FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
AUTONOMIA HISTÓRICA E AUTONOMIA INSTITUCIONAL
Conceitos fundamentais para compreender a arte como prática histórica e
pós-histórica
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção do
título de Doutor em Filosofia.
Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da Arte
Orientador: Rodrigo Antônio de Paiva Duarte
Mónica Herrera Noguera
Belo Horizonte, MG, Brasil
2015
1
100
N778a
2015
Noguera, Monica Herrera
Autonomia histórica e autonomia institucional
[manuscrito]: conceitos fundamentais para compreender a
arte como prática histórica e pós-histórica / Monica Herrera
Noguera. - 2015.
206 f.: il.
Orientador: Rodrigo Antônio de Paiva Duarte.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Inclui bibliografia
1. Filosofia – Teses. 2. Arte - Teses. 3. Arte – História Teses. I. Duarte, Rodrigo A. de Paiva (Rodrigo Antônio de
Paiva). II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.
2
3
Como la cigarra
María Elena Walsh
Tantas veces me mataron,
tantas veces me morí,
sin embargo estoy aquí
resucitando.
Gracias doy a la desgracia
y a la mano con puñal
porque me mató tan mal,
y seguí cantando.
Cantando al sol como la cigarra
después de un año bajo la tierra,
igual que sobreviviente
que vuelve de la guerra.
Tantas veces me borraron,
tantas desaparecí,
a mi propio entierro fui
sola y llorando.
Hice un nudo en el pañuelo
pero me olvidé después
que no era la única vez,
y volví cantando.
Cantando al sol como la cigarra
después de un año bajo la tierra,
igual que sobreviviente
que vuelve de la guerra.
Tantas veces te mataron,
tantas resucitarás,
tantas noches pasarás
desesperando.
A la hora del naufragio
y la de la oscuridad
alguien te rescatará
para ir cantando.
Cantando al sol como la cigarra
después de un año bajo la tierra,
igual que sobreviviente
que vuelve de la guerra.
4
A meu irmão, Jorge Luis Herrera, que não chegou a me ver começar este
doutorado (In memoriam, 1979-2009)
À minha mãe, Berta Noguera, que não chegou a me ver acabar este
doutorado (In memoriam, 1943-2015)
Ao meu pai, Walter Herrera, que venceu o câncer nos últimos dois anos e
meio e hoje está aqui comigo
5
AGRADECIMENTOS
À minha família;
Ao Professor Dr. Rodrigo Duarte pela paciência, confiança e orientação deste
trabalho;
Às Professoras Virginia Figueiredo e Imaculada Kangussu por aceitarem fazer parte
da Banca de Qualificação — que trabalhou com muita celeridade — permanecendo na
Banca de Defesa;
Aos Professores que aceitaram o convite de integrar a Banca de Defesa, Bruno
Guimarães e Verlaine Freitas, assim como às suplentes Alice Serra e Debora Pazzeto,
que também aceitaram trabalhar com celeridade nesta tese;
A Juan Introini, meu professor de latim, por sua paixão pela literatura e Antiguidade
(In memoriam);
À Maria Fernanda Pallares, amiga e colega, a quem faltam palavras de
agradecimento, por tudo o que contribuiu para comigo e para com este trabalho;
A Marco Antônio Alves, pela acolhida em Belo Horizonte, amizade, paciência e
mão sempre aberta para me ajudar;
À Gisele Seco, amiga do peito e colega, pela ajuda neste trabalho e por compartilhar
tantas coisas da vida e da filosofia desde meus primeiros dias no Brasil até hoje;
Ao Pablo Bartkevicius pela ajuda neste trabalho e amizade inquebrantável;
A Adrián Castillo, amigo e Professor de língua e literatura gregas, pela amizade,
parceria e o assessoramento;
A Inga Heilmann, amiga e intérprete de alemão, castelhano, português e inglês, pela
amizade e o assessoramento;
À “equipe de resgate” do português: Gisele Secco, Daniel Nascimento, Kelin
Valeirão, Marco Antônio Alves e Juliano do Carmo, por revisar o texto em momentos
6
de pouco tempo e muita nervosia. Por fortuna, se algo ganhei por ter escolhido
desenvolver parte da minha formação acadêmica no Brasil, foi conhecer alguns dos
amigos mais maravilhosos do mundo;
Aos Professores Romero Freitas e Christian Klotz, por responderem às minhas
perguntas sempre que foi preciso;
Ao Professor Mario Gonzalez Porta, pela amizade e importantes conselhos;
A Aníbal Corti, a Juliano do Carmo, a João Gabriel Dominguez, a James Garrison, à
Susana Gonzalez, a Jóse Guzman, à Mariella Magliano, à Florencia Martinez, à
Florencia Santangelo, à Lorena Segal, à Carolina Pereira Soares, à Kelin Valeirão e
família, à família Valentini Carducci e à Eugenia Villarmarzo pela amizade e por me
ajudarem sempre que foi preciso;
Às minhas amigas e aos amigos do bairro Ermelinda: Ana, Greici, Jaqueline,
Lamón, Maria Vitória e Mirandinha, por me receberem e me tratarem como família;
À Mercedes Sarubbo, pela ajuda precisa;
A Ernesto Anzalone e família, pela colaboração durante o período das provas e nos
primeiros três anos do doutorado;
Ao revisor Eduardo Almeida e à tradutora e revisora Tatiana Zismann, pelo labor e
paciência;
Aos meus colegas do Espacio de Formación Integral Teorías estética
contemporáneas en diálogo con el arte callejero, Pablo Bartkevicius, Hekatherina
Delgado, Alejandro Gortazar, Washington Morales, Katherine Perdomo, José Stagnaro,
Fernando Suárez, Guillermo Uria pela amizade, parceria e solidariedade, tanto na hora
de tomar conta do curso de Estética II, como durante alguma urgência da tese que me
obrigou a deixar de lado as minhas tarefas como responsável do Espacio.
7
A Washington Morales, amigo e colega no debate em Estética, pela solidaridade
constante cada vez que as demandas da tese me obrigaram a deixar de lado minhas
responsabilidades docentes;
À Inés Moreno por tomar conta das aulas de Estética tanto durante o meu
afastamento na FHCE-UDELAR, e durante os imprevistos — tanto da vida quando da
tese —, que me obrigaram a deixar de lado as minhas responsabilidades docentes.
À Malvina Ruiz, a Sebastián Bosch, à Sala de Filosofia do Centro Regional de
Profesores Suroeste, aos Professores Daniel Calcagno, Martín Fleitas, Guillermo Nigro,
Mónica Planchón, Sergio Rozas, Luciana Soria e ao Diretor do Centro Regional de
Profesores Litoral, Professor Victor Pizzichillo, pelo apoio para que eu pudesse
trabalhar nos últimos meses da tese;
Aos meus estudantes do primeiro semestre de 2015, do Centro Regional de
Profesores Suroeste (Colonia del Sacramento), da Facultad de Humanidades y Ciencias
de la Educación e do Centro Regional de Profesores Litoral (Salto): Juliana Acerenza,
Nicolás Acosta, Valeria Alvez, Marcela Bacigalupi, Pablo Bartkevicius, Valentina
Bentos, Favio Dauria, María José Duarte, Gretel Ernst, Federica Folco, León García,
Gonzalo Gómez, Horacio Mantero, Camila Pedreira, Tiago Rama e Diego Valiñas, pela
paciência ou pela impaciente paciência com a qual sobrelevaram minha presença
ausente;
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo
financiamento da pesquisa;
Ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG, por me conceder todas as
prorrogações possíveis, dentro do regulamento;
8
À Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de la Universidad de la
República, por me conceder o afastamento do cargo, necessário para me deslocar a Belo
Horizonte.
9
AGRADECIMENTO ESPECIAL
No ano 2001, concorri a uma vaga de Professor Ajudante de Estética para o Instituto
de Filosofía da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación da Universidad
de la República. Entre os temas para a prova escrita incluia-se uma análise do livro de
Pedro Figari — pintor e pensador uruguaio — Arte, estética, ideal. Durante a
preparação do tema, li no artigo Pedro Figari: pensamiento y pintura”1 de Juan Fló,
então Professor Titular da disciplina, o seguinte:
Para evitar certas simplificações, que tendem a ser
acriticamente aceitas, vem à tona lembrar que o surgimento de
uma consciência social clara da autonomia da arte não é uma
invenção da modernidade nem propriedade da burguesia. Não é
este o lugar para discutir a questão, mas considero suficiente,
para dar por resolvida a questão, lembrar a situação das obras
no mercado romano, tal e como está documentado em Plínio,
por quem sabemos da existência de colecionadores ou
“amateurs” dispostos a pagar preços muito altos por obras das
quais não importa nada mais a autoria.2
Eu estava, nessa época, estudando língua e literatura latina, e esse fragmento
funcionou como bússola tanto para a minha monografia do Seminário da área, como
para outros textos apresentados em eventos de Filologia clássica. Mas também, com o
tempo, devo reconhecer que tem-se convertido em um dos problemas filosóficos mais
importantes da minha atividade acadêmica.
Por esse motivo, e tantos outros, quero fazer um agradecimento especial a Juan Fló,
mestre e amigo que, seja por estimular minhas pesquisas, seja por compartilhar o seu
saber comigo e com todos, permitiu-me traçar uma tese ambiciosa e abrangente sem
1
Em: Claps, M. (ed.) (1995) Ensayos en homenaje al doctor Arturo Ardao. Montevideo: Departamento
de Publicaciones de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la
República, 98-130.
2
“Para no incurrir en ciertas simplificaciones, que tienden a ser admitidas algo acríticamente, no está
demás recordar que la aparición de una clara conciencia social de la autonomía del arte no es un invento
de la modernidad ni del dominio de la burguesía. No es el lugar para discutir esta cuestión, pero creo que
alcanza, para que la cuestión quede zanjada, con recordar la situación de las obras en el mercado romano,
tal como aparece documentada en Plinio, por quien sabemos de la existencia de coleccionistas o
“amateurs” dispuestos a pagar precios altísimos por obras en las que no importa otra cosa que la autoría.”
10
temor de perder o rigor, tanto na filosofia da arte, quanto na sua história e no valor
mesmo da prática artística.
Se, como parece ter falado Bernardo Des Chartres, somos anões nos ombros de
gigantes, eu, então, tenho o privilégio de enxergar essa disciplina desde os “ombros”
deste grande Professor e Filósofo. 3
3
Por óbvio, isto não faz ele responsável pelos erros nos quais possa ter sido capaz de desaproveitar esta
grande oportunidade.
11
RESUMO
Autonomia histórica e autonomia institucional: conceitos fundamentais
para compreender a arte como prática histórica e pós-histórica
Quando a arte, através de processos internos e externos, atingiu um estado de autonomia
como prática com saberes e fazeres próprios, começaram a surgir problemas sobre o seu
sentido e/ou justificativa. O mundo da arte tornou-se uma instituição especializada
dependente do mercado e/ou dos Estados que, exceto onde conflui com o
entretenimento, se estrutura autotélicamente. Assim, resta pouca margem para
questionamentos e para um grande número de receptores que não são interpelados pelo
produzido no âmbito da cultura lhes é tanto alheio como indiferente. Cada vez mais,
uma obra de arte é apresentada como uma comunicação em um Congresso, algo feito
por conhecedores para os conhecedores.
De outra parte, a filosofia e a teoria da arte têm considerado essa prática como alheia a
conhecedores, como algo que, muitas vezes, nem sequer pode ser considerado arte,
embora compartilhando técnicas e referências semelhantes às que fizeram possível a
autonomia da qual falamos. A arte heterônoma é, num sentido radical, uma arte que não
sabe que o é. Os saberes e fazeres em seu entorno eram outros, devido a eles foi
possível que surgisse a arte heterônoma.
Nossa tese defende que o conceito arte inclui a autonomia mesmo que seja num grau
mínimo, relacionado sempre com a heteronomia, e que essa relação permite
compreender o mesmo conceito arte como uma prática com história na sua relação com
as técnicas e a recepção. Compreender alguns dos bojos históricos e filosóficos dessa
relação, como sua articulação hegeliana para o que hoje chamamos “fim da arte” é um
passo prévio inevitável para compreender a autonomia institucional, essencial na
contemporaneidade e no fenômeno da pós-história.
Palavras-chaves: Autonomia institucional; heteronomia; historia da arte; fim da arte.
12
ABSTRACT
Historical and institutional autonomy:
fundamental concepts to understand art as an historical and posthistorical practice
When art, through internal and external processes, reached a state of autonomy as a
practice with its own knowledge and practices, a set of problems concerning its meaning
and/or justification emerged. The artworld became a specialized institution dependent
on the market and/or the government, which is structured autotelically, except when it
comes to entertainment. Thus, there only remains a narrow margin for anything that
questions art or for a large number of receivers who are not challenged by what is
produced as culture, which is either alien or indifferent to them. More and more, a work
of art is presented as a communication in a Conference, something done by one
specialist for other specialists.
On the other hand, philosophy and art theory have considered this practice as foreign to
connoisseurs, as something that often cannot even be considered art while sharing
techniques and references similar to those made possible the autonomy of which we
speak. Heteronomous art is, from a radical point of view, an art that would not know
that is such a thing in any way; the knowledge and practices surrounding it were
different and because of that was that heteronomous art itself was made possible.
Our thesis hold that the concept “art” includes autonomy even if it is in a minimal
degree always related with heteronomy, and that this relation allows us to understand
the concept “art” as a practice with its own history, given its relationship with the
techniques and the reception. Understand some of the historical and philosophical
landmarks of this relationship, as its articulation on what we call, nowadays, the
Hegelian theory of the “end of the art”, it’s a necessary previous step to understand the
"institutional autonomy", essential for contemporaneity and the post-historical or
phenomenon.
Keywords: institutional autonomy; heteronomy; art history; end of art.
13
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................................... 17
Capítulo 1: Autonomia da arte: um fenômeno exclusivamente moderno? .................... 23
.................................................................................................................................... 25
1.1. Um enigma escultórico ........................................................................................ 27
1.2. A elegia erótica.................................................................................................... 42
1.3. Alguns aportes finais ........................................................................................... 53
Capítulo 2. As coordenadas da autonomia para o discurso filosófico em Immanuel Kant
........................................................................................................................................ 56
2.1. O desinteresse ...................................................................................................... 56
2.2. A espontaneidade da arte .................................................................................... 70
2.3. Normatividade do gosto e autonomia.................................................................. 88
Capítulo 3: Os românticos alemães: a zona úmbria entre heteronomia e autonomia da
arte .................................................................................................................................. 94
3.1. Os direitos do artista na cidade das artes e a crise da ideia de mimese como
simples imitação ......................................................................................................... 96
3.2. O gênio criador ................................................................................................. 108
3.3. Obra de arte e símbolo ...................................................................................... 117
Capítulo 4. Fim da arte heterônoma e fim da arte ....................................................... 124
4.1. A autonomia da arte como resultado dialético diferenciado entre duas formas de
entender a relação entre natureza e liberdade......................................................... 125
4.2. O desenvolvimento dialético do Espírito na arte até o seu fim ......................... 138
4.2.1. A arte e o real.............................................................................................. 140
4.2.1.1. A arte como produto do espírito .......................................................... 141
4.2.1.2. Críticas hegelianas à mimese............................................................... 147
4.2.1.3. Observações finais ............................................................................... 152
4.2.2. A arte e o sensível....................................................................................... 152
4.2.2.1. A pintura e o realismo pictórico .......................................................... 161
4.2.2.2. Observaçoes finais ............................................................................... 175
14
4.2.3. Ilusão de realismo? ..................................................................................... 177
4.3. “A arte tem que ser poesia ou prosa?” ............................................................. 178
Conclusões .................................................................................................................... 186
Bibliografía ................................................................................................................... 192
15
“Se este peixe no dia do Juízo Final se levantar contra
você e disser que ganhou um corpo, mas não uma alma
viva, como você vai se justificar perante esta acusação?”
Turco de Abissínia ao explorador inglês James Bruce
16
Introdução
Non intret Cato theatrum meu, aut si intraverit, spectet.
Que não entre Catão [“O Censor”] ao meu teatro, porém
se chega a entrar, que assista.
Martial. Epigrama I 4
A arte é crítica? Como se faz arte crítica se a arte forma parte de uma instituição?
Pelo reconhecimento, valoração e inserção numa narrativa que unifique a arte autônoma
com a arte heterônoma? Pelo reconhecimento dos poderes que permitem que um objeto
seja arte e outro não? Pela própria arte? Voltando-se ao universo onde a arte heterônoma
era possível? É possível voltar pela mera vontade do artista a uma arte heterônoma?
Todas essas perguntas podem ser encontradas na literatura contemporânea sobre a
arte, mas também podem ser rastreadas até estágios mais ou menos precoces da
filosofia. Nossa tese fundamental será a de que a autonomia da arte consolidada no
início do século XX desembocou em uma institucionalização da prática artística, que
devora e neutraliza qualquer tentativa de viver a arte fora da distância estética e sua
consequente subjetividade idiossincrática, como pode-se propor tanto a arte engajada
como as formas contemporâneas de arte religiosa. Desse modo, a potencialidade crítica
perde sua relevância na exata medida em que a estetização oca e a originalidade vã se
tornam o único produto que a arte produz, expõe e armazena. Tudo isso, é claro, além
das intenções dos artistas, do público, dos financiadores ou diretamente num sistema de
mercado que forma parte deste processo de anulação, mas que não é o único que explica
sua falta de sentido vinculante da arte.
4
Todas as traduções do latim ao português são nossas.
17
A presente tese pretende mostrar que o processo prévio a tal autonomia
institucionalizada não é menor na hora de compreender nem a arte autônoma, nem as
consequências da sua autonomia. Defenderemos que o conceito arte — em todos os
tempos e formas prévias ao da autonomia institucionalizada — inclui uma noção de
autonomia, mesmo que seja num grau que está sempre relacionado à heteronomia, e que
essa relação nos permite compreender o conceito arte como uma prática com uma
história relacionada com as técnicas e recepção. Aliás, o título final desta tese deveria
ter sido “Autonomia e heteronomia da arte. Duas categorias fundamentalmente ligadas
para compreender a arte como prática histórica e pós-histórica”, na medida em que
pouco se consegue falar da autonomia institucional, por causa da ênfase no processo
histórico-filosófico que levou até ela.
Esperamos mostrar que tanto compreender alguns dos bojos históricos e filosóficos
desta relação entre autonomia e heteronomia, como sua especial articulação hegeliana
para o que hoje chamamos “fim da arte” é ainda mais importante do que reduzir a
longas discussões a pretensão de estabelecer um conceito preciso da autonomia,
geralmente associado hoje a algum tipo de definição da arte e, portanto, cada vez menos
caraterizável nas suas mutações históricas.
A autonomia da arte é geralmente pensada como um processo que se iniciou no
Renascimento e chegou ao seu apogeu e consolidação no início do século XX com as
vanguardas europeias.5 Esse processo envolve o afastamento da arte de outras funções,
especialmente religiosas, rituais, metafísicas; símbolos que configuraram as principais
formas de ver o mundo em várias épocas e culturas. Sendo assim, podemos dizer que a
arte heterônoma tem sido um fenômeno de valor duplo (interno e externo), com uma
significação tal que era capaz de interpelar a um público que não necessariamente se
5
Cf. BELTING, H.: 2006; 2009.
18
deliciava no valor artístico, mas que se reconhecia no valor extra-artístico e, destarte,
chegava a formar parte da sua subjetividade tanto individual como coletiva — o que
tornou sempre tão violento a destruição ou saqueio da arte de uma comunidade. A
forma mais radical é aquela que afirma que aquilo que entendemos por arte heterônoma
simplesmente não é arte. Esta arte sequer poderia ser considerada como tal, embora
compartilhe técnicas e referências semelhantes às que tornaram possível as obras
autônomas sobre as quais falamos hoje. A arte heterônoma é, num sentido radical, uma
arte que nunca soube que o era, e que os saberes e fazeres que tornaram possíveis tais
objetos se conectaram por uma curiosa perversidade da história, que de forma arbitrária
os colocou em museus aos quais não pertenciam. Tal concepção tem sido tão persuasiva
que, mesmo na chamada pós-história, é mister apelar a ela para compreender como os
objetos, que não foram produzidos para serem apresentados ao mundo da arte,6
formam hoje parte da história da prática.7
Ao desconsiderar as visões radicais tanto da autonomia como da heteronomia,
procuraremos dar conta dos aspectos fundamentais do processo que os vincula em
termos de graus em quatro capítulos.
No primeiro, apresentaremos a relação produção-técnica-recepção que encontramos
própria da Antiguidade, a qual tenta deslocar o olhar a respeito da tradição pré-moderna
sobre a autonomia da arte, mostrando que nem toda a história da arte pode se reduzir a
uma fase heterônoma e a uma fase autônoma nem do escopo extraestético, nem do
escopo intraestético. Destarte, procuraremos mostrar como os conceitos de autonomia e
heteronomia poderiam ser aplicados em conjunto e de forma frutífera para história da
arte.
6
Ou seja, para cumprir o requisito fundamental da definição de arte conforme G. Dickie e, ao que se pode
deduzir, foi reconhecido também por Arthur Danto no artigo “O mundo da arte”.
7
Algumas considerações a este respeito serão fornecidas nas conclusões.
19
Em segundo lugar, e para dar início à história da consolidação filosófica que
acompanhou o percurso de autonomização da arte, pretendemos analisar o lugar da
autonomia do gosto através da perspectiva de Immanuel Kant em sua conhecida Crítica
da Faculdade do Juízo — autor de fundamental importância para a legitimação
contemporânea da arte, referente e precursor de várias linhas de interpretação das artes e
dos fenômenos estéticos em geral.
Ao se compreender a autonomia da arte, num sentido muito geral, como o fenômeno
pelo qual esta prática adquire legitimação social com fins próprios, tradicionalmente
datado no percurso dos séculos XVII e XVIII, podemos situar a perspectiva de
Immanuel Kant em uma fase de transição de uma arte antes concebida como meio ao
serviço de outras funções para uma arte feita para si mesma, ou a arte pela arte como
costuma aparecer na literatura corrente sobre o tema. Porém, a presente tese sustenta
que o filósofo de Königsberg é importante não somente por fazer parte deste processo,
nem por ter sido muito apreciado por aqueles que continuaram com ele — o que já não
é pouco. Consideramos que Kant estabeleceu as coordenadas do debate em torno da
autonomia da arte e que essas coordenadas ou pontos fundamentais da forma de ver o
problema ainda interpelam a todos aqueles que pretendem trabalhar com a questão.
Nossa estratégia será a de considerar tais coordenadas em três instâncias: a do
desinteresse, a da relação arte/natureza, e a do espaço da autonomia da arte enquanto
uma esfera específica além da definição do que a própria arte seja.
No capítulo 3, faremos um percurso pelas mutações do gosto entre os românticos, a
rejeição do valor normativo do gosto, a ideia de genialidade e uma nova concepção da
importância da arte servirão para esclarecer o novo lugar que a crítica passa a ter no
século XIX. Esse lugar terá ressonâncias fundamentais na consolidação do artista como
máxima autoridade em matéria de arte, obrigatórias para compreender a consolidação de
20
sua autonomia e a subordinação da crítica a ela. A teoria da arte como um todo orgânico
e da arte como símbolo darão aos artistas a oportunidade de desenvolver novas
narrativas em torno de suas práticas, e mais adiante no tempo, fornecerão também um
programa ao qual os artistas da Vanguarda opor-se-ão, tanto no que diz respeito à forma
programática como à criativa.
Finalmente, no caso de G. W. F. Hegel, a heterenomia e a autonomia irão percorrer
um caminho conjunto, onde a primazia da importância do conteúdo levará Hegel a
pronunciar-se em favor de uma arte como superior e a considerar, no desenvolvimento
da arte como forma do Espírito, que ela tinha se esgotado por ter chegado a um estágio
de autonomia muito peculiar.
Neste capítulo, pretendemos mostrar, em primeiro lugar, que o desenvolvimento
dialético da história da arte não necessariamente leva ao fim da mesma, colocando C. F.
Schiller como oposto antagônico de Hegel, na medida em que sua concepção da
história como um sem fim, e da humanidade como uma infinita tarefa criativa estéticomoral, faziam da arte algo que viveria tanto quanto a própria humanidade. Schiller
tentou mostrar que a arte não poderia se afastar do cotidiano da vida, sendo parte
essencial da formação desta, no sentindo de que, mesmo aceitando a nova ética não
tradicional, pretendia manter uma forma essencial de nos relacionar aos valores.
Hegel desenvolveu a oposição heteronomia-Ideal e a autonomia-predomínio da
Forma, que o levou a acabar com a espiritualidade da arte, na medida em que a mesma
foi-se desenvolvendo em uma forma mais aprimorada do ponto de vista técnico,
entendendo do lado da técnica as possibilidades de verossimilhança e variedade
(originalidade do artista). Assim, o filósofo de Stuttgard revaloriza a arte heterônoma
desde a sua metafísica, um lugar privilegiado, onde é parte do caminho do Espírito
Absoluto, porém, quase profeticamente, adianta que a arte vai perder esse aspecto
21
formador fundamental da subjetividade e espiritualidade — entendida como triunfo da
verdade, do bem e da Razão —, na medida em que seu vínculo com o Absoluto e com a
Razão vai se perder no universo do ponto de vista e no da experiência subjetiva
individual. Apesar de seguir existindo, ela não figurará mais como aquilo que vincula a
comunidade, senão como um produto residual da consciência subjetiva que compartilha
com outras subjetividades sem outro propósito do que o de mostrar um ponto de vista
que não almeja um mínimo de intersubjetividade.
22
Capítulo 1: Autonomia da arte: um fenômeno exclusivamente moderno?
Conforme já foi assinalado na Introdução, geralmente se considera o processo de
autonomia da arte como algo especificamente moderno, que germinou no
Renascimento. Certamente temos bons motivos para acreditar que, efetivamente, é na
modernidade que a autonomia da arte se instala como forma definitiva — e talvez única
— de produção, circulação e recepção das obras de arte. No entanto, a falta de uma
palavra específica para a arte na Grécia ou de um marco definido de tudo o que mais
tarde passou a ser conhecido como Belas Artes, não deve, necessariamente, levar-nos a
considerar que todas as artes da época eram produzidas com outros fins, e não com o
desejo de produzir arte e fomentar a contemplação e a compreensão das obras para além
da sua mensagem ou sem hesitar em trocar uma por outra na medida em que o fim fosse
cumprido. A dimensão especificamente artística parece ter sido uma variável importante
da produção grega e romana, mesmo sem que ela tenha se estabelecido com uma
instituição do tipo que temos hoje: as pessoas produziam, vendiam e compravam arte.
Não por isso deixou de existir uma arte religiosa, política, ritualística em sentido amplo.
Porém, a artisticidade da arte foi credenciada como uma variável não menor das obras
em circulação e das preocupações que podiam explorar sem a premência de um líder
que não se importasse com os desenvolvimentos da sua prática, da prática dos artistas.
O fato de ser figurativa, ou de tentar se aproximar da realidade perceptível, não faz a
arte heterônoma, na medida em que tal alvo seja encaminhado na experimentação e na
prática das técnicas próprias das obras. Da mesma forma, os cantos e danças nem
sempre tiveram uma forma espontânea ritual ou uma censura restritiva que
“engaiolasse” a obra no estado de outra coisa além de — em segredo — arte.
Ainda que não nos seja possível, nesta tese, investigar a autonomia da arte na
Grécia, indicaremos sua existência através de alguns exemplos, como a enorme
23
produção, aliás, supranumerária em relação aos fins cultuais, de esculturas e pinturas,
assim como a popularidade dos espetáculos de teatro e concursos de interpretação, que
tinham um público de conhecedores e outro que, pelo menos, achava gratificante
participar do acontecimento. O comércio das obras de arte, mesmo não fazendo do
modo de produção da época um assemelhado do nosso, mostra que o produto obra de
arte seguia um padrão diferenciado de outros produtos tanto do artesanato como do
culto.
De outra parte, no que tem a ver com as técnicas, podem ser encontradas múltiplas
formas de representação que apontam para uma liberdade do artista, certamente
impensável em relação às artes heterônomas e mais ainda em relação àquela
heteronomia que se satisfaz com o mínimo necessário para a sua função. Sem pretender
fazer considerações sobre o progresso ou não da arte, desnecessárias para a nossa
questão, podemos considerar — apresentando três fotos de pinturas como referência —
o retrocesso do contorno na pintura e a
consequente importância da tinta e o
traço ou, o que é a mesma coisa, a
capacidade
de
representar
menos
centrada nos esquemas de representação
rígidos ou canônicos, como ocorre com
o impressionismo no século XIX.
Moça colhendo flores.
Pintura em muro de Stabie. Século 1
a.C.
24
No caso da jovem que segura uma flor, podemos também estabelecer uma conexão
com outro aspecto que foi importante para a posterior institucionalização da autonomia,
a saber, a pintura que trata temas banais, como acontecera com o rococó.8
O balanço. Jean Jonore Fragonard.
Óleo em tela. 1767
La Japonaise (or Camille Monet in Japanese
Costume). Claude Monet. Óleo em tela. 1876
Finalmente, para fornecer um exemplo filosófico, citemos a República de Platão
para mostrar que, mesmo para seu clássico opositor, a ideia da arte como prática
específica, e valiosa, formava parte do imaginário da época.
Com respeito às artes imitativas da pintura e da poesia, Platão considera, no Livro X
da República, que elas se afastam duas vezes da verdade: da ideia e do uso e/ou
produção. Essas artes reduziam-se ao ponto de vista e, destarte, careciam de valor de
8
Ambas as considerações podem auxiliar ou ser auxiliadas pelas teses de Ernst Gombrich em Arte e
Ilusão, sem coincidir ou se derivar das premissas deste historiador e teórico das artes. GOMBRICH, E.
2007, especialmente pp. 99-125.
25
verdade, ao mesmo tempo em que abundavam em falsidade e capacidade de sedução.
Por isso deveriam ser banidas da cidade ideal:
Podemos, pois, com justiça censurá-lo e considerá-lo como o
par do pintor; assemelha-se-lhe, por produzir ainda, por
produzir apenas obras sem valor do ponto de vista de verdade, e
assemelha-se-lhe ainda, por ter comércio com o elemento
inferior da alma, e não com o melhor. Assim, eis-nos bem
fundamentados para não recebê-lo em um Estado que deve ser
regido por leis sábias [...]9
Surpreende, então, encontrar trechos como o do Livro V do mesmo diálogo, onde,
mesmo sem refletir sobre a pintura, utiliza o pintor como um análogo do filósofo
pintando com beleza um homem exemplar — o filósofo elabora modelos de cidades
conformes à ideia de justiça, mesmo que não seja possível saber se existem o homem
belo do pintor, ou a cidade justa do filósofo:
[Sócrates] — Ora pois, pensas que a habilidade de um pintor
fica diminuída se, depois de pintar o mais belo modelo de
homem que seja capaz e infundir à sua pintura todos os traços
convenientes, é incapaz de demonstrar que tal homem possa
existir?
[Glauco] — Não, por Zeus, não o penso.
[Sócrates] — Mas o que fizemos nós mesmos neste colóquio,
senão traçar o modelo de uma boa cidade?10
No “descuido” vemos, portanto, que não era tão evidente a doutrina da falsidade da
obra do artista, nem tão desprezável seu labor.11
Neste capítulo, mais por uma deficiência e uma proficiência nossa — um
conhecimento do grego muito elementar e um bom conhecimento do latim —
tentaremos mostrar como o universo das artes tinha uma constelação específica, que
9
PLATÃO: 1965, 235/605 a-e.
Ibidem, 44/472c-473b.
11
Para uma boa seleção de fragmentos de Platão sobre as artes e a beleza, consistentes ou não, ver
TATARKIEWICZ, W. (1987). Confrontar estes fragmentos e outros possíveis não foi uma ideia nossa,
foi aprendida como uma leitura “de prache” nas aulas de Estética da Facultad de Humanidades y Ciencias
de la Educación da UDELAR, ministradas pelo Professor Juan Fló, a Professora Inés Moreno e o restante
dos professores que ditaram o curso.
10
26
obriga a considerar sua autonomia como variável central para a compreensão das
próprias obras. Assim sendo, longe do anacronismo, sugerimos que uma compreensão
da autonomia de um conjunto de práticas vai além da existência de uma palavra e uma
definição por extensão, e precisa de uma análise de textos e objetos. Tekné e ars, sem
dúvida incluíam práticas muito diversas. Porém, ao referir-se ao que hoje se chama
“arte”, não se pode ignorar o conceito de autonomia, inevitavelmente vago pela falta de
uso específico, mas fundamental para a compreensão das obras e comportamentos da
época.12
1.1. Um enigma escultórico
A especificidade da arte romana foi alvo de controvérsia em mais de uma
oportunidade. Dado o consenso do reconhecimento da nudez — com a sua respectiva
idealização — como algo propriamente grego e do retrato realista — atento ao detalhe e
à fidelidade no que diz respeito ao retratado — algo propriamente romano, pode-se
apresentar como controversa a interpretação da hibridação entre “corpos gregos” e
“cabeças romanas”, que pode ser datada a partir de meados do século II a.C. ao já
avançado Império.
Como composições nos resultam bastante esquisitas e alheias a qualquer tradição de
representação do tempo em que foram criadas, poderíamos supor que suscitariam a
inveja de qualquer artista contemporâneo. Uma das mais antigas, encontrada em Delos
— possivelmente datada do período anterior ao ano 69 a.C. — mostra:
[Um] corpo nu, atlético, de formas robustas; a sua arrogância e
porte heroico são notas de ascendência puramente grega. No
entanto, a cabeça que coroa este esbelto nu de semideus é a de
12
Outro exemplo da necessidade de introduzir a noção de autonomia no reconhecimento do valor artístico
de uma obra pode ser encontrado na recepção da arte pré-colombiana pelos conquistadores. Sobre alguns
objetos que se salvaram de ser destruídos, como os ídolos, ou conforme a prática comum, fundidos para
capitalizar o material, podemos encontrar trechos nos textos de Dürer exaltando o domínio da técnica e a
artisticidade dos objetos da nova terra, formas certamente alheias a qualquer estereótipo de beleza
conhecida na época. Sobre a recepção da arte pré-colombiana ver FLÓ, J.: 2002b.
27
um simples mortal. Imagem fidedigna de um itálico retratado “à
romana” com todos os traços faciais bem individualizados, sem
faltar duas orelhas enormes em leque. É o mesmo caso que
vemos na estátua de Chieti, que depois vai aparecer também no
militar anônimo de Tívoli [...] (García y Bellido, A.: 1990, 934)
Outro exemplo que provocou um grande pavor
entre os historiadores mais clássicos é o de uma
mulher de idade avançada representada como
Vênus, já na época de Adriano. Figuras de mais
renome podem ser encontradas nos retratos de
imperadores sobre corpos de Ares, Júpiter ou
Poseidon, ou na adaptação, certamente mais sutil,
do retrato de um orador romano ainda sem
identificação,
com
um
Hermes,
feita
por
Kleómenes. 13
Essas obras têm sido consideradas marginais
do ponto de vista da história da arte, tanto pelo
seu escasso valor original — trata-se, na maior
parte delas, de cópias de obras clássicas gregas feitas com um critério quase industrial
— quanto pelo seu escasso valor compositivo, tomando como referência um grupo de
obras canônicas, dentro das margens utilizadas para avaliá-las tanto pelos modernos
como por seus próprios contemporâneos.
Face aos estudos sociais da história e da arte, surge uma nova atitude que pergunta a
essas obras pelas formas de autorepresentação e sobre seu significado no marco geral
tanto do acontecer político e social como no das crenças sobre os fins e efeitos da
representação pictórica e/ou escultórica. Assim sendo, vamos problematizar algumas
das possíveis interpretações dessas esculturas, relacionando o significado da nudez —
13
GARCÍA y BELLIDO, A.: 1990, 96-7 e 317.
28
sendo que a tradição romana nem sempre mostrou uma relação infensa a problemas no
que diz respeito à exposição do corpo14—, com a situação geral das artes no período. A
exposição do corpo, a nudez referida tem sido um elemento pouco considerado para
essas obras tanto do escopo “internalista”, que o despreza, como do “externalista” que
se tem ancorado a uma interpretação que defende a total heteronomia da arte que
apresenta anomalias para dar conta da arte desse período.
Atentos às críticas de autores destacados, como Paul Zanker, a história internalista
da arte, aquela que mostra um “desinteresse pelo lugar histórico concreto que ocupam as
obras artísticas”,15 tentaremos mostrar como, igualmente, considerar que os romanos
valoravam a arte como uma prática autônoma pode esclarecer muitas das relações da
arte com outras áreas da experiência, e mesmo ajudar a compreender melhor as formas
da arte que se encontravam efetivamente a serviço de fins políticos, religiosos ou de
outro tipo (ou seja, sua heteronomia).
As fontes disponíveis representam os setores econômico e social melhor
estabelecidos — embora não necessariamente mais cultos —, motivo pelo qual não
podemos estender estas considerações a todos os romanos empíricos, mas sim a uma
14
15
Para uma posição contrária, ver RAMPINI, M.: 1995.
ZANKER, P.: 1992, 14.
29
forma de interpretar a arte fundamental para a hermenêutica do período, pela sua
capacidade de debilitar outras interpretações e favorecer a polissemia na procura de —
nas palavras de Ovídio — o magis utile daquilo que nil utilitatis habent.16
Mesmo assim, parece contraditório escolher para valorar uma possível percepção da
arte como uma esfera autônoma estes retratos-estátua, cujo fim é, evidentemente,
alcançar uma imagem do retratado que lhe seja satisfatória e não demonstrar a maestria
do artista ou uma novidade importante dentro do terreno das artes. Aquilo que resulta de
fundamental interesse é o fato de que não se trata de originais, mas de cópias gregas ou
de reproduções de modelos consagrados pelos quais podem se identificar os grandes
artistas da antiguidade, que eram principalmente gregos.
A indústria da cópia grega floresceu em Roma desde a helenização inicial da capital
latina e eram adquiridas por particulares como ornamento das suas casas e dos seus
retratos.17 Esse mercado da cópia fornece dois elementos fundamentais: de um lado, a
afeição a tipos de obras ou estilos — fáceis de vincular à fama de alguns artistas, como
já foi assinalado, por parte dos consumidores, e, por outro lado, a degradação da aura
religiosa que as representações de deuses, heróis míticos e reis tinham em função do
sucesso do anterior. Todavia, aquilo que produziu o florescer das cópias poderia ser
uma difusão intensa de algumas crenças não artísticas, motivo pelo qual não temos outra
escolha a não ser continuar nos perguntando qual tipo de relacionamento se estabeleceu
com as cópias através das obras aqui estudadas e o que se pode concluir em
consequência da situação da arte em geral.
16
Magis utile nil est artibus his, quae nil utilitatis habent. (Não existe nada mais útil que aquelas artes
que não têm utilidade nenhuma.) Ov. Pont. I, IV, 53.
17
Sobre a enorme importância das oficinas neoáticas e a produção de cópias ver GARCÍA y BELLIDO,
A. op. cit. 113-133.
30
Uma das fontes latinas de referência é a Historia Naturalis de Plínio, o Velho.
Infelizmente, somente encontramos uma referência especifica a essas obras. Nela, as
obras são consideradas uma degradação da arte. Eis suas palavras:
A pintura de retratos, utilizada para que as imagens mais fiéis se
perpetuem através dos anos, tem-se extinguido completamente.
Agora se expõem escudos de cobre com retratos de prata, com
obscuras linhas divisórias entre as figuras dos homens; as
cabeças das estátuas são trocadas trocam, tendo-se divulgado
faz tempo algumas epígrafes sobre o assunto. Destarte, todos
preferem a contemplação do mero material que a semelhança
reconhecível nelas. Até enchem as suas pinacotecas com
pinturas antigas e veneram retratos de estrangeiros, achando que
a honra está só no preço, para que ao final, o herdeiro as destrua
e as jogue fora com um laço. Assim sendo, não existindo
imagem viva de ninguém, deixam por trás a imagem do seu
dinheiro e não a sua própria. 18
O que se pode notar na citação de Plínio é como certos modelos de escultura foram
extraídos dos seus contextos originais como signos de prestígio, prestígio este que
parece se limitar aos altos preços pagos na hora, e, sobretudo, dos materiais utilizados.
A pergunta será, então, se efetivamente o único valor dessas estátuas era o material —
que para alguns herdeiros claramente era sim —, ou se, na vontade de erigir uma
estátua, pode ter influído alguma coisa a mais.
Podemos considerar alguns indicadores do princípio de valoração das artes pela
qualidade do trabalho dos artistas na República tardia e no percurso do Império. Bons
exemplos desta valorização serão, sem dúvida, a grande quantidade de anedotas que
Plínio reúne no livro já citado, e também como resultam ser cobiçadas as obras desses
artistas na época. O autor lamentará, no livro XXXIV que pelo alto valor do trabalho do
artista tenha-se perdido o valor dos metais com os quais a obra era realizada:
18
Imaginum quidem pictura, qua maxime similes in aevum propagabantur figurae, in totum exolevit.
Aerei ponuntur clipei argêntea facie, surdo figurarum discrimine; statuarum capita permutantur, volgatis
iam pridem salibus etiam carminum. Adeo materiam conspici malunt omnes quam se nosci, et inter haec
pinacothecas veteribus tabullis consuunt alienasque effigies colunt, ipsi honorem non nisi in pretio
ducentes, ut fragan heres forasque detrahat laqueo. Itaque nullius effigie vivente imagines pecuniae, non
suas, relinquunt. Plin. Nat. XXXV, 2, 4-5.
31
Antigamente o cobre fundia-se numa mistura de ouro e prata, e
como a arte nunca era mais custosa que o material utilizado,
surpreendentemente, quando os custos das obras se elevou
infinitamente, a autoridade da arte extinguiu-se. A causa disso,
como a de tudo, está em que aquilo que agora se faz somente
faz-se pelo afã de lucro, antes costumava-se fazer por amor à
glória — e, portanto, costumava-se atribuir o trabalho aos
deuses, e os líderes das pessoas procuravam a celebridade por
esse caminho. 19
Plínio não deixa de mostrar um interesse moral a respeito da arte20, manifestado em
mais de uma oportunidade nas suas sententiae contra o luxo, os custos aos quais as
obras chegavam, o desligamento das mesmas dos fins religiosos e sociais que estiveram
na origem das obras e do privatus usus delas.21 Não se hesita em colocar estes
fenômenos como causas da decadência da arte do seu tempo, sintomático da mudança
na valoração das artes a partir da época imperial e, sobretudo, na tendência à associação
tanto do sucesso como do fracasso das mesmas com as suas faces não artísticas.22
Certamente foi na República onde surgiram os grandes colecionistas romanos,
período em que também o Estado virou colecionador. Estes excelentes consumidores de
arte eram conhecidos pelo nome de filokaloi23 ou “adoradores do belo”, e podemos
encontrar entre eles Cícero24 que, além disso, vai mostrar posição ambivalente entre a
arte útil e aquela meramente bela, o próprio César25 e sem deixar de lado Verres — que
dedicou sua vida a roubar tudo aquilo que ad oculos animunque acciderit, sem se
19
Quondam aes confusum auto argentoque miscebatur, et tamen ars pretiosior erat; nunc incertum est,
peior haec sit an materia, mirumque, cum ad infinitum operum pretia creverit, actoritas artis extinta est.
Quaestus enim causa, ut omnia, exerceri coepta est quae gloriae solebat — ideo etiam deorum adscripta
operi, cum proceres gentium claritatem et hac via quaerent [...] Plin. Nat. XXXV, 3, 5.
20
Entenda-se “arte” num sentido abrangente, envolvendo ourivesaria e outros artigos que no contexto de
Plínio eram avaliados junto às obras de arte que depois a história considerou como artes maiores, sem por
isso deixar a esses ofícios um lugar especial entre os eles.
21
LE BONNIEC, H.: 1983, 97.
22
A heteronomia era considerada a grande causa do sucesso da arte, enquanto a arte pela arte, ou a arte
como ornamento, era uma das causas do seu fracasso. Cf. TATARKIEWICZ, W.: 1987
23
GARCÍA y BELLIDO, A. op. cit., 44-46 oferece documentação que inclui muitas das fontes da obra de
Plínio aqui considerada como fundamental.
24
Cic. Att. I, 8.
25
Suet. Ces. XLVII.
32
importar minimamente com o que não fosse propriedade Siculum ou civem Romanum,
porém também não com o fato de que fossem obras profani ou sacri.26 Já no primeiro
período do Império, um nome nada menor da febre do bom gosto vai ser o do próprio
Augusto.27
A maior parte dos textos fazem alusão às signa — acepção latina para o genérico
estátua, e às statua, acepção latina para aquela espécie de signa de deuses e seres
humanos — como a circular de acordo com o gosto dos compradores, geralmente se
associando ao “bom gosto” com a da arte grega. Como indica Plínio, começou-se
também a comprar veteribus tabullis e effigies alienas. Na época de Plínio, chegou-se a
oferecer sacrifícios a essas estátuas: neste caso seria digno de se estudar como um
conjunto de obras que, num primeiro momento, tinham sido feitas como oferendas
votivas, mas passaram a ser as destinatárias de tais oferendas.28
Contudo, provavelmente o mais valioso desde o ponto de vista da valoração do
trabalho dos artistas não esteja no terreno do retrato, que consideramos incerto quanto
aos seus fins desde o início, porém num comentário de Plínio — que não se pode
considerar um caso escandalosamente isolado — sobre o valor dos trabalhos não
acabados.
Algo verdadeiramente esquisito e digno de lembrar é aquela
última obra dos artistas e as pinturas sem acabar [...] sendo mais
admiradas ainda que aquelas acabadas, porque nelas podem- -se
achar os traços restantes tanto quanto os próprios pensamentos
dos artistas, e na afetação do estilo, pode-se valorar a dor das
suas mãos que, enquanto as faziam, morreram.29
26
Ver, por exemplo, em Cic. Verr. II, 2-4. Trata-se de uma boa referência para conferir o enorme valor
das obras de arte que ad caelum ferunt em relação ao prestígio dos artistas, do seu nomina artificum.
27
Cf. GARCÍA y BELLIDO, A. op. cit., 213.
28
Plin. Nat. XXXV, 145.
29
Illud vero perquam rarum ac memoria dignum est suprema opera artificiam imperfectasque tabulas ...
in maiore admiratione esse quam perfecta, quippe in iis liniamenta relíquia ipsaeque cogitationes
artificum spectantur atque in lenociniis commendationis dolor est manus, cum id ageret, exstinctae. Plin.
Nat. XXXV, 2.
33
Não seria essa a primeira vez que o historiador natural mostrara ambiguidades nas
suas considerações: tudo parece indicar que convivem nele tanto a convicção de que a
arte que tem um uso público e alheio à ostentação é aquela arte que deve ser produzida,
porém também a tradição de erudição artística e valoração das artes resgata aspectos
que, mais que outra coisa, são ligadas à obra pelo seu valor artístico.
Evidentemente, o valor das artes era muito grande e os efeitos do fenômeno eram
observados com preocupação por muitos dos principais atores da história de Roma. É
claro que isso não responde por aquelas motivações que puderam ter aqueles que viram
nos retratos-estátua, nos statuarum capita permutantur, uma coisa que merece ser
exibida e, chegado o caso, alguma coisa com a unidade compositiva que Plínio se lhes
nega a reconhecer, sugerindo que não o tinham. As histórias modernas, aquelas que
chamamos de “internalistas”, costumam oferecer uma versão muito semelhante à de
Plínio, considerando a tradição romana do retrato como simplesmente oposta à tradição
grega, e fazendo do corpo um simples suporte.30
Caberia então perguntar quais razões puderam levar os romanos a realizar uma coisa
tão absolutamente supérflua. Não podiam eles simplesmente comprar um pedestal num
material qualquer e com isso dar por feita a obra?
Evidentemente podiam, porém não o quiseram fazer. Além do que possam
considerar Plínio e os críticos modernos, os corpos com figuras conhecidas e
reconhecíveis (Vênus, Júpiter, etc.) ou as cópias de modelos consagrados não são um
simples suporte, nem valiam — pelo menos para aquele que era retratado — somente
pelo material utilizado.
A pergunta seria, então, se estava em questão alguma coisa mais que uma
estetização dos retratos e/ou se estes corpos tinham algum valor simbólico ou foram
30
Cf. GARCIA y BELLIDO, A. op. cit., 96-7.
34
associados a algum poder real, que pudesse ter fugido à interpretação do Naturalista e
dos críticos.
É aqui onde a nudez ocupa um espaço especial. Na medida em que não formava
parte da forma comum de representação romana, é mister se perguntar qual era o seu
sentido neste tipo de retrato. Na medida em que seja possível desligar o sentido da
nudez de algum tipo de mensagem, se poderá compreender o tipo de necessidades e/ou
expectativas a que estas cópias satisfaziam.
Nesta disputa intervém Paul Zanker, em seu livro Augusto e o poder das imagens,31
ao colocar esses “fenômenos” escultóricos como a expressão de um conflito de valores.
O autor reforça a sua posição com textos latinos onde encontramos expressões do
desgosto que os romanos sentiam ante a nudez e os costumes gregos, condenando
ambos tanto pela impudicícia como pelo efeito negativo que tiveram as estátuas gregas
para alguns célebres romanos como Catão, o Censor. As referências a Catão são
fundamentais se for levado em conta que era um modelo de moral em quase toda
disputa de índole.32
Contudo, o eixo deste livro é a arte imperial na época de Augusto. Sua tese principal
postula a existência de uma luta simbólica desenvolvida no terreno da arte que, com o
sucesso de Augusto, resolverá o conflito de valores próprio do período imediatamente
anterior. Augusto teria “re-signado”
33
a romanidade apropriando-se das imagens
arcaicas de diferentes origens e das clássicas gregas para o seu próprio programa de
valores, purgando aqueles aspectos problemáticos das mesmas (entre eles, a nudez e a
sensualidade).
31
Do qual só possuímos a edição em castelhano já citada.
A exemplaridade de Catão pode-se encontrar em autores como Plutarco ou Tito Lívio.
33
Jogamos com a palavra latina para indicar que Augusto teria trocado os velhos signos (e signae) por
novos.
32
35
Importa destacar, neste autor, um forte engajamento com a concepção de que a arte
romana era heterônoma. Ao supor que a nudez das esculturas são o resultado de um
processo de turbulências durante a República, Zanker pretende defender que a
introdução de símbolos gregos no ambiente romano resultou em uma disputa de valores
morais, na qual os defensores da tradição romana confrontavam-se com aqueles que
encontravam nas figuras gregas símbolos congruentes com uma moral contrária ao
decoro.34
O programa de confrontações que sugere Zanker supõe que a nudez honorífica foi
um elemento dissolvente, que combinou a imoralidade do nu com a potenciação das
rivalidades de Generais que se apresentavam como semideuses e diferentes do resto dos
romanos. Assim sendo, se chocava com a mentalidade da época e a nova linguagem de
Augusto foi aquela que “consertou” a falha. A confrontação viria a ser, então, entre a
nudez honorífica e a toga honorífica, traduzindo-se na oposição entre valores gregosnegativos e valores romanos-positivos. Conforme Zanker, o enaltecimento das
qualidades sobre-humanas das estátuas gregas que apresentavam o indivíduo com as
qualidades de um deus ou um herói era alheia à tradição romana, na qual a figura togada
era representante da sobriedade e da igualdade entre os cidadãos. A honra estava no fato
de ter uma estátua, na representação do indivíduo como primus inter pares, e não como
excepcional. 35
Em o artigo “The ‘problem’ with nude honorific statuary and portraits in late
Republican and Augustan Rome”, Tom Stevenson tentará refutar as teses expostas,
sustentando que, mesmo que a tentativa de associar a arte a valores morais seja
interessante (i.e. a heternomia), não seria correta a forma em que Zanker a aplica nestes
casos. Apostando na prudência, Stevenson trata de provar que não estamos diante de
34
35
ZANKER, P.: 1992, 19.
Ibidem, 23.
36
contradições, mas de ambivalências tanto de estilo como de ideias. Isto supõe uma
menor força da heteronomia da arte, enquanto entidade subscrita a valores e
interpretações múltiplas:
Particularmente, vai se argumentar, em primeiro lugar, que a
própria forma da arte não seria compreensível se tivesse
existido uma grande confrontação com os estilos gregos como
as generalizações das fontes literárias pareceriam implicar; em
segundo lugar, que a nudez parcial ou total das estátuas-retrato
de um nobre ou de um imperador vivo não era problemática em
Roma como se costuma acreditar; e terceiro, consequentemente
com o anterior, que a visão de Zanker no que diz respeito ao
conflito moral no estilo das estátuas e retratos da República
tardia, e a respeito da resolução do suposto “conflito” sob o
Império de Augusto, deve ser modificada substantivamente.36
A tese de Stevenson vai-se afirmar em toda uma série de literatura crítica gerada a
partir do livro de Zanker. Naquela vai começar a ganhar valor a ideia de uma
ambiguidade de sentido na arte augustana que, quando muito, haveria de ser pensada à
luz de uma linha de interpretação dominante, paralela a uma série de linhas de
interpretação alternativas. Essa possibilidade estabelecer-se-ia em um patamar já situado
por Zanker e ligado a um “espontaneismo”, contraposto a uma determinação pura e
simplesmente ideológica. A ambiguidade deslocaria, então, a contradição, e a resolução
do conflito vai ser deslocada pela ideia de um aproveitamento da tal ambiguidade por
parte de Augusto.
O que significa ambiguidade neste contexto? Embora Stevenson não o esclareça
expressamente, trata-se da mistura de duas tradições de representação de valores: de
uma parte, a tradição grega da nudez honorífica e associada ao valor heroico, de outra, a
tradição romana do retrato que, no seu entender, longe de ser realista, é a expressão dos
36
“[I]t will be argued, firstly, that the form of the art does not really make sense if there was as much
conflict with Greek ideas and styles as generalizations from the literary sources might imply; secondly,
that a nude or partially nude portrait statue of a living noble or emperor was not as problematic at Rome
as is commonly believed; and thirdly, as a consequence, that Zanker's views about moral conflict in the
style of Late Republican statues and portraits, and about the stylistic resolution of this 'conflict' under
Augustus, should be substantially modified.” STEVENSON, T.: 1998, 45.
37
valores associados à autoridade do indivíduo e da velhice.37 Assim sendo, a mistura de
tradições viria a ser potencialmente conflitiva na prática, porém não sempre. A ideia de
decadência de um modo de representação seria uma extensão sem fundamento da
decadência da religião e do prolongamento do expresso nas fontes literárias a respeito
da nudez dos homens vivos em todas as áreas da experiência.
Destarte, Stevenson vai defender a diferença entre a nudez de um homem vivo e a
nudez de uma estátua. As referências a Catão, o Censor, têm a ver tanto com a nudez
dos homens vivos como com a decadência das imagens tradicionais dos deuses. No
entanto, essas críticas não aparecem juntas em nenhuma parte. Além disso, coloca
Stevenson, a verdade é que os romanos já deveriam estar suficientemente acostumados
com a nudez, após a enorme quantidade de obras gregas que chegaram a Roma como
despojos de guerra.38
Quanto à resolução estilística de Augusto, afirma-se que não foi resolução
nenhuma, e que a ambiguidade e polissemia se mantiveram durante a arte do Império
todo, incluindo a sequência dos modelos discordantes da República tardia. Isso o levará
a reconsiderar um aspecto essencial do argumento de Zanker: a internalização das
imagens augustanas conformando o imaginário da nova romanidade. Para isso,
Stevenson vai apelar para a história do Império posterior a Augusto, a fim de mostrar
que a luxuria e a adulatio Graeca não somente não vão ser deixadas de lado, mas
atingir níveis altamente grotescos.39
Como conclusão geral, Stevenson afirma que “não houve o tipo de conflito moral e
de tensão estilística na arte das estátuas de nús honoríficos e no retrato da República
37
Ibidem, 47.
Ibidem, 48.
39
Ibidem, 65-7. Exemplos clássicos são as obras de Petrônio e Juvenal e, nem que se fale, os famosos
gostos de Nero.
38
38
tardia que Zanker viu porque o processo de helenização operou de uma forma muito
diferente da como ele a concebeu. ”40
Certamente a bibliografia indica que a nudez não foi banida da arte romana no
Império. Mesmo assim, Zanker é muito claro a respeito de como, no período de
Augusto, se desenvolveu um programa, nas artes, que formou uma identidade gráfica
para todas as formas de convívio social que pudessem virar símbolos acordes com as
diferentes tradições que se visava reforçar.41 A toga como símbolo da romanidade é um
elemento essencial esta linguagem de símbolos de poder, tanto quanto as sutis
deificações de Augusto em um estilo muito clássico, à moda grega.
Como poderíamos solucionar essa dificuldade? O que Zanker não considera é que a
vestimenta nunca foi, e provavelmente nunca vai ser, uma marca de igualdade, mas uma
forma de enfatizar a distinção. Dado que não estamos falando da Grécia, onde a nudez
tinha adquirido tal função na distinção dos corpos frios dos quentes, e mesmo a partir de
uma construção do erotismo relacionada particularmente com o corpo masculino42, não
vemos por que temos que considerar que em Roma foi alguma vez assim.
Não encontramos, é verdade, em todos os trechos em que Plínio fala da nudez das
estátuas, alguma coisa que possa mostrar algum aspecto da relação dessas com a
sexualidade das estátuas-retrato aqui consideradas ou de quaisquer outras. Poderíamos
pensar que naquelas epigramas que assinala Plínio, poderiam estar inclusas algumas
referências de tipo sexual no que diz respeito à audácia dos retratados particulares, mas
mesmo assim, seria um problema marginal frente ao problema do luxo.43
40
[…] “there was not the kind of moral conflict and stylistic tension in the nude honorific statuary and
portrait art of the Late Republic that Zanker saw because the hellenization process operated differently to
the way he conceived of it.” Ibidem, 66
41
ZANKER, P.: 1992, 20.
42
Cf. SENNET, R.: 2003 e STEINER, D.: 1998.
43
O atrativo das estátuas, que certamente fomentava a tensão entre uma arte capaz de promover a virtude
e uma arte corrosiva, vai ser expresso em versões que pretendem sublimá-la no mito de Pigmaleão. Cf.
BARTSCH, S.: 1998, RICHLIN, A.: 1992.
39
O único comentário que temos conseguido encontrar — como os de Plínio um pouco
posterior ao período que seria de maior importância para nós — mostra a todas luzes a
permissibilidade da nudez na arte, por acaso fazendo referência a uma anedota de Lívia,
a esposa de Augusto:
Que uma vez salvou a uns homens que tinham aparecido nus e
deviam por isso ser condenados a morte, tendo falado que para
as mulheres castas tais homens não se distinguem das estátuas.44
Independentemente da verdade da anedota, o importante aqui é que os historiadores
posteriores a Augusto não dão conta de um problema de impudicícia nos desnudos na
arte e dado que não temos nenhuma prova de que no período anterior houvesse existido
— muito pelo contrário o que achamos são estas estátuas e mais outros exemplos que,
no modelo de Zanker, ficariam no canto das “exceções à regra” 45 — não vemos por que
deveríamos supor qualquer coisa de diferente.
Mas, quem se opunha à toga na Roma antiga? Nada melhor que perguntar às
Saturnais, festa de inversão dos valores desta sociedade. Os nobres nas Saturnais
trocavam suas togas por túnicas domésticas.46 A toga era símbolo da romanidade, porém
não de todos os habitantes de Roma, senão de alguns romanos no poder, e isto é o que
pretende fixar Augusto na nova linguagem iconográfica: a ordem e o poder daqueles
que devem tê-los.
Que acontecia então com a nudez honorífica? Certamente os nus que ficaram têm,
sobretudo, uma caraterística comum, o fato de pertencer a desconhecidos e que a única
referência que temos a eles, como já foi bem assinalado, não os posiciona no lugar de
obras importantes. Provavelmente Stevenson esteja certo e o nu nas estátuas fosse
44
Dio Cassius Historia Romanae. LVIII 4-5. Trad. Adrián Castillo.
Exemplo não pouco importante seria o dos restos daquelas exposições de obras que caracterizaram a
publica magnificentia do Império, como o conjunto homoerótico de Pan e Olimpo. Cf. ZANKER, P. op.
cit., 174.
46
“Vestir toga no período das Saturnais era próprio de um tolo [...]” INTROINI, J.: 1996, 29.
45
40
socialmente aceito, sendo ou não uma forma de divinizar as pessoas. A própria
divinização como método já tinha perdido os seus efeitos — o que também se relaciona
com o fato de que as novas estátuas religiosas da época de Augusto voltassem aos traços
arcaicos, embora estes também fossem parte das artes decorativas da época. Favorece
esta interpretação o fato de que a aura de divindade ou heroísmo ou bem estava na
própria estátua ou bem era salientada com outros símbolos como tronos o coroas de
louro, os quais ajudam muito na interpretação.47
Assim, nada evitou que aqueles que tiveram o dinheiro suficiente seguissem
representando-se dessa forma, cada vez que o desejassem, sem que ninguém se
escandalizasse pela nudez ou pela assimetria de idades entre a maior parte dos corpos e
cabeças. Inclusive, o fato de considerar esses exemplos desde uma perspectiva mais
sublimada em relação aos seus efeitos sociais, permite-nos identificar neles uma
possibilidade de ver como a República romana não foi o reino da igualdade, e que os
Generais provavelmente estivessem interessados em se representar como a força
corporal do Império, frente às cabeças dos Senadores.
Também, mas agora contra Stevenson, consideramos que o programa de Augusto se
adaptou muito bem às demandas dos romanos da época, apropriando-se de uma arte já
valorada como tal e identificando-se com ela. Acreditamos também que, não tendo o
programa cristalizado-se em uma internalização da sua ideologia que atingisse a
completa expulsão da luxuria e da adulatio, isso foi porque a internalização de uma
ideologia não é uma reprogramação de mentalidades. Trata-se, mais bem, de gerar
uma linguagem determinada que — neste caso em relação às imagens — possa se
converter em parte da identidade dos indivíduos, algo que, certamente, pode ser
47
Cf. VEYNE, P.: 1991b.
41
processado de muitas e variadas formas, como podemos ler no texto do próprio
Stevenson a respeito da incorporação das ambivalentes normas artísticas gregas.
Existem, então, boas razões para pensar que a nudez nas estátuas honoríficas não
tenha sido tão significativa como pensa Zanker e também para desestimar o sentido
impudico que lhes adjudica. Nada indica que essa nudez tivesse um caráter política ou
religiosamente importante.
A maioria dos romanos foram testemunhas de um desenvolvimento técnico das artes
que tinha fugido por completo às adscrições institucionais tradicionais, gerando assim, o
conflito próprio daquilo que é considerado muito valioso, porém inútil.
Esperamos ter mostrado, ou quando menos, termos deixado aberto um espaço para a
dúvida que o retrato-estátua nu desse período é um exemplo de uma forma de interpretar
a arte como valiosa per se, uma forma popular de reconhecimento desse fenômeno.
Assim, podemos compreender melhor como algumas imagens têm melhor
credenciamento que outras para servir ou confrontar ao poder.
1.2. A elegia erótica
A elegia surge na Grécia como um canto de lamentação apropriado para os enterros.
Com o tempo, ela foi perdendo o seu caráter de lamento, porém preservando a
caraterística de ser uma poesia na qual se exprimiam sentimentos. Após um largo
percurso, foi na Roma de Augusto que a elegia desenvolveu a forma de poema
passional, melancólico, misturando sentimentos e mitos num lamento do poeta pela sua
amada, às vezes mais ou menos ligados aos prazeres carnais do amor, de forma mais ou
menos detalhada.
Sexto Propercio foi um dos poetas mais importantes do gênero, junto a Tíbulo e
Ovídio, o mais conhecido. A história tentou exprimir as elegias, às vezes, como fontes
sobre a vida dos poetas, noutras vezes como exemplo da crise dos valores romanos, mas
42
uma das caraterísticas históricas mais importantes deste gênero é que foi cultivado e
chegou àquelas consideradas como suas formas mais livremente aprimoradas no
primeiro ano do Império.
Nosso objetivo, nesta seção, será mostrar como a liberdade e o reconhecimento das
qualidades artísticas, como vários dos componentes essenciais de uma arte autônoma,
oferece uma melhor leitura das fontes da época. O poeta selecionado, Propercio, além
de ser do nosso agrado, formou parte do movimento na sua melhor época, sendo
reconhecido pela sua obra e nunca parece haver tido problemas políticos nem por causa
dela nem por outros motivos. 48
Para compreender o poeta Propercio é preciso começar por situá-lo no círculo de
Mecenas. Entre os homens de confiança de Augusto, especialmente os vinculados às
artes, encontrava-se Mecenas. Este foi “Ministro de Cultura” de Augusto, mas também
poeta e promotor das artes, com um estilo que pouco tinha a ver com aquele que o
Império queria promover.
49
Neste labor, foi especialmente lúcido, e enquanto
sustentava o círculo de poetas que se dedicavam especificamente ao seu trabalho,
também escolhia aqueles que considerava melhores para cumprir as tarefas solicitadas
por Augusto. Entre elas, vale mencionar a encomenda de A Eneida a Virgílio e da prece
a Apolo e Diana, encomendada a Horácio, para depois ser utilizada nos rituais de mais
importância, nos quais o próprio Augusto e seu séquito eram os primeiros em cantá-la.
Consideramos que foi fundamentalmente o respeito, o conhecimento e a valoração
da arte que permitiram a Mecenas que a utilizasse para outros fins, ou fins não
artísticos. Diferentemente de uma arte heterônoma, que é avaliada simplesmente pela
sua idoneidade para atingir outros fins. Para Mecenas, somente uma arte idônea como
48
Lembre-se a ambiguidade na qual caiu a obra de Ovídio quando foi exilado, sendo que é bastante dúbio
que sua obra fosse a verdadeira causa da fúria do Imperador.
49
ANDRÉ, J. M.: 1967. Interessante, neste sentido, é o comentário de Suetonio sobre a tentativa de
Augusto para que Mecenas se expressasse com maior austeridade retórica. Cf. Suet. LXXXVI.
43
arte podia ser utilizada para atingir com sucesso esses outros valores. Temos boas
razões para pensar que não estava errado.
Ele colocou a arte ao serviço do Império (officium) após ter se preocupado em
conhecer e praticar a arte por si própria (studium).50 No caso em que a poesia fosse
entendida como officium, o artista não era mais que um servo de causas mais nobres —
ou seja, as políticas e as religiosas —, o que inclusive gerava um problema no que diz
respeito ao status social e à dignidade daquele que se dedicasse à poesia. No caso em
que fosse um studium, a tarefa se dignificava, na medida em que virava contemplativa e
digna para um indivíduo livre. Contudo, essa explicação não fica livre de ambiguidades,
muito menos no pragmático universo romano, dado que podemos pensar que enquanto a
pessoa era dona de um officium, o poeta estava obrigado a cumprir a sua tarefa e ao
mesmo tempo considerar a poesia como studium, caso fosse somente um hobby (como
no caso de próprio Mecenas, e indo mais longe atrás no tempo, a pintura e a poesia para
Platão).
Destarte, caso servisse a um interesse mais nobre, virava uma ocupação obrigatória
enquanto no outro caso podia ser considerada uma atividade própria do tempo livre. A
ambiguidade desta situação, certamente, não foi superada nem por Mecenas nem
pertence somente à Antiguidade.
Nesse ambiente, onde se misturavam sem uma distinção rígida a arte pela arte e a
arte política, temos que localizar o corpus de elegias de Sexto Propercio. A confusão a
respeito de quanto da sua própria vida aparece nelas ainda permanece. Portanto, vamos
nos guiar pelas seguintes perguntas: foi Propercio o integrante rebelde do círculo de
Mecenas? E, em caso de que o fosse, foi rebelde no aspecto pessoal ou no aspecto
artístico?
50
ANDRÉ, J.: 1967, 141.
44
Tradicionalmente se procurou na elegia erótica romana uma expressão da vida
emocional do seu autor: o eu lírico não era outra coisa que uma versão estetizada do eu
real, ou diretamente uma expressão desse eu real. Isso trazia consigo alguns problemas a
respeito das infrutuosas pesquisas de elementos que permitissem reconstruir as histórias
de vida dos poetas. Aquilo que ninguém conseguia dar conta era de como, naquela
época, foi possível que os poetas tivessem tanta liberdade, ou que fossem diretamente
uns libertinos.
Porém, foi Propercio um libertino? Por que sua poesia não foi simplesmente
censurada? Como eram vistas pela sociedade as declarações das paixões mais profundas
de um homem que se declara escravo de um amor fatal? Por que não temos mais
informação a respeito das mulheres que viram suas vidas levadas a público nas letras
dos poetas? Como podemos ordenar os livros de Propercio seguindo a linha da fé para
uma única e eterna dedicação para a sua amada Cintia?
Paul Veyne, no seu livro A elegia erótica romana: o amor, a poesia e o
Ocidente,51 defende a tese de que todas essas perguntas dos filólogos são perguntas
malfeitas. Para o historiador, a elegia vai ser, inicialmente, um simulacro da realidade e
o poeta coloca-se como eu ficcional, mas, ao mesmo tempo, descobre a si mesmo como
um farsante.52
Assim, o elegíaco pretende ser aquilo que não é, mas denuncia sua própria impostura
com as contradições que mostra nas suas composições.
No caso de seguir a tese de Veyne, temos um sucesso duplo: explicarmos o que é a
elegia e, ao mesmo tempo, damos conta de por que a filologia não atingiu um consenso
51
52
Do qual também só possuímos a edição em castelhano de 1991.
VEYNE, P.: 1991a, 8.
45
para dar coerência ao corpus que constitui essa poesia, na sua tentativa de lê-la como
uma expressão da vida do poeta. 53
Uma das caraterísticas fundamentais da elegia viria a ser, conforme Veyne, a falta de
naturalidade, o maneirismo. Aquilo que tinha sido interpretado como uma expressão
lírica de um indivíduo que sofria atormentado pelo amor aparece, nos versos da elegia,
de uma forma que pode resultar esquisita para o leitor moderno, em uma montagem de
apelações a mitos que mal podem formar parte de uma reação espontânea de alguém. A
outra caraterística era o ambiente mundano no qual se desenvolve a elegia. Isso gerava
um efeito estético que de forma nenhuma poderia ser procurado.54
A combinação das duas caraterísticas tem como resultado, ao dizer de Veyne, um
“quadro de gênero de indumentária mitológica”.55 Trata-se assim de uma poesia “sem
ação, sem intriga que leve a um desenlace ou sustente a tensão, e por isso o tempo não
tem nela realidade nenhuma”.56 Encontramo-nos frente a tipos, situações exemplares,
nada que possa nos dar uma informação minuciosa para a reconstrução de mais que um
ambiente de referência — ao qual se refere como “a má sociedade” — e uma concepção
estética do amor: a paixão que faz do amante um escravo.
Esta ausência de ação estruturante traz à tona uma terceira caraterística da elegia,
que vem a explicar a falta de coerência na história ou anedota que, em teoria, está
centrada. Encontramos a coerência tanto nas obras completas como nas peças que a
compõem — não é estranho encontrar, entre os editores, formas diferenciadas de
apresentar os diferentes fragmentos como um ou mais poemas; inclusive, em muitos
casos, fragmentos completos têm sido considerados apócrifos. Para o historiador, isso
53
Ibidem, 9.
Ibidem, 13.
55
Ibidem, 47.
56
Ibidem, 73.
54
46
tinha a ver com uma opinião estética: “o essencial é que o leitor se encontre atordoado”.
57
Tudo isso tem como resultado a elegia, gênero no qual o poeta renuncia
explicitamente à sinceridade, substituindo-a pelo humor, de maneira que “o poeta está
constantemente em retirada”, escrevendo com um sorriso nos lábios. Podemos ver nele
o sorriso de Calímaco, poeta alexandrino do qual os poetas elegíacos consideravam-se
seguidores, e cuja caraterística fundamental foi o maneirismo do mito e a utilização de o
mito e as formas tradicionais tendo-se desligado de suas funções religiosas por meio da
incredulidade geral de que gozam entre os espectadores — espoliadas daquela
intencionalidade que tinha lhes dado origem — passam a servir ao deleite de uma
pequena elite de indivíduos cultos que as valorizam pela sua beleza literária.58
A elegia viria a ser, então, uma piada altamente sofisticada e refinada. Sua existência
é possível por um pacto entre o leitor e o escritor, convocados pelo deleite estético do
vácuo, do nada apresentado em forma elegante e de efeito.
Consonante ao exposto, não somente se pode dizer que Propercio não era um
libertino, senão que nem sequer pode-se considerar o integrante rebelde do círculo de
Mecenas, na medida em que todo romano compreendia perfeitamente que se tratava de
uma piada estilizada, conforme algumas pautas estéticas.
Embora a tese de Veyne ajuste-se muito bem no que diz respeito à crítica realizada à
interpretação tradicional, obliterada pela concepção do gênio e sua expressão lírica, não
resulta muito convincente o resultado final de considerar a elegia romana como uma
“piada sem consequências”.59 Assim, para o historiador, não se pode falar de ideologia
ou sociologia da elegia, porque esta última só procura um efeito estético e não se refere
57
Ibidem, 16.
Propercio chamou a Roma de “pátria de Calímaco”. FEDELI, P.: 2012, 67.
59
Ibidem, 50.
58
47
à realidade para “tentar mudá-la”.60 O pacto entre o leitor e o poeta, entre indivíduos de
cultura e status social semelhante — aqueles capazes de compreender as cenas míticas
eram realmente muito poucos — conduzia-os a viver experiências estereotipadas. A
realidade, a existência desse mundo, não vai além de uma necessidade do jogo.
Enquanto a análise de Veyne, dos lugares comuns e dos estereótipos das amadas dos
elegíacos é muito convincente, as especulações que realiza no tocante aos aspectos
formais da elegia têm altas probabilidades de serem justas e as suas respostas aos
amantes da reconstrução das biografias a partir da consistência interna das obras,
demolidoras, a explicação do lugar da elegia no mundo antigo, como arte pela arte,
pode gerar algum desconforto. Num primeiro momento, não parece claro que a
condição necessária para ser uma arte autônoma seja a intenção do artista de não
intervir com a realidade política e social da sua época.61 Do mesmo modo, não fica
claro por que, se todos compreendiam de que se tratava de uma simples piada, foi
necessário exibir a impostura e muito menos ficar em constante troca de ideias em
relação à função da poesia.
Certamente nem sempre o Império considerou com simpatia as criações dos
elegíacos. Se não houvesse sido assim, por que Mecenas insistiu tanto, e ao mesmo
tempo, aceitou tantas negativas a respeito da necessidade de produzir uma poesia com
fins mormente políticos e/ou cívicos? Mesmo se a poesia pudesse, usando a expressão
do escritor argentino Jorge Luis Borges, “entretecer naderias”, não se pode resumir por
isso toda a questão do seu valor ou dos seus efeitos em uma concepção que se pode
considerar simplificadora.62
60
Ibidem, 42.
Ibidem, 45.
62
Do poema El remordimiento: “He cometido el peor de los pecados / que un hombre puede cometer. No
he sido / feliz. Que los glaciares del olvido /me arrastren y me pierdan, despiadados. / Mis padres me
engendraron para el juego / arriesgado y hermoso de la vida, / para la tierra, el agua, el aire, el fuego. /
Los defraudé. No fui feliz. Cumplida / no fue su joven voluntad. / Mi mente se aplicó a las simétricas
61
48
Podemos concordar com Veyne no primado da forma sobre o conteúdo, na maior
seriedade do poeta com respeito às regras de estilo em detrimento da verdade ou
falsidade daquilo que era dito. Porém, justamente porque se trata de um âmbito
específico, o do estetizado, acreditamos que nos pronunciarmos sobre o humor da obra é
uma ousadia muito grande. Estetizar não é parodiar, mesmo que parodiar seja uma
forma de estetizar.
Ainda mais, se a elegia não diz nada sobre as opiniões ou sobre a vida do autor,
como sabemos que foi um cavalheiro? Não se trata acaso de uma especulação fundada
no suposto de que, dado que a moral do Império era incorruptível e indiscutivelmente
contraria à “má sociedade”, é impensável que um não cavalheiro pudesse ser admitido
e lido entre os Senhores?63
No entanto, os pactos entre leitores e poetas podem ser de índole diversa quando
existe uma arte consagrada como tal. Temos apontado que o próprio Mecenas se
questionava quanto o sentido do poetizar, e embora o mundo e as certezas internas dos
indivíduos não se desmoronavam devido ao que as elegias diziam, afirmar que essas não
eram tidas como corrosivas dos seres humanos seria um erro. O próprio Augusto
encarregou-se de sugerir a Mecenas um maior cuidado no seu estilo florido, e ainda se
concordamos com Veyne a respeito de que Ovídio queria ser perdoado mais pelos seus
atos do que pelas suas poesias, ninguém achou disparatado que o poeta pedisse
porfías / del arte, que entreteje naderías. / Me legaron valor. No fui valiente. / No me abandona. Siempre
está a mi lado / La sombra de haber sido un desdichado.” Não é equivocado lembrar que frente à defesa
de Borges de uma arte pura em um Congresso realizado em Berlim no ano 1964, por considerar que o
compromisso era uma traição à arte, Guimarães Rosa reagiu contra ele por considerar que as “palavras de
Borges revelaram uma total falta de consciência da responsabilidade”, como pode-se ler na entrevista que
lhe fez Günter Lorenz em janeiro de 1965.
63
“Qual é, então, a regra de emprego dos prazeres venéreos? Duas morais se sucederam, tão restritivas
uma quanto a outra, a dos deveres do serviço, que é a velha moral de Cato, e a da pilotagem interior pela
consciência, que vai ser a ética estoica. A primeira era a rainha sem discussão no século dos elegíacos.”
VEYNE, P.: 1991a, 226. O destaque é nosso.
49
desculpas por elas, o que seria absurdo no caso de que todos soubessem que não eram
mais que piadas que se autodelatavam!64
A verdade é que desde a República vinha-se gestando uma discussão que envolvia as
mores maiorum e o lugar do otium na vida do cidadão romano. Se fosse o caso de que
Propercio fizesse piadas ou não é também indecidível, porque aquilo que se julgava
mesmo para os interesses políticos e morais do Império era o estilo, certamente a moral
do Império foi dirigida com mais astúcia que força, ou melhor, com astúcia e não
somente com força, sendo a arte uma das suas ferramentas principais. No entanto, para
isso, não foram censuradas estupidamente as formas consagradas, porém fez-se uma
intervenção dirigida com sensibilidade à moda do momento.
Os poetas dedicavam-se à arte e à cultura, e era por isso, e não por militar nas filas
do amor que renunciavam à carreira das armas ou do Foro. A molície, a qual Veyne
considera ociosidade, era considerada como a mãe das debilidades do amor, uma
tendência ao prazer que podia até mesmo ser tomada como incontrolável. Mas quando
era considerada uma dedicação aos estudos ternos ou um mollius studium, parece
razoável pensar que o termo aceitava mais de um significado. Aquela chamada pelo
historiador “antropologia da molície”, que coloca esta tendência com causa de todos os
males da virtude, foi considerada entre os poetas como algo menos trágico e desatinado,
como uma afetação do estilo.
A mollis poética era uma arte delicada, uma arte sutil.65 O adjetivo mollis podia ser
utilizado para referir o luxo helênico: mollis qua tendit Ionia.66 Aos versos elegíacos: et
frustra cupies mollem componere versum, nec tibi subiciet carmina serus Amor67. Para
qualificar a retórica de livros completos: quaeritis, unde mihi totiens scribantur amores,
64
A posição de Veyne sobre Ovídio pode-se ler nas páginas 155-6 do livro citado.
Ibidem, 44.
66
“[...] onde se extende a delicada Jonia. ” Prop. I, 6, 31
67
“[...] e em vão desejaras compor versos macios, e retrasado Amor não vai te inspirar nos teus cantos. ”
I, 7, 19-20
65
50
unde meus veniat mollis in ore liber68. Nas metáforas sobre a atividade poética do
elegíaco: mollia sunt parvis prata terenda rotis69 é o conselho de Apolo com respeito a
dúvida de Propercio em não poder dedicar-se à épica, a qual seria uma grande roda
destinada a arar os terrenos mais fortes.
Não fica claro por que, para Veyne, esta arte deva ser considerada uma arte pura que
se disfarça de sensual para o leitor e o poeta que sorriem frente ao excesso. Por que não
simplesmente pensar que se trata de uma arte que manipula a sensualidade para gerar
prazer estético, e que esse é o pacto entre leitores e autores? Não é um paradoxo que o
historiador nos inste a considerar o conteúdo excessivamente sensual quando atender
ao conteúdo é aquilo justamente que Veyne insiste em que não devemos fazer?
O debate sobre a mollis, suas virtudes e os seus defeitos encontra-se já em Roma,
pelo menos desde os tempos de Cícero. Com este autor, um primeiro estoicismo já tinha
apontado suas armas contra a poesia helenística.70 Os seus defensores promoviam-na em
uma associação com a serenidade, uma forma de vida pastoril, e certamente não com
roupas de cidade, porém com quaisquer roupas. Dessa maneira acontecia em círculos de
influência epicúrea, como era o de Mecenas. Assim, Propercio recomenda a Linceo um
rival que se dedicava à poesia trágica, que se este almejava ter sucesso no amor, deveria
preferir a elegia e libertar-se dos estilos pesados: et ad molles membra resolve choros.71
Assim, a disputa não somente está relacionada a uma forma de vida — poderíamos
até prescindir dela — mas fundamentalmente a um modo de entender a produção
poética. As discussões com Mecenas abundavam nesses detalhes sobre a escolha da
épica ou da elegia, e as respostas de Propercio sempre foram em defesa da sua
dedicação à última.
68
“Me perguntas por que sempre escrevo sobre amores, e por que meus livros viram macios na língua.”
II, 1, 1-2
69
“[...] os prados delicados têm que ser arados com rodas pequenas” III, 3, 18
70
ANDRÉ, J.: 1966, 245.
71
“e liberta os pés para as suaves danças” II, 34, 42.
51
A tese que propomos mudar é a de que o tipo de arte pura próprio da elegia erótica é
aquele no qual a intenção do artista a faz ser uma boutade. A tese que defendemos é a
de que em períodos nos quais a arte se consagrou como autônoma, o especificamente
artístico está menos na intenção do artista que nos recursos e técnicas disponíveis para a
criação e recepção da obra de arte. Ou seja, trata-se mais de um estado da arte do que de
um jogo especial, e tanto as elegias como outras obras de arte foram afetadas por essa
situação que permite compreender melhor a política do Império para com todas as artes
e não somente para com a elegia.
Partindo dessa interpretação, nada impede que a elegia fosse um canteiro de
contrassensos e paradoxos, pois nada a compromete com um roteiro realista. Da mesma
forma, nada lhe impede ser fonte de discussões ligadas à arte, à moral e à política,
porque o próprio estilo converte-se em um âmbito específico pelo qual os diferentes
grupos de interesses lutam por se apropriar. Um poeta podia ser tolerado ou não, podia-se até questionar os seus deveres para com a cidade e a arte, e nada disso impedia que
sua obra fosse desfrutada por aqueles que procuravam o prazer estético de uma arte
cultivada, irritando assim, os caráteres mais autoritários, temerosos dos desbordes
libertinos.
O sorriso de Calímaco viria a ser, então, um rictus que não poderíamos decifrar. Não
podemos saber se Propercio foi ou não um libertino. No que diz com a sua figura
contestatória no círculo de Mecenas sim, porque conseguiu resistir aos impulsos deste
último a respeito dos deveres cívicos e coletar uma arte onde estas preocupações
somente figuram em forma marginal. Nem sempre, talvez nunca, a arte que renuncia à
intenção moral e política explícita tem-se convertido no paradigma da estética
dominante, embora neste caso fosse capaz de se colocar no epicentro da cultura e a
teoria da arte.
52
1.3. Alguns aportes finais
Assinalamos anteriormente que as obras de arte se tinham deslocado dos circuitos
religiosos e políticos, gerando com o público, um vínculo muito diferente ao do ritual
sacro ou cívico. Na vontade de colecionar obras de diversos tipos podemos observar
uma prática social de uso privado das mesmas que é alheia às formas mais estritas da
arte heterônoma, que tem uma recepção comunitária e forma parte da identidade da
comunidade como tal.
Novos personagens surgem da mão da autonomia e do colecionismo. Assim, os
falsos conhecedores, familiares antigos daqueles que hoje chamamos esnobes, mostram
que não levar a sério as obras não era uma heresia, ingenuidade ou malícia,
simplesmente era uma forma de se distinguir na sociedade. Na já mencionada
ambiguidade de Plínio sobre a crítica e a arte sem valores e a estima à arte por si
própria, encontramos um comentário sobre os indivíduos que “parecem estar simulando
seu conhecimento, mais interessados em se diferenciarem dos outros do que em serem
conhecedores sutis de coisas como estas.” 72
Plínio também critica o fato de que as atividades do cotidiano não permitiam um
maior tempo para se relacionar com as obras que requerem concentração por parte do
público. Eis suas palavras:
Mas é verdade que em Roma, a grande quantidade de obras e o
seu posterior esquecimento e, mais ainda, a multitude de
obrigações e negócios distraem a todos da contemplação,
enquanto uma admiração desta índole requer estar livre de
atividades e de um grande silêncio no lugar.73
72
No original: ac mihi maior pars eorum simulare eam scientiam videtur ad segregandos esse a ceteris
magis quam intellegere ibi suptilius. Plin. Nat. XXXIV, 3, 6.
73
Romae quidem multitudo operum et iam obliteratio ac magis officiorum negotiorumque acervi omnes a
contemplatione tamen abducunt, quoniam otiosorum et in magno loci silentio talis admiratio est. Plin.
Nat. XXXVI, 4, 27
53
Mas não somente as considerações sobre o público nos levam a acreditar que a arte
gozava de um status autônomo. Também encontramos passagens que salientam os
aspectos técnicos das obras e a competência na valoração das mesmas.
Em primeiro lugar, destaca-se que Plínio, como foi costumeiro na sua época e muito
depois, considera a história da arte como uma sequência de progressos técnicos na
conquista do realismo. Assim, os diferentes artistas são apresentados em consideração
aos aportes que realizaram para este projeto artístico de representar a realidade
perceptível de forma eficaz. Até são incluídos como exemplo dos alcances da
proficiência na área, aqueles que conseguiram desafiar as leis do decoro. Além do
anedótico, ou talvez melhor se de uma simples história sem base real se tratasse porque
o autor poderia mostrar coisas que os compromissos políticos com o seu presente
poderiam reprimir se fosse um fato recente, vem à tona um dos exemplos de realismo
que Plínio apresenta:
Ctesiles fez-se famoso pela injúria à Rainha Satronice. Como
ele não foi recebido com nenhuma honra por parte dela, pintou-a de uma forma muito liberal na companhia de um pescador
pelo qual, de acordo com os rumores, ela estava apaixonada, e,
além disso, exibiu a pintura no porto de Éfeso, enquanto fugia
com as velas içadas. A rainha proibiu que a pintura fosse levada
porque a semelhança com cada um estava maravilhosamente
representada.74
A respeito da valoração da obra, encontramos em outro trecho a importância dos
artistas como avaliadores uns dos outros, de uma forma certamente muito peculiar se
nos restringimos às interpretações heterônomas que fazem deles artesãos e homens de
baixa categoria.
Mesmo os [artistas] mais laureados vinham e participavam da
competição, pois tinham que ser feitas estátuas de Amazonas
que eram consagradas no Templo de Diana de Éfeso. Entendeu74
Ctesicles [innotuit] reginae Stratonices iniuria, nulla enim honore exceptus ab ea pinxit voluntatem
cum piscatore, quem reginam amare sermo erat. Eamque tabulam in portu Ephesi proposuit ipse velis
raptus, regina tollli vetuit, utriusque similitudine mire expressa. Pin. Nat. XXXV, 40, 140.
54
-se apropriado então que fossem os próprios artistas aqueles que
escolheram a melhor de todas as obras, de acordo com a opinião
de todos os presentes. Assim, fez-se evidente que a melhor era
aquela obra que cada artista tinha julgado melhor em segundo
lugar após a sua própria. Esta foi a de Policleto, muito perto da
de Fídias, no terceiro lugar a de Cresilas, quarta a de Cydonis e
quinta a de Fradmonis.75
Certamente o dilema autonomia/heteronomia não pode ser resolvido somente
mostrando que a ideia de autonomia pode ajudar a hermenêutica de uma determinada
época da arte. No entanto, oferece uma constelação de elementos que, mesmo sendo
possível articulá-la a outros elementos relativos ao culto ou ao poder, credencia a arte
para ter seu lugar na análise das interações técnica — público — objetivo da arte76 de
forma mais aprimorada tanto no seu uso autônomo quanto heterônomo.
75
Ita distinctis celeberrimorum aetatibus, raptim transcurram, reliqua multitudine passim dispersa
venere autem et in certamen laudatissimi, quamquam diversis aetatibus geniti, quoniam fecerant
Amazonas, quae cum in templo Dianae Epgesuae dicarentur, placuit eligi probatissimam ipsorum
artificum, que praesentes erant, iudico, cum apparuit eam esse, quam omnes secundam a sua quisque
iudicassent haec est Plycliti, proxima ea Phidiae, tertia Cresilae, quarta Cydonis, quinta Phradmonis.
Plin. Nat. XXXIV, 19, 53.
76
A hélice tripla forma parte de uma teoria da arte do Prof. Juan Fló, a quem tivemos o prazer de ouvir
falar sobre ela, porém não temos dados escritos sobre a mesma. Caso a interpretação aqui fornecida esteja
errada, a culpa é, obviamente, nossa.
55
Capítulo 2. As coordenadas da autonomia para o discurso filosófico em
Immanuel Kant
Entende-se por autonomia da arte, num sentido muito geral, o fenômeno pelo qual
essa prática adquire legitimação social como prática com fins próprios. Esse fenômeno é
tradicionalmente datado no percurso dos séculos XVII e XVIII, consolidando-se no
século XIX e tornando-se totalmente aceito, no Ocidente, no século XX. Dessa maneira,
Immanuel Kant encontrar-se-ia numa fase de transição de uma arte concebida como
meio a serviço de outras funções para uma arte feita por si mesma, ou “arte pela arte”
como se conhece na literatura corrente sobre o tema. Porém, nossa tese sustenta que o
filósofo de Königsberg é importante não somente por formar parte desse processo, nem
por ter sido muito lido por aqueles que continuaram com ele — o que não é pouco.
Consideramos que Kant estabeleceu as coordenadas do debate em torno da autonomia
da arte e que essas coordenadas ou pontos fundamentais da forma de ver o problema
ainda interpelam a todos que pretendem trabalhar com a questão.
No nosso entender, podemos considerar essas coordenadas em três instâncias: a do
desinteresse, a da relação arte/natureza (que logo vai seguir conforme outras teorias,
mas não vai deixar de ser fundamental até o século XX), e a do espaço da autonomia da
arte como uma esfera específica além da definição do que seja a própria arte.
2.1. O desinteresse
Immanuel Kant integra-se à disputa sobre a beleza no século XVIII com sua Crítica
da Faculdade do Juízo, de 1790. Nesta obra, apresenta seu intento mais aprimorado de
fundamentação da validade dos juízos sobre o belo, ou juízos de gosto. Para isso,
pesquisa a estrutura desses juízos de acordo com o método da análise transcendental,
56
onde o primordial é buscar as condições de possibilidade de um juízo em seus
componentes a priori, isto é, independentes de toda experiência empírica. Se o
ajuizamento sobre a beleza fosse empírico, deveria ser ou bem radicalmente subjetivo
— dependente dos gostos de cada um — ou bem deveria ser possível estabelecer
conceitualmente sua objetividade (através de conceitos empíricos sobre o que o objeto
deve ter para ser belo); porém, para Kant nenhum destes caminhos é válido.
Segundo o filósofo, os juízos sobre o belo são juízos reflexionantes. Isso implica que
não existe nenhuma determinação geral que justifique sua não arbitrariedade,
universalidade e necessidade, senão que existe uma condição subjetiva de reflexão sobre
o particular que nos justifica na hora de atribuir um fundamento transcendental ao juízo.
O princípio do juízo reflexionante é o princípio da finalidade da natureza ou sua
adequação aos fins. O juízo de gosto haverá de mostrar-se como um caso dessa
condição transcendental subjetiva, incluindo uma relação com o sentimento de prazer e
desprazer, que o vincula com a beleza de forma fundamental.
O juízo do belo é, além disso, estético, pelo que será considerado uma espécie
peculiar de juízo reflexionante. Assim sendo, o juízo do belo pode-se decompor em
quatro instâncias constitutivas: de acordo com sua qualidade, é desinteressado; de
acordo com sua quantidade, aspira à universalidade; de acordo com a estrutura
teleológica, tem finalidade, porém não tem fim; e, de acordo com a modalidade, é
necessário. Ele é o resultado do livre jogo entre as faculdades de imaginação e
entendimento, livre de conceitos, induzida pela mera forma da recepção da
representação (considerada como adequada para o conhecimento em geral).
57
No parágrafo dois da Analítica do Juízo Estético da Crítica da Faculdade do Juízo,
Kant expõe aquilo que entende por prazer interessado [interesse] e desinteressado
[uninteressirten Wollgefallen]:
Chama-se interesse a complacência que ligamos à representação
da existência de um objeto. Por isso, um tal interesse sempre
envolve ao mesmo tempo referência à faculdade da apetição
[Begehrungsvermögen], quer como seu fundamento de
determinação, quer como vinculando-se necessariamente ao seu
fundamento de determinação. Agora se a questão é se algo é
belo, então não se quer saber se a nós ou a qualquer um
importa, ou sequer possa importar algo da existência da coisa, e
sim como a ajuizamos na simples contemplação [bloßen
Betrachtung] (intuição ou reflexão).77
Essa noção é introduzida de forma geral num momento-chave da obra, pois lança
mão de uma mudança na ordem tradicional de apresentar os quatro momentos do juízo,
ou tabela das categorias, colocando a qualidade no primeiro lugar. Isso significa que, no
nível dos juízos estéticos sobre o belo ou o não belo, a qualidade é fundamental e
determina os outros momentos.
A definição do gosto, posta aqui a fundamento, é de que ele é a
faculdade de ajuizamento [Beurteilung] do belo. O que, porém,
é requerido para denominar um objeto belo tem que a análise
dos juízos de gosto a descobri-lo. Investiguei somente
momentos, aos quais esta faculdade do juízo, em sua reflexão,
presta atenção, segundo orientação das funções lógicas para
julgar (pois no juízo de gosto está sempre contida ainda uma
referência ao entendimento). Tomei em consideração primeiro
os da qualidade, porque o juízo sobre o belo encara este em
primeiro lugar. 78
Em que sentido Kant está falando de “qualidade” no contexto dos juízos estéticos é
um ponto que requer esclarecimento. Podemos nos remeter à definição de qualidade que
faz Leibniz nos Princípios metafísicos da matemática, de acordo com a qual:
77
78
Ak. V 204.
Ak. V 203.
58
[a] qualidade […] é aquilo que pode ser conhecido nas coisas
quando são observadas em sua singularidade, sem que seja
necessária a copresença. Tais são os atributos que são
explicados na definição ou pelas diversas determinações que
envolvem. 79
É claro que se pensamos em objetos matemáticos, a definição é essencial para a
singularidade do objeto.80 Porém, se essa singularidade é estética, então podemos pensar
que se trata de uma avaliação do aspecto inefável de toda representação singular
enquanto é avaliada em si própria. Nas palavras de Andrea Esser: “[O] atributo ‘belo’
expressa, tal como é entendido por Kant, uma qualidade especial que se refere à forma
externa do objeto, mas que não consegue significá-la. ”81
Certamente é peculiar a estrutura da “Analítica do Belo”, uma vez que não
encontramos uma análise dos quatro momentos do juízo noutras obras de Kant — com a
exceção das Lições sobre Lógica que hoje conhecemos como Lógica Jäsche, devido
ao estudante a quem Kant encomendou sua edição. Essas Lições estão datadas entre os
anos 1765-66, motivo pelo qual se inscrevem no período pré-crítico.
Neste caso, encontramos a análise dos quatro momentos do juízo aplicados à
“perfeição lógica do conhecimento”, a qual, por definição, é diferente da avaliação
estética. Porém, encontram-se relações com o aspecto intuitivo do mesmo, na medida
em que o conhecimento sensível necessita ter, para Kant, uma perfeição e também uma
dimensão estética. Esta dimensão tem algumas semelhanças com a experiência
analisada como beleza, enquanto supõe a possibilidade de compartilhar uma sensação,
mas o faz com fins estritamente didáticos, ou seja, como formas de apresentação do
79
“La cualidad […] es aquello que puede conocerse en las cosas cuando se las observa en su
singularidad, sin que haga falta la compresencia. Tales son los atributos que se explican en la definición o
por las diversas determinaciones que envuelven.” LEIBNIZ, G.: 1982, 582.
80
Assim, definir o ponto sem relação à linha, por exemplo.
81
“Doch das Prädikat ‘schön’ drükt nach Kants Verständis eine besondere Qualität aus, die zwar die
äußere Gestalt eines Gegenstandes betrifft, aber an dieser dennoch nicht dingfest gemacht werden kann.”
ESSER, A.: 1995, 9-10.
59
conhecimento que podem facilitar a compreensão dos entendimentos menos sagazes.
Mesmo assim, isso supõe um interesse no gosto:
Ao ampliar os nossos conhecimentos ou ao aperfeiçoá-los
quanto à sua grandeza extensiva, convém fazer uma estimativa
da medida em que um conhecimento concorda com os nossos
fins e aptidões. Este exame diz respeito à determinação do
horizonte de nossos conhecimentos, pelo que se deve entender a
adequação da grandeza dos conhecimentos às aptidões e fins do
sujeito. […] [Este horizonte pode ser determinado]
[e]stéticamente, segundo o gosto, no que diz respeito ao
interesse do sentimento. Quem determina esteticamente o seu
horizonte, procura organizar a ciência ou, de modo geral,
procura adquirir tão-somente conhecimentos que se deixam
comunicar universalmente e nos quais até mesmo os não doutos
encontrem o que lhes agrade e interesse 82
Contudo, o que chama mais a atenção nesse texto é que a qualidade não está no
primeiro momento da análise do conceito de perfeição lógica do conhecimento, nem no
segundo (como nas tabelas da lógica aristotélica e suas adaptações na Crítica da Razão
Pura e na Crítica da Razão Prática), mas sim no terceiro. Assim sendo, a qualidade
indica, nesse contexto, a claridade ou lucidez que podem fornecer caracteres que podem
ser considerados ou como notas características ou como “uma parte do conhecimento
da mesma [coisa]; ou — o que dá no mesmo — uma representação parcial na medida
em que é considerada como uma razão de conhecimento da representação inteira.”
83
Kant distingue um uso interno, com “o intuito de conhecer a coisa mediante
características, enquanto razão de seu conhecimento”; e um uso externo, que supõe a
comparação entre, pelo menos, duas coisas (ibidem). Isso parece remeter à definição de
Leibniz, já citada. Além dessa conexão com a singularidade, enquanto representação da
coisa, dificilmente se obtém algo mais no que diz respeito ao espaço que a qualidade
possa ocupar na análise dos juízos. E mesmo assim, não parece tão claro por que o
82
83
Ak. IX 40.
Ak. IX 58.
60
aspecto estético do juízo relaciona-se especialmente com a qualidade, sendo que poderia
estar relacionado com qualquer um dos outros momentos do juízo.
O que nos parece indicar maiores elementos no que diz respeito a esse juízo é o
aspecto sentimental envolvido na relação com o sujeito. Sendo que não se trata de um
juízo sobre o objeto, mas sobre o sentimento que a representação produz no sujeito, esta
última parece ser a chave na qual a qualidade deva ser levada em conta: como
representação singular que se refere só ao sentimento do sujeito:
Dadas representações, em um juízo, podem ser empíricas
(portanto, estéticas); o juízo, porém, que é emitido através
delas, é lógico, se simplesmente, no juízo, aquelas são referidas
ao objeto. Inversamente, porém, mesmo que as representações
dadas fossem racionais, mas em um juízo, fossem referidas
meramente ao sujeito (ao seu sentimento), seriam, nessa
medida, sempre estéticas. 84
Porém, diferentemente da Lógica Jäsche, já não se trata de um sentimento
interessado por sua função cognitiva. A ênfase que Kant vai dar ao desinteresse na
existência do objeto vai estar diretamente vinculada ao prazer ou desprazer específico
da beleza, e para isso vai compará-lo com os sentimentos do agrado e do bom. Isso quer
dizer que o sentimento não pode ser avaliado na sua singularidade, e tem que ser
considerado na “copresença” de outros?
Para começar, cabe dizer que embora pareça claro que o objeto é avaliado em
singular — como se pode ver no segundo momento da Analítica do Belo— isto não é
tão evidente para o sentimento. Ainda assim, Paul Guyer tem achado que deve ser
considerado este primeiro momento como uma descrição da experiência de
reconhecimento da beleza e não como parte de uma análise dos componentes essenciais.
85
84
85
No entanto, achamos boas razões para pensar que não se trata de uma caracterização
Ak. V 204.
GUYER, P.: 1997, 148-183.
61
nem psicológica nem fenomelógica do sentimento, ainda que o próprio lugar da
sentimentalidade no projeto transcendental seja sempre problemático. Isso diz respeito
ao fato de que Kant coloca o sentimento como chave desta experiência singular, e ao
espaço do desinteresse na filosofia moral que Kant herdou do sentimentalismo inglês.
Destarte, compreender que se trata de uma experiência qualitativa e estética é o mesmo
que dizer que é uma experiência singular e sentimental. O passo seguinte, que será dado
no parágrafo dois, será o de especificar que esse sentimento é desinteressado, ou seja,
que não está interessado pela existência do objeto que o produz.
Ora, o que significa dizer que no juízo sobre a beleza o prazer não produz um
interesse pela existência do objeto? Num primeiro olhar, pareceria uma trivialidade
afirmar que se algo nos produz satisfação, logo nos interessará a existência desse algo.
Isto é, se reconhecemos que um objeto nos produz um prazer (se tem a propriedade de
causar prazer), então, estaremos interessados na sua existência. Mas isto é exatamente o
que Kant está negando enfaticamente: “Não se tem que simpatizar minimamente com a
existência da coisa, mas ser a esse respeito completamente indiferente [gleichgültig]
para em matéria de gosto desempenhar o papel de juiz.”86 É aqui que achamos ser
pertinente uma referência à tradição.
As teorias do gosto do século XVIII desenvolvidas na Inglaterra são o ponto de
partida do tratamento filosófico da matéria da beleza enquanto vinculada ao
desinteresse. Assim, o problema do sentimento de beleza foi conectado com uma ampla
gama de respostas estéticas que incluíam a resposta à sublimidade, à grandeza, etc.
No entanto, esse ponto de partida nutriu-se mais de considerações morais que
estéticas. O egoísmo radical de cunho hobbesiano tinha marcado a época com uma
imagem do ser humano que desterrava qualquer conduta que não estivesse fundada no
86
Ak. V 205. O destaque é nosso.
62
próprio interesse. Desse modo, o prazer e a procura da própria felicidade apresentavamse como único motivo para o agir humano, reduzido, neste sentido, a um cálculo de
benefícios pessoais. De acordo com a teoria de Hobbes, esse procedimento encontravase nas bases mesmas da natureza humana, e a tendência ao prazer era sua evidência
irrefutável. Qualquer restrição ao prazer só podia justificar-se em nome de um maior
prazer futuro ou aos efeitos de evitar o desprazer.
As respostas dos que passaram a ser conhecidos como “moralistas ingleses” não se
fizeram esperar. Lord Shaftesbury apelou a um sentimento desinteressado, independente
dos nossos interesses pessoais ou privados. A apelação a um sentimento, destoante
nesse filósofo de convicções neoplatônicas, visava a refutar a fonte de evidência
hobbesiana, estabelecendo uma resposta estética natural e imediata. A resposta ante o
belo consolidou-se como caso paradigmático desse tipo de sentimento. Porém, o
fundamento da mesma não era, em absoluto, independente de outros valores como a
moral e a verdade, mas identificava-se com ambos.
Evidentemente, essa solução expressa acima e, sobretudo, suas bases metafísicas
foram objeto de controvérsia. Francis Hutcheson, discípulo de Shaftesbury, ainda que
seu primeiro grande crítico, rapidamente tocou um dos pontos centrais da teoria de seu
mestre: sendo que o belo nem sempre é bom, nem tem de ser verdadeiro, a resposta ao
belo estaria fundada num sentido específico, interno (isto é, relativo às faculdades
cognoscitivas, porém não diretamente a uma qualidade perceptível por um dos cinco
sentidos externos), independente de qualquer reflexão sobre a utilidade ou a vantagem.
Sua proposta conservava a natureza e o imediato da resposta estética, mas agregava um
elemento essencial: a especificidade da reação ante o belo. Embora, como todo homem
de seu tempo, tenha-se sentido obrigado a encontrar certa familiaridade entre o belo e o
bom (como o bom poderia ser feio e ao mesmo tempo os seres humanos se sentirem
63
motivados a isto?), deixou a semelhança numa mera analogia entre o sentido do belo e o
da virtude. De qualquer forma, o problema das motivações não egoístas aproximava o
belo à virtude, na medida em que o primeiro prescindia por natureza de considerações
acerca da utilidade e da vantagem.
Esta caracterização do sentimento do belo como originário de um sentido interno
impeliu Hutcheson a tentar estabelecer o tipo de qualidades que o objeto haveria de ter
para produzir a reação adequada. Preocupado, agora sim, mais em estabelecer as
características dos objetos belos que com a identificação de um sentimento não egoísta,
o filósofo moralista torna-se tratadista da beleza e da arte. A fórmula com que
caracterizará a beleza será a de uniformidade na variedade, locus clássico do que diz
respeito à percepção da beleza herdeira da Antiguidade Clássica, que manteria um papel
privilegiado nas teorias cognitivistas acerca deste fenômeno. O próprio autor deu valor
teórico a esta uniformidade, porém cuidou de não atribuir o prazer ao reconhecimento
reflexivo das qualidades objetivas.
Edmund Burke, por sua vez, escreverá a célebre Pesquisa filosófica acerca da
origem de nossas ideias sobre o sublime e o belo, rejeitando tanto o sexto (ou sétimo)
sentido de Hutcheson — principal defeito de qualquer teoria que em nome do
empirismo queira se desfazer de entidades metafísicas, como o era a hutchesoniana a
respeito de seu mentor — e estabelecendo as bases empíricas do prazer e do desprazer
em dois princípios muito simples: a autopreservação e a sociabilidade. Certamente, a
rejeição da utilidade de Burke será um dos eixos fundamentais de suas considerações
sobre a beleza. Ele reclamará, contra os defensores do utilitarismo estético, que nada é
mais adequado e/ou útil para o cumprimento de sua função específica que o focinho de
um porco cheio de lama, objeto a que nenhum dos quais ele se dirigia teve o
atrevimento de considerar belo.
64
Este breve excurso por aquilo que o sentimentalismo inglês chamou de desinteresse
é um ponto importante para compreender a postura kantiana. O interesse é, para Kant,
parte das motivações que podemos encontrar para o agir. Assim, encontramos pelo
menos dois sentimentos que motivam o ser humano a realizar uma ação e, portanto, a
interessar-se pelo objeto dessa ação: o agrado e o respeito 87. Em uma nota importante
sobre este tópico na Fundamentação da Metafísica das Costumes, Kant afirma:
Chama-se inclinação a dependência em que a faculdade de
desejar se encontra das sensações, sendo sempre a inclinação
sinal de uma necessidade. Quanto à dependência em que poderá
estar uma vontade que pode ser determinada de uma forma
contingente dos princípios da razão, dá-se-lhe o nome de
interesse. Este interesse apenas se encontra numa vontade
dependente que não está por si mesma sempre em conformidade
com a razão; na vontade divina não é concebível a existência de
qualquer interesse. Mas a vontade humana pode também tomar
interesse por qualquer coisa sem contudo por essa razão agir por
interesse. A primeira expressão designa o interesse prático na
ação, na segunda o interesse patológico no objeto da ação. A
primeira manifesta apenas a dependência da vontade em face
dos princípios de razão em si mesma, a segunda, a dependência
da vontade face aos princípios da razão posta ao serviço da
inclinação, visto que, neste caso, a razão se limita a fornecer a
regra prática dos meios pelos quais podemos satisfazer a
necessidade de inclinação. No primeiro caso, é a ação que me
interessa; no segundo, é o objeto da ação (na medida em que me
é agradável). Vimos na primeira seção que numa ação realizada
por dever se deve considerar, não o interesse que se possa ter no
objeto dessa ação, mas apenas aquele que se reporta à ação em
si mesma e ao seu princípio racional (a lei).88
De acordo com esta caracterização, o interesse pelo objeto só pode ser patológico.
Não havendo ação na avaliação da beleza, a única forma de suprimir esta condição
animal parece ser a negação do interesse. Na Crítica da Razão Prática, Kant considera
que:
O prazer decorrente da representação da existência de uma
coisa, na medida em que deve ser um fundamento determinante
do apetite por essa coisa, funda-se sobre a receptividade do
87
“Todo o chamado interesse moral consiste simplesmente no respeito pela lei.” Fundamentação da
Metafísica da Costumes, 155 n10
88
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, 82, n1.
65
sujeito, porque ele depende da existência de um objeto; por
conseguinte pertence ao sentido (sentimento) e não ao
entendimento, que expressa uma referência da representação a
um objeto segundo conceitos, mas não ao sujeito segundo
sentimentos. 89
Kant estabelece que a relação que possa ter o sentimento de prazer com o
entendimento não pode pensar a existência e o prazer juntos em relação com o
entendimento. Assim, a relação entre o aparelho cognoscitivo (ou sujeito) não pode se
referir, através de sentimentos, ao objeto, dependendo de sua existência se este não for
prático. O agradável, de fato, produz inclinação, mas o conhecimento que poderíamos
ter das causas do aprazimento (necessidades biológicas, componentes químicos em
relação à receptividade do paladar, etc.) não é a mesma coisa que a inclinação, embora a
explique. Neste sentido, o lugar especial do juízo de gosto é estabelecido por Kant no
Prólogo à edição de 1790:
E, contudo, a investigação crítica de um princípio da faculdade
do juízo nos mesmos [juízos de gosto] é a parte mais importante
de uma crítica desta faculdade. Pois embora eles por si só em
nada contribuam para o conhecimento das coisas, eles apesar
disso pertencem unicamente à faculdade do conhecimento e
provam uma referência imediata dessa faculdade ao sentimento
de prazer e desprazer segundo algum princípio a priori, sem o
mesclar com o que pode ser fundamento de determinação da
faculdade de apetição, porque esta tem seus princípios a priori
em conceitos da razão. 90
Nada no primeiro momento de a “Analítica” faz-nos pensar que Kant tivesse
mudado de opinião.
O que parece ser mais alarmante é que as qualidades que fazem um objeto atraente
do ponto de vista sensível, útil ou desejável do ponto de vista moral, esgotem todas as
instâncias do existente (e mesmo do existente na fantasia, como os desejos de
felicidade). Destarte, a beleza não pode ser pensada como algo que se acrescenta ao
89
90
Ak 40.
Ak. V 169.
66
objeto existente, ou que deixa de lado esses aspectos do objeto para atender a suas
qualidades estéticas; tem que ir além, desvencilhar-se do fato de que o objeto exista ou
não. Assim sendo, não podemos dizer que o prazer no belo gere interesse na existência
da coisa, porque qualquer especificação do que a coisa seja parece supor uma
conceitualização que anularia o sentimento ou avaliação estética. Seria, então, o caso de
que só podemos falar “isto é belo”, sendo irrelevante o que “isto” seja para a avaliação
da beleza. Só o sentimento parece estar à base do juízo. 91
Neste sentido devemos considerar o problema sistemático que um interesse não
patológico num objeto poderia trazer: a incorporação, no domínio do sensível, de uma
distinção entre objetos que não é permitida por nenhuma regra teórica (o que ocorre
com a existência dos objetos). Podemos explicar o prazer patológico teoricamente, mas
não podemos fazer isso com o prazer no gosto. Destarte, o desinteresse garante a
separação dos objetos belos das regras da sensibilidade e, ao mesmo tempo, coloca-o
em analogia com a moral. O próprio Kant assinala esta analogia no § 59 “Da beleza
como símbolo da moralidade”, sendo que o belo “[a]praz independentemente de todo
interesse (o moralmente-bom na verdade apraz necessariamente ligado a um interesse,
mas não a um interesse que preceda ao juízo sobre a complacência e sim que é pela
primeira vez introduzido através dele).” 92
A afirmação de que a existência do objeto belo não produz interesse revela-se
chocante e tem gerado uma ampla polêmica, muito embora também tenha um
interessante sucesso na medida em que foi interpretada como um dos primeiros
reconhecimentos da autonomia do estético frente a outras esferas da vida, sendo
conservada como um princípio de ajuizamento da beleza fundamental. Aliás, foi
recuperada como uma justificativa da necessidade de uma atitude contemplativa — não
91
92
Neste sentido, discordo de GUYER, P.: 1997, 155.
Ak. V 354
67
necessariamente passiva, porém muito semelhante à relação com um mistério sacro —,
que também era o resumo do intuito do século XVIII a respeito do je ne sais pas quoi da
beleza.
Mas, o desinteresse pela existência do objeto, que Kant afirmou na Crítica da
Faculdade do Juízo, pode se resumir à contemplação de um objeto cuja existência pode
interessar-nos para ser contemplado? Por que Kant haveria negado o interesse pela
existência de coisas belas podendo só estabelecer nossa relação com as mesmas como
“contemplativa” de coisas existentes e que nos interessam na medida em que possam ser
contempladas?
Em princípio, poderíamos responder negativamente, porque não se trata de uma
caracterização psicológica ou fenomenológica da experiência estética, mas de uma
análise das condições sistemáticas em que se coloca o juízo sobre a beleza.
Trata-se tão somente de uma negação do interesse sensível no agrado ou na
utilidade, o que levaria Kant a propor o desinteresse pela existência como fundamental?
Novamente não, na medida em que a analogia com o interesse moral não pode ser
desconsiderada no que diz respeito ao lugar do sentimento de gosto.
Podemos afirmar que esse desinteresse pela existência do objeto ou sua mera
contemplação nos permitem expandir o juízo de gosto da forma a fazê-lo extensivo a
todo tipo de objeto e artefato? Não eliminaria isso o momento de julgamento próprio da
faculdade de julgar?
Certamente podemos pensar que qualquer objeto se ofereça ao juízo de gosto; no
entanto, ignorar todos os requisitos que se impõem pela mesma caracterização de
desinteresse na terceira Crítica pareceria nos levar a uma redução, sem argumentos, da
68
posição kantiana que não facilita as coisas no âmbito da filosofia da arte. Assim sendo,
esse desinteresse implica uma reação especial que supõe a avaliação de um objeto
singular sem considerá-lo de acordo com a sua utilidade ou com o prazer que pode nos
proporcionar antes da realização de qualquer juízo (analogamente à moral que, no
entanto, produz o prazer como consequência do juízo). Se qualquer objeto pode ser
avaliado deste modo, então o juízo de gosto não é um juízo reflexionante que leve em
conta a aparição de objetos que gerem o prazer envolvido, mas um a priori de qualquer
representação colocada desse jeito. No entanto poderíamos considerar que não há
problemas em fazer esta interpretação; estaríamos apenas a desconsiderar que ela não
pode ser o resultado de uma argumentação dentro do sistema e ficaria descolada dos
seguintes momentos do juízo. Assim sendo, se pensamos em ter em conta só o
desinteresse como avaliação da mera forma do objeto singular, esta não terá uma
caracterização kantiana; e, ainda assim, é bem possível que os resultados, por exemplo,
no que diz respeito à incorporação dos objetos comuns nas artes, a tornem mais
empobrecida que beneficiada.
Nesse caso, sim, podemos insistir em que não se entende o não interesse pela
existência do objeto. Só como restrição ao interesse patológico e moral pode-se
entender o interesse a posteriori (empírico e intelectual) que o belo produz. Sem isso, só
sendo desinteresse, nossa relação estética com o mundo pareceria ficar constituída como
a de uma série de prazeres permanentes, mas sem sentido; um universo de prazeres
misteriosos, porém triviais, que ficam muito longe da utopia de um mundo cotidiano
mais significativo e prazeroso.
69
2.2. A espontaneidade da arte
Para que seja possível a existência de um objeto que será avaliado como o resultado
de uma técnica, é necessário um conceito que seja sua causa.93 Embora na natureza isso
possa ser prescindível, é um fato que nas produções humanas o plano que guia o técnico
é imprescindível. Assim, não temos que ser conscientes de que uma flor é o órgão
reprodutor das plantas para julgá-la como bela; mas, para compreender a possibilidade
da existência do organismo, sim. Esta é, de fato, a diferença entre a beleza natural e a
teleologia natural. Isso coloca Kant numa encruzilhada da qual será muito difícil sair,
pois aquilo que ficava em suspenso na beleza natural, a saber, a fonte da representação,
deve ser explicitado no caso da obra de arte bela.
Para compreender as possíveis caracterizações de Kant acerca do que configura uma
obra de arte como tal, fixaremos nossa atenção sobre duas peculiaridades das obras de
arte nas quais poderíamos encontrar o papel do conceito procurado: as regras fornecidas
pelo gênio e o conceito de beleza aderente como possível introdutor de conceitos no
juízo de gosto.94
O conceito de obra de arte poderia ser a regra fundamental que guia o gênio para
produzir objetos que aprazam no gosto. Toda arte estética, tem por guia na sua
realização uma intenção elementar: a produção de um sentimento de prazer. 95 Mas, essa
produção requer certas regras que, por exemplo, no caso das artes agradáveis pode-se
fundar em princípios teóricos ou pragmáticos, que ordenam o desenho — uma
elaboração conceitual — do aparelho ou as condutas mais indicadas para atingir esse
93
“Se quisermos explicar o que seja um fim segundo suas determinações transcendentais (sem pressupor
algo empírico, como é o caso do sentimento de prazer), então fim é o objeto de um conceito na medida
em que este for considerado como causa daquele (o fundamento real de sua possibilidade)." Ak. V 219-20
94
Cabe lembrar de que, nesse caso, o juízo de gosto nunca será puro.
95
Ak. V 305.
70
estado prazeroso na maioria das pessoas ou num grupo determinado (por exemplo, o
grupo das pessoas de boa educação com respeito aos prazeres da mesa).
Como poderíamos pensar as regras que guiam o artista? No caso da arte bela, no
entanto, temos o problema de que tal como tinha se estabelecido na “Analítica do Belo”,
o prazer da beleza deve ser desinteressado, universal, sem conceitos determinados que
operem como causas, e, ainda, necessário. E isto parece engendrar uma contradição: por
um lado, encontramos-nos com um prazer não imediato, cujo dar-se ao gosto encontrase mediado por um plano (um conceito); por outro, é um prazer próprio dos juízos sobre
a beleza que, por definição, não admitiam conceitos como causas.
Paul Guyer trabalha o problema da situação especial do conceito arte em seu artigo
“Kant's Conception of Fine Art.”
96
Para Guyer, é um conceito geral da obra de arte
aquilo que regula a sua execução. Este é um conceito geral que define objetos como os
produtos de uma ação intencional orientada ao fim de produzir a devida harmonia entre
a imaginação e o entendimento, que está na base do juízo de gosto (e assim ao prazer da
beleza). A razão pela qual, segundo Guyer, o conceito de obra de arte não obstrui o
juízo de gosto que possa deste modo permanecer sem fim, está em que o próprio
conceito a realizar é o de produzir um prazer sem conceito.
Essa explicação não parece satisfatória, pois supor que o conceito de obra de arte se
realiza somente se não se realiza nenhum conceito, mas que nessa não realização
produz-se um prazer especial, não nos dá nem um conceito de obra de arte, nem uma
explicação adequada da própria justificativa kantiana para a satisfação da beleza em
geral. Isso não é o mesmo que dar uma noção geral (prazer do doce) que descreve um
efeito que se quer explicar (o prazer do chocolate), ou fornecer um conceito que
96
GUYER, P.: 1994, 275-285.
71
explique a possibilidade da existência do objeto que produz o efeito e o porquê do
mesmo (o prazer).
Na bela natureza não podemos encontrar o conceito que produz o prazer, porque não
há nenhum prazer produzido de forma intencional. Isto é o que justifica o interesse
intelectual relativo à beleza natural. 97 Nesse sentido, a beleza não é mais que um efeito
sobre o sujeito. Guyer confunde o efeito com a causa, ou neste caso, o resultado — que
pode ser isolado como prazer estético e analisado com respeito aos seus fundamentos a
priori, independentemente da possibilidade do objeto — com seu fundamento de
possibilidade. Para Kant, no entanto, os dois permanecem bem diferenciados. De fato, a
própria introdução do gênio como talento natural do artista mostra que, por mais
difusamente que se conceba a ideia que o gênio tem na hora de produzir arte, esta não
pode ser a de produzir um prazer, porque isto simplesmente não é uma regra para a
realização de um objeto, como a intenção de produzir um prazer através de uma boa
comida não é suficiente para a realização de um prato saboroso.
Penso que o problema fundamental de Guyer está no fato de que, em seu afã
analítico, ele pretende encontrar em Kant algo sobre o que este não refletiu de forma
profunda: um conceito geral de obra de arte. Embora a noção de Guyer possa ser
considerada a única síntese possível do argumento kantiano da definição de arte (isto é,
a noção mais geral que encontramos na Crítica da Faculdade do Juízo, ainda que não
encontremos um fundamento para ela), deve-se aceitar que o vácuo que gera é
problemático, sobretudo porque o vácuo que podemos aceitar na natureza pede-nos uma
justificativa ainda maior quando se trata de uma obra humana. 98
97
Cf. Ak. V 401-2 citada adiante.
Henry Allison, por exemplo, acrescenta a noção de estar guiada por um conceito (Zweck-condition), à
noção de assemelhar-se à natureza na sua espontaneidade (Natur-condition). Assim, sem especificar um
conceito geral das artes, sustenta que a naturalidade seria uma dimensão ordenadora dos conceitos ou
fins internos num todo. Nesse sentido, a obra de arte seria o espelho do organismo, muito embora quando
98
72
Tentemos com a segunda via, a saber, a beleza aderente. Eva Shaper, por exemplo,
retoma a consideração do conceito geral de obra de arte, mas afirma que, no caso de ser
procurado no juízo de gosto puro, pelo qual a obra pode ser julgada, perder-se-iam
aspectos substanciais da experiência estética especificamente artística.
99
Esta distinção
remete a uma diferença entre tipos de beleza que propõe Kant no parágrafo 16, de
acordo com a qual podemos julgar a beleza de modo livre ou de modo aderente. Este
último caso compreende os fenômenos em que a beleza encontra-se ligada, aderida a um
conceito do quê a coisa deva ser. O próprio Kant afirma que se podem dar ambos juízos
de gosto sobre o mesmo objeto.100 Embora também possam se dar juízos de beleza
aderente sobre objetos da natureza, como é o exemplo do cavalo, é importante
considerar que, na arte, o fato de que seja um produto intencional é parte constitutiva da
apreciação da mesma.
Pensamos, com Shaper, que o processo que dá origem uma obra de arte se
compreende melhor quando esta é avaliada como uma beleza aderente. Contra Guyer e
Shaper, no entanto, não cremos que seja o conceito de obra de arte em geral que está
envolvido na produção dos objetos artísticos. Os conceitos que parecem estar
envolvidos na produção da obra parecem ter mais a ver com o modo de conhecimento
associado à representação e, portanto, ao conteúdo que guia a execução da obra e sua
concreção num objeto material.101 Também as regras de produção mecânicas próprias
realizada de acordo com um fim possa ser olhada como natureza; enquanto que o organismo, conquanto
natureza, deva ser pensado como fim. Mas, por que nem todo objeto belo tem a forma de um organismo?
No final das contas, a natureza também tem que ser pensada como arte nos juízos de beleza. Parece então
que o argumento de Allison nos deixa nas portas do argumento de Guyer. Cf. ALLISON, H.: 2001b.
De fato, ao afirmar que a diferença entre uma estátua e a arquitetura está em que a primeira só pode ser
avaliada na mera contemplação como beleza livre, sem restrições conceituais, Allison introduz uma noção
de obra de arte muito semelhante à de Guyer. Ibidem, 297-8.
99
SHAPER, E.: 1999
100
Ak. V 231 Isto não há de supor, em princípio, uma diferença de valor para cada um dos juízos.
101
É importante recordar que a finalidade para a qual um objeto é construído pela mão do homem inclui
necessariamente um conceito.
73
de cada arte particular parecem estar envolvidas na produção da obra de arte. Isto é, são
conceitos particulares vinculados a cada obra em particular.
No parágrafo 42, Kant trata sobre o interesse intelectual da existência do belo, e já
adianta que a satisfação produzida pela beleza artística articula uma resposta
sentimental complexa:
O fato de no juízo de gosto puro o aprazimento na bela arte não
pode estar ligado a um interesse imediato do mesmo modo que
o aprazimento na natureza bela é fácil de explicar. Pois a arte
bela ou é uma imitação desta a ponto de chegar ao engano: e
então ela produz o efeito de (ser tida por) uma beleza da
natureza; ou ela é uma arte visível e intencionalmente dirigida
ao nosso aprazimento: mas neste caso o aprazimento nesse
produto na verdade ocorreria através do gosto, e não despertaria
senão um interesse mediato pela causa que se situaria no
fundamento, a saber, por uma arte que somente pode interessar
pelo seu fim, jamais em si mesma.102
É claro que a obra de arte é concebida por Kant como uma representação de outra
coisa, e nessa outra coisa, que é a causa da mesma, ele coloca o conceito que guia sua
execução. Uma razão para isto poderia estar em que, se pensássemos num conceito
geral da obra de arte (mesmo que seja o conceito de produzir um prazer sem conceito), e
não nos efeitos deste como a fonte do prazer, ver-nos-íamos obrigados a deixar outros
aspectos do juízo de gosto. Por exemplo, parece claro que na intenção e realização de
um objeto obra de arte a qualidade ou o desinteresse pela existência do objeto fica
anulado automaticamente. O artista produz objetos, faze-os existir, logo tem que
produzir conceitos que garantam a existência do mesmo, embora não tenha nenhum
outro objetivo (como obter dinheiro, fama ou educar os ímpios). Neste sentido, cremos
que há que se interpretar o fato de que a arte não gera prazer por si mesma.
Assim, pensamos que não é a criação do objeto obra de arte através de um conceito
geral do que esses objetos possam ser, como belezas, o que leva Kant a dar à arte um
102
Ak. V 301-2.
74
lugar na sua crítica das faculdades. Isto é, se temos um objeto x (neste caso, a obra de
arte), sua produção envolverá um conceito do que qualquer objeto deva ser para que
seja efetivamente um caso de x. No entanto, para a arte, como no caso da beleza natural,
este conceito não é o que produz um interesse pela beleza e — é fácil derivar disso —
não é o que produz o prazer estético próprio da arte (embora, inevitavelmente, esteja
envolvido na produção do objeto). O problema na arte é que, embora não seja a causa
do prazer, temos que estar cônscios de que houve uma ação orientada à sua produção
(como em um objeto obra de arte, uma estátua representando uma mulher, uma mulher
tranquila, boa, e assim por diante).
O que significa dizer que Kant não estava pensando em um conceito de obra de
arte? É claro que não significa que houvesse desconsiderado o problema de diferenciar
a arte de outros objetos que não o eram. Que as exigências que hoje estabeleceríamos
para a definição de arte não são as mesmas da época de Kant, onde o universo de
objetos considerados obras de arte não era questionado. Embora Kant trabalhe as
diferenças entre as belas artes e outros objetos, o que ele não aborda são as
coincidências entre esses objetos (as obras de arte, o que as estátuas têm em comum
umas com as outras e com a pintura, por exemplo), além de não caracterizar esses
objetos como símbolos em seu sentido duplo: tanto sensíveis quanto expressivos de algo
mais.
Destarte, podemos concluir que o texto kantiano não oferece um conceito geral de
obra de arte (de belas artes), e remete-nos às obras de arte particulares e aos conceitos
nelas envolvidos. Todavia, o artista tem que fazer alguma coisa com esses conceitos
para que a faculdade de julgar estética responda à obra. Para isso, vamos distinguir
75
sumariamente entre purificação e naturalização do exemplar.103 No primeiro processo,
temos um regresso à pureza do objeto feito aderidamente. No segundo, a obra atinge um
status equivalente ao da natureza. 104
O que ocorre com este regresso à pureza do exemplar, e na sua relação com os
conceitos? É claro que todo o avanço no que diz respeito aos conceitos envolvidos na
produção artística, mesmo os conceitos indeterminados para a sensibilidade ou ideias de
razão, ficam recolhidos na armadura do gosto, do mesmo modo que todos os conceitos
relevantes para a experiência da beleza da rosa são desconsiderados na sua avaliação
pelo gosto.
Porém, como já falado, gostaríamos de manter uma distinção entre a purificação do
exemplar, ou proceder ingênuo do olho (ou ouvido) que percebe a obra, e o paradoxo
sistemático fundamental que está inserido, desde o início na caracterização, tanto da
beleza natural como da arte, esta última, a saber, o da técnica da natureza. Desse modo,
o problema apresenta-se não só para a arte, mas também para a natureza, sendo que a
equiparação das duas deve fornecer-nos algumas respostas às perguntas que nos fizemos
sobre o fato de Kant ter preservado a estrutura da conceitualidade (na finalidade sem
fim), mesmo eliminando o conceito que deveria ter por base. Destarte, salientamos
também o papel diferente entre a experiência da beleza e a experiência da reflexão na
produção conceitual, seja esta empírica, pura ou qualquer uma das suas instâncias
intermediárias.
Embora a naturalização da arte seja um fenômeno que nos diz muito a respeito do
porquê da necessidade de purificação do exemplar, ela certamente vai um passo adiante
na caracterização sistemática deste último à medida em que coloca o belo artístico como
103
104
Chamamos exemplar a cada obra de arte em sua singularidade.
Para um desenvolvimento maior desta distinção, cf. HERRERA NOGUERA, M.: 2006.
76
uma baliza a mais na construção da mediação entre conhecimento e liberdade, e na
especificação do sentimento ou prazer estético que, como já consideramos, deve mostrar
não ser o resultado de um ato de conhecimento comum. Por isso, consideraremos esta
naturalização como algo mais que um simples dizer ao receptor: “esqueça tudo o que
sabe da obra, e simplesmente se permita aprazê-la, deixando de lado os possíveis
conhecimentos que tenha sobre ela” (o que seria a instância mais ingênua da purificação
estética do exemplar). Outrossim, consideramos que também não é muito complexo
dizer ao receptor: “leve em conta todos os seus conhecimentos, liberte-se dos interesses
pessoais, e vá além de todo o determinável pelo pensamento.” Nessas duas indicações,
poder-se-ia resumir a função de purificação do exemplar.
De modo diferente, a naturalização pode ser analisada como uma argumentação a
favor da autonomia da experiência estética, não em sua negativa em responder à regra
alguma, mas em seu descobrir da normativa própria do fenômeno da beleza. Essa
normativa que era impensável no caso da beleza natural, onde o universo dos objetos
não podia sair da experiência singular sem ser forçado, encontra na discussão sobre a
arte um espaço que, embora possa questionar os resultados da “Analítica do Belo”,
também pode nos ajudar a esclarecer algumas das noções kantianas sobre os fenômenos
ocultos sob os conceitos vagos desta primeira parte da análise da faculdade de julgar a
estética.
Conforme já referido, pensamos que na relação entre exemplar e regras da arte há
uma recuperação do problema do conceito geral de obra de arte a partir de restrições
nas propriedades formais do objeto. Neste ponto, queremos introduzir outra noção que,
consideramos, acrescenta um aspecto importante para que o sacrifício da
conceitualidade não seja um sacrifício de qualquer tentativa para distinguir entre o que
77
seja arte e o que não seja, a saber, o que chamaremos de “espontaneidade da forma” do
objeto belo.
O objeto não pode ser qualquer objeto porque tem que ser belo e tem que parecer
natureza. Para isso, deve ele ocultar sua artisticidade e renegar os aspectos mais
mecânicos de sua execução. Somente desta forma conseguirá mostrar esteticamente um
conteúdo, sem alegorias nem sentidos dependentes do contexto, o que é, para Kant, a
forma do universalmente compartilhável, mas também sem conceitos que nos permitam
estar conscientes de sua essência além do prazer que nos provoca. Ainda assim, nem o
objeto belo nem o artístico podem ser qualquer objeto (tampouco natural ou artificial),
pois devem preencher aquela condição que os fazem integrar o universo dos objetos
técnicos, embora não definidos hipoteticamente (quer dizer, da finalidade sem fim que
não é nem a de uma lei particular que consegue se inserir num sistema, nem a do
organismo vivo).
Assim, diz-nos Kant no parágrafo 45 da Crítica da Faculdade do Juízo:
Face a um produto da bela arte temos que tomar consciência
que ele é arte e não natureza. Todavia, a conformidade a fins na
forma do mesmo tem que parecer tão livre de toda a coerção de
regras arbitrárias, como se ele fosse um produto da simples
natureza. [...] Portanto, embora a conformidade aos fins no
produto da arte bela, na verdade, seja intencional, ela, contudo,
não tem que parecer intencional; isto é, a bela arte tem que
passar por natureza, conquanto na verdade tenhamos
consciência dela como arte. 105
Como interpretar arte e natureza nessa afirmação de Kant? Uma primeira
interpretação que pode nos vir à mente é a da arte como um produto intencional
(teleológico) e da natureza como um produto não intencional (não teleológico).
Destarte, poderíamos apresentar o parágrafo da seguinte forma:
105
Ak. 306-7.
78
Face a um produto da bela arte temos que tomar consciência
que ele é teleológico e não não teleológico. Todavia, a
conformidade a fins na forma do mesmo tem que parecer tão
livre de toda a coerção de regras arbitrárias, como se ele fosse
um produto da simples não teleologia. [...] Portanto, embora a
conformidade aos fins no produto da arte bela, na verdade, seja
intencional, ela, contudo, não tem que parecer intencional; isto
é, a bela arte tem que passar por não teleológica, conquanto na
verdade tenhamos consciência dela como teleológica.
O problema desta substituição está em que a primeira oração fica trivial e a segunda
parece implicar uma contradição.
Uma segunda interpretação é a de Henry Allison, no seu livro Kant’s Theory of
Taste, para quem a arte é um produto intencional (teleológico) e a natureza um produto
orgânico (não só organizado, mas que se organiza a si mesmo):
Visto isoladamente, a primeira condição [de que sejamos
cônscios do objeto como arte] é de alguma maneira sugestiva da
conhecida posição de Arthur Danto sobre a natureza da arte.
Apelando às caixas de Brillo como caso paradigmático, Danto
sugere que a questão do que faz algo uma obra de arte [bela]
não pode ser respondida pela referência a nenhuma propriedade
formal do objeto. Porque em termos destas propriedades, não
pode ser distinguida de uma caixa de Brillo ordinária que pode
ser achada em uma loja; e o mesmo pode ser dito do urinol de
Duchamp e semelhantes. O que as faz obras de arte, então,
desde a posição de Danto, é seu “ser sobre algo”; quer dizer,
elas procuram fazer uma declaração (para Danto uma
declaração reflexiva, teorética) sobre a própria natureza da arte,
e para que nós as olhemos como obras de arte temos justamente
que olhá-las nesta luz (como objetos que podem ser
interpretados). [Arthur Danto, Beyond the Brillo Box.] De
modo semelhante, para Kant, ser cônscio de uma coisa como
arte é tê-la como o resultado de um intento consciente de parte
do artista e, por essa razão, como envolvendo “ser sobre algo”
ou intencionalidade que, outrossim, a faz objeto de
interpretação. [...] No entanto, o segundo requisito (que a obra
de arte seja semelhante à natureza), que para Kant é claramente
o mais importante, diferencia nitidamente sua posição da de
Danto. 106
106
“Viewed in isolation, the first requirement (that we be conscious of the object as art) is somewhat
suggestive of Arthur Danto’s well-known account of the nature of art. Appealing to Andy Warhol’s Brillo
Box as a paradigm case, Danto suggest that the question of what makes something a work of [fine] art
cannot be answered by reference to any observable properties of the object. For in terms of such
properties, it is indistinguishable of the object. For in terms of such properties, it is indistinguishable
from an ordinary Brillo box that one finds un a store; and the same may be said of Duchamp’s urinal and
79
À procura da naturalidade, Allison vai lançar mão da organicidade da natureza, o
que condiz com muitas das ideias que Kant considera a respeito do uso dos princípios
teleológicos na filosofia, conforme já referido. Certamente, o interesse fundamental
estará no fato de combinar causas mecânicas com causas finais, em uma nova versão da
causa eficiente que é o gênio, permitindo às duas causas coincidirem no mesmo objeto,
e fazendo de Kant um formalista que preserva a idéia do todo e da sistematicidade
diferente da máquina, que não se auto-organiza, mas recebe sua organização de uma
causa exterior.107 No entanto, além de colocar a obra como requerendo uma causa
natural especial, e de diferir de Danto e Christel Fricke108, pouco mais nos diz Allison a
respeito de uma caracterização do que possa ser esta condição de natureza da obra de
arte. Podemos, portanto, tomar a noção de organicidade como referência no que diz
respeito ao termo natureza109, e ler o parágrafo que nos resulta problemático da
seguinte forma:
Face a um produto da bela arte temos que tomar consciência de
que ele é teleológico e não orgânico. Todavia, a conformidade
aos fins na forma do mesmo tem que parecer tão livre de toda a
coerção de regras arbitrárias, como se ele fosse um produto da
simples organicidade. [...] Portanto, embora a conformidade
aos fins no produto da arte bela, na verdade, seja intencional,
ela, contudo, não tem que parecer intencional; isto é, a bela arte
tem que passar por orgânica, conquanto na verdade tenhamos
consciência dela como teleológica.
the like. What makes these works of art, then, on Danto’s view, is their “aboutness”; that is to say, they
endeavor to make a statement (for Danto a reflexive, theoretical statement) about the nature of art itself,
and for one to regard them as works of art is just to view them in this light (as objects susceptible to
interpretation. [...] Nevertheless, the second requirement (that the work of art seem like nature), which
for Kant is clearly the most important one, differentiates his view sharply from one such as Danto’s. [...]
Similarly, for Kant, to be conscious of something as art is to take it as a product of a conscious intent on
the part of the artist and, therefore, as involving an “aboutness” or intentionality that likewise makes it
subject to interpretation.” ALLISON, H.: 2001, 275.
107
Cf. ALLISON, H.: op. cit. 277-8.
108
Ibidem, 275, nota de rodapé 9.
109
Contudo, temos que levar em conta que Allison não está advogando por uma arte que imite a natureza,
e por momentos parece nem sequer estabelecer mais limite ao conceito de forma da obra em Kant que o
do fato de não ser um objeto mecânico. Embora pareça claro que não está disposto a não incluir aos
ready-mades, a anti-arte e outras formas contemporâneas, também não está afirmando mais que um
formalismo ou organicismo muito superficial.
80
A primeira frase parece ser contraditória, pois ainda que se trate a organicidade
como uma forma análoga da teleologia, certamente a analogia funda-se na necessidade
de conceitos para explicar a possibilidade dos objetos, apesar de ter consciência de que
esses são natureza, e não arte. Isto é: a organicidade e a artisticidade são sinônimas
enquanto teleológicamente causadas, a auto-organização é o que se explica apelando a
um conceito e não a causas mecânicas. O resto, no entanto, parece trivial.
Como interpretação alternativa, estabeleceremos a seguinte: pensaremos que a arte é
um produto intencional (teleológico) e a natureza, um produto mecânico. O texto ler-seia assim:
Face a um produto da bela arte temos que tomar consciência de
que ele é teleológico e não mecânico. Todavia, a conformidade
aos fins na forma do mesmo tem que parecer tão livre de toda a
coerção de regras arbitrárias, como se ele fosse um produto da
simples mecanicidade. [...] Portanto, embora a conformidade
aos fins no produto da arte bela, na verdade, seja intencional,
ela, contudo, não tem que parecer intencional; isto é, a bela arte
tem que passar por mecânica, conquanto na verdade tenhamos
consciência dela como teleológica.
O fundamento da proposta está em interpretar “mecânico” no sentido de que, na
medida em que segue causas cegas, nossas faculdades têm uma aproximação
“espontânea” e não “lúcida” (de identificação da causa formal e/ou final que produz o
objeto), sem relação com fins externos ou utilitários; isto é, não como os conceitos que
guiam as artes mecânicas, mas como análogo à característica da legalidade própria da
natureza de acordo com a primeira Crítica. Quer dizer, temos que olhar a arte como
tendo sua própria legalidade, embora não seja possível reconhecer os conceitos que a
constituem como tal, sem pensar nesses como o resultado de uma criação e sem ter
81
nenhum acesso a eles pelas limitações das faculdades do entendimento e da
imaginação.110
É importante, aqui, levar em conta todo o problema da terceira Crítica: para Kant,
estava demonstrado, nas primeiras duas Críticas, que existiam regras necessárias para
ordenar o mundo e compreender a liberdade humana. Porém, ainda assim, a organização
deste mundo (as leis empíricas, o belo e até a possibilidade de realização da ação moral
num mundo determinado), nosso conhecimento dele, não podia ser considerado
necessário (e, de fato, mesmo organizado em termos de causas e efeitos, Newton e a
revolução científica toda, tinham mostrado que o erro na escolha das causas e efeitos
que constituem as leis da nossa natureza tinham sido o mais frequente e não a
excepcionalidade em homens do valor intelectual de Aristóteles, para colocar um
exemplo). Assim, Kant volta a debater-se entre o absolutamente contingente do cético,
no que diz respeito às leis particulares, e a afirmação dogmática de ter argumentos para
que este mundo possível fosse também necessário. A heautonomia, ou autonomia
reflexionante, foi a forma de sair deste empecilho, mas isso não o afastou da convicção
de que toda atividade das faculdades é uma atividade ordenadora e, portanto, não pode
não se relacionar com um universo ordenado conforme as regras (cegas ou lúcidas).111
Além disso, em primeiro lugar, como argumento a favor dessa interpretação,
diremos que em momento algum a consideração kantiana torna-se trivial. Além disso,
cabe salientar que, no contexto em que está inserida a afirmação, Kant está enfatizando
110
Possibilidade esta que, voltamos a salientar, não podemos afirmar acerca das coisas em si mesmas, não
por ser contraditório, porque estaríamos indo além dos limites do cognoscível.
111
Neste ponto, importa salientar que, para Kant, as causas mecânicas ou cegas não eram sinônimos de
causas instrumentais, mesmo que as causas instrumentais tivessem que combinar a causa lúcida do alvo a
ser atingido e o conhecimento das causas cegas que, se reproduzindo na natureza, podiam permitir-lhes
conseguir o seu objetivo. Aliás, o fato de que as causas cegas se reiterassem e pudessem guiar os fins
úteis pode ser considerado um bom motivo pelo qual os antigos, mesmo errados no que diz respeito às
leis empíricas, puderam viver e dar explicações não absurdas da ordem do universo, antes da revolução
científica.
82
a distinção entre arte e natureza, controlando a dimensão intencional e criativa com uma
dimensão normativa:
Um produto de arte, porém, aparece como natureza pelo fato de
que na verdade foi encontrada toda a exatidão no acordo com
regras segundo as quais unicamente o produto pode tornar-se
aquilo que deve ser, mas sem esforço, sem que transpareça a
forma escolástica, isto é sem mostrar um vestígio de que a regra
tenha pairado diante do artista e tenha algemado as faculdades
do ânimo.112
Contra a interpretação, muito sugestiva, de Allison no que diz respeito à estrutura
sistemática da relação arte-gênio, Kant não indica o conceito de organismo como
espelho da beleza natural ou artística, algo que já tinha feito, e escolhe não fazer no
contexto da terceira Crítica. Parece plausível que Kant, podendo perfeitamente fazer
essa assimilação, tivesse colocado algumas restrições ao uso do seu sistema que bem
podem ser compreendidas como ferramentas para garantir a passagem tanto do teórico e
ao prático quanto da finalidade dos sistemas (conformidade da natureza em geral às
nossas faculdades de conhecer) e as finalidades contingentes específicas do belo e do
organismo. Além disso, se Kant defendesse a tese de Allison, então não deveria falar de
natureza em geral, mas de certas formas da natureza às quais atribui a forma orgânica.
Também podemos dar alguns argumentos do ponto de vista da teoria estética.
Assim, a noção de exemplar associa-se a uma criação que se baseia no reconhecimento
natural de uma regra dada na própria arte, que obriga a realizar o esforço de adequar a
forma ao pensamento, preservando a liberdade, isto é, procurando uma aparência de
espontaneidade e não uma geração natural ou auto-organização. Parece também
mais obscuro aquilo que as obras de arte têm em comum (seu “ar de família”, por
apelar ao termo popularizado a partir do segundo Wittgenstein) que aquilo que os
organismos têm em comum. Quer dizer, ante a ausência de uma definição geral, que
112
Ak. V 307.
83
existe para os organismos, parece razoável pensar que Kant restringiu ainda mais as
possíveis caracterizações da forma artística, podendo deixar assim uma normativa
imanente não explícita, que é, ao final das contas, o que queremos dizer quando falamos
de espontaneidade neste contexto.
Os textos pré-críticos podem nos auxiliar nessa caracterização.113 Por exemplo, nas
Leituras sobre Metafísica (datadas de meados de 1770), considerando a dimensão
universal, mas empírica do gosto, Kant faz a seguinte observação, que estabelece uma
analogia entre uma “regra a priori determinante” e uma “regra a priori mediata (por
comparação)” para as obras de acordo com o gosto — que responderia a regras
universais empíricas — e exemplares:
Poderíamos dizer: algumas regras do gosto são a priori; mas não
imediatamente a priori, senão mais bem comparativamente, de
maneira que estas regras a priori se fundam em regras
universais da experiência. Por exemplo, ordem, proporção,
simetria, harmonia em música são regras que reconheço a priori
e compreendo que comprazem a todos; mas novamente, estão
fundadas em regras universais a posteriori. Podemos inclusive
sustentar um gosto necessário, por exemplo, todos gostam de
Homero, Cícero, Virgilio, etc.114
Poder-se-ia perguntar: por que não interpretar natural como espontâneo e deixar o
equívoco termo mecânico de lado? Porque Kant não caracteriza a natureza em geral de
espontânea em outro sentido que aquele que serve para garantir o fato da mesma estar
estruturada de acordo com leis mecânicas. Apresentamos esse argumento, também,
como argumento a favor de “dissolver” a primeira proposta de interpretação na nossa.
113
Não utilizamos os textos pré-críticos como evidência, mas como fontes de exemplos intuitivos,
análises mal sucedidas que permitem identificar fenômenos que Kant tentou explicar, mesmo deixando
eles de lado ou reformulando-os depois.
114
“One could also say: that some rules of taste are a priori; but not immediately a priori, rather
comparatively, so that these a priori rules are themselves grounded on universal rules of experience. E.g.,
order, proportion, symmetry, harmony in music are rules which I cognize a priori and comprehend that
they please all; but they are again grounded in universal a posteriori rules. We could also maintain a
necessary taste, e.g., everyone has taste for Homer, Cicero, Virgil, etc." Ak. XXVIII: 251-2
84
Nesse sentido, espontâneo seria equivalente a mecânico, enquanto ordenado de
acordo a leis não arbitrárias opõe-se a intencional, como graça opõe-se à consciência
no texto de 1810, A respeito do teatro de marionetes de Heinrich von Kleist.115 Este
texto parece ser um bom auxílio no que diz respeito a certas concepções do natural que,
embora românticas, têm raízes profundas no senso comum filosófico da Alemanha da
época kantiana e imediatamente pós-kantiana.116
O texto expõe uma discussão a respeito das vantagens de uma marionete em
comparação a um bailarino, com um oponente que defenderia a superioridade da
primeira em relação ao último: “E quais vantagem teria essa boneca em relação a um
bailarino vivo? ”,117 ao que o oponente responde indicando uma clara vantagem das leis
mecânicas no que respeita à graça e fazendo um comentário que pode nos lembrar a
crítica kantiana da maneira:
A vantagem? Antes de mais nada, uma negativa, meu
inestimável amigo; a saber, que esta boneca nunca se afetaria.
A “afetação”, como o Senhor sabe, aparece quando a alma (vis
motrix) encontra-se em qualquer lugar diferente no ponto de
gravidade do movimento.118
Assim, von Kleist desenvolve toda uma argumentação dos desacertos inevitáveis do
bailarino pela consciência da representação que está fazendo, como se a incorporação
do personagem o fizesse perder o domínio corporal pela identificação afetiva. Esta
situação é colocada como a daquele que, sabendo que tem que cumprir um fim, perde o
115
Ernest Cassirer considerou a von Kleist um dos mais fiéis seguidores de Kant, na medida em que, na
procura do Absoluto, nunca deixou de considerar os limites do nosso conhecimento do fenômeno do eu
que conhece como um ato involuntário de inteligência. Cf. CASSIRER, E.: 1919
116
O texto pode se considerar representativo da tradição romântica e pré-romântica da “objetividade” da
beleza e da graça. Cf. SCHILLER, F.: 1793.
117
“Und der Vorteil, den diese Puppe vor lebendinge Tänzen voraus haben würde?” VON KLEIST, H:
2002, 4.
118
“Der Vorteil? Zuvörderst ein negativer, mein vortrefflicher Freund, nämlich dieser, daß sie sich
niemals zierte. Denn Ziererei erscheint, wie Sie wissen, wen sich die Seele (vis motrix) ir irgend einem
andern Punkte befindet, als in Schwerkpunkt der Bewegung.“ Ibidem, 4-5.
85
domínio dos aspectos mecânicos através dos quais tem que fazê-lo, tornando evidente o
esforço para sua realização.
Assim, von Kleist desenvolve toda uma argumentação dos desacertos inevitáveis do
bailarino pela consciência da representação que está fazendo, como se a incorporação
do personagem o fizesse perder o domínio corporal pela identificação afetiva. Esta
situação é colocada como a daquele que, sabendo que tem que cumprir um fim, perde o
domínio dos aspectos mecânicos através dos quais tem que fazê-lo, tornando evidente o
esforço para sua realização.
Assim, o narrador ainda confirma sua tese de que o corpo humano, na medida em
que é mais complexo, tem um potencial expressivo maior e, com isso, pode nos
encantar mais que a marionete. Frente a isso, o oponente revela a relação entre mecânica
e realização da beleza como análoga à da Criação:
Disse-lhe que, ainda que continuasse defendendo com a mesma
habilidade as causas de seus paradoxos, jamais me faria crer
que se pode apreciar um encanto119 maior em uma marionete
mecânica do que na compleição do corpo humano.
Replico dizendo que nem sequer igualar-se à marionete seria
possível ao homem. Unicamente um deus poderia rivalizar com
a matéria nessa terra; e em tal caso se verificaria o ponto em
que os dois extremos do mundo anular se tocariam.120
O diálogo continua com um narrador bastante convicto de que, como o sofista nos
Diálogos de Platão, começa a argumentar a favor do seu oponente a partir do
119
Traduzo “Anmut” por “encanto” porque o autor vai utilizar “Grazie” mais adiante, porém vale lembrar
que ter um significado semelhante não faz mal neste contexto.
120
“Ich Sagte, daß, so geschickt er auch die Sache seine Paradoxe führe, er mich doch nimmermehr
glauben machen würde, daß in einem mecanischen Gliedermann mehr Anmut enthalten sein könne, als in
dem Bau des menschlichen Körpers.
Er versetzte, daß es dem Menschen schlechthin unmöglich wäre, den Gliedermann darin auch nur zu
erreichen. Nur ein Gott könne sich, auf diesem Felde, mit der Materie messen; und hier sei der Punkt, wo
die beiden Enden der ringförmigen Welt in einander griffen.” Ibidem, 5-6.
86
reconhecimento de que “conhecia certamente as desordens que causava a consciência na
graça do ser humano. ”121
Não obstante considerarmos importante evitar as tendências spinozistas de von
Kleist, isto é, evitar trespassar os limites da filosofia transcendental e unir mecanismo e
teleologia no “ponto em que os dois extremos do mundo anular se tocariam”, a ideia de
que há uma instância na qual todas as leis se unificam, tanto as do fenômeno como as
intencionais, percorre toda a Crítica da Faculdade do Juízo. Mesmo assim, qualquer
hipótese a respeito fica fora do alcance da razão pura, e os esforços do juízo por
encontrar o ponto serão vãos no que diz respeito aos objetos belos (onde não haverá
objetivação de fim ou conceito nenhum) e infinitos no caso dos organismos vivos.
A beleza não pode ser reduzida a um mecanismo, nem a um fim ou intenção.
Poderíamos dizer que tem sua própria espontaneidade, mas que esta permanece oculta
para nós e só se revela na obra do gênio (e nem ele mesmo pode-nos explicá-la). Isso a
aproxima daquilo que faz a natureza bela, o que nos permanece ainda mais obscuro na
medida em que não podemos afirmar a existência de um criador. Destarte, o conceito ou
regra da beleza permanece inescrutável, e o modo em que gera esse prazer em nós
continua desconhecido. Parece que, por acaso da natureza, as obras de arte chegam ao
mundo portando intenções diversas: significados e modos de apresentá-los.
Do texto de von Kleist, queremos conservar a ideia de que há um produto criado
(intencional), mas que é conseguido na adequação às regras da prática em que está
inscrito (que é exemplar e se guia por outros exemplares). Kant poderia quiçá ter
aprofundado as relações entre continuidade e inovação na geração do exemplar, mas é
121
“[I]ch gar wohl wüßte, welche Unordnungen, in der natürlichen Grazie des Menschen, das Bewußtsein
anrichtet.” Ibidem, 6
87
razoável que a própria espontaneidade que garante o jogo das faculdades tenha
primado sobre o desenvolvimento empírico da prática artística.
2.3. Normatividade do gosto e autonomia
A faculdade de julgar estética produz juízos não lógicos. Isto parece ser uma
evidente contradictio in terminis. Porém, devemos levar em conta que, como acabamos
de dizer, dentro do modelo kantiano, esta irrupção da sentimentalidade parece ter seu
lugar. Isto obriga Kant a especificar melhor como entende o modo de agir desta
faculdade. Destarte, consideramos fundamental salientar que o juízo de gosto não nos
informa de sensações, nem sequer naquela forma em que além de nos dar prazer, pode
nos dar informação sobre o objeto (como poderiam ser os juízos do agrado considerados
juízos de percepção). Kant salienta que “não é um sentido objetivo, cuja determinação
fosse utilizada para o conhecimento de um objeto (pois intuir algo com prazer ou então
conhecer com prazer não é mera referência da representação ao objeto, mas uma
receptividade do sujeito), mas que não contribui com nada para o conhecimento do
objeto.” 122
E até mesmo parece atribuir ao sentido dos termos um problema que, na verdade,
encontra-se no centro de sua proposta:
Permanece sempre [...] uma equivocidade inevitável na
expressão do modo de representação estético, se por ela se
entende ora aquele que excita o sentimento de prazer e
desprazer, ora aquele que diz respeito meramente à faculdade de
conhecimento, na medida em que nela é encontrada intuição
sensível, que nos faz conhecer os objetos somente como
fenômenos.123
122
123
Duas introduções à Crítica do juízo, 183. O destaque é nosso.
Idem.
88
Destarte, parece evadir-se o problema intrínseco à sua proposta, que está no fato de
que o prazer parece não ser mais que o resultante de uma relação entre a representação
sensível e o entendimento, muito próxima à que pensaríamos existir no conhecimento
de qualquer objeto:
Um juízo de experiência singular, por exemplo, daquele que
percebe uma gota movendo-se num cristal, exige com razão que
qualquer outro tenha que considerar precisamente assim, porque
proferiu esse juízo segundo as condições universais da
faculdade de juízo determinante, sob as leis de uma experiência
possível em geral. Precisamente assim acontece com aquele que
sente prazer na simples reflexão sobre a forma de um objeto
sem considerar um conceito, ao exigir o acordo universal, ainda
que este juízo seja empírico e singular. A razão é que o
fundamento para este prazer encontra-se na condição universal,
ainda que subjetiva, dos juízos reflexionantes, ou seja, na
concordância conforme a fins de um objeto (seja produto da
natureza ou da arte) com a relação das faculdades de
conhecimento entre si, as quais são exigidas para todo
conhecimento empírico (da faculdade da imaginação e do
entendimento).124
O que faz a condição universal subjetiva do juízo reflexionante, que produz o belo,
ser diferente daquela que produz conhecimento? Sendo as mesmas condições as que
parecem se impor ao conhecimento empírico, o que aparenta faltar é a aplicação de um
conceito que, por não estar disponível no caso da beleza, ficaria indeterminado. No
entanto, a concordância com as condições do conhecer em geral torna muito grande a
tentação de pensar que achamos aqui uma especial forma de dizer que a natureza se
dispõe a ser conhecida, e que o objeto belo é o herdeiro legítimo da concepção
racionalista do conhecimento confuso.
Nesse sentido, cremos que o esforço kantiano por salientar a diferença entre o prazer
sensível e a sensibilidade tem que ser considerada como um esforço por delimitar algo
que de fato não está claro, isto é, os aspectos não cognitivos do juízo de gosto.
124
Ak. V 191.
89
O prazer está por isso no juízo de gosto verdadeiramente
dependente de uma representação empírica e não pode estar
ligado a priori a nenhum conceito (não se pode determinar a
priori que tipo de objeto será ou não conforme ao gosto; será
necessário experimentá-lo); porém, ele é o fundamento de
determinação deste juízo somente pelo fato de estarmos
conscientes de que assenta simplesmente na reflexão e nas
condições universais, ainda que subjetivas do seu acordo com o
conhecimento dos objetos em geral, para os quais a forma do
objeto é conforme a fins.125
Ainda assim, esta autonomia é difícil de compreender, e veremos que aparece de
modo frágil não só nas Introduções, onde só é apresentada, como também na própria
Dedução desse tipo de juízos.
Mesmo assim, na obra kantiana o desenvolvimento da questão da autonomia da arte
não é menor, porque comporta o problema de determinar aquilo que se reconhece, ou
não, legitimamente como arte. Em outro tipo de objetos, essa questão, em Kant, parece
não ser de ordem. Sem importar a função social que pudesse ter, em uma cultura, um
saca-rolhas, em geral, entende-se que sua criação levou em conta uma função primordial
específica, e qualquer culto ou ritual que possa ser gerado em torno de tal objeto não
muda esse fato essencial que vem da sua utilidade concreta. Não acontece o mesmo com
a arte que, de fato, tem-se constituído, ao longo de sua história, longe do alvo de ser
objeto de gosto, e mais interessada em cumprir a função de transmitir mensagens,
personificar divindades, ou, no caso da arquitetura, diretamente cumprir uma (ou mais
de uma) função (como o caso da Igreja, para colocar um exemplo do próprio Kant).
Destarte, quanto ao critério de aprazimento no gosto, seja kantiano ou como bagagem
cultural socialmente adquirida, o reconhecimento da beleza parece apresentado na arte
heterônoma como algo periférico.
125
Ak. V 191.
90
Kant certamente parece ter razão quando afirma que o interesse na existência do
objeto não estava dado pela satisfação produzida por causa da arte mostrar-se como arte,
pois esta “ocorreria através do gosto, e não despertaria senão um interesse mediato pela
causa que se encontraria como fundamento, a saber, por uma arte que só pode interessar
por seu fim, jamais em si mesma.”126
O gosto ou a avaliação estética estariam, porém, em um dos melhores casos
teoricamente possíveis, no reconhecimento do próprio artista, mas não no valor social
dado ao seu produto. As obras não serão feitas para serem contempladas nem na ilha
deserta ― na qual Kant considerava ser impensável pensar na fruição estética ou na
preocupação pela beleza ― nem nas comunidades onde o valor social deveria ser
indiscutível.
Porém, acreditamos que mesmo em Kant, é melhor pensar na autonomia como graus
nos diferentes contextos de produção e circulação artística que em algo central ou
periférico. E essa leitura nos compromete com uma interpretação do filósofo de
Königsberg, que estabelece coordenadas para a compreensão da autonomia da arte na
modernidade não somente pelo seu impacto ― que poderia ser arbitrário ou meramente
ideológico ― nos seus leitores, mas fundamentalmente por ter colocado os termos da
discussão que ainda hoje interpelam o interessado em filosofia da arte. Inclusive
destacando a autonomia, a recepção e a produção além da definição do que seja a arte.
Um primeiro passo na consideração da relação entre o gosto e a autonomia da arte
poderia estar em pensar o interesse social no entender de Kant. Para o filósofo, este
valor social é considerado como o interesse empírico no belo. Assim, no parágrafo 41
diz-nos Kant:
126
Ak. V 171.
91
Empiricamente, o belo interessa somente em sociedade; e se
admite o impulso à sociedade como natural ao homem, mas a
aptidão e a propensão a ela, isto é, a sociabilidade, como
requisito do homem enquanto criatura destinada à sociedade,
portanto como propriedade pertencente à humanidade, não se
pode também considerar o gosto como uma faculdade de
ajuizamento de tudo aquilo pelo qual se pode comunicar mesmo
o seu sentimento a qualquer outro, por conseguinte como meio
de promoção daquilo que a inclinação natural de cada um
reivindica.127
Nesse marco entram, fundamentalmente, os prazeres agradáveis, cuja existência,
com certeza, nenhum antropólogo ou historiador duvida existir em todas as
comunidades humanas. No entanto, algumas formas da beleza, ou do que seriam belezas
livres, entram também em jogo aqui no recentemente mencionado exemplo do indivíduo
em uma ilha deserta.
Um homem abandonado em uma ilha deserta não adornaria
para si só nem sua choupana nem a si próprio, nem procuraria
flores, nem muito menos as plantaria para enfeitar-se com elas;
mas só em sociedade ocorre-lhe ser não simplesmente homem,
mas também um homem fino à sua maneira [o começo da
civilização]; pois como tal ajuíza-se aquele que é inclinado e
apto a comunicar seu prazer a outros e ao qual um objeto não
satisfaz se não pode sentir a complacência do mesmo em
comunidade com outros.128
Assim, a comunicabilidade do prazer cumpre um papel social fundamental e está na
base da validade da prática artística. Porém, sendo as artes belas e não apenas artes
agradáveis, sua função é ainda mais importante. Neste caso, trata-se do interesse moral
do qual a beleza é símbolo, e sendo a beleza natural menos atingível por interesses de
outras espécies, esta será superior para a função enaltecedora do espírito.
Se uma pessoa, que tem gosto suficiente para julgar sobre
produtos da arte bela com a máxima correção e finura, de bom
grado abandona o quarto no qual se encontra naquelas belezas
que entretém a vaidade e em todo caso os prazeres em
sociedade, e volta-se para o belo da natureza para encontrar
aqui uma espécie de volúpia por seu espírito em um curso de
pensamento que ele jamais pode desenvolver completamente,
127
128
Ak. V 296-7.
Ak. V 297.
92
então nós próprios contemplaremos essa sua escolha com
veneração e pressuporemos nele uma alma bela, que nenhum
versado em arte e seu amante pode reivindicar em virtude do
interesse que ele toma por seus objetos.129
O conhecedor da arte, o erudito amante dos objetos, priva-se, ao que parece, de uma
experiência moral superior. Isto, que pode ser muito mau para o filósofo da moral,
fornece-nos um excelente argumento para sustentar que Kant, embora tendo colocado a
arte como bela na função de símbolo da moral, tenha aceito o espaço da avaliação
propriamente artística.
Destarte, parece que poderíamos conciliar o papel que adjudicamos ao exemplar,
não no sentido de pensar em um exemplar de símbolo da moralidade, mas em um
exemplar da obra de arte. Do mesmo modo, o processo de naturalização, com sua
inevitável queda no furo sistemático da afinidade entre o conhecimento e a moral do
gosto pela natureza, mostra, na impossibilidade mesma de ser definido, outro aspecto: o
de um espaço com legitimidade própria.
Nesse sentido, consideramos que o espaço aberto não é geralmente considerado
como tal pelos formalistas, a saber, como o espaço da contemplação das formas com
independência do conteúdo.130 Trata-se de um espaço mais complexo, capaz de articular
as outras funções da arte e a conceitualidade que tanto parece ter abandonado teses
autonomistas. 131 Sendo assim, além do papel cognitivo e moral que o gosto possa ter, e
mesmo além de seu papel social como prazer unido à comunicação, certamente há
também um espaço de reconhecimento de uma prática com regras próprias.
129
Ak. V 299-300.
Cf. MORGAN, D.: 1992, ABRAMS, M. H.: 1991.
131
Cf. GUYER, P.: 1994; HASKINS, C.: 1989.
130
93
Capítulo 3: Os românticos alemães: a zona úmbria entre heteronomia e
autonomia da arte
Em seu livro Autonomía del arte y autonomía estética, Marcelo Burello escreve:
Um erro, talvez mal-intencionado, tem feito com que
normalmente se tenha ao esteticismo — vamos descrevê-lo
assim, por enquanto, como o culto da arte pela arte em si
própria — por um engendro direto do romantismo alemão, uma
filiação que de acordo com quem a formule pode ser tanto
pejorativa como melhorativa. A má-fé pode-se esconder não
tanto na brutal simplificação que submete aos românticos a uma
noite onde todas as vacas são pretas (para usar uma imagem que
fez célebre justamente um filósofo romântico alemão, Hegel),
mas por impingi-la aos teutões em geral, aludindo assim a essa
numinosa paixão pelas artes que supostamente lhes seria inata
desde os tempos de Carlos Magno, já que não desde os vikings.
Este mal-entendido tem muitos responsáveis e um dos maiores
é Madame de Staël, mas temos que dizer em sua defesa que
suas entusiastas confusões foram repetidas depois por sisudos
professores, os quais costumavam invocar como marcos da
cadeia Alemanha/arte/romanticismo/esteticismo os sobrenomes
de Schelling e Schopenhauer com a certeza de que (quase)
todos os conhecem e (quase) ninguém tem-os lido, sem saber
que Schelling exaltou a arte acima de tudo somente durante um
par de anos e que Schopenhauer a exalta na terceira parte da sua
obra magna somente para submetê-la subsidiariamente na
quarta.132
Com esta feroz acusação, Marcelo Burello tenta desmantelar a história da autonomia
da arte como uma continuidade entre a teoria da obra de arte do romantismo alemão e
sua influência no simbolismo francês.133 A colocação de Burello não é sem pertinência,
porém a ferocidade parece desproporcionada. Mesmo que não seja um movimento
132
“Un error, quizás malintencionado, ha hecho que normalmente se tenga al esteticismo —
describámoslo por el momento, como el culto del arte por el arte mismo — por un engendro directo del
romanticismo alemán, una filiación que según de quien provenga puede ser tanto peyorativa como
mejorativa. La mala fe parece esconderse no tanto en la brutal simplificación que solamente a los
románticos a una noche en la que todas las vacas son negras (por usar una imagen que hizo célebre
justamente un filósofo romántico alemán, Hegel), sino por endilgársela a los teutones en general,
aludiendo así a esa numinosa pasión por las artes que supuestamente les sería innata desde los tiempos de
Carlomagno, ya que no desde los vikingos. Este malentendido tiene muchos responsables y uno de los
mayores es Madame de Staël, pero digamos en defensa de ella que sus entusiastas confusiones fueron
repetidas luego por sesudos profesores, quienes solían invocar como hitos de la cadena
Alemania/arte/romanticismo/esteticismo los apellidos de Schelling y Schopenhauer con la seguridad de
que (casi) todos lo conocen y (casi) nadie los ha leído, sin saber que Schelling exaltó al arte por sobre
todo apenas un par de años y que Shopenhauer lo exalta en la tercera parte de su obra magna sólo para
someterlo subsidiariamente en la cuarta” BURELLO, M.: 2012, 147, tradução nossa.
133
Para uma leitura deste tipo, de um “sisudo professor”, ver, por exemplo, MORGAN, D.: 2009.
94
sólido em defesa e promoção da arte ou do “esteticismo”, podem-se encontrar nos
autores do período importantes ideias que muito dizem sobre a nova situação social da
arte, a incorporação de um novo discurso filosófico sobre a mesma e a ressonância de
um espírito de época ― do qual certamente Madame de Staël estava mais que imbuída
― que tem feito com que os seus leitores recuperem essas colocações fragmentárias
para dar conta do que pode ser considerada uma teoria da arte cada vez mais ligada ao
status autônomo da mesma, embora com ambivalências próprias de um fenômeno em
cernes que, longe de fazer deles um monte de “vacas pretas”, coloca-os como pontos de
luz nas trevas de uma transição tanto para os filósofos como para os artistas e o público
em geral. Transição esta que afetou, sobretudo, a teoria e pouco repercutiu nos estilos
artísticos, mesmo que estes últimos já tivessem começado mudanças não menores como
as que podemos achar no Fausto de Goethe ou em Delacroix, para colocar apenas dois
exemplos.
O maior antecedente da disputa sobre a arte que os românticos alemães pretenderam
resolver encontra-se na Renascença. A leitura que artistas da época fizeram de clássicos
como Platão e Aristóteles, partindo de Plotino e Cícero, habilitaram a noção de ideal
uma reformulação da definição do artístico que surge de um espaço de incerteza que foi
resignificado em estreita vinculação com a ideia de “espírito” e com as novas metáforas
acerca da obra, todas vinculadas à produção específica e especial do artista individual.
Aprofundaram, assim, a reação maneirista contra as bases científicas e matemáticas,
apontando para a liberação do artista de regras mecânicas, porém com extremo esforço
para evitar cair na arbitrariedade.134
Como já apontamos, outro antecedente fundamental foi Kant. Uma das críticas mais
comuns que os idealistas alemães fizeram a Kant foi a de “formalista”, tanto pelo que
134
Cf. PANOFSKY, E.: 2013.
95
consideravam um limitado mundo categorial, como por sua limitada proposta ética.
Kant havia dado legitimidade a um empobrecido mundo de formas. Porém, a especial
autonomia no universo do singular que o filósofo de Königsberg deu ao juízo de gosto e
sua particular situação entre entendimento e razão forneceram as coordenadas para
atribuir ao problema da obra, da sua autonomia e da sua importância singular e
transcendente, um terreno ideal de ampla margem especulativa. Destarte, a ideia de
liberdade para o espírito converteu-se em uma das principais máximas regentes de
novas interpretações das possibilidades de transcendência da imaginação (fantasia,
engenho, humor, etc.), fazendo da capacidade criadora original uma agente
poderossísima para o agenciamento do espírito. O sujeito passou a ser a regra e a
medida das artes, mesmo numa estreita conexão com o mundo do suprasensível,
habilitando até leituras místicas de espécie dissímil.
3.1. Os direitos do artista na cidade das artes e a crise da ideia de mimese como
simples imitação
Tentando salientar os focos dispersos que existem nas trevas da transição entre
heteronomia — e, portanto, para muitos sentidos e valores — e autonomia, vamos
entender esta última não como esteticismo, porém como uma situação social que vai
colocar a arte em face de si própria e cada vez mais “de costas” às instituições que
outrora garantiram sua subsistência tanto significativa como econômica. Movimentos
dispersos deram lugar a uma cidade das artes — para fazer uma analogia com o
mundo da arte, onde a instituição autônoma está plenamente consolidada — que foi
emergindo em um espaço dissímil. O credenciamento nesta cidade teve a ver com
96
reconhecimentos de patronos135, publicações mais ou menos independentes e discussões
fermentais sobre o que a arte tinha que ser.
Em matéria social, não deixa de ser um fato que a cada vez mais instalada
autonomia da arte desvinculou a obra de todo fim prático, utilitário e/ou institucional e
habilitou um mercado mais abrangente, porém também mais coceguento. Os artistas
viraram os primeiros juízes do seu próprio trabalho e lhes correspondeu decidir a
respeito da sua ação e da sua pesquisa artística. A eles correspondeu estabelecer um
lugar para a arte no mundo, assim como também avaliar e reformular seu fazer. Vai ser
neste momento também que se encontram maiores oportunidades para fazê-lo, na
medida em que, embora a arte acadêmica pudesse ser um empecilho para muitos deles,
a “academização” das artes permitiu uma diversificação dos aspirantes a artistas. Além
disso, as esferas autônomas nas quais a arte começa a funcionar geram um fermento
maior para reflexões que em outras épocas foram menos relevantes para o mercado da
arte e com consequencias artísticas de menor envergadura. A forma de consumo da arte
passou de fundamentalmente institucional para ser individual. Estes signos de distinção
habilitaram os artistas a explorar vias maiores para se distinguir, ao mesmo tempo em
que herdavam o prestígio de uma história da arte que já unificava os epicentros da
cultura em torno do valor do artístico.
A pergunta a respeito do que reproduz o artista quando realiza a sua obra aparece
quase simultânea às primeiras observações sobre a natureza da arte. Será acaso o
modelo natural? Será a beleza natural? Será sua própria imagem interior? E neste último
135
Um exemplo da importância dos mecenas pode ser encontrado no caso do afastamento entre Goethe e
o escritor J. M. R. Lez. Nas palavras de Pedro Süssekind: “Durante o período do Sturm und Drang, Lenz
e Goethe mantiveram relações cordiais, mas elas se deterioram posteriormente a ponto de tornar
impossível a convivência entre ambos. A trajetória dos dois não podia ser mais divergente: enquanto o
autor do famoso Os sofrimentos do jovem Werther foi convidado para a corte de Weimar pelo Duque
Karl August, ganhou depois um título de nobreza e viveu mais de 80 anos de intensa produtividade, o
arrebatado Lenz morreu pobre e louco aos 41 anos. [...] Lenz sofreu as consequências de tentar viver
como escritor num período em que não havia mercado alemão para os bens culturais. Os autores daquela
época, por mais talentosos que fossem, dependiam em grande medida de mecenas nobres, e, portanto,
também de ligações sociais cuidadosamente cultivadas.” SÜSSEKIND, P.: 2008, 54.
97
caso, trata-se de uma imagem que o artista toma do modelo natural aprimorando-o, uma
imagem que se produz por si própria, uma imagem que encontra nele mesmo e que
provém de alguma esfera especial do universo ou da alma? Essas mesmas perguntas
foram colocadas em debate durante o período em que os pensadores românticos
influíram com suas considerações a arte.
A primeira investida vai ser contra a ideia de mimese como mera reprodução do
natural. Já na Renascença tinha-se estipulado a primazia da criação, porém com uma
forte marca do cânone cientificista:
arrancam o objeto do mundo interior da representação subjetiva
e o situam num “mundo exterior” solidamente estabelecido;
também dispõem entre o sujeito e o objeto (como o faz na
prática a “perspectiva”) uma distância que ao mesmo tempo
reifica ao objeto e personifica ao sujeito.136
A discussão sobre a ideia de mimese tinha começado antes do Romantismo.
Herdeira da disputa entre os defensores do antigo e os defensores do moderno, esta
discussão havia-se iniciado na França, no século XVII, e tornou-se conhecida
simplesmente como “Querelle”. Ainda que se houvesse conseguido chegar a certo nível
de mútua compreensão entre os adversários, esta discussão retratava a arte de uma
forma com a qual o impulso progressista da época não sabia lidar: em seu interior, a arte
era um objeto que, como tudo, devia progredir, mas podia conservar sua capacidade de
ser portador de beleza apesar das modificações que esse progresso implicava.
A influência desta disputa estendeu-se a toda estética do período. Enfrentavam-se os
defensores do cânone clássico, quase sempre apelando a estéticas idealistas e recusando
a incorporação do vulgar nas artes, com os defensores de uma arte nova, “mais natural”,
que voltasse à natureza para recobrar a vida que se havia perdido em mãos de
convencionalismos neoclassicistas. Por sua vez, ambos achavam-se frente a frente, de
136
PANOFSKY, E.: 2013, 49.
98
alguma maneira, com os chamados “maneiristas”, que faziam do estilo, ou de sua
habilidade, o impulso fundamental da arte.
Os naturalistas apelaram à imitação bela da natureza como fonte de inspiração; os
convencionalistas resguardaram-se no ideal. Ambos, de igual modo, compartiam a
convicção de que não era questão de deixar o artista em sua livre expressão estilística,
senão que era necessário manter a arte bela dentro dos terrenos do universalmente
verdadeiro (fosse da natureza ou do conceito do que as coisas tinham que ser). De
alguma maneira vemos, neste ponto, um canal para a reconciliação da história de duas
formas da ocupação artística que promoviam — ao que parece — concepções de arte
diferentes.
Na Alemanha tinha-se desenvolvido o conflito a partir da leitura da primeira história
da arte como tal, Reflexões sobre a imitaçao das obras gregas na pintura e na
escultura de Joachim Winckelmann. Nela, o autor colocava os gregos como o ponto
superior da história da arte, em um esquema de evolução e involução e concluía: “O
único caminho que resta para nos tornar grandes e, se isso for possível inimitaveís, é a
imitação dos Antigos.”137
Dessa ideia apropriaram-se Wolfgang Goethe e Friedrich Schiller, procurando a
aparente contradição de encontrar nas obras clássicas o propriamente alemão. Aliás,
Schiller considerou a Ifigênia de Goethe uma obra de “espantosa modernidade”. 138 Nas
palavras de Pedro Süssekind, que retoma a interpretação de Peter Szondi:
Para Szondi, desde o início, a teoria de Winckelmann é marcada
por uma contradição, o que revela seu posicionamento em um
momento de transição nas concepções acerca da arte. O autor
das Reflexões inaugura uma compreensão da história da arte
baseada na busca das condições de surgimento das obras
antigas, “sob o céu grego”, mas procura com isso definir um
137
WINCKELMAN, J.: 1987, 18.
SÜSSEKIND, P.: 2007/8, 82. O autor desenvolve uma argumentação pormenorizada sobre a
modernidade da obra de Goethe, mas a discussão fica além dos objetivos desta tese.
138
99
critério normativo, atemporal, um modelo a ser imitado sob um
céu diferente. Há uma aporia, entre a singularidade do
surgimento da arte antiga e o postulado da sua exemplaridade.
Mesmo assim, o caráter histórico das investigações de
Winckelmann influenciou decisivamente a estética posterior, de
Herder a Hegel, e o desenvolvimento da história da arte voltado
para a compreensão das obras em sua particularidade. Szondi
ressalta que as Reflexões se opõem à abstração das teorias
normativas sobre a arte, ao oferecer uma interpretação concreta
das esculturas, a partir da descrição e da consideração do
contexto cultural, geográfico e climático em que surgiram.
Nesse sentido, o escritor remete ao diálogo com artistas, com a
atenção voltada para a prática e a técnica, em lugar da
formulação de regras gerais abstratas.139
Winckelmann havia atualizado o interesse pela oposição entre ideal e natureza,
sobretudo através de seu trabalho empírico do resgate da arte antiga. A grandeza
artística somente era alcançável a partir da imitação do clássico, não entendida no
sentido de mera reprodução, e sim entendida como aceitação das velhas pautas estéticas
tais como a harmonia e a proporção. Mas por outra parte, também estava a leitura de
outro historiador da arte, Karl Friedrich von Rumohr, que com sua Italianische
Forschungen (A inovação italiana), se enfrentou com o aspecto “programático” desta
recuperação, opondo-se ao que considera insípido nessa corrente, ou seja, ao ideal grego
como forma destacada do artístico. Assim, duas leituras fundamentais criaram um
marco de debate para os alemães do século XIX.
A crise da ideia de mimese é incorporada plenamente pelo Romantismo. Conforme
Tzvetan Todorov, em seu livro Teorias do símbolo, se considerou que o princípio da
imitação fiel conduzia ao absurdo, citando como respaldo um dos principais
representantes do Romantismo alemão, A. W. Schlegel, que em seu texto A doutrina
da arte, expressava este cruzamento entre à ambição de fidalidade e os possíveis
produtos resultantes, sugerindo que este princípio somente podia reger uma concepção
da arte que propussesse o fim utilitário de suplantar a natureza:
139
Szondi, P. Antike und moderne in der Ästhetik der Goethezeit. In: Poetik und Geschichtsphilosophie
I, p. 21-31 apud SÜSSEKIND, P.: 2008, 71.
100
A pintura de paisagem seria, nesse caso, simplesmente para
termos no nosso quarto, à nossa volta, uma natureza por
abreviatura, em que se preferiria contemplar as montanhas sem
nos expormos a temperaturas desagradáveis e sem sermos
abrigados a fazer alpinismo.140
Embora a ideia de reprodução da beleza implicasse uma série de considerações mais
refinadas, a ênfase na criação tornou-a secundária para o Romantismo. Aliás, na maior
parte das vezes, esta ideia de mimese tinha sido desestimada por considerar que o artista
supera a beleza da natureza, deixando quando muito a possibilidade da escolha das
partes, como no exemplo clássico de Zeuxis.141 Na realidade, aconteceu que, no mundo
das descobertas e das melhoras tecnológicas, a superioridade da beleza natural foi
deslocada para a beleza da arte ― cinicamente, pelo mesmo impulso tecnológico que
lentamente vai acabando com a natureza. Em um primeiro momento, a bela obra de arte
tinha que imitar a espontaneidade e originalidade da singularidade do natural, isto é,
imitar o fato de que não se tratava de uma imitação, mesmo que, pace Zeuxis, todos
soubessem que se tratava de um artefato.142 Outra mudança fundamental foi a ideia da
liberdade do artista e sua não limitação, que colocou a categoria do sublime como mais
precisa para se referir à produção da arte do que a ideia do belo em Kant.
De fato, para os pensadores do Romantismo, o problema da imitação como escolha
daquilo que é belo se traduzirá em uma contradição insuperável: ou bem adotamos
140
Schlegel, A. apud TODOROV, Tz.: 1980, 161. Esse tipo de observações não levam em conta o
trabalho do artista na pesquisa da natureza, fim para o qual a imitação teria que ser considerada relevante.
Mesmo sendo claro que a fotografia vai irromper corrosivamente na interpretação da arte como imitação,
nem por isso deveriam ser descartadas as influências que esta prática teve sobre a própria criação e
mesmo sobre a capacidade expressiva de muitas obras. Aquele que aspirasse a representar com a maior
fidelidade possível a natureza, sem dúvida nunca atingiria seu alvo, mas aquilo que tem a ver com a
captação dessa natureza, desenvolvendo técnicas mais afins a respeito do olhar e da nossa experiência é
parte de outro capítulo da história da arte. O aspecto fundamental do romantismo ficará no deslocamento
da ideia de liberdade mesmo à natureza, questionando a ideia mesma do real. Ver por exemplo Abrams,
M.: 1973.
141
A lenda conta que o pintor escolheu as partes mais belas de cinco moças da cidade para representar
Helena de Tróia.
142
Uma lenda ainda mais famosa de Zeuxis foi a do seu confronto com Parrasio, onde o segundo pintou
uvas que enganaram os pássaros, mas o primeiro pintou a embalagem de uma pintura que enganou ao seu
competidor. Plin. Nat. Hist. XXXV, 4. Sobre a nossa consciência de que sempre sabemos que estamos
frente a uma reprodução e o que esto coloca no debate da teoria sobre a natureza e representação pictórica
ver FLÓ, J.: 1989.
101
como objetivo imitar a natureza, seja ela bela ou não, ou bem adotamos como objetivo
produzir um objeto belo, seja ele uma imitação da natureza ou não. Assim continua
Todorov citando a August Schlegel:
Das duas uma: ou se imita a natureza tal como se nos
oferece, e então ela pode, muitas vezes, não nos parecer
bela; ou a representamos sempre bela, e isso já não é
imitar. Por que razão não se dirá antes que a arte deve
representar o belo, e não deixar inteiramente de lado a
natureza?143
Desloca-se assim, o ponto para aquilo que é belo, aquilo que é representado.
Destarte, pela via de considerar aspectos intra-artísticos, colocam-se na primeira fila
aspectos extraestéticos. A autonomia do estético envolve-se com a sua heteronomia. A
ausência de valores específicos, isto é, a consideração de valores em formas cada vez
mais abstratas e alheias à comunidade, mostra o enfraquecimento da modernidade no
tocante às tradições vinculantes.
A porta abre-se ao ideal. Na introdução da Filosofia da arte, escreve Friedrich
Schelling:
Não representa a filosofia das coisas reais, porém os seus
arquétipos. E o mesmo faz a arte, e os próprios arquétipos, a
que as argumentações filosóficas referem aquelas (as coisas
reais) como reflexos imperfeitos, são o que na própria arte se
faz objetivo ― como arquétipos, e, consequentemente, na sua
perfeição —, e no próprio mundo reflexo representam o mundo
intelectual. Destarte, para oferecer algum exemplo, a música
não é mais do que o ritmo arquetípico da natureza e do próprio
universo que ingressa no mundo imitado por meio da arte.144
O passo seguinte, para o qual podemos pegar o mesmo Schelling em seu Sistema do
Idealismo Trascendental, será colocar a arte acima da natureza:
143
Ibidem nota 9.
“Die Philosophie stelt nicht die wirklichen Dinge, sondern ihre Urbilder dar, aber ebenso die Kunst
und dieselber Urbilder, von welchen nach den Beweisen der Philosophie diese (die wirklichen Dinge) nur
unvollkommene Abdrücke sind, sind es, due in der Kunst selbst — als Urbilder — demnach in ihrer
Volkommenheit — objektiv werden, und in der reflektieren Welt die Intellektualwelt darstellen. Um
einige Beispiele zu geben, so ist die Musik nichts anderes als der urbildliche Rythmus der Natur und des
Universuns selbst, der mittelst dieser Kunst in der abgebildeten Welt durchbricht.” SCHELLING, F.:
1982, 152, tradução nossa.
144
102
É evidente o que fazer com a imitação da natureza como
princípio da arte, porque muito longe de ser acidentalmente a
bela natureza a que dá sua regra à arte, é a arte na sua perfeição
a que traz o princípio e a norma para avaliar a beleza natural.145
Ou, nas palavras de Todorov:
Se a regra da arte é a beleza, a arte é uma encarnação da beleza
superior à natureza, sendo esta (também) governada por
princípios diferentes dos da beleza. Por conseguinte, longe de
dever imitar a natureza, a arte dá-nos a medida da opinião que
temos da beleza natural: a hierarquia da arte e da natureza
inverteu-se.146
Para M. H. Abrams147 e o já mencionado Todorov, o referente essencial, pelo seu
impacto muitas vezes não levado em conta, foi Karl P. Moritz, mais que Kant. Este seria
o autor de maior influência especificamente na teoria da arte romântica. Sua primeira
inovação será, justamente, a ideia de imitação.
Moritz não vai colocar a imitação nem em um ideal nem na bela natureza: “Já não é
a obra a que imita, mas o artista.”
148
A virada a respeito do ideal vai ser determinante,
na medida em que não é este o que se imita, mas a própria criação, onde a divinidade
vai ser colocada como uma questão de diferentes leituras da mística da criação que seja
escolhida. Em outras palavras, fazer da criação uma instância suprasensível e não de
imitação do suprasensível desloca o demiurgo a uma dimensão diferente à da platônica,
muito mais facilmente assimilável à mística judaico-cristã. Isto não parece ser esquisito,
considerando que Moritz foi, além de um teórico da arte, um exímio teólogo. Como
coloca Abrams, fundamentando-se em um artigo de Martha Woodmansee, da mesma
forma que na autobiografia romanceada de Moritz:
145
“Es erhellt daraus von selbst, was von der Nachahmung der Natur als Prinzip der Kunst zu halten sei,
da, weit entfernt, daß die bloß zufällig schöne Natur der Kunst die Regel gebe, vielmehr, was die Kunst in
ihrer Vollkommenheit hervorbringt, Prinzip und Norm für die Beurteilung der Naturschönheit ist.”
SCHELLING, F.: 1992, 293, tradução nossa.
146
TODOROV, Tz. op. cit. 161-2.
147
Cf. ABRAMS, M. H.: 1991, 159-1.
148
TODOROV, Tz. op. cit. 162.
103
Moritz tem deslocado no discurso sobre a arte a terminologia religiosa do credo
Quietista no qual foi criado; o primeiro enfase no Quietismo — como o próprio Moritz
descreve na sua autobiografía em romance, Anton Reiser — está na “total aniquilação
da assim chamada individualidade” num “totalmente desinteressado [uninteressierte]
amor por Deus,” o qual só é “puro” se não tem nenhum tipo de impureza do amor
próprio.149
E vindo à tona com a questão da imitação, acrescenta Todorov:
Mas o sentido da palavra natureza não é o mesmo em ambos os
casos: a obra não pode imitar senão os produtos da natureza, ao
passo que o artista imita a natureza na medida em que esta é um
princípio produtor. “O artista-nato, escreve Moritz, não se
limita a observar a natureza, ele deve imitá-la, tomá-la por
modelo, e, como ela, formar (bilden) e criar” (p. 121). Portanto,
será mais exato não falar de imitação, mas de construção: a
faculdade característica do artista é uma Bildungskraft, uma
faculdade de formação (ou de produção ao); o principal tratado
estético de Moritz intitula-se, significativamente, Sobre a
Imitação Produtora do Belo (1788). Mimesis: sim, mas com a
condição de a entender no sentido de poesis.150
A partir desse momento, a criação vai ser produção. Da mesma forma, a
representação vai ser expressão, e o fenômeno estético virará experiência estética.
Essa ideia vai reforçar a da autonomia da arte, afastando a prática do prazer utilitário
da mesma forma que o bom, de forma que não sería esquisito pensar na influência do
utilitarismo ético nesta distinção . Belo é aquilo que nos provoca um prazer inútil. Esta
concepção do belo reafirma o alvo da obra de arte como um objeto com um fim em si
mesmo e começa com o símbolo, a ideia-pilar do conceito de autonomia plenamente
149
“[…] Moritz has translocated into discourse about art the religious terminology of the Quietist creed in
which he had brought up; for in Quietism the primary emphasis — as Moritz himself described it in his
autobiographical novel Anton Reiser — had been on “the total annihilation of all so-call selfhood” in “a
totally disinterested [uninteressierte] love of God” which is “pure” only if it is totally unalloyed by “selflove”. O texto de referência de Abrams é: Woodmanse, M. The Origin of the Doctrine of Literary
Autonomy, comunicação encaminhada à International Association for Philosophy and Literature, Orono,
Maine, 1980. ABRAMS, M. H.: 1989, 166, tradução nossa.
150
TODOROV, Tz. op. cit., 162.
104
formulada: a de que uma obra não se pode substituir por outra, sem se importar se as
duas cumprem eficientemente o mesmo fim extraestético.151
A ideia da perfeição da obra em si mesma é uma das ferramentas que Moritz utiliza
para negar as teorias pragmáticas da arte como algo que serve para um fim outro. O
prazer de um objeto útil não é um prazer que nos seja fornecido pelo objeto em si
mesmo, mas um prazer derivado do útil que este nos resulta, e, portanto, um prazer
menor. Assim se expressa Moritz, em seu Ensaio para unificar todas as belas artes e
belas letras sob o conceito do perfeito e acabado em si, de 1975:
Eu me ponho por assim dizer no centro, ao qual relaciono todas
as partes do objeto, isto é, considero o objeto apenas como meio
― contanto que minha perfeição seja desse modo promovida ―
do qual eu mesmo sou o fim. O objeto meramente útil, portanto,
não é em si mesmo nem um todo nem algo perfeito e acabado,
mas somente se torna um quando alcança o seu fim ou se
completa em mim. Na contemplação do belo, porém, eu coloco
de volta no próprio objeto o fim que estava em mim: eu não o
considero como algo completo em mim, mas nele mesmo,
formando, por tanto, um todo em si, e proporcionando-me
prazer em razão de si mesmo, e por isso o objeto belo refere-se
menos a mim do que eu a ele.152
O Romantismo refunda o conceito de natural na arte. Ao fazê-lo, também vai nutrir
a nova atribuição de lugar aos sentimentos do artista. Caspar Friedrich formulará esta
nova visão da liberdade do artista em contraposição ao princípio da mimese da seguinte
forma:
O sentimento do artista é sua lei. O sentir puro nunca pode ser
contrário à natureza, sempre será adequado à natureza. Nunca
deve se nos impor o sentimento de outro como lei. A afinidade
espiritual provoca obras semelhantes, mas daí à cópia, a
distância é muita.153
151
Ver TODOROV, Tz. op. cit. 165.
SABINO, J.: 2009, 108.
153
“El sentimiento del artista es su ley. El sentir puro nunca puede ser contrario a la naturaleza, siempre
será adecuado a la naturaleza. Jamás debe imponérsenos el sentimiento de otro como ley. La afinidad
espiritual provoca obras parecidas, pero de ahí a la copia hay mucha distancia.” Declaraciones en la
visita a una exposición, 1830 apud ARNALDO, J.: 1988, 94.
152
105
A ideia desta liberdade do espírito mantém ressaibos kantianos. Destarte, acrescenta
o pintor:
Este quadro é grande e, no entanto, alguém poderia querer que
fosse maior, pois é tal a sublimidade na compreensão do tema
que, se tendo sentido grande ao se realizar, exige sempre uma
extensão maior no espaço. Por isso, sempre é um elogio para
uma pintura querer que seja maior.154
De uma forma que tem resultado confusa, os artistas do século XIX não têm
proposto o abandono da figuração com sua crítica à mimesis, como também não
propõem a completa arbitrariedade do signo. A diferença entre uma arte autônoma e
uma heterônoma não se fortalece ao denunciar a ausência de sentido da primeira, porém
na ausência de um sentido vinculante, como tentaremos mostrar mais adiante.
Caspar D. Friedrich. Der Wanderer über dem Nebelmeer. (1817-8) Óleo em tela.
154
“Este cuadro es grande y, no obstante, uno querría que fuese mayor, pues es tal la sublimidad en la
comprensión del tema que, habiéndose sentido grande al realizarse, exige siempre una extensión mayor
en el espacio. Por eso, es siempre un elogio para una pintura que se la quiera más grande.” Ibidem, 96.
106
Para o poeta Novalis, a diferença entre as duas formas da mimese se estabelece entre
sintomática e genética. A primeira é acidental, como a bela natureza de Schelling;
enquanto a última, orgânica, é aquela isenta da arbitrariedade da mecânica unificando
imaginação e entendimento. Novalis vai sugerir também a existência de uma poesia
transcendental, que é aquela realizada pelo sujeito transcendental. Essa poesia
compreende as leis da “construção simbólica do mundo transcendental”.155 Abre-se
aqui um locus para as ideias estéticas kantianas, agora estruturadas qua formas
simbólicas.
O artista extrai de si a essência da sua arte ― nem sequer a mais mínima suspeita de
imitação pode fazê-lo errar. A natureza visível parece sempre fazer mais fácil o terreno
ao pintor ― ser absolutamente o seu inacessível modelo. Porém, em realidade, surge a
arte do pintor com igual independência e tão a priori como a arte do músico. Todavia, o
pintor serve-se de uma linguagem de signos infinitamente mais complexa que a do
músico ― o pintor pinta em verdade com o olho –. Sua arte consiste em ver a natureza
de modo regular e belo. Ver é aqui uma atividade completamente ativa ― a intensa
atividade de produzir imagens. Sua imagem será tão só sua criptografia ― sua
expressão, sua ferramenta de reprodução. 156
Definindo a criação artística como forma orgânica quase em forma imediata:
[...] o organismo do artista obteve a semente da vida
autocriadora, Ele tem elevado para o espírito a capacidade de
excitação desta, e encontra-se por isso na situação propícia para
155
“[…] construcción simbólica del mundo trascendental”. Novalis, Poeticismos, 1798 apud
ARNALDO, J. op. cit., 108.
156
“El artista extrae de si la esencia de su arte ― ni siquiera el mínimo recelo de imitación puede
equivocarle. La naturaleza visible parece allanar siempre el terreno al pintor ― ser absolutamente su
modelo inaccesible. Pero, en realidad, surge el arte del pintor con la misma independencia y tan a priori
como el arte del músico. Sin embargo, el pintor se sirve de un lenguaje de signos infinitamente más
complejo que el del músico ― el pintor pinta en realidad con el ojo –. Su arte es ver la naturaleza de
modo regular y bello. Ver es aquí algo completamente activo ― la intensa actividad de producir
imágenes. Su imagen será tan sólo su cifrado – su expresión, su herramienta de reproducción -.”
Ibidem, 110.
107
colocar fora ideias por meio dela conforme o seu arbítrio― sem
que o exterior o demande. 157
A diferença está na modificação técnica.
Assim, o termo experiência estética forma parte da bagagem discursiva com que a
arte autônoma começa a se reinterpretar. Esta categorização surge a propósito da nova
forma de ver a arte a partir do trabalho sobre a obra e sobre o artista. Um espírito de
artista não é um mero ser que compreende a obra, é toda uma experiência de vida
estetizada, ordenada pela beleza ou pelo que esta motiva. Não se trata somente de uma
forma de se enfrentar a obra; ela é a portadora de uma significação vital bem maior da
que fosse objeto em qualquer outra época, e o artista sabe disso. Por um lado, abre-se
uma área para a estética, uma área específica, que se pretende vinculante para toda a
humanidade; por outro, estabelece-se uma cruzada contra o conhecimento objetivo e a
ciência como única necessidade para o aperfeiçoamento da sociedade: a ciência não tem
consciência daquilo que subjaz à ideia de humanidade e, portanto, não pode aperfeiçoála, somente pode servi-la.
3.2. O gênio criador
Se o século XVIII foi o Século do Gosto158, o século XIX foi o Século do Gênio.
Partindo da ideia de imitação, o sujeito obtém uma série de leis de reprodução do
objeto. Mas por que, então, as obras de arte não são idênticas? Tendo como ponto de
inicio a ideia da produção, as leis ficam ainda mais indeterminadas. Qual é, então, a
validade dessas leis? É possível repeti-las mecanicamente? É quando a ideia de gênio,
como aquele que estabelece suas próprias leis, começa a predominar sobre qualquer
outra, até dominar o terreno. A psicologia individual ― fundada ou não em premissas
157
“[...] el organismo del artista ha obtenido la semilla de la vida autocreadora, él ha elevado para el
espíritu la capacidad de excitación de ésta, y se encuentra por ello en la situación propicia para despedir
hacia fuera ideas por medio de ella a su albedrío ― sin solicitación exterior.”
158
Ver DICKIE, G.: 1996.
108
metafísicas e/ou místicas ― começa a ser o âmbito onde se problematiza a experiência
estética. O problema vai ser considerado em termos da existência de normas
suprasubjetivas que condicionam a produção da arte.
A ideia de fundar a arte tendo como ponto de partida as regras que surgem do gênio
teve duas vertentes principais: a expressionista e a objetivista. Esta última colocava a
atenção na obra acabada como fim em si mesma e evitava a transitividade do seu
significado para o universo das emoções do criador. Para fazer isto possível, foi
necessário atribuir-lhe uma forma de aparição para além da mera afetividade, embora o
gênio pudesse dotá-la de estados afetivos diversos de grande intensidade, e inclusive
tivesse obrigação de fazê-lo. Nas palavras de Novalis: “A poesia […] é representação do
espírito, do mundo interior na sua totalidade.”159
A obra orgânica inicia sua trajetória ascendente no campo da Estética. Passou a ser
o desenvolvimento de um processo espontâneo originado no gênio natural. Este gênio
inato era um instrumento da natureza ou diretamente de Deus. A teoria do gênio natural
tomou como base à a psicologia leibniziana, colocando o homem como o ser superior na
escala dos seres pela sua capacidade de apercepção, embora o constitutivo da mônada
atravesse todas as instâncias do ser. Dentro dessa concepção, vai-se achar um espaço
para uma massa de componentes imperceptíveis para a consciência, um lugar para o
inconsciente. Coloca M. H. Abrams:
Para os teóricos literários, a província das percepções confusas
e inconscientes de Leibniz, desenvolvendo-se elas mesmas
eternamente na mente do homem num estado de maior distinção
e articulação, tanto ajudava a sugerir como oferecia um locus
evidente para lhe assignar, a secreta maduração, que acontece
como uma planta, de uma obra de arte na mente do gênio.160
159
“Poetry […] is representation of the spirit, of the inner world in its totality.” Novalis apud ABRAMS,
M. H.: 1971, 50.
160
“To literary theorists, Leibniz's province of confused and unconscious perceptions, eternally evolving
themselves, in the mind of man, into a state of greater distinctness and articulation, both helped to
109
Como exponentes destacados dessa forma de pensar, o anteriormente citado autor
menciona Schelling e Richter. O primeiro por recorrer à dialética entre o consciente e o
inconsciente, que não vem a ser outra que não a dialética entre entendimento e natureza.
A liberdade é reflexiva e a necessidade cega; o elemento que sintetiza esses opostos é o
gênio que realiza uma obra de arte. A associação do inconsciente com a natureza
externa como um tipo de necessidade interna que nada tem a ver com o arbítrio da
vontade foi considerada a fase superior da sabedoria nesta fase do filósofo. Schelling vai
inspirar-se em Goethe, com uma interpretação muito pessoal, quando faz na sua própria
teoria da atividade do gênio algo predominantemente inconsciente.161
Jean Paul Richter vai incluir o inconsciente como o mais vigoroso do poeta com um
agregado especial: desenvolve um aspecto caótico e tenebroso do inconsciente.
Consciente e inconsciente são poderes do gênio.
[Richter] fala do inconsciente como de um abismo, “do qual
podemos esperar fixar a existência, não a profundidade”, e
como um instinto que eternamente ‘tem um pressentimento dos
objetos e das demandas, sem referência ao tempo, porque eles
habitam além do alcance do tempo.162
Este inconsciente está na origem comum do sonho, do terror, da culpa, da
demonologia, do mito e da poesia. É o grande ordenador dos nossos fervores, o agente
de uma realidade superior ao indivíduo que permite que este veja além da realidade
mundana. Também August W. Schlegel vai ver a obra de arte como o resultado de um
poder imanente que conjuga o inconsciente com a autoconsciência. O tudo é um eterno
devir onde todo produto é autoproduzido.
suggest, and offered an obvious locus to which they might assign, the secret, plant-like maturation of a
work of art in the mind of genius.” Ibidem, 202.
161
Ibidem, 206.
162
“[...] speaks of the un conscious as an abyss ‘of which we can hope to fix the existence, not the depth;
and as an instinct which eternally ‘has a presentiment of and demands its objects without regard to time,
because these dwell beyond the reaches of time.’” Ibidem, 202.
110
Este inconsciente está na origem comum do sonho, do terror, da culpa, da
demonologia, do mito e da poesia. É o grande ordenador dos nossos fervores, o agente
de uma realidade superior ao indivíduo que permite que este veja além da realidade
mundana. Também August W. Schlegel vai ver a obra de arte como o resultado de um
poder imanente que conjuga o inconsciente com a autoconsciência. O tudo é um eterno
devir onde todo produto é autoproduzido.
Outro tópico fundamental com relação ao gênio é o da inspiração. A inspiração, a
metade do caminho entre expressão e objetividade, dá ao artista a capacidade de extrair
de si próprio algo sempre novo e original. A teoria mais antiga para esta experiência
estética extraordinária é a do visitante sobrenatural. A graça será uma forma semelhante
à inspiração, na medida em que vai ser associada a um dom divino ou natural que
garante ao gênio criativo uma espontaneidade total no seu fazer, deixando de lado
qualquer teoria do aprendizado e regras conexas.
Por causa dessa semelhança, faremos uma exposição conjunta delas, estabelecendo
como matiz diferencial o fato da inspiração estar, maiormente vinculada a um estado do
espírito, e a graça a uma faculdade deste último.
Para Schelling, a objetivação forma parte de uma instância de limitação que mantém
na obra artística sua capacidade para conservar o absoluto, isto é, o ilimitado. O caráter
discreto da obra exige integrá-la na diversidade, mas o absoluto é absolutamente um.
Isto permite o jogo entre razão e fantasia enquanto entidades que se vinculam com o
absoluto porque a limitação não atenta contra a essência deste na obra de arte. A
inspiração vai devir emanação do absoluto na fantasia:
Somente se tem vida no particular. Porém, vida e diversidade
ou, as particularidades sem limitação do absoluto somente são
possíveis de forma primordial e em si pelo princípio da
imaginação divina, ou, no mundo derivado, somente por meio
da fantasia, que junta num mesmo tempo o absoluto e a
limitação e constrói no particular a divindade toda do general.
111
Por este meio o mundo é povoado, acorde com esta lei emerge a
vida desde o absoluto, como um todo, no mundo. De acordo à
mesma lei no reflexo da imaginação humana volta-se a
aperfeiçoar o universo para um mundo de fantasia, do qual a lei
fundamental é a da absoluta limitação.163
O espírito criador vai ser quem logra esse efeito de natureza ao qual Kant já se tinha
referido. Conforme Friedrich Schelling:
Precede a toda coisa um conceito eterno que se tem projetado
no entendimento infinito; mas, por que meio se converte este
conceito na realidade e na encarnação? Unicamente por meio da
ciência criadora, que está ligada necessariamente tanto ao
entendimento infinito quanto no artista está a essência que
registra a ideia de beleza insensível àquilo que apresenta
perceptível. Tem que se chamar de afortunado e é, por
sobretudo, digno de elogio o artista a quem os deuses prestaram
este espírito criador; e assim será magnífica a obra de arte na
medida em que nos mostre como em um esboço essa força não
falseada da criação e do vigor da natureza.164
Por esta concepção, Schelling localiza uma ciência inconsciente, que guarda em si as
bases da criação:
Obras as quais lhes falta o selo desta ciência inconsciente
podem ser reconhecidas pela sua patente carência de uma vida
autônoma, independente do criador, pois, muito pelo contrário,
aí onde ela age confere a arte a sua obra, junto à mais alta
claridade do entendimento, aquela realidade insondável que a
assemelha a uma obra da natureza.165
163
“Nur im Besonderen ist Leben. Aber Leben und Mannichfaltigkeit, oder überhaupt Besonderes ohnes
Beschränkung des schlechthin Einen, ist ursprünglich und an sich nur durch das Prinzip der göttlichen
Imagination, oder, in der abgeleiteten Welt, nur durch die Phantasie möglich, die das Absolute mit der
Begrenzung zusammenbringt und in das Besondere die ganze Göttlichkeit des Allgemeinen bildet.
Dadurch wird das Universum bevölkert, nach diesem Gesetz strömt vom Absoluten, als dem schlechthin
Einen, das Leben aus die Welt; nach demselben Gesetz bildet sich wieder in dem Reflex der
menschlichen Einbildungskfraft das Universum zu einer Welt der Phantasie aus, deren durchgängiges
Gesetz Absolutheit in der Begrenzung ist.” SCHELLING, F.: 2004, 177. Tradução nossa.
164
“Precede a toda cosa un concepto eterno que se ha proyectado en el entendimiento infinito; pero, ¿por
qué medio revierte este concepto en la realidad y en la encarnación? Únicamente por medio de la ciencia
creadora, que tan necesariamente ligada está al entendimiento infinito como lo está en el artista la esencia
que registra la idea de belleza insensible a aquello que presenta perceptible. Ha de llamarse afortunado y
es, ante todo, digno de elogio el artista a quien los dioses prestaron este espíritu creador; y así será excelsa
la obra de arte en la medida en que nos muestre como en un bosquejo esa fuerza no falseada de la
creación y el vigor de la naturaliza” Schelling, F. apud ARNALDO, J.: 1988, 54.
165
“Obras a las que les falta el sello de esta ciencia inconsciente pueden ser reconocidas por su patente
carencia de una vida autónoma, independiente del creador, puesto que, muy por el contrario, allí donde
ella actúa confiere el arte a su obra, junto a la más alta claridad del entendimiento, aquella realidad
insondable que la hace semejante a una obra de la naturaleza.” Ibidem: 55.
112
Na inspiração, o artista afasta-se da natureza indo ao reino dos conceitos puros e
voltando a ela na materialização da obra. Assim, apropria-se da força criadora, supera a
forma e traduz na obra ― conjunto belo ― a essência do “espírito natural imanente”.
(ibidem).
Outra interpretação fez da inspiração um momento de encontro entre o impulso
entusiasta ― não diferente de qualquer prazer ou dor que não necessariamente acaba
virando arte ― com o espírito autoconsciente. Friedrich Schleiermacher vai sustentar
que entre a emoção e a arte se interpõe uma força além da mera força da vida e modela
interiormente ao objeto.
Outra força mais elevada se tem atravessado, e tem afastado
aquilo, de um outro modo, indissoluvelmente unido; o momento
da cognição encaixa-se, por dizê-lo assim, afastando, e assim
quebra, por tanto, mercê a sua persistência, o campo daquela
força bruta da excitação, detendo ao tempo que se fortalece
como um princípio regulador enquanto mantém em suspenso o
movimento já introduzido.166
O espírito é a força geradora da cognição paradigmática que toma vida a partir dos
sentimentos.
Por sua parte, Novalis coloca o mundo à luz interior do sujeito. Em nosso caminho
pelo mundo exterior somente encontramos o condicionado, portanto, o mistério
encontra-se no espírito, um espírito que está virado para dentro do indivíduo que
procura essa luz. A fantasia e o gênio têm a possibilidade de relativizar a realidade
comum (para chamá-la de alguna maneira), porém, o estado de autoencontro é um
processo dificultoso, e por isso:
Um dos preconceitos mais infundados é aquele de que lhe esteja
negada ao homem a faculdade de se achar fora de si, de se
166
“Otra fuerza más elevada se ha interpuesto, y ha separado lo, de otro modo, indisolublemente unido; el
momento de la cognición se encaja, por así decirlo, separando, y rompe ya, por tanto, merced a su
persistencia, el campo de aquella fuerza bruta de la excitación, deteniéndolo, al tiempo que se fortalece
como un principio regulador mientras mantiene en suspenso el movimiento ya introducido.”
Schleiermacher, F. apud ARNALDO, J.: 1988, 47.
113
manter num estado de consciência além dos sentidos. O homem
gostaria de ser em todo momento uma essência suprasensível.
De outra forma, não seria cidadão do mundo, seria uma besta.
Obviamente, num tal estado o discernimento, o autoencontro de
si mesmo, é enormemente difícil, pois o homem fica ligado
ininterrupta e necessariamente à mudança das circunstâncias.
Porém, quanto mais conscientes sejamos em tal estado, a
convicção que deste surge vai ser cada vez mais poderosa e
suficiente; a fé na autêntica evidenciação do espírito.167
A cristalização do próprio desejo é a ferramenta da fantasia, irreal somente para o
débil. O sentido é, para Novalis, algo que supera o entendimento:
Uns dispõem de uma capacidade para a revelação superior à dos
outros. Uns tem mais sentido, outros mais entendimento para a
mesma. Aos últimos se consideram como uma calma luz na sua
permanência, enquanto que os primeiros só vão desfrutar de
iluminações mutáveis, embora, isso sim, mais radiantes e
variadas. Esta faculdade pode desembocar também em doença,
que, neste caso, vai indicar, ou bem uma sobreabundância de
sentido e insuficiência de entendimento, ou sobreabundância de
entendimento e insuficiência de sentido.168
A inspiração pode ser considerada levando em conta a lonjura em que se encontra a
finalidade de toda arte. O conhecimento é o meio para chegar ao desconhecido, o
mistério é o resultado e o princípio de tudo. Novalis acrescenta no seu Esboço geral:
“Remota filosofía soa como poesia ― já que toda chamada na distância torna-se
vocal”169 O método vai ser o ritmo, pois tanto o indivíduo como o mundo possuem seu
próprio ritmo. A verdade é rítmica, a música é a grande criadora de configurações.
167
“Uno de los prejuicios más infundados es el que le esté negada al hombre la facultad de hallarse fuera
de sí, de mantenerse en un estado de consciencia más allá de los sentidos. El hombre querría ser en todo
momento una esencia suprasensible. Si no, no sería ciudadano del mundo, sería una bestia. Obviamente,
en tal estado el discernimiento, el autoencuentro de sí mismo, es enormemente difícil pues el hombre
queda ligado ininterrumpida y necesariamente al cambio del resto de las circunstancias. Pero cuanto más
conscientes seamos en tal estado, la convicción que de éste surge será cada vez más poderosa y suficiente;
la fe en la auténtica evidenciación del espíritu.” Novalis apud ARNALDO, J.; 1988, 49.
168
“Unos disponen de una capacidad para la revelación superior a la de los otros ― Unos tienen más
sentido, los otros más entendimiento para la misma. A los últimos se les pronunciará como una mansa
luz en su permanencia, mientras que los primeros solo disfrutará iluminaciones cambiantes, aunque, eso
sí, más luminosas y variadas. Esta facultad puede desembocar asimismo en enfermedad, que, en su caso,
indicará, o bien una sobreabundancia de sentido e insuficiencia de entendimiento, o bien
sobreabundancia de entendimiento e insuficiencia de sentido.” Ibidem: 50.
169
“Lejana filosofía suena como poesía ― ya que toda llamada en la lejanía se vuelve vocal” Ibidem, 70.
114
Também o humor vai adquirir um lugar para os românticos, como arbitrariedade na
livre combinação do condicionado e do incondicionado. A fantasia é imaginação que
opera sobre a memória e a imaginação é a organização da arbitrariedade da memória e
da percepção, operando em forma bidirecional entre o adentro e o afora.170 Do seu
contato surge o Witz171. Logo, a dissolução destas relações é a forma mais terrível do
Witz. O humor aproxima-nos a maiores graus de unificação e, portanto, de
indiscricionalidade: “Humanidade é um papel humorístico”.172 O Witz supera o
meramente individual e interessado: “A verdadeira conversação e o verdadeiro diálogo
não são uma disputa de pontos de vista particulares, mas sim o movimento coletivo de
saber (“sinfilosofia” ou “simpoesia”) em direção às ideias.”173
A inspiração em Friedrich Schlegel vai colocar esta tensão entre o entusiasmo da
ideação e a autolimitação necessária para o sentido. “Sentido (para uma arte, uma
ciência, um ser humano particular, etc.) é espírito dividido; a autolimitação é um
resultado de autocriação e autodestruição.”174 O espírito é uniforme, a dispersão é
valiosa na medida em que permite à inspiração socializar (um exemplo disso vai ser o
Witz).
Enquanto o artista cria e se emociona, encontra-se pelo menos numa situação de
iliberalidade para com a comunicação. Ele vai querer dizer tudo; uma falsa tendência
que tem os gênios jovens ou uma opinião real dos idosos ignorantes. Destarte, se
desconhecera o valor e a dignidade da autolimitação, que é o primeiro e o último, o mais
necessário e o mais alto tanto para o artista como para o homem. O mais necessário:
170
Ibidem.
“[N]o alemão do século 18, o sentido é de "espirituosidade", "perspicácia bem humorada", "engenho",
"agudeza", "inteligência especial, sutil", "graciosidade (mas com inteligência)". Não se traduz mais nem
ao português nem ao espanhol. Consulta com o Prof. Romero Freitas.
172
“Humanidad es un papel humorístico.” Novalis, op. cit. 51.
173
FREITAS, R.: 2011.
174
“Sinn (für eine besondere Kunst, Wissenschaft, einen Menschen, u.s.w.) ist dividierter Geist;
Selbstbeschränkung, also ein Resultat von Selbstschöpfung und Selbstvernichtung.” SCHLEGEL, F.:
1967, 148. Tradução nossa.
171
115
justamente, porque aí onde um limita-se a si próprio encontra-se limitado pelo mundo,
pelo qual um acaba se convertendo em servo. O mais alto: porque um pode limitar-se
nos pontos e nas partes nas que se tem um poder infinito, autocriação e
autodestruição.175
Trata-se da liberdade entendida como fazer o correto, não a simples arbitrariedade, a
sociabilidade própria do humor artístico. Este humor leva consigo o suprasensível,
aquilo além de si, mas o insere em possibilidades tais que não fica preso na
arbitrariedade. Aquele que pode utiliza-lo se faz vidente: “Os romanos sabiam que o
Witz é uma Facultade profética, a chamavam nariz.”176
Nas artes visuais, a inspiração é, assim, um substituto das regras para a
representação. A fantasia requer um espaço de livre jogo, não pode se submeter a
regras. A natureza, para Friedrich, tem um espírito que também não o faz. Sem regra
alguma, chama a acatar uma “voz interior”, a qual certamente nem todos podem ouvir
nem usar.177
Philipp Otto Runge, em uma carta ao seu irmão Daniel, de 1802, nos dá um esquema
de como o simbolismo vai inserir-se na obra de arte definida pelo modelo todo da
criação. Deste modo, a obra surge sendo um regresso ao mundo após uma elevação a
Deus.
Colocamos as palavras, tons ou imagens em relação com o
nosso mais íntimo sentimento, nossa noção de Deus e a
consciência da nossa própria eternidade, mediada pelo
sentimento da coesão da totalidade, isto é: enlaçamos tais
175
“So lange der Künstler erfindet und begeistert ist, befindet er sich für die Mitteilung wenigstens in
einem illiberalen Zustande. Er wird dann alles sagen wollen; welches eine falsche Tendenz junger Genies,
oder ein richtiges Vorurteil alter Stümper ist. Dadurch verkennt er den Wert und die Würde der
Selbstbeschränkung, die doch für den Künstler wie für den Menschen das Erste und das Letzte, das
Notwendigste und das Höchste ist. Das Notwendigste: denn überall, wo man sich nicht selbst beschränkt,
beschränkt einen die Welt; wodurch man ein Knecht wird. Das Höchste: denn man kann sich nur in den
Punkten und an den Seiten selbst beschränken, wo man unendliche Kraft hat, Selbstschöpfung und
Selbstvernichtung.” Ibidem, 149. Tradução nossa.
176
“Die Römer wußten, daß der Witz ein prophetisches Vermögen ist; sie nannten ihn Nase.” Ibidem,
163. Tradução nossa.
177
Friedrich, C. apud ARNALDO, J.: 1988, 53.
116
sentimentos com as essências mais significativas e vivas ao
nosso redor, e representamos símbolos dos nossos pensamentos
sobre as grandes forças do mundo, imagens de Deus ou dos
deuses, como símbolos das forças divinas e mais elevadas
sentirão a força todo poderosa. Apertam todas as diferentes
forças naturais a uma essência, tentam concentrar em uma
imagem tudo a um tempo, para apresentar uma imagem do
infinito. (Quando o espírito humano tem alcançado esta
altíssima noção, surge uma sobre-exitação, e assim como o
espírito tem fugido, os símbolos derrubam-se e ele deve
recomeçar desde aquele primeiro sentimento infantil).178
Partindo deste estado vai se definir o assunto, a composição, o desenho, o colorido,
o aspecto (perspectiva), a iluminação e o tom: surgindo do sentimento. A mudança nas
técnicas pictóricas e na figuração não irá além de uma experimentação da relação entre
cores e expressão. Mas as ideias destes artistas e filósofos, sim, formarão parte de uma
transformação no lugar do artista que vai ser fundamental para colocá-lo frente a um
novo rol social, um novo mercado e, também, uma nova relação com a obra.
Phillip Otto Runge. Die kleine Perthes. (1805) Óleo em tela.
3.3. Obra de arte e símbolo
Junto à nova concepção da obra como fim em si mesma e do
artista como criador, a obra vai derivar uma totalidade fechada
mais cheia de sentido. Fazendo uma analogia com as criações
da natureza, a obra vai virar um objeto com uma realidade
178
“Ponemos las palabras, tonos o imágenes en relación a nuestro sentimiento más íntimo, nuestra noción
de Dios y la conciencia de nuestra propia eternidad, mediada por el sentimiento de la cohesión de la
totalidad, esto es: enlazamos tales sentimientos con las esencias más significativas y vivas de nuestro
alrededor, y representamos símbolos de nuestros pensamientos acerca de las grandes fuerzas del mundo,
imágenes de Dios o de los dioses, en tanto símbolos de las fuerzas divinas y más elevada sentirán la
fuerza todopoderosa. Aprietan todas las distintas fuerzas naturales a una esencia, intentan concentrar en
una imagen todo a un tiempo, para presentar una imagen de lo infinito. (Cuando el espíritu humano ha
logrado esta altísima noción, surge una sobreexitación, y tan pronto como el espíritu ha huido, los
símbolos se derrumban y él debe recomenzar desde aquel primer sentimiento infantil).” Runge, O. apud
ARNALDO, J.: 1988, 66.
117
própria. Conforme a Doutrina dos Deuses de Moritz: “A faculdade de agir [...] percebe
a dependência nas coisas, e, com aquilo que apreendeu, nisso semelhante à própria
natureza, forma um todo arbitrário existente em si mesmo.”179
Todorov remeterá essa concepção à dos microcosmos e macrocosmos de origem
neoplatônica.180 Abrams, por sua parte, a associará à ideia de heterocosmos, seguindo a
analogia de Moritz, entre o artista criador e Deus.181 A diferença é de ênfase. Para o
primeiro, a consistência interna da obra é fundamentalmente um análogo do mundo real;
para o segundo, essa mesma consistência precisa de regras próprias diferenciadas.
Na sequência, conforme a interpretação de Todorov, o novo mundo criado vai ser
harmônico, fazendo cada parte necessária para o todo. O objeto não tem uma finalidade
alheia a si; as suas partes têm como finalidade interna fazer desse todo um universo
harmonioso. Mesmo que aqui se possa pensar em uma reutilização do conceito de
mimese, o fim em si da obra fica sem alterações. Nesse sentido, aquilo que o artista
escolhe pode ter seu símil na realidade (no macrocosmo), onde cumpre finalidades
exteriores a ele próprio. É privilégio da arte converter os objetos da natureza em objetos
com uma finalidade interna relativa à obra (microcosmo). O exemplo de Moritz vai ser
o da marcha e da dança: a marcha vira dança quando não se ajusta a nenhuma finalidade
exterior:
Desde o momento em que os passos deixam de servir para se
aproximarem de um objetivo, aparece a organização interna: o
compasso. Do mesmo modo, quando as palavras são produzidas
“por si mesmas”, quando o discurso é “reenviado a si próprio”,
o verso, ou seja, a organização interna em nome de uma lei
autônoma, aparece. O verso é um discurso dançante, pois a
dança é urna actividade simultaneamente intransitiva e
estruturada.182
179
Moritz, K. Ph. apud TODOROV, Tz.: 1980: 163.
TODOROV, Tz. op.cit., 164-172.
181
ABRAMS, M. H.: 1989, 169-183.
182
TODOROV, Tz. op.cit., 167.
180
118
Abrams, neste ponto, sem divergir, vai considerar cada peça de dança um mundo em
si, pelo qual a autoreferência tem que se dar no singular da coreografia (o exemplo é
meu), mesmo que na generalidade se possa considerar como referência para a
compreensão do mundo real artístico algumas formas do mundo real. Para este autor, a
ênfase está na possibilidade de criar uma novidade radical. O que de fato é bom
assinalar, não tanto para a interpretação dos escritos de Moritz, mas para compreender a
cada vez maior autoridade do artista que se vai consolidar plenamente no século XX
com a autonomia institucionalizada da arte.
Mas também importa ver a outra cara desta abordagem na consideração das
linguagens artísticas. O velho problema da verossimilhança ligar-se-á com a ideia do
poema como heterocosmos. A metáfora mais usada foi a do poema como uma segunda
natureza. Na analogia entre Deus e o poeta encontramos a ideia do poetizar como um
restabelecimento de uma cosmogonia original. Daí que, para este heterocosmos, o
importante seja saber qual das teorias da criação é a relevante e não tanto uma ideia de
relação entre o mundo real e o mundo real artístico. Assim, pode-se saber se foi
a força do sopro divino; ou a teoria do Timeo de Platão, de um
Demiurgo que colou de um modelo eterno; ou a doutrina de
Plotino da emanação do Único perpetuamente desbordante; ou a
tradição estoica e neoplatônica de uma alma infinitamente
geradora na própria natureza.183
Dentro dessa variante podemos encontrar autores tão importantes quanto Goethe ou
August Schlegel. Assim como o mito de Prometeu estava à disposição, as metáforas
deixaram de ser simples ornamentos. As imagens passaram de mentiras referidas a
verdades que ao mesmo tempo não enganam ninguém, a criações que davam existência
a seres em mundos alternos. Os próprios mitos constituem-se em símbolos.
183
“' […] the force of a divine breath'; or the theory in Plato's Timaeus of a Demiurge who copied from
an eternal pattern; or Plotinus' doctrine of emanation from a perpetually overflowing One; or the Stoic
and Neoplatonic tradition of an endlessly generative Soul in Nature itself.” ABRAMS, M. H.: 1971, 276.
119
Assim, do ponto de vista do símbolo, tanto Todorov como Abrams compartilham a
interpretação de que esses mundos/obras tinham um sentido próprio e intransferível que
se foi elaborando ao redor dos discursos sobre a obra.
A linguagem será fundamental na hora de considerar a função significativa da obra,
isto é, o seu aspecto de autonomia a respeito do mundo, a despeito de sua heteronomia
em relação a não significar simplesmente o fato de o objeto ser arte ou uma perspectiva
idiossincrásica de um indivíduo qualquer.
Sendo cada autor considerado único e moldador original da sua obra, os termos
subjetivo e objetivo começaram uma embrulhada peregrinação teórica.184 Schlegel
distingue a arte clássica e a moderna como objetiva e subjetiva respetivamente. A arte
clássica mostraria a capacidade de o autor lograr a beleza universal, enquanto o autor
moderno mostraria sua própria sensibilidade. “Conforme Schlegel, uma obra
‘romântica’ pode ter múltiplos sentidos, mas no sentido particular de possuir, como a
criação de Deus, referência bidirecional, ao mesmo tempo para fora e para dentro,
‘objetiva’ e ‘subjetiva.’”185
Como Deus era considerado visível e invisível, dava-se o mesmo com o artista.
Também uma referência bidireccional que Schlegel atribui à personalidade do autor da
criação artística, uma estrutura com um significado ostensível para fora e um
significado invisível no interior. A tensão foi inevitável, dependendo do universo que
se considerasse relevante na obra, de um universo suprasensível com sua própria
racionalidade ou de um universo expressivo do autor — com determinações
ultrasubjetivas.
184
Ibidem, 235-241.
“According to Schlegel, a ‘romantic’ work may be multiple in meaning, but in the particular sense of
having, like God's creation, bi-directional reference — both outward and inward, 'objective' and
'subjective.” Ibidem, 240.
185
120
Mas o que não deixa lugar à dúvida é que a obra vira símbolo no Romantismo. A
esse respeito, como já mencionado, duas coisas serão fundamentais: a obra de arte como
totalidade, onde cada parte é necessária e cumpre uma finalidade interna, e a obra de
arte como carente de finalidade exterior e, como tal, intransitiva. Em palavras de
Todorov:
A coerência interna, como característica da obra de arte, é
válida para todos os estratos que a constituem, e, portanto,
também para os seus aspectos espiritual e material, o seu
conteúdo e a sua forma. Mas forma e conteúdo, matéria e
espírito são contrários; podemos, assim, caracterizar de
outro modo a obra de arte, dizendo que ela realiza a fusão
dos contrários, a síntese dos opostos.186
Essa coerência é condição necessária da sua beleza. Isso faz dela significativa por si
mesma e, destarte, impossível de traduzir. Uma arte não pode ser traduzida em outra,
mesmo se igualando em beleza. As consequências são importantes:
A mensagem artística é exprimível pela poesia, pela
pintura, etc.; e, ao mesmo tempo, indizível pelos meios da
linguagem comum. A impossibilidade de descrever o belo
resulta tanto da sua autonomia constitutiva como de certa
inconvertibilidade da linguagem de arte em linguagem das
palavras: a arte é a única que pode exprimir o que ela
exprime.187
Foi a esta função de exprimir o inefável que o Romantismo identificou como
propriamente simbólica. A alegoria vai ser o seu oposto, pois vai necessitar de uma
justificativa exterior.
O problema colocar-se-á naquilo que a obra de arte significa. Sua intransitividade
consagrar-se-á como significação em si, mesmo que isso justifique a dúvida sobre a
possibilidade de se considerar significativa: “A significação em arte é uma
186
187
TODOROV, Tz. op. cit. 167-8.
Ibidem, 169.
121
interpenetração do significante e do significado: é abolida qualquer distância entre os
dois.”188
Novalis, por exemplo, compreenderá o viés da significação quanto ao entendimento
como regulador do fenômeno artístico com uma resposta de inspiração kantiana, porém
cruzando os limites em um progresso até o divino. A procura de uma ordem forma parte
do fim que permitiria a total traduzibilidade entre as artes de um modo em que a
representação alcança significar o absoluto a partir das sensações. A representação
romântica é um significante do absoluto. As leis que nela regem o sensível são
suprasensíveis (harmonia, beleza e unidade) e se fundam na compreensão do sujeito
como entidade livre.
Outro escopo, herdado dos principais esforços dos poetas expressionistas já no
século XVIII, foi o de tentar encontrar na poesia a linguagem das paixões. As disputas
sobre a mimese não ficaram fora deste périplo, pois nos seus primórdios tentou-se fazer
da poesia o espelho da alma do poeta. Assim, voltaram a ler Lucrécio, numa tentativa de
refutar a teoria do ato batismal pelo qual Adão nomeou todas as coisas, trocando-a por
teorias de tipo emotivista, com o acréscimo de supor que a linguagem não é somente
expressão de sentimentos, porém dos sentimentos originários. Dois exemplos
fundamentais nessa linha de interpretação formam J. Hamann e o seu discípulo J.
Herder, os quais colocariam a origem da linguagem na emotividade e na língua mesma
a encarnação do espírito dos povos.
O Romantismo alemão somou-se com entusiasmo a essa forma de entender a
linguagem poética, na medida em que consideravam que expressava o universo interior
do poeta como gênio criador. A música, e com ela sua estrutura rítmica, começaram a
formar parte substancial da teoria da arte. Assim foi reduzida consideravelmente a
188
Ibidem, 170.
122
relação com quaisquer aspectos miméticos da arte. Tanto Novalis como os irmãos
Schlegel seguiram a distinção de Herder entre música e palavra, onde a arbitrariedade
da última a colocava em inferioridade de condições a respeito da primeira que era capaz
de exprimir sentimentos em forma natural. As pesquisas naqueles aspectos não
representativos das artes ganharam um forte impulso dessas ideias.
Assim podemos ver as pesquisas sobre as cores de Otto Runge, onde a diversidade
cromática estruturar-se-á como um canal para compreender a significação plástica da
harmonia, contraponto as “cores do pintor” às “cores do físico”, estabelecendo uma
analogia entre a notação musical e seus ordenamentos cromáticos. Esta ordem estética
foi articulada, mas pretendia que a obra falasse “desde o interior dos seus recursos e
acima deles.”189
Importa compreender que, desde perspectivas transcendentes, ou desde a pretensão
de uma mitologia da razão ou da experiência originária e, portanto, autêntica, o esforço
foi conduzido para manter uma significatividade vinculante ainda quando o símbolo (a
obra) cada vez mais se apresentava, ou bem como inefável ou bem como arbitrário. A
arte não podia perder o seu poder de interpelar a humanidade, mesmo que na sua forma
alheia ao mundo e ao significado comum, se afastasse do ser humano concreto. Este
paradoxo é, ao final das contas, a zona úmbria do Romantismo.
189
“[…] desde el interior de sus recursos y por encima de ellos.” ARNALDO, J.: 1988, 23. Tradução
nossa.
123
Capítulo 4. Fim da arte heterônoma e fim da arte
Tanto o capítulo dois quanto o três podem ter levado o leitor a notar que, em termos
de heteronomia, a filosofia não debatia sobre o poder das instituições fundantes de
valores, mas simplesmente sobre valores. O fato de o afastamento entre Estado, Igreja e
moral ter sido parte do processo sócio-histórico dos séculos XVIII e XIX, no entanto,
foi fundamental para compreender como a heteronomia foi perdendo espaço, a
autonomia ganhando autoridade e, mesmo atingindo a todas as áreas do social, a
economia e a especialização e separação das esferas do humano converteram-se na
forma de organização das sociedades modernas.
No caso de Georg Wilhelm Frederich Hegel, a heteronomia e a autonomia vão
percorrer um caminho conjunto, no qual a primazia da importância do conteúdo vai
levar Hegel a pronunciar-se a favor de uma arte como superior e a considerar, no
desenvolvimento da arte como forma do Espírito, que esta se tenha esgotado por ter
chegado a um estágio de autonomia muito peculiar.
Neste capítulo, pretendemos mostrar, em primeiro lugar, que o desenvolvimento
dialético da história da arte não necessariamente leva ao fim da mesma, colocando a
Christoph Friedrich Schiller como “oposto antagônico” de Hegel, na medida em que sua
concepção da história como um sem fim e da sua visão da humanidade como uma
infinita tarefa criativa estético-moral faziam da arte algo que viveria tanto como a
humanidade.
A seguir, mostraremos que a oposição heteronomia-Ideal e autonomia-predomínio
da Forma levou Hegel a acabar com a vitalidade da arte na medida em que esta foi-se
desenvolvendo em forma mais aprimorada do ponto de vista técnico, estendendo do
lado da técnica as possibilidades de verossimilhança e variedade (originalidade do
artista).
124
4.1. A autonomia da arte como resultado dialético diferenciado entre duas
formas de entender a relação entre natureza e liberdade
De acordo com Robert Pippin, Schiller e Hegel foram os dois filósofos a quem mais
preocupou a necessidade de fundamentar uma concepção de mundo na qual a liberdade
fora possível. Os critérios do valor moral de uma ação, dificilmente limitados à intenção
de serem monumentais e submetidos à prova formal do imperativo categórico, foram
uma fonte de frustração para ambos pensadores.
Como primeiro passo, necessitaram estabelecer um sujeito com potestades mais
amplas que as do sujeito transcendental ou consciência finita, capaz de abarcar todas as
possibilidades do humano e acercar-se — quando não cumprir suas mesmas funções —
ao sujeito divino.190 Esse sujeito estaria nutrido de uma história de superação de sua
própria finitude em cada vez maiores aproximações ao divino.
A humanidade como sujeito capaz de alcançar o máximo possível de reconciliação
humana (espírito e corpo, liberdade e natureza, vontade e história) limitou-se, em
Schiller, à ideia de Estado, forma mais desenvolvida desse sujeito, situada
historicamente ao fim de um largo périplo do espírito desde a ingenuidade à
organização estética e moral. Hegel, por seu lado, dará ao Espírito Absoluto a
possibilidade de ser em si e para si, tanto o todo como as partes, a reconciliação final de
teoria e prática, de conhecimento e ação.
Schiller fez fama, na Filosofia, como pensador de transição entre Kant e os
românticos. Assim mesmo, é um bom exemplo da íntima conexão que então gozavam
filósofos e artistas, e da relevância metafísica e moral que a arte adquiriu como
comunicação entre natureza e liberdade, estágio no qual Kant o deixou suspenso pelos
débeis pauzinhos da subjetividade. Na Educação estética do homem numa série de
190
Parte deste percurso foi realizado pelo romantismo, como foi mostrado no capítulo 3.
125
cartas, vemos que a base de sua análise encontra-se em um discurso especialmente
hostil à filosofia que abandona a verdade fixando-a em fórmulas vazias, preludiando
assim, os lamentos hegelianos sobre a falta de espiritualidade de sua época. Essa
decepção com relação à distância do espiritual expressar-se-á, em Schiller, na oposição
entre natureza e análise formal ou entendimento, noção estritamente limitada por Kant
na Crítica da Razão Pura. Seu protesto tem a ver então com o desejo de elevar-se
acima dos limites do conhecimento. Assim, a Carta I lembra-nos o Prólogo da
Fenomenologia do Espírito de Hegel191:
Como o químico, é pela dissolução que o filósofo encontra a
unidade, é pelo tormento da arte que encontra a obra de
natureza espontânea. Para apreender a aparência fugaz, ele tem
que fixá-la aos grilhões da regra, descarnar seu belo corpo em
conceitos e conservar seu espírito vivo numa precária carcaça
verbal. Espanta ainda que já não se reconheça o sentimento
natural numa tal cópia e que a verdade pareça um paradoxo no
relato do analítico?192
Para uma grande parte dos filósofos pós-kantianos, seu pensamento havia gerado
uma fissura na aproximação à natureza, nos levava a sentir que não podíamos nos unir a
ela de modo algum: tão somente análise, e, por isso, divisão e esquematização.
Lamentando-se por não poder escapar dessa situação em suas investigações científicas,
estudou essa separação e a possibilidade de uma reconciliação desde um ponto de vista
histórico e conceitual. Sua análise o levou a encontrar a essência da humanidade nas
mesmas contradições que denunciava, batendo pé no desenvolvimento da história e,
inclusive, em sua dinâmica que se aproximava à da didática hegeliana. Tomemos como
exemplo o início da Carta VI, onde também pensamos em Hegel e na sua certeza sobre
191
Num Seminário de Graduação, o Professor Juan Fló recomendou ler a Carta XI de Schiller como
forma de avançar na compreensão da dialética hegeliana. Para mim, esta recomendação virou não
somente uma boa ideia, mas também uma forma de compreender o lugar dar arte conforme as diferentes
formas de entender as fases dialéticas e as consequências do uso desta ferramenta.
192
SCHILLER, F.: 2002, 20.
126
o movimento dialético, que faz necessária a contradição, para logo fechar novamente o
círculo no movimento superador da razão, ou aufheben. Schiller expressa-se assim:
Ter-me-ei excedido contra o nosso tempo nesta descrição? Não
espero esta censura; antes vejo outra: a de ter provado demais. É
bem verdade, direis, que este quadro se assemelha à
humanidade atual, mas assemelha-se também a todos os povos a
caminho da cultura, pois sem distinção tiveram de abandonar a
natureza através da sofisticação, antes de poderem retornar a ela
pela razão.193
A Carta XI trata a respeito da essência do humano, a qual é representada pela Carta
X como algo escorregadio, que somente pode-se rastrear na diversidade dos homens
individuais:
Temos de elevar-nos, portanto, ao conceito puro da humanidade
e, como a experiência nos dá apenas estados isolados de
homens isolados, mas nunca a humanidade, temos de descobrir,
a partir de seus modos de manifestação individuais e mutáveis,
o absoluto e permanente [...]194
O próprio Schiller assume que estará incursionando em terreno de abstrata aridez,
porém considera que a base firme do conhecimento há de assentar-se em bases
conceituais para logo voltar ao familiar. A realidade efetiva combinará a abstração do
conceito e a presença viva, em termos hegelianos; ela há de ser para a consciência e em
si, pensamento e objeto.
No começo da Carta XI, Schiller postula que o conceito puro, em seu máximo grau
de abstração, enfrenta-se a dois conceitos últimos que o limitam: o um e o diverso, o
essencial e o imutável, etc. Esta análise, ainda que pretenda “escavar” no conceito do
humano, serve aos efeitos de mostrar o universo que se pretendia capturar na reflexão
— ou fora dela: o universo do ser e do devir.
Para combinar o universal e o particular, elaborar-se-á uma metafísica que estudará a
dinâmica do ser e do devir. Assim aspirar-se-á a capturar a forma do processo
193
194
Ibidem, 35.
Ibidem 56.
127
assimilando-o ao processo dos organismos naturais, cujas leis internas, ainda que já não
eram estritamente definidas de acordo com causas finais (ou, ao menos, isso era
discutível em função da concepção do processo evolutivo), continuavam a ser cifradas
em leis especiais, não mecânicas. A realização da liberdade no mundo sensível,
entendida como realização de fins ou atos intencionais, aspirava a essa valoração
qualitativamente diferente da experiência, que longe de poder se reduzir a um cálculo de
massas, exigira uma análise qualitativa das instâncias, de seu substrato, e de seu vínculo
racional, não mecânico. A dialética pretenderá capturar essa forma especial de proceder
do espiritual: essência e tempo, permanência e mutabilidade. Na proposta de análise do
conceito do humano, chegamos, em primeiro lugar, à contradição fundamental, onde “[a
abstração] distingue no homem aquilo que permanece e aquilo que se modifica sem
cessar. Ela chama o permanente de sua pessoa [Person]; o mutável de seu estado195
[Zustand].”196
Em jargão hegeliano, poderíamos dizer que o ser é, em si e para si, a essência e suas
determinações particulares. A pergunta está em qual será o sujeito encarregado de
elevar ao universal a contradição, de superar (aufheben) a contradição? Ainda que
Schiller não precise, tão bem como Hegel, do conteúdo do Deus ou o saber absoluto e
sua história, encontramos em germinação toda esta cosmovisão hegeliana:
Pessoa e estado — o si mesmo e suas determinações —, que no
ser necessário pensamos como um e o mesmo, são eternamente
dois no ser finito. Por mais que a pessoa perdure, alterna-se o
estado, e em toda alternância do estado, permanece a pessoa.
Passamos do repouso à atividade, do afeto à indiferença, da
concordância à contradição, mas, ainda assim, nós somos, e o
que se segue imediatamente de nós, permanece. Somente no
sujeito absoluto todas as determinações perduram com a
personalidade, porque provêm da personalidade. Tudo o que a
195
196
Também pode ser traduzido por “situação”.
Ibidem, 59.
128
divindade é, ela é porque ela é porque é; ela é tudo eternamente,
pois é eterna.197
Pressuposto isso, a distância entre Deus e Schiller é maior que a média entre o
Altíssimo e Hegel. Enquanto este último faz referência à história do Sujeito Absoluto,
Schiller pretende mais humildemente encontrar a chave para uma educação estética dos
indivíduos finitos. O indivíduo finito há de buscar as condições, o fundamento de sua
existência em si mesmo (como Deus) senão em outra coisa.
Por distinguirem-se no homem, enquanto ser finito, a pessoa e o estado, não se pode
fundar o estado na pessoa nem a pessoa no estado. Fosse esse último o caso, a pessoa
teria de modificar-se. Sendo o primeiro, o estado teria de perdurar; em qualquer um dos
casos, portanto, a personalidade ou o estado cessariam. Nós somos não porque
pensamos, queremos, sentimos; pensamos, queremos ou sentimos não porque somos.
Nós somos porque somos. Nós sentimos, pensamos ou queremos porque além de nós
existe algo diverso. 198
Este “algo outro”, não obstante, que é o substrato da pessoa, e por tanto, de seus
estados ou situações, é a liberdade, isto é, autodeterminação da vontade. Existe assim,
disseminado nos indivíduos e em cada uma de suas escolhas, o substrato fundamental da
humanidade, que faz que “[a] pessoa [...] tem de ser seu próprio fundamento, já que o
permanente não pode provir da modificação; teríamos assim, inicialmente, a ideia de ser
absoluto, fundado em si mesmo, isto é, a liberdade.”199
O que diferencia Schiller de Hegel está na não existência de uma seleção de estados
específicos que nos deem o roteiro da realização do Absoluto. Sem dúvida, já a matéria
197
Ibidem.
Ibidem, 59-60. O destacado é nosso.
199
Ibidem, 60.
198
129
fundamental da história, o tempo200, passa a ser o fundamento do estado particular. É o
tempo condição de todo suceder.
O estado tem de possuir um fundamento; tem de ser causado, já que não é por meio
da pessoa, vale dizer, já que não é absoluto; teríamos assim, em segundo lugar, o tempo,
a condição de todo ser ou vir a ser dependente. O tempo é a condição de todo vir a ser:
esta é uma proposição idêntica, pois não diz mais que: a sequência é a condição de que
algo se siga.201
Deus cria o que ao homem apresenta-se como algo diferente em si mesmo, o mundo
percebido é sua alteridade. O indivíduo ao perceber, encontra seu próprio eu em todas
suas representações. Assim, o homem imprime a marca da racionalidade, que é
identidade ao mutável no tempo.
Esta contradição é impossível de superar para Schiller, pois o homem mantém-se no
mundo sensível com sua capacidade racional e tendência ao divino sempre insatisfeita.
A tarefa do divino será a de expressar infinitamente no real, a qual se constitui em um
devir eterno e inalcançável.
Embora um ser infinito, uma divindade, não possa vir a ser, é preciso chamar divina
uma tendência que tem como sua tarefa infinita a marca mais própria da divindade, a
proclamação absoluta da potencialidade (realidade de todo o possível) e a unidade
absoluta do fenômeno (necessidade de todo o real). O homem traz irresistivelmente em
sua pessoa a disposição para a divindade. O caminho para a divindade, se podemos
chamar assim o que nunca levará à meta, é-lhe assinalado nos sentidos.202
Isso dá à sensibilidade um lugar privilegiado, a possibilidade de atualizar a forma do
homem. Sem ele, o homem não seria nada, pelo que o homem é, entretanto, também
200
Notemos que, enquanto para Berkeley, Newton, Leibniz e Kant, o tempo era a base fundamental da
física (ciência da matéria), para o idealismo alemão e seus precursores, o tempo será da história (ciência
do acionar do sujeito).
201
Schiller, F. op. cit. 60.
202
Ibidem, 61.
130
sensível, e esta sensibilidade que se apresenta como alteridade é o mundo, que é
também parte de seu ser (ou seja, de seu ser em si mesmo). Poderíamos dizer que o
indivíduo de Schiller é um protoespírito absoluto hegeliano.
O tempo não pode ser aniquilado, por isso a eternidade nunca supera o éter do
sensível- racional ou finito-infinito. Isso explica por que Schiller faz da arte a forma
suprema de reconciliação, como resultado da dialética entre o divino-humano e o
mundano-humano. O sujeito ainda não assume a figura final de sujeito absoluto, a
Bildung (formação, construção, cultura) não está constituída como o sujeito do saber
que é para Hegel. A educação segue sendo um processo infinito que nunca chega ao
fim, posto que, por seu necessário ser sensível, não pode superar a barreira do particular.
A ciência, lamentavelmente, não podia aspirar a ser parte do movimento de
reconciliação com a natureza e a divindade. Nisso Schiller não negou de todo o legado
kantiano, respeitando os limites do conhecimento teórico para dedicar-se sobretudo ao
mundo da arte e pendendo para o universo do moral. Hegel não se conformará com essa
frágil superação dos limites da Razão Pura, nem aceitará que o finito seja considerado
insuperável, nem sequer maximizado pela história e a comunidade (acumulação da
finitude). Ele buscará um círculo de verdades mais sublimes no domínio do Espírito
Absoluto e pretenderá, para elas, o estatuto de conhecimento racional.
Hegel formou-se no espírito romântico de sua época e durante certo tempo pode se
dizer que não rompeu com essa esfera difusa na que se concentrava o saber do
Absoluto. A vagueza das propostas de unidade entre natureza e liberdade é, sem
dúvidas, um dos principais tópicos que encontramos Fenomenologia do espírito.
O projeto geral de Hegel acredita na possibilidade de “se apoderar da totalidade do
real pela capacidade do pensamento”
203
203
A razão é autônoma na medida em que se
ADORNO, Th.: 1996, 325.
131
desprende de si mesma em seu próprio desenvolvimento. Hegel sustenta que a filosofia
não somente deve amar o conhecimento ou se preparar para ele, senão possui-lo. É
ciência do Absoluto, funde-se no objeto do conhecer, seja natureza, universo ou razão
absoluta. Assim, reprova a Kant por este haver ficado no formalismo do subjetivismo,
não havendo dado o passo em direção ao objeto. Para Hegel, há de se deixar de lado o
ponto de vista crítico e partir da identidade entre sujeito e objeto. Um aspecto essencial
da Fenomenologia do Espírito é a convicção de que a teoria do conhecimento não há de
tomar ao seu objeto como um instrumento do conhecimento (defeito que se credita a
Kant por sua teoria das categorias como funções do entendimento) e que Hegel condena
ao relativismo na medida em que a modificação do objeto pelo instrumento é inevitável
(daí a impossibilidade de acesso à coisa em si para Kant).
Um dos principais temas para compreender este novo sujeito cognoscente que se
incorpora à teoria do conhecimento é o do lugar da filosofia no desenvolvimento do
Espírito Absoluto. A filosofia alcançará seu objetivo abandonando a reflexão — que
rege o pensamento sobre o finito — para promover a especulação — única forma de
conhecer o Absoluto. Além disso, seu trabalho crítico deverá ser capaz de expressar a
verdade de cada sistema filosófico, na medida em que eles mesmos são também a
exibição ou o desdobramento da essência da filosofia.
Esta necessidade de um pensamento especulativo mostra-se no início mesmo do
Prólogo204, onde Hegel lamenta-se de ter que prologar a obra, ou seja, de dar visão
sucinta do desenvolvimento da obra completa. Para Hegel, a filosofia enquanto
conhecimento especulativo, não podia mais que expor todo o desenvolvimento de seu
204
Aos efeitos deste apartado vamos a nos remeter somente ao Prólogo da Fenomenologia do Espirito,
por considerar que é uma boa forma de apresentar o sistema hegeliano em geral, sem complicar mais do
necessário para os fins propostos.
132
conhecimento, pois, de outro modo, este sempre se mostraria unilateral e incompleto,
sempre estaria viciado pela abstração, seria sempre esquemático. 205
O universal leva em si o particular, porém, é no desenvolvimento dos particulares no
todo que se encontra o universal. A filosofia é uma forma de se expressar o universal,
porém se mostra em distintas figuras particulares. O universal, de acordo com esta
estrutura teológica básica, é o conceito e sua realização. Somente quando é exibido o
todo completo, cobra sentido o particular, que pareceria ser, no essencial, ante a
ausência de fim que o inclui; assim mesmo, sem esse desdobramento do particular em
uma sequência, o universal não poderia se mostrar em sua verdadeira essência.
Sendo um dos tópicos do Prólogo, a crítica à filosofia romântica previa, é
interessante tomar nota de que esta crítica não somente pretende ser uma exposição da
proposta hegeliana, senão que é uma forma de mostrar a verdade em um dos estágios
prévios a Hegel, o estágio imediatamente anterior. Em que medida esta história é
essencial e não fática depende do lugar que damos à negatividade (oposição entre
sistemas filosóficos) e ao tempo no questionamento hegeliano. A história da filosofia é
fática se possuem poder causal. Se não possuem valor causal, a história da filosofia é
essencial.
Com a mesma rigidez com que a opinião comum se prende à
oposição entre o verdadeiro e o falso, costuma também cobrar,
ante um sistema filosófico dado, uma atitude de aprovação ou
de rejeição. Acha que qualquer esclarecimento a respeito do
sistema só pode ser uma ou outra. Não concebe a diversidade
dos sistemas filosóficos como desenvolvimento progressivo da
verdade, mas só vê na diversidade a contradição.206
A forma de pensar a história da filosofia tradicional deixa de lado o que faz aos
sistemas filosóficos parte da mesma história progressiva da verdade; percebem-se como
diferentes, como se nada os conectasse. Porém se aquilo que segue a outra coisa fosse
205
206
HEGEL, G.: 2002, 21.
Ibidem, 22.
133
sua refutação, a flor seria, por exemplo, a refutação do botão. Então o botão seria o
falso, ao passo que a planta e a flor, o verdadeiro. É claro nesse exemplo que o estado
de botão e a flor não podem ser simultâneos, porém isso não implica que não possam
ser parte de uma mesma coisa. Outra coisa ocorre quando se toma o modelo, a unidade
orgânica, onde o que muda é parte do fluir natural. Ali ambos estados são necessários,
constituindo assim a vida do todo.
A filosofia de Hegel aspira a capturar a vida, a mudança e a unidade também na
história da filosofia, sendo que “[n]ada mais fácil que julgar o que tem conteúdo e
solidez; apreendê-lo é mais difícil; e o que há de mais difícil é produzir sua exposição,
que unifica a ambos. [...] A verdadeira figura, em que a verdade existe, só pode ser o
seu sistema científico.”207
Para Hegel, chegou a hora de fazer da filosofia uma ciência. Isso demonstrará que o
caminho percorrido foi necessário de acordo com o fim do conhecimento absoluto.
Porém justamente neste ponto é onde deverá reivindicar, para o saber racional, a
máxima capacidade de compreensão intelectual, opondo-se assim à filosofia romântica,
marcada pelo misticismo filosófico dos pré-românticos. Pretende superar assim sua
própria filosofia da juventude, onde aspirava a uma mitologia vinculante, ou seja, uma
forma artístico-religiosa cuja verdade somente se apreende por intermédio da intuição.
Com efeito, se o verdadeiro só existe no que (ou melhor, como o que) se chama quer
intuição, quer saber imediato do absoluto, religião, ser ― não o ser no centro do amor
divino, mas o ser mesmo desse centro ―, então o que se exige para a exposição da
filosofia é, antes, o contrário da forma do conceito. O absoluto não deve ser
conceptualizado, mas somente sentido e intuído; não é o seu conceito, mas seu
sentimento e intuição que devem falar em seu nome e ter expressão. 208
207
208
Ibidem, 23.
Ibidem, 24.
134
A posição romântica aparece justificada em certa medida frente à condenação à
finitude da filosofia prévia (mais do que tudo na versão empirista e na sua influência em
Kant e seus sucessores). A necessidade de espiritualizar, de superar a finitude,
expressou-se na filosofia pré-hegeliana, buscando um acesso imediato à substância
encerrada. Para Hegel, este foi um erro, que não consegue se conciliar com anos de
pensamento filosófico e não consegue superar as próprias contradições que engendra. O
que há de se fazer, em seu entender, é mudar o modo de pensamento edificante pelo
modo intelectivo, este último não regido pela necessidade de atribuir uma ordem fixa,
mas de compreender o essencial na contradição, no conceito em seu aspecto negativo,
como unidade da diferença. A filosofia já está em condições de abandonar a visão
romântica — schilleriana por certo — de uma reconciliação de sujeito e objeto que não
é capaz de compreender conceitualmente. Acabou-se “a noite em que ‘todos os gatos
são pardos’” 209
Como pensa, Hegel, encontrar um fundamento conceitual para essa reconciliação?
Pois bem, o truque estará em fazer do objeto sujeito e do sujeito objeto a partir da
identificação da mediação conceitual com a negatividade, convertendo-a em um
movimento interno da essência ou de seu desdobramento no tempo. Assim, a essência é
ser que se sabe, na medida em que se põe a si mesma a transformar-se em outro (à
maneira em que o eu põe seu não eu). É atividade intelectual e evolução em direção à
consciência.
a substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou ― o que
significa o mesmo ― que é na verdade efetivo, mas só à medida
que é o movimento do pôr-se-asi-mesmo, ou a mediação
consigo mesmo do tomar-se-outro. Como sujeito, é a
negatividade pura e simples, e justamente por isso é o
fracionamento do simples ou a duplicação oponente, que é de
novo a negação dessa diversidade indiferente e de seu oposto.
Só essa igualdade reinstaurando-se, ou só a reflexão em si
209
Ibidem, 29.
135
mesmo no seu ser-Outro, é que são o verdadeiro; e não uma
unidade originária enquanto tal, ou uma unidade imediata
enquanto tal. O verdadeiro é o vir-a-ser de si mesmo, o círculo
que pressupõe seu fim como sua meta, que o tem como
princípio, e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim.
210
O Absoluto deixa de ser somente substância para converter-se também em sujeito. É
saber fenomênico, é saber progressivo de si, do Absoluto. O fenômeno não é estranho à
essência, mas sim revelação da mesma. A consciência do fenômeno eleva-se à
consciência do Saber Absoluto, pelo qual se tornará um momento do Saber Absoluto. O
fundamento, em Hegel, então, não é algo exterior, senão que se encontra no
desenvolvimento do saber, mesmo que como tal é substância e sujeito: é a dialética da
autocriação como autoalienação e posterior reconhecimento. A verdade suprema não se
confirma em algo exterior ao sujeito, mas na síntese dialética que unifica esta
exterioridade e a confirma como diferente, ainda que igual a si mesmo em seu
desenvolvimento.
Contudo, sem o trabalho da mediação não se pode alcançar a autoconsciência. O
puro conhecer-se a si mesmo, a verdade suprema, é o devir em direção à
autoconsciência. Isso se conquista a partir da alienação no absoluto ser outro. “O puro
reconhecer-se-a-si-mesmo no absoluto ser-outro, esse éter como tal, é o fundamento e o
solo da ciência, ou do saber em sua universalidade.”211 O “éter” é um termo que Hegel
usa para se referir a esse estado de autoconsciência na alienação. Trata-se de uma
maneira evasiva de referir-se à substancialidade do processo em seu conjunto, um modo
de nomear a unidade substancial da autoconsciência na alienação.212 A filosofia há de
subir a esse ponto. A divisão entre sujeito e objeto, o conhecimento da inteligência e da
natureza propõe-se chegar à identidade do diferenciado em seu devir. O momento no
210
Ibidem, 30. O destaque é nosso.
Ibidem, 34.
212
Devo essa interpretação a Juan Fló.
211
136
que o elemento etéreo adquire transparência é aquele no que desaparece e é
universalidade pura, “a pura espiritualidade como o universal, que tem o modo da
imediatez simples. Esse simples, quando tem como tal a existência [Existenz hat], é o
solo da ciência, [que é] o pensar, o qual só está no espírito.” 213 Trata-se de uma curiosa
situação na que a consciência para ser tal deve encontrar seu objeto fora dela, porém
quando consegue captá-lo, encontra-se em si mesma.
Ao longo da odisseia do Espírito, as consciências individuais sofrem a coação da
alienação ou negatividade produzida que levará ao espírito Absoluto. Contudo, como se
alcança a reconciliação de sujeito e objeto se é necessário contar com a consciência
finita como ponto arquimédico para a realização efetiva do devir do espírito? Trata-se
da incorporação do saber acumulado por parte dos indivíduos finitos nas diferentes
figuras da história. A Bildung é patrimônio intersubjetivo das consciências finitas que se
podem tomar assim como uma só consciência.
Esta cultura ou conhecimento incorporado é o resultado de um procedimento que se
inicia na prontidão (vida substancial é igual à vida imediata) e se eleva através do
universal. Tratam-se de formas da consciência, onde a imediata é a não reflexiva,
resultado de uma experiência pré-reflexiva. Segue seu caminho e assim chega ao
pensamento da coisa em geral, porém compreendendo todas suas determinações.
Quando esta diversidade consegue chegar à compreensão, entra-se na profundidade das
coisas. Assim, o juízo sobre a base desse conhecimento, obterá seu lugar legítimo desde
o qual integra a conversação da humanidade.
O indivíduo forma-se no progresso da cultura. Sua própria constituição individual é
o resultado do progresso da humanidade. O passado é exterior, porém ao mesmo tempo,
natureza do indivíduo.
213
Ibidem.
137
O indivíduo, cuja substância é o espírito situado no mais alto,
percorre esse passado da mesma maneira como quem se apresta
a adquirir uma ciência superior, percorre os conhecimentospreparatórios que há muito tem dentro de si, para fazer seu
conteúdo presente; evoca de novo sua rememoração, sem, no
entanto, ter ali seu interesse ou demorar-se neles. O singular
deve também percorrer os degraus-de-formação-cultural do
espírito universal, conforme seu conteúdo; porém, como figuras
já depositadas pelo espírito, como plataformas de um caminho
já preparado e aplainado. Desse modo, vemos conhecimentos,
que em antigas épocas ocupavam o espírito maduro dos
homens, serem rebaixados a exercícios ― ou mesmo a jogos de
meninos; assim pode reconhecer-se no progresso pedagógico,
copiada como em silhuetas, a história do espírito do mundo.
Esse ser-aí passado é propriedade já adquirida do espírito
universal e, aparecendo-lhe assim exteriormente, constitui sua
natureza inorgânica.214
À diferença de Schiller, para quem o Estado era a construção artística, a forma de
união das diversas consciências, em Hegel, encontramos um Espírito Absoluto que se
integra à cultura e que é assumido pelos indivíduos como parte de seu saber comum
constitutivo. O Absoluto o Universal transcendente será parte de seu saber comum
constitutivo. O Absoluto, ou Universal transcendente, será parte da consciência comum
— espontaneidade — ao final da odisseia do Espírito.
4.2. O desenvolvimento dialético do Espírito na arte até o seu fim
Para caracterizar o desenvolvimento dialético do Espírito na Arte conforme Hegel,
vamos nos servir de uma caracterização alheia ao sistema e ao hegelianismo, mas que
consideramos de grande serviço no esclarecimento da relação entre o Sistema e a Arte
no filósofo. No seu artigo “Do realismo artístico”, Roman Jakobson define o realismo
como a “corrente artística que propôs como seu objetivo reproduzir a realidade o mais
fielmente possível, e que aspira ao máximo de verossimilhança. [São] realistas as obras
que nos parecem verossímeis, fiéis à realidade.” 215
214
215
Ibidem, 36.
JAKOBSON, R.: 1976, 120.
138
Partindo dessa definição, apresenta uma subdivisão que julga necessária dada a
ambiguidade da mesma. Vamos encontrar assim uma definição de realismo que tem de
ser ajuizada como imanente à obra — conforme a pretensão realista do autor — e outra
definição de realismo que se desprende da impressão do espectador — à margem das
pretensões do artista. A primeira forma vai ser chamada de “Significação A” e a
segunda de “Significação B.”
Todo tipo de realismo, tese que não compartilhamos completamente com Jakobson,
porém não pretendemos fundamentar aqui o porquê, é convencional.216 Isso significa
que o que se disputa na hora de classificar uma tendência como mais realista que outra,
é qual delas se adéqua melhor aos parâmetros de verossimilhança hegemônicos no seu
contexto:
Os métodos de projeção do espaço em três dimensões numa
superfície, a cor, a abstração, a simplificação do objeto
reproduzido, as escolhas dos traços representados são
convencionais. É preciso apreendermos a linguagem pictórica
convencional para vermos o quadro, assim como não podemos
compreender as palavras sem conhecermos a língua. O carácter
convencional, tradicional, da apresentação pictórica determina
numa larga medida o próprio ato de percepção visual. À medida
que se acumulam as tradições, a imagem pictórica torna-se um
ideograma, uma forma que vinculamos imediatamente ao objeto
seguindo uma associação de contiguidade. O reconhecimento se
produz instantaneamente. 217
A forma em que se produz inovação, conforme esta proposta, consiste naquela em
que se conquista um novo realismo. Para isso é mister a introdução de uma forma que
altera a anterior de alguma maneira. Frente a esse câmbio, podem se dar distintos tipos
de reações que fazem Jakobson concluir que é possível realizar uma subdivisão em cada
216
Basta dizer que consideramos que o convencionalismo radical leva-nos a problemas próximos aos da
intraduzibilidade e deixa de lado aspectos sensíveis que, mesmo formados pela cultura, têm bases
biológicas necessárias para supor qualquer tipo de verossimilhança.
217
Ibidem, 121. Tentaremos utilizar, na medida do possível, exemplos ou observações ligadas à pintura,
porque esta é a arte à qual daremos preferência na nossa análise.
139
um dos realismos assinalados. No que diz respeito à Significação A (pretensão do autor)
encontra a seguinte ambiguidade:
A1: a tendência de deformar os cânones artísticos em curso,
interpretada como uma aproximação à realidade;
A2: a tendência conservadora limitada no interior de uma
tradição artística e interpretada como uma fidelidade ao real.218
Da mesma forma, pode-se subdividir a contrapartida do espectador:
[S]ignificação B1, isto é, sou um revolucionário em relação aos
hábitos artísticos em curso e percebo sua deformação como uma
aproximação à realidade.
Significação B2, isto é, sou um conservador e percebo a
deformação dos hábitos artísticos em curso como uma alteração
da realidade.219
Temos, então, uma disputa pelo predomínio de um estilo sobre outro na
representação artística, uma forma de entender a própria produção — seja conservadora
ou revolucionária —, e uma forma de interpretar a arte desde o auditório — também
com suas versões correlatas.
Com estas ferramentas jakobsianas, tentaremos explicar, em forma clara e
razoavelmente breve, a concepção da arte que vai levar Hegel a condená-la ao seu fim.
4.2.1. A arte e o real
Como corresponde ao seu próprio critério de rigor científico, Hegel começa a refletir
sobre temas de estética tencionando estabelecer uma definição que compreenda a todos
os objetos que integram o universo das obras de arte. Destarte, vai procurar uma
definição que possa dar conta da multiplicidade das entidades referidas e depois expor
este conceito em forma sistemática desde a sua postulação até a reconstrução do seu
desenvolvimento efetivo ante a consciência.
218
219
Ibidem, 122-3.
Ibidem, 123.
140
Hegel outorga ao artista um lugar primordial na definição da arte: arte é um produto
do gênio. Apesar disso, não dá lugar às opiniões dos artistas a respeito de seu próprio
trabalho e, portanto, prescindirá das intenções expressas dos mesmos. Resta então a
busca de uma definição de arte que expresse a intenção oculta, talvez inconsciente, do
gênio. Isto é, se nos perguntamos por um possível realismo, segundo a Significação A,
teremos que assumir como hipótese que as intenções dos artistas estarão de acordo com
a definição de arte que Hegel coloca em seu horizonte da criação. É a genialidade, e não
a individualidade, a que garante essa correspondência entre definição e intenção.
Como esperamos ser evidente, esta precisão não pretende acusar Hegel de estar
fazendo algo ilegítimo, senão que busca justificar a associação do conceito hegeliano da
arte com a Significação A de Jakobson, que se fundava na aspiração do “autor”. Ou
seja, a pergunta que nos guiará por esta primeira aproximação à estética de Hegel será a
seguinte: considera Hegel que o propósito da arte-aspiração, e com ela o produto
intencional dos artistas — seja o realismo?
Tal como estamos entendendo o realismo neste trabalho, a resposta a essa pergunta é
simples: não, Hegel não entende que o realismo seja o objetivo da arte. Posto isso, o que
desejamos ter em conta aqui é a negativa explícita de Hegel de que o realismo seja o
objetivo da arte, tanto em suas críticas às definições da arte, que assim eram sustentadas
nessa época, como quanto ao valor específico da arte.
4.2.1.1. A arte como produto do espírito
Uma das primeiras coisas que hão de ser ditas neste ponto, é que Jakobson escreveu
sobre o realismo quando a estética já se havia desembaraçado da ideia de beleza. Este
nobre atributo da arte serviu, por um lado, aos efeitos de outorgar um lugar a esta
prática entre os objetos da filosofia, e por outro, para servir como estímulo, como
questionamento em obra, à ideia da mimese ou imitação, princípio quase indiscutido da
141
arte até a modernidade. Justamente nesse lugar filosófico privilegiado, e no
questionamento da mimese, é que cremos que se encontra a complexa relação teórica
entre Hegel e o realismo.
A estética ocupa-se da bela arte. Isso quer dizer que se ocupa de um produto
humano, que leva a marca do espírito em seu ser (liberdade e autonomia). Isso
diferencia também a arte da bela natureza, expressão pouco feliz no entender de Hegel,
pois não se funda na liberdade e autonomia do sujeito e, portanto, lhe é alheia. Já nas
primeiras páginas da Introdução dos Cursos de Estética (doravante, CE), Hegel destaca
a diferença entre o valor da verdade da arte (o belo artístico) e a natureza.
A superioridade do espírito e de sua beleza artística perante a
natureza, porém, não é apenas algo relativo, pois somente o
espírito é o verdadeiro, que tudo abrange em si mesmo, de
modo que tudo o que é belo só é verdadeiramente belo quando
toma parte desta superioridade e é por ela gerada. Neste sentido,
o belo natural aparece somente como um reflexo do belo
pertencente ao espírito, como um modo incompleto e
imperfeito, um modo que, segundo a sua substância, está
contido no próprio espírito. 220
O espiritual é o verdadeiro, e a arte é um produto do espírito. Nesse sentido, a arte é
superior, em verdade, à natureza. Em poucas palavras: a arte é mais real.
Claro que isso não é evidente à simples vista e, inclusive, é contrário a uma tradição
filosófica importante, que se inicia com Platão. Hegel leva em consideração a acusação
de ilusionismo, da qual havia sido objeto a arte:
[P]arece que sempre permanecerá prejudicial para a arte o fato
de necessitar da ilusão [Täuschung], mesmo que de fato se
submeta a fins sérios e produza efeitos sérios. Pois o belo
possui sua vida na aparência. Mas reconhece-se com facilidade
que um fim último verdadeiro em si mesmo não precisa ser
produzido por meio da ilusão. E mesmo que por meio dela a
arte consiga aqui e ali atingir algum fomento, isso só poderá
acontecer de modo restrito; e mesmo assim a ilusão não poderá
valer como o meio mais adequando. Por o meio deve ser
adequado à dignidade da finalidade, sendo que a aparência e a
220
CE: 2001,Vol. I, 28.
142
ilusão não podem gerar nada verdadeiro, mas somente o
verdadeiro pode gerar o verdadeiro. (ibidem, 30)
Em resposta a essa crítica, Hegel fará várias observações de mérito sobre o tema que
nos ocupa. A primeira tem a ver com o sentido do termo aparência (Schein) para o
filósofo. A aparência é uma condição da verdade, pelo que não se pode depreciá-la: é
“essencial à essência”. Sem aparência não há desenvolvimento do espírito, não há
verdade para o espírito; não há verdade.
Ora, em que medida fala-se de engano em relação à aparência? Na mesma medida,
pois, em que se fala de realismo: fala-se erroneamente na medida em que se atribui um
maior valor de realidade ao mundo natural, ao universo empírico.
Entretanto, toda esta esfera do mundo empírico interior e
exterior não é o mundo da verdadeira efetividade e deve com
mais rigor do que a aparência artística ser denominada de uma
mera aparência e de uma ilusão mais dura. A autêntica
efetividade apenas pode ser encontrada além da imediatez da
sensação [Empfinden] e dos objetos exteriores. Pois somente o
que é em si e para si [Anundfürsichseiende] é verdadeiramente
efetivo, ou seja, o substancial [Substantielle] da natureza e do
espírito que, embora atribua presença e existência a si, nesta
existência permanece o que é em-si-e-para-si e somente então é
verdadeiramente efetivo. A arte ressalta e deixa aparecer
precisamente a dominação destes poderes universais. Embora a
essencialidade [Wesenheit] também apareça no mundo
cotidiano interior e exterior, isso porém se dá sob a forma de
eventos casuais, nos quis ela é atrofiada pela imediatez do
sensível e pelo arbítrio de estados, acontecimentos caracteres e
assim por diante. Por sua vez, a arte arranca a aparência e a
ilusão inerentes a este mundo mau e passageiro daquele
verdadeiro Conteúdo dos fenômenos e lhe imprime uma
efetividade superior, nascida do espírito. Longe de ser, portanto,
mera aparência, deve-se atribuir aos fenômenos da arte a
realidade superior e a existência verdadeira, que não se pode
atribuir à efetividade cotidiana.221
Então, Hegel não é realista, entre outras coisas porque a reprodução verossímil da
natureza não é a reprodução verossímil do real. Inclusive o termo verossimilhança
parece não se encaixar neste marco conceitual. Tal como Aristóteles, Hegel coloca a
arte entre a historiografia e a filosofia. Não se adéqua à realidade, mas se adéqua ao
221
Ibidem, 33.
143
conceito; somente pode ser qualificado de engano frente à evidência científica, não à
empírica222:
Mas se consideramos o modo de aparecer das configurações
artísticas uma ilusão em comparação com o pensamento
filosófico, com os fundamentos religiosos e éticos, temos de
reconhecer que a Forma fenomênica que um conteúdo ganha no
domínio do pensamento é a realidade a mais verdadeira. No
confronto com a aparência da existência sensível imediata e da
historiografia, porém, a aparência da arte tem sem dúvida
precedência, na medida em que significa através de si e aponta a
partir de si para algo espiritual, que por meio dela deve ser
representado. O fenômeno imediato, por sua vez, não se
apresenta como ilusório, ao contrário, apresenta-se como a
efetividade e verdade, enquanto o verdadeiro de fato torna-se
impuro e oculto por meio do sensível imediato. A penetração do
espírito na Ideia é lhe mais penosa quando passa pela dura casca
da natureza e do mundo cotidiano do que lhe é pelas obras de
arte. 223
O cânone artístico passa a ser determinado pela concepção hegeliana do real. Isto é,
basicamente, o que significa o ideal para Hegel. O conteúdo da arte é a ideia, a forma da
arte é a configuração sensível dessa ideia, e a possibilidade de reconciliação de ambas
(separadas pela cerca do ideal e do particular) é brindada pelo ideal.
Não discutiremos aqui a validade desta equivalência no universo do ideal (real) de
Hegel, senão que nos limitaremos a tratar de compreender como é que ele introduz a
arte neste universo. Como parte do Espírito Absoluto, o belo é a ideia. Isso quer dizer,
dentro do sistema hegeliano, que a beleza supera não apenas o imediatismo do sensível
em seu valor de verdade, mas também as instituições que são parte do Espírito Objetivo,
como o próprio Estado. Encontra-se como uma das três formas de se representar o
222
Este modo de argumentar é comparável ao utilizado na Fenomenologia do Espírito para mostrar em
que medida é necessário que a filosofia volte à ciência verdadeira para a consciência. Ou seja, em ambos
os casos, nega-se a realidade àquilo que a consciência imediata considera como real. Poder-se-ia objetar
então, que não deveria ser necessário esse procedimento para a arte, onde as verdades devem ser
intuitivas; porém neste caso, Hegel poderia argumentar que a evolução da ideia faz com que seja difícil
para nós compreendermos o essencial em sua forma intuitiva, que nossa compreensão intelectual nos
inibe e reduz ao mero prazer sensível ou gozo imediato.
223
CE: 2001,Vol. I, 28.
144
Absoluto, junto à religião e à filosofia. Essas duas são, sem dúvida, mais verdadeiras
que a arte.
Dizíamos então: o belo é ideia. Temos, por um lado, a ideia, que em sua forma
infinita é pensamento; por outro lado, temos a realidade desta ideia que, à medida em
que se torna sensível, vê-se limitada; finalmente, temos a unidade de ambos, que nesse
caso é a reconciliação no objeto belo. Não se trata, como na natureza, de uma unidade
derramada em uma multiplicidade, mas de uma unidade apresentada enquanto unidade
completa em si mesma.
O ideal — e nisso Hegel coloca muita ênfase — não é a correspondência adequada
entre a imagem e sua ideia, senão que é a verdade apresentada em forma sensível, dada
à intuição. De fato, as três formas nas quais se desenvolve a arte — simbólica, clássica e
romântica — são formas que se caracterizam pela conquista satisfatória, ou não, dessa
vivificação do ideal. Somente a forma clássica consegue esse objetivo; a forma
simbólica não alcança a suficiente determinação da ideia e, por tanto, não se expressa
em uma maneira de todo satisfatória; a forma romântica vê-se desbordada pela
magnitude da ideia, que não pode ser reconciliada com o componente sensível. Como
nem todas as determinações do Absoluto podem apresentar-se de maneira sensível, o
ideal apresenta uma ideia concreta do espírito, que é a que encontramos na religião
grega. A religião grega, por certo, está viva na arte, não no exterior dela.
Assim, a pretensão de buscar o real na qualidade de sensível leva Hegel a
estabelecer uma grande quantidade de determinações para o verdadeiramente espiritual
na forma humana e, em particular, na forma humana purificada dos defeitos próprios da
finitude. É nessa forma humana que se apresenta o corpóreo animado pelo espírito. Os
deuses gregos, nas suas múltiplas formas de aparição, mas especialmente nas esculturas
onde aparecem em repouso — estado mais apropriado para o ideal, liberados de todos
145
os preconceitos da finitude, de toda preocupação e feiura, porém, por sua vez, ao mesmo
tempo individualizados como potencialidades específicas do que logo o cristianismo
descobrirá como um só Deus — são a mostra viva da existência do ideal e são, por isso,
a forma mais pura da expressão artística, a realização do conceito de arte.
Deste modo, todos os componentes formais do cânone clássico ficam incorporados
como as formas mais reais do sensível, mais próximas da verdadeira forma em que hão
de ser as coisas para serem perfeitas. Isso fica sancionado pelo rigor da verdade, que é o
rigor de beleza.
Ora, o ideal somente se realiza na forma humana e seu acionar. A escultura e a
poesia são as formas adequadas à arte clássica. A primeira como sua espécie principal, a
segunda como arte adequada para as três formas do artístico. Porém, justamente na
poesia e sua capacidade para desenvolver o acionar humano descobrimos que a arte
clássica leva no embrião sua própria dissolução, pois, segundo Hegel, pede sua
superação. A arte clássica, em sua objetividade, deriva em petrificação de sentido. Isto
se deve fundamentalmente ao abandono da quietude inicial (a própria da escultura), da
ausência de situação em relação a formas mais complexas de ação que exigem uma
maior profundidade interna do que os deuses gregos são capazes de nos brindar.
Inclusive na literatura desta arte pode-se observar como o “objetivo” permanece como
tela de fundo, como se incorporam detalhes que são acessórios e servem tão somente
para criar um ambiente propício para a exibição do real, uma cenografia adequada
(retomaremos adiante).
Na busca do ideal como forma conciliadora da ideia e do particular (sensível) e no
expresso distanciamento do natural (a aparência empírica corrente) em relação ao ideal,
encontramos o problema que o “realismo”, como forma privilegiada de compreender as
artes, supõe para a proposta de Hegel. O problema é muito simples: o realismo como
146
aspiração da arte fica descartado porque a natureza (ou o real para o realismo
vulgarmente entendido) não é um objeto digno de ser imitado. Não obstante, postula-se
que o real é a arte mesma, pelo que a arte passa a ocupar um lugar de privilégio como
forma do real. Com este movimento, Hegel recupera a dignidade que, ao fim e ao cabo,
o termo “realismo” possui e coloca na tradição artística cobrindo suas costas. Em suma:
não temos uma arte realista, mas, temos uma arte cujo fundamento encontra-se em sua
capacidade de mostrar o real, de fazê-lo sensível. Isso nos deixa às portas de algo muito
importante. Podemos dizer que Hegel recorre à estratégia de amparar-se na “realidade”
para defender um cânone específico, sua arte ideal, a arte clássica ou em outras
palavras: uma convenção específica será defendida por seu valor de realidade.
Ao estabelecer a superioridade da arte clássica como a única adequada ao verdadeiro
conceito de arte, e ao defender este cânone em nome do realismo, podemos encontrar na
posição hegeliana um gesto semelhante ao de um defensor do realismo A2, isto é, um
realismo partidário da perfeição das convenções tradicionais e que chamaremos de
realismo A2.
4.2.1.2. Críticas hegelianas à mimese
No Capítulo anterior mostramos como a crise da ideia de mimese formou parte
essencial da teoria da arte do romantismo. No caso de Hegel, vamos sustentar que uma
das causas da luta contra esta definição da arte como mimese encontra-se na
“encruzilhada” que certo realismo pictórico colocava diante dos artistas e filósofos da
época. Esse problema tem a ver com a possibilidade de transmissão de certas
convenções ou regras para a produção artística, a qual deixa de lado, à medida que o
realismo se coloca como real objetivo da arte, a capacidade de inovação.
Hegel critica explicitamente o realismo como fim da arte quando critica a velha
teoria da mimese. Em muitos sentidos, herda as críticas românticas fazendo-as próprias.
147
O princípio da imitação da natureza criticado é aquele que concebe ela como a
“habilidade de reproduzir fielmente as configurações naturais, tal como existem, deve
constituir a finalidade essencial da arte e o sucesso desta representação [Darstellung]
correspondente à natureza deve proporcionar a satisfação plena.” 224
Na medida em que estima tratar-se somente de um critério formal, reduz a imitação
aos meios, um desafio instrumental.225 Considerado desse modo, a arte reger-se-ia por
uma finalidade meramente formal: que o homem faça por seus próprios meios o que já
aparece ante seus olhos, que repita o que encontra na natureza.
Em primeiro lugar, Hegel avaliará este objetivo como supérfluo, pois por que fazer o
que já existe no mundo natural? Em segundo lugar, considera que seria um esforço
arrogante, pois não se pode conquistar a vida através da criação artística, pelo que mal
valerão essas tentativas para reproduzi-la com exatidão em sua aparência morta. Nesse
sentido, pode-se dizer que será uma tarefa frustrante, pois nunca se conseguirá dar vida
ao imitado e, por tanto, sempre se obterá um produto inferior ao modelo. Dado que não
se pode lograr uma reprodução cabal, será um mau consolo a possibilidade de gozo
sensível que nos provém da semelhança, pois ele levará prontamente ao tédio do
artifício sem valor.
Nesse sentido, é mais valioso, para Hegel, a conquista de um substituto da natureza,
algo que estenda nossas capacidades, uma ferramenta útil, e não um objeto cujo fim seja
meramente contemplativo. Reproduzir com fidelidade é um objetivo pouco estimulante.
Outra consequência de tomar um princípio totalmente formal é a perda do horizonte
da beleza. Ou seja, a beleza não pertence já à arte, ficando limitada à conquista da
exatidão. Pouco importa o belo objeto e seu conteúdo; o sentido da produção artística
está na correta imitação. A partir dessa consequência, o que é considerado belo
224
Ibidem, 62.
Esta imitação foi característica da época e servia para dar lugar a teorias pragmáticas da arte. Ver
ABRAMS, M.H.: 1971.
225
148
dependerá tão somente da beleza subjetiva com que se considere belo a um objeto,
como todo namorado considera bela a sua noiva (o exemplo é de Hegel). Não se buscará
um conteúdo essencial que permita aceder ao universalmente belo, senão que se
redundará, uma e outra vez, no que ao artista agrade representar, ou ao espectador ver,
escutar ou ler. Desse modo, no caso da arte religiosa, perder-se-á a possibilidade de
conhecer o impulso artístico de outras culturas, pois a mera sensação mostrará como
desagradáveis muitas de suas representações.226
Finalmente, surge o problema de quais artes podem ser imitativas e quais não. O
problema de encontrar um princípio que permita uma exposição sistemática das artes é
muito familiar a Hegel, tanto pela orientação de toda sua filosofia, quanto por ser um
dos tópicos da estética de seu tempo. Assim como Charles Batteaux havia proposto a
imitação da bela natureza como princípio da arte227, Gotthold Ephraim Lessing
promoveu uma separação das artes em função do que essas estavam em condições de
imitar.228 Para este último, a diferença entre poesia e pintura estava nos meios, que eram
específicos. Por exemplo, a pintura encontrava-se forçada a imitar o momento, e ainda
não podendo captar o movimento229, de mesmo modo utilizava signos naturais. 230
226
Isso é interessante, pois Hegel é, de certo modo, um vanguardista ao abrir-se às artes primitivas (as
chamaremos assim). No entanto, o fato de tomá-las como artes não significa que esteja disposto a não
avaliá-las de acordo com um cânone de perfeição a que não ascendem e, inclusive, como inadequadas
para ascender às etapas posteriores. No caso particular da pintura — arte definida como romântica — o
preconceito atirado porta a fora ao entender que não se trata de tomar como objetivo o realismo nas
pinturas primitivas, volta pela janela ao entender que não há “pintura” de acordo com seu verdadeiro
conceito até a época cristã, devido, sobretudo, à falta de compreensão da verdade própria da arte e do
espírito que requer a aproximação realista Deus-homem e ao seu itinerário terreno. Com relação à beleza,
isso estende-se a todas as formas de arte: “Por exemplo, os chineses, os indianos e os egípcios
permaneceram em suas configurações artísticas figuras de deuses e ídolos desprovidos de uma Forma e
não souberam dominar a verdadeira beleza porque suas representações mitológicas, o conteúdo e o
pensamento de suas obras de arte ainda eram em si mesmos indeterminados ou de uma determinidade
ruim, e não eram ainda o conteúdo em si mesmo absoluto.” CE: 2001, Vol. I, 89.
227
Les Beaux-Arts réduits à un même príncipe (1746).
228
Laocoonte, ou Sobre as fronteiras da pintura e da poesia (1766). Texto pioneiro sobre a autonomia
da arte frente a outros fins.
229
Convém recordar, aos efeitos de ter presentes fatores que fizeram a história da arte, que integrar o
“movimento” à pintura foi um dos desafios fundamentais para os artistas de meados do século XIX e
princípios do XX.
230
Ver FRANZINI: 2000, 185.
149
Tanto Batteaux como Lessing contaram com seus seguidores e é seguro que Hegel
conhecia o trabalho de ambos. Hegel não entenderá agora a mimese como princípio de
sistematização das artes, deixando de lado, então, a Batteaux. De Lessing apartar-se-á,
porém de uma forma distinta. Por um lado, assumirá — como em toda sua filosofia — a
necessidade de um conceito que permita uma exposição sistemática unificada. Por outro
lado, a pintura e a escultura, serão artes com possibilidades de alcançar a semelhança
com o natural:
Mas, se fizermos abstração de um princípio objetivo para a arte,
se o belo deve continuar repousando sobre o gosto subjetivo e
particular, perceberemos, ainda assim, por parte da própria arte,
que a imitação da natureza, mesmo que pareça ser um princípio
universal e, na verdade, um princípio defendido por grande
autoridade, pelo menos nesta Forma geral e inteiramente
abstrata não pode ser aceita. Se atentarmos, pois, para as
diferentes artes, imediatamente admitiremos que embora a
pintura e a escultura exponham objetos que sejam semelhantes
aos naturais ou extraiam seu tipo essencialmente da natureza
[...]231
Assim, Hegel considera que o princípio de imitação da natureza não abarca todo o
poético, pois deste modo estar-se-ia excluindo o fantástico. Em uma associação de
fantasia e poesia, a que retornaremos mais adiante, também elimina a imitação como
princípio válido para a arte em geral. A criatividade e a beleza são, então, as principais
armas contra a imitação.
Porém, a crítica que Hegel não faz, e que sem dúvidas é a mais fatal contra o
princípio de imitação, é a de sua impossibilidade de fato: a convenção de todo estilo.
Desse modo, a imitação, ao menos como recurso ou base da arte, segue desempenhando
um papel que, evidentemente, também forma parte da produção de obras concretas:
Um momento essencial na obra de arte reside decerto no fato de
ter como fundamento a configuração natural, dado que suas
manifestações [darstellt] tem a Forma do fenômeno exterior e,
assim, também ao mesmo tempo natural. Para a pintura, por
231
CE: 2001,Vol. I, 64-5.
150
exemplo, um estudo importante consiste em conhecer
detalhadamente e imitar as cores em suas mútuas relações, os
efeitos da luz, reflexos e assim por diante, como também as
Formas [Formen] e formas [Gestalten] dos objetos até em suas
mínimas nuanças. 232
Como indicamos previamente, nesse aspecto formal, ou seja, um aspecto alheio aos
conteúdos — onde a reprodução da natureza terá seu lugar. Da mão dela aparecerá o
realismo como forma própria de um determinado estágio de arte. Esses argumentos e
essa necessidade de estabelecer os limites precisos da natureza e da arte estão
relacionados não somente ao problema filosófico em questão, mas também a uma
disputa no terreno da arte. Essa disputa toma a exata forma que Jakobson observou
como característica das polêmicas pelo predomínio de um realismo sobre outro. Por
isso, devemos analisar a posição de Hegel como uma tentativa de resposta a ela.
A este respeito também se restabeleceu, pois, principalmente
em época recente, o princípio da imitação da natureza e da
naturalidade em geral, a fim de reconduzir a arte da fraqueza
e nebulosidade na qual tinha decaído para o vigor e certeza
da natureza ou, por outro lado, a fim de que se recorresse à
consequência em si mesma firme, regular e imediata da
natureza contra o que é convencional e feito apenas
arbitrariamente, isto é, tanto falta de arte [Kunstlosse]
quanto de natureza [Naturlose] que levou a arte a se perder.
E resume sua postura ante este debate de maneira exemplar:
Embora segundo certo ponto de vista este esforço seja correto, a
exigência de naturalidade enquanto tal não é, porém, o
substancial e primordial que fundamenta a arte; portanto,
mesmo que o aparecer exterior em sua naturalidade constitua
uma determinação essencial, a naturalidade existente não é a
regra da arte e nem a mera imitação dos fenômenos exteriores
enquanto exteriores não é a finalidade da arte. 233
Hegel faz um acordo com os “revolucionários”
234
, mas não está disposto a
conceder-lhes a máxima autoridade em matéria de arte.
232
Ibidem, 65.
Ibidem. O destaque em itálicas é de Hegel, o resto é nosso.
234
Falamos dos defensores de um realismo do tipo A1.
233
151
4.2.1.3. Observações finais
Ao longo desta primeira exploração da estética de Hegel, chegamos a duas
conclusões essenciais.
Primeiro, que Hegel pode ser identificado, em sua posição a respeito da arte e da
realidade, como um conservador em matéria de arte e, ao se amparar em um critério de
“realidade” para a defesa do cânone clássico, com um realista do tipo A2. É claro que
não estamos tratando de sugerir que Hegel sustentava que o objetivo da arte era lograr a
verossimilhança, mas estamos falando do tipo de estratégia utilizada para a defesa da
arte que considerava mais sublime.
Em segundo lugar, de acordo com sua posição na disputa a favor de uma nova arte
fundada no princípio de imitação, pode-se dizer que Hegel faz um acordo com um
realismo de tipo A1, porém de maneira suficientemente moderada para que isso não
chegue a contrariar sua posição de realista do tipo A2’.
Como Hegel torna isso possível? É o que trataremos de ver, analisando Hegel como
espectador.
4.2.2. A arte e o sensível
Desde o momento em que Hegel descarta o realismo como objetivo da arte, a
pregunta pela resposta do espectador parece ociosa: o que mais fica da recepção realista
que ocupa o lugar do erro?
Para Hegel, em princípio, artista e espectador são duas caras da mesma moeda
quando conseguem se consolidar como tais: o pensar e o observar absolutos. Hegel
busca chegar à arte conhecendo o que esta é em si e para si, ou seja, o que a faz
necessária e permite conhecê-la por completo em cada um de seus momentos. Isso
poderia nos fazer deixar de lado qualquer perspectiva teórica relacionada com a
Significação B e suas duas vertentes correspondentes.
152
Ainda assim, não podemos ignorar a dimensão histórica que há de dar testemunho
do desenvolvimento da arte, que há de mostrar seu verdadeiro conceito. É justamente a
partir da reconstrução hegeliana do desenvolvimento do conceito arte que podemos
reconstruir sua posição como espectador. Do mesmo modo que consideramos a
definição de arte como o horizonte criativo do artista para Hegel (e não a partir dos
objetivos dos artistas individuais), também consideramos suas valorizações sobre a
verossimilhança da arte como o horizonte de interpretação do espectador que lhe era
contemporâneo. Adjudicamos esse direito a partir do simples fato de que enquanto
Hegel considera como instância conquistada do que está tratando de caracterizar (a arte)
àquilo que os artistas clássicos produziam, não considera da mesma forma a arte
anterior ou posterior. A arte anterior e posterior vem a ser uma arte degenerada, e não
parece uma hipótese de trabalho demasiado ousada postular que isso poderia ser assim
para Hegel, porém não para os artistas e, sobretudo, não para os artistas modernos.
Insistimos, aqui, no ponto de que, para Hegel, a postura normativa é a do gênio.
Veremos então que tipo de arte Hegel considerava realista, não desde o ponto de vista
normativo, mas desde o ponto de vista do espectador, e que lugar este tem em seu
sistema.
Temos, em Hegel, três formas especiais de bela arte, nas que o ideal se desenvolve.
Em primeiro lugar, está a arte simbólica, na qual predomina o espiritual indeterminado.
A arte clássica é a que realiza o conceito da arte. A arte romântica dá-se quando o belo
se apreende como absoluto e não consegue encontrar-se no exterior sensível. Nessa
última instância, a forma se converte em indiferente, separando-se novamente o
conteúdo e a forma. “Deste modo, a arte simbólica procura aquela unidade consumada
entre o significado interior e a forma exterior, que a arte clássica encontra na exposição
153
da individualidade substancial para a intuição sensível e que a arte romântica ultrapassa
em sua espiritualidade proeminente.” 235
Originado fundamentalmente no Oriente, o símbolo é uma forma de pré-arte: “é uma
existência exterior imediatamente presente ou dada para a intuição, a qual não deve ser
tomada do modo como se apresenta de imediato, por causa dela mesma, mas deve ser
compreendida num sentido mais amplo e mais universal.”236 Distingue-se nela dois
aspectos fundamentais: a significação (representação ou objeto) e a expressão
(existência sensível ou imagem), pelo que se poderia pensar que toda forma de arte é
simbólica. Porém, isso não é assim, pois se assim fosse, seria possível encontrar uma
explicação alegórica para cada obra de arte. Para Hegel, o simbólico cessa quando o
conteúdo é uma individualidade livre, ou seja, um conteúdo espiritual que se apresenta a
si mesmo, em si mesmo. A partir desse momento, sujeito e objeto são um, não estão
aparentados como no simbólico, senão que são idênticos.
A arte simbólica inicia-se em uma luta do artista contra o conteúdo que não
consegue precisar, para adequar significação e forma. A forma mostra-se, então,
inadequada com relação a um conteúdo que não se consegue definir. Isto que primeiro é
inconsciente terminará mostrando a insuficiência deste tipo de arte para dar conta do
ideal, fazendo-se explícita a diferença entre a significação e a forma em que se a
apresenta. Ou seja, a arte simbólica inicia-se com uma conjunção mais ou menos casual,
e termina com um artista que conhece melhor a significação, porém, que para adequá-la
melhor, a aparência a limita (mostrando uma coruja em sinal de sabedoria, por
exemplo). Essa tendência faz do simbólico algo acessório (como é efetivamente na arte
clássica e romântica). 237
235
CE: 2000,Vol. II, 22.
Ibidem, 26.
237
Cabe destacar aqui que, para Hegel, a distinção entre simbólico e alegórico não é a mesma que
desenvolverão alguns românticos e os poetas simbolistas. Muito pelo contrário, o único que poderia
236
154
“O ponto central da arte é constituído pela união, que é fechada em si mesma para a
de uma totalidade livre, entre o Conteúdo e a forma simplesmente adequada a ele.”238
Trata-se de uma totalidade livre, porque o livre é aquilo que é idêntico a si mesmo,
completo. A arte clássica faz deste conceito uma realidade, a que se aspirava na arte
simbólica. O conteúdo e a forma da arte clássica estão dados pelo ideal, pelo qual este
executa a arte verdadeira segundo seu conceito. Sua existência efetiva deu-se na Grécia
antiga.
Esta arte busca seu conteúdo na religião popular, a qual transforma. Segundo Hegel,
não é uma eleição arbitrária (da subjetividade particular), posto que se funda na
individualidade substancial (aquilo que nos individualiza como humanos, seres
espirituais). Com isso, basicamente se quer dizer que o modelo de ser humano postulado
pela arte grega é mais perfeito do que se pode pensar para apresentar em forma sensível.
Assim, nos deuses gregos, compreende-se a classe do espiritual.
Isso posto, os deuses da arte clássica ainda são poderes naturais porque o espiritual
não pode apresentar-se como absolutamente livre (subjetividade pura). Não existe um
deus único que mantém o poder da natureza em geral (como o Deus cristão), senão que
múltiplos deuses possuem o poder de determinada atividade especial da natureza, a qual
é apresentada como indivíduo espiritual e tem como essência esta individualidade
espiritual. O ideal somente aparece com a supressão do negativo da forma do espírito se
suprime o rude, a falta de beleza, o barroco, o meramente natural ou fantástico que tinha
lugar nas representações simbólicas.
Desde o ponto de vista técnico, para captar este conteúdo, a matéria deve estar livre
de aspereza e dureza; deve obedecer ao artista, pelo que necessita uma grande
diferenciar uma categoria tout court de um símbolo seria a opacidade da significação deste último. De
qualquer forma, em ambos os casos, o que se expressa artisticamente bem poderia ser expresso de outra
maneira: melhor na arte romântica e pior na simbólica.
238
Ibidem, 157.
155
habilidade técnica. Esta arte surge então quando determinado procedimento técnico foi
alcançado. Esta arte aparece quando o mecânico já não representa dificuldade alguma.
O progresso técnico dá-se da mão do progresso da forma, e o conteúdo, da mão do
progresso do espírito.
Na evolução da arte clássica, os acontecimentos e ações fazem-se cada vez mais
humanos, por isso se avança “segundo o seu conteúdo, para singularização da
individualização casual e, segundo a sua Forma, para o agradável, o encantador.”239 O
agradável captura o observador de múltiplas maneiras com relação à finitude de sua
subjetividade: na dimensão finita da arte, há uma aproximação ao sujeito finito. Quando
a beleza — entendida, sobretudo, em seu efeito sensível — começa a ser mais notória
do que a verdade exibida na arte, começa a desaparecer a devoção. Não queremos dizer
com isso que a verdade espiritual não se mostre nas obras, senão que, ao fazê-lo de
maneira inadequada, fica insatisfeita a inquietude intelectual.240
Pois por meio do agradável não continua se desenvolvendo
porventura o substancial, o significado dos deuses, o que é
universal neles, mas o lado finito, a existência sensível e o
interior subjetivo são aquilo que devem suscitar interesse e
fornecer satisfação. [...] Pois na exterioridade e se encontra a
multiplicidade da finitização [Verendlichung] que, quando
ganha um espaço de atuação livre, se opõe por último à Ideia
interior e à sua universalidade e verdade e começa a despertar o
desgosto do pensamento contra a realidade que não mais lhe
corresponde.241
Desse modo inicia-se a dissolução da arte clássica e o trânsito em direção à forma
romântica. O princípio dessa transição é a seguinte:
239
Ibidem, 231.
“Hoje, além da fruição imediata, as obras de arte também suscitam em nós o juízo, na medida em que
submetemos à nossa consideração pensante o conteúdo e o meio de exposição da obra de arte, bem como
adequação e inadequação de ambos. A ciência da arte é, pois, em nossa época muito mais necessária no
que em épocas na qual a arte por si só, enquanto arte, proporcionava plena satisfação. A arte nos convida
a contemplá-la por meio do pensamento e, a verdade, não para que possa retomar seu antigo lugar, mas
para que seja conhecido o que é a arte.” CE: 2001,Vol. I, 35.
241
CE: 2000,Vol. II, 231.
240
156
O princípio desta transição está no fato de que o espírito – cuja
individualidade até agora foi intuída como em consonância com
as verdadeiras substâncias da natureza e da existência humana e
que se sabia e se encontrou nesta concordância segundo a sua
própria vida, querer e atuar ― começou agora a recolher-se na
infinitude interior, mas ao invés da verdadeira infinitude,
ganhou em si mesmo apenas um regresso formal [formelle] e
ele mesmo ainda finito.242
Esta perda da capacidade de reconciliação do sensível e do inteligível faz-se
inevitável devido a que esta forma da religião-arte dependia da vigência da forma de
organização política e social própria do Estado grego, e nem a religião, nem esta forma
de organização, deixavam espaço para o desenvolvimento da individualidade livre. A
luta pela aspiração legítima de liberdade do indivíduo o leva a se separar do Estado,
separando-se assim a objetividade de um da subjetividade de outro. A mesma ruptura
entre forma (objetiva) e conteúdo (espiritual, subjetivo) dar-se-á na arte:
A totalidade simples, consistente do ideal, se dissolve e se
descompõe na totalidade dupla do subjetivo que é em sí mesmo
e do fenômeno exterior, para permitir ao espírito alcançar, por
meio desta separação, a reconciliação mais profunda em seu
próprio elemento do interior.243
O espírito reconhece-se no interior, no sentimento. Isso faz que o espírito veja seu
outro (existência) em si mesmo, o qual o faz infinito e livre.
Como, neste estágio, o espírito sabe que sua verdade não está em se fundir na
corporeidade, senão em que o exterior o reconduza a si mostrando-se como inadequado,
a arte romântica deixa para trás a natureza ideal da arte clássica e apropria-se do vulgar
e do negativo:
Por um lado se encontra o interior para si, por outro lado a
existência exterior dissociada dele, e a subjetividade retraída em
si mesma, já que não sabe encontrar mais encontrar nas formas
até então válidas a sua efetividade adequada, tem de se
preencher com o conteúdo de um novo mundo espiritual de
242
243
Ibidem, 241.
Ibidem, 252.
157
absoluta liberdade e infinitude e procurar novas Formas de
expressão para este Conteúdo mais aprofundado.244
Essa forma de arte buscará a subjetividade humana como interioridade, abrindo-se a
um espectro maior de possibilidades, as de todo humano. Ainda que o ponto de vista do
conteúdo, aquilo que se pode apresentar como divino, seja muito restrito, o âmbito do
humano é muito amplo, estendendo-se ao modo de ser e atuar da humanidade inteira e
entornos, os quais passam a formar parte do universo de temas artísticos. Reconhece-se
pelo menos três etapas nesse sentido:
a) o ponto de partida dessas representações é o Absoluto mesmo, que se dá
existência, sabe-se e atualiza-se. O ser humano é consciente do Absoluto como Espírito,
e este é tomado como conteúdo. Assim encontrar-se-á a forma mais adequada para sua
representação na história de Cristo, de sua mãe, etc;
b) em uma segunda etapa mostra-se a autonomia conquistada pelo ser humano no
âmbito mundano, afirmando as virtudes da subjetividade na honra, no amor, na
fidelidade e na valentia (é o período das novelas de cavalaria);
c) o terceiro aspecto a representar é o ser humano como formalmente livre, ou seja,
capaz de tomar suas próprias decisões sem nenhum tipo de determinação de seu caráter.
É, sobretudo, nesta última fase que o realismo parece jogar um papel essencial.
Posto que “o finito enquanto tal constitui o conteúdo, tanto pelo lado dos fins
espirituais, dos interesses mundanos, das paixões, das colisões, dos sofrimentos e das
alegrias, das esperanças e das satisfações, como também pelo lado do exterior, da
natureza e de seus reinos e fenômenos mais singulares.”245 O verossímil que resulta esta
arte a Hegel é bastante evidente em passagens que não quero omitir.
O lado da existência exterior é entregue à contingencia e
abandonado à aventura da fantasia, cuja arbitrariedade pode
244
245
Ibidem, 172.
Ibidem, 258.
158
tanto espelhar o que está presente, tal como está presente,
como também embaralhar e distorcer grotescamente as
configurações do mundo exterior. ― Pois esta exterioridade não
tem mais seu conceito e significado em si e junto a si mesma
[und sich und an sich selber], como no clássico, mas no ânimo
que tem sua aparição [Erscheinung] em si mesmo e não na
exterioridade e na Forma e realidade desta, e é capaz de
conservar ou reconquistar esta reconciliação consigo mesmo em
todo tipo de contingência e acidentalidade que por si mesmo se
configura, em todo infortúnio e dor e até mesmo no próprio
crime. 246
E bastante mais adiante:
Por isso, de acordo com este princípio, na arte romântica o
modo de configuração efetiva não ultrapassa essencialmente,
pelo lado do aparecer exterior, a autêntica efetividade comum, e
não teme de nenhum modo acolher em si mesmo esta existência
real em sua deficiência e determinidade finitas.247
Na arte romântica há dois mundos: um espiritual, que se volta a si mesmo; e outro
exterior como tal, “que libertado da firme união coesa com o espírito, torna-se uma
efetividade completamente empírica, de cuja forma a alma está despreocupada.”248
Deste modo, a contingência, entendida como negatividade, torna-se a forma usual da
arte com o que fica incapacitada de cumprir com todos os requisitos para se adequar ao
verdadeiro conceito de arte:
Desse modo, alcançamos em geral como ponto final do
romântico a contingência do exterior assim como do interior e
um desfazer-se destes lados, por meio de que a arte mesma se
suprime [aufhebt] a si e mostra para a consciência a necessidade
de adquirir para si Formas mais elevadas, do que a arte é capaz
de oferecer, para a apreensão da verdade.249
Nesse sentido é que Hegel encontra obras herdeiras da tradição artística, porém
exemplares desta perda de sentido autêntico da arte. Quando o artista comunica sua
concepção de mundo, junto à religião de seu povo, toma seriamente esse conteúdo e sua
representação. Identifica-se com ele, o toma por verdadeiro. Na época de Hegel, isso já
246
CE: 2001,Vol. I, 95. Os destaque em itálico é de Hegel, o resto nosso.
CE: 2000,Vol. II, 260.
248
Idem.
249
Ibidem, 263.
247
159
não ocorre. Porém é próprio ao conceito de arte, que esta liberação do conteúdo
representado, na medida em que cada vez mais está claro o conteúdo, já não oferece
mistérios que interessem ao espírito O que nós chamamos autonomia da arte, de estilos
e objetos de interesse, é para Hegel uma situação impossível de resistir para a arte em
sua definição essencial:
Para o artista dos dias de hoje o estar preso a um Conteúdo
particular e a uma espécie de exposição apropriada, apenas para
esta matéria, é algo do passado e, desse modo, a arte tornou-se
um instrumento livre que ele pode manusear uniformemente,
conforme sua habilidade subjetiva em relação a cada conteúdo,
seja de que espécie ele for.250
Ao se autonomear este entorno do conteúdo, vai-se perdendo o especificamente
artístico:
Por um lado, a saber, coloca-se a efetividade real em sua
objetividade prosaica, considerada do ponto de vista do ideal: o
conteúdo da vida comum cotidiana, que não é apreendida em
sua substância, na qual contém algo de ético e de divino, mas na
sua mutabilidade e transitoriedade finita. Por outro lado, é a
subjetividade que, com seu sentimento e visão, com o direito e
o poder de seu chiste, sabe elevar-se como mestre da
efetividade inteira, não deixa nada em sia conexão usual e em
sua validade que possui para uma consciência comum [...]251
Da mão do realismo vem tanto a imitação como a ironia, tanto a capacidade para
representar os objetos em sua justa aparência, como a possibilidade de manipular esta
aparência a bel prazer.
Temos então uma concepção de arte que avança em relação à sua própria dissolução,
progredindo em direção a uma arte cada vez mais realista. Encontramos em Hegel,
então, um realista de tipo B1, ou seja, um espectador que aceita que as convenções mais
verossímeis sejam as não tradicionais. Porém, também encontramos, em tom enfático e
decidido, uma “sanção” para essa arte realista que deforma o cânone e, assim, não pode
250
251
Ibidem, 340.
Ibidem, 330.
160
apresentar a verdade em sua forma mais adequada. Essa forma de entender a
deformação do cânone o aproxima ao conservadorismo do realista de tipo B2, que
chamaremos B2’.
À medida que a evolução da arte leva a uma superação da ilusão da arte grega, a arte
romântica apresenta-se como mais verdadeira. Ou seja, há uma ganância no saber com
respeito ao conteúdo — o encontro da verdadeira divindade — que se traduz na
impotência da arte para dar conta dela de maneira sensível. O realismo no tocante às
coisas humanas também passa a ser verdadeiro. Hegel, porém, ainda que aceite isso,
nega-se a tirar “verdade” da arte grega. O dilema é muito simples: se a arte ideal não
continha a verdade, como é possível que a tomemos como a mais real?
O problema fundamental é, provavelmente, o da possibilidade das estéticas
idealistas à luz da história da arte (e do que a arte é). Porém, no tocante a este trabalho,
o que temos é um realismo do tipo B2’ que se vê em apertos frente a um realismo do
tipo B1. Vejamos como termina esta história no caso da pintura.
4.2.2.1. A pintura e o realismo pictórico
A história da arte sai ao encontro do sistema idealista de Hegel. Como parte de seu
programa, esta história há de se mostrar como a evidência de toda a construção teórica,
é o éter252 no qual o Espírito se realiza.
Na arte simbólica apresenta-se um parentesco entre forma e conteúdo. A arte mais
adequada para essa forma é a arquitetura, porque introduz um conteúdo dentro de
formas que carecem de interioridade. Sua manipulação da “matéria morta” — ainda que
em contexto hegeliano, isso não seja redundante — para fins que não conseguem
expressar um conteúdo espiritual a não ser de maneira alusiva, convertendo-a na arte
252
Tomo esta expressão do Prólogo da Fenomenologia do Espirito, agradecendo a interpretação a J. Fló.
Éter é o nome que dá Hegel, ao estado de autoconsciência na alienação, uma maneira evasiva de se referir
à substancialidade do processo de autoconsciência ou odisseia do Espírito em seu conjunto.
161
simbólica por excelência. Além do que, é possível encontrar um desenvolvimento da
arquitetura adequado às duas seguintes formas do artístico, posto que sua qualidade de
arte simbólica lhe permite acompanhar a outras formas de arte. Não nos deteremos de
maneira especial na história da arquitetura.
A arte clássica, vimos, conquista a identidade de forma e conteúdo. Neste caso, é a
escultura a arte que consegue tomar o objeto e manipulá-lo para expressar o espiritual.
Em outras palavras, na escultura, faz sua aparição o espiritual como objeto. A transição
da arquitetura à escultura torna-se necessária pelo conceito do espírito, “que se
diferencia em seu ser subjetivo para si e em sua objetividade como tal.”253 Hegel
destaca a maior naturalidade desta arte ao apresentá-la como um objeto que se
encontra totalmente impregnado de Espírito, que se volta para o orgânico e se mantém
sem mescla com o inorgânico.
A escultura somente aparece na forma de arte clássica. O ideal clássico tem um
desenvolvimento em si mesmo, “por meio do qual ele se torna a partir de si naquilo que
é segundo o seu conceito e igualmente começa a progredir além desta concordância com
a sua própria natureza essencial.”254 Um desenvolvimento preliminar da arte-ideal
encontra-se na forma simbólica, na medida em que esta começa a utilizar a forma
humana de maneira autônoma (isto é, desprendida dos ambientes arquitetônicos, de um
entorno que a coloca como acessória). A arte romântica, por seu lado, excede o ideal.
Sua escultura cristã desenvolveu-se com mais amplitude que a simbólica,
compartilhando as características típicas da pintura religiosa.
Se buscamos exemplos de escultura, antes de chegar à Grécia, encontraremos a
escultura egípcia. Hegel considera que a arte egípcia demonstra habilidade técnica e é
uma forte influência para a arte grega e cristã. Caracteriza a escultura egípcia, a carência
253
254
CE: 2002, Vol. III, 101.
Ibidem, 174.
162
de graça das obras orgânicas e a falta de mobilidade. 255 Essas não se deviam a uma
inaptidão técnica, mas a uma intuição do divino que não estava determinada para se
mostrar como forma sensível individual, nem havia chegado a ser um conhecimento
efetivo. Deste modo, a escultura não supera a separação entre significado e forma. A
significação é ainda o principal: “[...] e, por isso, refere-se mais à representação das
mesmas em sua universalidade do que ao habituar-se a uma forma individual e ao
deleite da intuição artística.”256
Antes de chegar à plena perfeição da escultura grega, encontramos a escultura
eginética257 e a arte etrusca. Essas artes captam a vida no natural (não no espiritual),
porém lhes falta integrar a espiritualidade na representação do rosto e através da posição
do corpo esculpido. A primeira mostra uma tensão entre a tradição e a imitação da
natureza favorável à “naturalidade”, porém na que se nota a ausência de animação
espiritual. A arte etrusca, todavia, imita a natureza com maior precisão. Essas formas
primitivas da imitação se conectaram com o ideal que se oporá a elas e com a arte
romana que as herdará.
A escultura ideal deve desembaraçar-se da tradição, renegar o recebido. “E esta
liberdade somente, consegue, de um lado, elaborar inteiramente a universalidade do
significado na individualidade da forma, de outro lado, elevar as Formas sensíveis para
a altura da expressão autêntica de seu significado espiritual.”258
O próprio Hegel considera significativo que, no mundo romano, não tivesse havido
ideal, senão imitação do real e prosaico. Nesta arte encontra-se de maneira incipiente a
255
Esta forma de caracterizar a escultura egípcia é tributária das posições do já mencionado neoclassicista
Joachim Winckelmann.
256
Ibidem, 177-8.
257
Do Egeo.
258
Ibidem, 181.
163
dissolução da arte clássica. 259 É o tempo do retrato, perde-se a poética da obra, do ideal.
Este avanço para o real é uma verdade natural da arte já na escultura.
A estratégia de colocar a arte ideal como negação de uma forma prévia não pode ser
censurada em Hegel, pois é parte da lógica que, em seu entender, segue o
desenvolvimento do real. Claro que a pouco feliz resposta à existência de um realismo
etrusco e romano confere um tom arbitrário a essa reconstrução da história da escultura.
Finalmente as artes românticas regem-se pelo princípio de subjetividade. “A
subjetividade é o conceito do espírito que existe idealmente [ideell] para si mesmo, que
se recolhe desde a exterioridade na existência interior, que, por conseguinte, não se
reúne mais com a sua corporalidade em uma unidade destituída de separação.”260
Na arte romântica, a espiritualidade contrapor-se-á ao externo em geral e ao
espiritual objetivo. Conteúdo e forma sobrevêm livres e opostos, estando à disposição
da arte para sua reelaboração.
Em primeiro lugar, segundo o conteúdo, temos o divino (espiritual objetivo)
adequado ao princípio de subjetividade por parte de um sujeito que se compreende a si
mesmo como espiritual. Faz-se acessível à arte o mundano e humano. Trata-se de uma
nova unidade entre o particular e o absoluto, porém não imediatamente, senão que se
mostra como reconciliação do diferente. Somente se pode revelar no interno, o ideal. O
certo é que, embora o espiritual somente se apresente ao homem como subjetividade,
enquanto sujeito singular, o homem também tem seu estar-aí que há de se reconciliar
com o espiritual.
Em segundo lugar, o externo também se torna autônomo em sua particularidade. O
princípio da subjetividade proíbe a correspondência imediata pelo que não vemos o
espiritual no particular. Ainda que a desconexão não seja completa, é muito mais
259
Sua “incipiência” deve-se à ausência da consciência de uma verdade espiritual profunda que faça
necessário este adiantamento para o realismo.
260
Ibidem, 189.
164
evidente. Apesar da cópia da realidade, deve-se deixar ver um reflexo do espiritual. O
corpóreo passa a ser algo negativo, ressaltando a interioridade. Dá-se livre margem ao
múltiplo particular, tanto no espiritual como no sensível.
A forma na qual se manipula o material deverá modificar-se:
a) O material deverá mostrar-se como aparência, deixando entrar o múltiplo
processado pela subjetividade. A primeira arte é, por isso, a pintura, que possui menos
sensibilidade (menos matéria), porém também menos abstração que a escultura (mais
atenção aos detalhes da finitude). Ambas dividem o material espacial, que é constitutivo
das artes figurativas; porém em ambas se encontram separadas a corporeidade como
totalidade espacial e a forma abstrata, da forma particularizada vivamente mediante o
colorido. Por isso a escultura prescinde da cor e, na pintura, tudo se trata da
luminosidade refletida através do colorido. 261 A pintura somente se encontra realizada
na arte romântica.
b) Porém a representação do externo não é de todo conforme ao espiritual, pelo que
se abandonará este meio para empregar o som. A segunda arte é, então, a música. A
interioridade apreende-se como sentimento e se expressa conforme o movimento do
ânimo. Igual à pintura, sua forma adequada somente se encontra na forma romântica.
c) Enquanto, na música, o interno carece de figura, a arte há de apresentar a
aparência e a realidade efetiva do interno em sua realidade externa. Quando a arte
abandona o visível, não pode manifestar a exterioridade real, mas somente a
representação de um signo carente por si mesmo de significado. O sensível é, aqui,
mero meio de comunicação. Na poesia, o espírito manifesta-se como espírito, é a arte
que participa em todas as artes, é o elemento que pode desdobrar a totalidade do
espírito.
261
A concepção de Hegel, da cor, é primitiva com respeito aos desenvolvimentos científicos posteriores e,
provavelmente com respeito à experiência dos artistas plásticos de seu tempo e mesmo anteriores. Ainda
assim, é sintomática a importância do claro-escuro para a pintura de seu entorno.
165
A primeira das artes românticas é, então, a pintura. A pintura representa um
progresso ao introduzir, na arte, o entorno para a ação, inclusive permitindo a
representação de momentos da mesma, ou seja, situações. Hegel sustenta que o avanço
fundamental está na possibilidade de se apropriar das aparências dos objetos tal e qual
se mostram em suas formas particulares.
Ela utiliza como material para seu conteúdo e sua configuração
a visibilidade enquanto tal, na medida em que esta se
particulariza imediatamente nela mesma, isto é, se determina
como cor. O material da arquitetura e da escultura é, na
verdade, igualmente visível e colorido, mas não é como na
pintura o tornar visível enquanto tal, na qual a luz em si mesma
simples. Ao se especificar com o seu oposto, o escuro, e com
ele se associar, se torna cor.262
Ademais, na medida em que se prescinde da manipulação da matéria pesada, o
visual mostra-se mais ideal, mais teórico.
Esta visibilidade assim subjetivada e estabelecida idealmente
não requer nem a diferença de massa abstratamente mecânica
da materialidade pesada, tal como na arquitetura, nem a
totalidade da espacialidade sensível tal como a escultura ainda a
mantém, mesmo que concentrada e em Formas orgânicas; antes,
a visibilidade e o tornar visível da pintura têm sua diferença
idealizada, como a particularidades das cores, e assim libertam
a arte da completude sensível-espacial do material, na medida
em que se restringem à dimensão da superfície.263
O recurso à perspectiva na pintura permite a anulação da matéria mais resistente, a
saber, a que requer de cálculos específicos e de uma maior força para conseguir o
domínio da forma. Desse modo, abre-se a possibilidade de se apresentar, imbuídos de
subjetividade, a todos os elementos do mundo empírico.
Por outro lado, o conteúdo também recebe a mais ampla
particularização. Tudo o que no coração humano ganha espaço
enquanto sensação [Empfindung], representação e finalidade,
tudo o que o coração é capaz de configurar como fato, toda esta
multiplicidade pode constituir o diversificado conteúdo da
pintura. Todo o reino da particularidade, desde o mais alto
262
263
CE: 2001, Vol. I, 100.
Idem.
166
Conteúdo do espírito até os mais singulares objetos da natureza,
mantém sua posição. Pois também a natureza finita em suas
cenas e fenômenos particulares pode aqui aparecer, basta que
alguma alusão a um elemento do espírito as ligue mais
intimamente com o pensamento e a sensação [Empfindung].264
A pintura mostra maior multiplicidade de objetos, porém também unifica o externo
(tratado pela arquitetura) e a figura espiritual (escultura). Seu aporte fundamental estaria
nesta capacidade de conciliar o entorno com o espiritual.
A pintura desenvolve-se na forma arte romântica e, em particular, no período de
maior fervor cristão — incluído no período da reforma protestante —, pois seu princípio
essencial é o da representação da subjetividade interna em sua vitalidade e
multiplicidade. Para Hegel, é algo meramente empírico o fato de que a pintura tenha-se
desenvolvido nas sociedades não cristãs
a questão mais profunda, todavia, refere-se ao princípio da
pintura, ao exame de seus meios de exposição e, desse modo, à
identificação daquele conteúdo que por sua natureza mesma
concorda justamente com o princípio da Forma e o modo de
exposição pictóricos, fazendo com que esta Forma se torne a
que corresponde pura e simplesmente a este conteúdo.265
Para que a pintura se desenvolva de maneira eficaz, o conteúdo deve estar, por um
lado, compreendido em sua profundidade, por outro, separado da forma. O que revela a
maestria, na representação, é a animação espiritual e não a beleza sensível das formas.
Ou seja, as formas não são belas por si mesmas (como na escultura ideal), senão que são
representadas de uma maneira que as embelezem.
O próprio material pictórico supõe um modo subjetivo de animação:
Seu elemento sensível, a saber, no qual ela se move, é a difusão
pela superfície e a configuração por meio da particularização
das cores, por onde a Forma da objetividade, tal como ela é para
a intuição, é transformada numa aparência artística colocada
pelo espírito no lugar da forma real da mesma. No princípio
deste material reside que o exterior não deve mais conservar
para si validade última em sua existência efetiva – mesmo que
264
265
Idem.
CE: 2002, Vol. III, 197.
167
também animada pelo espiritual ―, mas deve justamente ser
rebaixado nesta realidade a uma mera aparência do espírito
interior, que se quer intuir para si como espiritual.266
Através dessa pretensão do espírito de encontrar-se a si mesmo no particular é que
se introduz a verossimilhança como dimensão relevante na pintura. A animação é
subjetivação, porém o reconhecimento do particular animado impõe à técnica um
consenso fundado na semelhança, sobre o que é aquilo que se está “subjetivando”.
O único princípio de artisticidade que se impõe à execução da obra realista — e que
poderia ter sido um excelente ponto a partir do qual estudar a relação entre o estilo e o
realismo — é conseguir que a pintura seja “um todo em si mesmo fechado e neste
fechamento não deva se mostrar como um mero cessar e limitar contingente, mas como
uma
totalidade
de
particularidades
que,
segundo
a
coisa,
se
pertencem
reciprocamente.”267
A pintura admite os dois extremos quanto ao conteúdo, tanto dos temas profundos e
sérios, como particularidade efetivamente real e o fazer subjetivo. Esta última arte
suscita admiração por seu tema e pela audácia do desenho e pela representação
mimética. O realismo inclusive deverá seguir sua própria linha de desenvolvimento:
Esta separação reside no conceito da pintura mesma, aliás,
pode-se certamente dizer que ambos os lados não são
unificáveis num desenvolvimento uniforme, mas que cada um
deve se tornar por si autônomo. Pois a pintura tem tanto a forma
[Gestalt] como tal, as Formas [Formen] da delimitação espacial,
quanto a cor como seu meio de exposição e se encontra por
meio deste seu caráter entre o ideal, o plástico, e o extremo da
particularidade imediata do efetivo, a partir de que também
surgem duas espécies de pintura: uma, ideal, cuja essência é a
universalidade, a outra, que expõe o singular em sua
particularidade mais estreita.268
É muito interessante que Hegel associe o realismo ao emprego da cor, sobretudo
quando toda a pintura de seu tempo ainda se manejava com um cuidado muito grande
266
Ibidem, 199.
Ibidem, 207.
268
Ibidem, 203.
267
168
com respeito ao desenho. Também é um indicador muito claro da pretensão de Hegel de
se apartar definitivamente de uma possível análise dos aspectos técnicos próprios das
convenções estilísticas (sejam elas ideais ou realistas).
A ordenação histórica é vital para compreender a pintura. Sem esta ordenação, as
obras apareceriam como em uma sucessão sem sentido. A história exterior é, para
Hegel, a da evolução do técnico. A história interna faz a diversidade de escolas, temas e
modos de tratamento do mesmo. O progresso descreve-se da seguinte maneira:
[O] início é feito com os temas religiosos em uma concepção
ela mesma ainda típica, arquitetônica, numa disposição simples
e numa coloração não desenvolvida. Então penetra sempre mais
nas situações religiosas a presença, a individualidade, a beleza
viva das formas, a profundidade da intimidade, o encanto e a
magia do colorido, até que a arte se volte para o lado mundano,
apreende a natureza, o cotidiano da vida comum ou o que é
historicamente importante em acontecimentos nacionais do
passado e do presente, o retrato e coisas semelhantes até as
menores e mais insignificantes, com amor idêntico ao que
era dedicado ao Conteúdo religioso ideal. E neste círculo
não conquista principalmente apenas a consumação a mais
extrema do pintar, mas também a concepção mais viva e o
modo de execução mais individual.269
Entender o progresso da pintura é entender o abandono progressivo do ideal em
direção a formas cada vez mais verossímeis. O auge da pintura estará, para Hegel, nas
obras daqueles que conseguem capturar a mais fugaz aparência da realidade.
Esquivando a importância dos aspectos formais, ou melhor, assumindo-os de maneira
acrítica, Hegel sempre manterá, como eixo da história da arte, o conteúdo.
Vimos como Hegel se mostra um pouco arbitrário na reconstrução da história da
escultura, porém não podemos acusá-lo de não levar em conta as possíveis objeções à
sua abordagem. Efetivamente, também com relação à pintura, considera que a
superioridade dos temas românticos pode ser refutada pelas representações de temas
pagãos de Rafael ou Rubens, ou pela utilização de motivos desse tipo. E ainda que
269
Ibidem, 261. O destaque é nosso.
169
sustente que há algo de inevitável nesta degradação, não são esses temas os que
motivarão o desenvolvimento da pintura.
A pintura há de tomar o que pode ser representado por meio da figura exterior. Há
de ser expressão do espírito concentrado em si. A expressão da intimidade não se adapta
à forma sensível do ideal, não é plácida no essencial (e sim, individual). Deve-se
mostrar como a experiência das almas que se levantam sobre o sofrimento. Assim, o
propriamente ideal do conteúdo romântico é a reconciliação do ânimo subjetivo com
Deus. A esfera religiosa, porém, representada de uma forma humana natural, será
adequada para a primeira etapa do desenvolvimento da pintura e para a primeira etapa
da degradação do ideal.
O oposto da esfera religiosa é aquilo “tomado por si, […] igualmente destituído de
intimidade como também não-divindade ― a natureza e, mais precisamente em relação
à pintura, a natureza paisagística.”
270
Em todo o externo, a alma pode encontrar
reflexos de espiritualidade. As situações particulares do objetivo geram, no homem,
estados de ânimo harmônicos à natureza (serenidade, vitalidade, etc.). Esta intimidade
também é objeto da pintura.
Como desenvolvimento progressivo da pintura em direção ao realismo, Hegel
destaca que não se trata de resgatar o belo e imitá-lo, mas de apresentar belamente o
natural, resgatando a afinidade da natureza com as emoções humanas. Não é a “casca”
da natureza o que há de se imitar, mas a relação desta com o espírito.
Mas, por isso, os objetos naturais como tais não podem
constituir em sua Forma e ordenação meramente exteriores o
autêntico conteúdo, de modo que a pintura torna-se uma mera
imitação; e sim o ressaltar e o apresentar mais vivamente a
vitalidade da natureza, que se estende por tudo, e a simpatia
caraterística de estados particulares desta vitalidade com
determinadas disposições de alma nas paisagens expostas;
apenas esta interferência íntima é o momento pleno de espírito e
270
Ibidem, 225.
170
rico de ânimo, por meio do qual a natureza não apenas pode ser
o conteúdo da pintura como ambiente, mas também
autonomamente.271
Finalmente, em mais de um passo em direção ao realismo, uma terceira classe de
intimidade é a que tem lugar com “objetos inteiramente insignificantes, que são
arrancados de sua vitalidade paisagística, em parte nas cenas da vida humana, que nos
podem aparecer não apenas inteiramente contingentes, mas inclusive vulgares e
ordinárias.”272 A pintura se encarrega do interno particularizado, pelo que se preocupa
de tudo aquilo que pode interessar ao homem. O que sobrevêm contido é a intimidade
do imediatamente presente.
É importante reconhecer que o esforço de Hegel para valorizar mais o esforço de
resumir em uma obra completa em si mesma uma situação histórica precisa ou uma
cena de gênero sempre se orienta para a consideração das estratégias do artista como
apropriadas para dar vitalidade ao representado, espiritualizá-lo de tal maneira que não
se limite à mera imitação. Sem dúvida, a naturalidade segue sendo um objetivo não
menor da destreza do pintor.
Exemplo da primeira etapa da pintura, a pintura religiosa, é a pintura bizantina que,
para sua desvantagem, carecia de natureza e vitalidade. Em um argumento clássico de
um realista de tipo B1, Hegel assinala que a adesão a convenções foi o que tirou
autonomia a essa pintura e a converteu em artesanato.
Uma segunda etapa é a pintura italiana. Esta pintura volta-se a temas religiosos ou
mitológicos que não tinham a ver com a história ou o presente, ou da realidade efetiva
da vida. Também são raras entre essas obras as paisagens. O que se acrescenta é a
realidade efetiva viva do ser-aí espiritual e corpóreo nos motivos religiosos, ainda que
conservando um certo idealismo.
271
272
Ibidem, 226.
Idem.
171
O primeiro momento histórico mais relevante desta segunda etapa é caracterizado
pelo retorno ao antigo com base nos temas bizantinos por parte de artistas como Duccio
de Siena e Cimabue de Florença.
Um segundo passo será encontrado por Hegel na emancipação dos modelos gregos,
na entrada do humano e do individual. Como primeiro momento deste segundo passo
temos o grande influxo de Giotto e seus discípulos. Esta escola abandonou as
convenções e focou-se na percepção do real, tratando de produzir obras de maior
vitalidade, trocando a eleição de temas e o modo de representação. Nesse empenho
perdeu-se a grandiosa seriedade sacra. Em um segundo momento, as representações dos
temas antigos (gregos e cristãos) foram relegadas, ampliando-se o círculo de temas.
Porém, o sagrado não se descuidou, mas também se destacou o familiar em Cristo
menino e no comovedor da Paixão. Como exemplo desse progresso, coloca a Masaccio
e Fiesole, por melhorar a adaptação do conteúdo religioso à forma humana.
Da fusão da realidade efetiva viva e a religiosidade interna surgiu um problema
somente resolvido no século XVI. Tratava-se de buscar uma consonância entre o
exterior e o interior. Avançando em direção a essa meta, coloca Hegel, a Leonardo,
porém a perfeição mais pura, nesta esfera, é alcançada por Rafael, compreendendo a
beleza livre penetrada de uma vitalidade pictórica individual. Corregio foi mestre do
claro-escuro, e sua graça não natural é profundamente espiritual. Tiziano destacou-se na
riqueza da vitalidade natural e no colorido.
Finalmente chegamos ao abandono do ideal. Os alemães, flamengos e holandeses
não quiseram ou puderam alcançar as formas ideais e os modos de expressão livres aos
“quais corresponde inteiramente a passagem para a beleza espiritual transfigurada.”273
Desenvolveram a expressão da profundidade do sentimento e da reclusão subjetiva do
273
Ibidem, 271.
172
ânimo. Adicionaram o caráter individual não somente no interesse da fé, senão no
mundano (virtudes mundanas).
Dentro desses artistas, assinala Hegel, em primeiro lugar os irmãos Hubert e Johann
van Eyck. Suas obras são mais mundanas e menos fantasiosas que as obras de estilo
italiano, são humildes no tratamento dos temas santos. Reconhece aos irmãos van Eyck
como aperfeiçoadores da pintura a óleo. Ainda que enfatize o aspecto relativo à forma
de apresentar temas, a admiração pela destreza técnica é algo notório em todos os
comentários hegelianos relacionados à história da pintura. É justamente esta tensão
entre a forma, na que conta a história da pintura, e o esforço por destacar aspectos
relativos a temas apresentados, o que queremos destacar.
Em segundo lugar, aparecem os mestres alto-alemães. Esses introduzem o martírio,
o não belo da realidade efetiva em geral. Alberto Durero destaca-se como se elevando
por sobre a grosseria. E finalmente aparecem os mestres holandeses do século XVII. A
arte funde-se no mundano e no cotidiano, desenvolvendo a pintura de todo tipo de
representação. Esse apego pelo cotidiano, é explicado por Hegel, por sua condição de
burgueses e protestantes. São, para o filósofo, a expressão cabal do humano, desde o
olhar de um povo sábio, prudente, humilde e valoroso.
Esta terceira etapa da pintura fica às portas do que Hegel chamou a “dissolução da
forma romântica da arte” pela “imitação subjetiva do existente.” Essa situação produzse quando o âmbito dos objetos é ilimitado, quando não somente se estende ao
necessário, mas também ao casual. A arte se dissolve na representação de retratos: “e
regressa para a imitação da natureza, para a aproximação intencional, a saber, da
contingência da existência imediata, considerada por si mismo [já] não bela e
prosaica.”274
274
CE: 2001, Vol. II, 331.
173
Em contrapartida, a arte ainda possui outro momento que
particularmente aqui torna-se de importância essencial: a
apreensão e execução subjetivas da obra de arte, o aspecto do
talento individual, que nos fins mais exteriores da contingência,
nos quais desemboca o talento, ainda sabe permanecer fiel à
vida em si mesma substancial da natureza assim como às
configurações do espírito e sabe tornar significativo, por meio
desta verdade assim como por meio da habilidade admirável de
exposição, o que é por si mesmo sem significado.275
Como já havíamos assinalado no momento em que o artista é livre (autonomia da
arte). Este se funde com o interior e o exterior dos objetos e lhes dá uma vitalidade
subjetiva que os inclui dentro da arte. O conteúdo dá o particular em si mesmo. A forma
da representação há de ser a peculiaridade casual da aparição exterior. Essa
peculiaridade somente é apreensível pela poesia e pela pintura.
A pintura de gênero é o mais admirável que se fez sob esse aspecto. Em particular,
destaca Hegel, os pintores flamengos e holandeses, que conquistaram instalar-se na
prosa da vida deixando-a livre, fazendo da religião algo livre e ilimitado também.
Tais objetos não podem satisfazer um sentido mais profundo,
que se dirige para um Conteúdo em si mesmo verdadeiro; mas
mesmo que o ânimo e o pensamento também não sejam
satisfeitos, a intuição próxima se reconcilia do mesmo modo
com tais objetos. Pois é pela arte de pintar e do pintor que
devemos ser alegrados e arrebatados. Com efeito, se quisermos
saber o qué é pintar, devemos observar estes pequenos quadros,
para dizer deste ou daquele mestre: este sabe pintar.276
Os artistas mencionados por Hegel — Memling, Scorel, Ostade, Stenn —
encontram-se entre os precursores e integrantes da Escola Holandesa do século XVII,
que já mencionamos ao final da reconstrução da história da arte que fizera Hegel. O
impacto desta pintura sobre Hegel, a admiração que este tinha pela destreza desses
artistas é inegável. Estamos, para ele, frente à conquista da fugacidade do momento, o
pico da capacidade do realismo.
275
276
Idem.
Ibidem, 333.
174
[A]preender o brilho dos metáis, o cintilar de uma uva
iluminada, uma visão desvanecente da lua, do sol, um sorriso, a
expressão de afetos de ânimo que rapidamente passam, os
movimentos cômicos, as posições, as expressões faciais ―
apreender essas coisas as mais passageiras, transitórias, e tornálas duradouras para a intuição em sua mais plena vitalidade,
esta é a dura tarefa deste estágio da arte.277
O conteúdo da arte provê o aparecer dos objetos. A representação subjetiva, e não o
espírito, passa a ser o principal.
Não é o reflexo do ânimo que quer expor-se nos objetos, tal
como, por exemplo, acontece com frequência nas paisagens,
mas é a habilidade inteiramente subjetiva que se exprime desse
modo objetivo enquanto a habilidade do meio mesmo, em sua
vitalidade e efeito de, por meio de si mesmo, poder criar uma
objetividade.278
“[A] habilidade inteiramente subjetiva que se exprime desse modo objetivo
enquanto a habilidade do meio mesmo [...] de [...] poder criar uma objetividade”,
quando esses artistas dos Países Baixos conquistaram fazer isso, foi quando se pôde
dizer se um artista sabia ou não pintar.
4.2.2.2. Observaçoes finais
No primeiro momento desta segunda parte, havíamos encontrado um realismo que
chamamos de B2’, que se encontrava em contraposição a um realismo do tipo B1. A
partir daí, vimos como este último adquire, na pintura, um lugar fundamental como
parte da evolução da arte. Efetivamente, a pintura alcança seu ponto culminante no
mesmo momento em que a arte romântica começa sua dissolução, o que se dá com a
pintura flamenga e holandesa do século XVII.
Na medida em que não é possível uma arte figurativa efetivamente realista, ou seja,
na medida em que distintos tipos de convenções impõem-se na hora de elaborar um
consenso com respeito ao realismo pictórico, desprende-se que toda forma de classificar
277
278
Ibidem, 334.
Ibidem, 335. O destaque é nosso.
175
como realista a um determinado estilo é, em maior ou menor medida, arbitrária. Para se
referir a uma corrente artística peculiar como efetivamente conquistadora do realismo,
Jakobson utiliza os termos “realismo aproximativo ilusório” ou “Significação C”. As
convenções utilizadas por essa corrente artística servirão para a classificação de outros
estilos como menos realistas.
Posto isso, depois dessa passagem pela estética hegeliana, cremos que se pode
identificar um Realismo de tipo C com as características próprias da pintura flamenga e
holandesa: um Realismo do tipo C’ — ou seja, um conservadorismo da tradição em
nome de sua maior realidade — nas características da arte clássica ou neoclássica. A
disputa entre a arte realista e a arte ideal, apresenta-nos, então, uma forma muito similar
à disputa entre a arte realista e a arte ideal, que nos apresenta, então, com uma forma
muito similar à disputa pelo realismo que nos mostrava Jakobson como característica
dos séculos XIX e XX. De fato, estamos ante sua parenta dos séculos XVII e XIII, que
enfrentou os classicistas com os revolucionários defensores da arte moderna.
Já havíamos concluído que Hegel sustentava um realismo A1 e um realismo A2’,
notando que o primeiro era suficientemente débil para não contrariar o segundo. Nesta
segunda parte, confirmamos que a perspectiva de Hegel está influenciada por sua
posição de receptor das obras de arte, e que as coordenadas do realismo que adjudica o
conceito verdadeiro de arte relacionam-se estreitamente com essa posição e, em
particular, com duas correntes confrontadas em sua época pelo predomínio da
verdadeira essência da pintura (às quais chamamos realismo C e C’).
Neste ponto afirmaremos que, sendo Hegel presa de uma absoluta “ilusão de
realismo” que o leva a sustentar um realismo C, ainda assim é necessário captar a
debilidade do realismo A1 em sua fortaleza. Isso é possível se temos em conta a análise
do impacto dessa ilusão na construção do sistema. Ou seja, se compreendemos que o
176
lugar do realismo pictórico no sistema é menos o resultado de uma concepção teórica do
artístico que o resultado da relação do próprio Hegel com a arte do seu tempo.
4.2.3. Ilusão de realismo?
Colocada desse modo, a pergunta do título é uma má pergunta. Deveríamos
perguntar, por um lado, se Hegel postula a ilusão de realismo como uma forma de
entender a pintura, a partir do qual a verossimilhança deveria jogar um papel
determinante nos horizontes desta prática; e por outro lado, deveríamos perguntar se
Hegel sucumbe à ilusão do realismo.
Esperamos ter mostrado, neste trabalho, que sustentar direta e plenamente que Hegel
promove o ilusionismo na pintura pode ocultar uma série de problemas importantes.
Ainda que seja verdade que para ele a aparência (Schein) é o elemento da pintura, não
cremos que se deva interpretar que o ilusionismo é o que o artista deve alcançar. Ao
contrário, seus esforços encaminham-se a fim de demonstrar o maior grau de verdade
que possui a arte, apesar da ilusão realista. Sobretudo não parece apropriado falar de
ilusão, posto que a confrontação com o objeto real não deveria nos revelar a impostura
da pintura, senão sua maior verdade na qualidade de pintura (a nós, herdeiros da cultura
científica).
O que tentamos mostrar neste trabalho, é que o problema não surge a Hegel por suas
críticas à ideia de imitação da natureza, mas por sua crença na possibilidade de
conquistar o realismo pictórico, ou seja, pelo mesmo ter sucumbido à ilusão do
realismo. Esta crença o obrigou a colocar os artistas que considerava realistas em
algum lugar da sua história da arte, como um momento necessário desta história, e a
justificar como aquilo não se encaixava com seu conceito de arte original.
A associação entre arte e verdade torna-se um problema na estética de Hegel.
Podemos entender que uma verdade mais espiritual pode fracassar na sua tentativa de se
177
apresentar de maneira sensível, porém é difícil entender por que sua apresentação em
sua forma sensível adequada, sendo mais compreensível a verdade que representa para
as mentalidades mais evoluídas, deixa de ter valor. O Espírito Absoluto, que promete
lembrar a totalidade, parece incapaz de recuperar a experiência do belo do passado.
Temos, em primeiro lugar, um momento no qual as representações dos deuses são
tomadas — no melhor dos casos — como a real imagem desses. Isso evidentemente é
uma ilusão cujo embuste não pode se resolver a menos que se conheça a verdadeira
imagem da divindade. Isso ocorre com o cristianismo. Assim, em um primeiro momento
da arte romântica, em seu período religioso, as artes conservam em alguma medida seu
antigo poder de suscitar devoção, conservam a ilusão de ser um acesso direto à
divindade.
Na medida em que Hegel não se questiona sobre o significado que a naturalidade
histórica de cada estilo tem para a prática artística, ele não enfrenta o problema que, ao
fim das contas, fica pendente: a relevância da ideia de beleza. É provavelmente a esta
dama que Hegel desejava salvar da goela de um realismo que, sem dúvidas, o havia
seduzido por completo.
A perda da ideia de beleza resulta fatal para a estética idealista, pois nos deixa, é
verdade, nas mãos da ilusão do realismo, da ironia, da técnica, do agrado sensível, da
história da arte e de seus usos e interpretações.
4.3. “A arte tem que ser poesia ou prosa?”
Já comentamos que, inclusive, na arte ideal, na arte grega, existe uma determinação
exterior que leva Hegel a introduzir em seu seio “fragmentos do particular” — para
dizê-lo de alguma maneira. De fato, opunha-se às estéticas idealistas que promoviam a
total purga de elementos relativos à finitude das obras de arte.
178
Igualmente, em relação à entrada em cena de obras antigas, Hegel era partidário da
introdução de um cenário adequado ao público, aprovando a modificação de tudo aquilo
que na obra se apresentasse como casual, como alheio à substância mesma da verdade
que a obra pretende mostrar. Isso aplicado à forma clássica da arte o leva à incômoda
situação de ter que afirmar que aquela forma tão excelente que havia dado lugar à
poesia de Homero não era vigente em sua Alemanha natal, e que, desse modo, deveria
separar o inseparável (a forma do conteúdo da arte clássica) e, mediante esta operação
analítica, manter a ilusão dos espectadores.
Deste modo, a necessidade de incorporar aspectos próprios da realidade casual às
obras apresenta-se como uma necessidade que vai desde as formas da épica antiga até a
pintura e o teatro de seu tempo. Essa dissociação tinha lugar em meio a um ambiente
que, à diferença do grego, já não gerava mentalidades poéticas, senão que se
encontrava dominado pela “prosa da vida”, ou a pela forma prosaica de compreender as
verdades essenciais. Essa cosmovisão, conquista da humanidade por certo, era, para
Hegel, o efetivo motor do desencanto da arte em sua forma ideal. Tanto é assim, que a
arte melhor deixaria de sê-la, antes de poder adaptar-se a essa nova cosmovisão com o
mesmo status de beleza que gozava o cânone clássico.
Hegel recolhe esta disputa da mão de dois de seus principais expoentes que lhe eram
muito próximos, os já mencionados, Winckelmann e von Ruhmor. O problema que
ambos intelectuais enfrentaram é, para Hegel, o problema da relação do ideal com a
natureza.
O dilema principal que subjaz a esta disputa, considera Hegel, que levou a pintura,
onde é mais fácil aportar argumentos a favor da naturalidade, porém em seu modo mais
geral, há de ser considerado do seguinte modo:
179
[Na] oposição do ideal e da
natureza, portanto, tinha-se
em mira mais uma arte do
que outra, principalemente
a pintura, cuja esfera é
justamente
a
particularidade visível. No
que se refere a esta
oposição, queremos, por
tanto, establecer a pregunta
de modo mais universal: a
arte deve ser poesía ou
prosa?
Pois
o
autenticamente poético na
arte é o que justamente
chamamos de ideal. [...]
Mas então surge a questão:
o que é, pois, poesía e prosa
na arte? Embora a insitência no poético em si [an sich] mesmo,
em relação às artes determinadas, também possa conduzir a
aberrações ― como já conduziu: pois o pertenece
expressamente à poesía, e mais em precisamente à lírica,
também foi expresso por meio da pintura, já que um tal
conteúdo é certamente de espécie poética. A atual mostra de
arte (1828), por exemplo, contém varios quadros, todos de uma
mesma escola (a assim chamada escola de Düsseldorf), que
emprestou todos os seus temas da poesía e, na verdade, do
aspecto da poesia apenas passível de ser exposto enquanto
sentimento. Se observamos com mais frequência e mais
atentamente esses quadros, logo eles se mostrarão adocicados e
insípidos.279
A oposição é então entre poesia e prosa (ideal e natureza). E é claro que Hegel
primeiro atende à disputa essencial para logo fazer uma avaliação mais definitiva sobre
o desgosto específico relacionado a certas obras particulares.
Em primeiro lugar, considera que é preciso entender que a obra de arte possui uma
idealidade inteiramente formal que se desprende de ser um produto humano. De acordo
com isso, há uma tendência ao natural que não lhe cabe por definição, não importa qual
seja o conteúdo que pretenda transmitir:
O conteúdo pode ser neste caso totalmente indiferente ou
apenas nos interessar na vida cotidiana, no exterior da
exposição artística, de passagem e momentaneamente. Deste
modo, por exemplo, a pintura holandesa soube transformar
279
CE: 2001, Vol. I, 174. A esquerda Ludwig Richter (Escola de Düsseldorf) Floreta de primavera perto
de Ariccia. Óleo em tela. 1831.
180
[umschaffen] as aparências fugazes e dispostas na natureza,
enquanto novamente recriadas pelo homem, em milhares e
milhares de efeitos. O veludo, o brilho do metal, a luz, os
cavalos, os servos, as mulheres velhas, os camponeses que
soltam fumo pelo cachimbo, o brilho do vinho em copos
transparentes, pessoas com casacos sujos jogando com cartas
velhas: tais e outros objetos pelos quais na vida comum mal nos
importamos ― já que mesmo quando jogamos, bebemos e
tagarelamos sobre isto ou aquilo, somos tomados de interesses
completamente diferentes ―, nos são levados diante dos olhos
por meio destes quadros. Mas o que em um tal conteúdo
imediatamente nos atrai, na medida em que a arte o apresenta, é
justamente esta aparência e aparecer dos objetos enquanto
produzidos pelo espírito, o qual transforma o exterior e sensível
do conjunto da materialidade [Materiatur] no mais íntimo
interior [Innerseten]. Pois em vez da lá ou da seda existentes,
em vez do cabelo, do vidro, da carne e do metal efetivos,
vemos meras cores; em vez das dimensões totais que o
natural necessita para a sua aparição, vemos uma mera
superfície e, contudo, temos a mesma visão que o efetivo nos
oferece. 280
A ilusão de realismo parece reconhecida aqui como uma má apropriação de uma
realidade transformada em milhares de efeitos que em nada têm a ver com o impacto
que nos provoca a realidade em si mesma. Todavia, a consciência de Hegel dos aspectos
perceptivos e do seu impacto no espectador pode ser relacionada tanto como com as
pretensões dos impressionistas por capturar a essência do visível, como com a
consciência vanguardista de que um quadro não vai além de uma superfície coberta de
cores. A ilusão de realismo é, sem dúvida, uma das ilusões mais conscientes de ser tal
que se pode encontrar em obras desta época. É o espírito, é a poetização do prosaico o
que nos encanta. Porém, apesar de ser uma má apropriação, a ilusão está ali, “vemos
uma mera superfície e, contudo, temos a mesma visão que o efetivo nos oferece.”
Frente à prosaica realidade dada, “esta aparência produzida pelo espírito é o milagre
da idealidade, uma troça se quisermos, e uma ironia sobre a existência natural exterior”.
É um elemento brando o que compõe o quadro (não como o metal real), ainda que
sejam objetos limitados, particulares, os apresentados, o criador faz deles “todo um
280
Ibidem, 174-5. O destaque é nosso.
181
mundo de conteúdo, que ele retira da natureza e é reúne num tesouro no âmbito
abrangente da representação e da intuição, e assim, de um modo simples, o libera
livremente a partir de si sem as inúmeras condições e disposições da realidade.” A arte
não entrega os objetos ao uso comum, senão que “limita o interesse à abstração da
aparência ideal para a visão meramente teórica.”281 Nesse sentido, não parece ser a
pintura um artifício ilusionista, senão mais bem uma ferramenta utilizada pela
abstração, o que faz com que se apresente, ao fim e ao cabo, como mais verdadeira que
a percepção consciente dos objetos em sua materialidade e, portanto, interessada.
A arte, então, eleva o objeto através da identidade. Faz-nos nele centrar nossa
atenção, e o converte em um fim em si mesmo. O tempo sofre o mesmo processo.
A arte consolida em duração o que na natureza é passageiro; um
sorriso que desvanece rapidamente, um rasgo repentino e
chistoso em torno da boca, um olhar, um brilho de luz fugaz,
bem como traços espirituais na vida dos seres humanos,
incidentes, acontecimentos que vem e passam, que aí estão e
novamente são esquecidos ― tudo e cada coisa ela arranca da
existência momentânea e também neste sentido supera a
natureza. 282
Não é o conteúdo o que nos cativa, senão a produção espiritual.
A exposição deve aqui aparecer natural, mas não deve aparecer
nela a naturalidade enquanto tal, e sim o poético e ideal em
sentido formal é o fazer [Machen], a eliminação justamente da
materialidade sensível e das condições exteriores. Alegramonos com uma manifestação que deve aparecer como se a
natureza a houvesse produzido, quando de fato ela é uma
produção do espírito, sem os meios daquela; os objetos não nos
deleitam porque são de tal modo naturais, mas porque são feitos
[gemacht] tão naturalmente.283
Chegado o caso, não é a ilusão o que nos seduz, senão a capacidade do artista de
produzir esta ilusão.
281
Ibidem, 175.
Idem.
283
Ibidem, 175-6.
282
182
O mesmo procedimento que já assinalamos, de ganância cognoscitiva, dá-se com
esta capacidade de capturar o momentâneo, porém de tal maneira que lhe dá maior
inteligibilidade ou valor de verdade. Aqui parece estar presente a tensão fundamental do
chamado “realismo”, melhor dito, a ilusão fundamental, que é a que pretende a
conquista não da verossimilhança, mas das chaves da aparência da natureza em sua
verdade. Para Hegel, é um interesse mais profundo o que pede mais que a existência
imediata, que promove a passagem do singular ao geral.
O que existe naturalmente é pura e simplesmente um singular e,
na verdade, tornado singular segundo todos os pontos e lados. A
representação, em contrapartida, tem em si a determinação do
universal e o que dela resulta já adquire desse modo o caráter da
universalidade, à diferença da singularização natural. A
representação oferece neste contexto a vantagem de ser de
maior amplitude e, assim, ser capaz de apreender o interior, de
resaltá-lo e explicitá-lo de modo mais visível.284
O poético não somente está relacionado, então, à possibilidade de expressar uma
interioridade, mas também está associado à capacidade de prescindir de alguns dos
aspectos essenciais ao estar singular, tornando, com esta subtração, mais verdadeira a
aparência do objeto.
Às alegações de Von Ruhmor contra a arbitrariedade das convenções, Hegel
enfrenta sua convicção da não arbitrariedade das mesmas. Temos, então, uma falha a
favor do ideal, inclusive na arte que se apresenta como mais prosaica. As críticas de
Hegel que motivam esta falha seriam muito melhores se estivesse disposto a analisar as
formas de representação do particular, em lugar tão somente de sustentar que uma
reprodução imediata não é possível, apelando a uma espiritualidade que se torna
arbitrária e confusa (como em seu postulado dos aspectos mais teóricos da
representação visual ou na interioridade que aparece como negociação de uma verdade
profunda na obra realista, porém, apesar disso, não está ali.)
284
Ibidem, 176.
183
Com relação às obras concretas, o exemplo do universo vulgar nelas está
considerado de maneira equívoca, segundo Hegel, se ignorados os aspectos espirituais
das representações. Os holandeses tomam o conteúdo de suas vidas, de seu presente,
porém isso se torna de maior densidade espiritual, posto que tomam o que lhes pertence.
É o resultado de seu esforço e trabalho, de sua história. É “elevar-se à liberdade e à
alegria.”285 Não são temas ordinários. “Foi neste sentido de nacionalidade robusta que
Rembrandt pintou sua famosa Ronda Noturna em Amsterdã, que van Dyck pintou
tantos de seus retratos, Wouwerman suas cenas de cavaleiros, e mesmo aqueles
banquetes, jovialidades e festas agradáveis dos camponeses se situam neste
contexto.”286
Rembrandt Harmenszoon van Rijn. A ronda da noite. Óleo sobre tela. (1642). Mesmo
reconhecendo a interessante posição de Hegel sobre a cor aos efeitos de mostrar uma imagem
285
286
Ibidem, 181.
Ibidem, 180.
184
realista, a importância do contorno ainda era fundamental em todos os pintores aos quais
remete, como não poderia ter sido de outra forma, conforme à história da pintura europeia.
A degradação do ideal é progressiva, porém segura, até o ponto de chegar ao trivial e
vulgar.
Qual é o conteúdo concorde, neste ponto, à arte? O homem cuja alma
compromete-se permanentemente com as coisas. É isso o que se reflete na pintura.
A ilusão de realidade foi conquistada. Reconhecida essa conquista, Hegel pretende
demonstrar que é isso o essencial da pintura, o que motiva a incorporar os temas nas
obras. O problema não é, para Hegel, reconhecer que a arte tenha melhorado em sua
capacidade para a conquista da verossimilhança, mas o aceitar que uma arte que se
proponha tão somente esse objetivo seja elevada ao mesmo nível que o de sua apreciada
arte ideal.
Porém, mesmo com tanta alma nacional a pintura já estava alhures do fundamental
para o Espírito Absoluto, que como temos visto no primeiro apartado, longe de requerer
dos cidadãos manifestações ético-estéticas da sua liberdade, precisava deles o
conhecimento próprio das bases da sua liberdade cristalizada no Estado, cujas leis
atingidas pela razão, já satisfaziam o que os cidadãos hegelianos requeriam como
substancia espiritual para realizar e garantir a liberdade universal. Compreender as leis e
não compreender a arte, compreender a arte como lembrança de uma instância singular
― fundamental para um povo, mas nem tanto para o que tinha sido atingido pela Razão
no seu desenvolvimento histórico ― esse era o papel que a arte vinha a ter ao final da
odisseia do Espirito. A melhor e mais aprimorada forma de, ao fim de contas, como já
citamos Borges no primeiro Capítulo, entretecer naderias.
185
Conclusões
People who engaged themselves daily in the manufacture
of representations see nothing magical in them, and
therefore nothing worthy of respect in people who credit
them with magical powers. The more seriously the artist
sees his work being taken by the represented and offended
party, and the more his work is denounced, the less he is
likely to take the party seriously. (Of course this that not
mean he will disregard the power of the offended party to
exact revenge)
J. M. Coetzee. Giving offense. Essays on Censorship
O caráter vinculante do mito, das artes e/ou do saber racional são temas que no
século XIX tiveram muito em conta falar tanto da antiguidade como da sua
contemporaneidade. Assim como na Grécia clássica o mito era o saber compartilhado,
no colchão de ideias do jovem Hegel a razão deveria cumprir esta função na
modernidade.
Lamentava-se este filósofo pela perda do poder vinculante do saber na sua época. A
razão parecia envolver muito menos seres racionais do que aqueles que, até para ele, era
preciso, a sem-razão ou barbárie colocavam em xeque permanentemente os resultados
do filósofo esclarecido. Assim, a épica travessia da razão na Fenomenologia sempre foi
mais uma esperança ou uma “prima realidade”, e não uma questão de fato, instalada na
sociedade racional na qual poderia se desenvolver e à qual deveria dar estrutura e
conteúdo.287
Mas mesmo assim, quando Hegel pensou que a arte passaria a ser trivial na medida
em que se converteria na mera expressão de estados subjetivos, certamente não
287
Uma das formas mais aprimoradas de compreender a falta de vinculação do pensamento entende-o
como “desencantamento do mundo”. De acordo com a tese fundamental da sociologia de Max Weber, na
modernidade assistimos a um movimento de afastamento das esferas da vida, numa racionalização que
almeja tanto a eficiência quanto evitar a mistura dos valores que podem permanecer afastados. Temos
assim, por exemplo, uma estrutura burocrática estatal e/ou uma ciência onde moralidade, religiosidade,
amor, e beleza não tem em principio nada a ver, uma arte sem moralidade, ciência ou religiosidade, uma
vida privada sem Estado, um Estado sem religiosidade ou moralidade, e assim por diante. A
autonomização das esferas da vida resulta então do processo de procura de eficácia, racionalidade e
desumanização. O progresso esclarecido traz consigo desencantamento.
186
antecipou as mudanças que a história da arte tinha posto diante desta prática. Resulta
muito difícil explicar com brevidade as mudanças que aconteceram entre finais do
século XIX e inícios do XX. O exorcismo coletivo virou exorcismo privado oferecido
a um público que talvez conseguisse lidar com ele. O desenvolvimento dos valores
especificamente artísticos tornou-se fundamental e uma pintura virou tinta na lona e não
histórias, valores e estéticas. A autonomia da arte deu lugar a pesquisas que certamente
mudaram a forma de considerar a história da arte, mas, especialmente, levou a um
caminho de auto-compreensão técnica que teve seus adeptos e seus detratores ―
constituídos agora, no mundo da arte ao qual a obra é apresentada. O que nem a
simples autonomia, nem sequer o “museu imaginário”288 podem ensinar é a própria
história da arte, o vínculo entre os valores não artísticos e os artísticos: o motor
fundamental da arte por séculos. O caminho de mãos dadas (com maior ou menor força)
tinha acabado.
Talvez a fórmula mais exata que se deu na época, e certamente a única resposta
filosófica ao que estava acontecendo, seja a de José Ortega y Gasset, segundo a qual a
arte se dividiu entre uma arte de povo e uma arte de artistas.289 O que, para o filósofo
espanhol, era evidência de um progresso artístico ― progresso ou mutação legítima a
qual, fora de grupos fundamentalistas pouco interessados em questões artísticos, até a
data acredito que ninguém se atreveu a questionar –, na medida em que a arte, livre de
prestar serviços a outras áreas da experiência, finalmente se voltava sobre si mesma e só
ficava ao alcance daqueles que efetivamente tivessem interesse em compreender-la,
fossem artistas ou espetadores. Mas não contou Ortega y Gasseet com o que a interação
288
MALRAUX, A.: 1952-54.
ORTEGA y GASSET, J. (2009). Seu texto, La deshumanización del arte em 1925, dezoito anos
depois de Les demoiselles d’ Avinyó de Pablo Picasso. Não faz mal lembrar que oi a fama da cidade de
Avignon a que ocultou por algum tempo o fato de que na Barcelona natal de Picasso, fosse em a Rua de
Avinyó, na época do pintor, o lugar onde se encontravam os lupanares.
289
187
com o mercado e as novas formas de entretenimento fariam com este “sonho de uma
elite cultural legítima”.290
Theodor W. Adorno sentenciou na sua Teoria Estética, obra póstuma editada em
1970, a perda de obviedade da arte, tendo chegado ao ponto de questionar seu direito à
existência. Este caminho de mão dupla — a do progresso e a da perda da obviedade —
coloca a autonomia da arte como um estágio social e histórico crucial, em que a arte se
fecha em si própria e, ao mesmo tempo que se defende, se expõe a uma maior perda de
obviedade que coloca dúvidas sobre seu fim.
Seu lugar histórico não é menor. A autonomia emerge, além das outras condições
sociais, como resposta a uma situação de perda de liberdade no contexto dramático dos
totalitarismos do século XX. As Vanguardas quebram os condicionamentos culturais da
sua época, carregando assim o “momento histórico [que] é constitutivo nas obras de
arte; as obras autênticas são as que se entregam sem reservas ao conteúdo material
histórico da sua época e sem a pretensão sobre ela.” Como toda arte “[s]ão a
historiografia inconsciente de si mesma da sua época; o que não é o último fator da sua
mediação relativamente ao conhecimento. É isso precisamente que as torna
incomensuráveis ao historicismo que, em vez de seguir o seu próprio conteúdo
histórico, as reduz à história que lhes é exterior. As obras de arte deixam-se
290
Sobre a “indústria cultural” e as novas formas de entretenimento, a referência obrigada é, certamente,
Theodor Adorno numa importante parte da sua obra. Sugerimos distinguir, caso de futuros estudos, não
distinção entre “fun” e prazer, ou entre “pop(ular)” e popular que, em caso de ser lidas sem os devidos
cuidados podem fazer de Adorno um personagen um tanto “resentido” no que diz respeito à humana
capacidade de se gratificar. Longe disso, sugerimos ler os termos utilizados em inglês nos textos originais
(ou com destaque), como uma forma de distinguir aquelas formas que considerava comerciais e
alientantes, daquelas que pudendo formar parte ou não do universo das belas artes, não deixavam de ser
experiencias de legitimo refocilho dos humanos. Mesmo que sejam conhecidos seus comentarios muito
questionaveis, senão completamente errados sobre fenômenos como o jazz, Adorno também cultivou
práticas sociais prazerosas de índole “não inteletual”, como assitir televisão, desfrutar de alguns filmes, e
outros prazeres mundanos.
188
experimentar tanto mais verdadeiramente quanto mais a sua substância histórica for a do
autor da experiência.”291
A caraterística peculiar da concepção adorniana no que diz respeito a outras estéticas
de cunho marxista está em considerar a arte como “a antítese social da sociedade; não
pode se deduzir imediatamente desta.”292 Destarte, a obra se constitui frente aquilo que
não é, não é empiria nem é utopia confortável ou consolo, é imaginação que vai além do
dado e da sua afirmação. A negatividade constitui vínculo técnico e social inevitável
para o reconhecimento do artístico, como fechamento de furos técnicos e tradição e
como negação da empiria e fraturas sócio-históricas.
Porém, mesmo para o próprio Adorno alguma coisa estava se desmoronando. Assim
foi que desenvolveu seu conceito de “desartificação”. Nem completamente caraterizado,
nem completamente pessimista, o mesmo parece responder a um fim da arte que parecia
inevitável, especialmente para qualquer proposta que almejasse depositar na arte um
espaço de crítica numa sociedade opressora, a uma arte inserida no mundo
administrado. Em palavras de Rodrigo Duarte:
A ideia de desartificação como tendência do desenvolvimento
artístico leva ao pensamento de que pode ser interessante para a
criação das obras uma espécie de simulação de sua dissolução
na realidade empírica, o que, por sua vez, leva à indagação
sobre o relacionamento da arte com aquilo que lhe é
radicalmente exterior, tema que é abordado no parágrafo
intitulado “A arte e as obras de arte”, no qual aquela ideia
aparecerá a partir da discussão sobre o relacionamento das
obras com o conceito de arte [...] porque as obras, em proporção
crescente, abandonam a pureza conceitual que facilitaria sua
subsunção à noção mais ampla e se tornam “impuras”, na
medida em que vão ao encontro do âmbito extra-artístico,
mesmo levando em consideração os enormes problemas que
esse movimento pressupõe.293
291
ADORNO, Th.: 2008, 207.
Ibidem, 19.
293
DUARTE, R.: 2007, 29. Ver também DUARTE, R.: 2012.
292
189
Contra o “abalo”, ou a não vivência, a desartificação permitiria compreender obras
autênticas, porém, fugidias que a contemporaneidade pode nos oferecer.
Quando Andy Warhol apresenta seu trabalho, tanto o mercado como as diferentes
instituições planejadas para vender, comprar, divulgar e promover as artes, assim como
os diferentes circuitos de consagração próprios das mesmas, já estavam consolidadas. O
artigo de Arthur Danto, além de dar legitimidade filosófica a um fenomeno artístico
como minimo controverso, a saber, o fenomeno dos “indiscerníveis”, serviu para
colocar um nome a este espaço: a arte pertencia ao mundo da arte.294
Celebrado por institucionalistas como Georg Dickie tanto como por sociólogos
como Pierre Bourdieu, o “mundo da arte” rapidamente fugiu das mãos do seu criador
virando um conceito insatisfatório para Danto.295 Daí em diante, numa virada hegeliana
o outrora filósofo analítico, desenvolveu uma definição de arte a partir de uma
interpretação da história “interna” da mesma, pela qual a arte alcançava seu ponto
culminante junto com o fim das narrativas fundacionais e uma contemporaneidade póshistórica de pluralismo artístico.
[A] passagem do “moderno” para o “contemporáneo” – ou póshistórico ― é diferente de outra sucessões na história da arte,
pois, com base nessa posição asssociada à necessidade histórica
do fim do Modernismo, Danto chega à explicitação mais
cristalina de sua posição respeito do fim da arte: este ocorre no
momento em que o expressionismo abstrato nova-iorquino entra
em crise e a pop art toma o seu lugar como corrente artística
mais influente [...]296
Mesmo podendo ser impressionistas na manhã, expressionistas à tarde e
conceitualistas à noite, o certo é que hoje predomina a lista dos artistas melhor cotados
294
DANTO, A.: 2012, 334.
“I am very grateful to them [R. Sclafani and George Dickie], and additionally grateful to those who
have erected something called the Institutional Theory of Art on the analyses of “The Artworld,” even if
the theory itself is quite alien to anything I believe: one's children do not always quite come out as
intended. I nevertheless, in classical oedipal fashion, must do battle with my offspring, for I do not
believe that the philosophy of art should yield herself to him I am said to have fathered.” DANTO, A.:
1981: VIII.
296
DUARTE, R.: 2011, 167.
295
190
conforme Sotheby’s e Christie’s, assim como suas ações cotando na bolsa de valores em
função das transações comerciais que fazem com obras que, mais de uma vez, são
compradas por clientes que nem sequer estão interessados na arte. Por outra parte, a
agenda de bienais, exposições, galerias, prêmios nacionais, e outras formas de
circulação marcadas pelo poder já econômico, já social, fazem do mundo da arte uma
instituição de difícil acesso e tão sensível às vicissitudes do mundo global como
qualquer outra ou, o que é o mesmo, espaços marcados pelos conflitos de um mundo
onde o globalizado é que o acesso aos bens culturais e a valorização dos bens culturais
produzidos esta restringido por injustiças tanto para o pluralismo proposto por Danto297,
como para o ativismo proposto por aqueles que pretendem fazer ou promover uma arte
engajada 298, filha bastarda pela falta de recepção coletiva, da velha arte heterônoma.299
Só resta dizer, a espera de um estudo que avalie as possibilidades da arte como
ferramenta crítica que, parafraseando a Marx, o mundo da arte é uma grande instituição.
Mas quem gosta de morar numa instituição? 300
297
Ver Guimarães, B.: 2014 e DUARTE, R.: 2014.
Foster, H.: 1998, entre outros textos.
299
Uma boa leitura para compreender as dificuldades de pensar na arte heteronoma hoje é DANTO, A.:
1989.
300
“Marriage is a wonderful institution [...] but who wants to live in an institution?” Groucho Marx.
298
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