makes it subject to interpretation.” ALLISON, H.: 2001, 275. 107 Cf. ALLISON, H.: op. cit. 277-8. 108 Ibidem, 275, nota de rodapé 9. 109 Contudo, temos que levar em conta que Allison não está advogando por uma arte que imite a natureza, e por momentos parece nem sequer estabelecer mais limite ao conceito de forma da obra em Kant que o do fato de não ser um objeto mecânico. Embora pareça claro que não está disposto a não incluir aos ready-mades, a anti-arte e outras formas contemporâneas, também não está afirmando mais que um formalismo ou organicismo muito superficial. 80 A primeira frase parece ser contraditória, pois ainda que se trate a organicidade como uma forma análoga da teleologia, certamente a analogia funda-se na necessidade de conceitos para explicar a possibilidade dos objetos, apesar de ter consciência de que esses são natureza, e não arte. Isto é: a organicidade e a artisticidade são sinônimas enquanto teleológicamente causadas, a auto-organização é o que se explica apelando a um conceito e não a causas mecânicas. O resto, no entanto, parece trivial. Como interpretação alternativa, estabeleceremos a seguinte: pensaremos que a arte é um produto intencional (teleológico) e a natureza, um produto mecânico. O texto ler-seia assim: Face a um produto da bela arte temos que tomar consciência de que ele é teleológico e não mecânico. Todavia, a conformidade aos fins na forma do mesmo tem que parecer tão livre de toda a coerção de regras arbitrárias, como se ele fosse um produto da simples mecanicidade. [...] Portanto, embora a conformidade aos fins no produto da arte bela, na verdade, seja intencional, ela, contudo, não tem que parecer intencional; isto é, a bela arte tem que passar por mecânica, conquanto na verdade tenhamos consciência dela como teleológica. O fundamento da proposta está em interpretar “mecânico” no sentido de que, na medida em que segue causas cegas, nossas faculdades têm uma aproximação “espontânea” e não “lúcida” (de identificação da causa formal e/ou final que produz o objeto), sem relação com fins externos ou utilitários; isto é, não como os conceitos que guiam as artes mecânicas, mas como análogo à característica da legalidade própria da natureza de acordo com a primeira Crítica. Quer dizer, temos que olhar a arte como tendo sua própria legalidade, embora não seja possível reconhecer os conceitos que a constituem como tal, sem pensar nesses como o resultado de uma criação e sem ter 81 nenhum acesso a eles pelas limitações das faculdades do entendimento e da imaginação.110 É importante, aqui, levar em conta todo o problema da terceira Crítica: para Kant, estava demonstrado, nas primeiras duas Críticas, que existiam regras necessárias para ordenar o mundo e compreender a liberdade humana. Porém, ainda assim, a organização deste mundo (as leis empíricas, o belo e até a possibilidade de realização da ação moral num mundo determinado), nosso conhecimento dele, não podia ser considerado necessário (e, de fato, mesmo organizado em termos de causas e efeitos, Newton e a revolução científica toda, tinham mostrado que o erro na escolha das causas e efeitos que constituem as leis da nossa natureza tinham sido o mais frequente e não a excepcionalidade em homens do valor intelectual de Aristóteles, para colocar um exemplo). Assim, Kant volta a debater-se entre o absolutamente contingente do cético, no que diz respeito às leis particulares, e a afirmação dogmática de ter argumentos para que este mundo possível fosse também necessário. A heautonomia, ou autonomia reflexionante, foi a forma de sair deste empecilho, mas isso não o afastou da convicção de que toda atividade das faculdades é uma atividade ordenadora e, portanto, não pode não se relacionar com um universo ordenado conforme as regras (cegas ou lúcidas).111 Além disso, em primeiro lugar, como argumento a favor dessa interpretação, diremos que em momento algum a consideração kantiana torna-se trivial. Além disso, cabe salientar que, no contexto em que está inserida a afirmação, Kant está enfatizando 110 Possibilidade esta que, voltamos a salientar, não podemos afirmar acerca das coisas em si mesmas, não por ser contraditório, porque estaríamos indo além dos limites do cognoscível. 111 Neste ponto, importa salientar que, para Kant, as causas mecânicas ou cegas não eram sinônimos de causas instrumentais, mesmo que as causas instrumentais tivessem que combinar a causa lúcida do alvo a ser atingido e o conhecimento das causas cegas que, se reproduzindo na natureza, podiam permitir-lhes conseguir o seu objetivo. Aliás, o fato de que as causas cegas se reiterassem e pudessem guiar os fins úteis pode ser considerado um bom motivo pelo qual os antigos, mesmo errados no que diz respeito às leis empíricas, puderam viver e dar explicações não absurdas da ordem do universo, antes da revolução científica. 82 a distinção entre arte e natureza, controlando a dimensão intencional e criativa com uma dimensão normativa: Um produto de arte, porém, aparece como natureza pelo fato de que na verdade foi encontrada toda a exatidão no acordo com regras segundo as quais unicamente o produto pode tornar-se aquilo que deve ser, mas sem esforço, sem que transpareça a forma escolástica, isto é sem mostrar um vestígio de que a regra tenha pairado diante do artista e tenha algemado as faculdades do ânimo.112 Contra a interpretação, muito sugestiva, de Allison no que diz respeito à estrutura sistemática da relação arte-gênio, Kant não indica o conceito de organismo como espelho da beleza natural ou artística, algo que já tinha feito, e escolhe não fazer no contexto da terceira Crítica. Parece plausível que Kant, podendo perfeitamente fazer essa assimilação, tivesse colocado algumas restrições ao uso do seu sistema que bem podem ser compreendidas como ferramentas para garantir a passagem tanto do teórico e ao prático quanto da finalidade dos sistemas (conformidade da natureza em geral às nossas faculdades de conhecer) e as finalidades contingentes específicas do belo e do organismo. Além disso, se Kant defendesse a tese de Allison, então não deveria falar de natureza em geral, mas de certas formas da natureza às quais atribui a forma orgânica. Também podemos dar alguns argumentos do ponto de vista da teoria estética. Assim, a noção de exemplar associa-se a uma criação que se baseia no reconhecimento natural de uma regra dada na própria arte, que obriga a realizar o esforço de adequar a forma ao pensamento, preservando a liberdade, isto é, procurando uma aparência de espontaneidade e não uma geração natural ou auto-organização. Parece também mais obscuro aquilo que as obras de arte têm em comum (seu “ar de família”, por apelar ao termo popularizado a partir do segundo Wittgenstein) que aquilo que os organismos têm em comum. Quer dizer, ante a ausência de uma definição geral, que 112 Ak. V 307. 83 existe para os organismos, parece razoável pensar que Kant restringiu ainda mais as possíveis caracterizações da forma artística, podendo deixar assim uma normativa imanente não explícita, que é, ao final das contas, o que queremos dizer quando falamos de espontaneidade neste contexto. Os textos pré-críticos podem nos auxiliar nessa caracterização.113 Por exemplo, nas Leituras sobre Metafísica (datadas de meados de 1770), considerando a dimensão universal, mas empírica do gosto, Kant faz a seguinte observação, que estabelece uma analogia entre uma “regra a priori determinante” e uma “regra a priori mediata (por comparação)” para as obras de acordo com o gosto — que responderia a regras universais empíricas — e exemplares: Poderíamos dizer: algumas regras do gosto são a priori; mas não imediatamente a priori, senão mais bem comparativamente, de maneira que estas regras a priori se fundam em regras universais da experiência. Por exemplo, ordem, proporção, simetria, harmonia em música são regras que reconheço a priori e compreendo que comprazem a todos; mas novamente, estão fundadas em regras universais a posteriori. Podemos inclusive sustentar um gosto necessário, por exemplo, todos gostam de Homero, Cícero, Virgilio, etc.114 Poder-se-ia perguntar: por que não interpretar natural como espontâneo e deixar o equívoco termo mecânico de lado? Porque Kant não caracteriza a natureza em geral de espontânea em outro sentido que aquele que serve para garantir o fato da mesma estar estruturada de acordo com leis mecânicas. Apresentamos esse argumento, também, como argumento a favor de “dissolver” a primeira proposta de interpretação na nossa. 113 Não utilizamos os textos pré-críticos como evidência, mas como fontes de exemplos intuitivos, análises mal sucedidas que permitem identificar fenômenos que Kant tentou explicar, mesmo deixando eles de lado ou reformulando-os depois. 114 “One could also say: that some rules of taste are a priori; but not immediately a priori, rather comparatively, so that these a priori rules are themselves grounded on universal rules of experience. E.g., order, proportion, symmetry, harmony in music are rules which I cognize a priori and comprehend that they please all; but they are again grounded in universal a posteriori rules. We could also maintain a necessary taste, e.g., everyone has taste for Homer, Cicero, Virgil, etc." Ak. XXVIII: 251-2 84 Nesse sentido, espontâneo seria equivalente a mecânico, enquanto ordenado de acordo a leis não arbitrárias opõe-se a intencional, como graça opõe-se à consciência no texto de 1810, A respeito do teatro de marionetes de Heinrich von Kleist.115 Este texto parece ser um bom auxílio no que diz respeito a certas concepções do natural que, embora românticas, têm raízes profundas no senso comum filosófico da Alemanha da época kantiana e imediatamente pós-kantiana.116 O texto expõe uma discussão a respeito das vantagens de uma marionete em comparação a um bailarino, com um oponente que defenderia a superioridade da primeira em relação ao último: “E quais vantagem teria essa boneca em relação a um bailarino vivo? ”,117 ao que o oponente responde indicando uma clara vantagem das leis mecânicas no que respeita à graça e fazendo um comentário que pode nos lembrar a crítica kantiana da maneira: A vantagem? Antes de mais nada, uma negativa, meu inestimável amigo; a saber, que esta boneca nunca se afetaria. A “afetação”, como o Senhor sabe, aparece quando a alma (vis motrix) encontra-se em qualquer lugar diferente no ponto de gravidade do movimento.118 Assim, von Kleist desenvolve toda uma argumentação dos desacertos inevitáveis do bailarino pela consciência da representação que está fazendo, como se a incorporação do personagem o fizesse perder o domínio corporal pela identificação afetiva. Esta situação é colocada como a daquele que, sabendo que tem que cumprir um fim, perde o 115 Ernest Cassirer considerou a von Kleist um dos mais fiéis seguidores de Kant, na medida em que, na procura do Absoluto, nunca deixou de considerar os limites do nosso conhecimento do fenômeno do eu que conhece como um ato involuntário de inteligência. Cf. CASSIRER, E.: 1919 116 O texto pode se considerar representativo da tradição romântica e pré-romântica da “objetividade” da beleza e da graça. Cf. SCHILLER, F.: 1793. 117 “Und der Vorteil, den diese Puppe vor lebendinge Tänzen voraus haben würde?” VON KLEIST, H: 2002, 4. 118 “Der Vorteil? Zuvörderst ein negativer, mein vortrefflicher Freund, nämlich dieser, daß sie sich niemals zierte. Denn Ziererei erscheint, wie Sie wissen, wen sich die Seele (vis motrix) ir irgend einem andern Punkte befindet, als in Schwerkpunkt der Bewegung.“ Ibidem, 4-5. 85 domínio dos aspectos mecânicos através dos quais tem que fazê-lo, tornando evidente o esforço para sua realização. Assim, von Kleist desenvolve toda uma argumentação dos desacertos inevitáveis do bailarino pela consciência da representação que está fazendo, como se a incorporação do personagem o fizesse perder o domínio corporal pela identificação afetiva. Esta situação é colocada como a daquele que, sabendo que tem que cumprir um fim, perde o domínio dos aspectos mecânicos através dos quais tem que fazê-lo, tornando evidente o esforço para sua realização. Assim, o narrador ainda confirma sua tese de que o corpo humano, na medida em que é mais complexo, tem um potencial expressivo maior e, com isso, pode nos encantar mais que a marionete. Frente a isso, o oponente revela a relação entre mecânica e realização da beleza como análoga à da Criação: Disse-lhe que, ainda que continuasse defendendo com a mesma habilidade as causas de seus paradoxos, jamais me faria crer que se pode apreciar um encanto119 maior em uma marionete mecânica do que na compleição do corpo humano. Replico dizendo que nem sequer igualar-se à marionete seria possível ao homem. Unicamente um deus poderia rivalizar com a matéria nessa terra; e em tal caso se verificaria o ponto em que os dois extremos do mundo anular se tocariam.120 O diálogo continua com um narrador bastante convicto de que, como o sofista nos Diálogos de Platão, começa a argumentar a favor do seu oponente a partir do 119 Traduzo “Anmut” por “encanto” porque o autor vai utilizar “Grazie” mais adiante, porém vale lembrar que ter um significado semelhante não faz mal neste contexto. 120 “Ich Sagte, daß, so geschickt er auch die Sache seine Paradoxe führe, er mich doch nimmermehr glauben machen würde, daß in einem mecanischen Gliedermann mehr Anmut enthalten sein könne, als in dem Bau des menschlichen Körpers. Er versetzte, daß es dem Menschen schlechthin unmöglich wäre, den Gliedermann darin auch nur zu erreichen. Nur ein Gott könne sich, auf diesem Felde, mit der Materie messen; und hier sei der Punkt, wo die beiden Enden der ringförmigen Welt in einander griffen.” Ibidem, 5-6. 86 reconhecimento de que “conhecia certamente as desordens que causava a consciência na graça do ser humano. ”121 Não obstante considerarmos importante evitar as tendências spinozistas de von Kleist, isto é, evitar trespassar os limites da filosofia transcendental e unir mecanismo e teleologia no “ponto em que os dois extremos do mundo anular se tocariam”, a ideia de que há uma instância na qual todas as leis se unificam, tanto as do fenômeno como as intencionais, percorre toda a Crítica da Faculdade do Juízo. Mesmo assim, qualquer hipótese a respeito fica fora do alcance da razão pura, e os esforços do juízo por encontrar o ponto serão vãos no que diz respeito aos objetos belos (onde não haverá objetivação de fim ou conceito nenhum) e infinitos no caso dos organismos vivos. A beleza não pode ser reduzida a um mecanismo, nem a um fim ou intenção. Poderíamos dizer que tem sua própria espontaneidade, mas que esta permanece oculta para nós e só se revela na obra do gênio (e nem ele mesmo pode-nos explicá-la). Isso a aproxima daquilo que faz a natureza bela, o que nos permanece ainda mais obscuro na medida em que não podemos afirmar a existência de um criador. Destarte, o conceito ou regra da beleza permanece inescrutável, e o modo em que gera esse prazer em nós continua desconhecido. Parece que, por acaso da natureza, as obras de arte chegam ao mundo portando intenções diversas: significados e modos de apresentá-los. Do texto de von Kleist, queremos conservar a ideia de que há um produto criado (intencional), mas que é conseguido na adequação às regras da prática em que está inscrito (que é exemplar e se guia por outros exemplares). Kant poderia quiçá ter aprofundado as relações entre continuidade e inovação na geração do exemplar, mas é 121 “[I]ch gar wohl wüßte, welche Unordnungen, in der natürlichen Grazie des Menschen, das Bewußtsein anrichtet.” Ibidem, 6 87 razoável que a própria espontaneidade que garante o jogo das faculdades tenha primado sobre o desenvolvimento empírico da prática artística. 2.3. Normatividade do gosto e autonomia A faculdade de julgar estética produz juízos não lógicos. Isto parece ser uma evidente contradictio in terminis. Porém, devemos levar em conta que, como acabamos de dizer, dentro do modelo kantiano, esta irrupção da sentimentalidade parece ter seu lugar. Isto obriga Kant a especificar melhor como entende o modo de agir desta faculdade. Destarte, consideramos fundamental salientar que o juízo de gosto não nos informa de sensações, nem sequer naquela forma em que além de nos dar prazer, pode nos dar informação sobre o objeto (como poderiam ser os juízos do agrado considerados juízos de percepção). Kant salienta que “não é um sentido objetivo, cuja determinação fosse utilizada para o conhecimento de um objeto (pois intuir algo com prazer ou então conhecer com prazer não é mera referência da representação ao objeto, mas uma receptividade do sujeito), mas que não contribui com nada para o conhecimento do objeto.” 122 E até mesmo parece atribuir ao sentido dos termos um problema que, na verdade, encontra-se no centro de sua proposta: Permanece sempre [...] uma equivocidade inevitável na expressão do modo de representação estético, se por ela se entende ora aquele que excita o sentimento de prazer e desprazer, ora aquele que diz respeito meramente à faculdade de conhecimento, na medida em que nela é encontrada intuição sensível, que nos faz conhecer os objetos somente como fenômenos.123 122 123 Duas introduções à Crítica do juízo, 183. O destaque é nosso. Idem. 88 Destarte, parece evadir-se o problema intrínseco à sua proposta, que está no fato de que o prazer parece não ser mais que o resultante de uma relação entre a representação sensível e o entendimento, muito próxima à que pensaríamos existir no conhecimento de qualquer objeto: Um juízo de experiência singular, por exemplo, daquele que percebe uma gota movendo-se num cristal, exige com razão que qualquer outro tenha que considerar precisamente assim, porque proferiu esse juízo segundo as condições universais da faculdade de juízo determinante, sob as leis de uma experiência possível em geral. Precisamente assim acontece com aquele que sente prazer na simples reflexão sobre a forma de um objeto sem considerar um conceito, ao exigir o acordo universal, ainda que este juízo seja empírico e singular. A razão é que o fundamento para este prazer encontra-se na condição universal, ainda que subjetiva, dos juízos reflexionantes, ou seja, na concordância conforme a fins de um objeto (seja produto da natureza ou da arte) com a relação das faculdades de conhecimento entre si, as quais são exigidas para todo conhecimento empírico (da faculdade da imaginação e do entendimento).124 O que faz a condição universal subjetiva do juízo reflexionante, que produz o belo, ser diferente daquela que produz conhecimento? Sendo as mesmas condições as que parecem se impor ao conhecimento empírico, o que aparenta faltar é a aplicação de um conceito que, por não estar disponível no caso da beleza, ficaria indeterminado. No entanto, a concordância com as condições do conhecer em geral torna muito grande a tentação de pensar que achamos aqui uma especial forma de dizer que a natureza se dispõe a ser conhecida, e que o objeto belo é o herdeiro legítimo da concepção racionalista do conhecimento confuso. Nesse sentido, cremos que o esforço kantiano por salientar a diferença entre o prazer sensível e a sensibilidade tem que ser considerada como um esforço por delimitar algo que de fato não está claro, isto é, os aspectos não cognitivos do juízo de gosto. 124 Ak. V 191. 89 O prazer está por isso no juízo de gosto verdadeiramente dependente de uma representação empírica e não pode estar ligado a priori a nenhum conceito (não se pode determinar a priori que tipo de objeto será ou não conforme ao gosto; será necessário experimentá-lo); porém, ele é o fundamento de determinação deste juízo somente pelo fato de estarmos conscientes de que assenta simplesmente na reflexão e nas condições universais, ainda que subjetivas do seu acordo com o conhecimento dos objetos em geral, para os quais a forma do objeto é conforme a fins.125 Ainda assim, esta autonomia é difícil de compreender, e veremos que aparece de modo frágil não só nas Introduções, onde só é apresentada, como também na própria Dedução desse tipo de juízos. Mesmo assim, na obra kantiana o desenvolvimento da questão da autonomia da arte não é menor, porque comporta o problema de determinar aquilo que se reconhece, ou não, legitimamente como arte. Em outro tipo de objetos, essa questão, em Kant, parece não ser de ordem. Sem importar a função social que pudesse ter, em uma cultura, um saca-rolhas, em geral, entende-se que sua criação levou em conta uma função primordial específica, e qualquer culto ou ritual que possa ser gerado em torno de tal objeto não muda esse fato essencial que vem da sua utilidade concreta. Não acontece o mesmo com a arte que, de fato, tem-se constituído, ao longo de sua história, longe do alvo de ser objeto de gosto, e mais interessada em cumprir a função de transmitir mensagens, personificar divindades, ou, no caso da arquitetura, diretamente cumprir uma (ou mais de uma) função (como o caso da Igreja, para colocar um exemplo do próprio Kant). Destarte, quanto ao critério de aprazimento no gosto, seja kantiano ou como bagagem cultural socialmente adquirida, o reconhecimento da beleza parece apresentado na arte heterônoma como algo periférico. 125 Ak. V 191. 90 Kant certamente parece ter razão quando afirma que o interesse na existência do objeto não estava dado pela satisfação produzida por causa da arte mostrar-se como arte, pois esta “ocorreria através do gosto, e não despertaria senão um interesse mediato pela causa que se encontraria como fundamento, a saber, por uma arte que só pode interessar por seu fim, jamais em si mesma.”126 O gosto ou a avaliação estética estariam, porém, em um dos melhores casos teoricamente possíveis, no reconhecimento do próprio artista, mas não no valor social dado ao seu produto. As obras não serão feitas para serem contempladas nem na ilha deserta ― na qual Kant considerava ser impensável pensar na fruição estética ou na preocupação pela beleza ― nem nas comunidades onde o valor social deveria ser indiscutível. Porém, acreditamos que mesmo em Kant, é melhor pensar na autonomia como graus nos diferentes contextos de produção e circulação artística que em algo central ou periférico. E essa leitura nos compromete com uma interpretação do filósofo de Königsberg, que estabelece coordenadas para a compreensão da autonomia da arte na modernidade não somente pelo seu impacto ― que poderia ser arbitrário ou meramente ideológico ― nos seus leitores, mas fundamentalmente por ter colocado os termos da discussão que ainda hoje interpelam o interessado em filosofia da arte. Inclusive destacando a autonomia, a recepção e a produção além da definição do que seja a arte. Um primeiro passo na consideração da relação entre o gosto e a autonomia da arte poderia estar em pensar o interesse social no entender de Kant. Para o filósofo, este valor social é considerado como o interesse empírico no belo. Assim, no parágrafo 41 diz-nos Kant: 126 Ak. V 171. 91 Empiricamente, o belo interessa somente em sociedade; e se admite o impulso à sociedade como natural ao homem, mas a aptidão e a propensão a ela, isto é, a sociabilidade, como requisito do homem enquanto criatura destinada à sociedade, portanto como propriedade pertencente à humanidade, não se pode também considerar o gosto como uma faculdade de ajuizamento de tudo aquilo pelo qual se pode comunicar mesmo o seu sentimento a qualquer outro, por conseguinte como meio de promoção daquilo que a inclinação natural de cada um reivindica.127 Nesse marco entram, fundamentalmente, os prazeres agradáveis, cuja existência, com certeza, nenhum antropólogo ou historiador duvida existir em todas as comunidades humanas. No entanto, algumas formas da beleza, ou do que seriam belezas livres, entram também em jogo aqui no recentemente mencionado exemplo do indivíduo em uma ilha deserta. Um homem abandonado em uma ilha deserta não adornaria para si só nem sua choupana nem a si próprio, nem procuraria flores, nem muito menos as plantaria para enfeitar-se com elas; mas só em sociedade ocorre-lhe ser não simplesmente homem, mas também um homem fino à sua maneira [o começo da civilização]; pois como tal ajuíza-se aquele que é inclinado e apto a comunicar seu prazer a outros e ao qual um objeto não satisfaz se não pode sentir a complacência do mesmo em comunidade com outros.128 Assim, a comunicabilidade do prazer cumpre um papel social fundamental e está na base da validade da prática artística. Porém, sendo as artes belas e não apenas artes agradáveis, sua função é ainda mais importante. Neste caso, trata-se do interesse moral do qual a beleza é símbolo, e sendo a beleza natural menos atingível por interesses de outras espécies, esta será superior para a função enaltecedora do espírito. Se uma pessoa, que tem gosto suficiente para julgar sobre produtos da arte bela com a máxima correção e finura, de bom grado abandona o quarto no qual se encontra naquelas belezas que entretém a vaidade e em todo caso os prazeres em sociedade, e volta-se para o belo da natureza para encontrar aqui uma espécie de volúpia por seu espírito em um curso de pensamento que ele jamais pode desenvolver completamente, 127 128 Ak. V 296-7. Ak. V 297. 92 então nós próprios contemplaremos essa sua escolha com veneração e pressuporemos nele uma alma bela, que nenhum versado em arte e seu amante pode reivindicar em virtude do interesse que ele toma por seus objetos.129 O conhecedor da arte, o erudito amante dos objetos, priva-se, ao que parece, de uma experiência moral superior. Isto, que pode ser muito mau para o filósofo da moral, fornece-nos um excelente argumento para sustentar que Kant, embora tendo colocado a arte como bela na função de símbolo da moral, tenha aceito o espaço da avaliação propriamente artística. Destarte, parece que poderíamos conciliar o papel que adjudicamos ao exemplar, não no sentido de pensar em um exemplar de símbolo da moralidade, mas em um exemplar da obra de arte. Do mesmo modo, o processo de naturalização, com sua inevitável queda no furo sistemático da afinidade entre o conhecimento e a moral do gosto pela natureza, mostra, na impossibilidade mesma de ser definido, outro aspecto: o de um espaço com legitimidade própria. Nesse sentido, consideramos que o espaço aberto não é geralmente considerado como tal pelos formalistas, a saber, como o espaço da contemplação das formas com independência do conteúdo.130 Trata-se de um espaço mais complexo, capaz de articular as outras funções da arte e a conceitualidade que tanto parece ter abandonado teses autonomistas. 131 Sendo assim, além do papel cognitivo e moral que o gosto possa ter, e mesmo além de seu papel social como prazer unido à comunicação, certamente há também um espaço de reconhecimento de uma prática com regras próprias. 129 Ak. V 299-300. Cf. MORGAN, D.: 1992, ABRAMS, M. H.: 1991. 131 Cf. GUYER, P.: 1994; HASKINS, C.: 1989. 130 93 Capítulo 3: Os românticos alemães: a zona úmbria entre heteronomia e autonomia da arte Em seu livro Autonomía del arte y autonomía estética, Marcelo Burello escreve: Um erro, talvez mal-intencionado, tem feito com que normalmente se tenha ao esteticismo — vamos descrevê-lo assim, por enquanto, como o culto da arte pela arte em si própria — por um engendro direto do romantismo alemão, uma filiação que de acordo com quem a formule pode ser tanto pejorativa como melhorativa. A má-fé pode-se esconder não tanto na brutal simplificação que submete aos românticos a uma noite onde todas as vacas são pretas (para usar uma imagem que fez célebre justamente um filósofo romântico alemão, Hegel), mas por impingi-la aos teutões em geral, aludindo assim a essa numinosa paixão pelas artes que supostamente lhes seria inata desde os tempos de Carlos Magno, já que não desde os vikings. Este mal-entendido tem muitos responsáveis e um dos maiores é Madame de Staël, mas temos que dizer em sua defesa que suas entusiastas confusões foram repetidas depois por sisudos professores, os quais costumavam invocar como marcos da cadeia Alemanha/arte/romanticismo/esteticismo os sobrenomes de Schelling e Schopenhauer com a certeza de que (quase) todos os conhecem e (quase) ninguém tem-os lido, sem saber que Schelling exaltou a arte acima de tudo somente durante um par de anos e que Schopenhauer a exalta na terceira parte da sua obra magna somente para submetê-la subsidiariamente na quarta.132 Com esta feroz acusação, Marcelo Burello tenta desmantelar a história da autonomia da arte como uma continuidade entre a teoria da obra de arte do romantismo alemão e sua influência no simbolismo francês.133 A colocação de Burello não é sem pertinência, porém a ferocidade parece desproporcionada. Mesmo que não seja um movimento 132 “Un error, quizás malintencionado, ha hecho que normalmente se tenga al esteticismo — describámoslo por el momento, como el culto del arte por el arte mismo — por un engendro directo del romanticismo alemán, una filiación que según de quien provenga puede ser tanto peyorativa como mejorativa. La mala fe parece esconderse no tanto en la brutal simplificación que solamente a los románticos a una noche en la que todas las vacas son negras (por usar una imagen que hizo célebre justamente un filósofo romántico alemán, Hegel), sino por endilgársela a los teutones en general, aludiendo así a esa numinosa pasión por las artes que supuestamente les sería innata desde los tiempos de Carlomagno, ya que no desde los vikingos. Este malentendido tiene muchos responsables y uno de los mayores es Madame de Staël, pero digamos en defensa de ella que sus entusiastas confusiones fueron repetidas luego por sesudos profesores, quienes solían invocar como hitos de la cadena Alemania/arte/romanticismo/esteticismo los apellidos de Schelling y Schopenhauer con la seguridad de que (casi) todos lo conocen y (casi) nadie los ha leído, sin saber que Schelling exaltó al arte por sobre todo apenas un par de años y que Shopenhauer lo exalta en la tercera parte de su obra magna sólo para someterlo subsidiariamente en la cuarta” BURELLO, M.: 2012, 147, tradução nossa. 133 Para uma leitura deste tipo, de um “sisudo professor”, ver, por exemplo, MORGAN, D.: 2009. 94 sólido em defesa e promoção da arte ou do “esteticismo”, podem-se encontrar nos autores do período importantes ideias que muito dizem sobre a nova situação social da arte, a incorporação de um novo discurso filosófico sobre a mesma e a ressonância de um espírito de época ― do qual certamente Madame de Staël estava mais que imbuída ― que tem feito com que os seus leitores recuperem essas colocações fragmentárias para dar conta do que pode ser considerada uma teoria da arte cada vez mais ligada ao status autônomo da mesma, embora com ambivalências próprias de um fenômeno em cernes que, longe de fazer deles um monte de “vacas pretas”, coloca-os como pontos de luz nas trevas de uma transição tanto para os filósofos como para os artistas e o público em geral. Transição esta que afetou, sobretudo, a teoria e pouco repercutiu nos estilos artísticos, mesmo que estes últimos já tivessem começado mudanças não menores como as que podemos achar no Fausto de Goethe ou em Delacroix, para colocar apenas dois exemplos. O maior antecedente da disputa sobre a arte que os românticos alemães pretenderam resolver encontra-se na Renascença. A leitura que artistas da época fizeram de clássicos como Platão e Aristóteles, partindo de Plotino e Cícero, habilitaram a noção de ideal uma reformulação da definição do artístico que surge de um espaço de incerteza que foi resignificado em estreita vinculação com a ideia de “espírito” e com as novas metáforas acerca da obra, todas vinculadas à produção específica e especial do artista individual. Aprofundaram, assim, a reação maneirista contra as bases científicas e matemáticas, apontando para a liberação do artista de regras mecânicas, porém com extremo esforço para evitar cair na arbitrariedade.134 Como já apontamos, outro antecedente fundamental foi Kant. Uma das críticas mais comuns que os idealistas alemães fizeram a Kant foi a de “formalista”, tanto pelo que 134 Cf. PANOFSKY, E.: 2013. 95 consideravam um limitado mundo categorial, como por sua limitada proposta ética. Kant havia dado legitimidade a um empobrecido mundo de formas. Porém, a especial autonomia no universo do singular que o filósofo de Königsberg deu ao juízo de gosto e sua particular situação entre entendimento e razão forneceram as coordenadas para atribuir ao problema da obra, da sua autonomia e da sua importância singular e transcendente, um terreno ideal de ampla margem especulativa. Destarte, a ideia de liberdade para o espírito converteu-se em uma das principais máximas regentes de novas interpretações das possibilidades de transcendência da imaginação (fantasia, engenho, humor, etc.), fazendo da capacidade criadora original uma agente poderossísima para o agenciamento do espírito. O sujeito passou a ser a regra e a medida das artes, mesmo numa estreita conexão com o mundo do suprasensível, habilitando até leituras místicas de espécie dissímil. 3.1. Os direitos do artista na cidade das artes e a crise da ideia de mimese como simples imitação Tentando salientar os focos dispersos que existem nas trevas da transição entre heteronomia — e, portanto, para muitos sentidos e valores — e autonomia, vamos entender esta última não como esteticismo, porém como uma situação social que vai colocar a arte em face de si própria e cada vez mais “de costas” às instituições que outrora garantiram sua subsistência tanto significativa como econômica. Movimentos dispersos deram lugar a uma cidade das artes — para fazer uma analogia com o mundo da arte, onde a instituição autônoma está plenamente consolidada — que foi emergindo em um espaço dissímil. O credenciamento nesta cidade teve a ver com 96 reconhecimentos de patronos135, publicações mais ou menos independentes e discussões fermentais sobre o que a arte tinha que ser. Em matéria social, não deixa de ser um fato que a cada vez mais instalada autonomia da arte desvinculou a obra de todo fim prático, utilitário e/ou institucional e habilitou um mercado mais abrangente, porém também mais coceguento. Os artistas viraram os primeiros juízes do seu próprio trabalho e lhes correspondeu decidir a respeito da sua ação e da sua pesquisa artística. A eles correspondeu estabelecer um lugar para a arte no mundo, assim como também avaliar e reformular seu fazer. Vai ser neste momento também que se encontram maiores oportunidades para fazê-lo, na medida em que, embora a arte acadêmica pudesse ser um empecilho para muitos deles, a “academização” das artes permitiu uma diversificação dos aspirantes a artistas. Além disso, as esferas autônomas nas quais a arte começa a funcionar geram um fermento maior para reflexões que em outras épocas foram menos relevantes para o mercado da arte e com consequencias artísticas de menor envergadura. A forma de consumo da arte passou de fundamentalmente institucional para ser individual. Estes signos de distinção habilitaram os artistas a explorar vias maiores para se distinguir, ao mesmo tempo em que herdavam o prestígio de uma história da arte que já unificava os epicentros da cultura em torno do valor do artístico. A pergunta a respeito do que reproduz o artista quando realiza a sua obra aparece quase simultânea às primeiras observações sobre a natureza da arte. Será acaso o modelo natural? Será a beleza natural? Será sua própria imagem interior? E neste último 135 Um exemplo da importância dos mecenas pode ser encontrado no caso do afastamento entre Goethe e o escritor J. M. R. Lez. Nas palavras de Pedro Süssekind: “Durante o período do Sturm und Drang, Lenz e Goethe mantiveram relações cordiais, mas elas se deterioram posteriormente a ponto de tornar impossível a convivência entre ambos. A trajetória dos dois não podia ser mais divergente: enquanto o autor do famoso Os sofrimentos do jovem Werther foi convidado para a corte de Weimar pelo Duque Karl August, ganhou depois um título de nobreza e viveu mais de 80 anos de intensa produtividade, o arrebatado Lenz morreu pobre e louco aos 41 anos. [...] Lenz sofreu as consequências de tentar viver como escritor num período em que não havia mercado alemão para os bens culturais. Os autores daquela época, por mais talentosos que fossem, dependiam em grande medida de mecenas nobres, e, portanto, também de ligações sociais cuidadosamente cultivadas.” SÜSSEKIND, P.: 2008, 54. 97 caso, trata-se de uma imagem que o artista toma do modelo natural aprimorando-o, uma imagem que se produz por si própria, uma imagem que encontra nele mesmo e que provém de alguma esfera especial do universo ou da alma? Essas mesmas perguntas foram colocadas em debate durante o período em que os pensadores românticos influíram com suas considerações a arte. A primeira investida vai ser contra a ideia de mimese como mera reprodução do natural. Já na Renascença tinha-se estipulado a primazia da criação, porém com uma forte marca do cânone cientificista: arrancam o objeto do mundo interior da representação subjetiva e o situam num “mundo exterior” solidamente estabelecido; também dispõem entre o sujeito e o objeto (como o faz na prática a “perspectiva”) uma distância que ao mesmo tempo reifica ao objeto e personifica ao sujeito.136 A discussão sobre a ideia de mimese tinha começado antes do Romantismo. Herdeira da disputa entre os defensores do antigo e os defensores do moderno, esta discussão havia-se iniciado na França, no século XVII, e tornou-se conhecida simplesmente como “Querelle”. Ainda que se houvesse conseguido chegar a certo nível de mútua compreensão entre os adversários, esta discussão retratava a arte de uma forma com a qual o impulso progressista da época não sabia lidar: em seu interior, a arte era um objeto que, como tudo, devia progredir, mas podia conservar sua capacidade de ser portador de beleza apesar das modificações que esse progresso implicava. A influência desta disputa estendeu-se a toda estética do período. Enfrentavam-se os defensores do cânone clássico, quase sempre apelando a estéticas idealistas e recusando a incorporação do vulgar nas artes, com os defensores de uma arte nova, “mais natural”, que voltasse à natureza para recobrar a vida que se havia perdido em mãos de convencionalismos neoclassicistas. Por sua vez, ambos achavam-se frente a frente, de 136 PANOFSKY, E.: 2013, 49. 98 alguma maneira, com os chamados “maneiristas”, que faziam do estilo, ou de sua habilidade, o impulso fundamental da arte. Os naturalistas apelaram à imitação bela da natureza como fonte de inspiração; os convencionalistas resguardaram-se no ideal. Ambos, de igual modo, compartiam a convicção de que não era questão de deixar o artista em sua livre expressão estilística, senão que era necessário manter a arte bela dentro dos terrenos do universalmente verdadeiro (fosse da natureza ou do conceito do que as coisas tinham que ser). De alguma maneira vemos, neste ponto, um canal para a reconciliação da história de duas formas da ocupação artística que promoviam — ao que parece — concepções de arte diferentes. Na Alemanha tinha-se desenvolvido o conflito a partir da leitura da primeira história da arte como tal, Reflexões sobre a imitaçao das obras gregas na pintura e na escultura de Joachim Winckelmann. Nela, o autor colocava os gregos como o ponto superior da história da arte, em um esquema de evolução e involução e concluía: “O único caminho que resta para nos tornar grandes e, se isso for possível inimitaveís, é a imitação dos Antigos.”137 Dessa ideia apropriaram-se Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller, procurando a aparente contradição de encontrar nas obras clássicas o propriamente alemão. Aliás, Schiller considerou a Ifigênia de Goethe uma obra de “espantosa modernidade”. 138 Nas palavras de Pedro Süssekind, que retoma a interpretação de Peter Szondi: Para Szondi, desde o início, a teoria de Winckelmann é marcada por uma contradição, o que revela seu posicionamento em um momento de transição nas concepções acerca da arte. O autor das Reflexões inaugura uma compreensão da história da arte baseada na busca das condições de surgimento das obras antigas, “sob o céu grego”, mas procura com isso definir um 137 WINCKELMAN, J.: 1987, 18. SÜSSEKIND, P.: 2007/8, 82. O autor desenvolve uma argumentação pormenorizada sobre a modernidade da obra de Goethe, mas a discussão fica além dos objetivos desta tese. 138 99 critério normativo, atemporal, um modelo a ser imitado sob um céu diferente. Há uma aporia, entre a singularidade do surgimento da arte antiga e o postulado da sua exemplaridade. Mesmo assim, o caráter histórico das investigações de Winckelmann influenciou decisivamente a estética posterior, de Herder a Hegel, e o desenvolvimento da história da arte voltado para a compreensão das obras em sua particularidade. Szondi ressalta que as Reflexões se opõem à abstração das teorias normativas sobre a arte, ao oferecer uma interpretação concreta das esculturas, a partir da descrição e da consideração do contexto cultural, geográfico e climático em que surgiram. Nesse sentido, o escritor remete ao diálogo com artistas, com a atenção voltada para a prática e a técnica, em lugar da formulação de regras gerais abstratas.139 Winckelmann havia atualizado o interesse pela oposição entre ideal e natureza, sobretudo através de seu trabalho empírico do resgate da arte antiga. A grandeza artística somente era alcançável a partir da imitação do clássico, não entendida no sentido de mera reprodução, e sim entendida como aceitação das velhas pautas estéticas tais como a harmonia e a proporção. Mas por outra parte, também estava a leitura de outro historiador da arte, Karl Friedrich von Rumohr, que com sua Italianische Forschungen (A inovação italiana), se enfrentou com o aspecto “programático” desta recuperação, opondo-se ao que considera insípido nessa corrente, ou seja, ao ideal grego como forma destacada do artístico. Assim, duas leituras fundamentais criaram um marco de debate para os alemães do século XIX. A crise da ideia de mimese é incorporada plenamente pelo Romantismo. Conforme Tzvetan Todorov, em seu livro Teorias do símbolo, se considerou que o princípio da imitação fiel conduzia ao absurdo, citando como respaldo um dos principais representantes do Romantismo alemão, A. W. Schlegel, que em seu texto A doutrina da arte, expressava este cruzamento entre à ambição de fidalidade e os possíveis produtos resultantes, sugerindo que este princípio somente podia reger uma concepção da arte que propussesse o fim utilitário de suplantar a natureza: 139 Szondi, P. Antike und moderne in der Ästhetik der Goethezeit. In: Poetik und Geschichtsphilosophie I, p. 21-31 apud SÜSSEKIND, P.: 2008, 71. 100 A pintura de paisagem seria, nesse caso, simplesmente para termos no nosso quarto, à nossa volta, uma natureza por abreviatura, em que se preferiria contemplar as montanhas sem nos expormos a temperaturas desagradáveis e sem sermos abrigados a fazer alpinismo.140 Embora a ideia de reprodução da beleza implicasse uma série de considerações mais refinadas, a ênfase na criação tornou-a secundária para o Romantismo. Aliás, na maior parte das vezes, esta ideia de mimese tinha sido desestimada por considerar que o artista supera a beleza da natureza, deixando quando muito a possibilidade da escolha das partes, como no exemplo clássico de Zeuxis.141 Na realidade, aconteceu que, no mundo das descobertas e das melhoras tecnológicas, a superioridade da beleza natural foi deslocada para a beleza da arte ― cinicamente, pelo mesmo impulso tecnológico que lentamente vai acabando com a natureza. Em um primeiro momento, a bela obra de arte tinha que imitar a espontaneidade e originalidade da singularidade do natural, isto é, imitar o fato de que não se tratava de uma imitação, mesmo que, pace Zeuxis, todos soubessem que se tratava de um artefato.142 Outra mudança fundamental foi a ideia da liberdade do artista e sua não limitação, que colocou a categoria do sublime como mais precisa para se referir à produção da arte do que a ideia do belo em Kant. De fato, para os pensadores do Romantismo, o problema da imitação como escolha daquilo que é belo se traduzirá em uma contradição insuperável: ou bem adotamos 140 Schlegel, A. apud TODOROV, Tz.: 1980, 161. Esse tipo de observações não levam em conta o trabalho do artista na pesquisa da natureza, fim para o qual a imitação teria que ser considerada relevante. Mesmo sendo claro que a fotografia vai irromper corrosivamente na interpretação da arte como imitação, nem por isso deveriam ser descartadas as influências que esta prática teve sobre a própria criação e mesmo sobre a capacidade expressiva de muitas obras. Aquele que aspirasse a representar com a maior fidelidade possível a natureza, sem dúvida nunca atingiria seu alvo, mas aquilo que tem a ver com a captação dessa natureza, desenvolvendo técnicas mais afins a respeito do olhar e da nossa experiência é parte de outro capítulo da história da arte. O aspecto fundamental do romantismo ficará no deslocamento da ideia de liberdade mesmo à natureza, questionando a ideia mesma do real. Ver por exemplo Abrams, M.: 1973. 141 A lenda conta que o pintor escolheu as partes mais belas de cinco moças da cidade para representar Helena de Tróia. 142 Uma lenda ainda mais famosa de Zeuxis foi a do seu confronto com Parrasio, onde o segundo pintou uvas que enganaram os pássaros, mas o primeiro pintou a embalagem de uma pintura que enganou ao seu competidor. Plin. Nat. Hist. XXXV, 4. Sobre a nossa consciência de que sempre sabemos que estamos frente a uma reprodução e o que esto coloca no debate da teoria sobre a natureza e representação pictórica ver FLÓ, J.: 1989. 101 como objetivo imitar a natureza, seja ela bela ou não, ou bem adotamos como objetivo produzir um objeto belo, seja ele uma imitação da natureza ou não. Assim continua Todorov citando a August Schlegel: Das duas uma: ou se imita a natureza tal como se nos oferece, e então ela pode, muitas vezes, não nos parecer bela; ou a representamos sempre bela, e isso já não é imitar. Por que razão não se dirá antes que a arte deve representar o belo, e não deixar inteiramente de lado a natureza?143 Desloca-se assim, o ponto para aquilo que é belo, aquilo que é representado. Destarte, pela via de considerar aspectos intra-artísticos, colocam-se na primeira fila aspectos extraestéticos. A autonomia do estético envolve-se com a sua heteronomia. A ausência de valores específicos, isto é, a consideração de valores em formas cada vez mais abstratas e alheias à comunidade, mostra o enfraquecimento da modernidade no tocante às tradições vinculantes. A porta abre-se ao ideal. Na introdução da Filosofia da arte, escreve Friedrich Schelling: Não representa a filosofia das coisas reais, porém os seus arquétipos. E o mesmo faz a arte, e os próprios arquétipos, a que as argumentações filosóficas referem aquelas (as coisas reais) como reflexos imperfeitos, são o que na própria arte se faz objetivo ― como arquétipos, e, consequentemente, na sua perfeição —, e no próprio mundo reflexo representam o mundo intelectual. Destarte, para oferecer algum exemplo, a música não é mais do que o ritmo arquetípico da natureza e do próprio universo que ingressa no mundo imitado por meio da arte.144 O passo seguinte, para o qual podemos pegar o mesmo Schelling em seu Sistema do Idealismo Trascendental, será colocar a arte acima da natureza: 143 Ibidem nota 9. “Die Philosophie stelt nicht die wirklichen Dinge, sondern ihre Urbilder dar, aber ebenso die Kunst und dieselber Urbilder, von welchen nach den Beweisen der Philosophie diese (die wirklichen Dinge) nur unvollkommene Abdrücke sind, sind es, due in der Kunst selbst — als Urbilder — demnach in ihrer Volkommenheit — objektiv werden, und in der reflektieren Welt die Intellektualwelt darstellen. Um einige Beispiele zu geben, so ist die Musik nichts anderes als der urbildliche Rythmus der Natur und des Universuns selbst, der mittelst dieser Kunst in der abgebildeten Welt durchbricht.” SCHELLING, F.: 1982, 152, tradução nossa. 144 102 É evidente o que fazer com a imitação da natureza como princípio da arte, porque muito longe de ser acidentalmente a bela natureza a que dá sua regra à arte, é a arte na sua perfeição a que traz o princípio e a norma para avaliar a beleza natural.145 Ou, nas palavras de Todorov: Se a regra da arte é a beleza, a arte é uma encarnação da beleza superior à natureza, sendo esta (também) governada por princípios diferentes dos da beleza. Por conseguinte, longe de dever imitar a natureza, a arte dá-nos a medida da opinião que temos da beleza natural: a hierarquia da arte e da natureza inverteu-se.146 Para M. H. Abrams147 e o já mencionado Todorov, o referente essencial, pelo seu impacto muitas vezes não levado em conta, foi Karl P. Moritz, mais que Kant. Este seria o autor de maior influência especificamente na teoria da arte romântica. Sua primeira inovação será, justamente, a ideia de imitação. Moritz não vai colocar a imitação nem em um ideal nem na bela natureza: “Já não é a obra a que imita, mas o artista.” 148 A virada a respeito do ideal vai ser determinante, na medida em que não é este o que se imita, mas a própria criação, onde a divinidade vai ser colocada como uma questão de diferentes leituras da mística da criação que seja escolhida. Em outras palavras, fazer da criação uma instância suprasensível e não de imitação do suprasensível desloca o demiurgo a uma dimensão diferente à da platônica, muito mais facilmente assimilável à mística judaico-cristã. Isto não parece ser esquisito, considerando que Moritz foi, além de um teórico da arte, um exímio teólogo. Como coloca Abrams, fundamentando-se em um artigo de Martha Woodmansee, da mesma forma que na autobiografia romanceada de Moritz: 145 “Es erhellt daraus von selbst, was von der Nachahmung der Natur als Prinzip der Kunst zu halten sei, da, weit entfernt, daß die bloß zufällig schöne Natur der Kunst die Regel gebe, vielmehr, was die Kunst in ihrer Vollkommenheit hervorbringt, Prinzip und Norm für die Beurteilung der Naturschönheit ist.” SCHELLING, F.: 1992, 293, tradução nossa. 146 TODOROV, Tz. op. cit. 161-2. 147 Cf. ABRAMS, M. H.: 1991, 159-1. 148 TODOROV, Tz. op. cit. 162. 103 Moritz tem deslocado no discurso sobre a arte a terminologia religiosa do credo Quietista no qual foi criado; o primeiro enfase no Quietismo — como o próprio Moritz descreve na sua autobiografía em romance, Anton Reiser — está na “total aniquilação da assim chamada individualidade” num “totalmente desinteressado [uninteressierte] amor por Deus,” o qual só é “puro” se não tem nenhum tipo de impureza do amor próprio.149 E vindo à tona com a questão da imitação, acrescenta Todorov: Mas o sentido da palavra natureza não é o mesmo em ambos os casos: a obra não pode imitar senão os produtos da natureza, ao passo que o artista imita a natureza na medida em que esta é um princípio produtor. “O artista-nato, escreve Moritz, não se limita a observar a natureza, ele deve imitá-la, tomá-la por modelo, e, como ela, formar (bilden) e criar” (p. 121). Portanto, será mais exato não falar de imitação, mas de construção: a faculdade característica do artista é uma Bildungskraft, uma faculdade de formação (ou de produção ao); o principal tratado estético de Moritz intitula-se, significativamente, Sobre a Imitação Produtora do Belo (1788). Mimesis: sim, mas com a condição de a entender no sentido de poesis.150 A partir desse momento, a criação vai ser produção. Da mesma forma, a representação vai ser expressão, e o fenômeno estético virará experiência estética. Essa ideia vai reforçar a da autonomia da arte, afastando a prática do prazer utilitário da mesma forma que o bom, de forma que não sería esquisito pensar na influência do utilitarismo ético nesta distinção . Belo é aquilo que nos provoca um prazer inútil. Esta concepção do belo reafirma o alvo da obra de arte como um objeto com um fim em si mesmo e começa com o símbolo, a ideia-pilar do conceito de autonomia plenamente 149 “[…] Moritz has translocated into discourse about art the religious terminology of the Quietist creed in which he had brought up; for in Quietism the primary emphasis — as Moritz himself described it in his autobiographical novel Anton Reiser — had been on “the total annihilation of all so-call selfhood” in “a totally disinterested [uninteressierte] love of God” which is “pure” only if it is totally unalloyed by “selflove”. O texto de referência de Abrams é: Woodmanse, M. The Origin of the Doctrine of Literary Autonomy, comunicação encaminhada à International Association for Philosophy and Literature, Orono, Maine, 1980. ABRAMS, M. H.: 1989, 166, tradução nossa. 150 TODOROV, Tz. op. cit., 162. 104 formulada: a de que uma obra não se pode substituir por outra, sem se importar se as duas cumprem eficientemente o mesmo fim extraestético.151 A ideia da perfeição da obra em si mesma é uma das ferramentas que Moritz utiliza para negar as teorias pragmáticas da arte como algo que serve para um fim outro. O prazer de um objeto útil não é um prazer que nos seja fornecido pelo objeto em si mesmo, mas um prazer derivado do útil que este nos resulta, e, portanto, um prazer menor. Assim se expressa Moritz, em seu Ensaio para unificar todas as belas artes e belas letras sob o conceito do perfeito e acabado em si, de 1975: Eu me ponho por assim dizer no centro, ao qual relaciono todas as partes do objeto, isto é, considero o objeto apenas como meio ― contanto que minha perfeição seja desse modo promovida ― do qual eu mesmo sou o fim. O objeto meramente útil, portanto, não é em si mesmo nem um todo nem algo perfeito e acabado, mas somente se torna um quando alcança o seu fim ou se completa em mim. Na contemplação do belo, porém, eu coloco de volta no próprio objeto o fim que estava em mim: eu não o considero como algo completo em mim, mas nele mesmo, formando, por tanto, um todo em si, e proporcionando-me prazer em razão de si mesmo, e por isso o objeto belo refere-se menos a mim do que eu a ele.152 O Romantismo refunda o conceito de natural na arte. Ao fazê-lo, também vai nutrir a nova atribuição de lugar aos sentimentos do artista. Caspar Friedrich formulará esta nova visão da liberdade do artista em contraposição ao princípio da mimese da seguinte forma: O sentimento do artista é sua lei. O sentir puro nunca pode ser contrário à natureza, sempre será adequado à natureza. Nunca deve se nos impor o sentimento de outro como lei. A afinidade espiritual provoca obras semelhantes, mas daí à cópia, a distância é muita.153 151 Ver TODOROV, Tz. op. cit. 165. SABINO, J.: 2009, 108. 153 “El sentimiento del artista es su ley. El sentir puro nunca puede ser contrario a la naturaleza, siempre será adecuado a la naturaleza. Jamás debe imponérsenos el sentimiento de otro como ley. La afinidad espiritual provoca obras parecidas, pero de ahí a la copia hay mucha distancia.” Declaraciones en la visita a una exposición, 1830 apud ARNALDO, J.: 1988, 94. 152 105 A ideia desta liberdade do espírito mantém ressaibos kantianos. Destarte, acrescenta o pintor: Este quadro é grande e, no entanto, alguém poderia querer que fosse maior, pois é tal a sublimidade na compreensão do tema que, se tendo sentido grande ao se realizar, exige sempre uma extensão maior no espaço. Por isso, sempre é um elogio para uma pintura querer que seja maior.154 De uma forma que tem resultado confusa, os artistas do século XIX não têm proposto o abandono da figuração com sua crítica à mimesis, como também não propõem a completa arbitrariedade do signo. A diferença entre uma arte autônoma e uma heterônoma não se fortalece ao denunciar a ausência de sentido da primeira, porém na ausência de um sentido vinculante, como tentaremos mostrar mais adiante. Caspar D. Friedrich. Der Wanderer über dem Nebelmeer. (1817-8) Óleo em tela. 154 “Este cuadro es grande y, no obstante, uno querría que fuese mayor, pues es tal la sublimidad en la comprensión del tema que, habiéndose sentido grande al realizarse, exige siempre una extensión mayor en el espacio. Por eso, es siempre un elogio para una pintura que se la quiera más grande.” Ibidem, 96. 106 Para o poeta Novalis, a diferença entre as duas formas da mimese se estabelece entre sintomática e genética. A primeira é acidental, como a bela natureza de Schelling; enquanto a última, orgânica, é aquela isenta da arbitrariedade da mecânica unificando imaginação e entendimento. Novalis vai sugerir também a existência de uma poesia transcendental, que é aquela realizada pelo sujeito transcendental. Essa poesia compreende as leis da “construção simbólica do mundo transcendental”.155 Abre-se aqui um locus para as ideias estéticas kantianas, agora estruturadas qua formas simbólicas. O artista extrai de si a essência da sua arte ― nem sequer a mais mínima suspeita de imitação pode fazê-lo errar. A natureza visível parece sempre fazer mais fácil o terreno ao pintor ― ser absolutamente o seu inacessível modelo. Porém, em realidade, surge a arte do pintor com igual independência e tão a priori como a arte do músico. Todavia, o pintor serve-se de uma linguagem de signos infinitamente mais complexa que a do músico ― o pintor pinta em verdade com o olho –. Sua arte consiste em ver a natureza de modo regular e belo. Ver é aqui uma atividade completamente ativa ― a intensa atividade de produzir imagens. Sua imagem será tão só sua criptografia ― sua expressão, sua ferramenta de reprodução. 156 Definindo a criação artística como forma orgânica quase em forma imediata: [...] o organismo do artista obteve a semente da vida autocriadora, Ele tem elevado para o espírito a capacidade de excitação desta, e encontra-se por isso na situação propícia para 155 “[…] construcción simbólica del mundo trascendental”. Novalis, Poeticismos, 1798 apud ARNALDO, J. op. cit., 108. 156 “El artista extrae de si la esencia de su arte ― ni siquiera el mínimo recelo de imitación puede equivocarle. La naturaleza visible parece allanar siempre el terreno al pintor ― ser absolutamente su modelo inaccesible. Pero, en realidad, surge el arte del pintor con la misma independencia y tan a priori como el arte del músico. Sin embargo, el pintor se sirve de un lenguaje de signos infinitamente más complejo que el del músico ― el pintor pinta en realidad con el ojo –. Su arte es ver la naturaleza de modo regular y bello. Ver es aquí algo completamente activo ― la intensa actividad de producir imágenes. Su imagen será tan sólo su cifrado – su expresión, su herramienta de reproducción -.” Ibidem, 110. 107 colocar fora ideias por meio dela conforme o seu arbítrio― sem que o exterior o demande. 157 A diferença está na modificação técnica. Assim, o termo experiência estética forma parte da bagagem discursiva com que a arte autônoma começa a se reinterpretar. Esta categorização surge a propósito da nova forma de ver a arte a partir do trabalho sobre a obra e sobre o artista. Um espírito de artista não é um mero ser que compreende a obra, é toda uma experiência de vida estetizada, ordenada pela beleza ou pelo que esta motiva. Não se trata somente de uma forma de se enfrentar a obra; ela é a portadora de uma significação vital bem maior da que fosse objeto em qualquer outra época, e o artista sabe disso. Por um lado, abre-se uma área para a estética, uma área específica, que se pretende vinculante para toda a humanidade; por outro, estabelece-se uma cruzada contra o conhecimento objetivo e a ciência como única necessidade para o aperfeiçoamento da sociedade: a ciência não tem consciência daquilo que subjaz à ideia de humanidade e, portanto, não pode aperfeiçoála, somente pode servi-la. 3.2. O gênio criador Se o século XVIII foi o Século do Gosto158, o século XIX foi o Século do Gênio. Partindo da ideia de imitação, o sujeito obtém uma série de leis de reprodução do objeto. Mas por que, então, as obras de arte não são idênticas? Tendo como ponto de inicio a ideia da produção, as leis ficam ainda mais indeterminadas. Qual é, então, a validade dessas leis? É possível repeti-las mecanicamente? É quando a ideia de gênio, como aquele que estabelece suas próprias leis, começa a predominar sobre qualquer outra, até dominar o terreno. A psicologia individual ― fundada ou não em premissas 157 “[...] el organismo del artista ha obtenido la semilla de la vida autocreadora, él ha elevado para el espíritu la capacidad de excitación de ésta, y se encuentra por ello en la situación propicia para despedir hacia fuera ideas por medio de ella a su albedrío ― sin solicitación exterior.” 158 Ver DICKIE, G.: 1996. 108 metafísicas e/ou místicas ― começa a ser o âmbito onde se problematiza a experiência estética. O problema vai ser considerado em termos da existência de normas suprasubjetivas que condicionam a produção da arte. A ideia de fundar a arte tendo como ponto de partida as regras que surgem do gênio teve duas vertentes principais: a expressionista e a objetivista. Esta última colocava a atenção na obra acabada como fim em si mesma e evitava a transitividade do seu significado para o universo das emoções do criador. Para fazer isto possível, foi necessário atribuir-lhe uma forma de aparição para além da mera afetividade, embora o gênio pudesse dotá-la de estados afetivos diversos de grande intensidade, e inclusive tivesse obrigação de fazê-lo. Nas palavras de Novalis: “A poesia […] é representação do espírito, do mundo interior na sua totalidade.”159 A obra orgânica inicia sua trajetória ascendente no campo da Estética. Passou a ser o desenvolvimento de um processo espontâneo originado no gênio natural. Este gênio inato era um instrumento da natureza ou diretamente de Deus. A teoria do gênio natural tomou como base à a psicologia leibniziana, colocando o homem como o ser superior na escala dos seres pela sua capacidade de apercepção, embora o constitutivo da mônada atravesse todas as instâncias do ser. Dentro dessa concepção, vai-se achar um espaço para uma massa de componentes imperceptíveis para a consciência, um lugar para o inconsciente. Coloca M. H. Abrams: Para os teóricos literários, a província das percepções confusas e inconscientes de Leibniz, desenvolvendo-se elas mesmas eternamente na mente do homem num estado de maior distinção e articulação, tanto ajudava a sugerir como oferecia um locus evidente para lhe assignar, a secreta maduração, que acontece como uma planta, de uma obra de arte na mente do gênio.160 159 “Poetry […] is representation of the spirit, of the inner world in its totality.” Novalis apud ABRAMS, M. H.: 1971, 50. 160 “To literary theorists, Leibniz's province of confused and unconscious perceptions, eternally evolving themselves, in the mind of man, into a state of greater distinctness and articulation, both helped to 109 Como exponentes destacados dessa forma de pensar, o anteriormente citado autor menciona Schelling e Richter. O primeiro por recorrer à dialética entre o consciente e o inconsciente, que não vem a ser outra que não a dialética entre entendimento e natureza. A liberdade é reflexiva e a necessidade cega; o elemento que sintetiza esses opostos é o gênio que realiza uma obra de arte. A associação do inconsciente com a natureza externa como um tipo de necessidade interna que nada tem a ver com o arbítrio da vontade foi considerada a fase superior da sabedoria nesta fase do filósofo. Schelling vai inspirar-se em Goethe, com uma interpretação muito pessoal, quando faz na sua própria teoria da atividade do gênio algo predominantemente inconsciente.161 Jean Paul Richter vai incluir o inconsciente como o mais vigoroso do poeta com um agregado especial: desenvolve um aspecto caótico e tenebroso do inconsciente. Consciente e inconsciente são poderes do gênio. [Richter] fala do inconsciente como de um abismo, “do qual podemos esperar fixar a existência, não a profundidade”, e como um instinto que eternamente ‘tem um pressentimento dos objetos e das demandas, sem referência ao tempo, porque eles habitam além do alcance do tempo.162 Este inconsciente está na origem comum do sonho, do terror, da culpa, da demonologia, do mito e da poesia. É o grande ordenador dos nossos fervores, o agente de uma realidade superior ao indivíduo que permite que este veja além da realidade mundana. Também August W. Schlegel vai ver a obra de arte como o resultado de um poder imanente que conjuga o inconsciente com a autoconsciência. O tudo é um eterno devir onde todo produto é autoproduzido. suggest, and offered an obvious locus to which they might assign, the secret, plant-like maturation of a work of art in the mind of genius.” Ibidem, 202. 161 Ibidem, 206. 162 “[...] speaks of the un conscious as an abyss ‘of which we can hope to fix the existence, not the depth; and as an instinct which eternally ‘has a presentiment of and demands its objects without regard to time, because these dwell beyond the reaches of time.’” Ibidem, 202. 110 Este inconsciente está na origem comum do sonho, do terror, da culpa, da demonologia, do mito e da poesia. É o grande ordenador dos nossos fervores, o agente de uma realidade superior ao indivíduo que permite que este veja além da realidade mundana. Também August W. Schlegel vai ver a obra de arte como o resultado de um poder imanente que conjuga o inconsciente com a autoconsciência. O tudo é um eterno devir onde todo produto é autoproduzido. Outro tópico fundamental com relação ao gênio é o da inspiração. A inspiração, a metade do caminho entre expressão e objetividade, dá ao artista a capacidade de extrair de si próprio algo sempre novo e original. A teoria mais antiga para esta experiência estética extraordinária é a do visitante sobrenatural. A graça será uma forma semelhante à inspiração, na medida em que vai ser associada a um dom divino ou natural que garante ao gênio criativo uma espontaneidade total no seu fazer, deixando de lado qualquer teoria do aprendizado e regras conexas. Por causa dessa semelhança, faremos uma exposição conjunta delas, estabelecendo como matiz diferencial o fato da inspiração estar, maiormente vinculada a um estado do espírito, e a graça a uma faculdade deste último. Para Schelling, a objetivação forma parte de uma instância de limitação que mantém na obra artística sua capacidade para conservar o absoluto, isto é, o ilimitado. O caráter discreto da obra exige integrá-la na diversidade, mas o absoluto é absolutamente um. Isto permite o jogo entre razão e fantasia enquanto entidades que se vinculam com o absoluto porque a limitação não atenta contra a essência deste na obra de arte. A inspiração vai devir emanação do absoluto na fantasia: Somente se tem vida no particular. Porém, vida e diversidade ou, as particularidades sem limitação do absoluto somente são possíveis de forma primordial e em si pelo princípio da imaginação divina, ou, no mundo derivado, somente por meio da fantasia, que junta num mesmo tempo o absoluto e a limitação e constrói no particular a divindade toda do general. 111 Por este meio o mundo é povoado, acorde com esta lei emerge a vida desde o absoluto, como um todo, no mundo. De acordo à mesma lei no reflexo da imaginação humana volta-se a aperfeiçoar o universo para um mundo de fantasia, do qual a lei fundamental é a da absoluta limitação.163 O espírito criador vai ser quem logra esse efeito de natureza ao qual Kant já se tinha referido. Conforme Friedrich Schelling: Precede a toda coisa um conceito eterno que se tem projetado no entendimento infinito; mas, por que meio se converte este conceito na realidade e na encarnação? Unicamente por meio da ciência criadora, que está ligada necessariamente tanto ao entendimento infinito quanto no artista está a essência que registra a ideia de beleza insensível àquilo que apresenta perceptível. Tem que se chamar de afortunado e é, por sobretudo, digno de elogio o artista a quem os deuses prestaram este espírito criador; e assim será magnífica a obra de arte na medida em que nos mostre como em um esboço essa força não falseada da criação e do vigor da natureza.164 Por esta concepção, Schelling localiza uma ciência inconsciente, que guarda em si as bases da criação: Obras as quais lhes falta o selo desta ciência inconsciente podem ser reconhecidas pela sua patente carência de uma vida autônoma, independente do criador, pois, muito pelo contrário, aí onde ela age confere a arte a sua obra, junto à mais alta claridade do entendimento, aquela realidade insondável que a assemelha a uma obra da natureza.165 163 “Nur im Besonderen ist Leben. Aber Leben und Mannichfaltigkeit, oder überhaupt Besonderes ohnes Beschränkung des schlechthin Einen, ist ursprünglich und an sich nur durch das Prinzip der göttlichen Imagination, oder, in der abgeleiteten Welt, nur durch die Phantasie möglich, die das Absolute mit der Begrenzung zusammenbringt und in das Besondere die ganze Göttlichkeit des Allgemeinen bildet. Dadurch wird das Universum bevölkert, nach diesem Gesetz strömt vom Absoluten, als dem schlechthin Einen, das Leben aus die Welt; nach demselben Gesetz bildet sich wieder in dem Reflex der menschlichen Einbildungskfraft das Universum zu einer Welt der Phantasie aus, deren durchgängiges Gesetz Absolutheit in der Begrenzung ist.” SCHELLING, F.: 2004, 177. Tradução nossa. 164 “Precede a toda cosa un concepto eterno que se ha proyectado en el entendimiento infinito; pero, ¿por qué medio revierte este concepto en la realidad y en la encarnación? Únicamente por medio de la ciencia creadora, que tan necesariamente ligada está al entendimiento infinito como lo está en el artista la esencia que registra la idea de belleza insensible a aquello que presenta perceptible. Ha de llamarse afortunado y es, ante todo, digno de elogio el artista a quien los dioses prestaron este espíritu creador; y así será excelsa la obra de arte en la medida en que nos muestre como en un bosquejo esa fuerza no falseada de la creación y el vigor de la naturaliza” Schelling, F. apud ARNALDO, J.: 1988, 54. 165 “Obras a las que les falta el sello de esta ciencia inconsciente pueden ser reconocidas por su patente carencia de una vida autónoma, independiente del creador, puesto que, muy por el contrario, allí donde ella actúa confiere el arte a su obra, junto a la más alta claridad del entendimiento, aquella realidad insondable que la hace semejante a una obra de la naturaleza.” Ibidem: 55. 112 Na inspiração, o artista afasta-se da natureza indo ao reino dos conceitos puros e voltando a ela na materialização da obra. Assim, apropria-se da força criadora, supera a forma e traduz na obra ― conjunto belo ― a essência do “espírito natural imanente”. (ibidem). Outra interpretação fez da inspiração um momento de encontro entre o impulso entusiasta ― não diferente de qualquer prazer ou dor que não necessariamente acaba virando arte ― com o espírito autoconsciente. Friedrich Schleiermacher vai sustentar que entre a emoção e a arte se interpõe uma força além da mera força da vida e modela interiormente ao objeto. Outra força mais elevada se tem atravessado, e tem afastado aquilo, de um outro modo, indissoluvelmente unido; o momento da cognição encaixa-se, por dizê-lo assim, afastando, e assim quebra, por tanto, mercê a sua persistência, o campo daquela força bruta da excitação, detendo ao tempo que se fortalece como um princípio regulador enquanto mantém em suspenso o movimento já introduzido.166 O espírito é a força geradora da cognição paradigmática que toma vida a partir dos sentimentos. Por sua parte, Novalis coloca o mundo à luz interior do sujeito. Em nosso caminho pelo mundo exterior somente encontramos o condicionado, portanto, o mistério encontra-se no espírito, um espírito que está virado para dentro do indivíduo que procura essa luz. A fantasia e o gênio têm a possibilidade de relativizar a realidade comum (para chamá-la de alguna maneira), porém, o estado de autoencontro é um processo dificultoso, e por isso: Um dos preconceitos mais infundados é aquele de que lhe esteja negada ao homem a faculdade de se achar fora de si, de se 166 “Otra fuerza más elevada se ha interpuesto, y ha separado lo, de otro modo, indisolublemente unido; el momento de la cognición se encaja, por así decirlo, separando, y rompe ya, por tanto, merced a su persistencia, el campo de aquella fuerza bruta de la excitación, deteniéndolo, al tiempo que se fortalece como un principio regulador mientras mantiene en suspenso el movimiento ya introducido.” Schleiermacher, F. apud ARNALDO, J.: 1988, 47. 113 manter num estado de consciência além dos sentidos. O homem gostaria de ser em todo momento uma essência suprasensível. De outra forma, não seria cidadão do mundo, seria uma besta. Obviamente, num tal estado o discernimento, o autoencontro de si mesmo, é enormemente difícil, pois o homem fica ligado ininterrupta e necessariamente à mudança das circunstâncias. Porém, quanto mais conscientes sejamos em tal estado, a convicção que deste surge vai ser cada vez mais poderosa e suficiente; a fé na autêntica evidenciação do espírito.167 A cristalização do próprio desejo é a ferramenta da fantasia, irreal somente para o débil. O sentido é, para Novalis, algo que supera o entendimento: Uns dispõem de uma capacidade para a revelação superior à dos outros. Uns tem mais sentido, outros mais entendimento para a mesma. Aos últimos se consideram como uma calma luz na sua permanência, enquanto que os primeiros só vão desfrutar de iluminações mutáveis, embora, isso sim, mais radiantes e variadas. Esta faculdade pode desembocar também em doença, que, neste caso, vai indicar, ou bem uma sobreabundância de sentido e insuficiência de entendimento, ou sobreabundância de entendimento e insuficiência de sentido.168 A inspiração pode ser considerada levando em conta a lonjura em que se encontra a finalidade de toda arte. O conhecimento é o meio para chegar ao desconhecido, o mistério é o resultado e o princípio de tudo. Novalis acrescenta no seu Esboço geral: “Remota filosofía soa como poesia ― já que toda chamada na distância torna-se vocal”169 O método vai ser o ritmo, pois tanto o indivíduo como o mundo possuem seu próprio ritmo. A verdade é rítmica, a música é a grande criadora de configurações. 167 “Uno de los prejuicios más infundados es el que le esté negada al hombre la facultad de hallarse fuera de sí, de mantenerse en un estado de consciencia más allá de los sentidos. El hombre querría ser en todo momento una esencia suprasensible. Si no, no sería ciudadano del mundo, sería una bestia. Obviamente, en tal estado el discernimiento, el autoencuentro de sí mismo, es enormemente difícil pues el hombre queda ligado ininterrumpida y necesariamente al cambio del resto de las circunstancias. Pero cuanto más conscientes seamos en tal estado, la convicción que de éste surge será cada vez más poderosa y suficiente; la fe en la auténtica evidenciación del espíritu.” Novalis apud ARNALDO, J.; 1988, 49. 168 “Unos disponen de una capacidad para la revelación superior a la de los otros ― Unos tienen más sentido, los otros más entendimiento para la misma. A los últimos se les pronunciará como una mansa luz en su permanencia, mientras que los primeros solo disfrutará iluminaciones cambiantes, aunque, eso sí, más luminosas y variadas. Esta facultad puede desembocar asimismo en enfermedad, que, en su caso, indicará, o bien una sobreabundancia de sentido e insuficiencia de entendimiento, o bien sobreabundancia de entendimiento e insuficiencia de sentido.” Ibidem: 50. 169 “Lejana filosofía suena como poesía ― ya que toda llamada en la lejanía se vuelve vocal” Ibidem, 70. 114 Também o humor vai adquirir um lugar para os românticos, como arbitrariedade na livre combinação do condicionado e do incondicionado. A fantasia é imaginação que opera sobre a memória e a imaginação é a organização da arbitrariedade da memória e da percepção, operando em forma bidirecional entre o adentro e o afora.170 Do seu contato surge o Witz171. Logo, a dissolução destas relações é a forma mais terrível do Witz. O humor aproxima-nos a maiores graus de unificação e, portanto, de indiscricionalidade: “Humanidade é um papel humorístico”.172 O Witz supera o meramente individual e interessado: “A verdadeira conversação e o verdadeiro diálogo não são uma disputa de pontos de vista particulares, mas sim o movimento coletivo de saber (“sinfilosofia” ou “simpoesia”) em direção às ideias.”173 A inspiração em Friedrich Schlegel vai colocar esta tensão entre o entusiasmo da ideação e a autolimitação necessária para o sentido. “Sentido (para uma arte, uma ciência, um ser humano particular, etc.) é espírito dividido; a autolimitação é um resultado de autocriação e autodestruição.”174 O espírito é uniforme, a dispersão é valiosa na medida em que permite à inspiração socializar (um exemplo disso vai ser o Witz). Enquanto o artista cria e se emociona, encontra-se pelo menos numa situação de iliberalidade para com a comunicação. Ele vai querer dizer tudo; uma falsa tendência que tem os gênios jovens ou uma opinião real dos idosos ignorantes. Destarte, se desconhecera o valor e a dignidade da autolimitação, que é o primeiro e o último, o mais necessário e o mais alto tanto para o artista como para o homem. O mais necessário: 170 Ibidem. “[N]o alemão do século 18, o sentido é de "espirituosidade", "perspicácia bem humorada", "engenho", "agudeza", "inteligência especial, sutil", "graciosidade (mas com inteligência)". Não se traduz mais nem ao português nem ao espanhol. Consulta com o Prof. Romero Freitas. 172 “Humanidad es un papel humorístico.” Novalis, op. cit. 51. 173 FREITAS, R.: 2011. 174 “Sinn (für eine besondere Kunst, Wissenschaft, einen Menschen, u.s.w.) ist dividierter Geist; Selbstbeschränkung, also ein Resultat von Selbstschöpfung und Selbstvernichtung.” SCHLEGEL, F.: 1967, 148. Tradução nossa. 171 115 justamente, porque aí onde um limita-se a si próprio encontra-se limitado pelo mundo, pelo qual um acaba se convertendo em servo. O mais alto: porque um pode limitar-se nos pontos e nas partes nas que se tem um poder infinito, autocriação e autodestruição.175 Trata-se da liberdade entendida como fazer o correto, não a simples arbitrariedade, a sociabilidade própria do humor artístico. Este humor leva consigo o suprasensível, aquilo além de si, mas o insere em possibilidades tais que não fica preso na arbitrariedade. Aquele que pode utiliza-lo se faz vidente: “Os romanos sabiam que o Witz é uma Facultade profética, a chamavam nariz.”176 Nas artes visuais, a inspiração é, assim, um substituto das regras para a representação. A fantasia requer um espaço de livre jogo, não pode se submeter a regras. A natureza, para Friedrich, tem um espírito que também não o faz. Sem regra alguma, chama a acatar uma “voz interior”, a qual certamente nem todos podem ouvir nem usar.177 Philipp Otto Runge, em uma carta ao seu irmão Daniel, de 1802, nos dá um esquema de como o simbolismo vai inserir-se na obra de arte definida pelo modelo todo da criação. Deste modo, a obra surge sendo um regresso ao mundo após uma elevação a Deus. Colocamos as palavras, tons ou imagens em relação com o nosso mais íntimo sentimento, nossa noção de Deus e a consciência da nossa própria eternidade, mediada pelo sentimento da coesão da totalidade, isto é: enlaçamos tais 175 “So lange der Künstler erfindet und begeistert ist, befindet er sich für die Mitteilung wenigstens in einem illiberalen Zustande. Er wird dann alles sagen wollen; welches eine falsche Tendenz junger Genies, oder ein richtiges Vorurteil alter Stümper ist. Dadurch verkennt er den Wert und die Würde der Selbstbeschränkung, die doch für den Künstler wie für den Menschen das Erste und das Letzte, das Notwendigste und das Höchste ist. Das Notwendigste: denn überall, wo man sich nicht selbst beschränkt, beschränkt einen die Welt; wodurch man ein Knecht wird. Das Höchste: denn man kann sich nur in den Punkten und an den Seiten selbst beschränken, wo man unendliche Kraft hat, Selbstschöpfung und Selbstvernichtung.” Ibidem, 149. Tradução nossa. 176 “Die Römer wußten, daß der Witz ein prophetisches Vermögen ist; sie nannten ihn Nase.” Ibidem, 163. Tradução nossa. 177 Friedrich, C. apud ARNALDO, J.: 1988, 53. 116 sentimentos com as essências mais significativas e vivas ao nosso redor, e representamos símbolos dos nossos pensamentos sobre as grandes forças do mundo, imagens de Deus ou dos deuses, como símbolos das forças divinas e mais elevadas sentirão a força todo poderosa. Apertam todas as diferentes forças naturais a uma essência, tentam concentrar em uma imagem tudo a um tempo, para apresentar uma imagem do infinito. (Quando o espírito humano tem alcançado esta altíssima noção, surge uma sobre-exitação, e assim como o espírito tem fugido, os símbolos derrubam-se e ele deve recomeçar desde aquele primeiro sentimento infantil).178 Partindo deste estado vai se definir o assunto, a composição, o desenho, o colorido, o aspecto (perspectiva), a iluminação e o tom: surgindo do sentimento. A mudança nas técnicas pictóricas e na figuração não irá além de uma experimentação da relação entre cores e expressão. Mas as ideias destes artistas e filósofos, sim, formarão parte de uma transformação no lugar do artista que vai ser fundamental para colocá-lo frente a um novo rol social, um novo mercado e, também, uma nova relação com a obra. Phillip Otto Runge. Die kleine Perthes. (1805) Óleo em tela. 3.3. Obra de arte e símbolo Junto à nova concepção da obra como fim em si mesma e do artista como criador, a obra vai derivar uma totalidade fechada mais cheia de sentido. Fazendo uma analogia com as criações da natureza, a obra vai virar um objeto com uma realidade 178 “Ponemos las palabras, tonos o imágenes en relación a nuestro sentimiento más íntimo, nuestra noción de Dios y la conciencia de nuestra propia eternidad, mediada por el sentimiento de la cohesión de la totalidad, esto es: enlazamos tales sentimientos con las esencias más significativas y vivas de nuestro alrededor, y representamos símbolos de nuestros pensamientos acerca de las grandes fuerzas del mundo, imágenes de Dios o de los dioses, en tanto símbolos de las fuerzas divinas y más elevada sentirán la fuerza todopoderosa. Aprietan todas las distintas fuerzas naturales a una esencia, intentan concentrar en una imagen todo a un tiempo, para presentar una imagen de lo infinito. (Cuando el espíritu humano ha logrado esta altísima noción, surge una sobreexitación, y tan pronto como el espíritu ha huido, los símbolos se derrumban y él debe recomenzar desde aquel primer sentimiento infantil).” Runge, O. apud ARNALDO, J.: 1988, 66. 117 própria. Conforme a Doutrina dos Deuses de Moritz: “A faculdade de agir [...] percebe a dependência nas coisas, e, com aquilo que apreendeu, nisso semelhante à própria natureza, forma um todo arbitrário existente em si mesmo.”179 Todorov remeterá essa concepção à dos microcosmos e macrocosmos de origem neoplatônica.180 Abrams, por sua parte, a associará à ideia de heterocosmos, seguindo a analogia de Moritz, entre o artista criador e Deus.181 A diferença é de ênfase. Para o primeiro, a consistência interna da obra é fundamentalmente um análogo do mundo real; para o segundo, essa mesma consistência precisa de regras próprias diferenciadas. Na sequência, conforme a interpretação de Todorov, o novo mundo criado vai ser harmônico, fazendo cada parte necessária para o todo. O objeto não tem uma finalidade alheia a si; as suas partes têm como finalidade interna fazer desse todo um universo harmonioso. Mesmo que aqui se possa pensar em uma reutilização do conceito de mimese, o fim em si da obra fica sem alterações. Nesse sentido, aquilo que o artista escolhe pode ter seu símil na realidade (no macrocosmo), onde cumpre finalidades exteriores a ele próprio. É privilégio da arte converter os objetos da natureza em objetos com uma finalidade interna relativa à obra (microcosmo). O exemplo de Moritz vai ser o da marcha e da dança: a marcha vira dança quando não se ajusta a nenhuma finalidade exterior: Desde o momento em que os passos deixam de servir para se aproximarem de um objetivo, aparece a organização interna: o compasso. Do mesmo modo, quando as palavras são produzidas “por si mesmas”, quando o discurso é “reenviado a si próprio”, o verso, ou seja, a organização interna em nome de uma lei autônoma, aparece. O verso é um discurso dançante, pois a dança é urna actividade simultaneamente intransitiva e estruturada.182 179 Moritz, K. Ph. apud TODOROV, Tz.: 1980: 163. TODOROV, Tz. op.cit., 164-172. 181 ABRAMS, M. H.: 1989, 169-183. 182 TODOROV, Tz. op.cit., 167. 180 118 Abrams, neste ponto, sem divergir, vai considerar cada peça de dança um mundo em si, pelo qual a autoreferência tem que se dar no singular da coreografia (o exemplo é meu), mesmo que na generalidade se possa considerar como referência para a compreensão do mundo real artístico algumas formas do mundo real. Para este autor, a ênfase está na possibilidade de criar uma novidade radical. O que de fato é bom assinalar, não tanto para a interpretação dos escritos de Moritz, mas para compreender a cada vez maior autoridade do artista que se vai consolidar plenamente no século XX com a autonomia institucionalizada da arte. Mas também importa ver a outra cara desta abordagem na consideração das linguagens artísticas. O velho problema da verossimilhança ligar-se-á com a ideia do poema como heterocosmos. A metáfora mais usada foi a do poema como uma segunda natureza. Na analogia entre Deus e o poeta encontramos a ideia do poetizar como um restabelecimento de uma cosmogonia original. Daí que, para este heterocosmos, o importante seja saber qual das teorias da criação é a relevante e não tanto uma ideia de relação entre o mundo real e o mundo real artístico. Assim, pode-se saber se foi a força do sopro divino; ou a teoria do Timeo de Platão, de um Demiurgo que colou de um modelo eterno; ou a doutrina de Plotino da emanação do Único perpetuamente desbordante; ou a tradição estoica e neoplatônica de uma alma infinitamente geradora na própria natureza.183 Dentro dessa variante podemos encontrar autores tão importantes quanto Goethe ou August Schlegel. Assim como o mito de Prometeu estava à disposição, as metáforas deixaram de ser simples ornamentos. As imagens passaram de mentiras referidas a verdades que ao mesmo tempo não enganam ninguém, a criações que davam existência a seres em mundos alternos. Os próprios mitos constituem-se em símbolos. 183 “' […] the force of a divine breath'; or the theory in Plato's Timaeus of a Demiurge who copied from an eternal pattern; or Plotinus' doctrine of emanation from a perpetually overflowing One; or the Stoic and Neoplatonic tradition of an endlessly generative Soul in Nature itself.” ABRAMS, M. H.: 1971, 276. 119 Assim, do ponto de vista do símbolo, tanto Todorov como Abrams compartilham a interpretação de que esses mundos/obras tinham um sentido próprio e intransferível que se foi elaborando ao redor dos discursos sobre a obra. A linguagem será fundamental na hora de considerar a função significativa da obra, isto é, o seu aspecto de autonomia a respeito do mundo, a despeito de sua heteronomia em relação a não significar simplesmente o fato de o objeto ser arte ou uma perspectiva idiossincrásica de um indivíduo qualquer. Sendo cada autor considerado único e moldador original da sua obra, os termos subjetivo e objetivo começaram uma embrulhada peregrinação teórica.184 Schlegel distingue a arte clássica e a moderna como objetiva e subjetiva respetivamente. A arte clássica mostraria a capacidade de o autor lograr a beleza universal, enquanto o autor moderno mostraria sua própria sensibilidade. “Conforme Schlegel, uma obra ‘romântica’ pode ter múltiplos sentidos, mas no sentido particular de possuir, como a criação de Deus, referência bidirecional, ao mesmo tempo para fora e para dentro, ‘objetiva’ e ‘subjetiva.’”185 Como Deus era considerado visível e invisível, dava-se o mesmo com o artista. Também uma referência bidireccional que Schlegel atribui à personalidade do autor da criação artística, uma estrutura com um significado ostensível para fora e um significado invisível no interior. A tensão foi inevitável, dependendo do universo que se considerasse relevante na obra, de um universo suprasensível com sua própria racionalidade ou de um universo expressivo do autor — com determinações ultrasubjetivas. 184 Ibidem, 235-241. “According to Schlegel, a ‘romantic’ work may be multiple in meaning, but in the particular sense of having, like God's creation, bi-directional reference — both outward and inward, 'objective' and 'subjective.” Ibidem, 240. 185 120 Mas o que não deixa lugar à dúvida é que a obra vira símbolo no Romantismo. A esse respeito, como já mencionado, duas coisas serão fundamentais: a obra de arte como totalidade, onde cada parte é necessária e cumpre uma finalidade interna, e a obra de arte como carente de finalidade exterior e, como tal, intransitiva. Em palavras de Todorov: A coerência interna, como característica da obra de arte, é válida para todos os estratos que a constituem, e, portanto, também para os seus aspectos espiritual e material, o seu conteúdo e a sua forma. Mas forma e conteúdo, matéria e espírito são contrários; podemos, assim, caracterizar de outro modo a obra de arte, dizendo que ela realiza a fusão dos contrários, a síntese dos opostos.186 Essa coerência é condição necessária da sua beleza. Isso faz dela significativa por si mesma e, destarte, impossível de traduzir. Uma arte não pode ser traduzida em outra, mesmo se igualando em beleza. As consequências são importantes: A mensagem artística é exprimível pela poesia, pela pintura, etc.; e, ao mesmo tempo, indizível pelos meios da linguagem comum. A impossibilidade de descrever o belo resulta tanto da sua autonomia constitutiva como de certa inconvertibilidade da linguagem de arte em linguagem das palavras: a arte é a única que pode exprimir o que ela exprime.187 Foi a esta função de exprimir o inefável que o Romantismo identificou como propriamente simbólica. A alegoria vai ser o seu oposto, pois vai necessitar de uma justificativa exterior. O problema colocar-se-á naquilo que a obra de arte significa. Sua intransitividade consagrar-se-á como significação em si, mesmo que isso justifique a dúvida sobre a possibilidade de se considerar significativa: “A significação em arte é uma 186 187 TODOROV, Tz. op. cit. 167-8. Ibidem, 169. 121 interpenetração do significante e do significado: é abolida qualquer distância entre os dois.”188 Novalis, por exemplo, compreenderá o viés da significação quanto ao entendimento como regulador do fenômeno artístico com uma resposta de inspiração kantiana, porém cruzando os limites em um progresso até o divino. A procura de uma ordem forma parte do fim que permitiria a total traduzibilidade entre as artes de um modo em que a representação alcança significar o absoluto a partir das sensações. A representação romântica é um significante do absoluto. As leis que nela regem o sensível são suprasensíveis (harmonia, beleza e unidade) e se fundam na compreensão do sujeito como entidade livre. Outro escopo, herdado dos principais esforços dos poetas expressionistas já no século XVIII, foi o de tentar encontrar na poesia a linguagem das paixões. As disputas sobre a mimese não ficaram fora deste périplo, pois nos seus primórdios tentou-se fazer da poesia o espelho da alma do poeta. Assim, voltaram a ler Lucrécio, numa tentativa de refutar a teoria do ato batismal pelo qual Adão nomeou todas as coisas, trocando-a por teorias de tipo emotivista, com o acréscimo de supor que a linguagem não é somente expressão de sentimentos, porém dos sentimentos originários. Dois exemplos fundamentais nessa linha de interpretação formam J. Hamann e o seu discípulo J. Herder, os quais colocariam a origem da linguagem na emotividade e na língua mesma a encarnação do espírito dos povos. O Romantismo alemão somou-se com entusiasmo a essa forma de entender a linguagem poética, na medida em que consideravam que expressava o universo interior do poeta como gênio criador. A música, e com ela sua estrutura rítmica, começaram a formar parte substancial da teoria da arte. Assim foi reduzida consideravelmente a 188 Ibidem, 170. 122 relação com quaisquer aspectos miméticos da arte. Tanto Novalis como os irmãos Schlegel seguiram a distinção de Herder entre música e palavra, onde a arbitrariedade da última a colocava em inferioridade de condições a respeito da primeira que era capaz de exprimir sentimentos em forma natural. As pesquisas naqueles aspectos não representativos das artes ganharam um forte impulso dessas ideias. Assim podemos ver as pesquisas sobre as cores de Otto Runge, onde a diversidade cromática estruturar-se-á como um canal para compreender a significação plástica da harmonia, contraponto as “cores do pintor” às “cores do físico”, estabelecendo uma analogia entre a notação musical e seus ordenamentos cromáticos. Esta ordem estética foi articulada, mas pretendia que a obra falasse “desde o interior dos seus recursos e acima deles.”189 Importa compreender que, desde perspectivas transcendentes, ou desde a pretensão de uma mitologia da razão ou da experiência originária e, portanto, autêntica, o esforço foi conduzido para manter uma significatividade vinculante ainda quando o símbolo (a obra) cada vez mais se apresentava, ou bem como inefável ou bem como arbitrário. A arte não podia perder o seu poder de interpelar a humanidade, mesmo que na sua forma alheia ao mundo e ao significado comum, se afastasse do ser humano concreto. Este paradoxo é, ao final das contas, a zona úmbria do Romantismo. 189 “[…] desde el interior de sus recursos y por encima de ellos.” ARNALDO, J.: 1988, 23. Tradução nossa. 123 Capítulo 4. Fim da arte heterônoma e fim da arte Tanto o capítulo dois quanto o três podem ter levado o leitor a notar que, em termos de heteronomia, a filosofia não debatia sobre o poder das instituições fundantes de valores, mas simplesmente sobre valores. O fato de o afastamento entre Estado, Igreja e moral ter sido parte do processo sócio-histórico dos séculos XVIII e XIX, no entanto, foi fundamental para compreender como a heteronomia foi perdendo espaço, a autonomia ganhando autoridade e, mesmo atingindo a todas as áreas do social, a economia e a especialização e separação das esferas do humano converteram-se na forma de organização das sociedades modernas. No caso de Georg Wilhelm Frederich Hegel, a heteronomia e a autonomia vão percorrer um caminho conjunto, no qual a primazia da importância do conteúdo vai levar Hegel a pronunciar-se a favor de uma arte como superior e a considerar, no desenvolvimento da arte como forma do Espírito, que esta se tenha esgotado por ter chegado a um estágio de autonomia muito peculiar. Neste capítulo, pretendemos mostrar, em primeiro lugar, que o desenvolvimento dialético da história da arte não necessariamente leva ao fim da mesma, colocando a Christoph Friedrich Schiller como “oposto antagônico” de Hegel, na medida em que sua concepção da história como um sem fim e da sua visão da humanidade como uma infinita tarefa criativa estético-moral faziam da arte algo que viveria tanto como a humanidade. A seguir, mostraremos que a oposição heteronomia-Ideal e autonomia-predomínio da Forma levou Hegel a acabar com a vitalidade da arte na medida em que esta foi-se desenvolvendo em forma mais aprimorada do ponto de vista técnico, estendendo do lado da técnica as possibilidades de verossimilhança e variedade (originalidade do artista). 124 4.1. A autonomia da arte como resultado dialético diferenciado entre duas formas de entender a relação entre natureza e liberdade De acordo com Robert Pippin, Schiller e Hegel foram os dois filósofos a quem mais preocupou a necessidade de fundamentar uma concepção de mundo na qual a liberdade fora possível. Os critérios do valor moral de uma ação, dificilmente limitados à intenção de serem monumentais e submetidos à prova formal do imperativo categórico, foram uma fonte de frustração para ambos pensadores. Como primeiro passo, necessitaram estabelecer um sujeito com potestades mais amplas que as do sujeito transcendental ou consciência finita, capaz de abarcar todas as possibilidades do humano e acercar-se — quando não cumprir suas mesmas funções — ao sujeito divino.190 Esse sujeito estaria nutrido de uma história de superação de sua própria finitude em cada vez maiores aproximações ao divino. A humanidade como sujeito capaz de alcançar o máximo possível de reconciliação humana (espírito e corpo, liberdade e natureza, vontade e história) limitou-se, em Schiller, à ideia de Estado, forma mais desenvolvida desse sujeito, situada historicamente ao fim de um largo périplo do espírito desde a ingenuidade à organização estética e moral. Hegel, por seu lado, dará ao Espírito Absoluto a possibilidade de ser em si e para si, tanto o todo como as partes, a reconciliação final de teoria e prática, de conhecimento e ação. Schiller fez fama, na Filosofia, como pensador de transição entre Kant e os românticos. Assim mesmo, é um bom exemplo da íntima conexão que então gozavam filósofos e artistas, e da relevância metafísica e moral que a arte adquiriu como comunicação entre natureza e liberdade, estágio no qual Kant o deixou suspenso pelos débeis pauzinhos da subjetividade. Na Educação estética do homem numa série de 190 Parte deste percurso foi realizado pelo romantismo, como foi mostrado no capítulo 3. 125 cartas, vemos que a base de sua análise encontra-se em um discurso especialmente hostil à filosofia que abandona a verdade fixando-a em fórmulas vazias, preludiando assim, os lamentos hegelianos sobre a falta de espiritualidade de sua época. Essa decepção com relação à distância do espiritual expressar-se-á, em Schiller, na oposição entre natureza e análise formal ou entendimento, noção estritamente limitada por Kant na Crítica da Razão Pura. Seu protesto tem a ver então com o desejo de elevar-se acima dos limites do conhecimento. Assim, a Carta I lembra-nos o Prólogo da Fenomenologia do Espírito de Hegel191: Como o químico, é pela dissolução que o filósofo encontra a unidade, é pelo tormento da arte que encontra a obra de natureza espontânea. Para apreender a aparência fugaz, ele tem que fixá-la aos grilhões da regra, descarnar seu belo corpo em conceitos e conservar seu espírito vivo numa precária carcaça verbal. Espanta ainda que já não se reconheça o sentimento natural numa tal cópia e que a verdade pareça um paradoxo no relato do analítico?192 Para uma grande parte dos filósofos pós-kantianos, seu pensamento havia gerado uma fissura na aproximação à natureza, nos levava a sentir que não podíamos nos unir a ela de modo algum: tão somente análise, e, por isso, divisão e esquematização. Lamentando-se por não poder escapar dessa situação em suas investigações científicas, estudou essa separação e a possibilidade de uma reconciliação desde um ponto de vista histórico e conceitual. Sua análise o levou a encontrar a essência da humanidade nas mesmas contradições que denunciava, batendo pé no desenvolvimento da história e, inclusive, em sua dinâmica que se aproximava à da didática hegeliana. Tomemos como exemplo o início da Carta VI, onde também pensamos em Hegel e na sua certeza sobre 191 Num Seminário de Graduação, o Professor Juan Fló recomendou ler a Carta XI de Schiller como forma de avançar na compreensão da dialética hegeliana. Para mim, esta recomendação virou não somente uma boa ideia, mas também uma forma de compreender o lugar dar arte conforme as diferentes formas de entender as fases dialéticas e as consequências do uso desta ferramenta. 192 SCHILLER, F.: 2002, 20. 126 o movimento dialético, que faz necessária a contradição, para logo fechar novamente o círculo no movimento superador da razão, ou aufheben. Schiller expressa-se assim: Ter-me-ei excedido contra o nosso tempo nesta descrição? Não espero esta censura; antes vejo outra: a de ter provado demais. É bem verdade, direis, que este quadro se assemelha à humanidade atual, mas assemelha-se também a todos os povos a caminho da cultura, pois sem distinção tiveram de abandonar a natureza através da sofisticação, antes de poderem retornar a ela pela razão.193 A Carta XI trata a respeito da essência do humano, a qual é representada pela Carta X como algo escorregadio, que somente pode-se rastrear na diversidade dos homens individuais: Temos de elevar-nos, portanto, ao conceito puro da humanidade e, como a experiência nos dá apenas estados isolados de homens isolados, mas nunca a humanidade, temos de descobrir, a partir de seus modos de manifestação individuais e mutáveis, o absoluto e permanente [...]194 O próprio Schiller assume que estará incursionando em terreno de abstrata aridez, porém considera que a base firme do conhecimento há de assentar-se em bases conceituais para logo voltar ao familiar. A realidade efetiva combinará a abstração do conceito e a presença viva, em termos hegelianos; ela há de ser para a consciência e em si, pensamento e objeto. No começo da Carta XI, Schiller postula que o conceito puro, em seu máximo grau de abstração, enfrenta-se a dois conceitos últimos que o limitam: o um e o diverso, o essencial e o imutável, etc. Esta análise, ainda que pretenda “escavar” no conceito do humano, serve aos efeitos de mostrar o universo que se pretendia capturar na reflexão — ou fora dela: o universo do ser e do devir. Para combinar o universal e o particular, elaborar-se-á uma metafísica que estudará a dinâmica do ser e do devir. Assim aspirar-se-á a capturar a forma do processo 193 194 Ibidem, 35. Ibidem 56. 127 assimilando-o ao processo dos organismos naturais, cujas leis internas, ainda que já não eram estritamente definidas de acordo com causas finais (ou, ao menos, isso era discutível em função da concepção do processo evolutivo), continuavam a ser cifradas em leis especiais, não mecânicas. A realização da liberdade no mundo sensível, entendida como realização de fins ou atos intencionais, aspirava a essa valoração qualitativamente diferente da experiência, que longe de poder se reduzir a um cálculo de massas, exigira uma análise qualitativa das instâncias, de seu substrato, e de seu vínculo racional, não mecânico. A dialética pretenderá capturar essa forma especial de proceder do espiritual: essência e tempo, permanência e mutabilidade. Na proposta de análise do conceito do humano, chegamos, em primeiro lugar, à contradição fundamental, onde “[a abstração] distingue no homem aquilo que permanece e aquilo que se modifica sem cessar. Ela chama o permanente de sua pessoa [Person]; o mutável de seu estado195 [Zustand].”196 Em jargão hegeliano, poderíamos dizer que o ser é, em si e para si, a essência e suas determinações particulares. A pergunta está em qual será o sujeito encarregado de elevar ao universal a contradição, de superar (aufheben) a contradição? Ainda que Schiller não precise, tão bem como Hegel, do conteúdo do Deus ou o saber absoluto e sua história, encontramos em germinação toda esta cosmovisão hegeliana: Pessoa e estado — o si mesmo e suas determinações —, que no ser necessário pensamos como um e o mesmo, são eternamente dois no ser finito. Por mais que a pessoa perdure, alterna-se o estado, e em toda alternância do estado, permanece a pessoa. Passamos do repouso à atividade, do afeto à indiferença, da concordância à contradição, mas, ainda assim, nós somos, e o que se segue imediatamente de nós, permanece. Somente no sujeito absoluto todas as determinações perduram com a personalidade, porque provêm da personalidade. Tudo o que a 195 196 Também pode ser traduzido por “situação”. Ibidem, 59. 128 divindade é, ela é porque ela é porque é; ela é tudo eternamente, pois é eterna.197 Pressuposto isso, a distância entre Deus e Schiller é maior que a média entre o Altíssimo e Hegel. Enquanto este último faz referência à história do Sujeito Absoluto, Schiller pretende mais humildemente encontrar a chave para uma educação estética dos indivíduos finitos. O indivíduo finito há de buscar as condições, o fundamento de sua existência em si mesmo (como Deus) senão em outra coisa. Por distinguirem-se no homem, enquanto ser finito, a pessoa e o estado, não se pode fundar o estado na pessoa nem a pessoa no estado. Fosse esse último o caso, a pessoa teria de modificar-se. Sendo o primeiro, o estado teria de perdurar; em qualquer um dos casos, portanto, a personalidade ou o estado cessariam. Nós somos não porque pensamos, queremos, sentimos; pensamos, queremos ou sentimos não porque somos. Nós somos porque somos. Nós sentimos, pensamos ou queremos porque além de nós existe algo diverso. 198 Este “algo outro”, não obstante, que é o substrato da pessoa, e por tanto, de seus estados ou situações, é a liberdade, isto é, autodeterminação da vontade. Existe assim, disseminado nos indivíduos e em cada uma de suas escolhas, o substrato fundamental da humanidade, que faz que “[a] pessoa [...] tem de ser seu próprio fundamento, já que o permanente não pode provir da modificação; teríamos assim, inicialmente, a ideia de ser absoluto, fundado em si mesmo, isto é, a liberdade.”199 O que diferencia Schiller de Hegel está na não existência de uma seleção de estados específicos que nos deem o roteiro da realização do Absoluto. Sem dúvida, já a matéria 197 Ibidem. Ibidem, 59-60. O destacado é nosso. 199 Ibidem, 60. 198 129 fundamental da história, o tempo200, passa a ser o fundamento do estado particular. É o tempo condição de todo suceder. O estado tem de possuir um fundamento; tem de ser causado, já que não é por meio da pessoa, vale dizer, já que não é absoluto; teríamos assim, em segundo lugar, o tempo, a condição de todo ser ou vir a ser dependente. O tempo é a condição de todo vir a ser: esta é uma proposição idêntica, pois não diz mais que: a sequência é a condição de que algo se siga.201 Deus cria o que ao homem apresenta-se como algo diferente em si mesmo, o mundo percebido é sua alteridade. O indivíduo ao perceber, encontra seu próprio eu em todas suas representações. Assim, o homem imprime a marca da racionalidade, que é identidade ao mutável no tempo. Esta contradição é impossível de superar para Schiller, pois o homem mantém-se no mundo sensível com sua capacidade racional e tendência ao divino sempre insatisfeita. A tarefa do divino será a de expressar infinitamente no real, a qual se constitui em um devir eterno e inalcançável. Embora um ser infinito, uma divindade, não possa vir a ser, é preciso chamar divina uma tendência que tem como sua tarefa infinita a marca mais própria da divindade, a proclamação absoluta da potencialidade (realidade de todo o possível) e a unidade absoluta do fenômeno (necessidade de todo o real). O homem traz irresistivelmente em sua pessoa a disposição para a divindade. O caminho para a divindade, se podemos chamar assim o que nunca levará à meta, é-lhe assinalado nos sentidos.202 Isso dá à sensibilidade um lugar privilegiado, a possibilidade de atualizar a forma do homem. Sem ele, o homem não seria nada, pelo que o homem é, entretanto, também 200 Notemos que, enquanto para Berkeley, Newton, Leibniz e Kant, o tempo era a base fundamental da física (ciência da matéria), para o idealismo alemão e seus precursores, o tempo será da história (ciência do acionar do sujeito). 201 Schiller, F. op. cit. 60. 202 Ibidem, 61. 130 sensível, e esta sensibilidade que se apresenta como alteridade é o mundo, que é também parte de seu ser (ou seja, de seu ser em si mesmo). Poderíamos dizer que o indivíduo de Schiller é um protoespírito absoluto hegeliano. O tempo não pode ser aniquilado, por isso a eternidade nunca supera o éter do sensível- racional ou finito-infinito. Isso explica por que Schiller faz da arte a forma suprema de reconciliação, como resultado da dialética entre o divino-humano e o mundano-humano. O sujeito ainda não assume a figura final de sujeito absoluto, a Bildung (formação, construção, cultura) não está constituída como o sujeito do saber que é para Hegel. A educação segue sendo um processo infinito que nunca chega ao fim, posto que, por seu necessário ser sensível, não pode superar a barreira do particular. A ciência, lamentavelmente, não podia aspirar a ser parte do movimento de reconciliação com a natureza e a divindade. Nisso Schiller não negou de todo o legado kantiano, respeitando os limites do conhecimento teórico para dedicar-se sobretudo ao mundo da arte e pendendo para o universo do moral. Hegel não se conformará com essa frágil superação dos limites da Razão Pura, nem aceitará que o finito seja considerado insuperável, nem sequer maximizado pela história e a comunidade (acumulação da finitude). Ele buscará um círculo de verdades mais sublimes no domínio do Espírito Absoluto e pretenderá, para elas, o estatuto de conhecimento racional. Hegel formou-se no espírito romântico de sua época e durante certo tempo pode se dizer que não rompeu com essa esfera difusa na que se concentrava o saber do Absoluto. A vagueza das propostas de unidade entre natureza e liberdade é, sem dúvidas, um dos principais tópicos que encontramos Fenomenologia do espírito. O projeto geral de Hegel acredita na possibilidade de “se apoderar da totalidade do real pela capacidade do pensamento” 203 203 A razão é autônoma na medida em que se ADORNO, Th.: 1996, 325. 131 desprende de si mesma em seu próprio desenvolvimento. Hegel sustenta que a filosofia não somente deve amar o conhecimento ou se preparar para ele, senão possui-lo. É ciência do Absoluto, funde-se no objeto do conhecer, seja natureza, universo ou razão absoluta. Assim, reprova a Kant por este haver ficado no formalismo do subjetivismo, não havendo dado o passo em direção ao objeto. Para Hegel, há de se deixar de lado o ponto de vista crítico e partir da identidade entre sujeito e objeto. Um aspecto essencial da Fenomenologia do Espírito é a convicção de que a teoria do conhecimento não há de tomar ao seu objeto como um instrumento do conhecimento (defeito que se credita a Kant por sua teoria das categorias como funções do entendimento) e que Hegel condena ao relativismo na medida em que a modificação do objeto pelo instrumento é inevitável (daí a impossibilidade de acesso à coisa em si para Kant). Um dos principais temas para compreender este novo sujeito cognoscente que se incorpora à teoria do conhecimento é o do lugar da filosofia no desenvolvimento do Espírito Absoluto. A filosofia alcançará seu objetivo abandonando a reflexão — que rege o pensamento sobre o finito — para promover a especulação — única forma de conhecer o Absoluto. Além disso, seu trabalho crítico deverá ser capaz de expressar a verdade de cada sistema filosófico, na medida em que eles mesmos são também a exibição ou o desdobramento da essência da filosofia. Esta necessidade de um pensamento especulativo mostra-se no início mesmo do Prólogo204, onde Hegel lamenta-se de ter que prologar a obra, ou seja, de dar visão sucinta do desenvolvimento da obra completa. Para Hegel, a filosofia enquanto conhecimento especulativo, não podia mais que expor todo o desenvolvimento de seu 204 Aos efeitos deste apartado vamos a nos remeter somente ao Prólogo da Fenomenologia do Espirito, por considerar que é uma boa forma de apresentar o sistema hegeliano em geral, sem complicar mais do necessário para os fins propostos. 132 conhecimento, pois, de outro modo, este sempre se mostraria unilateral e incompleto, sempre estaria viciado pela abstração, seria sempre esquemático. 205 O universal leva em si o particular, porém, é no desenvolvimento dos particulares no todo que se encontra o universal. A filosofia é uma forma de se expressar o universal, porém se mostra em distintas figuras particulares. O universal, de acordo com esta estrutura teológica básica, é o conceito e sua realização. Somente quando é exibido o todo completo, cobra sentido o particular, que pareceria ser, no essencial, ante a ausência de fim que o inclui; assim mesmo, sem esse desdobramento do particular em uma sequência, o universal não poderia se mostrar em sua verdadeira essência. Sendo um dos tópicos do Prólogo, a crítica à filosofia romântica previa, é interessante tomar nota de que esta crítica não somente pretende ser uma exposição da proposta hegeliana, senão que é uma forma de mostrar a verdade em um dos estágios prévios a Hegel, o estágio imediatamente anterior. Em que medida esta história é essencial e não fática depende do lugar que damos à negatividade (oposição entre sistemas filosóficos) e ao tempo no questionamento hegeliano. A história da filosofia é fática se possuem poder causal. Se não possuem valor causal, a história da filosofia é essencial. Com a mesma rigidez com que a opinião comum se prende à oposição entre o verdadeiro e o falso, costuma também cobrar, ante um sistema filosófico dado, uma atitude de aprovação ou de rejeição. Acha que qualquer esclarecimento a respeito do sistema só pode ser uma ou outra. Não concebe a diversidade dos sistemas filosóficos como desenvolvimento progressivo da verdade, mas só vê na diversidade a contradição.206 A forma de pensar a história da filosofia tradicional deixa de lado o que faz aos sistemas filosóficos parte da mesma história progressiva da verdade; percebem-se como diferentes, como se nada os conectasse. Porém se aquilo que segue a outra coisa fosse 205 206 HEGEL, G.: 2002, 21. Ibidem, 22. 133 sua refutação, a flor seria, por exemplo, a refutação do botão. Então o botão seria o falso, ao passo que a planta e a flor, o verdadeiro. É claro nesse exemplo que o estado de botão e a flor não podem ser simultâneos, porém isso não implica que não possam ser parte de uma mesma coisa. Outra coisa ocorre quando se toma o modelo, a unidade orgânica, onde o que muda é parte do fluir natural. Ali ambos estados são necessários, constituindo assim a vida do todo. A filosofia de Hegel aspira a capturar a vida, a mudança e a unidade também na história da filosofia, sendo que “[n]ada mais fácil que julgar o que tem conteúdo e solidez; apreendê-lo é mais difícil; e o que há de mais difícil é produzir sua exposição, que unifica a ambos. [...] A verdadeira figura, em que a verdade existe, só pode ser o seu sistema científico.”207 Para Hegel, chegou a hora de fazer da filosofia uma ciência. Isso demonstrará que o caminho percorrido foi necessário de acordo com o fim do conhecimento absoluto. Porém justamente neste ponto é onde deverá reivindicar, para o saber racional, a máxima capacidade de compreensão intelectual, opondo-se assim à filosofia romântica, marcada pelo misticismo filosófico dos pré-românticos. Pretende superar assim sua própria filosofia da juventude, onde aspirava a uma mitologia vinculante, ou seja, uma forma artístico-religiosa cuja verdade somente se apreende por intermédio da intuição. Com efeito, se o verdadeiro só existe no que (ou melhor, como o que) se chama quer intuição, quer saber imediato do absoluto, religião, ser ― não o ser no centro do amor divino, mas o ser mesmo desse centro ―, então o que se exige para a exposição da filosofia é, antes, o contrário da forma do conceito. O absoluto não deve ser conceptualizado, mas somente sentido e intuído; não é o seu conceito, mas seu sentimento e intuição que devem falar em seu nome e ter expressão. 208 207 208 Ibidem, 23. Ibidem, 24. 134 A posição romântica aparece justificada em certa medida frente à condenação à finitude da filosofia prévia (mais do que tudo na versão empirista e na sua influência em Kant e seus sucessores). A necessidade de espiritualizar, de superar a finitude, expressou-se na filosofia pré-hegeliana, buscando um acesso imediato à substância encerrada. Para Hegel, este foi um erro, que não consegue se conciliar com anos de pensamento filosófico e não consegue superar as próprias contradições que engendra. O que há de se fazer, em seu entender, é mudar o modo de pensamento edificante pelo modo intelectivo, este último não regido pela necessidade de atribuir uma ordem fixa, mas de compreender o essencial na contradição, no conceito em seu aspecto negativo, como unidade da diferença. A filosofia já está em condições de abandonar a visão romântica — schilleriana por certo — de uma reconciliação de sujeito e objeto que não é capaz de compreender conceitualmente. Acabou-se “a noite em que ‘todos os gatos são pardos’” 209 Como pensa, Hegel, encontrar um fundamento conceitual para essa reconciliação? Pois bem, o truque estará em fazer do objeto sujeito e do sujeito objeto a partir da identificação da mediação conceitual com a negatividade, convertendo-a em um movimento interno da essência ou de seu desdobramento no tempo. Assim, a essência é ser que se sabe, na medida em que se põe a si mesma a transformar-se em outro (à maneira em que o eu põe seu não eu). É atividade intelectual e evolução em direção à consciência. a substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou ― o que significa o mesmo ― que é na verdade efetivo, mas só à medida que é o movimento do pôr-se-asi-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tomar-se-outro. Como sujeito, é a negatividade pura e simples, e justamente por isso é o fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto. Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si 209 Ibidem, 29. 135 mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma unidade originária enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim. 210 O Absoluto deixa de ser somente substância para converter-se também em sujeito. É saber fenomênico, é saber progressivo de si, do Absoluto. O fenômeno não é estranho à essência, mas sim revelação da mesma. A consciência do fenômeno eleva-se à consciência do Saber Absoluto, pelo qual se tornará um momento do Saber Absoluto. O fundamento, em Hegel, então, não é algo exterior, senão que se encontra no desenvolvimento do saber, mesmo que como tal é substância e sujeito: é a dialética da autocriação como autoalienação e posterior reconhecimento. A verdade suprema não se confirma em algo exterior ao sujeito, mas na síntese dialética que unifica esta exterioridade e a confirma como diferente, ainda que igual a si mesmo em seu desenvolvimento. Contudo, sem o trabalho da mediação não se pode alcançar a autoconsciência. O puro conhecer-se a si mesmo, a verdade suprema, é o devir em direção à autoconsciência. Isso se conquista a partir da alienação no absoluto ser outro. “O puro reconhecer-se-a-si-mesmo no absoluto ser-outro, esse éter como tal, é o fundamento e o solo da ciência, ou do saber em sua universalidade.”211 O “éter” é um termo que Hegel usa para se referir a esse estado de autoconsciência na alienação. Trata-se de uma maneira evasiva de referir-se à substancialidade do processo em seu conjunto, um modo de nomear a unidade substancial da autoconsciência na alienação.212 A filosofia há de subir a esse ponto. A divisão entre sujeito e objeto, o conhecimento da inteligência e da natureza propõe-se chegar à identidade do diferenciado em seu devir. O momento no 210 Ibidem, 30. O destaque é nosso. Ibidem, 34. 212 Devo essa interpretação a Juan Fló. 211 136 que o elemento etéreo adquire transparência é aquele no que desaparece e é universalidade pura, “a pura espiritualidade como o universal, que tem o modo da imediatez simples. Esse simples, quando tem como tal a existência [Existenz hat], é o solo da ciência, [que é] o pensar, o qual só está no espírito.” 213 Trata-se de uma curiosa situação na que a consciência para ser tal deve encontrar seu objeto fora dela, porém quando consegue captá-lo, encontra-se em si mesma. Ao longo da odisseia do Espírito, as consciências individuais sofrem a coação da alienação ou negatividade produzida que levará ao espírito Absoluto. Contudo, como se alcança a reconciliação de sujeito e objeto se é necessário contar com a consciência finita como ponto arquimédico para a realização efetiva do devir do espírito? Trata-se da incorporação do saber acumulado por parte dos indivíduos finitos nas diferentes figuras da história. A Bildung é patrimônio intersubjetivo das consciências finitas que se podem tomar assim como uma só consciência. Esta cultura ou conhecimento incorporado é o resultado de um procedimento que se inicia na prontidão (vida substancial é igual à vida imediata) e se eleva através do universal. Tratam-se de formas da consciência, onde a imediata é a não reflexiva, resultado de uma experiência pré-reflexiva. Segue seu caminho e assim chega ao pensamento da coisa em geral, porém compreendendo todas suas determinações. Quando esta diversidade consegue chegar à compreensão, entra-se na profundidade das coisas. Assim, o juízo sobre a base desse conhecimento, obterá seu lugar legítimo desde o qual integra a conversação da humanidade. O indivíduo forma-se no progresso da cultura. Sua própria constituição individual é o resultado do progresso da humanidade. O passado é exterior, porém ao mesmo tempo, natureza do indivíduo. 213 Ibidem. 137 O indivíduo, cuja substância é o espírito situado no mais alto, percorre esse passado da mesma maneira como quem se apresta a adquirir uma ciência superior, percorre os conhecimentospreparatórios que há muito tem dentro de si, para fazer seu conteúdo presente; evoca de novo sua rememoração, sem, no entanto, ter ali seu interesse ou demorar-se neles. O singular deve também percorrer os degraus-de-formação-cultural do espírito universal, conforme seu conteúdo; porém, como figuras já depositadas pelo espírito, como plataformas de um caminho já preparado e aplainado. Desse modo, vemos conhecimentos, que em antigas épocas ocupavam o espírito maduro dos homens, serem rebaixados a exercícios ― ou mesmo a jogos de meninos; assim pode reconhecer-se no progresso pedagógico, copiada como em silhuetas, a história do espírito do mundo. Esse ser-aí passado é propriedade já adquirida do espírito universal e, aparecendo-lhe assim exteriormente, constitui sua natureza inorgânica.214 À diferença de Schiller, para quem o Estado era a construção artística, a forma de união das diversas consciências, em Hegel, encontramos um Espírito Absoluto que se integra à cultura e que é assumido pelos indivíduos como parte de seu saber comum constitutivo. O Absoluto o Universal transcendente será parte de seu saber comum constitutivo. O Absoluto, ou Universal transcendente, será parte da consciência comum — espontaneidade — ao final da odisseia do Espírito. 4.2. O desenvolvimento dialético do Espírito na arte até o seu fim Para caracterizar o desenvolvimento dialético do Espírito na Arte conforme Hegel, vamos nos servir de uma caracterização alheia ao sistema e ao hegelianismo, mas que consideramos de grande serviço no esclarecimento da relação entre o Sistema e a Arte no filósofo. No seu artigo “Do realismo artístico”, Roman Jakobson define o realismo como a “corrente artística que propôs como seu objetivo reproduzir a realidade o mais fielmente possível, e que aspira ao máximo de verossimilhança. [São] realistas as obras que nos parecem verossímeis, fiéis à realidade.” 215 214 215 Ibidem, 36. JAKOBSON, R.: 1976, 120. 138 Partindo dessa definição, apresenta uma subdivisão que julga necessária dada a ambiguidade da mesma. Vamos encontrar assim uma definição de realismo que tem de ser ajuizada como imanente à obra — conforme a pretensão realista do autor — e outra definição de realismo que se desprende da impressão do espectador — à margem das pretensões do artista. A primeira forma vai ser chamada de “Significação A” e a segunda de “Significação B.” Todo tipo de realismo, tese que não compartilhamos completamente com Jakobson, porém não pretendemos fundamentar aqui o porquê, é convencional.216 Isso significa que o que se disputa na hora de classificar uma tendência como mais realista que outra, é qual delas se adéqua melhor aos parâmetros de verossimilhança hegemônicos no seu contexto: Os métodos de projeção do espaço em três dimensões numa superfície, a cor, a abstração, a simplificação do objeto reproduzido, as escolhas dos traços representados são convencionais. É preciso apreendermos a linguagem pictórica convencional para vermos o quadro, assim como não podemos compreender as palavras sem conhecermos a língua. O carácter convencional, tradicional, da apresentação pictórica determina numa larga medida o próprio ato de percepção visual. À medida que se acumulam as tradições, a imagem pictórica torna-se um ideograma, uma forma que vinculamos imediatamente ao objeto seguindo uma associação de contiguidade. O reconhecimento se produz instantaneamente. 217 A forma em que se produz inovação, conforme esta proposta, consiste naquela em que se conquista um novo realismo. Para isso é mister a introdução de uma forma que altera a anterior de alguma maneira. Frente a esse câmbio, podem se dar distintos tipos de reações que fazem Jakobson concluir que é possível realizar uma subdivisão em cada 216 Basta dizer que consideramos que o convencionalismo radical leva-nos a problemas próximos aos da intraduzibilidade e deixa de lado aspectos sensíveis que, mesmo formados pela cultura, têm bases biológicas necessárias para supor qualquer tipo de verossimilhança. 217 Ibidem, 121. Tentaremos utilizar, na medida do possível, exemplos ou observações ligadas à pintura, porque esta é a arte à qual daremos preferência na nossa análise. 139 um dos realismos assinalados. No que diz respeito à Significação A (pretensão do autor) encontra a seguinte ambiguidade: A1: a tendência de deformar os cânones artísticos em curso, interpretada como uma aproximação à realidade; A2: a tendência conservadora limitada no interior de uma tradição artística e interpretada como uma fidelidade ao real.218 Da mesma forma, pode-se subdividir a contrapartida do espectador: [S]ignificação B1, isto é, sou um revolucionário em relação aos hábitos artísticos em curso e percebo sua deformação como uma aproximação à realidade. Significação B2, isto é, sou um conservador e percebo a deformação dos hábitos artísticos em curso como uma alteração da realidade.219 Temos, então, uma disputa pelo predomínio de um estilo sobre outro na representação artística, uma forma de entender a própria produção — seja conservadora ou revolucionária —, e uma forma de interpretar a arte desde o auditório — também com suas versões correlatas. Com estas ferramentas jakobsianas, tentaremos explicar, em forma clara e razoavelmente breve, a concepção da arte que vai levar Hegel a condená-la ao seu fim. 4.2.1. A arte e o real Como corresponde ao seu próprio critério de rigor científico, Hegel começa a refletir sobre temas de estética tencionando estabelecer uma definição que compreenda a todos os objetos que integram o universo das obras de arte. Destarte, vai procurar uma definição que possa dar conta da multiplicidade das entidades referidas e depois expor este conceito em forma sistemática desde a sua postulação até a reconstrução do seu desenvolvimento efetivo ante a consciência. 218 219 Ibidem, 122-3. Ibidem, 123. 140 Hegel outorga ao artista um lugar primordial na definição da arte: arte é um produto do gênio. Apesar disso, não dá lugar às opiniões dos artistas a respeito de seu próprio trabalho e, portanto, prescindirá das intenções expressas dos mesmos. Resta então a busca de uma definição de arte que expresse a intenção oculta, talvez inconsciente, do gênio. Isto é, se nos perguntamos por um possível realismo, segundo a Significação A, teremos que assumir como hipótese que as intenções dos artistas estarão de acordo com a definição de arte que Hegel coloca em seu horizonte da criação. É a genialidade, e não a individualidade, a que garante essa correspondência entre definição e intenção. Como esperamos ser evidente, esta precisão não pretende acusar Hegel de estar fazendo algo ilegítimo, senão que busca justificar a associação do conceito hegeliano da arte com a Significação A de Jakobson, que se fundava na aspiração do “autor”. Ou seja, a pergunta que nos guiará por esta primeira aproximação à estética de Hegel será a seguinte: considera Hegel que o propósito da arte-aspiração, e com ela o produto intencional dos artistas — seja o realismo? Tal como estamos entendendo o realismo neste trabalho, a resposta a essa pergunta é simples: não, Hegel não entende que o realismo seja o objetivo da arte. Posto isso, o que desejamos ter em conta aqui é a negativa explícita de Hegel de que o realismo seja o objetivo da arte, tanto em suas críticas às definições da arte, que assim eram sustentadas nessa época, como quanto ao valor específico da arte. 4.2.1.1. A arte como produto do espírito Uma das primeiras coisas que hão de ser ditas neste ponto, é que Jakobson escreveu sobre o realismo quando a estética já se havia desembaraçado da ideia de beleza. Este nobre atributo da arte serviu, por um lado, aos efeitos de outorgar um lugar a esta prática entre os objetos da filosofia, e por outro, para servir como estímulo, como questionamento em obra, à ideia da mimese ou imitação, princípio quase indiscutido da 141 arte até a modernidade. Justamente nesse lugar filosófico privilegiado, e no questionamento da mimese, é que cremos que se encontra a complexa relação teórica entre Hegel e o realismo. A estética ocupa-se da bela arte. Isso quer dizer que se ocupa de um produto humano, que leva a marca do espírito em seu ser (liberdade e autonomia). Isso diferencia também a arte da bela natureza, expressão pouco feliz no entender de Hegel, pois não se funda na liberdade e autonomia do sujeito e, portanto, lhe é alheia. Já nas primeiras páginas da Introdução dos Cursos de Estética (doravante, CE), Hegel destaca a diferença entre o valor da verdade da arte (o belo artístico) e a natureza. A superioridade do espírito e de sua beleza artística perante a natureza, porém, não é apenas algo relativo, pois somente o espírito é o verdadeiro, que tudo abrange em si mesmo, de modo que tudo o que é belo só é verdadeiramente belo quando toma parte desta superioridade e é por ela gerada. Neste sentido, o belo natural aparece somente como um reflexo do belo pertencente ao espírito, como um modo incompleto e imperfeito, um modo que, segundo a sua substância, está contido no próprio espírito. 220 O espiritual é o verdadeiro, e a arte é um produto do espírito. Nesse sentido, a arte é superior, em verdade, à natureza. Em poucas palavras: a arte é mais real. Claro que isso não é evidente à simples vista e, inclusive, é contrário a uma tradição filosófica importante, que se inicia com Platão. Hegel leva em consideração a acusação de ilusionismo, da qual havia sido objeto a arte: [P]arece que sempre permanecerá prejudicial para a arte o fato de necessitar da ilusão [Täuschung], mesmo que de fato se submeta a fins sérios e produza efeitos sérios. Pois o belo possui sua vida na aparência. Mas reconhece-se com facilidade que um fim último verdadeiro em si mesmo não precisa ser produzido por meio da ilusão. E mesmo que por meio dela a arte consiga aqui e ali atingir algum fomento, isso só poderá acontecer de modo restrito; e mesmo assim a ilusão não poderá valer como o meio mais adequando. Por o meio deve ser adequado à dignidade da finalidade, sendo que a aparência e a 220 CE: 2001,Vol. I, 28. 142 ilusão não podem gerar nada verdadeiro, mas somente o verdadeiro pode gerar o verdadeiro. (ibidem, 30) Em resposta a essa crítica, Hegel fará várias observações de mérito sobre o tema que nos ocupa. A primeira tem a ver com o sentido do termo aparência (Schein) para o filósofo. A aparência é uma condição da verdade, pelo que não se pode depreciá-la: é “essencial à essência”. Sem aparência não há desenvolvimento do espírito, não há verdade para o espírito; não há verdade. Ora, em que medida fala-se de engano em relação à aparência? Na mesma medida, pois, em que se fala de realismo: fala-se erroneamente na medida em que se atribui um maior valor de realidade ao mundo natural, ao universo empírico. Entretanto, toda esta esfera do mundo empírico interior e exterior não é o mundo da verdadeira efetividade e deve com mais rigor do que a aparência artística ser denominada de uma mera aparência e de uma ilusão mais dura. A autêntica efetividade apenas pode ser encontrada além da imediatez da sensação [Empfinden] e dos objetos exteriores. Pois somente o que é em si e para si [Anundfürsichseiende] é verdadeiramente efetivo, ou seja, o substancial [Substantielle] da natureza e do espírito que, embora atribua presença e existência a si, nesta existência permanece o que é em-si-e-para-si e somente então é verdadeiramente efetivo. A arte ressalta e deixa aparecer precisamente a dominação destes poderes universais. Embora a essencialidade [Wesenheit] também apareça no mundo cotidiano interior e exterior, isso porém se dá sob a forma de eventos casuais, nos quis ela é atrofiada pela imediatez do sensível e pelo arbítrio de estados, acontecimentos caracteres e assim por diante. Por sua vez, a arte arranca a aparência e a ilusão inerentes a este mundo mau e passageiro daquele verdadeiro Conteúdo dos fenômenos e lhe imprime uma efetividade superior, nascida do espírito. Longe de ser, portanto, mera aparência, deve-se atribuir aos fenômenos da arte a realidade superior e a existência verdadeira, que não se pode atribuir à efetividade cotidiana.221 Então, Hegel não é realista, entre outras coisas porque a reprodução verossímil da natureza não é a reprodução verossímil do real. Inclusive o termo verossimilhança parece não se encaixar neste marco conceitual. Tal como Aristóteles, Hegel coloca a arte entre a historiografia e a filosofia. Não se adéqua à realidade, mas se adéqua ao 221 Ibidem, 33. 143 conceito; somente pode ser qualificado de engano frente à evidência científica, não à empírica222: Mas se consideramos o modo de aparecer das configurações artísticas uma ilusão em comparação com o pensamento filosófico, com os fundamentos religiosos e éticos, temos de reconhecer que a Forma fenomênica que um conteúdo ganha no domínio do pensamento é a realidade a mais verdadeira. No confronto com a aparência da existência sensível imediata e da historiografia, porém, a aparência da arte tem sem dúvida precedência, na medida em que significa através de si e aponta a partir de si para algo espiritual, que por meio dela deve ser representado. O fenômeno imediato, por sua vez, não se apresenta como ilusório, ao contrário, apresenta-se como a efetividade e verdade, enquanto o verdadeiro de fato torna-se impuro e oculto por meio do sensível imediato. A penetração do espírito na Ideia é lhe mais penosa quando passa pela dura casca da natureza e do mundo cotidiano do que lhe é pelas obras de arte. 223 O cânone artístico passa a ser determinado pela concepção hegeliana do real. Isto é, basicamente, o que significa o ideal para Hegel. O conteúdo da arte é a ideia, a forma da arte é a configuração sensível dessa ideia, e a possibilidade de reconciliação de ambas (separadas pela cerca do ideal e do particular) é brindada pelo ideal. Não discutiremos aqui a validade desta equivalência no universo do ideal (real) de Hegel, senão que nos limitaremos a tratar de compreender como é que ele introduz a arte neste universo. Como parte do Espírito Absoluto, o belo é a ideia. Isso quer dizer, dentro do sistema hegeliano, que a beleza supera não apenas o imediatismo do sensível em seu valor de verdade, mas também as instituições que são parte do Espírito Objetivo, como o próprio Estado. Encontra-se como uma das três formas de se representar o 222 Este modo de argumentar é comparável ao utilizado na Fenomenologia do Espírito para mostrar em que medida é necessário que a filosofia volte à ciência verdadeira para a consciência. Ou seja, em ambos os casos, nega-se a realidade àquilo que a consciência imediata considera como real. Poder-se-ia objetar então, que não deveria ser necessário esse procedimento para a arte, onde as verdades devem ser intuitivas; porém neste caso, Hegel poderia argumentar que a evolução da ideia faz com que seja difícil para nós compreendermos o essencial em sua forma intuitiva, que nossa compreensão intelectual nos inibe e reduz ao mero prazer sensível ou gozo imediato. 223 CE: 2001,Vol. I, 28. 144 Absoluto, junto à religião e à filosofia. Essas duas são, sem dúvida, mais verdadeiras que a arte. Dizíamos então: o belo é ideia. Temos, por um lado, a ideia, que em sua forma infinita é pensamento; por outro lado, temos a realidade desta ideia que, à medida em que se torna sensível, vê-se limitada; finalmente, temos a unidade de ambos, que nesse caso é a reconciliação no objeto belo. Não se trata, como na natureza, de uma unidade derramada em uma multiplicidade, mas de uma unidade apresentada enquanto unidade completa em si mesma. O ideal — e nisso Hegel coloca muita ênfase — não é a correspondência adequada entre a imagem e sua ideia, senão que é a verdade apresentada em forma sensível, dada à intuição. De fato, as três formas nas quais se desenvolve a arte — simbólica, clássica e romântica — são formas que se caracterizam pela conquista satisfatória, ou não, dessa vivificação do ideal. Somente a forma clássica consegue esse objetivo; a forma simbólica não alcança a suficiente determinação da ideia e, por tanto, não se expressa em uma maneira de todo satisfatória; a forma romântica vê-se desbordada pela magnitude da ideia, que não pode ser reconciliada com o componente sensível. Como nem todas as determinações do Absoluto podem apresentar-se de maneira sensível, o ideal apresenta uma ideia concreta do espírito, que é a que encontramos na religião grega. A religião grega, por certo, está viva na arte, não no exterior dela. Assim, a pretensão de buscar o real na qualidade de sensível leva Hegel a estabelecer uma grande quantidade de determinações para o verdadeiramente espiritual na forma humana e, em particular, na forma humana purificada dos defeitos próprios da finitude. É nessa forma humana que se apresenta o corpóreo animado pelo espírito. Os deuses gregos, nas suas múltiplas formas de aparição, mas especialmente nas esculturas onde aparecem em repouso — estado mais apropriado para o ideal, liberados de todos 145 os preconceitos da finitude, de toda preocupação e feiura, porém, por sua vez, ao mesmo tempo individualizados como potencialidades específicas do que logo o cristianismo descobrirá como um só Deus — são a mostra viva da existência do ideal e são, por isso, a forma mais pura da expressão artística, a realização do conceito de arte. Deste modo, todos os componentes formais do cânone clássico ficam incorporados como as formas mais reais do sensível, mais próximas da verdadeira forma em que hão de ser as coisas para serem perfeitas. Isso fica sancionado pelo rigor da verdade, que é o rigor de beleza. Ora, o ideal somente se realiza na forma humana e seu acionar. A escultura e a poesia são as formas adequadas à arte clássica. A primeira como sua espécie principal, a segunda como arte adequada para as três formas do artístico. Porém, justamente na poesia e sua capacidade para desenvolver o acionar humano descobrimos que a arte clássica leva no embrião sua própria dissolução, pois, segundo Hegel, pede sua superação. A arte clássica, em sua objetividade, deriva em petrificação de sentido. Isto se deve fundamentalmente ao abandono da quietude inicial (a própria da escultura), da ausência de situação em relação a formas mais complexas de ação que exigem uma maior profundidade interna do que os deuses gregos são capazes de nos brindar. Inclusive na literatura desta arte pode-se observar como o “objetivo” permanece como tela de fundo, como se incorporam detalhes que são acessórios e servem tão somente para criar um ambiente propício para a exibição do real, uma cenografia adequada (retomaremos adiante). Na busca do ideal como forma conciliadora da ideia e do particular (sensível) e no expresso distanciamento do natural (a aparência empírica corrente) em relação ao ideal, encontramos o problema que o “realismo”, como forma privilegiada de compreender as artes, supõe para a proposta de Hegel. O problema é muito simples: o realismo como 146 aspiração da arte fica descartado porque a natureza (ou o real para o realismo vulgarmente entendido) não é um objeto digno de ser imitado. Não obstante, postula-se que o real é a arte mesma, pelo que a arte passa a ocupar um lugar de privilégio como forma do real. Com este movimento, Hegel recupera a dignidade que, ao fim e ao cabo, o termo “realismo” possui e coloca na tradição artística cobrindo suas costas. Em suma: não temos uma arte realista, mas, temos uma arte cujo fundamento encontra-se em sua capacidade de mostrar o real, de fazê-lo sensível. Isso nos deixa às portas de algo muito importante. Podemos dizer que Hegel recorre à estratégia de amparar-se na “realidade” para defender um cânone específico, sua arte ideal, a arte clássica ou em outras palavras: uma convenção específica será defendida por seu valor de realidade. Ao estabelecer a superioridade da arte clássica como a única adequada ao verdadeiro conceito de arte, e ao defender este cânone em nome do realismo, podemos encontrar na posição hegeliana um gesto semelhante ao de um defensor do realismo A2, isto é, um realismo partidário da perfeição das convenções tradicionais e que chamaremos de realismo A2. 4.2.1.2. Críticas hegelianas à mimese No Capítulo anterior mostramos como a crise da ideia de mimese formou parte essencial da teoria da arte do romantismo. No caso de Hegel, vamos sustentar que uma das causas da luta contra esta definição da arte como mimese encontra-se na “encruzilhada” que certo realismo pictórico colocava diante dos artistas e filósofos da época. Esse problema tem a ver com a possibilidade de transmissão de certas convenções ou regras para a produção artística, a qual deixa de lado, à medida que o realismo se coloca como real objetivo da arte, a capacidade de inovação. Hegel critica explicitamente o realismo como fim da arte quando critica a velha teoria da mimese. Em muitos sentidos, herda as críticas românticas fazendo-as próprias. 147 O princípio da imitação da natureza criticado é aquele que concebe ela como a “habilidade de reproduzir fielmente as configurações naturais, tal como existem, deve constituir a finalidade essencial da arte e o sucesso desta representação [Darstellung] correspondente à natureza deve proporcionar a satisfação plena.” 224 Na medida em que estima tratar-se somente de um critério formal, reduz a imitação aos meios, um desafio instrumental.225 Considerado desse modo, a arte reger-se-ia por uma finalidade meramente formal: que o homem faça por seus próprios meios o que já aparece ante seus olhos, que repita o que encontra na natureza. Em primeiro lugar, Hegel avaliará este objetivo como supérfluo, pois por que fazer o que já existe no mundo natural? Em segundo lugar, considera que seria um esforço arrogante, pois não se pode conquistar a vida através da criação artística, pelo que mal valerão essas tentativas para reproduzi-la com exatidão em sua aparência morta. Nesse sentido, pode-se dizer que será uma tarefa frustrante, pois nunca se conseguirá dar vida ao imitado e, por tanto, sempre se obterá um produto inferior ao modelo. Dado que não se pode lograr uma reprodução cabal, será um mau consolo a possibilidade de gozo sensível que nos provém da semelhança, pois ele levará prontamente ao tédio do artifício sem valor. Nesse sentido, é mais valioso, para Hegel, a conquista de um substituto da natureza, algo que estenda nossas capacidades, uma ferramenta útil, e não um objeto cujo fim seja meramente contemplativo. Reproduzir com fidelidade é um objetivo pouco estimulante. Outra consequência de tomar um princípio totalmente formal é a perda do horizonte da beleza. Ou seja, a beleza não pertence já à arte, ficando limitada à conquista da exatidão. Pouco importa o belo objeto e seu conteúdo; o sentido da produção artística está na correta imitação. A partir dessa consequência, o que é considerado belo 224 Ibidem, 62. Esta imitação foi característica da época e servia para dar lugar a teorias pragmáticas da arte. Ver ABRAMS, M.H.: 1971. 225 148 dependerá tão somente da beleza subjetiva com que se considere belo a um objeto, como todo namorado considera bela a sua noiva (o exemplo é de Hegel). Não se buscará um conteúdo essencial que permita aceder ao universalmente belo, senão que se redundará, uma e outra vez, no que ao artista agrade representar, ou ao espectador ver, escutar ou ler. Desse modo, no caso da arte religiosa, perder-se-á a possibilidade de conhecer o impulso artístico de outras culturas, pois a mera sensação mostrará como desagradáveis muitas de suas representações.226 Finalmente, surge o problema de quais artes podem ser imitativas e quais não. O problema de encontrar um princípio que permita uma exposição sistemática das artes é muito familiar a Hegel, tanto pela orientação de toda sua filosofia, quanto por ser um dos tópicos da estética de seu tempo. Assim como Charles Batteaux havia proposto a imitação da bela natureza como princípio da arte227, Gotthold Ephraim Lessing promoveu uma separação das artes em função do que essas estavam em condições de imitar.228 Para este último, a diferença entre poesia e pintura estava nos meios, que eram específicos. Por exemplo, a pintura encontrava-se forçada a imitar o momento, e ainda não podendo captar o movimento229, de mesmo modo utilizava signos naturais. 230 226 Isso é interessante, pois Hegel é, de certo modo, um vanguardista ao abrir-se às artes primitivas (as chamaremos assim). No entanto, o fato de tomá-las como artes não significa que esteja disposto a não avaliá-las de acordo com um cânone de perfeição a que não ascendem e, inclusive, como inadequadas para ascender às etapas posteriores. No caso particular da pintura — arte definida como romântica — o preconceito atirado porta a fora ao entender que não se trata de tomar como objetivo o realismo nas pinturas primitivas, volta pela janela ao entender que não há “pintura” de acordo com seu verdadeiro conceito até a época cristã, devido, sobretudo, à falta de compreensão da verdade própria da arte e do espírito que requer a aproximação realista Deus-homem e ao seu itinerário terreno. Com relação à beleza, isso estende-se a todas as formas de arte: “Por exemplo, os chineses, os indianos e os egípcios permaneceram em suas configurações artísticas figuras de deuses e ídolos desprovidos de uma Forma e não souberam dominar a verdadeira beleza porque suas representações mitológicas, o conteúdo e o pensamento de suas obras de arte ainda eram em si mesmos indeterminados ou de uma determinidade ruim, e não eram ainda o conteúdo em si mesmo absoluto.” CE: 2001, Vol. I, 89. 227 Les Beaux-Arts réduits à un même príncipe (1746). 228 Laocoonte, ou Sobre as fronteiras da pintura e da poesia (1766). Texto pioneiro sobre a autonomia da arte frente a outros fins. 229 Convém recordar, aos efeitos de ter presentes fatores que fizeram a história da arte, que integrar o “movimento” à pintura foi um dos desafios fundamentais para os artistas de meados do século XIX e princípios do XX. 230 Ver FRANZINI: 2000, 185. 149 Tanto Batteaux como Lessing contaram com seus seguidores e é seguro que Hegel conhecia o trabalho de ambos. Hegel não entenderá agora a mimese como princípio de sistematização das artes, deixando de lado, então, a Batteaux. De Lessing apartar-se-á, porém de uma forma distinta. Por um lado, assumirá — como em toda sua filosofia — a necessidade de um conceito que permita uma exposição sistemática unificada. Por outro lado, a pintura e a escultura, serão artes com possibilidades de alcançar a semelhança com o natural: Mas, se fizermos abstração de um princípio objetivo para a arte, se o belo deve continuar repousando sobre o gosto subjetivo e particular, perceberemos, ainda assim, por parte da própria arte, que a imitação da natureza, mesmo que pareça ser um princípio universal e, na verdade, um princípio defendido por grande autoridade, pelo menos nesta Forma geral e inteiramente abstrata não pode ser aceita. Se atentarmos, pois, para as diferentes artes, imediatamente admitiremos que embora a pintura e a escultura exponham objetos que sejam semelhantes aos naturais ou extraiam seu tipo essencialmente da natureza [...]231 Assim, Hegel considera que o princípio de imitação da natureza não abarca todo o poético, pois deste modo estar-se-ia excluindo o fantástico. Em uma associação de fantasia e poesia, a que retornaremos mais adiante, também elimina a imitação como princípio válido para a arte em geral. A criatividade e a beleza são, então, as principais armas contra a imitação. Porém, a crítica que Hegel não faz, e que sem dúvidas é a mais fatal contra o princípio de imitação, é a de sua impossibilidade de fato: a convenção de todo estilo. Desse modo, a imitação, ao menos como recurso ou base da arte, segue desempenhando um papel que, evidentemente, também forma parte da produção de obras concretas: Um momento essencial na obra de arte reside decerto no fato de ter como fundamento a configuração natural, dado que suas manifestações [darstellt] tem a Forma do fenômeno exterior e, assim, também ao mesmo tempo natural. Para a pintura, por 231 CE: 2001,Vol. I, 64-5. 150 exemplo, um estudo importante consiste em conhecer detalhadamente e imitar as cores em suas mútuas relações, os efeitos da luz, reflexos e assim por diante, como também as Formas [Formen] e formas [Gestalten] dos objetos até em suas mínimas nuanças. 232 Como indicamos previamente, nesse aspecto formal, ou seja, um aspecto alheio aos conteúdos — onde a reprodução da natureza terá seu lugar. Da mão dela aparecerá o realismo como forma própria de um determinado estágio de arte. Esses argumentos e essa necessidade de estabelecer os limites precisos da natureza e da arte estão relacionados não somente ao problema filosófico em questão, mas também a uma disputa no terreno da arte. Essa disputa toma a exata forma que Jakobson observou como característica das polêmicas pelo predomínio de um realismo sobre outro. Por isso, devemos analisar a posição de Hegel como uma tentativa de resposta a ela. A este respeito também se restabeleceu, pois, principalmente em época recente, o princípio da imitação da natureza e da naturalidade em geral, a fim de reconduzir a arte da fraqueza e nebulosidade na qual tinha decaído para o vigor e certeza da natureza ou, por outro lado, a fim de que se recorresse à consequência em si mesma firme, regular e imediata da natureza contra o que é convencional e feito apenas arbitrariamente, isto é, tanto falta de arte [Kunstlosse] quanto de natureza [Naturlose] que levou a arte a se perder. E resume sua postura ante este debate de maneira exemplar: Embora segundo certo ponto de vista este esforço seja correto, a exigência de naturalidade enquanto tal não é, porém, o substancial e primordial que fundamenta a arte; portanto, mesmo que o aparecer exterior em sua naturalidade constitua uma determinação essencial, a naturalidade existente não é a regra da arte e nem a mera imitação dos fenômenos exteriores enquanto exteriores não é a finalidade da arte. 233 Hegel faz um acordo com os “revolucionários” 234 , mas não está disposto a conceder-lhes a máxima autoridade em matéria de arte. 232 Ibidem, 65. Ibidem. O destaque em itálicas é de Hegel, o resto é nosso. 234 Falamos dos defensores de um realismo do tipo A1. 233 151 4.2.1.3. Observações finais Ao longo desta primeira exploração da estética de Hegel, chegamos a duas conclusões essenciais. Primeiro, que Hegel pode ser identificado, em sua posição a respeito da arte e da realidade, como um conservador em matéria de arte e, ao se amparar em um critério de “realidade” para a defesa do cânone clássico, com um realista do tipo A2. É claro que não estamos tratando de sugerir que Hegel sustentava que o objetivo da arte era lograr a verossimilhança, mas estamos falando do tipo de estratégia utilizada para a defesa da arte que considerava mais sublime. Em segundo lugar, de acordo com sua posição na disputa a favor de uma nova arte fundada no princípio de imitação, pode-se dizer que Hegel faz um acordo com um realismo de tipo A1, porém de maneira suficientemente moderada para que isso não chegue a contrariar sua posição de realista do tipo A2’. Como Hegel torna isso possível? É o que trataremos de ver, analisando Hegel como espectador. 4.2.2. A arte e o sensível Desde o momento em que Hegel descarta o realismo como objetivo da arte, a pregunta pela resposta do espectador parece ociosa: o que mais fica da recepção realista que ocupa o lugar do erro? Para Hegel, em princípio, artista e espectador são duas caras da mesma moeda quando conseguem se consolidar como tais: o pensar e o observar absolutos. Hegel busca chegar à arte conhecendo o que esta é em si e para si, ou seja, o que a faz necessária e permite conhecê-la por completo em cada um de seus momentos. Isso poderia nos fazer deixar de lado qualquer perspectiva teórica relacionada com a Significação B e suas duas vertentes correspondentes. 152 Ainda assim, não podemos ignorar a dimensão histórica que há de dar testemunho do desenvolvimento da arte, que há de mostrar seu verdadeiro conceito. É justamente a partir da reconstrução hegeliana do desenvolvimento do conceito arte que podemos reconstruir sua posição como espectador. Do mesmo modo que consideramos a definição de arte como o horizonte criativo do artista para Hegel (e não a partir dos objetivos dos artistas individuais), também consideramos suas valorizações sobre a verossimilhança da arte como o horizonte de interpretação do espectador que lhe era contemporâneo. Adjudicamos esse direito a partir do simples fato de que enquanto Hegel considera como instância conquistada do que está tratando de caracterizar (a arte) àquilo que os artistas clássicos produziam, não considera da mesma forma a arte anterior ou posterior. A arte anterior e posterior vem a ser uma arte degenerada, e não parece uma hipótese de trabalho demasiado ousada postular que isso poderia ser assim para Hegel, porém não para os artistas e, sobretudo, não para os artistas modernos. Insistimos, aqui, no ponto de que, para Hegel, a postura normativa é a do gênio. Veremos então que tipo de arte Hegel considerava realista, não desde o ponto de vista normativo, mas desde o ponto de vista do espectador, e que lugar este tem em seu sistema. Temos, em Hegel, três formas especiais de bela arte, nas que o ideal se desenvolve. Em primeiro lugar, está a arte simbólica, na qual predomina o espiritual indeterminado. A arte clássica é a que realiza o conceito da arte. A arte romântica dá-se quando o belo se apreende como absoluto e não consegue encontrar-se no exterior sensível. Nessa última instância, a forma se converte em indiferente, separando-se novamente o conteúdo e a forma. “Deste modo, a arte simbólica procura aquela unidade consumada entre o significado interior e a forma exterior, que a arte clássica encontra na exposição 153 da individualidade substancial para a intuição sensível e que a arte romântica ultrapassa em sua espiritualidade proeminente.” 235 Originado fundamentalmente no Oriente, o símbolo é uma forma de pré-arte: “é uma existência exterior imediatamente presente ou dada para a intuição, a qual não deve ser tomada do modo como se apresenta de imediato, por causa dela mesma, mas deve ser compreendida num sentido mais amplo e mais universal.”236 Distingue-se nela dois aspectos fundamentais: a significação (representação ou objeto) e a expressão (existência sensível ou imagem), pelo que se poderia pensar que toda forma de arte é simbólica. Porém, isso não é assim, pois se assim fosse, seria possível encontrar uma explicação alegórica para cada obra de arte. Para Hegel, o simbólico cessa quando o conteúdo é uma individualidade livre, ou seja, um conteúdo espiritual que se apresenta a si mesmo, em si mesmo. A partir desse momento, sujeito e objeto são um, não estão aparentados como no simbólico, senão que são idênticos. A arte simbólica inicia-se em uma luta do artista contra o conteúdo que não consegue precisar, para adequar significação e forma. A forma mostra-se, então, inadequada com relação a um conteúdo que não se consegue definir. Isto que primeiro é inconsciente terminará mostrando a insuficiência deste tipo de arte para dar conta do ideal, fazendo-se explícita a diferença entre a significação e a forma em que se a apresenta. Ou seja, a arte simbólica inicia-se com uma conjunção mais ou menos casual, e termina com um artista que conhece melhor a significação, porém, que para adequá-la melhor, a aparência a limita (mostrando uma coruja em sinal de sabedoria, por exemplo). Essa tendência faz do simbólico algo acessório (como é efetivamente na arte clássica e romântica). 237 235 CE: 2000,Vol. II, 22. Ibidem, 26. 237 Cabe destacar aqui que, para Hegel, a distinção entre simbólico e alegórico não é a mesma que desenvolverão alguns românticos e os poetas simbolistas. Muito pelo contrário, o único que poderia 236 154 “O ponto central da arte é constituído pela união, que é fechada em si mesma para a de uma totalidade livre, entre o Conteúdo e a forma simplesmente adequada a ele.”238 Trata-se de uma totalidade livre, porque o livre é aquilo que é idêntico a si mesmo, completo. A arte clássica faz deste conceito uma realidade, a que se aspirava na arte simbólica. O conteúdo e a forma da arte clássica estão dados pelo ideal, pelo qual este executa a arte verdadeira segundo seu conceito. Sua existência efetiva deu-se na Grécia antiga. Esta arte busca seu conteúdo na religião popular, a qual transforma. Segundo Hegel, não é uma eleição arbitrária (da subjetividade particular), posto que se funda na individualidade substancial (aquilo que nos individualiza como humanos, seres espirituais). Com isso, basicamente se quer dizer que o modelo de ser humano postulado pela arte grega é mais perfeito do que se pode pensar para apresentar em forma sensível. Assim, nos deuses gregos, compreende-se a classe do espiritual. Isso posto, os deuses da arte clássica ainda são poderes naturais porque o espiritual não pode apresentar-se como absolutamente livre (subjetividade pura). Não existe um deus único que mantém o poder da natureza em geral (como o Deus cristão), senão que múltiplos deuses possuem o poder de determinada atividade especial da natureza, a qual é apresentada como indivíduo espiritual e tem como essência esta individualidade espiritual. O ideal somente aparece com a supressão do negativo da forma do espírito se suprime o rude, a falta de beleza, o barroco, o meramente natural ou fantástico que tinha lugar nas representações simbólicas. Desde o ponto de vista técnico, para captar este conteúdo, a matéria deve estar livre de aspereza e dureza; deve obedecer ao artista, pelo que necessita uma grande diferenciar uma categoria tout court de um símbolo seria a opacidade da significação deste último. De qualquer forma, em ambos os casos, o que se expressa artisticamente bem poderia ser expresso de outra maneira: melhor na arte romântica e pior na simbólica. 238 Ibidem, 157. 155 habilidade técnica. Esta arte surge então quando determinado procedimento técnico foi alcançado. Esta arte aparece quando o mecânico já não representa dificuldade alguma. O progresso técnico dá-se da mão do progresso da forma, e o conteúdo, da mão do progresso do espírito. Na evolução da arte clássica, os acontecimentos e ações fazem-se cada vez mais humanos, por isso se avança “segundo o seu conteúdo, para singularização da individualização casual e, segundo a sua Forma, para o agradável, o encantador.”239 O agradável captura o observador de múltiplas maneiras com relação à finitude de sua subjetividade: na dimensão finita da arte, há uma aproximação ao sujeito finito. Quando a beleza — entendida, sobretudo, em seu efeito sensível — começa a ser mais notória do que a verdade exibida na arte, começa a desaparecer a devoção. Não queremos dizer com isso que a verdade espiritual não se mostre nas obras, senão que, ao fazê-lo de maneira inadequada, fica insatisfeita a inquietude intelectual.240 Pois por meio do agradável não continua se desenvolvendo porventura o substancial, o significado dos deuses, o que é universal neles, mas o lado finito, a existência sensível e o interior subjetivo são aquilo que devem suscitar interesse e fornecer satisfação. [...] Pois na exterioridade e se encontra a multiplicidade da finitização [Verendlichung] que, quando ganha um espaço de atuação livre, se opõe por último à Ideia interior e à sua universalidade e verdade e começa a despertar o desgosto do pensamento contra a realidade que não mais lhe corresponde.241 Desse modo inicia-se a dissolução da arte clássica e o trânsito em direção à forma romântica. O princípio dessa transição é a seguinte: 239 Ibidem, 231. “Hoje, além da fruição imediata, as obras de arte também suscitam em nós o juízo, na medida em que submetemos à nossa consideração pensante o conteúdo e o meio de exposição da obra de arte, bem como adequação e inadequação de ambos. A ciência da arte é, pois, em nossa época muito mais necessária no que em épocas na qual a arte por si só, enquanto arte, proporcionava plena satisfação. A arte nos convida a contemplá-la por meio do pensamento e, a verdade, não para que possa retomar seu antigo lugar, mas para que seja conhecido o que é a arte.” CE: 2001,Vol. I, 35. 241 CE: 2000,Vol. II, 231. 240 156 O princípio desta transição está no fato de que o espírito – cuja individualidade até agora foi intuída como em consonância com as verdadeiras substâncias da natureza e da existência humana e que se sabia e se encontrou nesta concordância segundo a sua própria vida, querer e atuar ― começou agora a recolher-se na infinitude interior, mas ao invés da verdadeira infinitude, ganhou em si mesmo apenas um regresso formal [formelle] e ele mesmo ainda finito.242 Esta perda da capacidade de reconciliação do sensível e do inteligível faz-se inevitável devido a que esta forma da religião-arte dependia da vigência da forma de organização política e social própria do Estado grego, e nem a religião, nem esta forma de organização, deixavam espaço para o desenvolvimento da individualidade livre. A luta pela aspiração legítima de liberdade do indivíduo o leva a se separar do Estado, separando-se assim a objetividade de um da subjetividade de outro. A mesma ruptura entre forma (objetiva) e conteúdo (espiritual, subjetivo) dar-se-á na arte: A totalidade simples, consistente do ideal, se dissolve e se descompõe na totalidade dupla do subjetivo que é em sí mesmo e do fenômeno exterior, para permitir ao espírito alcançar, por meio desta separação, a reconciliação mais profunda em seu próprio elemento do interior.243 O espírito reconhece-se no interior, no sentimento. Isso faz que o espírito veja seu outro (existência) em si mesmo, o qual o faz infinito e livre. Como, neste estágio, o espírito sabe que sua verdade não está em se fundir na corporeidade, senão em que o exterior o reconduza a si mostrando-se como inadequado, a arte romântica deixa para trás a natureza ideal da arte clássica e apropria-se do vulgar e do negativo: Por um lado se encontra o interior para si, por outro lado a existência exterior dissociada dele, e a subjetividade retraída em si mesma, já que não sabe encontrar mais encontrar nas formas até então válidas a sua efetividade adequada, tem de se preencher com o conteúdo de um novo mundo espiritual de 242 243 Ibidem, 241. Ibidem, 252. 157 absoluta liberdade e infinitude e procurar novas Formas de expressão para este Conteúdo mais aprofundado.244 Essa forma de arte buscará a subjetividade humana como interioridade, abrindo-se a um espectro maior de possibilidades, as de todo humano. Ainda que o ponto de vista do conteúdo, aquilo que se pode apresentar como divino, seja muito restrito, o âmbito do humano é muito amplo, estendendo-se ao modo de ser e atuar da humanidade inteira e entornos, os quais passam a formar parte do universo de temas artísticos. Reconhece-se pelo menos três etapas nesse sentido: a) o ponto de partida dessas representações é o Absoluto mesmo, que se dá existência, sabe-se e atualiza-se. O ser humano é consciente do Absoluto como Espírito, e este é tomado como conteúdo. Assim encontrar-se-á a forma mais adequada para sua representação na história de Cristo, de sua mãe, etc; b) em uma segunda etapa mostra-se a autonomia conquistada pelo ser humano no âmbito mundano, afirmando as virtudes da subjetividade na honra, no amor, na fidelidade e na valentia (é o período das novelas de cavalaria); c) o terceiro aspecto a representar é o ser humano como formalmente livre, ou seja, capaz de tomar suas próprias decisões sem nenhum tipo de determinação de seu caráter. É, sobretudo, nesta última fase que o realismo parece jogar um papel essencial. Posto que “o finito enquanto tal constitui o conteúdo, tanto pelo lado dos fins espirituais, dos interesses mundanos, das paixões, das colisões, dos sofrimentos e das alegrias, das esperanças e das satisfações, como também pelo lado do exterior, da natureza e de seus reinos e fenômenos mais singulares.”245 O verossímil que resulta esta arte a Hegel é bastante evidente em passagens que não quero omitir. O lado da existência exterior é entregue à contingencia e abandonado à aventura da fantasia, cuja arbitrariedade pode 244 245 Ibidem, 172. Ibidem, 258. 158 tanto espelhar o que está presente, tal como está presente, como também embaralhar e distorcer grotescamente as configurações do mundo exterior. ― Pois esta exterioridade não tem mais seu conceito e significado em si e junto a si mesma [und sich und an sich selber], como no clássico, mas no ânimo que tem sua aparição [Erscheinung] em si mesmo e não na exterioridade e na Forma e realidade desta, e é capaz de conservar ou reconquistar esta reconciliação consigo mesmo em todo tipo de contingência e acidentalidade que por si mesmo se configura, em todo infortúnio e dor e até mesmo no próprio crime. 246 E bastante mais adiante: Por isso, de acordo com este princípio, na arte romântica o modo de configuração efetiva não ultrapassa essencialmente, pelo lado do aparecer exterior, a autêntica efetividade comum, e não teme de nenhum modo acolher em si mesmo esta existência real em sua deficiência e determinidade finitas.247 Na arte romântica há dois mundos: um espiritual, que se volta a si mesmo; e outro exterior como tal, “que libertado da firme união coesa com o espírito, torna-se uma efetividade completamente empírica, de cuja forma a alma está despreocupada.”248 Deste modo, a contingência, entendida como negatividade, torna-se a forma usual da arte com o que fica incapacitada de cumprir com todos os requisitos para se adequar ao verdadeiro conceito de arte: Desse modo, alcançamos em geral como ponto final do romântico a contingência do exterior assim como do interior e um desfazer-se destes lados, por meio de que a arte mesma se suprime [aufhebt] a si e mostra para a consciência a necessidade de adquirir para si Formas mais elevadas, do que a arte é capaz de oferecer, para a apreensão da verdade.249 Nesse sentido é que Hegel encontra obras herdeiras da tradição artística, porém exemplares desta perda de sentido autêntico da arte. Quando o artista comunica sua concepção de mundo, junto à religião de seu povo, toma seriamente esse conteúdo e sua representação. Identifica-se com ele, o toma por verdadeiro. Na época de Hegel, isso já 246 CE: 2001,Vol. I, 95. Os destaque em itálico é de Hegel, o resto nosso. CE: 2000,Vol. II, 260. 248 Idem. 249 Ibidem, 263. 247 159 não ocorre. Porém é próprio ao conceito de arte, que esta liberação do conteúdo representado, na medida em que cada vez mais está claro o conteúdo, já não oferece mistérios que interessem ao espírito O que nós chamamos autonomia da arte, de estilos e objetos de interesse, é para Hegel uma situação impossível de resistir para a arte em sua definição essencial: Para o artista dos dias de hoje o estar preso a um Conteúdo particular e a uma espécie de exposição apropriada, apenas para esta matéria, é algo do passado e, desse modo, a arte tornou-se um instrumento livre que ele pode manusear uniformemente, conforme sua habilidade subjetiva em relação a cada conteúdo, seja de que espécie ele for.250 Ao se autonomear este entorno do conteúdo, vai-se perdendo o especificamente artístico: Por um lado, a saber, coloca-se a efetividade real em sua objetividade prosaica, considerada do ponto de vista do ideal: o conteúdo da vida comum cotidiana, que não é apreendida em sua substância, na qual contém algo de ético e de divino, mas na sua mutabilidade e transitoriedade finita. Por outro lado, é a subjetividade que, com seu sentimento e visão, com o direito e o poder de seu chiste, sabe elevar-se como mestre da efetividade inteira, não deixa nada em sia conexão usual e em sua validade que possui para uma consciência comum [...]251 Da mão do realismo vem tanto a imitação como a ironia, tanto a capacidade para representar os objetos em sua justa aparência, como a possibilidade de manipular esta aparência a bel prazer. Temos então uma concepção de arte que avança em relação à sua própria dissolução, progredindo em direção a uma arte cada vez mais realista. Encontramos em Hegel, então, um realista de tipo B1, ou seja, um espectador que aceita que as convenções mais verossímeis sejam as não tradicionais. Porém, também encontramos, em tom enfático e decidido, uma “sanção” para essa arte realista que deforma o cânone e, assim, não pode 250 251 Ibidem, 340. Ibidem, 330. 160 apresentar a verdade em sua forma mais adequada. Essa forma de entender a deformação do cânone o aproxima ao conservadorismo do realista de tipo B2, que chamaremos B2’. À medida que a evolução da arte leva a uma superação da ilusão da arte grega, a arte romântica apresenta-se como mais verdadeira. Ou seja, há uma ganância no saber com respeito ao conteúdo — o encontro da verdadeira divindade — que se traduz na impotência da arte para dar conta dela de maneira sensível. O realismo no tocante às coisas humanas também passa a ser verdadeiro. Hegel, porém, ainda que aceite isso, nega-se a tirar “verdade” da arte grega. O dilema é muito simples: se a arte ideal não continha a verdade, como é possível que a tomemos como a mais real? O problema fundamental é, provavelmente, o da possibilidade das estéticas idealistas à luz da história da arte (e do que a arte é). Porém, no tocante a este trabalho, o que temos é um realismo do tipo B2’ que se vê em apertos frente a um realismo do tipo B1. Vejamos como termina esta história no caso da pintura. 4.2.2.1. A pintura e o realismo pictórico A história da arte sai ao encontro do sistema idealista de Hegel. Como parte de seu programa, esta história há de se mostrar como a evidência de toda a construção teórica, é o éter252 no qual o Espírito se realiza. Na arte simbólica apresenta-se um parentesco entre forma e conteúdo. A arte mais adequada para essa forma é a arquitetura, porque introduz um conteúdo dentro de formas que carecem de interioridade. Sua manipulação da “matéria morta” — ainda que em contexto hegeliano, isso não seja redundante — para fins que não conseguem expressar um conteúdo espiritual a não ser de maneira alusiva, convertendo-a na arte 252 Tomo esta expressão do Prólogo da Fenomenologia do Espirito, agradecendo a interpretação a J. Fló. Éter é o nome que dá Hegel, ao estado de autoconsciência na alienação, uma maneira evasiva de se referir à substancialidade do processo de autoconsciência ou odisseia do Espírito em seu conjunto. 161 simbólica por excelência. Além do que, é possível encontrar um desenvolvimento da arquitetura adequado às duas seguintes formas do artístico, posto que sua qualidade de arte simbólica lhe permite acompanhar a outras formas de arte. Não nos deteremos de maneira especial na história da arquitetura. A arte clássica, vimos, conquista a identidade de forma e conteúdo. Neste caso, é a escultura a arte que consegue tomar o objeto e manipulá-lo para expressar o espiritual. Em outras palavras, na escultura, faz sua aparição o espiritual como objeto. A transição da arquitetura à escultura torna-se necessária pelo conceito do espírito, “que se diferencia em seu ser subjetivo para si e em sua objetividade como tal.”253 Hegel destaca a maior naturalidade desta arte ao apresentá-la como um objeto que se encontra totalmente impregnado de Espírito, que se volta para o orgânico e se mantém sem mescla com o inorgânico. A escultura somente aparece na forma de arte clássica. O ideal clássico tem um desenvolvimento em si mesmo, “por meio do qual ele se torna a partir de si naquilo que é segundo o seu conceito e igualmente começa a progredir além desta concordância com a sua própria natureza essencial.”254 Um desenvolvimento preliminar da arte-ideal encontra-se na forma simbólica, na medida em que esta começa a utilizar a forma humana de maneira autônoma (isto é, desprendida dos ambientes arquitetônicos, de um entorno que a coloca como acessória). A arte romântica, por seu lado, excede o ideal. Sua escultura cristã desenvolveu-se com mais amplitude que a simbólica, compartilhando as características típicas da pintura religiosa. Se buscamos exemplos de escultura, antes de chegar à Grécia, encontraremos a escultura egípcia. Hegel considera que a arte egípcia demonstra habilidade técnica e é uma forte influência para a arte grega e cristã. Caracteriza a escultura egípcia, a carência 253 254 CE: 2002, Vol. III, 101. Ibidem, 174. 162 de graça das obras orgânicas e a falta de mobilidade. 255 Essas não se deviam a uma inaptidão técnica, mas a uma intuição do divino que não estava determinada para se mostrar como forma sensível individual, nem havia chegado a ser um conhecimento efetivo. Deste modo, a escultura não supera a separação entre significado e forma. A significação é ainda o principal: “[...] e, por isso, refere-se mais à representação das mesmas em sua universalidade do que ao habituar-se a uma forma individual e ao deleite da intuição artística.”256 Antes de chegar à plena perfeição da escultura grega, encontramos a escultura eginética257 e a arte etrusca. Essas artes captam a vida no natural (não no espiritual), porém lhes falta integrar a espiritualidade na representação do rosto e através da posição do corpo esculpido. A primeira mostra uma tensão entre a tradição e a imitação da natureza favorável à “naturalidade”, porém na que se nota a ausência de animação espiritual. A arte etrusca, todavia, imita a natureza com maior precisão. Essas formas primitivas da imitação se conectaram com o ideal que se oporá a elas e com a arte romana que as herdará. A escultura ideal deve desembaraçar-se da tradição, renegar o recebido. “E esta liberdade somente, consegue, de um lado, elaborar inteiramente a universalidade do significado na individualidade da forma, de outro lado, elevar as Formas sensíveis para a altura da expressão autêntica de seu significado espiritual.”258 O próprio Hegel considera significativo que, no mundo romano, não tivesse havido ideal, senão imitação do real e prosaico. Nesta arte encontra-se de maneira incipiente a 255 Esta forma de caracterizar a escultura egípcia é tributária das posições do já mencionado neoclassicista Joachim Winckelmann. 256 Ibidem, 177-8. 257 Do Egeo. 258 Ibidem, 181. 163 dissolução da arte clássica. 259 É o tempo do retrato, perde-se a poética da obra, do ideal. Este avanço para o real é uma verdade natural da arte já na escultura. A estratégia de colocar a arte ideal como negação de uma forma prévia não pode ser censurada em Hegel, pois é parte da lógica que, em seu entender, segue o desenvolvimento do real. Claro que a pouco feliz resposta à existência de um realismo etrusco e romano confere um tom arbitrário a essa reconstrução da história da escultura. Finalmente as artes românticas regem-se pelo princípio de subjetividade. “A subjetividade é o conceito do espírito que existe idealmente [ideell] para si mesmo, que se recolhe desde a exterioridade na existência interior, que, por conseguinte, não se reúne mais com a sua corporalidade em uma unidade destituída de separação.”260 Na arte romântica, a espiritualidade contrapor-se-á ao externo em geral e ao espiritual objetivo. Conteúdo e forma sobrevêm livres e opostos, estando à disposição da arte para sua reelaboração. Em primeiro lugar, segundo o conteúdo, temos o divino (espiritual objetivo) adequado ao princípio de subjetividade por parte de um sujeito que se compreende a si mesmo como espiritual. Faz-se acessível à arte o mundano e humano. Trata-se de uma nova unidade entre o particular e o absoluto, porém não imediatamente, senão que se mostra como reconciliação do diferente. Somente se pode revelar no interno, o ideal. O certo é que, embora o espiritual somente se apresente ao homem como subjetividade, enquanto sujeito singular, o homem também tem seu estar-aí que há de se reconciliar com o espiritual. Em segundo lugar, o externo também se torna autônomo em sua particularidade. O princípio da subjetividade proíbe a correspondência imediata pelo que não vemos o espiritual no particular. Ainda que a desconexão não seja completa, é muito mais 259 Sua “incipiência” deve-se à ausência da consciência de uma verdade espiritual profunda que faça necessário este adiantamento para o realismo. 260 Ibidem, 189. 164 evidente. Apesar da cópia da realidade, deve-se deixar ver um reflexo do espiritual. O corpóreo passa a ser algo negativo, ressaltando a interioridade. Dá-se livre margem ao múltiplo particular, tanto no espiritual como no sensível. A forma na qual se manipula o material deverá modificar-se: a) O material deverá mostrar-se como aparência, deixando entrar o múltiplo processado pela subjetividade. A primeira arte é, por isso, a pintura, que possui menos sensibilidade (menos matéria), porém também menos abstração que a escultura (mais atenção aos detalhes da finitude). Ambas dividem o material espacial, que é constitutivo das artes figurativas; porém em ambas se encontram separadas a corporeidade como totalidade espacial e a forma abstrata, da forma particularizada vivamente mediante o colorido. Por isso a escultura prescinde da cor e, na pintura, tudo se trata da luminosidade refletida através do colorido. 261 A pintura somente se encontra realizada na arte romântica. b) Porém a representação do externo não é de todo conforme ao espiritual, pelo que se abandonará este meio para empregar o som. A segunda arte é, então, a música. A interioridade apreende-se como sentimento e se expressa conforme o movimento do ânimo. Igual à pintura, sua forma adequada somente se encontra na forma romântica. c) Enquanto, na música, o interno carece de figura, a arte há de apresentar a aparência e a realidade efetiva do interno em sua realidade externa. Quando a arte abandona o visível, não pode manifestar a exterioridade real, mas somente a representação de um signo carente por si mesmo de significado. O sensível é, aqui, mero meio de comunicação. Na poesia, o espírito manifesta-se como espírito, é a arte que participa em todas as artes, é o elemento que pode desdobrar a totalidade do espírito. 261 A concepção de Hegel, da cor, é primitiva com respeito aos desenvolvimentos científicos posteriores e, provavelmente com respeito à experiência dos artistas plásticos de seu tempo e mesmo anteriores. Ainda assim, é sintomática a importância do claro-escuro para a pintura de seu entorno. 165 A primeira das artes românticas é, então, a pintura. A pintura representa um progresso ao introduzir, na arte, o entorno para a ação, inclusive permitindo a representação de momentos da mesma, ou seja, situações. Hegel sustenta que o avanço fundamental está na possibilidade de se apropriar das aparências dos objetos tal e qual se mostram em suas formas particulares. Ela utiliza como material para seu conteúdo e sua configuração a visibilidade enquanto tal, na medida em que esta se particulariza imediatamente nela mesma, isto é, se determina como cor. O material da arquitetura e da escultura é, na verdade, igualmente visível e colorido, mas não é como na pintura o tornar visível enquanto tal, na qual a luz em si mesma simples. Ao se especificar com o seu oposto, o escuro, e com ele se associar, se torna cor.262 Ademais, na medida em que se prescinde da manipulação da matéria pesada, o visual mostra-se mais ideal, mais teórico. Esta visibilidade assim subjetivada e estabelecida idealmente não requer nem a diferença de massa abstratamente mecânica da materialidade pesada, tal como na arquitetura, nem a totalidade da espacialidade sensível tal como a escultura ainda a mantém, mesmo que concentrada e em Formas orgânicas; antes, a visibilidade e o tornar visível da pintura têm sua diferença idealizada, como a particularidades das cores, e assim libertam a arte da completude sensível-espacial do material, na medida em que se restringem à dimensão da superfície.263 O recurso à perspectiva na pintura permite a anulação da matéria mais resistente, a saber, a que requer de cálculos específicos e de uma maior força para conseguir o domínio da forma. Desse modo, abre-se a possibilidade de se apresentar, imbuídos de subjetividade, a todos os elementos do mundo empírico. Por outro lado, o conteúdo também recebe a mais ampla particularização. Tudo o que no coração humano ganha espaço enquanto sensação [Empfindung], representação e finalidade, tudo o que o coração é capaz de configurar como fato, toda esta multiplicidade pode constituir o diversificado conteúdo da pintura. Todo o reino da particularidade, desde o mais alto 262 263 CE: 2001, Vol. I, 100. Idem. 166 Conteúdo do espírito até os mais singulares objetos da natureza, mantém sua posição. Pois também a natureza finita em suas cenas e fenômenos particulares pode aqui aparecer, basta que alguma alusão a um elemento do espírito as ligue mais intimamente com o pensamento e a sensação [Empfindung].264 A pintura mostra maior multiplicidade de objetos, porém também unifica o externo (tratado pela arquitetura) e a figura espiritual (escultura). Seu aporte fundamental estaria nesta capacidade de conciliar o entorno com o espiritual. A pintura desenvolve-se na forma arte romântica e, em particular, no período de maior fervor cristão — incluído no período da reforma protestante —, pois seu princípio essencial é o da representação da subjetividade interna em sua vitalidade e multiplicidade. Para Hegel, é algo meramente empírico o fato de que a pintura tenha-se desenvolvido nas sociedades não cristãs a questão mais profunda, todavia, refere-se ao princípio da pintura, ao exame de seus meios de exposição e, desse modo, à identificação daquele conteúdo que por sua natureza mesma concorda justamente com o princípio da Forma e o modo de exposição pictóricos, fazendo com que esta Forma se torne a que corresponde pura e simplesmente a este conteúdo.265 Para que a pintura se desenvolva de maneira eficaz, o conteúdo deve estar, por um lado, compreendido em sua profundidade, por outro, separado da forma. O que revela a maestria, na representação, é a animação espiritual e não a beleza sensível das formas. Ou seja, as formas não são belas por si mesmas (como na escultura ideal), senão que são representadas de uma maneira que as embelezem. O próprio material pictórico supõe um modo subjetivo de animação: Seu elemento sensível, a saber, no qual ela se move, é a difusão pela superfície e a configuração por meio da particularização das cores, por onde a Forma da objetividade, tal como ela é para a intuição, é transformada numa aparência artística colocada pelo espírito no lugar da forma real da mesma. No princípio deste material reside que o exterior não deve mais conservar para si validade última em sua existência efetiva – mesmo que 264 265 Idem. CE: 2002, Vol. III, 197. 167 também animada pelo espiritual ―, mas deve justamente ser rebaixado nesta realidade a uma mera aparência do espírito interior, que se quer intuir para si como espiritual.266 Através dessa pretensão do espírito de encontrar-se a si mesmo no particular é que se introduz a verossimilhança como dimensão relevante na pintura. A animação é subjetivação, porém o reconhecimento do particular animado impõe à técnica um consenso fundado na semelhança, sobre o que é aquilo que se está “subjetivando”. O único princípio de artisticidade que se impõe à execução da obra realista — e que poderia ter sido um excelente ponto a partir do qual estudar a relação entre o estilo e o realismo — é conseguir que a pintura seja “um todo em si mesmo fechado e neste fechamento não deva se mostrar como um mero cessar e limitar contingente, mas como uma totalidade de particularidades que, segundo a coisa, se pertencem reciprocamente.”267 A pintura admite os dois extremos quanto ao conteúdo, tanto dos temas profundos e sérios, como particularidade efetivamente real e o fazer subjetivo. Esta última arte suscita admiração por seu tema e pela audácia do desenho e pela representação mimética. O realismo inclusive deverá seguir sua própria linha de desenvolvimento: Esta separação reside no conceito da pintura mesma, aliás, pode-se certamente dizer que ambos os lados não são unificáveis num desenvolvimento uniforme, mas que cada um deve se tornar por si autônomo. Pois a pintura tem tanto a forma [Gestalt] como tal, as Formas [Formen] da delimitação espacial, quanto a cor como seu meio de exposição e se encontra por meio deste seu caráter entre o ideal, o plástico, e o extremo da particularidade imediata do efetivo, a partir de que também surgem duas espécies de pintura: uma, ideal, cuja essência é a universalidade, a outra, que expõe o singular em sua particularidade mais estreita.268 É muito interessante que Hegel associe o realismo ao emprego da cor, sobretudo quando toda a pintura de seu tempo ainda se manejava com um cuidado muito grande 266 Ibidem, 199. Ibidem, 207. 268 Ibidem, 203. 267 168 com respeito ao desenho. Também é um indicador muito claro da pretensão de Hegel de se apartar definitivamente de uma possível análise dos aspectos técnicos próprios das convenções estilísticas (sejam elas ideais ou realistas). A ordenação histórica é vital para compreender a pintura. Sem esta ordenação, as obras apareceriam como em uma sucessão sem sentido. A história exterior é, para Hegel, a da evolução do técnico. A história interna faz a diversidade de escolas, temas e modos de tratamento do mesmo. O progresso descreve-se da seguinte maneira: [O] início é feito com os temas religiosos em uma concepção ela mesma ainda típica, arquitetônica, numa disposição simples e numa coloração não desenvolvida. Então penetra sempre mais nas situações religiosas a presença, a individualidade, a beleza viva das formas, a profundidade da intimidade, o encanto e a magia do colorido, até que a arte se volte para o lado mundano, apreende a natureza, o cotidiano da vida comum ou o que é historicamente importante em acontecimentos nacionais do passado e do presente, o retrato e coisas semelhantes até as menores e mais insignificantes, com amor idêntico ao que era dedicado ao Conteúdo religioso ideal. E neste círculo não conquista principalmente apenas a consumação a mais extrema do pintar, mas também a concepção mais viva e o modo de execução mais individual.269 Entender o progresso da pintura é entender o abandono progressivo do ideal em direção a formas cada vez mais verossímeis. O auge da pintura estará, para Hegel, nas obras daqueles que conseguem capturar a mais fugaz aparência da realidade. Esquivando a importância dos aspectos formais, ou melhor, assumindo-os de maneira acrítica, Hegel sempre manterá, como eixo da história da arte, o conteúdo. Vimos como Hegel se mostra um pouco arbitrário na reconstrução da história da escultura, porém não podemos acusá-lo de não levar em conta as possíveis objeções à sua abordagem. Efetivamente, também com relação à pintura, considera que a superioridade dos temas românticos pode ser refutada pelas representações de temas pagãos de Rafael ou Rubens, ou pela utilização de motivos desse tipo. E ainda que 269 Ibidem, 261. O destaque é nosso. 169 sustente que há algo de inevitável nesta degradação, não são esses temas os que motivarão o desenvolvimento da pintura. A pintura há de tomar o que pode ser representado por meio da figura exterior. Há de ser expressão do espírito concentrado em si. A expressão da intimidade não se adapta à forma sensível do ideal, não é plácida no essencial (e sim, individual). Deve-se mostrar como a experiência das almas que se levantam sobre o sofrimento. Assim, o propriamente ideal do conteúdo romântico é a reconciliação do ânimo subjetivo com Deus. A esfera religiosa, porém, representada de uma forma humana natural, será adequada para a primeira etapa do desenvolvimento da pintura e para a primeira etapa da degradação do ideal. O oposto da esfera religiosa é aquilo “tomado por si, […] igualmente destituído de intimidade como também não-divindade ― a natureza e, mais precisamente em relação à pintura, a natureza paisagística.” 270 Em todo o externo, a alma pode encontrar reflexos de espiritualidade. As situações particulares do objetivo geram, no homem, estados de ânimo harmônicos à natureza (serenidade, vitalidade, etc.). Esta intimidade também é objeto da pintura. Como desenvolvimento progressivo da pintura em direção ao realismo, Hegel destaca que não se trata de resgatar o belo e imitá-lo, mas de apresentar belamente o natural, resgatando a afinidade da natureza com as emoções humanas. Não é a “casca” da natureza o que há de se imitar, mas a relação desta com o espírito. Mas, por isso, os objetos naturais como tais não podem constituir em sua Forma e ordenação meramente exteriores o autêntico conteúdo, de modo que a pintura torna-se uma mera imitação; e sim o ressaltar e o apresentar mais vivamente a vitalidade da natureza, que se estende por tudo, e a simpatia caraterística de estados particulares desta vitalidade com determinadas disposições de alma nas paisagens expostas; apenas esta interferência íntima é o momento pleno de espírito e 270 Ibidem, 225. 170 rico de ânimo, por meio do qual a natureza não apenas pode ser o conteúdo da pintura como ambiente, mas também autonomamente.271 Finalmente, em mais de um passo em direção ao realismo, uma terceira classe de intimidade é a que tem lugar com “objetos inteiramente insignificantes, que são arrancados de sua vitalidade paisagística, em parte nas cenas da vida humana, que nos podem aparecer não apenas inteiramente contingentes, mas inclusive vulgares e ordinárias.”272 A pintura se encarrega do interno particularizado, pelo que se preocupa de tudo aquilo que pode interessar ao homem. O que sobrevêm contido é a intimidade do imediatamente presente. É importante reconhecer que o esforço de Hegel para valorizar mais o esforço de resumir em uma obra completa em si mesma uma situação histórica precisa ou uma cena de gênero sempre se orienta para a consideração das estratégias do artista como apropriadas para dar vitalidade ao representado, espiritualizá-lo de tal maneira que não se limite à mera imitação. Sem dúvida, a naturalidade segue sendo um objetivo não menor da destreza do pintor. Exemplo da primeira etapa da pintura, a pintura religiosa, é a pintura bizantina que, para sua desvantagem, carecia de natureza e vitalidade. Em um argumento clássico de um realista de tipo B1, Hegel assinala que a adesão a convenções foi o que tirou autonomia a essa pintura e a converteu em artesanato. Uma segunda etapa é a pintura italiana. Esta pintura volta-se a temas religiosos ou mitológicos que não tinham a ver com a história ou o presente, ou da realidade efetiva da vida. Também são raras entre essas obras as paisagens. O que se acrescenta é a realidade efetiva viva do ser-aí espiritual e corpóreo nos motivos religiosos, ainda que conservando um certo idealismo. 271 272 Ibidem, 226. Idem. 171 O primeiro momento histórico mais relevante desta segunda etapa é caracterizado pelo retorno ao antigo com base nos temas bizantinos por parte de artistas como Duccio de Siena e Cimabue de Florença. Um segundo passo será encontrado por Hegel na emancipação dos modelos gregos, na entrada do humano e do individual. Como primeiro momento deste segundo passo temos o grande influxo de Giotto e seus discípulos. Esta escola abandonou as convenções e focou-se na percepção do real, tratando de produzir obras de maior vitalidade, trocando a eleição de temas e o modo de representação. Nesse empenho perdeu-se a grandiosa seriedade sacra. Em um segundo momento, as representações dos temas antigos (gregos e cristãos) foram relegadas, ampliando-se o círculo de temas. Porém, o sagrado não se descuidou, mas também se destacou o familiar em Cristo menino e no comovedor da Paixão. Como exemplo desse progresso, coloca a Masaccio e Fiesole, por melhorar a adaptação do conteúdo religioso à forma humana. Da fusão da realidade efetiva viva e a religiosidade interna surgiu um problema somente resolvido no século XVI. Tratava-se de buscar uma consonância entre o exterior e o interior. Avançando em direção a essa meta, coloca Hegel, a Leonardo, porém a perfeição mais pura, nesta esfera, é alcançada por Rafael, compreendendo a beleza livre penetrada de uma vitalidade pictórica individual. Corregio foi mestre do claro-escuro, e sua graça não natural é profundamente espiritual. Tiziano destacou-se na riqueza da vitalidade natural e no colorido. Finalmente chegamos ao abandono do ideal. Os alemães, flamengos e holandeses não quiseram ou puderam alcançar as formas ideais e os modos de expressão livres aos “quais corresponde inteiramente a passagem para a beleza espiritual transfigurada.”273 Desenvolveram a expressão da profundidade do sentimento e da reclusão subjetiva do 273 Ibidem, 271. 172 ânimo. Adicionaram o caráter individual não somente no interesse da fé, senão no mundano (virtudes mundanas). Dentro desses artistas, assinala Hegel, em primeiro lugar os irmãos Hubert e Johann van Eyck. Suas obras são mais mundanas e menos fantasiosas que as obras de estilo italiano, são humildes no tratamento dos temas santos. Reconhece aos irmãos van Eyck como aperfeiçoadores da pintura a óleo. Ainda que enfatize o aspecto relativo à forma de apresentar temas, a admiração pela destreza técnica é algo notório em todos os comentários hegelianos relacionados à história da pintura. É justamente esta tensão entre a forma, na que conta a história da pintura, e o esforço por destacar aspectos relativos a temas apresentados, o que queremos destacar. Em segundo lugar, aparecem os mestres alto-alemães. Esses introduzem o martírio, o não belo da realidade efetiva em geral. Alberto Durero destaca-se como se elevando por sobre a grosseria. E finalmente aparecem os mestres holandeses do século XVII. A arte funde-se no mundano e no cotidiano, desenvolvendo a pintura de todo tipo de representação. Esse apego pelo cotidiano, é explicado por Hegel, por sua condição de burgueses e protestantes. São, para o filósofo, a expressão cabal do humano, desde o olhar de um povo sábio, prudente, humilde e valoroso. Esta terceira etapa da pintura fica às portas do que Hegel chamou a “dissolução da forma romântica da arte” pela “imitação subjetiva do existente.” Essa situação produzse quando o âmbito dos objetos é ilimitado, quando não somente se estende ao necessário, mas também ao casual. A arte se dissolve na representação de retratos: “e regressa para a imitação da natureza, para a aproximação intencional, a saber, da contingência da existência imediata, considerada por si mismo [já] não bela e prosaica.”274 274 CE: 2001, Vol. II, 331. 173 Em contrapartida, a arte ainda possui outro momento que particularmente aqui torna-se de importância essencial: a apreensão e execução subjetivas da obra de arte, o aspecto do talento individual, que nos fins mais exteriores da contingência, nos quais desemboca o talento, ainda sabe permanecer fiel à vida em si mesma substancial da natureza assim como às configurações do espírito e sabe tornar significativo, por meio desta verdade assim como por meio da habilidade admirável de exposição, o que é por si mesmo sem significado.275 Como já havíamos assinalado no momento em que o artista é livre (autonomia da arte). Este se funde com o interior e o exterior dos objetos e lhes dá uma vitalidade subjetiva que os inclui dentro da arte. O conteúdo dá o particular em si mesmo. A forma da representação há de ser a peculiaridade casual da aparição exterior. Essa peculiaridade somente é apreensível pela poesia e pela pintura. A pintura de gênero é o mais admirável que se fez sob esse aspecto. Em particular, destaca Hegel, os pintores flamengos e holandeses, que conquistaram instalar-se na prosa da vida deixando-a livre, fazendo da religião algo livre e ilimitado também. Tais objetos não podem satisfazer um sentido mais profundo, que se dirige para um Conteúdo em si mesmo verdadeiro; mas mesmo que o ânimo e o pensamento também não sejam satisfeitos, a intuição próxima se reconcilia do mesmo modo com tais objetos. Pois é pela arte de pintar e do pintor que devemos ser alegrados e arrebatados. Com efeito, se quisermos saber o qué é pintar, devemos observar estes pequenos quadros, para dizer deste ou daquele mestre: este sabe pintar.276 Os artistas mencionados por Hegel — Memling, Scorel, Ostade, Stenn — encontram-se entre os precursores e integrantes da Escola Holandesa do século XVII, que já mencionamos ao final da reconstrução da história da arte que fizera Hegel. O impacto desta pintura sobre Hegel, a admiração que este tinha pela destreza desses artistas é inegável. Estamos, para ele, frente à conquista da fugacidade do momento, o pico da capacidade do realismo. 275 276 Idem. Ibidem, 333. 174 [A]preender o brilho dos metáis, o cintilar de uma uva iluminada, uma visão desvanecente da lua, do sol, um sorriso, a expressão de afetos de ânimo que rapidamente passam, os movimentos cômicos, as posições, as expressões faciais ― apreender essas coisas as mais passageiras, transitórias, e tornálas duradouras para a intuição em sua mais plena vitalidade, esta é a dura tarefa deste estágio da arte.277 O conteúdo da arte provê o aparecer dos objetos. A representação subjetiva, e não o espírito, passa a ser o principal. Não é o reflexo do ânimo que quer expor-se nos objetos, tal como, por exemplo, acontece com frequência nas paisagens, mas é a habilidade inteiramente subjetiva que se exprime desse modo objetivo enquanto a habilidade do meio mesmo, em sua vitalidade e efeito de, por meio de si mesmo, poder criar uma objetividade.278 “[A] habilidade inteiramente subjetiva que se exprime desse modo objetivo enquanto a habilidade do meio mesmo [...] de [...] poder criar uma objetividade”, quando esses artistas dos Países Baixos conquistaram fazer isso, foi quando se pôde dizer se um artista sabia ou não pintar. 4.2.2.2. Observaçoes finais No primeiro momento desta segunda parte, havíamos encontrado um realismo que chamamos de B2’, que se encontrava em contraposição a um realismo do tipo B1. A partir daí, vimos como este último adquire, na pintura, um lugar fundamental como parte da evolução da arte. Efetivamente, a pintura alcança seu ponto culminante no mesmo momento em que a arte romântica começa sua dissolução, o que se dá com a pintura flamenga e holandesa do século XVII. Na medida em que não é possível uma arte figurativa efetivamente realista, ou seja, na medida em que distintos tipos de convenções impõem-se na hora de elaborar um consenso com respeito ao realismo pictórico, desprende-se que toda forma de classificar 277 278 Ibidem, 334. Ibidem, 335. O destaque é nosso. 175 como realista a um determinado estilo é, em maior ou menor medida, arbitrária. Para se referir a uma corrente artística peculiar como efetivamente conquistadora do realismo, Jakobson utiliza os termos “realismo aproximativo ilusório” ou “Significação C”. As convenções utilizadas por essa corrente artística servirão para a classificação de outros estilos como menos realistas. Posto isso, depois dessa passagem pela estética hegeliana, cremos que se pode identificar um Realismo de tipo C com as características próprias da pintura flamenga e holandesa: um Realismo do tipo C’ — ou seja, um conservadorismo da tradição em nome de sua maior realidade — nas características da arte clássica ou neoclássica. A disputa entre a arte realista e a arte ideal, apresenta-nos, então, uma forma muito similar à disputa entre a arte realista e a arte ideal, que nos apresenta, então, com uma forma muito similar à disputa pelo realismo que nos mostrava Jakobson como característica dos séculos XIX e XX. De fato, estamos ante sua parenta dos séculos XVII e XIII, que enfrentou os classicistas com os revolucionários defensores da arte moderna. Já havíamos concluído que Hegel sustentava um realismo A1 e um realismo A2’, notando que o primeiro era suficientemente débil para não contrariar o segundo. Nesta segunda parte, confirmamos que a perspectiva de Hegel está influenciada por sua posição de receptor das obras de arte, e que as coordenadas do realismo que adjudica o conceito verdadeiro de arte relacionam-se estreitamente com essa posição e, em particular, com duas correntes confrontadas em sua época pelo predomínio da verdadeira essência da pintura (às quais chamamos realismo C e C’). Neste ponto afirmaremos que, sendo Hegel presa de uma absoluta “ilusão de realismo” que o leva a sustentar um realismo C, ainda assim é necessário captar a debilidade do realismo A1 em sua fortaleza. Isso é possível se temos em conta a análise do impacto dessa ilusão na construção do sistema. Ou seja, se compreendemos que o 176 lugar do realismo pictórico no sistema é menos o resultado de uma concepção teórica do artístico que o resultado da relação do próprio Hegel com a arte do seu tempo. 4.2.3. Ilusão de realismo? Colocada desse modo, a pergunta do título é uma má pergunta. Deveríamos perguntar, por um lado, se Hegel postula a ilusão de realismo como uma forma de entender a pintura, a partir do qual a verossimilhança deveria jogar um papel determinante nos horizontes desta prática; e por outro lado, deveríamos perguntar se Hegel sucumbe à ilusão do realismo. Esperamos ter mostrado, neste trabalho, que sustentar direta e plenamente que Hegel promove o ilusionismo na pintura pode ocultar uma série de problemas importantes. Ainda que seja verdade que para ele a aparência (Schein) é o elemento da pintura, não cremos que se deva interpretar que o ilusionismo é o que o artista deve alcançar. Ao contrário, seus esforços encaminham-se a fim de demonstrar o maior grau de verdade que possui a arte, apesar da ilusão realista. Sobretudo não parece apropriado falar de ilusão, posto que a confrontação com o objeto real não deveria nos revelar a impostura da pintura, senão sua maior verdade na qualidade de pintura (a nós, herdeiros da cultura científica). O que tentamos mostrar neste trabalho, é que o problema não surge a Hegel por suas críticas à ideia de imitação da natureza, mas por sua crença na possibilidade de conquistar o realismo pictórico, ou seja, pelo mesmo ter sucumbido à ilusão do realismo. Esta crença o obrigou a colocar os artistas que considerava realistas em algum lugar da sua história da arte, como um momento necessário desta história, e a justificar como aquilo não se encaixava com seu conceito de arte original. A associação entre arte e verdade torna-se um problema na estética de Hegel. Podemos entender que uma verdade mais espiritual pode fracassar na sua tentativa de se 177 apresentar de maneira sensível, porém é difícil entender por que sua apresentação em sua forma sensível adequada, sendo mais compreensível a verdade que representa para as mentalidades mais evoluídas, deixa de ter valor. O Espírito Absoluto, que promete lembrar a totalidade, parece incapaz de recuperar a experiência do belo do passado. Temos, em primeiro lugar, um momento no qual as representações dos deuses são tomadas — no melhor dos casos — como a real imagem desses. Isso evidentemente é uma ilusão cujo embuste não pode se resolver a menos que se conheça a verdadeira imagem da divindade. Isso ocorre com o cristianismo. Assim, em um primeiro momento da arte romântica, em seu período religioso, as artes conservam em alguma medida seu antigo poder de suscitar devoção, conservam a ilusão de ser um acesso direto à divindade. Na medida em que Hegel não se questiona sobre o significado que a naturalidade histórica de cada estilo tem para a prática artística, ele não enfrenta o problema que, ao fim das contas, fica pendente: a relevância da ideia de beleza. É provavelmente a esta dama que Hegel desejava salvar da goela de um realismo que, sem dúvidas, o havia seduzido por completo. A perda da ideia de beleza resulta fatal para a estética idealista, pois nos deixa, é verdade, nas mãos da ilusão do realismo, da ironia, da técnica, do agrado sensível, da história da arte e de seus usos e interpretações. 4.3. “A arte tem que ser poesia ou prosa?” Já comentamos que, inclusive, na arte ideal, na arte grega, existe uma determinação exterior que leva Hegel a introduzir em seu seio “fragmentos do particular” — para dizê-lo de alguma maneira. De fato, opunha-se às estéticas idealistas que promoviam a total purga de elementos relativos à finitude das obras de arte. 178 Igualmente, em relação à entrada em cena de obras antigas, Hegel era partidário da introdução de um cenário adequado ao público, aprovando a modificação de tudo aquilo que na obra se apresentasse como casual, como alheio à substância mesma da verdade que a obra pretende mostrar. Isso aplicado à forma clássica da arte o leva à incômoda situação de ter que afirmar que aquela forma tão excelente que havia dado lugar à poesia de Homero não era vigente em sua Alemanha natal, e que, desse modo, deveria separar o inseparável (a forma do conteúdo da arte clássica) e, mediante esta operação analítica, manter a ilusão dos espectadores. Deste modo, a necessidade de incorporar aspectos próprios da realidade casual às obras apresenta-se como uma necessidade que vai desde as formas da épica antiga até a pintura e o teatro de seu tempo. Essa dissociação tinha lugar em meio a um ambiente que, à diferença do grego, já não gerava mentalidades poéticas, senão que se encontrava dominado pela “prosa da vida”, ou a pela forma prosaica de compreender as verdades essenciais. Essa cosmovisão, conquista da humanidade por certo, era, para Hegel, o efetivo motor do desencanto da arte em sua forma ideal. Tanto é assim, que a arte melhor deixaria de sê-la, antes de poder adaptar-se a essa nova cosmovisão com o mesmo status de beleza que gozava o cânone clássico. Hegel recolhe esta disputa da mão de dois de seus principais expoentes que lhe eram muito próximos, os já mencionados, Winckelmann e von Ruhmor. O problema que ambos intelectuais enfrentaram é, para Hegel, o problema da relação do ideal com a natureza. O dilema principal que subjaz a esta disputa, considera Hegel, que levou a pintura, onde é mais fácil aportar argumentos a favor da naturalidade, porém em seu modo mais geral, há de ser considerado do seguinte modo: 179 [Na] oposição do ideal e da natureza, portanto, tinha-se em mira mais uma arte do que outra, principalemente a pintura, cuja esfera é justamente a particularidade visível. No que se refere a esta oposição, queremos, por tanto, establecer a pregunta de modo mais universal: a arte deve ser poesía ou prosa? Pois o autenticamente poético na arte é o que justamente chamamos de ideal. [...] Mas então surge a questão: o que é, pois, poesía e prosa na arte? Embora a insitência no poético em si [an sich] mesmo, em relação às artes determinadas, também possa conduzir a aberrações ― como já conduziu: pois o pertenece expressamente à poesía, e mais em precisamente à lírica, também foi expresso por meio da pintura, já que um tal conteúdo é certamente de espécie poética. A atual mostra de arte (1828), por exemplo, contém varios quadros, todos de uma mesma escola (a assim chamada escola de Düsseldorf), que emprestou todos os seus temas da poesía e, na verdade, do aspecto da poesia apenas passível de ser exposto enquanto sentimento. Se observamos com mais frequência e mais atentamente esses quadros, logo eles se mostrarão adocicados e insípidos.279 A oposição é então entre poesia e prosa (ideal e natureza). E é claro que Hegel primeiro atende à disputa essencial para logo fazer uma avaliação mais definitiva sobre o desgosto específico relacionado a certas obras particulares. Em primeiro lugar, considera que é preciso entender que a obra de arte possui uma idealidade inteiramente formal que se desprende de ser um produto humano. De acordo com isso, há uma tendência ao natural que não lhe cabe por definição, não importa qual seja o conteúdo que pretenda transmitir: O conteúdo pode ser neste caso totalmente indiferente ou apenas nos interessar na vida cotidiana, no exterior da exposição artística, de passagem e momentaneamente. Deste modo, por exemplo, a pintura holandesa soube transformar 279 CE: 2001, Vol. I, 174. A esquerda Ludwig Richter (Escola de Düsseldorf) Floreta de primavera perto de Ariccia. Óleo em tela. 1831. 180 [umschaffen] as aparências fugazes e dispostas na natureza, enquanto novamente recriadas pelo homem, em milhares e milhares de efeitos. O veludo, o brilho do metal, a luz, os cavalos, os servos, as mulheres velhas, os camponeses que soltam fumo pelo cachimbo, o brilho do vinho em copos transparentes, pessoas com casacos sujos jogando com cartas velhas: tais e outros objetos pelos quais na vida comum mal nos importamos ― já que mesmo quando jogamos, bebemos e tagarelamos sobre isto ou aquilo, somos tomados de interesses completamente diferentes ―, nos são levados diante dos olhos por meio destes quadros. Mas o que em um tal conteúdo imediatamente nos atrai, na medida em que a arte o apresenta, é justamente esta aparência e aparecer dos objetos enquanto produzidos pelo espírito, o qual transforma o exterior e sensível do conjunto da materialidade [Materiatur] no mais íntimo interior [Innerseten]. Pois em vez da lá ou da seda existentes, em vez do cabelo, do vidro, da carne e do metal efetivos, vemos meras cores; em vez das dimensões totais que o natural necessita para a sua aparição, vemos uma mera superfície e, contudo, temos a mesma visão que o efetivo nos oferece. 280 A ilusão de realismo parece reconhecida aqui como uma má apropriação de uma realidade transformada em milhares de efeitos que em nada têm a ver com o impacto que nos provoca a realidade em si mesma. Todavia, a consciência de Hegel dos aspectos perceptivos e do seu impacto no espectador pode ser relacionada tanto como com as pretensões dos impressionistas por capturar a essência do visível, como com a consciência vanguardista de que um quadro não vai além de uma superfície coberta de cores. A ilusão de realismo é, sem dúvida, uma das ilusões mais conscientes de ser tal que se pode encontrar em obras desta época. É o espírito, é a poetização do prosaico o que nos encanta. Porém, apesar de ser uma má apropriação, a ilusão está ali, “vemos uma mera superfície e, contudo, temos a mesma visão que o efetivo nos oferece.” Frente à prosaica realidade dada, “esta aparência produzida pelo espírito é o milagre da idealidade, uma troça se quisermos, e uma ironia sobre a existência natural exterior”. É um elemento brando o que compõe o quadro (não como o metal real), ainda que sejam objetos limitados, particulares, os apresentados, o criador faz deles “todo um 280 Ibidem, 174-5. O destaque é nosso. 181 mundo de conteúdo, que ele retira da natureza e é reúne num tesouro no âmbito abrangente da representação e da intuição, e assim, de um modo simples, o libera livremente a partir de si sem as inúmeras condições e disposições da realidade.” A arte não entrega os objetos ao uso comum, senão que “limita o interesse à abstração da aparência ideal para a visão meramente teórica.”281 Nesse sentido, não parece ser a pintura um artifício ilusionista, senão mais bem uma ferramenta utilizada pela abstração, o que faz com que se apresente, ao fim e ao cabo, como mais verdadeira que a percepção consciente dos objetos em sua materialidade e, portanto, interessada. A arte, então, eleva o objeto através da identidade. Faz-nos nele centrar nossa atenção, e o converte em um fim em si mesmo. O tempo sofre o mesmo processo. A arte consolida em duração o que na natureza é passageiro; um sorriso que desvanece rapidamente, um rasgo repentino e chistoso em torno da boca, um olhar, um brilho de luz fugaz, bem como traços espirituais na vida dos seres humanos, incidentes, acontecimentos que vem e passam, que aí estão e novamente são esquecidos ― tudo e cada coisa ela arranca da existência momentânea e também neste sentido supera a natureza. 282 Não é o conteúdo o que nos cativa, senão a produção espiritual. A exposição deve aqui aparecer natural, mas não deve aparecer nela a naturalidade enquanto tal, e sim o poético e ideal em sentido formal é o fazer [Machen], a eliminação justamente da materialidade sensível e das condições exteriores. Alegramonos com uma manifestação que deve aparecer como se a natureza a houvesse produzido, quando de fato ela é uma produção do espírito, sem os meios daquela; os objetos não nos deleitam porque são de tal modo naturais, mas porque são feitos [gemacht] tão naturalmente.283 Chegado o caso, não é a ilusão o que nos seduz, senão a capacidade do artista de produzir esta ilusão. 281 Ibidem, 175. Idem. 283 Ibidem, 175-6. 282 182 O mesmo procedimento que já assinalamos, de ganância cognoscitiva, dá-se com esta capacidade de capturar o momentâneo, porém de tal maneira que lhe dá maior inteligibilidade ou valor de verdade. Aqui parece estar presente a tensão fundamental do chamado “realismo”, melhor dito, a ilusão fundamental, que é a que pretende a conquista não da verossimilhança, mas das chaves da aparência da natureza em sua verdade. Para Hegel, é um interesse mais profundo o que pede mais que a existência imediata, que promove a passagem do singular ao geral. O que existe naturalmente é pura e simplesmente um singular e, na verdade, tornado singular segundo todos os pontos e lados. A representação, em contrapartida, tem em si a determinação do universal e o que dela resulta já adquire desse modo o caráter da universalidade, à diferença da singularização natural. A representação oferece neste contexto a vantagem de ser de maior amplitude e, assim, ser capaz de apreender o interior, de resaltá-lo e explicitá-lo de modo mais visível.284 O poético não somente está relacionado, então, à possibilidade de expressar uma interioridade, mas também está associado à capacidade de prescindir de alguns dos aspectos essenciais ao estar singular, tornando, com esta subtração, mais verdadeira a aparência do objeto. Às alegações de Von Ruhmor contra a arbitrariedade das convenções, Hegel enfrenta sua convicção da não arbitrariedade das mesmas. Temos, então, uma falha a favor do ideal, inclusive na arte que se apresenta como mais prosaica. As críticas de Hegel que motivam esta falha seriam muito melhores se estivesse disposto a analisar as formas de representação do particular, em lugar tão somente de sustentar que uma reprodução imediata não é possível, apelando a uma espiritualidade que se torna arbitrária e confusa (como em seu postulado dos aspectos mais teóricos da representação visual ou na interioridade que aparece como negociação de uma verdade profunda na obra realista, porém, apesar disso, não está ali.) 284 Ibidem, 176. 183 Com relação às obras concretas, o exemplo do universo vulgar nelas está considerado de maneira equívoca, segundo Hegel, se ignorados os aspectos espirituais das representações. Os holandeses tomam o conteúdo de suas vidas, de seu presente, porém isso se torna de maior densidade espiritual, posto que tomam o que lhes pertence. É o resultado de seu esforço e trabalho, de sua história. É “elevar-se à liberdade e à alegria.”285 Não são temas ordinários. “Foi neste sentido de nacionalidade robusta que Rembrandt pintou sua famosa Ronda Noturna em Amsterdã, que van Dyck pintou tantos de seus retratos, Wouwerman suas cenas de cavaleiros, e mesmo aqueles banquetes, jovialidades e festas agradáveis dos camponeses se situam neste contexto.”286 Rembrandt Harmenszoon van Rijn. A ronda da noite. Óleo sobre tela. (1642). Mesmo reconhecendo a interessante posição de Hegel sobre a cor aos efeitos de mostrar uma imagem 285 286 Ibidem, 181. Ibidem, 180. 184 realista, a importância do contorno ainda era fundamental em todos os pintores aos quais remete, como não poderia ter sido de outra forma, conforme à história da pintura europeia. A degradação do ideal é progressiva, porém segura, até o ponto de chegar ao trivial e vulgar. Qual é o conteúdo concorde, neste ponto, à arte? O homem cuja alma compromete-se permanentemente com as coisas. É isso o que se reflete na pintura. A ilusão de realidade foi conquistada. Reconhecida essa conquista, Hegel pretende demonstrar que é isso o essencial da pintura, o que motiva a incorporar os temas nas obras. O problema não é, para Hegel, reconhecer que a arte tenha melhorado em sua capacidade para a conquista da verossimilhança, mas o aceitar que uma arte que se proponha tão somente esse objetivo seja elevada ao mesmo nível que o de sua apreciada arte ideal. Porém, mesmo com tanta alma nacional a pintura já estava alhures do fundamental para o Espírito Absoluto, que como temos visto no primeiro apartado, longe de requerer dos cidadãos manifestações ético-estéticas da sua liberdade, precisava deles o conhecimento próprio das bases da sua liberdade cristalizada no Estado, cujas leis atingidas pela razão, já satisfaziam o que os cidadãos hegelianos requeriam como substancia espiritual para realizar e garantir a liberdade universal. Compreender as leis e não compreender a arte, compreender a arte como lembrança de uma instância singular ― fundamental para um povo, mas nem tanto para o que tinha sido atingido pela Razão no seu desenvolvimento histórico ― esse era o papel que a arte vinha a ter ao final da odisseia do Espirito. A melhor e mais aprimorada forma de, ao fim de contas, como já citamos Borges no primeiro Capítulo, entretecer naderias. 185 Conclusões People who engaged themselves daily in the manufacture of representations see nothing magical in them, and therefore nothing worthy of respect in people who credit them with magical powers. The more seriously the artist sees his work being taken by the represented and offended party, and the more his work is denounced, the less he is likely to take the party seriously. (Of course this that not mean he will disregard the power of the offended party to exact revenge) J. M. Coetzee. Giving offense. Essays on Censorship O caráter vinculante do mito, das artes e/ou do saber racional são temas que no século XIX tiveram muito em conta falar tanto da antiguidade como da sua contemporaneidade. Assim como na Grécia clássica o mito era o saber compartilhado, no colchão de ideias do jovem Hegel a razão deveria cumprir esta função na modernidade. Lamentava-se este filósofo pela perda do poder vinculante do saber na sua época. A razão parecia envolver muito menos seres racionais do que aqueles que, até para ele, era preciso, a sem-razão ou barbárie colocavam em xeque permanentemente os resultados do filósofo esclarecido. Assim, a épica travessia da razão na Fenomenologia sempre foi mais uma esperança ou uma “prima realidade”, e não uma questão de fato, instalada na sociedade racional na qual poderia se desenvolver e à qual deveria dar estrutura e conteúdo.287 Mas mesmo assim, quando Hegel pensou que a arte passaria a ser trivial na medida em que se converteria na mera expressão de estados subjetivos, certamente não 287 Uma das formas mais aprimoradas de compreender a falta de vinculação do pensamento entende-o como “desencantamento do mundo”. De acordo com a tese fundamental da sociologia de Max Weber, na modernidade assistimos a um movimento de afastamento das esferas da vida, numa racionalização que almeja tanto a eficiência quanto evitar a mistura dos valores que podem permanecer afastados. Temos assim, por exemplo, uma estrutura burocrática estatal e/ou uma ciência onde moralidade, religiosidade, amor, e beleza não tem em principio nada a ver, uma arte sem moralidade, ciência ou religiosidade, uma vida privada sem Estado, um Estado sem religiosidade ou moralidade, e assim por diante. A autonomização das esferas da vida resulta então do processo de procura de eficácia, racionalidade e desumanização. O progresso esclarecido traz consigo desencantamento. 186 antecipou as mudanças que a história da arte tinha posto diante desta prática. Resulta muito difícil explicar com brevidade as mudanças que aconteceram entre finais do século XIX e inícios do XX. O exorcismo coletivo virou exorcismo privado oferecido a um público que talvez conseguisse lidar com ele. O desenvolvimento dos valores especificamente artísticos tornou-se fundamental e uma pintura virou tinta na lona e não histórias, valores e estéticas. A autonomia da arte deu lugar a pesquisas que certamente mudaram a forma de considerar a história da arte, mas, especialmente, levou a um caminho de auto-compreensão técnica que teve seus adeptos e seus detratores ― constituídos agora, no mundo da arte ao qual a obra é apresentada. O que nem a simples autonomia, nem sequer o “museu imaginário”288 podem ensinar é a própria história da arte, o vínculo entre os valores não artísticos e os artísticos: o motor fundamental da arte por séculos. O caminho de mãos dadas (com maior ou menor força) tinha acabado. Talvez a fórmula mais exata que se deu na época, e certamente a única resposta filosófica ao que estava acontecendo, seja a de José Ortega y Gasset, segundo a qual a arte se dividiu entre uma arte de povo e uma arte de artistas.289 O que, para o filósofo espanhol, era evidência de um progresso artístico ― progresso ou mutação legítima a qual, fora de grupos fundamentalistas pouco interessados em questões artísticos, até a data acredito que ninguém se atreveu a questionar –, na medida em que a arte, livre de prestar serviços a outras áreas da experiência, finalmente se voltava sobre si mesma e só ficava ao alcance daqueles que efetivamente tivessem interesse em compreender-la, fossem artistas ou espetadores. Mas não contou Ortega y Gasseet com o que a interação 288 MALRAUX, A.: 1952-54. ORTEGA y GASSET, J. (2009). Seu texto, La deshumanización del arte em 1925, dezoito anos depois de Les demoiselles d’ Avinyó de Pablo Picasso. Não faz mal lembrar que oi a fama da cidade de Avignon a que ocultou por algum tempo o fato de que na Barcelona natal de Picasso, fosse em a Rua de Avinyó, na época do pintor, o lugar onde se encontravam os lupanares. 289 187 com o mercado e as novas formas de entretenimento fariam com este “sonho de uma elite cultural legítima”.290 Theodor W. Adorno sentenciou na sua Teoria Estética, obra póstuma editada em 1970, a perda de obviedade da arte, tendo chegado ao ponto de questionar seu direito à existência. Este caminho de mão dupla — a do progresso e a da perda da obviedade — coloca a autonomia da arte como um estágio social e histórico crucial, em que a arte se fecha em si própria e, ao mesmo tempo que se defende, se expõe a uma maior perda de obviedade que coloca dúvidas sobre seu fim. Seu lugar histórico não é menor. A autonomia emerge, além das outras condições sociais, como resposta a uma situação de perda de liberdade no contexto dramático dos totalitarismos do século XX. As Vanguardas quebram os condicionamentos culturais da sua época, carregando assim o “momento histórico [que] é constitutivo nas obras de arte; as obras autênticas são as que se entregam sem reservas ao conteúdo material histórico da sua época e sem a pretensão sobre ela.” Como toda arte “[s]ão a historiografia inconsciente de si mesma da sua época; o que não é o último fator da sua mediação relativamente ao conhecimento. É isso precisamente que as torna incomensuráveis ao historicismo que, em vez de seguir o seu próprio conteúdo histórico, as reduz à história que lhes é exterior. As obras de arte deixam-se 290 Sobre a “indústria cultural” e as novas formas de entretenimento, a referência obrigada é, certamente, Theodor Adorno numa importante parte da sua obra. Sugerimos distinguir, caso de futuros estudos, não distinção entre “fun” e prazer, ou entre “pop(ular)” e popular que, em caso de ser lidas sem os devidos cuidados podem fazer de Adorno um personagen um tanto “resentido” no que diz respeito à humana capacidade de se gratificar. Longe disso, sugerimos ler os termos utilizados em inglês nos textos originais (ou com destaque), como uma forma de distinguir aquelas formas que considerava comerciais e alientantes, daquelas que pudendo formar parte ou não do universo das belas artes, não deixavam de ser experiencias de legitimo refocilho dos humanos. Mesmo que sejam conhecidos seus comentarios muito questionaveis, senão completamente errados sobre fenômenos como o jazz, Adorno também cultivou práticas sociais prazerosas de índole “não inteletual”, como assitir televisão, desfrutar de alguns filmes, e outros prazeres mundanos. 188 experimentar tanto mais verdadeiramente quanto mais a sua substância histórica for a do autor da experiência.”291 A caraterística peculiar da concepção adorniana no que diz respeito a outras estéticas de cunho marxista está em considerar a arte como “a antítese social da sociedade; não pode se deduzir imediatamente desta.”292 Destarte, a obra se constitui frente aquilo que não é, não é empiria nem é utopia confortável ou consolo, é imaginação que vai além do dado e da sua afirmação. A negatividade constitui vínculo técnico e social inevitável para o reconhecimento do artístico, como fechamento de furos técnicos e tradição e como negação da empiria e fraturas sócio-históricas. Porém, mesmo para o próprio Adorno alguma coisa estava se desmoronando. Assim foi que desenvolveu seu conceito de “desartificação”. Nem completamente caraterizado, nem completamente pessimista, o mesmo parece responder a um fim da arte que parecia inevitável, especialmente para qualquer proposta que almejasse depositar na arte um espaço de crítica numa sociedade opressora, a uma arte inserida no mundo administrado. Em palavras de Rodrigo Duarte: A ideia de desartificação como tendência do desenvolvimento artístico leva ao pensamento de que pode ser interessante para a criação das obras uma espécie de simulação de sua dissolução na realidade empírica, o que, por sua vez, leva à indagação sobre o relacionamento da arte com aquilo que lhe é radicalmente exterior, tema que é abordado no parágrafo intitulado “A arte e as obras de arte”, no qual aquela ideia aparecerá a partir da discussão sobre o relacionamento das obras com o conceito de arte [...] porque as obras, em proporção crescente, abandonam a pureza conceitual que facilitaria sua subsunção à noção mais ampla e se tornam “impuras”, na medida em que vão ao encontro do âmbito extra-artístico, mesmo levando em consideração os enormes problemas que esse movimento pressupõe.293 291 ADORNO, Th.: 2008, 207. Ibidem, 19. 293 DUARTE, R.: 2007, 29. Ver também DUARTE, R.: 2012. 292 189 Contra o “abalo”, ou a não vivência, a desartificação permitiria compreender obras autênticas, porém, fugidias que a contemporaneidade pode nos oferecer. Quando Andy Warhol apresenta seu trabalho, tanto o mercado como as diferentes instituições planejadas para vender, comprar, divulgar e promover as artes, assim como os diferentes circuitos de consagração próprios das mesmas, já estavam consolidadas. O artigo de Arthur Danto, além de dar legitimidade filosófica a um fenomeno artístico como minimo controverso, a saber, o fenomeno dos “indiscerníveis”, serviu para colocar um nome a este espaço: a arte pertencia ao mundo da arte.294 Celebrado por institucionalistas como Georg Dickie tanto como por sociólogos como Pierre Bourdieu, o “mundo da arte” rapidamente fugiu das mãos do seu criador virando um conceito insatisfatório para Danto.295 Daí em diante, numa virada hegeliana o outrora filósofo analítico, desenvolveu uma definição de arte a partir de uma interpretação da história “interna” da mesma, pela qual a arte alcançava seu ponto culminante junto com o fim das narrativas fundacionais e uma contemporaneidade póshistórica de pluralismo artístico. [A] passagem do “moderno” para o “contemporáneo” – ou póshistórico ― é diferente de outra sucessões na história da arte, pois, com base nessa posição asssociada à necessidade histórica do fim do Modernismo, Danto chega à explicitação mais cristalina de sua posição respeito do fim da arte: este ocorre no momento em que o expressionismo abstrato nova-iorquino entra em crise e a pop art toma o seu lugar como corrente artística mais influente [...]296 Mesmo podendo ser impressionistas na manhã, expressionistas à tarde e conceitualistas à noite, o certo é que hoje predomina a lista dos artistas melhor cotados 294 DANTO, A.: 2012, 334. “I am very grateful to them [R. Sclafani and George Dickie], and additionally grateful to those who have erected something called the Institutional Theory of Art on the analyses of “The Artworld,” even if the theory itself is quite alien to anything I believe: one's children do not always quite come out as intended. I nevertheless, in classical oedipal fashion, must do battle with my offspring, for I do not believe that the philosophy of art should yield herself to him I am said to have fathered.” DANTO, A.: 1981: VIII. 296 DUARTE, R.: 2011, 167. 295 190 conforme Sotheby’s e Christie’s, assim como suas ações cotando na bolsa de valores em função das transações comerciais que fazem com obras que, mais de uma vez, são compradas por clientes que nem sequer estão interessados na arte. Por outra parte, a agenda de bienais, exposições, galerias, prêmios nacionais, e outras formas de circulação marcadas pelo poder já econômico, já social, fazem do mundo da arte uma instituição de difícil acesso e tão sensível às vicissitudes do mundo global como qualquer outra ou, o que é o mesmo, espaços marcados pelos conflitos de um mundo onde o globalizado é que o acesso aos bens culturais e a valorização dos bens culturais produzidos esta restringido por injustiças tanto para o pluralismo proposto por Danto297, como para o ativismo proposto por aqueles que pretendem fazer ou promover uma arte engajada 298, filha bastarda pela falta de recepção coletiva, da velha arte heterônoma.299 Só resta dizer, a espera de um estudo que avalie as possibilidades da arte como ferramenta crítica que, parafraseando a Marx, o mundo da arte é uma grande instituição. Mas quem gosta de morar numa instituição? 300 297 Ver Guimarães, B.: 2014 e DUARTE, R.: 2014. Foster, H.: 1998, entre outros textos. 299 Uma boa leitura para compreender as dificuldades de pensar na arte heteronoma hoje é DANTO, A.: 1989. 300 “Marriage is a wonderful institution [...] but who wants to live in an institution?” Groucho Marx. 298 191 Bibliografía ABRAMS, M. H. (1971) The mirror and the lamp: romantic theory and the critical tradition. Londres: Oxford University Press. ——. (1973) Natural supernaturalism: tradition and revolution in romantic literature. Nova Iorque; Londres: Norton. ——. (1989) Doing Things with Texts: Essays in Criticism and Critical Theory. Nova Iorque: Norton & Company. ABRAMS, M. H; HARTMAN, G. H; LIPKING, L. I. (1981) High romantic argument: essays for M. H. Abrams. Ithaca: Cornell University Press. ADORNO, Th. (2008) Teoria estética. [Trad. Artur Mourão] São Paulo: Martins Fontes. ——. (1981) Tres estudios sobre Hegel. Madrid: Taurus. ——. (1996) Philosophische Frühschriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, Vol. I, 325-344 ALLISON, H. 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