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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS UNESP – CAMPUS FRANCA SEMÍRAMIS CORSI SILVA O IMPÉRIO ROMANO DO SOFISTA GREGO FILÓSTRATO NAS VIAGENS DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA (SÉCULO III d.C.). FRANCA 2014 SEMÍRAMIS CORSI SILVA O IMPÉRIO ROMANO DO SOFISTA GREGO FILÓSTRATO NAS VIAGENS DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA (SÉCULO III d.C.). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como prérequisito para a obtenção do Título de Doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura. Orientadora: Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho. FRANCA 2014 Silva, Semíramis Corsi. ΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝτΝImpérioΝRomanoΝdoΝsofistaΝgregoΝόilóstratoΝnasΝviagensΝdaΝ ΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝVida de Apolônio de TianaΝ(séculoΝIIIΝdέἑέ) / SemíramisΝἑorsiΝ ΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝSilvaέΝΝΝ–ΝόrancaμΝ[sέnέ],Νβί14 ΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝγλλΝfέΝ ΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝTeseΝ(DoutoradoΝemΝώistória)έΝUniversidadeΝEstadual ΝΝΝΝΝΝΝΝΝPaulistaέΝόaculdadeΝdeΝἑiênciasΝώumanasΝeΝSociaisέ ΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝτrientadorμΝProfªΝDrªΝεargaridaΝεariaΝdeΝἑarvalhoέ ΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝ1έΝ όilóstrato,Ν όlávioΝ caέ1ιί-caέβ4λέΝ Ν βέΝ SofistasΝ (SegundaΝ sofística)έ ΝΝΝΝΝΝΝΝΝγέΝIdentidadeΝgregaέΝIέΝTítuloέΝΝΝ ΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝΝἑDDΝ–Ν1κί SEMÍRAMIS CORSI SILVA O IMPÉRIO ROMANO DO SOFISTA GREGO FILÓSTRATO NAS VIAGENS DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA (SÉCULO III d.C.). Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Doutor em História. Área de Concentração: História e Cultura. BANCA EXAMINADORA Presidente: _____________________________________________________________________ Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho, UNESP/Franca 1º Examinador: ______________________________________________________________________ Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva, UFES 2º Examinador: ____________________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves, UFG 3º Examinador: ______________________________________________________________________ Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha, UNESP/Assis 4º Examinador: ______________________________________________________________________ Profa. Dra. Márcia Pereira da Silva, UNESP/Franca Franca, __________ de _______________________________ de 2014. AGRADECIMENTOS A entrega e a defesa desta Tese na Universidade Estadual Paulista – UNESP/Franca significa a concretização de um projeto que iniciei ainda na graduação, no qual tive, certamente, a ajuda de muitas pessoas, algumas diretamente, outras indiretamente. Registrar seus nomes aqui é a expressão de meus sinceros agradecimentos. Espero que o resultado desta pesquisa seja merecedor de todas as oportunidades, orientações e incentivos que recebi. Primeiramente agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES pelo financiamento desta pesquisa por meio da bolsa de doutorado. Também agradeço à CAPES pela concessão da bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE), com a qual pude realizar meu estágio na Universidad de Salamanca, Espanha, essencial para o desenvolvimento da pesquisa. À Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho, minha orientadora, agradeço pelas horas que me foram dedicadas com seu conhecimento, pelas discussões valiosas e fundamentais, pelo incentivo em todas as etapas do processo de pesquisa nesses vários anos que mantemos não apenas a relação de orientadora e orientanda, mas também de amigas. Orgulho de ser sua orientanda, pois é, reconhecidamente, uma grande antiquista. À Profa. Dra. María José Hidalgo de la Vega, Universidad de Salamanca – USAL, Espanha, minha supervisora de estágio no exterior, agradeço por ter me recebido em sua instituição, por ter me possibilitado o suporte necessário para a pesquisa em seu país e, especialmente, por ter realizado discussões comigo sobre minha pesquisa. Suas orientações foram extremamente necessárias e valiosas para a minha compreensão dos sofistas gregos no Império Romano, tema no qual é uma destacada especialista. Ao Prof. Dr. Jean-Michel Carrié, École de Hautes Études em Sciences Sociales – EHESS, Paris, agradeço por discutir comigo a temática da pesquisa em diferentes ocasiões e por ter me recebido em sua instituição, possibilitando meu acesso à rica biblioteca GernetGlotz em Paris. As considerações desse respeitado antiquista me levaram a importantes reflexões sobre a Vida de Apolônio de Tiana. Ao Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva, Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, agradeço pela participação na banca de qualificação, na banca de defesa e, sobretudo, por me acompanhar de maneira sempre atenciosa, desde a minha Iniciação Científica. Não posso deixar de mencionar que, a esse professor, devo o início de meu interesse pela pesquisa da História de Roma, durante um minicurso por ele ministrado em um congresso de História, no ano de 2000, em Vitória/ES. À Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves, Universidade Federal de Goiás – UFG, importante pesquisadora da dinastia dos Severos no Brasil, agradeço pela valorosa participação na banca de defesa. Ao Prof. Dr. Ivan Esperança Rocha, Universidade Estadual Paulista – UNESP/Assis, agradeço, imensamente, pela participação na banca de defesa desta Tese. À Profa. Dra. Márcia Pereira da Silva, Universidade Estadual Paulista – UNESP/Franca, também agradeço pela disponibilidade em ler este trabalho e participar como membro na banca de defesa. Ao Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello, Universidade de São Paulo – USP, coordenador geral do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano – LEIR, agradeço pela participação na banca de qualificação desta Tese. As observações realizadas foram, na medida de minhas condições, consideradas. Ao Prof. Dr. Renan Frighetto, Universidade Federal do Paraná – UFPR, agradeço por ter auxiliado no contato com a Profa. María José Hidalgo de la Vega. À Profa. Dra. Tânia Garcia e à Profa. Dra. Susani Silveira Lemos França, ambas docentes da Universidade Estadual Paulista – UNESP/Franca, agradeço pela seriedade na condução de suas atividades junto ao Programa de pós-graduação em História da UNESP/Franca e pelo apoio aos discentes. À amiga Profa. Dra. Érica Cristhyane Morais da Silva, Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, agradeço pela leitura do meu pré-projeto de doutorado e pelas discussões e trocas de experiências sobre nossos estudos de História. Aos funcionários da UNESP/Franca, agradeço pela acolhida desde que cheguei nessa instituição em 2000. Agradeço a todos os funcionários nas pessoas dos estimados Clerivaldo do Nascimento Rosa (Valdinho), Maísa Helena de Araújo e Laura Jardim. Aos colegas do meu grupo de pesquisa, Grupo do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano – GLEIR-UNESP/Franca, Prof. Dr. André Luiz Cruz Tavares, Profa. Dra. Nathália Monseff Junqueira, Profa(s). Ma(s). Bruna Campos Gonçalves, Dominique Monge Rodrigues de Souza, Helena Amália Papa e Natália Frazão José e Prof. Eliton Almeida da Silva, agradeço pela companhia em congressos e pelas contribuições com diversos tipos de informações. Agradeço, de forma especial, ao meu amigo, parceiro e colega de grupo de pesquisas, Prof. Me. Daniel de Figueiredo, que além de ser meu companheiro em congressos e discussões, abriu as portas de sua casa sempre que precisei. Aos queridíssimos amigos espanhóis pesquisadores do Departamento de PreHistoria, Historia Antigua e Arqueología da Universidad de Salamanca – USAL, agradeço por terem feito com que meus dias na Espanha fossem, além de extremamente proveitosos para a pesquisa, calorosos e divertidos. Obrigada Amaia Goñi Zabalegi, Carmen López San Segundo (Maika), Enrique Hernández Prieto, Francisco José Vicente Santos (Fran), Iván Pérez Miranda, Javier Andrés Pérez, José Manuel Aldea Celada (Chema), Paula Ortega Martínez e Reyes De Soto García. Ainda em Salamanca, agradeço ao Padre Tomás, por ter me recebido tão bem na Residencia Universitaria PP. Carmelitas, sob sua direção. À Profa. Dra. Rosana Rodrigues, Universidade do Estado de Mato Grosso – UσEεATήSinop,Ν aΝ “chicaΝ brasileña”,Ν agradeçoΝ por diminuir as distâncias e a saudade do Brasil, fazendo-me companhia em diversos momentos pela cidade mais bonita da Espanha. A Javier Dueñas, salmantino estudante da língua portuguesa, agradeço pelos momentos em que, ao ensinar-lhe um pouco português, aprendi mais sobre a língua espanhola e sobre a cultura de seu país. À direção do Claretiano Centro Universitário – CEUCLAR, agradeço por concederme os afastamentos necessários para o desenvolvimento desta pesquisa. Aos colegas professores e funcionários dessa instituição e aos meus alunos queridos, agradeço pelo incentivo. Ao Prof. Me. Fábio Augusto Morales, PUC-Campinas e LEIR-MA/USP, agradeço pelas referências bibliográficas sobre o Império Romano. Ao amigo Prof. Armando Alexandre dos Santos, agradeço pela minuciosa e atenciosa revisão ortográfica deste trabalho. À Profa. Ma. Beatris Ribeiro Gratti, minha amiga e professora de grego, agradeço pelas valiosas aulas e pelas descontrações em meio aos estudos sobre a língua de Filóstrato. Agradeço à amiga Profa. Dra. Érica Cristina Alexandre Winand, Universidade Federal de Sergipe – UFS, que um dia, ainda em nossa graduação, disse que tinha certeza que faríamos doutorado. Sua convicção e seu estímulo foram muito importantes. Ao Prof. Dr. Reginaldo Guiraldelli, Universidade de Brasília – UnB e à Profa. Ma. Meire de Souza Neves, Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé – UNIFEG, agradeço pelos planos e sonhos compartilhados desde nosso ingresso na graduação na UNESP/Franca até hoje. Pela atenção à minha ida para a Espanha, agradeço a Wallace Ruy. Agradeço também à amiga Profa. Dra. Tatiana Noronha de Souza, Universidade Estadual Paulista – UNESP/Jaboticabal, pelas dicas sobre a viagem. Aos meus amigos queridos, os melhores do mundo, agradeço pelos momentos de alegria e também pelo apoio para que este doutorado se realizasse. Obrigada Alexandre Bonafim, Bruno Pessoni, Danilo Lucas Marcelino, Jeferson Cordeiro Teodoro, Pedro Lúcio Bonifácio, Mateus Antônio Marcelino, Reynaldo Formaggio Filho, Renan do Carmo Silva e Thiago Ramos Reis. À minha família, minha mãe Ruth Corsi, minha tia Regina dos Reis Corsi, minha prima Fernanda Corsi Silva e minha afilhada Giovanna Corsi Tuzzolo, agradeço por todo suporte que me deu nesses anos e sempre. Sem vocês, realmente, nada disso seria possível. Ao casal Maria do Carmo Figueiredo Balieiro e Cândido Máximo Balieiro, agradeço por me receberem em sua casa e em sua família sempre com alegria, comemorando as vitórias e dando apoio nos momentos difíceis. Finalmente, agradeço ao meu companheiro Prof. Dr. Fernando de Figueiredo Balieiro. Sou grata por ler meus textos, discutir conceitos comigo e, acima de tudo, por ter enfrentado, com presença forte, todos os momentos do doutorado, que não foram fáceis, mas foram prazerosos. Desde a entrevista inicial para ingresso no Programa de pós-graduação em História, até o momento em que escrevo estas linhas, obrigada pela presença, Fer. Iniciamos juntos nossos doutoramentos e, com muita paciência e compreensão, juntos os concluímos. Nas galerias solitárias dos Arquivos onde eu andei por vinte anos, no profundo silêncio, no entanto, os murmúrios vinham aos meus ouvidos. Os sofrimentos longínquos de tantas almas sufocadas nas suas velhas idades queixavam-se em voz baixa... – Com que te divertes? Você sabe que os nossos mártires depois de quatrocentos anos foram esquecidos? Foi na firme crença, na esperança de justiça, que eles reviveram. Teriam o direito de dizer: – História, conta conosco! Os teus credores te ordenam! Nós aceitamos a morte por uma linha tua! Jules Michelet SILVA, SEMÍRAMIS CORSI. O Império Romano do sofista grego Filóstrato nas viagens da Vida de Apolônio de Tiana (século III d.C.). 2014. 399 f. Tese (Doutorado em História) – όaculdadeΝdeΝἑiênciasΝώumanasΝeΝSociais,ΝUniversidadeΝEstadualΝPaulistaΝ“JúlioΝdeΝεesquitaΝ όilho”,Νόranca,Νβί14έ RESUMO Filóstrato foi um sofista grego que viveu de meados do século II a meados do século III d.C. Teve contato próximo com o poder imperial romano no período dos primeiros imperadores da dinastia dos Severos, Septímio Severo e Caracala, e ocupou cargos públicos em Atenas. Uma das obras de sua autoria é a Vida de Apolônio de Tiana, que acreditamos ter sido escrita no período do governo de Severo Alexandre (222-235). Nesse texto de gênero híbrido (biografia/ficção/hagiografia), Filóstrato descreve o contato do biografado com diversos tipos de povos, como indianos, partos, egípcios, os próprios gregos, além de relações do protagonista com alguns imperadores romanos. Para nós, nesta obra, Filóstrato deixa entrever aspectos de sua visão sobre o Império Romano, especialmente no que tange às relações de poder com povos de dentro e de fora da administração romana em um processo de ordem e integração no qual a cultura grega e homens formados como Apolônio possuem, na visão do autor, um papel importante. Dessa forma, o objetivo desta Tese é analisar a representação de Apolônio feita por Filóstrato, considerando a construção dos contatos político-culturais do biografado pelas regiões por onde passa, a construção de fronteiras identitárias e a afirmação da identidade e da paideia grega. Partimos do pressuposto de que há elementos de identificação de Filóstrato e de sua categoria, os sofistas, em Apolônio. Também tivemos como hipótese que há alegações na descrição do biografado de funções para os sofistas no jogo de forças do poder imperial. A Vida de Apolônio de Tiana é nossa documentação principal, mas utilizamos referências de todo corpus filostratiano. Utilizamos também textos de Herodiano (História do Império Romano) e Dião Cássio (História Romana), buscando elementos para a compreensão do contexto Severiano. Buscamos, ainda, subsídios para a compreensão das funções do sofista em discursos de Dião de Prusa, Apuleio e Élio Aristides. A pesquisa é feita dentro dos atuais debates historiográficos sobre identidades, fronteiras e ordem no Império Romano. Vinculamo-nos aos estudos da Nova História Cultural, que permitem novas abordagens centradas nos contatos político-culturais, identidades e representações. Palavras-chaves: Dinastia dos Severos. Filóstrato. Vida de Apolônio de Tiana. Sofistas. Identidade grega no Império Romano. SILVA, SEMÍRAMIS CORSI The Roman Empire of the greek sophist Philostratus on the journeys of The Life of Apollonius of Tyana. (III century AD). 2014. 399 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual PaulistaΝ“JúlioΝdeΝεesquitaΝόilho”,Νόranca,Νβί14έ ABSTRACT Philostratus was a sophist who lived between the second and third century AD. He used to be closer to the Roman Imperial power during the period of the early emperors of Severian dynasty, such as we can mention Septimius Severus and Caracalla, and also held positions in Athens. One of his works is The Life of Apollonius of Tyana which we suppose that was written at the period of the AlexanderΝSeverus’Ν governmentΝ (βββ-235). In this hybrid genre narrative (biography/fiction/hagiography), Philostratus describes the contact of the biographed with the several kinds of peoples, like Indians, Parthians, Egyptians, Greeks, and likewise presents the relationship between the protagonist with some of the Roman emperors. For us, in this work, Philostratus demonstrates some aspects of his view about the Roman Empire, especially regarding to the power relationships between the peoples inside and outside Roman Empire administration in a ordering and integration process in which the Greek culture and formed men like Apollonius held an important role, in the author view. Therefore, this thesis aims at analyzing the Apollonius representation created by Philostratus, considering the constructionΝofΝtheΝbiographed’sΝpoliticalΝandΝculturalΝcontactsΝthroughΝtheΝregionsΝwhereΝheΝ passed by, the construction of the identitarian frontiers and the affirmation of the identity and the Greek paideiaέΝΝWeΝassumeΝthatΝthereΝareΝelementsΝofΝPhilostratus’ identification, as well as his category, the sophists, with Apollonius. We were also based on the hypothesis that the work presents allegations on the description of the biographed about positions for the sophists inside the imperial interplay of forces. The Life of Apollonius of Tyana is our main documentation, but we also focused on references considering the entire Philostratean corpus. We also analyzed works of the following authors: Herodian (History of the Roman Empire) and Cassius Dio (Roman History), in order to find elements to comprehend the Severian context. We also sought for subsides to comprehend the positions of the sophist figure on the DionΝ ofΝ Prusa’s,Ν Apuleius’sΝ andΝ AeliusΝ Aristides’Ν discoursesέΝ ThisΝ researchΝ wasΝ realizedΝ inside the current historiographical debates about identities, frontiers and order in Roman Empire. Our study was done in the field of the New Cultural History perspective which allows a new approach regarding the political and cultural contacts, identities and representations. Keywords: Severian dynasty. Life of Apollonius of Tyana. Sophists. Greek identity in Roman Empire. SILVA, SEMÍRAMIS CORSI. L’empire romain du sophiste grecque Philostrate dans les voyages de La vie d’Apollonios de Tyane (3ème siècle après JC). 2014. 399 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual PaulistaΝ“JúlioΝdeΝεesquitaΝόilho”,Νόranca,Νβί14έ RÉSUMÉ Philostrate était un sophiste grec qui a vécu du milieu du 2ème jusqu’auΝdébutΝduΝγème siècle après JC. Il a eu des contacts étroits avec le pouvoir impérial romain à l'époque des premiers empereurs de la dynastie des Sévère – Septime Sévère et Caracalla – et il a occupé des fonctionsΝpubliquesΝàΝAthènesέΝUneΝdeΝsesΝœuvresΝestΝlaΝVie d'Apollonios de Tyane, qui nous croyons avoir été écrite pendant le gouvernement d'Alexandre Sévère (222-235). Dans ce genre hybride de texte (biographie/fiction/hagiographie), Philostrate décrit le contact du protagoniste avec de nombreux types de personnes, les Indiens, les Parthes, les Egyptiens, les Grecs eux-mêmes, et ses relations avec quelques empereurs romains. Pour nous, dans ce travail, Philostrate fait allusion à des aspects de sa propre vision de l'Empire Romain, en particulier en ce qui concerne les relations de pouvoir avec des personnes à l'intérieur et à l'extérieur de l'administration romaine dans un processus d'intégration et de l'ordre dans lequel la culture et les hommes grecques formés comme Apollonius ont, à l'avis de l'auteur, un rôle importantέΝ Ainsi,Νl'objectifΝdeΝ cetteΝthèseΝ estΝ d'examinerΝlaΝreprésentationΝ d’ApolloniosΝfaiteΝ par Philostrate envisageant deux aspects fondamentales: (i) la construction de contacts politiques et culturels du protagoniste dans les régions qu'il traverse; (ii) la construction des frontières d'identité et conséquente affirmation de l'identité et de la paideia grecque. Nous supposons qu'il ya des éléments d'identification entre Philostrate – et les sophistes en général – et Apollonios. Nous avions également émis l'hypothèseΝ qu'ilΝ estΝ possibleΝ d’appréhenderΝ dans la description du protagoniste quelques fonctions pour les sophistes dans le jeu de puissance impériale. La Vie d'Apollonios de Tyane est notre documentation primaire, mais nousΝutilisonsΝaussiΝd’autresΝréférences du corpus philostratien. Nous utilisons également des textes de Dion Cassius (Histoire romaine) et Hérodien (Histoire de l'Empire Romain), à la recherche des éléments pour comprendre le contexte des Sévères. Nous voulons aussi des subventions pour comprendre des fonctions du sophiste dans les discours de Dion de Pruse, Aelius Aristide et Apulée. La recherche se fait dans les débats historiographiques actuels sur l'identité,Ν lesΝ frontièresΝ etΝ l'ordreΝ dansΝ l'EmpireΝ RomainέΝ σotreΝ travailΝ s’inscrit dans la perspective de la Nouvelle Histoire Culturelle, qui permet de nouvelles approches axées aux contacts politiques et culturels, les identités et les représentations. Mots-clés: Dynastie des Sévères. Philostrate. La vie d’Apollonios de Tyane. Sophistes. IdentitéΝgrecqueΝdansΝl’Empire Romain. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO ................................................................. 29 1.1 A questão filostratiana.................................................................................................. 30 1.2 A trajetória de Flávio Filóstrato .................................................................................. 41 1.3 Os escritos filostratianos .............................................................................................. 58 1.3.1 Obras de autoria de Flávio Filóstrato .................................................................. 62 1.3.2 Obras de autoria consensual ................................................................................. 65 1.3.3 Obras de autoria questionada ............................................................................... 78 CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA ................................. 83 2.1 Considerações sobre o gênero literário da Vida de Apolônio de Tiana .................... 84 2.2 Datação, público e fontes da Vida de Apolônio de Tiana ......................................... 102 2.3 Abordagens historiográficas sobre a Vida de Apolônio de Tiana............................ 136 CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO ...................................................................................................................... 149 3.1 A Segunda Sofística de Filóstrato: identidade grega e Império Romano .............. 150 3.2 As funções dos sofistas e filósofos no Principado Romano ...................................... 176 3.3 A relação entre Apolônio de Tiana e outros intelectuais com tradição de sofistas ............................................................................................................................................ 202 CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA .............. 222 4.1 O Império Romano em que viveu Filóstrato: a dinastia dos Severos .................... 223 4.2 As viagens da Vida de Apolônio de Tiana: contatos político-culturais, fronteiras e identidade grega ................................................................................................................ 256 4.3 As funções de Apolônio na Vida de Apolônio de Tiana ............................................ 288 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 309 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 319 APÊNDICES ......................................................................................................................... 341 ANEXOS ............................................................................................................................... 372 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO A escolha em pesquisar a obra Vida de Apolônio de Tiana, do sofista grego Filóstrato, provém de nosso interesse pelos estudos sobre o fenômeno da magia, em especial pelas suas representações no período do Principado Romano.1 Depois de voltarmos nossas pesquisas para as feiticeiras na poesia de Horácio (século I a.C.), durante a Iniciação Científica, e analisarmos os aspectos que envolviam o poder na acusação de praticante de magia contra Apuleio (século II), durante o Mestrado, estendemos nosso olhar para a representação de um mago e sábio filósofo pitagórico no século III, nesta pesquisa doutoral.2 Contudo, à medida que fomos avançando a análise da Vida de Apolônio de Tiana, relacionando leituras desse documento com leituras de outras obras de Filóstrato – em especial o texto biográfico Vidas dos Sofistas – e com a historiografia a respeito do século III e da dinastia dos Severos (193-235), quando essa obra foi escrita, nosso objeto de estudo começou a tomar forma.3 Nesse sentido, a magia e a religiosidade, embora ainda presentes, passaram a ser mais uma das questões a serem respondidas sobre o Apolônio de Filóstrato, porém, não o objeto central de nossa atenção.4 Apolônio de Tiana – também designado como o tianeu – foi um personagem que viveu, provavelmente, no século I. Sua realidade e sua possível trajetória são permeadas por dúvidas. Causou admiração em algumas pessoas, como em Filóstrato, que lhe dedicou uma obra apologética contando seus feitos e, especialmente, destacando características de suas funções e relações com povos e regiões em suas longas viagens.5 O tianeu foi utilizado em 1 Os historiadores utilizam o termo Principado para se referirem ao período correspondente aos primeiros séculos do Império Romano (séculos I, II e meados do século III d.C.). No quarto capítulo desta Tese teceremos considerações sobre a periodização da dinastia dos Severos, momento de escrita das obras de Filóstrato. 2 Utilizaremos a.C. para nos referirmos a datas anteriores a Cristo, quando não utilizarmos essa referência, estamos tratando de datas posteriores ao nascimento de Cristo. 3 Abreviaremos o título da Vida de Apolônio de Tiana como VA e da obra Vidas dos Sofistas como VS, conforme regras de abreviatura de nomes de autores e de obras clássicas utilizadas pelo Oxford Classical Dictionary. 4 Utilizamos na Tese duas traduções da obra Vida de Apolônio de Tiana: a tradução grego/inglês de Cristopher Jones (Harvard University Press – Loeb Classical Library), edição bilíngue, e a tradução grego/espanhol de Alberto Barnabé Pajares (Editorial Gredos). As traduções de citações de toda a documentação, assim como do material bibliográfico utilizado, das línguas modernas para o português, são nossas. Recorremos aos termos gregos quando necessário. Em relação aos termos gregos usados nesta Tese, utilizaremos as normas da Universidade de Coimbra para transliteração. Estas normas estão publicadas como Novas Normas de Transliteração, Revista Archai, n. 12, janeiro de 2014, p. 193-194. Conforme estas regras, recomenda-se ignorar acentos e distinções entre longas e breves. No entanto, utilizaremos acentos na transliteração de termos que se tornou tradição transliterar desta forma nos textos brasileiros. 5 Ver Anexo 1, mapa das viagens de Apolônio segundo a VA. INTRODUÇÃO | 14 práticas mágicas no século IV,6 envolvido em polêmicas anticristãs posteriores à escrita da obra de Filóstrato7 e chegou a ser admirado até no século XVI, quando um artista renascentista, chamado Johannes Stradanus, produziu uma série de desenhos ilustrativos da narrativa de suas viagens feita por Filóstrato.8 Além da obra de natureza biográfica escrita por Filóstrato, que mostra Apolônio vivendo no século I, e de algumas referências na cultura material e breves menções sobre o mesmo Apolônio em textos anteriores e posteriores a Filóstrato, temos uma série de cartas transmitidas pela tradição manuscrita como documentação em torno de Apolônio. Essas cartas são consideradas na tradição como sendo na maioria de autoria do próprio Apolônio, e algumas destinadas a ele. Contudo, a autoria das cartas é debatida por estudiosos que acreditam que as mesmas possam não ser autênticas. Portanto, temos poucas informações sobre quem realmente foi e o que fez Apolônio além do que é mostrado por Filóstrato, sendo o retrato de Apolônio na obra filostratiana também discutido pelos estudiosos da VA como problemático em relação ao possível Apolônio histórico. Por considerarmos que em todo ato com intuito biográfico há uma seleção do que dizer e como dizer sobre o biografado, com intenções conscientes ou não por parte do autor, consideraremos a VA como uma representação de Filóstrato. Compreendemos representações, conforme o historiador Roger Chartier (1988), como uma espécie de mapa mental no qual o autor organiza a realidade. Cabe ao historiador desconstruir o discurso destas obras por meio da análise da compreensão de mundo do autor, analisando seus anseios nas representações. Portanto, estamos partindo do pressuposto de que há, em toda a VA, uma elaboração da representação a partir do real. Para Chartier (1988) o homem, por meio das representações mostra seus anseios, suas revoltas e suas vitórias, construindo representações como se fossem verdades. EntendemosΝaindaΝqueΝ“asΝrepresentaçõesΝsãoΝsempreΝresultadoΝdeΝdeterminadasΝmotivaçõesΝeΝ necessidadesΝsociais”Ν(ἐARRτS,Νβίίη,ΝpέΝ1γ4)έΝSegundoΝἑhartier (1988, p. 17) as apreensões de mundo particulares nos fornecem informações sobre os grupos sociais, pois, visando a estabelecer uma comunicação social, os indivíduos classificam, ordenam e hierarquizam a sociedade a sua volta. Dessa maneira, os grupos apresentam a sua concepção de mundo e seus valores. Tratam-se dos talismãs – α α – telesmata – com referências a Apolônio, difundidos no século IV. Chegaram-nos testemunhos desses talismãs pela obra do cristão Pseudo-Justino (CORNELLI, 2001, p. 65). 7 A polêmica é a resposta do cristão Eusébio de Cesareia a Hierocles, que teria comparado Apolônio a Jesus Cristo em um documento que não chegou até nós, trataremos sobre essa polêmica no segundo capítulo da Tese. 8 Tais desenhos foram incorporados nesta Tese como os Anexos 2 ao 10, a fim de ilustrar a narrativa filostratiana sobre a vida de Apolônio de Tiana. 6 INTRODUÇÃO | 15 Não percebemos a VA como um testemunho neutro, mas como uma estratégia de poder presente como forma de apresentar uma autoridade. Portanto, entendemos que Filóstrato se apropria de determinados aspectos e cria representações da realidade conforme seus interesses, de maneira consciente ou não. Não consideraremos essas representações como simples abstrações, mas como uma forma de ação política, um artifício de Filóstrato para expor seus interesses. De acordo com Gabriele Cornelli (2001, p. 71): No Apolônio de Filóstrato reconhecemos três distintas personalidades: a do político reformador dos costumes mediterrâneos, a do filósofo-mestre pitagórico e a do mago e taumaturgo. Dessas três imagens podemos com tranquilidade suspeitar da historiciade da primeira, a de político, pois ela pertence, com grande probabilidade, à bagagem ideológica da neosofistica e dos círculos imperiais dos Severos. Restam as outras duas e o sucesso da reconstrução da figura histórica de Apolônio dependerá da crítica literária de sua formação e tradição. Notamos que Cornelli (2001) analisa apenas uma parte do Apolônio da VA como algo próprio de Filóstrato. Mas, Apolônio, em nossa visão, tendo historicidade ou não, é, em todos seus os seus aspectos, uma representação do autor, que escolheu o que apresentar e como o apresentar. Além disso, Cornelli (2001) separa os aspectos políticos (Apolônio político reformador de costumes) dos religiosos (Apolônio filósofo pitagórico, mago e taumaturgo), o que não julgamos possível nas sociedades da Antiguidade, quando esses dois domínios (política e religião) estavam intimamente associados. 9 Portanto, o Apolônio que lemos na visão de Filóstrato possui aspectos políticos e religiosos imbricados e será lido nesta Tese como uma representação filostratiana. A partir da percepção de que há um sentido claramente apologético no texto, sendo o Apolônio de Filóstrato muito mais que um mago e que um homem divino, nosso tema e interesse inicial de pesquisa se reconfigurou e nossa hipótese principal foi levantada: 9 Na linha de interpretação que analisa a relação entre política e religião no Império Romano, podemos citar os livros de Gilvan Ventura da Silva (2003) e Margarida Maria de Carvalho (2010), ambos frutos das Teses de doutorado dos autores. Em Reis Santos e Feiticeiros. Constâncio II e os fundamentos místicos da Basiléia 337-361 (2003), Silva compreende as relações entre poder e religião no governo de Constâncio II, analisando as perseguições a magos e adivinhos dentro dessa perspectiva. Carvalho, em Paidéia e Retórica no século IV d.C. A Construção da imagem do Imperador Juliano segundo Gregório Nazianzeno (2010), analisa como o conflito, aparentemente apenas religioso, entre o imperador Juliano e o autor cristão Gregório Nazianzeno se insere numa disputa político-religiosa. Para tanto, Carvalho teve como objetivos primordiais desconstruir o discurso Contra Juliano, escrito por Gregório Nazianzeno, analisando e elucidando seus elementos retóricos. As duas teses mencionadas acima são do contexto de Antiguidade Tardia, para o período do Principado podemos citar nossa própria Dissertação de mestrado, publicada como o livro Magia e Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio (2012). Na pesquisa para essa Dissertação mostramos, por meio da análise da acusação de praticante de magia contra o filósofo Apuleio, a relação estreita entre magia, religiosidade e política no século II. INTRODUÇÃO | 16 Apolônio pode ser a representação criada por Filóstrato de um sábio que exerce várias funções almejadas pelo próprio autor para si e para seu grupo, os sofistas gregos, no âmbito político-administrativo do Império Romano da dinastia dos Severos. Assim, nosso interesse não está no Apolônio histórico, mas no quanto há de construção filostratiana no Apolônio da VA. Percebemos que o Apolônio da biografia mesmo sendo um capadócio, é helenizado e mostrado como um grego ático. Também verificamos que há uma valorização da cultura grega em todo o corpus filostratiano. Desta forma, esta Tese objetiva compreender o que significa posicionar-se e afirmar-se como grego dentro do Império Romano, na época dos Severos, para nosso autor, na sua construção de Apolônio de Tiana e por quais razões o autor desenvolve essa construção de seu Apolônio. Nesse sentido, algumas perguntas foram surgindo a propósito de nossa documentação, seguindo as clássicas orientações de Marc Bloch (1941, p. 60), para quem todo historiador necessita, antes de qualquer coisa, de indagações às suas fontes, indagações essasΝqueΝsão,Ν“efetivamente,ΝaΝprimeiraΝnecessidadeΝdeΝqualquerΝinvestigação histórica bem conduzidaέ” Chamou-nos a atenção a maneira como Filóstrato descreveu a longa viagem de Apolônio, que durou toda sua vida adulta e, em especial, como descreveu os contatos políticoculturais de Apolônio com diversos tipos de povos de fora e de dentro da administração do Império Romano, como indianos, partos, gimnosofistas etíopes, egípcios, hispânicos, os próprios gregos, entre outros. 10 Por consequência, levantamos algumas perguntas centrais que norteiam nossa análise: quais as intenções de Filóstrato ao apresentar Apolônio de Tiana em contato com esses povos, ligadas ao contexto em que vivia? Há alguma semelhança na descrição de Apolônio com o próprio escritor que era um sofista? O que Apolônio faz em suas viagens, qual seu objetivo nas mesmas, o que ele busca e quais as possíveis intenções de Filóstrato, ligadas ao contexto de produção da obra, a dinastia dos Severos? Como se dá, na VA, a representação de Filóstrato, um sofista, sobre o arranjo de forças e os contatos políticoculturais do Império Romano com as províncias e também com povos de fora da administração do Império descritos na obra? Por que há na VA, e em todo o corpus filostratiano, uma afirmação tão enfática de elementos da cultura grega clássica? 10 Por contatos político-culturais estamos compreendendo as relações políticas e administrativas entre povos de dentro e de fora do Império e o poder romano e as relações de trocas e interpenetrações culturais dos mais diversos tipos, simbólico/espiritual e material. INTRODUÇÃO | 17 Destacamos que Filóstrato era grego de nascimento e é como grego que ele define seus sofistas e Apolônio em várias passagens da VS e da VA.11 Porém, ser grego para Filóstrato não significava ter nascido na Grécia propriamente, mas ter recebido a πα αΝ – paideia grega e ter elementos de memória e história em comum.12 Por esse motivo Apolônio é tratado como grego na VA e também os sofistas que não eram gregos de nascimento na VS, como podemos ler nessa significativa passagem sobre o sofista Favorino: Procedia da Gália Ocidental, da cidade de Arelate [...]. Teve uma desavença com o imperador Adriano sem que lhe ocorresse nenhum mal. Por causa dessa desavença, proclamava, em tom oracular, três ocasiões em sua vida como sendo paradoxais: ser galo e ter mentalidade de grego, ser eunuco e sofrer um processo por adultério, ter enfrentado o imperador e continuar vivo (VS, I, 489). Mas temos claro que a identificação como grego no século III, não era a mesma coisa que a identificação como grego na época clássica das póleis. Não devemos desconsiderar o contexto vivido por Filóstrato: o Império Romano severiano e a maneira como as identidades culturais podiam conviver em um mesmo indivíduo sem problemas nesse período, como nos mostra Greg Woolf (1994). Dessa forma, a identificação de nosso autor, que nos propomos estudar não é algo fixo, coerente e estável. Compreendemos que a autodefinição como grego, feita pelos escritores da Segunda Sofística,13 é uma forma de afirmação da paideia e de seus atributos dentro do Império Romano, tal identificação entra em um jogo de negociações por status e posição social. Portanto, nos parece que existia uma carga ideológica na definição de Filóstrato enquanto grego. Além disso, Filóstrato possuía a cidadania romana e, como comentamos, ser romano e ser grego, não excluía outras identidades neste contexto. Identificar-se enquanto grego no Império Romano também não era algo étnico, mas cultural (WALLACE-HADRILL, 2008, p. 03-09). E, conforme Norberto Guarinello (2009, p. 155): Essa identidade foi construída, pela segunda sofística, a partir de algumas criações próprias: uma língua culta e artificial (bastante distinta da língua 11 Estamos utilizando o termo grego para nos referir a Filóstrato, mas devemos mencionar que o próprio autor usa o termo heleno (Ἕ Ν– Hellen), uma vez que, graecus e graecia, eram expressões da língua latina, criadas pelos romanos para designarem os gregos (BAROIN; WORMS, 2006, p. 04). 12 Entendemos paideia como a educação pedagógica, política, filosófica e religiosa, recebida pelos cidadãos das elites greco-romanas (ἑARVAδώτ,Ν βί1ί,Ν pέΝ βη)έΝ Seria,Ν então,Ν umΝ “modeloΝ deΝ ‘cultura’Ν retransmitidoΝ peloΝ sistema educativo visando confortar e justificar a dominação política dasΝelitesΝlocais”Ν(ἑARRIÉ,Νβί11,ΝpέΝβί)έΝΝ 13 A Segunda Sofística foi a denominação para um fenômeno identitário de escritores de identidade cultural grega na época imperial romana. O termo em si aparece pela primeira vez na documentação que chegou até nós na VS, de Filóstrato (VS, I, 481, 507). No Capítulo 3 aprofundaremos o tema. INTRODUÇÃO | 18 falada), que procurava reproduzir fielmente a língua falada em Atenas no século V antes de Cristo; uma memória comum a todos os gregos, um passado clássico, que selecionou as histórias de Atenas e de Esparta, e seu confronto na Guerra do Peloponeso, como a história emblemática de toda a Grécia (visão da qual somos reféns até hoje). Portanto, como identidade cultural, estamos compreendendo a representação de si, ou de um grupo, enquanto pertencente a um conjunto de pessoas com valores e características culturais compartilhadas. Consideramos que a construção das identidades sempre perpassa a visão do eu/nós em oposição ao outro ou aos outros grupos (CARDOSO, 2003; SAID, 2007). Assim sendo, as construções das identidades culturais sempre devem ser percebidas em seus aspectos relacionais. Em nossa leitura da documentação, vemos que Apolônio dialoga constantemente em suas viagens com reis, sábios e sacerdotes locais, populações de cidades de dentro e de fora da administração do Império Romano e com diferentes governantes e imperadores romanos. Analisaremos como Apolônio é recebido nas regiões por onde passa e como estas regiões são apresentadas na narrativa filostratiana dentro de sua proposta de exaltação da identidade grega e, especificamente, de afirmação de papéis atribuídos aos sofistas no Império Romano. Também julgamos importante analisar alguns personagens que aparecem na VA em relação à região de onde eles vinham, como o próprio Apolônio, seu seguidor Damis, o rei parto Vardanes, o sábio indiano Iarcas e outros personagens que aparecem na obra, e como Filóstrato os representa a partir de sua visão de sofista grego inserido nas estruturas políticoadministrativas de seu momento histórico. Nesse sentido, pretendemos perceber como Filóstrato apresenta geográfica e ideologicamente o Império Romano e seu poder diante dos povos com os quais Apolônio mantém contato, fazendo-nos entrever sua percepção sobre o processo de ordem imperial, especialmente nas partes orientais do Império, e a importância dada por ele para a cultura grega como forma de manutenção da ordem. Faz-se, assim, necessário entendermos como Filóstrato nos apresenta esses povos estabelecendo limites e continuidades entre eles, como ele delineia fronteiras que ao mesmo tempo separam e ligam povos e regiões, mostrando como, em sua visão, eles se comunicam e interagem. Em especial, buscaremos perceber como Filóstrato alega papéis para Apolônio neste processo de comunicação dentro do Império Romano, papéis estes que acreditamos ser uma projeção de si próprio e dos sofistas. Há na VA a afirmação de uma identidade grega homogênea que, como já exposto acima, está, em nossa hipótese, ligada à necessidade de Filóstrato mostrar que os sofistas de cultura grega possuíam atributos necessários para a manutenção da ordem imperial romana. INTRODUÇÃO | 19 Assim, estamos compreendendo que um dos elementos importantes na manutenção do Império Romano é a construção de relações de identidade e alteridade e que, na parte oriental do Império (pars orientalis), principalmente, a cultura grega tinha papel fundamental como elemento facilitador da integração, sendo, por isso, extremamente valorizada na VA.14 Devemos ressaltar que os sofistas gregos, enquanto membros dos grupos privilegiados, podiam, de fato, se destacar na administração romana.15 Assim, acreditamos que Filóstrato busca exaltar os elementos da cultura grega, percebendo nela características importantes para a ordem romana. Filóstrato busca que os que possuíam estes elementos culturais, no caso os sofistas, fossem mais valorizados, assumindo certas funções político-administrativas, que ele acreditava que estavam aptos. No entanto, notamos que a ideia de uma cultura grega homogênea faz parte da afirmação de nosso autor em meio à diversidade cultural na qual ele vivia no Império Romano dos Severos. Mostraremos, ao longo da Tese, como Filóstrato indica tal pluralidade e a demonstra em sua obra, ainda que afirmando uma cultura grega homogênea. Além disso, a obra de Filóstrato é escrita no contexto da dinastia dos Severos, quando há, pela primeira vez na história do Império Romano, uma dinastia de origens orientais no poder. Dessa maneira, nossa pesquisa visa a ressaltar o caráter plural do Império na visão de Filóstrato diante de sua afirmação da importância da cultura grega, a fim de mostrar a importância dos sofistas. Trabalhamos com a percepção de que nas interações da cultura grega e romana com as culturas locais das regiões conquistadas, nos processos imperialistas – primeiramente com o Império Helenístico, importante propulsor da cultura grega para regiões orientais, e depois 14 Nesta Tese priorizaremos a análise focada no recorte espacial do Oriente do Império (pars orientalis). Isso não significa que ignoraremos o debate historiográfico que trata da dinâmica de negociações entre poder romano e povos do Ocidente (pars occidentalis). Também não ignoraremos a apresentação de regiões do Ocidente na VA. Mas nosso foco de atenção estará na dinâmica de negociações no Oriente, dentro e fora do Império, por esta região aparecer em destaque em nossa documentação. Utilizaremos o termo Oriente para definir as regiões geograficamente no Oriente fora do Império Romano e Oriente imperial ou Oriente greco-romano para as regiões geograficamente orientais, mas dentro da administração do Império Romano. Filóstrato usa termos gregos equivalentes a Ocidente e Oriente, referindo-se a essas regiões geográficas como em VA, V, 9: Ocidente/sol poente: cidades do entardecer – ὰ π υ π – tas hesperious poleis. E em VA, II, 18, Filóstrato refere-se ao Oriente, onde o sol nasce – Oriente/sol nascente – ἀ χ υ ἡ υ – archomenou heliou. Filóstrato não diferencia Ocidente e Oriente, de dentro ou de fora da administração do Império Romano, com um termo específico, deduzimos sua referência pelo contexto que o autor está mostrando. 15 Consideramos Filóstrato membro de um grupo privilegiado das elites imperiais, o dos sofistas, pois sabemos que a elite imperial não era homogênea e havia especificidades no fato de ele ser membro de um grupo privilegiado de uma província romana, mais especificamente, da parte oriental do Império. Estamos compreendendo que os membros dos grupos das elites eram privilegiados por terem recebido uma educação que lhes possibilitava a proximidade com a administração e o poder imperial. INTRODUÇÃO | 20 com o Império Romano – houve uma rearticulação de elementos dessas culturas com elementos das culturas locais.16 O historiador Woolf (1998), ao interpretar o processo de formação do que ele chama de civilização galo-romana, nota a existência de processos dinâmicos de trocas culturais entre gauleses e Império Romano. Tais processos podem se caracterizar como uma forma de hibridismo cultural (MORALES, 2013). Como hibridismo cultural, estamos compreendendo os processos de interações culturais. Nas interpretações dos processos de hibridismo, que podem, entretanto, se desenvolver de formas diferentes, temos tais interações não como imposições em termos de dominação, mas como trocas, diálogos, intercâmbios realizados por meio de diferentes suportes culturais, tais como a iconografia, a língua, a arquitetura, a literatura, o vestuário, a religiosidade e as mais diferentes manifestações culturais (BURKE, 2007). Assim interpreta Woolf (1998, p. 16), que trabalha com a compreensão das trocas culturais entre romanos e gauleses, embora nestes processos apenas analise as elites. Em relação ao Oriente romano, em outro trabalho, Woolf (1994) trata da presença controversa da cultura romana no Oriente já fortemente marcado pela cultura helênica e conclui que os gregos adotam muitas práticas culturais romanas, tornam-se romanos, na observação do historiador, sem, no entanto, deixarem de ser gregos. Ambas as identificações coexistem. Portanto, a diferença é que no Ocidente, especialmente no caso da Gália, analisado pelo autor, houve a criação de uma nova identidade híbrida. Os gregos, entretanto, parecem ter sido mais seletivos na adoção de estilos e inovações de origens romanas, houve uma hibridização, como podemos apreender da leitura de Woolf (1994), mas sem a criação de algo propriamente novo. Janet Huskinson (2000) concorda com a ideia de mais de uma forma de identificação convivendo em um mesmo indivíduo, mas também analisa a existência de uma cultura das 16 Dessa maneira, na perspectiva de Imperialismo Romano que estudamos nesta Tese, o poder romano sobre as províncias será lido também em complexas relações de negociações e não simplesmente como dominação político-cultural. Seguiremos uma linha de interpretação que pauta na ideia, de maneira geral, que o poder romano teve dinâmicas de afirmação e estratégias diferentes em relação às diversas regiões do Império. Não ignoramosΝ queΝ oΝ ImpérioΝ RomanoΝ “foiΝ oΝ resultadoΝ deΝ umΝ lentoΝ processoΝ deΝ conquistaΝ militarΝ eΝ centralizaçãoΝ política, primeiro da cidade de Roma sobre a Itália, depois da própria península sobre as demais regiões do Mediterrâneo”Ν (ύUARIσEδδτ,Ν βίίλ,Ν pέΝ 14λ)έΝ Não desconsideramos, no mesmo sentido, que estratégias baseadas na força e na violência tenham desempenhado seu papel na manutenção do Império. No entanto, acreditamos que devemos atentar também para os processos de negociação e de acordos político-culturais dos quais obras como a VA nos podem dar pistas. Sendo assim, é necessário, nas leituras dos documentos, nos preocuparmos com as intenções dos autores em afirmar e negociar o poder de Roma e seu próprio poder e papel enquantoΝ membrosΝ dosΝ gruposΝ privilegiadosέΝ ÉΝ precisoΝ lerΝ essesΝ textosΝ comoΝ “discursosΝ deΝ dominação”,Ν nosΝ termos de Richard Hingley (2010, p. 69), mas não se tratando de uma dominação simplesmente baseada em violência e imposição. É nessa ótica que nos propomos a analisar a VA de Filóstrato. INTRODUÇÃO | 21 elites no Império Romano, formada por elementos gregos e romanos em interação. Dessa forma, para essa estudiosa, se constrói uma identificação greco-romana entre grupos privilegiados, identificação essa que é um fator de coesão no Império Romano, embora as culturas dentro do Império fossem muito mais que isso. Sua proposta é perceber como se operacionaliza uma unidade no Império Romano sem destruir as diversidades. Sendo assim, ela utiliza os termos grego e romano para definir as identidades em questão, mas reconhece uma cultura greco-romana das elites. No entanto, para a mesma autora, a diversidade de outras identidades e a forte presença de tradições culturais por todo o Império criam variações locais, que, porém, ela não objetiva analisar. Embora sua proposta seja em muitos aspectos interessante, nos dois textos de sua autoria que compõem o livro que ela própria organiza, há a ideia de que apenas de Roma se emana cultura, incorporando tradições gregas. Assim como Huskinson (2000), Andrew Wallace-Hadrill (2008) acredita em uma espécie de identificação das elites, algo não natural ou étnico, mas construído em uma relação dinâmica da cultura romana com a cultura grega, especialmente, e também com as demais culturas imperiais. Criticando a ideia da criação de uma nova entidade cultural, nascida da hibridização, mas também percebendo a coexistência identitária em um mesmo indivíduo, Wallace-Hadrill (2008), ao analisar as transformações da cultura romana na Península Itálica, defende que há a convivência de diferentes culturas dentro do Império Romano em uma pluralidade, certas vezes com identidades conflituosas, certas vezes com identidades paralelas. Ademais, o autor questiona os próprios sentidos do que era ser romano, o que para ele é visto como uma identificação que muda com o tempo.17 17 Os estudos de Woolf (1994, 1998), Huskinson (2000) e Wallace-Hadrill (2008) seguem tendências da vertente teórica dos Estudos pós-coloniais – Post-colonial studies – que nos últimos anos têm sido uma perspectiva inovadora para se repensar as relações sociais e as interações culturais na dinâmica do Imperialismo Romano, percebendo a interação da cultura romana e as culturas das províncias muito mais em termos de negociações do que em simples dominação e submissão das populações provinciais por Roma. Os estudos pós-coloniais têm como caráter inaugural as obras do pesquisador Edward Said (1995, 2007), cuja ideia central parte da desconstrução das identidades em estudos de documentos do período de auge do Imperialismo moderno europeu e seus desdobramentos posteriores. Como exemplos desta perspectiva, no caso dos estudos sobre Imperialismo Romano, temos, O Imperialismo Romano (2010), de Hingley, além das obras e textos aqui trabalhados: Becoming Roman (1998) e Becoming roman, staying greek, de Woolf, Looking for culture, identity and power (2000) e Elite culture and the identity of Empire (2000), de Huskinson e Rome’s Cultural Revolution (2008), de Wallace-Hadrill. Seguindo esta linha de interpretação do Império Romano, no Brasil, podemos citar, entre outros, os textos Romanização e as questões de identidade e alteridade (2001) e Estrabão e a enunciação de uma “estrutura de atitudes e referência da cultura imperial” (2003), de Norma Musco Mendes, Práticas culturais no Império Romano: entre a unidade e a diversidade (2006), de Regina Maria Bustamante, a Tese de doutorado Duas rainhas, um príncipe e um eunuco: gênero, sexualidade e as ideologias do masculino e do feminino nos estudos sobre a Bretanha romana (2011), de Renato Pinto e o livro A estrutura de atitudes e referências do Imperialismo Romano em Sagunto (2014), de Carlos Eduardo Costa Campos. INTRODUÇÃO | 22 Em devidas proporções, mas variando em alguns sentidos, tanto a perspectiva de Woolf (1994) sobre ser romano e ser grego ao mesmo tempo, corroborada pelos dois outros autores tratados, quanto a perspectiva de Huskinson (2000) sobre a identificação dos grupos das elites com uma cultura greco-romana e a visão de Wallace-Hadrill (2008) sobre a pluralidade do Império Romano, todas contribuíram para nossa reflexão sobre o Império Romano do sofista grego Flávio Filóstrato. Sendo assim, as interações culturais mostradas por Filóstrato não serão pensadas de forma monolítica, estática e unitária. Estamos compreendendo que mesmo que Filóstrato afirme uma identidade grega homogênea como forma de diferenciação dentro de seus jogos de interesse e como forma de criação de elementos comuns para uma identificação no Império Romano severiano, ele nos deixa claro, como exporemos, que vivia em um contexto plural, em que diferentes identidades conviviam, mas também trocavam experiências em processos de hibridização. Além disso, há, dentro da unidade almejada por Filóstrato, marcadores de diferenças e hibridismos. Há diversidade dentro da proposta de unidade, assim como há diálogo de práticas culturais dentro da pluralidade. Logo, não vemos a pluralidade do Império Romano de Filóstrato como excludente dos processos de hibridização, pois concebemos que seus textos transmitem a existência de várias tradições culturais incorporando elementos umas das outras. A identidade de seus sofistas e mesmo a de Apolônio, o grego da Capadócia que tem costumes tipicamente áticos, mas também orientalizados, podia conviver harmoniosamente com outras identificações e serem hibridizadas com elementos de diferentes tradições, sem, no entanto, estarem em conflito com a afirmação da cultura grega tradicional. Além disso, Filóstrato é capaz de reconhecer e afirmar elementos para uma identificação em comum nesse império múltiplo, advindos, para ele, das tradições gregas, simbolizadas por seu grupo, os sofistas gregos, que, no entanto, provinham de diferentes partes do Império Romano. Diante do que foi exposto, será importante operacionalizar outro conceito na análise da afirmação identitária de Filóstrato, o conceito de fronteiras. O conceito de fronteira aparece, inicialmente, com as reflexões sobre as fronteiras étnicas, na década de 1960, nas pesquisas do antropólogo Fredrik Barth. Tal conceito visa a perceber como os gruposΝmarcamΝlimitesΝentreΝ“nós”ΝeΝ“eles”Ν(ἑARDτSτ,Νβίίγ,ΝpέΝλγ),Νmas,Ν ao mesmo tempo, demonstra como, nas práticas culturais, esses limites entre grupos não são estanques (BURKE, 2006, p. 14), justamente pelo aspecto relacional das construções identitárias. As fronteiras,Ν noΝ sentidoΝ tomado,Ν “podemΝ ouΝ nãoΝ coincidirΝ comΝ fronteirasΝ INTRODUÇÃO | 23 geográficas,ΝterΝouΝnãoΝcorrespondênciasΝterritoriaisμΝistoΝnãoΝéΝessencial”Ν(ἑARDτSτ,Νβίίγ,Ν p. 93). Guarinello (2010, p. 120) nos mostra que o conceito de fronteiras tem ocupado recentemente a atenção de muitos estudiosos das várias Ciências Sociais, que o deslocam de seu sentido óbvio de separação de territórios e Estados para um sentido mais metafórico, que tenta abranger um número grande de processos sociais. Guarinello (2010), então, aproxima sua definição sobre as fronteiras culturais romanas dos estudos sobre construções identitárias e modos de agir e negociar de grupos no mundo antigo. Várias tipologias são possíveis para o conceito de fronteira, tais como lugar de passagem, campo de negociações, espaço de ação, definidor de grupos em ação, etc. No caso romano, Guarinello (2010, p. 120) indica ser interessante centrar-nos em um objeto mais operativo para a compreensão dessas fronteirasμΝ “aΝ ordemΝ romanaΝ comoΝ umΝ processoΝ deΝ integraçãoέ” A concepção de fronteiras adotada aqui está ligada à ideia de identidades culturais como algo flexível, híbrido e negociável. Nessa compreensão, o uso do conceito de fronteiras alia-se à perspectiva da dinâmica de manutenção do poder romano frente às províncias em busca de integração e ordem. Seguindo tal proposta, outro conceito que já apareceu em nosso texto mostrou-se, da mesma forma, útil para nossas reflexões sobre os papéis que Filóstrato almeja para si e para seus sofistas e, como sustentaremos em nossa Tese, representa em seu Apolônio: o conceito de ordem. Pela leitura de Ramsay MacMullen (1966) sobre quem eram os inimigos da ordem romana, reconhecemos que a ordem é a estabilidade político-administrativa do Império. Complementamos a ideia de ordem também com a percepção de um reconhecimento e uma aceitaçãoΝ deΝ “significadosΝ compartilhados”Ν (ώUSKINSON, 2000, p. 07) no âmbito das relações político-culturais em meio à pluralidade cultural. Nesse sentido, mecanismos e estratégias variadas foram criados, recriados, incorporados e negociados para o controle das inquietações de diversas naturezas, para a criação de discursos em comum entre grupos das elites e, consequentemente, para a manutenção da ordem. Destacamos o papel de intelectuais, como Filóstrato, que em suas obras mostravam compreender conflitos e pluralidades, propondo, ainda que metaforicamente, formas de estabilidade dentro da diversidade e nas proporções grandiosas, geográfica e culturalmente, que teve o Império Romano.18 “Utilizamos o termo intelectual no sentido referido por Francisco Miro Quesada (1966, p. 59): os intelectuais são aquelas pessoas cuja principal atividade é o devotamento sistemático ao conhecimento. O pesquisador, tal 18 INTRODUÇÃO | 24 O próprio Filóstrato nos apresenta sua ideia sobre o que é ordem – Ν– cosmos – nas palavras de Apolônio de Tiana ao imperador Domiciano (VA, VIII, 7.7): Nós devemos compreender a ordem que é dependente da criação divina sobre tudo que há no céu, na terra e no mar, em tudo o que os humanos tomam parte, exceto infortúnio. No entanto, também existe a ordem dependente do homem de bem, que não excede os limites de sua sabedoria e que também vós, imperador, reconheceis que requer um homem feito à imagem e semelhança divina. E qual a forma dessa ordem? As almas indisciplinadas se voltam enlouquecidas contra toda forma de organização. As leis são inoperantes, não há tipo algum de moderação, os deuses se veem desonrados, amam a mentira e a indolência, cresce a preguiça, má conselheira de qualquer ação [...]. Assim, necessita-se de um homem que coloque ordem nas almas, um homem que se apresente como um deus por sua sabedoria. A ordem, para Filóstrato, é a harmonia viabilizada por meio de leis e de um bom e moderado administrador, no caso o imperador romano. Esse administrador deve ser auxiliado por um homem sábio, que por sua sabedoria e formação cultural – ou seja, sua paideia – se eleva a si próprio e ao imperador, transformando este também em sábio e em algo próximo ao divino. Concluindo, para que a ordem romana seja estabelecida em seus múltiplos aspectos, é necessária, ao lado do imperador de Roma, a participação de sábios como Apolônio, projeção de Filóstrato e de seus sofistas, em diferentes funções, tese central desta pesquisa. O que dá unidade e ordenamento é, em Filóstrato, o imperador romano e a cultura grega que pode ser transmitida por meio do sábio. A fim de atingir nossos objetivos, analisando a documentação dentro da proposta definida acima, estruturamos nossa Tese em quatro capítulos, além da Introdução, das Considerações finais, Referências, Apêndices e Anexos. No primeiro capítulo, traçaremos a trajetória intelectual de Filóstrato, sua participação como membro da corte severiana e nos posicionaremos diante da classificação de seus escritos, manifestando nossa opinião sobre as obras que chegaram até nós como constituindo o corpus filostratiano. Apresentaremos ainda a problemática decorrente do fato de existir mais de um escritor chamado Filóstrato, conhecida como questão filostratiana. Delinear a trajetória e a inserção social de Filóstrato faz-se fundamental para nosso estudo, o que significa não apenas apresentar dados biográficos do autor, mas relacioná-los com seu contexto, sua compreensão do mesmo e sua disposição social. Além disso, é preciso como concebe nossa cultura ocidental, é um intelectual, porque suas disciplinas de trabalho são eminentemente cognoscitivas”Ν(SIδVA,ΝS. C., 2012, p. 131). INTRODUÇÃO | 25 considerar que, como nos mostra Tim Whitmarsh (2001), entre o grupo dos sofistas do período imperial havia diferenças nas próprias autoapresentações conforme especificidades pessoais, como local de nascimento, inserção e disposições sociais, relação com o poder e com cargos na administração do Império, etc. Diante destes dados, nós nos utilizaremos, no primeiro capítulo, das interpretações do sociólogo Pierre Bourdieu. Ao propor como intenção teórica não anular o agente como operador prático de construção do objeto, Bourdieu (1989) nos remete ao conceito de habitus com a intenção de superar a dicotomina objetivista/estruturalista e fenomenológica na busca de interpretações. Assim, o habitus é interpretado por Bourdieu como um sistema de disposições incorporadas a certo grupo ligado às relações de dominação no espaço social. Por meio desse conceito, Bourdieu visa a não considerar o agente como mero reflexo da estrutura e, ao mesmo tempo, não subestima a inscrição dele nas estruturas objetivas do social. O habitus define-se como guia de ações estratégicas, mesmo que não sejam intencionais. O conceito de habitus de Bourdieu nos permite compreender as disposições do agente dentro de sua trajetória social, recupera a dimensão individual e simbólica dos fenômenos sociais e a dimensão do agente que interage com a realidade. Dessa forma, em nossa pesquisa a proposta de Bourdieu se faz interessante para pensarmos a participação política e social de Filóstrato presente em seus escritos. Nessa perspectiva, a obra de Filóstrato será lida como interior a um determinado contexto e carregada de sua trajetória intelectual, social, de sua paideia, de seus interesses como sofista, relacionando-a à sua carreira, ao seu contexto e às posições que ocupou. Apoiamo-nos na teoria da ação de Bourdieu que visa a perceber as propriedades de ação de determinado sujeito a partir de seu grupo, no caso de Filóstrato, o grupo é formado por sofistas reconhecidos como gregos. Assim, para Bourdieu: τsΝ “sujeitos”Ν são,Ν deΝ fato,Ν agentesΝ queΝ atuamΝ eΝ queΝ sabemΝ dotadosΝ deΝ umΝ senso prático (título que dei ao livro no qual desenvolvo essa análise), de um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e da resposta adequada. O habitus é essa espécie de senso prático do que se deve fazer em dada situação (BOURDIEU, 1996, p. 42). Feitas tais reflexões sobre a trajetória, a paideia, o posicionamento e as disposições sociais de Filóstrato, no segundo capítulo nos centraremos em compreender os aspectos gerais da VA. Buscaremos definir o gênero desse documento principal de nossa pesquisa, INTRODUÇÃO | 26 apresentando a discussão dos pesquisadores acerca da vida do tianeu escrita por Filóstrato sobre o tema, uma vez que há uma longa discussão se a obra é uma biografia, um romance, uma hagiografia ou possui gênero híbrido. Propomo-nos compreender noções sobre a relação tênue entre biógrafo e biografado e procurar isso no estudo da VA. Para esse fim utilizaremos trabalhos de autores como Jean Orieux (1989), Arnaldo Momigliano (1986), Bourdieu (1996), Pierre Levillain (2003), François Dosse (2009). Ainda nesse capítulo mostraremos a tradição manuscrita em torno da obra; emitiremos nossa opinião sobre sua possível datação, ou seja, no governo de qual imperador romano ela pode ter sido escrita; a documentação na qual Filóstrato se apoia para a escrita do texto. Analisaremos também a construção do Apolônio filostratiano em contraste com as cartas transmitidas pela tradição como sendo de autoria de Apolônio e referidas como documentação usada por Filóstrato na escrita da obra (VA, VII, 23).19 Visamos, com isso, delinear como é a construção do Apolônio de Filóstrato mediante a tradição sobre o sábio de Tiana transmitida nas cartas, analisando as diferenças e as semelhanças entre características de Apolônio nas cartas e na representação filostratiana. Para finalizar o segundo capítulo, faremos uma discussão historiográfica sobre a VA, apresentando quais temas principais foram estudados e discutidos em relação às motivações que teriam levado Filóstrato a escrever essa obra. Tomaremos posição diante da historiografia apresentada e definiremos nossa preocupação ao analisar a documentação principal da Tese. Discutiremos as propostas dos seguintes pesquisadores: María José Hidalgo de la Vega (1995), Jaap-Jan Flinterman (1995), Jacques Boulogne (1999), Cornelli (2001), Whitmarsh (2007), Simon Swain (2009), e Roshan James Abraham (2009, 2014). No terceiro capítulo, interpretaremos, por meio de um sólido material historiográfico e da própria documentação filostratiana (sobretudo a VS), o que foi a Segunda Sofística de Filóstrato e os significados e facetas da identidade grega destacada por esse. Compararemos estudiosos que perceberam de maneira diferente a relação entre a exaltação do passado grego e o Império Romano nos textos dos sofistas do Principado, entre os quais: Glen Bowersock (1969), Ewen Bowie (1981), Fernando Gascó (1990), Graham Anderson (1993), Woolf (1994), Paul Veyne (1999, 2009), Whitmarsh (2001), Hidalgo de la Vega (2001b, 2002, 2006), Christopher Jones (2004), Rafael Urías Martínez (2006), Maria Aparecida de Oliveira Silva (2007) e Guarinello (2009). 19 Utilizamos a edição das cartas da Harvard University Press (coleção Loeb Classical Library), inserida no Volume III da Vida de Apolônio de Tiana, dessa editora. INTRODUÇÃO | 27 Feito isso, definiremos quais as funções dos sofistas no período estudado e suas relações com o poder romano conforme a visão de Filóstrato. Marcaremos uma posição sobre a possibilidade de leitura das intenções filostratianas em sua descrição dos sofistas da maneira como ele a faz. Compreender a Segunda Sofística e o papel que Filóstrato confere aos sofistas por ele biografados é importante para nossa análise de como Filóstrato se retratou em aspectos de seu Apolônio, uma vez que o autor era um sofista e, por isso, acreditamos haver elementos desse grupo na identificação de Apolônio. Ainda no mesmo subcapítulo, apresentaremos os pontos em comum e as diferenciações entre sofistas e filósofos no Principado, pois não podemos deixar de ressaltar que Filóstrato foi um sofista e Apolônio foi um filósofo com características, que nós percebemos, de sofista. Na última parte do terceiro capítulo, refletiremos sobre as características do Apolônio filostratiano em comparação com características dos sofistas da VS e de três intelectuais com tradição como sofistas: Apuleio, Dião de Prusa e Élio Aristides. No quarto e último capítulo, voltar-nos-emos para o contexto histórico em que Filóstrato passou parte substancial de sua vida e no qual sua produção literária foi elaborada: a dinastia dos Severos. Nosso enfoque nesse momento será em mostrar como, com a ascensão dessa dinastia, vemos importantes elementos de transformação no cenário histórico do Império Romano, para em seguida mostrar como isso está presente na VA de Filóstrato. Utilizaremos as obras de dois autores contemporâneos a Filóstrato, os historiadores Herodiano (História do Império Romano) e Dião Cássio (História Romana), bem como a historiografia contemporânea. A segunda parte do quarto capítulo está voltada para a interpretação dos contatos político-culturais de Apolônio com os povos e regiões por onde passou na VA, o que faremos buscando entender as intenções de Filóstrato como um grego dentro do Império Romano severiano. Nesse sentido, será extremamente importante que o leitor atente aos mapas que selecionamos nos Anexos. Para finalizar, na última parte do quarto capítulo, analisaremos as funções desenvolvidas por Filóstrato para seu Apolônio de Tiana na obra, que são a de intermediador cultural, intermediando conflitos e ordenando costumes, e a de conselheiro de monarcas de fora do Império Romano e de governantes do próprio Império Romano. Tanto na segunda, como na última parte do quarto capítulo, traremos informações da historiografia sobre as temáticas tratadas, mas, especialmente, faremos a interpretação da documentação primária que nos propomos a trabalhar nesta Tese. INTRODUÇÃO | 28 Nas Considerações finais, resumiremos os resultados obtidos e refletiremos sobre os elementos trazidos ao longo de todos os capítulos da Tese e como eles nos auxiliaram a pensar o objeto de nossa pesquisa. Como Apêndices da pesquisa, elaboramos uma organização dos assuntos apresentados em cada um dos oito livros da VA (Apêndice 1), uma catalogação das cartas consideradas pela tradição como escritas por Apolônio de Tiana (Apêndice 2) e um catálogo geográfico das regiões por onde Apolônio viajou, conforme a VA, e suas relações políticoadministrativas com o Império Romano na época da dinastia dos Severos (Apêndice 3). Nos anexos, como já mencionamos, o leitor encontrará mapas, os desenhos do artista renascentista Johannes Stradanus, esquemas genealógicos da dinastia dos Severos, fotos de bustos de sofistas e filósofos referidos no corpo do texto e uma foto de um busto da imperatriz severiana Júlia Domna. CAPÍTULO 1 CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO 1.1 A questão filostratiana A s informações a respeito dos escritores da Antiguidade Clássica, em geral, são muito confusas e controversas e em relação a Filóstrato tal problemática não é diferente. Neste capítulo buscaremos traçar aspectos sócio-biográficos do autor por meio de uma montagem de dados tirados de rigorosas análises documentais que trazem certas evidências, mas também muitas suposições, considerando que as próprias obras deixam entrever elementos autobiográficos. Além disso, existe mais de um autor chamado Filóstrato na Antiguidade. Portanto, muito do que iremos apresentar aqui são conjecturas de pesquisas sobre os aspectos biográficos e a trajetória política e intelectual de Filóstrato.1 Primeiramente buscaremos definir qual é o Filóstrato por nós estudado, trabalho tratado como questão filostratiana, e que se faz fundamental tendo em vista a existência de mais de um autor com este nome na época imperial romana. Lúcio Flávio Filóstrato (Lucius Flavius Philostratus)2 fazia parte de uma rica família da ordem senatorial municipal, originária de Lemnos, ilha do território ateniense, sendo seus moradores cidadãos atenienses por direito (FLINTERMAN, 1995, p. 17).3 Tal família estava entre as mais nobres de Atenas por volta dos séculos II e III, ocupando, segundo a epigrafia, posições importantes em Lemnos e Eritrai.4 O nome Filóstrato foi usado por muitos membros dessa família, o que torna a obra do Filóstrato por nós estudado um pouco complexa, pois há textos que podem ser tanto de sua autoria como de outro Filóstrato da família.5 1 Além de informações remetidas pelas próprias obras de Filóstrato, utilizaremos indicações de estudiosos e tradutores de suas obras, entre os quais Friedrich Solmsen (1940), Alberto Bernabé Pajares (1979), Maria Concepción Soria (1982), Anderson (1986), Flinterman (1995), Ludo de Lannoy (1997), Jean Billaut (2000), Christopher Jones (2005), JaśΝElsner (2009), Swain (2009) e Bowie (2009). 2 Segundo a onomástica romana: Lúcio (prenome, nome individual), Flávio (gentilício, nome da gens), Filóstrato (particular, nome da família). Os nomes dos homens romanos eram compostos de três partes: primeiramente viria o prenome ou nome individual (proenomen), depois o nome da gens (nomen) e, por fim, o nome particular ou nome da família (cognomen). Portanto, Lucius Flavius Philostratus se refere ao indivíduo Lúcio, da gens Flávia e da família dos Filóstratos. 3 Em 167/166 a.C. os romanos reconheceram o direito de Atenas sobre a Ilha de Lemnos e os membros dessa comunidade passaram a receber o direito à cidadania ateniense. Lemnos, então, passou a aparecer como um demos ático (DE LANNOY, 1997, p. 2384). Ver Anexo 11, mapa do Mar Egeu localizando Lemnos. 4 Antiga cidade grega da região da Jônia (SMITH, 1870, p. 312). Ver Anexo 11, mapa localizando Eritrai. 5 Ainda neste capítulo apresentamos uma análise sobre o corpus filostratiano e a discussão dos estudiosos sobre a questão da autoria. Iremos nos posicionar sobre as obras que acreditamos ser do Filóstrato que estudamos. Chamamos de corpus filostratiano todo oconjunto de obras referidas como dos Filóstratos. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 31 O Suda, léxico medieval bizantino que cataloga muitos escritores e obras da Antiguidade, menciona a existência de três escritores gregos que viveram no final do século II e início do século III de nome Filóstrato.6 Há um consenso entre os estudiosos de que o Filóstrato escritor da obra VA é o primeiro dos mencionados no Suda, sendo considerado como Filóstrato II,7 filho de outro Filóstrato (também chamado de Vero no léxico), autor deste trabalho, das obras VS, Cartas, Imagens, Heroicos, entre outros textos menos conhecidos.8 Para nós, mesmo sendo o segundo Filóstrato em termos de periodização, ele é citado antes do Filóstrato I no léxico por sua importância mais destacada na cena literária da Antiguidade. O Suda menciona que Filóstrato II viveu em Atenas e depois em Roma, na época do imperador Septímio Severo (193-211) até a época do imperador Filipe (244-249). Esse Filóstrato é chamado pelos estudiosos de Flávio Filóstrato, ou simplesmente Filóstrato, por ser o mais conhecido dos três, devido às famosas obras de caráter biográfico que escreveu. Flávio Filóstrato é a maneira como ele próprio se denomina na dedicatória da VS. Para evitar confusões,ΝnósΝoΝtrataremosΝnestaΝparteΝdoΝcapítuloΝcomoΝ“nossoΝόilóstrato”,ΝoΝ“όilóstratoΝporΝ nósΝestudado”,ΝόilóstratoΝIIΝouΝόlávioΝόilóstratoέ9 O segundo Filóstrato citado no léxico é também sofista, considerado como filho de um homem cujo nome era Vero e pai do Filóstrato II. Esse Filóstrato é chamado de Filóstrato I, embora seja o segundo mencionado no Suda. Era de Lemnos, foi sofista em Atenas e viveu na época do imperador Nero, tendo escrito discursos panegíricos, declamações, a obra Ginástico, o discurso Nero, entre outros textos como tragédias e comédias que não chegaram até nós. Podemos perceber que se Filóstrato I é o pai do nosso sofista, como parte dos estudiosos aceitam, a informação de que ele viveu na época do imperador Nero (54-68) está errada, já que seria impossível ele ter vivido nesta época e seu filho na época dos Severos (193-235).10 Já Filóstrato III seria, segundo o Suda, um sofista, filho de Nerviano (sobrinho de Filóstrato II). Este Filóstrato também é mencionado no Suda como pupilo e filho adotivo de Filóstrato II. Entre as várias obras de Filóstrato III estariam o texto Imagens. Aqui pode 6 Tivemos acesso a esse Léxico Bizantino digitalizado no site: <http://www.stoa.org/sol/>. Portanto, o primeiro Filóstrato mencionado no Suda é considerado como Filóstrato II e é referido como o segundo em idade no léxico. Já o segundo Filóstrato mencionado seria o mais velho dos três. 8 Abreviaremos o título da obra Vida de Apolônio de Tiana como VA e o título da Vida dos Sofistas como VS, conforme regras de abreviatura de nomes de autores e de obras clássicas utilizadas pelo Oxford Classical Dictionary. Já em relação aos nomes dos três Filóstratos chamaremos o nosso Filóstrato simplesmente de Filóstrato ou Flávio Filóstrato. O Filóstrato mais velho será tratado por nós como Filóstrato de Lemnos e o terceiro de Filóstrato III, a fim de evitarmos confusão. 9 Há estudiosos que o denominam Filóstrato, o ateniense, como Bowie (2004), e Filóstrato, o Antigo, como Ana Teresa Marques Gonçalves (2010). 10 Ver Anexos 12 e 13, esquemas genealógicos da Dinastia dos Severos. 7 CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 32 residir um erro no Suda em relação ao parentesco deste Filóstrato com o estudado por nós, já que no Proêmio da Parte II da obra Imagens, o autor se refere como sendo neto, por parte de sua mãe, de Filóstrato. Se não houver erro, ou mesmo omissão, em relação ao parentesco correto de Filóstrato III e Filóstrato II, então tudo indica que há um erro no Suda ao atribuir a autoria da obra Imagens também a Filóstrato II. Assim, se Filóstrato II não for o autor das Imagens, um Filóstrato IV, autor da segunda parte da obra Imagens e neto de Filóstrato II poderia existir.11 Contudo, acreditamos, como Ludo de Lannoy (1997, p. 2365), que o testemunho do léxico bizantino não possui tanta autoridade como as próprias obras do corpus.12 Concordamos também com outros estudiosos em que o Filóstrato III, mencionado no Suda como autor das Imagens, é neto de Filóstrato II, sendo o único outro Filóstrato citado por Filóstrato II na VS (DE LANNOY, 1997, p. 2415).13 A ser assim, o Filóstrato IV nunca teria existido. As informações biográficas sobre os Filóstratos fornecidas pelo corpus são mínimas. Para inferir quais seriam as obras do corpus escritas por Flávio Filóstrato, devemos fazer um exame minucioso das mesmas, baseado especialmente nas temáticas em comum e em informações que estudiosos da linguagem nos legaram. Acrescentamos ainda que a epigrafia nos traz importantes informações sobre os Filóstratos. Percebemos nesses testemunhos grande valor na busca de referências sobre nosso autor. Analisaremos, então, o que nos permite inferir a epigrafia, e depois, o que nos traz o próprio corpus filostratiano sobre os Filóstratos. 11 A existência de Filóstrato IV foi colocada em questão pela primeira vez no século XIX, com a interpretação de Schimdt (apud DE LANNOY, 1997), baseando-se na relação exposta pelo Suda de que Filóstrato III não seria neto de Filóstrato II e o autor da Parte II das Imagens se posicionar como neto do autor da primeira parte das Imagens, Flávio Filóstrato. Para Schimdt, então, seria possível que Filóstrato III fosse mesmo um sobrinho e filho adotivo de Filóstrato II casado com a filha deste, sua prima, sendo que desse casamento nasceu Filóstrato IV. Desta forma, Filóstrato IV seria neto por parte de mãe, como menciona o Suda, de Filóstrato II (FLINTERMAN, 1995, p. 11). Outros estudiosos antigos, como Müncher e Solmsen, também acreditam na possibilidade de o Nerviano, mencionado no Suda como sobrinho de nosso Filóstrato, ser um sobrinho de Filóstrato II, como menciona o léxico medieval, e ter-se casado com sua prima, sendo Filóstrato III o fruto desse casamento e neto, por parte de sua mãe, de Filóstrato II. Nesse caso, o Suda teria errado o parentesco entre Filóstrato II e Filóstrato III (DE LANNOY, 1997, p. 2417). 12 Mesmo diante dessa afirmação, De Lannoy (1997, p. 2391) conclui que muitas das informações do Suda sobre Filóstrato II estão corretas se comparadas com outras fontes. São dados bem exatos, provavelmente, fruto de fontes antigas. 13 VS, II, 617, 623, 624, 625, 627, 628. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 33 Segundo a documentação epigráfica catalogada por Bernadette Puech (2002, p. 377 e 382), temos referências da cultura material para a existência de um ou, talvez, de dois Filóstratos, ambos de nome Lúcio Flávio Filóstrato.14 Em relação ao primeiro Filóstrato referido pela documentação epigráfica, e que segundo as indicações parece ser o Filóstrato que estudamos, temos as seguintes referências: uma estátua encontrada em Olímpia (estátua do sofista Flávio Filóstrato) e uma estátua encontrada em Eritrai (estátua de Capitolino, filho do sofista Flávio Filóstrato). 15 Filóstrato é ainda mencionado em vários catálogos do pritaneu de Atenas.16 Já sobre a terceira estátua, não temos certeza se foi para nosso Filóstrato ou para um homônimo, possivelmente seu neto ou outro parente bem próximo, talvez o mesmo Filóstrato mencionado na VS como Filóstrato de Lemnos (VS, II, 617, 623, 624, 625, 627, 628). Na inscrição da primeira estátua, de Olímpia, está a seguinteΝfraseμΝ“ÀΝἐoaΝόortuna,Ν segundo a decisão do Conselho Olímpico, o sofista Flávio Filóstrato de Atenas, sofista, a mais ilustreΝ pátria,Ν elevouΝ aΝ estátuaέ”Ν SegundoΝ RafaelΝ UríasΝ εartínezΝ (βίίθ,Ν pέΝ 4ηθ),Ν eraΝ comumΝ que os sofistas recebessem homenagens nas cidades gregas, o que pode ser visto através de inscrições gregas da época imperial; isso significava o reconhecimento de seus postos públicos e cargos políticos. Portanto, podemos interpretar o erguimento desta estátua como manifestação de reconhecimento do papel que Flávio Filóstrato teve para Atenas como sofista, função que aparece na inscrição e, talvez, de alguma função que ele tenha desempenhado em Olímpia. Na segunda estátua, erguida provavelmente entre 240 e 248 na cidade de Eritrai, na Jônia, temos a inscrição: À Boa Fortuna, ao filho do sofista Flávio Filóstrato e Aurélia Melitine, admirável mulher, Lúcio Flávio Capitolino, parente, irmão e tio de senadores, seu pupilo e seu benfeitor, o distinto Conselho lhe eleva a estátua, por decisão do Presidente da Boulé, Aurélio Eutychiano. 14 Bernadette Puech cataloga e analisa textos epigráficos da documentação material referentes a sofistas gregos da época imperial romana no livro Orateurs et Sophistes Grecs dans les inscriptions d’Époque Imperiale (2002). 15 Segundo PaulΝVeyneΝ(βίίλ,ΝpέΝ1ίη),Ν“[...] as estátuas e honras públicas eram os títulos de nobreza da época [έέέ]έ” Como veremos, portanto, as estátuas reiteram a pertencença de Flávio Filóstrato às camadas sociais abastadas e suas relações sociais nesse meio. 16 Pritaneu era o local onde se reuniam os pritanes ou representantes dos demos investidos de poderes temporários. Harvey (1998, p. 415) informa que nas principais cidades da Grécia Antiga, o pritaneu era uma espécie de “salãoΝdaΝcidade”,ΝconsagradoΝàΝdeusaΝώéstiaέΝσesse local ficava a lareira do Estado e era lá que se acolhiam visitantes ilustres, como embaixadores, por exemplo. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 34 Na primeira estátua, de mensagem pouco precisa, podemos notar o valor atribuído a Filóstrato por uma das mais importantes cidades da Grécia, Atenas. Embora a mensagem seja muito curta, Puech (2002, p. 378) informa que ela é atribuída pelos estudiosos ao mais famoso dos Filóstratos, o autor da VA e da VS, embora o Flávio Filóstrato mencionado possa ser um parente homônimo do nosso Filóstrato. Além disso, essa estátua confirma a informação do Suda de que Filóstrato foi sofista em Atenas e poderia confirmar a hipótese de Münscher, Glen Bowersock (apud PUECH, 2002, p. 378) e Flinterman (1995, p. 26), de que ele se estabeleceu em Atenas após a morte de Júlia Domna. Em relação à segunda estátua, Puech (2002, p. 379) indica que, devido à sua datação e às probabilidades sobre a idade do Filóstrato citado, não há dúvidas de que o pai de Capitolino é o Filóstrato autor de VA e VS. Portanto, a partir desta estátua podemos conjecturar que o nosso Filóstrato teve pelo menos dois filhos. Também sabemos, por meio dessa estátua, que se tratava de uma família que fazia parte da ordem senatorial municipal local,ΝeramΝmembrosΝdaΝΒ υ – Boulé.17 Além disso, percebemos que o filho de Filóstrato, como típico membro dos grupos provinciais privilegiados do Império Romano, participava do evergetismo municipal, recebendo essa estátua por suas benfeitorias à cidade. Também não devemos deixar de perceber que novamente o termo sofista ( φ – sofistes) aparece ao referir a Flávio Filóstrato, evidenciando, segundo nossa interpretação, que essa sua função se destacava na cidade. Outro dado importante diz respeito à localização dessa segunda estátua. A cidade de Eritrai, na região da Jônia, parece ter sido de fato uma cidade em que Flávio Filóstrato manteve relações, pois aparece em uma de suas cartas, onde ele escreve: Para Diodoro: Nos jardins de Eritrai se cultivam romãs sem sementes que dão um vinho delicioso, igual ao das mais excelentes cepas. Colhi dez dessas romãs para ti, mandarei; quando comeres podes usá-las como vinho e quando beberes podes usá-las como acompanhamento (Carta 45). Puech (2002, p. 380) acredita que Filóstrato teve nessa cidade grega uma propriedade que ele provavelmente adquiriu por seu casamento e de onde colheu as romãs que enviou ao 17 Os membros dos senados, ou conselhos, municipais da Grécia romana eram chamados de bouleutas ( υ υ Ν– bouleutes),ΝcomoΝreferênciaΝàΝantigaΝΒ υ / – Boulé, cujo correspondente em latim era Curia. Esta posição seria correspondente aos decuriões ou curiales, das partes ocidentais do Império Romano. Estes bouleutas, como nos informa Maud Gleason (2006, p. 233), eram ex-magistrados de riqueza hereditária, certamente no topo da escola social das cidades gregas. Preferimos usar aqui o termo Boulé ao referir-se a esse órgão, por ser este o termo que aparece nas inscrições que se referem a Filóstrato, mas encontramos em obras historiográficas o termo conselho e raramente senado. Mais informações sobre estes termos e seus respectivos significados dentro das posições políticas do Império Romano, ver SILVA, E. M., 2012. Ν CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 35 amigo. A aquisição da propriedade via casamento parece ter sido interpretada pela epigrafista uma vez que a esposa de Filóstrato, Aurélia Melitine, é mencionada na estátua, o que leva a pensarmos que talvez ela mantivesse vínculos importantes com a cidade, a ponto de aparecer também na inscrição dedicada ao seu filho pela Boulé de Eritrai. A inscrição em Eritrai, no entanto, indica que foi seu filho que ocupou cargos políticos nessa cidade e não o nosso sofista. Uma terceira estátua compõe o quadro epigráfico dos Filóstratos. Trata-se da estátua encontrada em Heféstia (ilha de Lemnos) de Lúcio Flávio Filóstrato, sacerdote de Hefestos, erguida para o sacerdote máximo, P. Élio Ergocharés de Prospalta, provavelmente entre 205 e 255. Puech se arrisca em datar mais precisamente entre 250 e 255.18 A estátua traz a seguinte inscrição: O sacerdote de Hefestos, deus epônimo da cidade, Lúcio Flávio FILÓSTRATO, elevou a estátua do descendente do sacerdote máximo Publio Élio Metrophanes de Prospalta, Públio Élio Ergochares de Prospalta, seu sobrinho, antigo ginasiarca, arconte epônimo, estratego e agoranome, que não negligenciou em sua pátria nenhuma magistratura, nem nenhum serviço, por sua dedicação a ela. Por decreto da Boulé e do Povo. Pelos cálculos e idade, Puech (2002, p. 383) acredita que o Filóstrato mencionado na terceira estátua possa ser o estudado por nós. Porém, pela datação da estátua, a estudiosa afirma que pode também ser outro Filóstrato, que ela supõe como neto de nosso autor, já que acredita que nosso Filóstrato na ocasião talvez já não guardasse laços tão estreitos com seu local de nascimento, Lemnos, onde foi erguida a estátua. Algo interessante acontece na inscrição da estátua. O nome de Filóstrato aparece em letras maiores que o nome do próprio homenageado em uma linha inteira, o que leva Puech (2002, p. 383) a supor que isso seja uma referência a toda a família dos Filóstratos e sua importância local. Essa estátua nos mostra que nosso Filóstrato ou um parente homônimo seu foi sacerdote em Lemnos. De Lannoy (1997, p. 2417) não exclui a hipótese de o Flávio Filóstrato dessa inscrição ser o autor da VA e de ele ter se tornado sacerdote em idade avançada. Mas por tal inscrição não ser datada e não conhecermos o nome completo dos possíveis Filóstratos, que podiam ser homônimos do autor que estudamos, esta estátua pode se referir a outro deles, que não o autor da VA. Novamente podemos perceber aqui a família de Filóstrato 18 O estudo para a datação da estátua foi feito por Puech (2002, p. 382-383) baseando-se em outras informações sobre o homenageado. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 36 envolvida em funções que cabiam aos grupos privilegiados do Império. Já que, segundo John Scheid: [...] o sacerdócio não era uma questão de vocação (pelo menos, não nos cultos tradicionais), mas de estatuto social. Como os atos religiosos eram celebrados em nome de uma comunidade, e não em nome de indivíduos, só aqueles que estavam destinados, pelo seu nascimento ou pelo seu estatuto, a representá-la, exerciam as funções sacerdotais (SCHEID, 1992, p. 53). [...] na vida comunitária do povo romano, o que determinava essa distribuição eram as regras tradicionais da vida pública. Portanto, as funções sacerdotais eram confiadas a todos aqueles que eram, ou tinham sido, regularmente eleitos como magistrados ou sacerdotes do povo (SCHEID, 1992, p. 54). A função de sacerdote não parece ter sido incomum aos sofistas da Segunda Sofística. Sabemos que Apuleio ocupou o cargo de sacerdote em Cartago (APULEIO, Flórida, XVI, 38-39) e muitos sofistas da VS também, como Favorino (VS, I, 490), Evodiano de Esmirna (VS, II, 596), Apolônio de Atenas (VS, II, 601) e Heraclides da Lícia (VS, II, 612). É interessante que estes sofistas parecem ter sido sacerdotes já em idade avançada, o que fica claro na menção a Apolônio de Atenas como sacerdote na VS. Esta nossa observação iria ao encontro da tese de De Lannoy, exposta acima, sobre a possibilidade de nosso Filóstrato ter-se tornado sacerdote em Lemnos quando idoso. Além disso, não devemos descartar os conhecimentos religiosos que Filóstrato demonstra ter ao escrever a VA em relação à possibilidade de ele ter de fato sido um sacerdote. Nesse texto de sua autoria, muitos templos são detalhados, ritos são comentados e deuses são mencionados. Tal conhecimento mostra, a nosso ver, um interesse muito grande do escritor desta obra pela religiosidade antiga. Continuando na tentativa de definir qual o Filóstrato por nós estudado, agora analisaremos o que nos informa o corpus filostratiano. Como já mencionamos, a VS apresenta a existência de outro Filóstrato, referido nesse documento como Filóstrato de Lemnos, mas sem menção ao parentesco com o autor das biografias. Certamente Filóstrato de Lemnos era mais novo que Flávio Filóstrato, mostrado com vinte e quatro anos quandoΝseΝapresentaΝaoΝimperadorΝἑaracalaμΝ“σoΝentanto,ΝapósΝesseΝ episódio, a Filóstrato de Lemnos, outorgou isenção de serviços públicos por uma declamação quandoΝestavaΝcomΝvinteΝeΝquatroΝanos”Ν(VS, II, 623). Uma menção interessante sobre Filóstrato de Lemnos é feita quando o autor da VS está tratando da biografia do sofista Eliano e comenta que certa vez esse sofista encontrou CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 37 Filóstrato de Lemnos. Na passagem, Flávio Filóstrato trata de uma breve conversa entre Eliano e Filóstrato de Lemnos, mostrando que sabia bem o que Filóstrato pensou e disse sobre o assunto: Encontrou-o Filóstrato de Lemnos certa ocasião, tendo, entretanto, nas mãos um escrito que lia com voz irada e sonora, e perguntou-lhe de que se ocupavaνΝ eΝ eleΝ respondeuμΝ “ElaboreiΝ umΝ discurso de acusação contra Ginmide – pois assim chamo ao tirano que acaba de ser justiçado, porque cobriuΝRomaΝdeΝtiraniasΝdeΝtodoΝtipoέ”ΝEΝreplicouΝόilóstratoμΝ“– Admirar-teeiΝseΝacusaisΝumΝtiranoΝvivoέ”ΝPoisΝatacarΝumΝtiranoΝvivoΝéΝcoisaΝdeΝhomensΝ fortes, e insultá-lo quando morto, é coisa de qualquer pessoa (VS, II, 624). Pela maneira como Flávio Filóstrato relata o que foi conversado entre Filóstrato de Lemnos e Eliano parece-nos que ambos, o autor da VS e Filóstrato de Lemnos, tinham certa proximidade. Filóstrato de Lemnos é também mencionado como aluno do sofista Hipódromo daΝ TessáliaΝ naΝ biografiaΝ desseΝ sofistaμΝ “AΝ όilóstratoΝ deΝ δemnos,Ν seuΝ discípulo,Ν quandoΝ naΝ idade de vinte e dois anos, ia correr o risco de um discurso improvisado, lhe ofereceu mil conselhosΝparaΝaΝarteΝdoΝelogio,ΝsobreΝoΝqueΝdeveriaΝdizerΝeΝoΝqueΝnãoΝdeveria”Ν(VS, II, 617). O pai do biógrafo não é mencionado nenhuma vez na VS, embora ela trate de uma biografia de sofistas e o Suda o mencione também como sendo sofista. Acreditamos que a ausência de tal menção pode se dever ao fato de o próprio Filóstrato no final da obra escrever que não iria tratar de sofistas que são seus amigos, chegando, porém, a mencionar de maneira especial e um pouco elogiosa a Filóstrato de Lemnos, tratando-o apenas como seu amigo. Sobre Filóstrato de Lemnos e a perícia deste homem frente aos tribunais, no discurso político e na composição de escritos, na declamação, assim como em sua maestria no discurso improvisado; sobre Nicágoras de Atenas, que foi coroado arauto do templo de Elêusis, e sobre o grau de perfeição em memória e asseio a que chegou Apsines da Fenícia, sobre isto, não deve ser eu quem escreva, pois desconfiarão de mim, pensando que exagerei seus méritos porque eram meus amigos (VS, II, 628). A ausência de menção ao pai do autor na VS pode ainda nos indicar que há um erro no Suda quando este léxico menciona o pai de Flávio Filóstrato também como escritor sofista. Sendo assim, como De Lannoy (1997, p. 2395), podemos supor que o pai de nosso Filóstrato não foi um sofista. Não há referências em nenhum documento chegado a ter sido o pai de nosso autor também sofista e escritor. Na segunda parte da obra Imagens, composta em duas partes por dois autores diferentes, o autor de nome Filóstrato declara ter-se inspirado em uma obra homônima, escrita pelo seu avô materno Filóstrato. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 38 Existe um livro de descrições de pinturas cujo autor, o pai de minha mãe, leva o mesmo nome que eu, o livro está escrito em pura língua ática e é cheio de beleza e vigor. Temos a intenção de seguir seu caminho [...] (Imagens, Livro III, Proêmio). Como já tratamos, a informação sobre o parentesco de avô e neto entre os dois autores das Imagens causou muitas discussões dos estudiosos, que chegaram a trabalhar as hipóteses de que ou a informação do Suda estava equivocada ou houve um Filóstrato IV. As demais obras do corpus não mencionam nenhum outro Filóstrato. Segundo as informações do Suda, o Filóstrato por nós estudado foi o segundo escritor com este nome. Mas, se cruzarmos essa informação com a epigrafia e com as referências do corpus, não há menções a nenhum Filóstrato escritor antes do nosso, assim como não há menções ao fato de seu próprio pai ter sido escritor. É possível que depois dele, tenha havido um ou dois escritores com o mesmo nome que podem ter sido, respectivamente, um filho de seu sobrinho e seu neto. Três Filóstratos conhecidos como escritores são mencionados no Suda e, possivelmente, um quarto pode ter existido segundo interpretações de alguns estudiosos que cruzam as informações do Suda com as do Proêmio da Parte II da obra Imagens. A única certeza que temos em relação à autoria da várias obras é que o nosso Filóstrato escreveu a VA e a VS, pois ele mesmo menciona na VS que a VA é de sua autoria, ao tratar da impossibilidade de Apolônio ter mantido relações amorosas com uma mulher. De fato, Eumelo pintou uma Helena de tal qualidade para figurar erigida no fórum romano. Diz que, assim como outros, Apolônio de Tiana também se apaixonou por ela, e que ela recusou os demais, mas manteve com Apolônio uma relação amorosa pelo desejo de ter uma descendência perfeita, pois ele, mais que ninguém, possuía algo de divino. Por muitas razões isso é inacreditável, como está exposto claramente em meus escritos sobre Apolônio de Tiana (VS, II, 570). A data de nascimento de Flávio Filóstrato situa-se entre 164 e 174 para Flinterman (1995, p. 15), que se baseia em uma menção da VS a nosso sofista ter estudado retórica pelas instruções de Antípatro de Hierápolis. Já De Lannoy (1997, p. 2372) pondera que, se acreditarmos que o Filóstrato de Lemnos citado na VS seja o neto de nosso Filóstrato, a data de nascimento deste seria no máximo 150/151; esse cálculo é feito por meio da idade de Filóstrato de Lemnos, que teria pronunciado um discurso aos vinte e quatro anos na frente do imperador Caracala por volta de 212 (VS, II, 623). Nesse sentido temos uma discussão que De Lannoy (1997, p. 2373) nos apresenta: Müncher situa o nascimento de Filóstrato entre 164 e 174, Schmid em 170. Solmsen, embora CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 39 tenha declarado a incerteza sobre essa data, aponta o ano de 165 e Lensky o intervalo de 160 a 170. Bowie (2009, p. 19) também concorda com a data de 170 para nascimento de Filóstrato. De Lannoy, revendo suas afirmações, concorda que se nosso Filóstrato tivesse nascido por volta de 150/151, seria muito idoso por ocasião da escrita da VS, com cerca de setenta e cinco a oitenta anos, já que ele considera a VS como obra de escrita posterior a VA.19 Por meio de estudos sobre os demais sofistas mencionados na VS, que tiveram contatos diretos com Filóstrato, De Lannoy (1997, p. 2379) acredita que nosso Filóstrato nasceu por volta de 160/170, como a maioria dos estudiosos, e não é avô do Filóstrato de Lemnos mencionado na VS, estabelecendo com este outro tipo de parentesco ou apenas uma amizade, como Filóstrato mesmo diz (VS, II, 628). Achamos pouco provável que a relação entre o Filóstrato autor da VS e o Filóstrato de Lemnos fosse apenas de amizade porque ambos receberam o mesmo nome de família, e eram de Lemnos. Acreditamos que nesse ponto, é provável que o Suda nos traga uma informação correta, havendo um parentesco entre Filóstrato I e II e Filóstrato III, se considerarmos esse segundo como o Filóstrato de Lemnos mencionado na VS. Mas ainda permaneceria incerto se tal parentesco era avô e neto ou, como refere o Suda, tio e sobrinho. Diante da discussão apresentada, concordamos com a datação que situa o nascimento de nosso autor entre 160 e 170. É impossível calcular com certeza a data de nascimento, mas apontar um período provável, por meio do estudo de seu meio e escrita de suas obras, faz-se importante para conjecturarmos melhor sobre a situação de Filóstrato na época de escrita da VA, a própria datação possível de escrita da VA e, especialmente, os acontecimentos históricos do período em relação ao nosso objeto, tentando nos aproximar das prováveis intenções de elaboração do texto.20 Assim, ao situar o nascimento de Flávio Filóstrato no intervalo 160/170 estamos aceitando a forte possibilidade de Filóstrato de Lemnos não ser seu neto, pois em 212, quando este tinha vinte e quatro anos (VS, II, 623), Flávio Filóstrato teria por volta de quarenta a cinquenta anos, não parecendo razoável que tivesse um neto de vinte e quatro anos. Antes de analisar propriamente a trajetória de nosso autor, cabe apresentar algumas considerações finais sobre os Filóstratos. De acordo com o Suda, temos três autores de nome Filóstrato: Filóstrato I (artigo 422 do Suda, pai do nosso Filóstrato), Filóstrato II, (artigo 421 do Suda, nosso autor), Filóstrato III (artigo 423 do Suda, pupilo e filho adotivo de nosso autor, filho biológico de um sobrinho de Filóstrato II). Além desses Filóstratos, os estudiosos 19 Para nós, a VA certamente foi escrita após 215, ano em que Caracala constrói um templo para Apolônio em Tiana, pois o mesmo templo é mencionado na VA (VA, I, 5) e, provavelmente, também depois de 217, ano da morte de Júlia Domna. 20 Apontaremos um arco temporal possível para a escrita da VA no Capítulo 2. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 40 têm trabalhado a possível existência de um quarto Filóstrato, chamado de Filóstrato IV, escritor da segunda parte do livro Imagens. Não podemos afirmar a existência real de Filóstrato I, mencionado no Suda como escritor, e achamos sua realidade pouco provável. Como De Lannoy (1997, p. 24) acreditamos que, se o pai de nosso biógrafo tivesse sido mesmo um escritor, certamente teria influenciado o filho, e este faria algumas referências a ele em suas obras.21 Baseando-nos nas informações do corpus documental filostratiano de que houve dois, e talvez três, Filóstratos escritores, trabalhadas juntamente com os estudos que já foram desenvolvidos sobre a questão filostratiana; especialmente em relação à impossibilidade de Filóstrato de Lemnos ser neto de Flávio Filóstrato e as autorias das obras, para nós, houve, pelo menos e provavelmente, três Filóstratos no mundo das letras greco-romano: Flávio Filóstrato, Filóstrato de Lemnos e Filóstrato, o jovem. Acreditamos que chegaram até nós obras de apenas dois deles: Flávio Filóstrato e Filóstrato, o jovem.22 Talvez o Filóstrato de Lemnos mencionado na VS seja o Filóstrato III mencionado no Suda. Nesse caso, o léxico medieval estaria errado sobre a autoria das Imagens, creditada a ele. Talvez, ainda, Filóstrato, o jovem da obra Imagens, seja o Filóstrato III mencionado no Suda. Mas, nesse caso, este documento do corpus traria uma informação equivocada em relação ao grau de parentesco entre ele e Filóstrato II, o que achamos pouco provável, pois não percebemos nenhuma intenção possível para que o Filóstrato escritor da segunda parte das Imagens se apresente como neto e não como sobrinho do autor da primeira parte da obra. Portanto, achamos mais provável haver erros de informações no Suda. Certamente há erros nas informações sobre os Filóstratos que chegaram até nós. Esses erros são comuns diante do tempo que nos separa dos escritores da Antiguidade e possíveis interesses históricos nas menções a esses autores ao longo do tempo. Mais importante do que termos uma posição final sobre a questão filostratiana, o que talvez nunca seja possível, pelo menos a julgar pelas informações que temos atualmente, é traçar aspectos da trajetória do Filóstrato que estudamos, após nos posicionarmos sobre qual deles é nosso autor. 21 De Lannoy (1997, p. 2395) ainda nos indica que no Suda há um problema em relação a estes dois primeiros Filóstratos mencionados. Filóstrato I é mencionado como filho de Vero e Filóstrato II como filho de Filóstrato, também chamado Vero. Ou seja, ao mesmo tempo que indicam Filóstrato I como Vero (no artigo 421), também referem-se a ele como filho de Vero (no artigo 422). Assim, neste caso, teríamos um só autor classificado no Suda como dois autores diferentes, mas mostrando um problema na forma de classificar a relação destes Filóstratos com o nome de Vero. Portanto, temos aqui mais um elementos para acharmos que o pai de nosso Filóstrato não é Filóstrato I, não sendo um escritor conhecido. Também acreditamos, neste sentido, que as obras mencionadas no Suda como de autoria de Filóstrato I são de Flávio Filóstrato. 22 Como veremos no tratamento documento feito neste capítulo. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 41 Antes de traçar propriamente sua trajetória, cabe concluir que a existência de mais de um Filóstrato sofista na mesma família nos leva a perceber que a posição de sofista era importante na sociedade da época, sendo passada dentro da mesma família, o que evidencia que havia uma tradição em torno da carreira de sofista. 1.2 A trajetória de Flávio Filóstrato Para analisar aspectos da trajetória de Filóstrato, partiremos da perspectiva do sociólogo Pierre Bourdieu sobre aspectos sociobiográficos, uma vez que verificamos que ela é aplicável na leitura de nossa documentação. Neste sentido, refletiremos sobre a trajetória de Filóstrato em relação aos limites de seu espaço social, pois, para Bourdieu (2005, p. 292), é em relaçãoΝaoΝespaçoΝsocialΝ“queΝseΝdeterminamΝemΝ cadaΝmomentoΝ oΝsentidoΝeΝoΝvalorΝ dos acontecimentosΝ biográficosέ” O espaço social de Filóstrato, seguindo as orientações de ἐourdieu,ΝseráΝcompreendidoΝcomoΝ“espaçoΝdeΝforçasΝestruturadoΝqueΝmoldaΝaΝcapacidadeΝde açãoΝeΝdeΝdecisãoΝdeΝquemΝdeleΝparticipa”Ν(εARTIσS,Νβίί4,ΝpέΝθ4)έ23 Portanto, pretendemos traçar características biográficas de nosso autor, mas também situá-lo dentro de um espaço social de circulação. Visando compreender as disposições que levam Filóstrato a produzir suas representações, em especial a de Apolônio tal como nos apresenta, utilizar-nos-emos do conceito de habitus de Bourdieu. O habitus de Bourdieu é o definidor da mediação entre as dimensões objetivas e subjetivas nas representações e práticas de um sujeito. Para Bourdieu (1983, p. 65) o habitus seria a estruturação da subjetividade conforme as posições do agente, com disposições flexíveis e adaptáveis a cada conjuntura específica. Nesse sentido, traçar a trajetória e posições de Filóstrato faz-se fundamental nesta pesquisa, a fim de analisarmos sua incorporação da estrutura social, e os aspectos de sua posição social que modelaram suas formas de ação e suas representações de mundo. 23 Um dos conceitos mais importantes trabalhado por Bourdieu é o de campoέΝ“τΝconceitoΝdeΝcampoΝéΝutilizadoΝ por Bourdieu, precisamente, para referir-se a certos espaços de posições sociais nas quais determinado tipo de bem é produzido, consumidoΝeΝclassificado”Ν(στύUEIRAνΝNOGUEIRA, 2009, p. 31). Em nossa pesquisa não utilizaremos o conceito de campo, pois compreendemos que Bourdieu ao defini-lo estava tratando especialmente da constituição de microcosmos sociais com relativa autonomia, próprios das sociedades modernas. O próprio ἐourdieuΝ (1λλθ,Ν pέΝ 14ι)Ν observaΝ queΝ “emΝ muitasΝ sociedades antigas e ainda em muitas sociedades précapitalistas, os universos sociais [chamados pelo teórico de campos] que entre nós são diferenciados (como a religião, a arte, a ciência) são ainda indiferenciados, de modo que percebemos aí uma polissemia e uma multifuncionalidade (um termo que Durkheim emprega com frequência em Formas elementares da vida religiosa) de condutas humanas que podem ser interpretadas ao mesmo tempo como religiosas, econômicas, estéticasέ” Portanto, não utilizaremos o conceito de campo na análise de nossa documentação e da trajetória de Flávio Filóstrato. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 42 Segundo Whitmarsh (2007, p. 32), o cognome, ou nome gentilício Flávio mostra que Filóstrato era cidadão de Roma. Filóstrato e sua família eram membros da aristocracia que governava o Império Romano, sendo Filóstrato nascido na Grécia, mas também possuindo nomeΝ deΝ cidadãoΝ romanoΝ e,Ν dessaΝ maneira,Ν seΝ beneficiandoΝ “de vantagens combinadas de independênciaΝlocalΝeΝdeΝsolidariedadeΝcoletivaΝasseguradaΝporΝRomaΝ[έέέ]”Ν(ἑARRIÉ,Νβί11,Ν p. 20). Na VA (IV, 32) Filóstrato nos deixa pistas sobre sua posição em relação aos grupos privilegiados de que fazia parte. Em uma passagem expressiva dessa biografia, um jovem espartano está sendo acusado em Esparta de não se interessar pelos assuntos públicos, apenas por seus barcos e pela navegação, mas o jovem vinha de uma família de homens públicos e, segundo Apolônio, procedendo-se dessa forma atentava contra os costumes. Apolônio o aconselha e o convence a se interessar pelos assuntos públicos e a acusação é retirada. Pela análise da passagem acima, podemos acreditar que, para Filóstrato, cabia aos jovens das famílias abastadas do Império darem continuidade às funções de seus ancestrais, o que é expresso pelos conselhos de seu biografado ao jovem. Evidências documentais nos levam a apontar que ele viveu parte da juventude na sua terra natal, a ilha de Lemnos. Ele mesmo afirma ser dessa ilha na Carta 70 de sua coleção de Cartas: Para Cleofonte e Gaio: O assunto sobre o qual me escrevestes, já está resolvido em parte, e o resto o estará em breve; pois ainda sou de Lemnos e também considero Imbro como minha pátria, de modo que, com boa vontade, entrelaço as duas ilhas entre si, e ambas comigo (Carta 70). Temos indicações de que ele teve, ao longo da vida, fortes ligações com a Ilha de Lemnos, mencionando-a em várias obras que fazem parte do corpus e que para nós são sem dúvida de autoria do nosso Filóstrato. Na própria carta acima citada, a de número 70, embora desconheçamos quem são Cleofonte e Gaio, seus destinatários, podemos perceber que Filóstrato se preocupa com sua terra natal, mesmo não mais vivendo lá. Podemos notar que na VS, Filóstrato se refere a alguns incidentes na vida do sofista EscopelianoΝ naΝ ilhaΝ eΝ mostraΝ certosΝ conhecimentosΝ sobreΝ umΝ portoΝ daΝ mesmaμΝ “EstavamΝ comendo uma vez em Lemnos, sobre um grande carvalho, oito ceifadores, estavam próximos do chamado Chifre da ilha, esteΝlugarΝéΝumΝportoΝqueΝseΝcurvaΝparecendoΝfinosΝchifres”Ν(VS, I, 515). Também na VA, na obra Heroicos e no Ginástico, Lemnos é mencionada. Na VA (VI, 27), o narrador, que é o próprio autor Filóstrato, declara que conheceu um sátiro em Lemnos. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 43 Na obra Heroicos, Filóstrato menciona lembranças da ilha na voz de um dos personagens (Heroicos, 8), articula passagens de personagens da Guerra de Troia por Lemnos e cita a ilha como sendo uma terra poderosa na cura de enfermidades (Heroicos, 28). O autor menciona também lendas sobre a história da ilha (Heroicos, 28, 53). No texto Ginástico (3), outra obra do corpus, Filóstrato registra um combate de Jasão durante a parada do navio dos argonautas em Lemnos, contado nas lendas em torno do mito de Jasão e os argonautas. E no diálogo Nero (6), Lemnos é mencionada ao tratar da voz do imperador Nero. Escritores de períodos posteriores, como Eunápio de Sardes (Vidas de filósofos e sofistas, 354) e Sinésio de Cirene, mencionam nosso Filóstrato como sendo de Lemnos (DE LANNOY, 1997, p. 2384). Assim, podemos conjecturar com certa autoridade que Filóstrato, se não nasceu na ilha, realmente tinha fortes ligações com ela. Dessas fortes ligações pode ter resultado a segunda estátua catalogada por Puech (2002) como uma oferta de Filóstrato, já em idade avançada, a um cidadão de Lemnos. A ilha de Imbro também aparece mencionada como pátria de Filóstrato na Carta 70.24 Sabemos que Imbro ficava na costa noroeste do Mar Egeu, muito próxima a Lemnos (AITKEN; MacLEAN, 2002, p. 121). Filóstrato deve ter ocupado cargos em Imbros para considerá-la como sua pátria na carta, ou talvez vivesse nela quando a escreveu. Essa carta também nos indica que cidadãos de Lemnos pediram a Filóstrato que os ajudasse em um assunto e ele, ao que parece, mesmo não vivendo mais na ilha de Lemnos, iria considerar o pedido de ajuda por ser de Lemnos e ter essa ilha, a par de Imbros, como sua pátria. Podemos acreditar que Filóstrato estudou retórica em Atenas. Como já mencionamos, de acordo com o Suda, foi um ativo sofista, primeiramente em Atenas e depois em Roma. Além disso, Filóstrato foi chamado de ateniense por escritores posteriores, como Hierocles25 e Eusébio de Cesareia26 (BOWERSOCK, 1969, p. 04). Certamente Filóstrato foi aluno de retórica do sofista Próclo de Naucratis, a quem dedicou uma parte dos escritos da VS, declarando conhecê-lo bem por ter sido um de seus mestres. Próclo, conforme o próprio Filóstrato indica, viveu em Atenas, onde, provavelmente, foi professor de nosso biógrafo: “Vou incluir na minha relação Próclo de Naucratis, homem que conheço bem, pois foi um de 24 Ver, novamente, Anexo 11, mapa do antigo Mar Egeu, localizando Lemnos e a ilha vizinha de Imbro. Político do final do século III e início do IV, escreveu o primeiro texto comparando Apolônio de Tiana com Jesus Cristo, baseado nas descrições de Filóstrato sobre Apolônio. 26 Escritor cristão do século IV, escreveu a obra Tratado de Eusébio, filho de Panfílio, contra a Vida de Apolônio de Tiana escrita por Filóstrato, ocasionando o paralelo entre esse e Cristo, que chamaremos aqui como Resposta a Hierocles, seguindo a tradução feita pela edição que estamos usando (Harvard University Press, Loeb Classical Library), na qual ataca a comparação de Apolônio com Jesus Cristo feita por Hierocles. 25 CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 44 meusΝ mestres”Ν (VS,Ν II,Ν θίγ)έΝ EmΝ outraΝ passagem,Ν όilóstratoΝ mencionaΝ queΝ PrócloΝ “[έέέ]Ν preferiu a paz em Atenas, lançou-seΝaoΝmarΝemΝsegredoΝeΝaliΝpassouΝsuaΝvida”Ν(VS, II, 603). Alguns autores, como Solmsen (1940), Bowersock (1969) e De Lannoy (1997), defendem que Filóstrato também foi aluno do sofista Antípatro de Hierápolis. Antípatro foi preceptor de Geta e Caracala, filhos de Septímio Severo, os referidos autores defendem que foi Antípatro que introduziu Filóstrato na corte severiana. Contudo, na VS Filóstrato não afirma diretamente que foi aluno de Antípatro, apenas o elogia muito, além de mencionar dados sobre sua vida e trabalho junto à corte severiana. Os estudos que aceitam Filóstrato como aluno de Antípatro baseiam-se em uma passagem da VS que mostra certa proximidade entre Filóstrato e Antípatro, mas, para nós, não é suficientemente conclusiva essa passagem queΝéΝaΝseguinteμΝ“όoiΝnomeadoΝpreceptorΝdosΝfilhosΝde SeveroΝeΝ“preceptorΝdosΝdeuses”,ΝeraΝ comoΝlheΝchamávamosΝaoΝcelebrarΝsuasΝatuações”Ν(όIδÓSTRATτ,ΝVS, II, 607). Bowersock (1969, p. 05) menciona que além de Próclo de Naucratis e Antípatro de Hierápolis, Filóstrato também foi aluno dos sofistas Damiano de Éfeso e Hipódromo da Tessália. Novamente sobre Damiano de Éfeso, Filóstrato não declara textualmente que foi seu aluno, mas conta, mostrando entusiasmo, que o visitava quando já idoso. Permitia que os que fossem a Éfeso por causa de sua fama o visitassem; também me recebeu em uma visita, uma primeira vez, depois uma segunda e uma terceira, e vi um homem que lembrava ao cavalo de Sófocles, pois parecia vagaroso por causa da idade, mas recuperava o ímpeto juvenil quando tratava de questões interessantes (VS, II, 606). Flávio Filóstrato não declara explicitamente ter sido aluno de Hipódromo da Tessália, mas elogia o sofista e diz tê-lo ouvido declamar. Filóstrato escreve também que Hipódromo foi professor de Filóstrato de Lemnos, o que nos faz perceber que seria difícil Hipódromo ter sido também professor de nosso autor, devido à diferença de idade entre os dois Filóstratos. Sobre Hipódromo, Filóstrato escreve: [...] nós acreditávamos que íamos ouvi-lo fazer um discurso composto como resposta ao rumor suscitado pelo que ali se dizia, mas sem dizer nada ofensivo, fez um encômio do decoro da linguagem, começando pelo pavão real, cujas plumas se abriam com os elogios (VS, II, 617). A Filóstrato de Lemnos, seu discípulo, quando na idade de vinte e dois anos, ia fazer um discurso improvisado, ofereceu mil conselhos para a arte do elogio, sobre o que deveria e o que não deveria dizer [...] (VS, II, 617). CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 45 Portanto, a única pessoa que Filóstrato de fato menciona ter sido seu professor é Próclo de Naucratis. Os dados sobre Flávio Filóstrato, como podemos perceber, são poucos e, a nosso ver, estudiosos, como Solmsen (1940), Bowersock (1969) e De Lannoy (1997) forçam a interpretação de comentários que ele faz na VS sobre seus mestres. Pela documentação epigráfica, já vimos que Filóstrato era membro de uma rica família da aristocracia grega. Embora Filóstrato não mencione o que de fato estudou, sabemos que recebeu a paideia dos grupos privilegiados de sua época, que recebiam lições de oratória, direito e artes militares, voltadas para o exercício de cargos públicos. Conforme o interesse dos jovens podiam também aprender história, literatura e filosofia (ALFÖLDY, 1989, p. 133). Esse sistema de educação inculcava simultaneamente no senador os ideais do Estado romano e a tradição da sua própria família. A uniformidade de pensamento e comportamento da maioria dos membros da primeira ordem era assim, consideravelmente reforçada pela educação ministrada. Esse “espíritoΝ senatorial”Ν exprimia-se, antes de mais, no orgulho de pertencer à ordem mais ilustre (amplissimus ordo), e, também, na convicção de todo o senador que agisse em conformidade com as exigências que lhe eram impostas pelo facto de pertencer à sua ordem obteria inequívoco destaque (ALFÖLDY, 1989, p. 133). A paideia, no entanto, não deve ser compreendida simplesmente como um treinamento recebido pelos aristocratas, mas, sim, como um termo que englobava um todo da cultura da época. Pelas referências que encontramos desenvolvidas ao longo da VA, podemos perceber que Filóstrato demonstra e valoriza sua paideia no que diz respeito aos conhecimentos de história, literatura, mitologia e filosofia grega. Em toda a VA há citações da Ilíada e da Odisseia, há referências a Hesíodo, Eurípides, Sófocles, Ésquilo, Esopo, Píndaro, Sócrates, Platão e Tucídides.27 E embora Filóstrato não seja contra o governo imperial romano, ele não cita nenhum exemplo das letras, da arte, nem das crenças religiosas e lendas mitológicas latinas, chegando mesmo a trocar o nome da deusa Vesta pela similar grega Héstia (VA, VII, 6).28 Filóstrato provavelmente ocupou cargos públicos. Sabemos que o mesmo nome Filóstrato aparece nas inscrições de um destacado general hoplita, um estratego de Atenas (PUECH, 2002, p. 381). Os estrategos gregos eram chefes militares ou comandantes de exércitos. Segundo informações do próprio Filóstrato, ao referir-se ao sofista Loliano de 27 Há citações da Ilíada e da Odisseia em VA, II, 14; III, 27; V, 7, 14, 22, 26; 36; VIII, 4, 5, 7, 16, 11, 13. Hesíodo é citado em VA, V, 21. Eurípides aparece em VA, II, 14, 32; IV, 21; VII, 5, 14. Sófocles aparece em VA, IV, 38, VI, 4. Ésquilo em VA, VI, 11. Esopo é citado em VA, V, 14. Píndaro em VA, VI, 26. Sócrates em VA, VI, 10, 19; VIII, 2. Platão em VA, IV, 36, VII, 3. Tucídides em VA, VII, 25. 28 Da relação de Filóstrato com o poder imperial romano trataremos ao longo da Tese, mas, mais especificamente no Capítulo 3. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 46 Éfeso que foi um estratego ( α – strategos),Ν “estrategosΝ eramΝ aquelesΝ magistradosΝ encarregados de levar as tropas e conduzi-las à guerra, quando em períodos de batalhas, tambémΝ cuidavamΝ dosΝ mantimentosΝ eΝ doΝ abastecimentoΝ deΝ trigoΝ daΝ cidade”Ν (VS, I, 526). Conforme Maurice Sartre (1994, p.238), o estratego ateniense era aquele que se encarregava de tudo o que dizia respeito ao abastecimento de Atenas, especialmente de trigo, e contribuía com suas próprias finanças, se necessário, para que não faltasse nada na cidade. Ele mantinha a ordem nos portos e na Ágora, a vigilância dos pesos e medidas, a manutenção da ordem e da segurança. Geralmente era também o responsável pela publicação da lista efébica. PareceΝ terΝ sidoΝ comumΝ aosΝ sofistasΝ seremΝ estrategosέΝ AntifonteΝ deΝ RamnuteΝ “foiΝ muitas vezes estratego, obtendo vitórias, incrementando a esquadra ateniense com trirremes equipadas, e passava como o mais eminente dos homens no uso da palavra e ao tratar as ideias essenciaisΝ emΝ umΝ discurso”Ν (VS, I, 498). Loliano de Éfeso ocupou a cadeira de retórica em Atenas e o cargo de estratego (VS, II, 526). Também o sofista Apolônio de Atenas, segundo Filóstrato, foi: [...] personalidade eminente, presidiu a embaixadas sobre questões graves, prestou ao Estado os serviços que os atenienses consideram mais importantes, foi nomeado arconte epônimo e magistrado encarregado do abastecimento da cidade e, quando ancião, foi encarregado de pronunciar palavras sagradas no templo de Elêusis (VS, II, 600, 601).29 Há três referências a Lúcio Flávio Filóstrato como general hoplita entre 200 e 210, mas sem menções a seu envolvimento em batalhas. Assim, como estratego ele teria, provavelmente, neste período, cuidado da segurança do abastecimento de alimentos da cidade de Atenas. Em 255/256 também se encontra, no catálogo efébico da Panatenaica, 30 um arconte de nome L. Flávio Filóstrato e, no segundo quartel do século III, um estratego de mesmo nome. O Filóstrato da inscrição de 255/256 não deve ser, segundo os estudos de Puech (2002, p. 381) nem nosso sofista, nem Filóstrato de Lemnos. A possibilidade de essa inscrição se referir ao nosso Filóstrato é pequena pela datação e em conformidade com os estudos sobre sua vida. Puech (2002, p. 381) nos apresenta a hipótese de Müncher e de outros estudiosos desses catálogos atenienses, que analisam pelo nome, que este segundo Filóstrato era certamente um descendente do autor da VA, talvez seu filho. No entanto, ao referir-se a Apolônio de Atenas, Filóstrato não menciona o termo estratego – α – strategos, citando este sofista como magistrado encarregado do abastecimento de alimentos da cidade, o estratego. 30 Catálogo de jogos gregos. 29 CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 47 Como vimos, outros catálogos mostram o nome de Flávio Filóstrato entre os cidadãos distintos de Atenas que ocupavam o Pritaneu, representante de sua tribo, Pandionis, no governo de Atenas (BOWIE, 2009, p. 19-20). Puech (2002, p. 381) nos informa que essa referência sobre Filóstrato na lista dos prítanes data dos primeiros anos do século III.31 Podemos acreditar que algumas dessas inscrições se referem ao nosso Filóstrato, especialmente as da primeira metade do século III. As demais, da segunda metade do III século, se ele realmente nasceu entre 160/170 como aceitamos, é provável serem de outro Filóstrato homônimo do nosso autor, que nessa ocasião contava com mais de oitenta anos de idade. Com tantas menções à vida pública de Flávio Filóstrato apontada pela documentação, podemos acreditar que nosso Filóstrato exerceu de fato magistraturas, até mesmo porque elas eram necessárias pra fazer parte da Boulé, como informa Gleason (2006, p. 234). Ressaltamos que a combinação de sofista, atividades retóricas e funções civis é algo recorrente na VS, como nas passagens supracitadas e diversas outras passagens desta obra.32 Portanto, pelas informações que reunimos, podemos supor que Flávio Filóstrato, membro de uma rica família do território ateniense, situada no topo da escala social municipal da época, foi um bouleuta e, como tal, provavelmente ocupou cargos como magistrado em Atenas. Pelo que a documentação nos indica, possivelmente ele foi estratego e foi também sacerdote já em idade avançada. Flinterman (1995, p. 41), no entanto, afirma que os sofistas, membros das famílias abastadas do Império, tinham em suas decisões de serem sofistas uma espécie de diminuição de carreira na administração imperial. Assim, um homem que escolhia ser sofista estava preferindo uma vida intelectual a uma vida pública prática. Não concordamos com tal afirmação, pois os sofistas da VS participaram ativamente da vida pública de suas cidades e do Império e alguns deles chegaram a manter muita proximidade com imperadores e respectivas famílias, esse foi o caso de nosso Filóstrato. Alföldy (1989, p. 117) informa que as relações de proximidade entre membros da aristocracia e imperadores passaram a ser fundamentais para a elevação do prestígio e status daqueles no período do Principado. Ter amizade com imperadores (amicus Caesaris) era uma 31 Exercer a pritania significava ser representante de sua tribo na Boulé da cidade de Atenas e, como tal, ocupar a cadeira temporária no Pritaneu. Cada uma das tribos na qual estava dividida a população ática contribuía anualmente com um número determinado de membros para a Boulé, escolhidos por sorteio. Os grupos membros da Boulé exerciam a pritania de maneira alternada durante o ano (que possuía dez meses), de forma que todas as tribos exercessem o mandato durante o ano (HARVEY, 1998, p. 124-125). No entanto, Gleason (2006, p. 234) mostra que sob as regras romanas, os membros dos conselhos das cidades gregas eram aristocratas com privilégios permanentes baseados em suas riquezas, mas que um ofício anual determinado por sorteio. 32 As funções e cargos dos sofistas, com referências da VS, serão tratados no Capítulo 3 desta Tese. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 48 situaçãoΝ deΝ grandeΝ dignidadeΝ eΝ valorΝ “eΝ suaΝ perdaΝ equivaliaΝ àΝ despromoçãoΝ socialΝ ouΝ atéΝ mesmo a queda políticaέ”Ν σoΝ PrincipadoΝ haviaΝ umaΝ hierarquiaΝ socialΝ dentroΝ daΝ elite,Ν eΝ estaΝ não era apenas definida por origens pessoais, fortuna e exercício de cargos tradicionais, dependia também da relação pessoal com os imperadores, que levavam o aristocrata a ser admitido como funcionário a serviço do imperador (ALFÖLDY, 1989, p. 119). Como orador de destaque que foi, Filóstrato se mostra bem próximo dos primeiros imperadores Severos, dinastia que ocupou o poder do Império de 193 até 235 d.C. 33 Foi próximo, especialmente, da imperatriz Júlia Domna, durante o governo de seu marido Septímio Severo e de seu filho Caracala. Tal relação com a família imperial certamente conferiu a Filóstrato um grande caráter de dignidade social (dignitas) e status de primeira ordem. Não podemos precisar quando Filóstrato passou a viver em Roma, mas provavelmente ele foi para a capital imperial a fim de ocupar alguma função próxima à corte. Não temos informação sobre essa data em seus textos, apenas uma breve referência de que esteve em Roma na Carta 55, mas sem nenhuma data. É certo que os sofistas tinham grande popularidade em Roma no período dos Antoninos e dos Severos, o que também pode ter motivado a ida de nosso autor a Roma. Embora sem informação precisa da documentação sobre um possível cargo ocupado por Filóstrato junto à corte, acreditamos nessa possibilidade tendo em vista que o sofista deixou sua região, onde possivelmente já ocupasse algum cargo em troca de algo que, a seu ver, poderia ser melhor para sua carreira. Sobre a data de mudança para a capital do Império, Filóstrato nos informa ter presenciado uma declamação entre Apolônio de Atenas e Heráclides da Lícia, a qual ocorreu, provavelmente, em 202 ou 203 em Roma, quando Heráclides estava em uma missão junto a Septímio Severo (VS, II, 601). Ao que parece, ele ocupou o cargo de general hoplita em Atenas por volta de 200 e foi para Roma pouco tempo depois desta data. Flinterman (1995, p. 20) sugere como provável que Filóstrato tenha sido introduzido na corte em junho de 203, quando os Severos voltaram de uma viagem à África romana. Bowie (2009, p. 19) sugere que a introdução de Filóstrato na corte ocorreu em 205 e 206. Assim, é provável que ele tenha sido introduzido no início do século III no círculo da corte de Septímio Severo e Júlia Domna, possivelmente integrado a algum grupo de matemáticos, oradores e filósofos que viva ao redor da imperatriz Júlia. 33 Alföldy (1989, p. 131) mostra que a instrução e as capacidades intelectuais eram importantes meios de promoção social e elevação do status no Alto Império. Possivelmente os méritos oratórios de Filóstrato tenham chamado a atenção imperial. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 49 Graham Anderson (1986) sugere que Filóstrato tornou-se membro da corte de Júlia Domna ainda quando era general hoplita e que ele se ausentou de suas funções apenas por algum tempo. Flinterman (1995, p.19-20), porém, defende que ele ocupou as funções de general antes de se mudar para Roma e na ocasião da mudança tinha por volta de trinta anos de idade. Esse mesmo autor (1995, p. 20) ainda sugere que Filóstrato tenha sido introduzido na corte em 207 ou 208, pois há algumas indicações, embora frágeis, de que ele já era membro da corte quando os Severos partem para a Expeditio Britannica.34 De Lannoy (1997, p. 2387) apenas aponta que Filóstrato foi introduzido na corte durante o governo de Septímio Severo e registra que nesse caso as informações do Suda sobre Filóstrato estão corretas. Assim sendo, a carreira de sofista renomado de Filóstrato teria começado na época de Septímio Severo (193-211), ele já teria realizado seus estudos em Atenas antes disso, por volta de 180-190, e teria nascido um pouco depois de 165. Bowersock (1969, p. 02) também concorda que as datações apresentadas no Suda são aproximadamente corretas. Portanto, segundo tais informações, Filóstrato teria em torno de trinta ou trinta e cinco anos quando passou a fazer parte da corte severiana, na primeira década do século III. Como De Lannoy (1997), preferimos não apontar um ano certo para a ida de Filóstrato a Roma e o início de relações mais próximas como os Severos. Preferimos, dessa forma, apenas apontar que ele se aproximou da corte durante o governo de Septímio Severo. Mas não devemos imaginar que ele passou muitos anos em Roma ininterruptamente. Muitos membros dos grupos das elites greco-romanas do Império viajavam com frequência. Assim, Bowie (2009, p. 24) acredita que Filóstrato não deve ter desejado deixar de todo suas relações de amizade, suas ligações intelectuais e, sem dúvida, suas propriedades em Atenas e Lemnos. Para Bowie, portanto, ele ficou pouco tempo vivendo em Roma, porém este estudioso não aponta a data de retorno de Filóstrato de Roma, mencionando apenas que ele estava com Júlia em Antioquia, em 217, quando esta morreu. Sobre o círculo do qual Filóstrato diz fazer parte (VA,ΝI,Νγ),ΝoΝchamadoΝ“círculoΝdeΝ JúliaΝ Domna”,Ν existeΝ umaΝ discussãoΝ deΝ estudiososΝ acercaΝ deΝ sua verdadeira natureza. Os testemunhos documentais sobre o assunto são poucos. Há autores que defendem a existência de um grupo de intelectuais em torno de uma espécie de mecenato da imperatriz Júlia, outros duvidam da existência de fato desse círculo. Além da referência da VA, sabemos da existência 34 A Expeditio Britannica foi uma grande expedição militar empreendida por Septímio Severo, acompanhado de seus dois filhos, do começo de 208 até a primavera de 211, visando à conquista do Norte da Britânia. Septímio levou com ele um considerável grupo de pessoas. Septímio Severo conduziu, durante esse período, os assuntos do Império da distante Britânia. Um grande número de escravos e libertos da casa imperial também foi junto com a expedição (BIRLEY, 2000, p. 170-187). Tal expedição pode ser conhecida pelos relatos de Herodiano (História do Império Romano, III) e Dião Cássio (História Romana, LXXVII). CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 50 desse grupo por meio de outro relato de Filóstrato e de um comentário de seu contemporâneo Dião Cássio. Filóstrato (VS, II, 622) refere-se às afinidades de Júlia em relação à filosofia e relata que Filisco da Tessália se aproximou dos filósofos e matemáticos em torno da imperatriz. Já Dião Cássio (História Romana, LXXVI, 15, 7) comentou que Júlia se dedicava à filosofia e passava seu tempo com os sofistas. E a mim, que pertencia ao seu círculo (visto que ela elogiava e admirava todos os discursos retóricos), ela me encarregou de redigir estes ensaios e me ocupar da sua publicação [...] (VA, I, 3). O processo tramitava no tribunal do imperador, que era Antonino, o filho de Júlia, dama com afinidades filosóficas. Filisco foi a Roma para resolver seu assunto, aproximou-se dos matemáticos e filósofos que rodeavam Júlia e conseguiu dela a nomeação imperial para a cátedra de retórica de Atenas (VS, II, 622). Entre os autores que defendem a existência de um círculo em torno de Júlia está a historiadora Maria Guerrero (1994). Para ela (1994, p. 198), em volta de Júlia Domna circulou um grupo seleto de intelectuais: médicos (Galeno), poetas (Lúcio Septímio Nestor), escritores (Samônico Sereno e, talvez, Cláudio Eliano Prenestino), filósofos (Filóstrato, Frontão de Emesa), juristas (Ulpiano, entre outros), historiadores (Dião Cássio, entre outros), futuros imperadores (Gordiano frequentou o círculo como poeta), altos funcionários imperiais e outros.35 Contudo, Bowersock (1969, p. 103) questiona o renascimento de estilo de corte principesca, argumentando que esse círculo era bem mais limitado e menos expressivo do que alguns pesquisadores citam e que a noção corrente sobre o círculo de Júlia Domna e a lista de seus membros, impossível de ser confirmada com certeza, não passa de uma construção dos estudiosos do século XIX.36 Bowersock ainda estranha que os únicos testemunhos que temos sobre esse proeminente círculo sejam as poucas passagens das obras de Filóstrato e uma única menção de Dião Cássio. O uso da expressão círculo, difundida entre os estudiosos, parece ter surgido da própria expressão usada por Filóstrato na VA (I, 3), 35 Ν – kiklos. Porém, podemos ver em Guerrero (1994) classifica Filóstrato como filósofo. As intersecções e diferenças entre filósofos e sofistas, assim como as considerações sobre como Filóstrato via as relações entre sofistas e filósofos são temas que desenvolvemos no terceiro capítulo. Contudo, não iremos classificá-lo assim, pois não há nenhum tratado filosófico considerado de sua autoria, além de Filóstrato não se referir a si próprio como filósofo em nenhuma de suas obras. 36 A primeira lista sobre o círculo de Júlia é de 1879, de autoria de Victor Duruy. Em 1907 um novo estudioso listou os intelectuais do círculo: o biógrafo Filóstrato, os juristas Papiano, Ulpiano e Paulo, os historiadores Dião Cássio e Mário Máximo, os médicos Sereno Samônico e Galeno, o poeta Opiano, Gordiano I, Aspásio de Ravena, Antípatro de Hierápolis e Eliano (BOWERSOCK, 1969, p. 102). CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 51 algumas traduções o uso da expressão salão.37 Segundo Whitmarsh (2007, p. 34), a ideia de um salão em torno de Júlia (GRANT, 1996; JONES, 2005) ou corte (ANDERSON, 1986; FLINTERMAN, 1995) está errada e introduzem um sentido de falsas confidencias e relações entre Filóstrato e a imperatriz. Whitmarsh completa que não há dúvidas de que Júlia tinha interesses intelectuais e passava seu tempo se dedicando a isso, o que, porém, não significa necessariamente que ela possuía um círculo definido. Emily Ann Hemelrijk (1999, p. 126), de outra forma, pensa na existência real desse círculo, mas como algo aberto e flexível, formado por um grupo informal de homens de cultura. Ideia que Hidalgo de la Vega (2012, p. 151) compartilha. Para esta segunda historiadora: É possível que nestas reuniões abertas, flexíveis e itinerantes, não apenas se discutisse filosofia e literatura, uma vez que seus membros podiam desempenhar cargos políticos, o círculo, então, adquiriu um significado político e pôde circular em seu seio e nos arredores uma tendência política a favor de Geta, o filho mais novo de Júlia Domna, em quem ela colocou seus interesses de imperatriz e mãe de um herdeiro possível por suas qualidades pacíficas frente à belicosidade de Caracala. Quando Geta morreu, alguns destes personagens desapareceram do círculo por vontade própria ou por castigo imperial (HIDALGO DE LA VEGA, 2012, p. 153). Diante da discussão apresentada, acreditamos que há um exagero em pensar que os interesses da imperatriz levaram-na a formar um círculo bem definido, como faz Guerrero (1994). Para nós, esta ideia tem raízes em uma leitura anacrônica da documentação, com olhares para os círculos literários e o mecenato de períodos muito posteriores. Contudo, discordamos de Bowersock (1969), que nega a existência do mesmo. Sendo assim, consideramos, como Hemelrijk (1999), Whitmarsh (2007) e Hidalgo de la Vega (2012), que existiram interesses da imperatriz por questões literárias e filosóficas, assim como sua patronagem em relação a alguns escritores e artistas, o que a fez rodear-se, de certa maneira, de intelectuais, embora esse círculo fosse algo flexível. De acordo com Ana Teresa Marques Gonçalves (2003, p. 338), as discussões filosóficas e, especialmente a Segunda Sofística, atraente no final do século II e início do III, podem ter atraído a imperatriz até o final de sua vida. Como bem nos mostra essa historiadora, em seu estudo sobre a documentação em torno de Júlia Domna, esta imperatriz teve forte presença nos assuntos públicos, embora de forma indireta, como trataremos no quarto capítulo da Tese. Portanto, não nos parece estranho que Júlia tenha se interessado pelas discussões intelectuais. 37 Nas traduções que estamos usando as expressões que aparecem são: salon (salão), na tradução de Cristopher Jones (Loeb Classical Library) e círculo, na tradução de Alberto Barnabé Pajares (Editorial Gredos). CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 52 É fato que Filóstrato se posiciona como membro de um grupo literário em torno da imperatriz e declara ter escrito a VA a pedido dela (VA, 1, 3). Mas tais afirmações possuem um efeito retórico em suas obras. Esse posicionamento bem definido de Filóstrato pode entrever sua singular forma de se relacionar no contexto em que vivia. Mesmo que ele não tenha feito parte de um círculo estruturado, já que os estudos atuais mostram que um círculo assim definido nunca existiu de fato, podemos perceber que é assim que ele vê sua capacidade de ação, ou, pelo menos, é assim que ele quer que os seus leitores o vejam. Segundo Bourdieu (1989, p. 65), a posição do sujeito nas estruturas sociais faz com que ele vivencie experiências e estruture sua subjetividade, constituindo sua formas de apreciação e ação. Assim, podemos pensar que, ao mencionar fazer parte de um círculo em torno da imperatriz Júlia e estando em contato direto com a mais alta esfera do poder romano, Filóstrato pretendeu mostrar ter capacidade de agir em torno dos imperadores, legitimando, assim, seu relato diante de seus leitores e criando uma estratégia de ação. Mesmo que Filóstrato não tenha feito parte de um círculo bem definido, seu contato próximo com a corte imperial e suas experiências próximas da mesma, fazem-no estruturar seu potencial de agir em torno do poder romano e em torno dos imperadores. Outro indício dessa capacidade de ação que Filóstrato pretende mostrar em torno de imperadores está na Carta 72, endereçada a Antonino38 e na Carta 73, endereçada a Júlia Augusta. Também a dedicatória da VS pode nos dar pistas sobre as possíveis pretendidas relações de Filóstrato com o alto poder político romano. O destinatário da dedicação é Antônio Gordiano,39 a quem Filóstrato demonstra amizade. Bowersock (1969, p. 06) informa que há possibilidades de esse Gordiano ser Gordiano I, procônsul da África, cônsul ao lado de Severo Alexandre em 229 e imperador em 238, ou Gordiano II, também imperador no período chamadoΝdeΝ“AnarquiaΝεilitar”Ν(βγκ-244).40 A dedicatória da VS mostra que o Gordiano ao qual é dirigida a dedicatória não era imperador ainda na época da escrita da obra, já que tal título não é mencionado ali, mas corrobora para mostrar as capacidades, ou pretensas capacidades, de nosso autor em circular no entorno de altos governantes. 38 Segundo Francesca Mestre (1996, p. 217), tradutora das Cartas, esse Antonino é o imperador Caracala, que se chamava Antonino. Filóstrato chama Caracala de Antonino também em VS, II, 622. Marco Aurélio Antonino era o nome do imperador e Caracalla, denominação com que ele ficou conhecido, era, conforme Herodiano (História do Império Romano, IV, 7) um termo germânico que designava uma espécie de capa bordada que os germanos usavam e que esse imperador, em lugar do manto romano, costumava usar quando esteve nas fronteiras do Danúbio. 39 Flávio Filóstrato a Antônio Gordiano, cônsul preclaro (VS, I, 479). 40 EmboraΝ oΝ autorΝ useΝ oΝ termoΝ “AnarquiaΝ εilitar”,Ν queΝ trouxemosΝ nessaΝ informação,Ν nãoΝ podemosΝ deixarΝ deΝ ponderar criticamente que o uso desse conceito deve ser questionado, pois carrega um juízo de valor sobre o contexto romano e, especialmente, sobre a filosofia política do anarquismo, considerada, neste sentido, como um caos generalizado. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 53 Voltando à trajetória de Filóstrato junto à corte severiana, pela leitura da documentação e estudo bibliográfico, Filóstrato esteve próximo de Júlia em partes do período de governo de seu marido Septímio Severo e, talvez, também de seu filho Caracala (211217).41 Talvez Filóstrato tenha feito parte do cortejo imperial que acompanhou Septímio Severo na Expeditio Britannica (208-211), pois na VA há indícios de conhecimento sobre a maré oceânica que ele pode ter adquirido nessa viagem (FLINTERMAN, 1995, p. 24). Como podemos ler na VA, Filóstrato afirma ter adquirido conhecimentos sobre o oceano na terra dos celtas, ou seja, na Gália, não havendo nenhum indício, entretanto, de ele ter estado com os SeverosΝ naΝ ἐritânia,Ν apenasΝ deΝ jáΝ terΝ estadoΝ naΝ ύáliaμΝ “AsΝ marésΝ oceânicas, inclusive, eu mesmoΝ jáΝasΝviΝ naΝterraΝ dosΝceltasΝ[έέέ]”Ν(VA, V, 2). Além desse comentário, logo após essa passagem, o narrador demonstra conhecimentos geográficos sobre a terra dos celtas (VA, V, 3). Flinterman (1995, p. 20) afirma como certo que Filóstrato esteve no séquito de Caracala e Júlia Domna na Gália, pois, conforme sua minuciosa descrição, ele próprio deixa claro que esteve presente quando o sofista Heliodoro se apresentou diante de Caracala na Gália em 213 (VS, II, 626). Concordamos com essa hipótese e acrescentamos a ela a própria indicação de Filóstrato ter estado na terra dos celtas e dela ter conhecimentos, mostrados no início do Livro V da VA. A presença de Filóstrato junto a uma expedição imperial como essa na Gália pode tê-lo colocado em contato próximo com discussões sobre as fronteiras do Império, seus problemas e a necessidade de ações visando à manutenção do Império.42 Afora a possibilidade de sua ida à Gália, não temos mais informações sobre outras possíveis viagens de Filóstrato junto com os imperadores severianos. Porém, mesmo sabendo somente dessa possível estada com Caracala na Gália, novamente podemos perceber como ele teve relações próximas com a corte Imperial e com seus problemas em relação à ordem do Império Romano. 41 Após a morte de Septímio em 211, Caracala assume o poder imperial ao lado do irmão Geta. Geta é assassinado pelo próprio Caracala em 212. Caracala passa a governar o Império romano como único imperador de 212 até 217 (GONÇALVES, 1996, p. 25-26). Júlia Domna esteve sempre ao lado do filho e chegou a cuidar das correspondências imperiais durante as estadias de Caracala fora de Roma em combate contra os partos (GONÇALVES, 2003, p. 344). Caracala é assassinado em 217 e, segundo documentos de época, Júlia se suicida após receber a notícia da morte do filho. Não sabemos se o suicídio da imperatriz foi voluntário ou forçado (HERODIANO, História do Império Romano, IV, 13). 42 Sobre a possibilidade de sofistas fazerem parte das viagens ao lado dos imperadores, temos o sofista Élio Aristides relatando, durante um processo de cura intermediado pelo deus Asclépio, sobre seu sonho de que viajava junto com a corte imperial (ÉLIO ARISTIDES, Discurso XLVII, 46). Sobre os sofistas em viagens ao lado de imperadores ver FAVREAU-LINDER, 2013. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 54 Talvez Filóstrato, acompanhando a família imperial severiana, visitou às cidades de Tiana e Antioquia em 215 (DZIELSKA, 1986, p. 59) (CALDERINI, apud GUERRERO, 1994, p. 200) (BOWIE, 2009, p. 20) (FLINTERMAN, 1995, p. 20). Mas não há nenhum documento que ateste alguma posição formal de Filóstrato nestas possíveis viagens (WHITMARSH, 2007, p. 36), apenas situações da VS que mostram que ele possivelmente esteve próximo de Júlia, Septímio e Caracala nas mesmas. Maria Dzielska supõe a ida de Filóstrato a Tiana com base na sua própria informação de que havia viajado muito (VA, VIII, 31). Filóstrato provavelmente também visitou o local que os antigos acreditavam ser o túmulo de Aquiles acompanhando Caracala, pois nosso sofista se refere a esse lugar na VA (IV, 11) e também se refere ao culto de Aquiles no Heroicos (52). Sabemos que Caracala esteve no túmulo do herói da guerra de Troia, que ele admirava, por informações de Dião Cássio e Herodiano: Depois de cruzar o Helesponto, não sem perigo, ele honrou Aquiles com sacrifícios e com armaduras sobre seu túmulo, e fez os soldados tomarem parte nisso e, por honra da ocasião, distribuiu bens que havia ganhado em alguns de seus grandes sucessos, teve a verdadeira conquista da Troia do passado e, ele mesmo, ergueu uma estátua de bronze de Aquiles (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXVIII, 16, 7). [...] e logo foi a Ílion. Ali passou por todas as ruínas da cidade e visitou o túmulo de Aquiles, que cobriu com coroas e flores. E, outra vez, se vestiu de Aquiles. Então, buscando alguém para o papel de Pátroclo, foi assim que o encontrou. Entre seus libertos tinha um preferido chamado Festo, que ocupava o cargo de secretario imperial, este homem morreu durante a estadia de Antonino em Ílion, houve quem disse que foi envenenado para ser honrado em funeral como Pátroclo, mas, conforme outras opiniões, morreu por uma doença (HERODIANO, História do Império Romano, IV, 8, 4). Quando afirmamos que Filóstrato fez parte da corte severiana, utilizamos a definição de Wallace-Hadrill (1996) sobre esta área de poder próxima aos imperadores. Assim, corroboramos sua ideia de corte como instituição social (não legal), local de influência, círculo de amizades, instituição privada em sua composição e pública em sua importância, diferenciando seus membros pela proximidade em relação ao imperador. Como já mostramos, Filóstrato nos informa que sua aproximação com a corte deu-se por meio da imperatriz Júlia Domna. As mulheres da família imperial tinham também influência no estabelecimento das redes de amizades que envolviam estas relações. Wallace-Hadrill (1996, p. 303) nos cita exemplos de mulheres da casa imperial júlio-claudiana. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 55 Wallace-Hadrill (1996, p. 288) também define a que categoria pertenciam os membros destas cortes e respectivas funções: família imperial, libertos da casa imperial (domus ou familia Caesaris) e amigos do imperador (senadores e equestres). O mesmo historiadorΝ(1λλθ,ΝpέΝβλβ)ΝacrescentaμΝ“UmΝnotávelΝ grupoΝque encontramos regularmente na corteΝdeΝAugustoΝeΝseusΝsucessoresΝéΝoΝdosΝintelectuaisΝgregosΝeΝhomensΝdeΝconhecimento”,Ν como Filóstrato, por exemplo. Entre as funções dos membros da corte estavam providenciar e controlar o acesso físico ao monarca, ditar valores estilísticos e morais, servir como secretário imperial, escritor de cartas, além de conselheiro do imperador. 43 Segundo Christopher Jones (2005, p. 2), Filóstrato foi responsável pelas correspondências imperiais durante as viagens de Júlia com Caracala, função que denota a extrema confiança e prestígio que obteve junto ao poder imperial. No entanto, não temos essa informação nas obras do corpus filostratiano. Porém, concordamos com a hipótese de Jones porque percebemos que essa era uma função possível para os membros da corte Imperial e também uma função defendida por Filóstrato como correspondente aos conhecimentos dos sofistas (VS, II, 571, 607, 629). De acordo com Wallace-Hadrill (1996, p. 290), era entre os membros da corte que se nomeavam pessoas que fariam parte das viagens ou campanhas dos imperadores. Estes amici eram convocados para formar um consilium, a fim de aconselhar o imperador em questões específicas. Seria, todavia, errado representar este consilium como um órgão de governo estabelecido formalmente e com membros definidos, já que a informalidade era seu caráter essencial. Filóstrato pode, portanto, ter feito parte de um consilium desses em torno das viagens dos primeiros imperadores Severos. As situações de viagens pessoais que Filóstrato nos relata na VS são em meio aos relatos sobre seus biografados. Logo na dedicatória para Gordiano, Filóstrato relata que esteve com este em Antioquia, no templo de Apolo, que segundo Maria Concepción Soria (1982, p. 43 Cumpre mencionar que não trabalhamos com algumas concepções de Wallace-Hadrill (1996) em sua definição das relações de poder no entorno dos imperadores romanos, como seu pensamento sobre a sociedade romana formada por casas de aristocratas e os indivíduos vistos, desta maneira, ligados a estas casas dentro de uma coletividade, sem destaque para suas individualidades. Além disso, esse historiador, em sua análise do poder romano neste trabalho, centra-se essencialmente na elite, desprezando os demais setores que formam o Império e homogeneizando a elite romana. Concordamos com a importância que há nas relações entre indivíduos, imperadores e casa imperial, mas Wallace-Hadrill (1996, p. 295) considera neste texto que as elites do Império possuem poder emanado apenas do imperador, com o que discordamos. Porém, devemos considerar que o período analisado pelo historiador britânico, neste trabalho utilizado por nós, é o contexto da dinastia júlioclaudiana, focando-se em uma elite com traços republicanos. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 56 63) seria, possivelmente, um centro de reunião do círculo de Júlia.44 Conforme Filóstrato: “[έέέ]ΝeΝtambémΝmeΝrecordoΝdeΝnossasΝinteressantesΝpráticasΝemΝAntioquia,ΝnoΝtemploΝdeΝApoloΝ Dafneo”Ν(VS, I, 479).45 Pode ser que, pelo menos nessa viagem, os estudiosos que Júlia patrocinava tenham estado juntos, já que Gordiano, conforme Bowersock (1969, p. 106), pode ter sido um destes homens. Em uma passagem da VA (I, 16), Filóstrato descreve a visita de Apolônio ao templo de Apolo em Antioquia com enorme riqueza de detalhes, o que pode de fato mostrar que ele esteve em Antioquia pelo menos uma vez na vida e retrate na estadia de Apolônio nesta cidade o que conheceu. Devemos perceber ainda que, no final da VA, Filóstrato menciona ter feito várias viagens, embora não informe por onde passou. Porém, ele deixa claro que, como era comum aosΝ sofistas,Ν tambémΝ viajavaΝ muitoμΝ “EstouΝ seguroΝ deΝ nãoΝ terΝ encontradoΝ emΝ parteΝ alguma uma tumba ou cenotáfio de nosso homem, ainda que tenha recorrido a maior parte da extensãoΝ daΝ terra,Ν eΝ ouvido,Ν porΝ essesΝ lugares,Ν históriasΝ sobrenaturaisΝ sobreΝ ele”Ν (VA, VIII, 31). Sobre a relação de Filóstrato com Caracala, temos uma carta em que o sofista critica o imperador: Para Antonino: As cegonhas não sobrevoam cidades devastadas: o eco dos males passados as faz fugir. Vives em uma casa que tu mesmo devastastes e sacrificas aos deuses que estão nela como se não existissem ou, se existem, esqueceram-se de que és possuidor do que te corresponde (Carta 72). Essa crítica levou Whitmarsh (2007, p. 35) a questionar se ele fez de fato parte da corte de Caracala. Contudo, estamos de acordo com a própria solução de Whitmarsh para esse problema, já que este pesquisador observa que é bem provável que Filóstrato tenha participado de viagens junto ao filho de Júlia Domna. Sendo assim, Whitmarsh acredita que tais ultrajes de Filóstrato a Caracala seriam posteriores à morte do imperador e, por isso, 44 Embora Soria, tradutora da VS publicada pela Editora Gredos, chame o grupo de intelectuais em torno de Júlia de círculo, ela admite, conforme leitura de Bowersock (1969), que o mesmo era bem mais simples do que os estudiosos têm mostrado (SORIA, 1982, p. 243). 45 Deste trecho, Bowersock (1969, p. 106) deduz que Filóstrato podia estar em Antioquia na época da morte de Júlia, que, segundo esse autor, certamente morreu lá. Esta tese é compartilhada por Bowie (2009, p. 20). Bowersock ainda acredita, por meio dessa citação de Filóstrato, que Gordiano também fazia parte do grupo de intelectuais e que ambos se encontravam na Síria quando Júlia se matou. Segundo Bowersock, somente podemos conjecturar que Filóstrato e Gordiano fizeram parte deste grupo; quanto aos demais intelectuais citados pelos estudiosos, não possuímos nenhum registro capaz de levantar hipóteses consistentes sobre tal pertencimento. Tudo indica, então, que os estudiosos selecionaram os intelectuais mais eminentes do período em que viveu Júlia e afirmaram seu pertencimento ao Ν– kiklos filostratiano sem argumentos minimamente razoáveis. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 57 poderiam não demonstrar concretamente a relação que ambos tiveram quando o imperador ainda estava vivo. Não temos mais informações sobre as ligações de Filóstrato com os Severos após a morte de Júlia, o que nos leva a supor que Filóstrato não esteve mais próximo dos círculos imperiais a partir de então, pois uma circunstância como esta não seria omitida da documentação, especialmente de suas próprias obras, pelo prestígio que significava. Após 217, outros dois imperadores Severos ascenderam ao poder, Heliogábalo (218-222) e Severo Alexandre (222-235). Há autores, como Müncher, que acreditam que, após a morte de Júlia, Filóstrato teria ido embora de Roma para a cidade fenícia de Tiro; e outros defendem que ele passou a viver em Atenas, escrevendo seus textos, exercendo atividades como sofista e ocupando cargos públicos (FLINTERMAN, 1995, p. 26). Não há nenhuma indicação documental da época romana que mostre Filóstrato continuando a viver em Roma. Acreditamos que após a morte de Júlia e mudança de governo que aconteceu; já que Júlia morreu após receber a notícia de que seu filho, o imperador Caracala, havia sido morto; Filóstrato realmente tenha ido embora de Roma.46 É muito provável que ele tenha vivido em Atenas, talvez vivendo antes em outra localidade, mas passando depois a viver em Atenas e lá escrevendo suas duas obras mais conhecidas, a VA e a VS. A hipótese de ele ter vivido em Atenas pode ser sustentada pelas estátuas em território ático referindo seu nome e pelas menções de seu nome nos catálogos do pritaneu de Atenas. Além disso, Filóstrato foi referido como ateniense na literatura posterior (DE LANNOY, 1997, p. 2390), como citado anteriormente. Flinterman (1995, p. 26) também aponta uma possível marca na VS de sua circulação pelos meios intelectuais e políticos ateniense, embora essa análise não passe de uma minuciosa percepção hipotética desse historiador, baseada em conjecturas. Contudo, talvez possamos acreditar que Filóstrato tenha tentado se aproximar novamente dos imperadores severianos, pois esteve uma vez próximo dos mesmos, e tal proximidade conferia, como vimos, grande valor a um homem naquela época. De acordo com o léxico bizantino Suda, Filóstrato viveu em Roma do governo de Septímio Severo (193-211) até o reino de Felipe, o árabe (244-249). Mas esse léxico não é contemporâneo dos escritos de Filóstrato, sendo a autenticidade dessa informação, como já 46 Com o assassinato de Caracala, Macrino (que Caracala havia feito prefeito do pretório em 212) assumiu como imperador romano, permanecendo no poder imperial de 217 a 218 (GRANT, 1996, p. 22). A dinastia dos Severos voltou ao poder com Heliogábalo em 218 (Ver Anexos 12 e 13, esquemas genealógicos dos Severos). De acordo com Dião Cássio (História Romana, LXXX, 7), Macrino foi assassinado por soldados favoráveis ao retorno dos Severos, pagos por Júlia Mesa, avó de Heliogábalo. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 58 mencionamos, questionável. Não temos informações sobre a data de sua morte e, certamente, se ela foi à época do governo de Felipe, o árabe, a informação do Suda de que seu pai viveu na época de Nero (54-68) apresenta um problema grande de distância temporal entre pai e filho.47 Portanto, sendo membro de um dos grupos mais importantes do Império, vimos que Filóstrato ocupou cargos políticos, recebeu insígnias específicas desses cargos e incorporou, seguindo as ideias de Bourdieu (1996), disposições (habitus) que fazem parte de sua origem, camada social e educação e as retraduziu conforme a sua posição dentro de seu espaço social. Ainda seguindo Bourdieu (1996), é por não entender Filóstrato como um sujeito simplesmente autônomo; mas como agente que atua por intermédio do habitus, ou seja, dessas estruturas que incorporou, que são a educação que recebeu e os valores que lhe foram transmitidos (que entendemos como valores dos bouleutas, de sua categoria enquanto sofista membro dos grupos privilegiados); que traçamos sua trajetória e o inserimos nessas mesmas relações, o quanto isso foi possível conforme os dados fornecidos pela documentação, cruzados com estudos bibliográficos sobre o período em que nosso autor viveu. Além disso, para Bourdieu (1996), o agente organiza suas práticas e representações conforme sua inscrição no universo social. Desta forma, acreditamos que podemos pensar Filóstrato como um membro dos grupos abastados possuidor de habitus senatoriais, gregos e sofísticos e, também, como alguém que ocupou posições próximas da família imperial e agiu a partir dessa sua capacidade, ou pretensa capacidade, em posição de proximidade com as altas esferas do poder romano. Partindo da ideia bourdieusiana de que o habitus é um sistema aberto de disposições submetido constantemente a experiências que o transformam (BOURDIEU; CHARTIER, 2011, p. 62), compreendemos que houve uma grande importância na inserção social de Filóstrato na corte dos primeiros imperadores Severiano. Contudo, após a morte de Júlia Domna, a documentação não nos mostra mais essa proximidade, fato que pode ter marcado seus escritos posteriores, o que refletiremos na análise da VA e da VS. 1.3 Os escritos filostratianos É certo que Flávio Filóstrato viveu em um período de intensa atividade no campo da prosa literária, especialmente da prosa em grego, quando viveram alguns dos mais conhecidos 47 Como já expusemos neste mesmo capítulo, possivelmente Filóstrato I não existiu, havendo um erro de informação no Suda. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 59 escritores gregos do Império, como o próprio Filóstrato e, tempos antes, Plutarco (46-126) e Élio Aristides (129-189), por exemplo. A prosa do período Severiano mostra algumas continuações com a florescente prosa do período dos imperadores Antoninos, mas com algumas distinções (WHITMARSH, 2007, p. 29). Esse período de grande destaque da arte de falar e escrever, da oratória e da retórica é conhecido como Segunda Sofística, denominação dada pelo próprio Filóstrato em sua VS (I, 507). Segundo Soria (1982, p. 24-25), a retórica se fazia cada vez mais presente na preferência dos aristocratas do Império, era comum em Roma e foi importante manifestação identitária de grupos que valorizavam o grego. No último terço do século I a.C. houve uma proliferação da declamação de assuntos fictícios, quando se dissertava sobre qualquer tema. Houve também uma proliferação da retórica artística. É nesse contexto que se insere a produção escrita de Filóstrato, que compreende temas variados, calcados nas reflexões sobre práticas do passado grego e na tradição grega. Estudar a produção escrita de nosso autor significa, necessariamente, compreendermos os temas que o interessaram e sua paideia, que está, para nós, diretamente ligada à sua maneira de escrever. Além disso, sua produção escrita nos fornece dados biográficos e aspectos de sua visão político-social que permitem perceber melhor sua trajetória, fundamental para nossa compreensão de seu habitus e de como esse habitus produziu seus efeitos. Nunca se poder ter certeza sobre a totalidade do corpus de um autor da Antiguidade, isso também ocorre com as obras filostratianas. De Lannoy (1997, p. 2363) indica que é impossível concordar que toda obra de Filóstrato trazida pela tradição manuscrita chegou até nós. Não somente não temos certeza sobre a totalidade das obras do sofista, como também não temos certeza sobre a sequência das mesmas e, devido à existência de mais de um Filóstrato escritor, não temos se quer certeza da autoria exata dos textos que chegaram até nós como parte do corpus filostratiano. Pelos estudos sobre características linguísticas e literárias, uniformidade de estilos e de artifícios utilizados, além da repetição de temas, os pesquisadores chegaram a algumas deduções e indicaram as possibilidades de autorias dentro do corpus. Não havendo, porém, um consenso absoluto sobre tais possibilidades. Atualmente, são aceitos como obras do corpus filostratiano os seguintes textos: VA, VS, Heroicos, Imagens, Cartas, Ginástico, Nero e um discurso retórico conhecido como Dialexis 2. Como já informamos, entre todas as obras do corpus as únicas que são irrefutavelmente do nosso Filóstrato são a VA e a VS, já que na VS, Filóstrato menciona sua obra anterior, a VA. Na VA (IV, 35) Filóstrato também menciona ter escrito um tratado sobre a CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 60 questão da sabedoria e do sábio, esse que, no entanto, não é conhecido. Mas a menção a esse tratado mostra o interesse de Filóstrato pela figura do sábio, que podemos perceber em seu Apolônio e também em alguns de seus sofistas. Elsner (2009, p. 03) considera que Filóstrato teve uma autoconsciência de seu gênero literário, havendo também inter-relações de seu corpus escrito e um grande interesse na variedade de estilos, talvez até mais intensa do que se comparada a outros escritores. É assim que Elsner (2009) classifica Filóstrato como um escritor total, considerando suas obras como umΝ“corpus multiformeέ” Elsner também classifica todas as obras do corpus filostratiano (VA, VS, Heroicos, Imagens, Cartas, Ginástico, Nero e Discursos Retóricos) como de autoria do Filóstrato escritor da VS e da VA. Para Elsner (2009), algumas características se fazem presentesΝemΝtodasΝestasΝobras,ΝcomoΝaΝbuscaΝpelaΝsabedoriaΝ( φ αΝ- sophia), o interesse pelo passado e a insistência na cultura helênica, a propaganda educacional em relação à tradição grega, entendida em termos de retórica e filosofia, artes e atletismo. Ainda conforme Elsner (2009, p. 13), os textos são mais do que um exemplo dos interesses de um sofista, são um verdadeiro programa formador da cultura grega no mundo romano, sendo uma forma visionária do que Filóstrato acreditava ser a cultura grega no momento. Elsner (2009, p. 11) também observa que o tema do tempo é uma constante nas obras de Filóstrato, especialmente a experiência dramática do passado em relação ao presente, a fantasia evocada pela epifania religiosa (como no texto Heroicos e na VA, quando Apolônio é varias vezes apresentado como objeto de maravilha, de peregrinação e por último como um deus) e pela descrição de pinturas de sujeitos míticos e históricos na obra Imagens.  Bowie (2009) também classifica todas as obras do corpus como do mesmo Filóstrato, embora em um texto anterior, Bowie (1994) afirme que não podemos ter certeza sobre a autoria da obra Imagens. Assim também classifica Whitmarsh (2007), ressaltando apenas que nosso Filóstrato pode ter sido o autor da primeira parte da obra Imagens por paralelos linguísticos com as demais obras do corpus, paralelos, porém, que podem ser imitações, assim como na obra Nero pode haver imitações de estrutura linguística. Em relação ao estilo diferenciado de temas das obras, Whitmarsh (2007, p. 31-37) acredita que mesmo a produção sendo diversa, há uma unificação em torno da experimentação sofisticada e uma influência da tradição literária tardia, além de os textos serem uma complexa condensação da tradição cultural grega (WHITMARSH, 2007, p. 37). Swain (2009) concorda em relação à base de defesa do helenismo que permeia todas as obras do corpus, acreditando que eles sejam de um mesmo autor atento às mudanças de sua época. Assim, Swain (2009) também corrobora a ideia sobre a autoria de todo o corpus ser CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 61 atribuída ao Filóstrato que estudamos, apenas o diálogo Nero e as Cartas não sendo mencionados em suas considerações. Flinterman (1995) também argumenta que todas as obras do corpus são do mesmo autor. Em um estudo um pouco mais minucioso do que os citados acima sobre o tema das autorias, envolvendo aspectos além das temáticas em comum entre as obras, De Lannoy (1997) aprofunda as reflexões sobre o que já foi trabalhado em relação às autorias dos textos do corpus e também em relação ao estilo linguístico dos mesmos. Nesse sentido, usando tais parâmetros de análise, este estudioso também classifica todas as obras do corpus como de autoria do mesmo Filóstrato. Sobre as possíveis datas de elaboração das obras, conforme Elsner (2009, p. 03), os primeiros trabalhos de Filóstrato provavelmente foram Ginástico e Cartas. Na época posterior à vivencia na corte severiana em Roma, após a morte de Júlia Domna em 217, estariam a VA e a VS, nessa ordem. Esses dois trabalhos foram, segundo Elsner, escritos na época em que Filóstrato viveu em Atenas. A obra Heroicos talvez tenha sido escrita durante o governo de Severo Alexandre e a obra Imagens não tem datação definida, não há nenhuma evidência interna ou externa sobre isso. Concordamos com a datação geral apresentada por Elsner (2009). Porém, discordamos de que a data de escrita do Ginástico seja anterior a 217, quando Caracala e Júlia Domna morrem e Filóstrato, possivelmente, não vive mais em Roma. Tal datação é contestada se considerarmos que Filóstrato cita o atleta Hélix, que fez fama na época de Heliogábalo.48 Já sobre a forma de classificar as obras, em uma tentativa de compreender os níveis de ficção nos textos de Filóstrato, Bowie (1994) classificou as obras do corpus em três grupos: não ficção (Ginástico e VS); grupo com características ficcionais, mas com intenção de atingir a realidade (Cartas, Dialexis); e grupo descritivo (Imagens).49 Já Heroicos e VA, para Bowie (1994, p. 183), são obras em que os limites entre ficção e realidade são imprecisos. Elsner (2009, p. 05) mostra, entretanto, que os textos do corpus são de estilos muito diferentes, havendo uma resistência à repetição, o que os textos possuem em comum é que Heroicos e Nero são diálogos associados ao estilo platônico e ambos se relacionam com 48 Desenvolveremos melhor esta ideia ao trabalhar características deste documento ainda neste subcapítulo da Tese. 49 Bowie (1994, p. 182), porém, trata a obra Imagens como uma obra cuja certeza da autoria ser do mesmo autor da VS e da VA é questionada, ele não se posiciona sobre o assunto e apenas cita que há incertezas sobre esta autoria. Percebemos ainda que Bowie deixa o diálogo Nero fora da classificação das obras de Filóstrato, não chegando a mencioná-lo. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 62 questões de identidade grega. A VA e a VS são biografias, mas a VA é muito mais longa que a VS e possui características de outros gêneros literários. Cartas e Imagens são coleções de peças em prosa, muito curtas como a VS. A obra Ginástico é classificada por Elsner (2009, p. 05) como tratado técnico, mesclando o gênero de estudo e o apologético, comuns aos escritores da Segunda Sofística. A seguir apresentaremos aspectos principais de cada obra e os temas das mesmas. Diferentemente de Bowie (1994), não iremos classificar os textos a partir de seu grau de ficcionalidade; lembramos que Bowie é um importante estudioso de Filóstrato, mas que sua formação e atuação na área de Literatura e Língua Grega direciona sua leitura das obras para este caminho classificatório. Também não faremos como Elsner (2009), historiador da arte, que as classifica pelo seu gênero, ou seja, por uma perspectiva das obras a partir de seu estilo artístico-literário. Como profissional da história seria mais comum classificarmos as obras a partir de sua datação e autoria. Diante da questão filostratiana apresentada, com a preocupação de compreender o significado de produção das obras ligado ao autor das mesmas, achamos melhor considerar os textos a partir da perspectiva de sua autoria. Assim, preferimos dividir as obras do corpus em: – Obras de autoria de Flávio Filóstrato: aquelas que têm a autoria do Filóstrato por nós estudado confirmada por referências do próprio corpus; – Obras de autoria consensual: aquelas em que há consenso atualmente sobre a autoria, mas que não há informações do próprio corpus sobre qual Filóstrato seria seu autor. Por isso tomamos cuidado em não classificá-las terminantemente como de autoria do Filóstrato por nós estudado, sem antes apresentar considerações sobre as mesmas. São também mencionadas no Suda como de Filóstrato II; – Obras de autoria questionada: obras que o Suda menciona ser de outros Filóstratos. Mas, como vimos, há estudiosos atuais que as consideram como parte das obras do autor da VA e da VS. Após a apresentação das obras, tomaremos posição sobre quais nos parecem ser de nosso Filóstrato segundo nossa própria análise. 1.3.1 Obras de autoria de Flávio Filóstrato Vida de Apolônio de Tiana – Obra mencionada no Suda como de autoria de Filóstrato II CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 63 Composta de oito livros que tratam do nascimento do biografado, apresentado como um filósofo pitagórico de saberes miraculosos, suas viagens, relações com imperadores – Nero, Vespasiano, Tito e Domiciano – entre outros temas relacionados a Apolônio e suas viagens.50 Não trabalharemos aqui com aspectos sobre o estilo da obra, nem aspectos centrais do texto, pois dedicaremos uma parte do próximo capítulo a esse trato documental.51 Vida dos Sofistas – Obra mencionada no Suda como de autoria de Filóstrato II Essa obra está dividida em dois livros, contendo informações sobre sessenta intelectuais classificados como filósofos que desenvolveram atividades de sofistas, 52 sofistas da Antiga Sofística53 e sofistas da Segunda Sofística.54 São listados vinte sofistas de cada geração, um número muito pequeno diante da quantidade de sofistas que existiu (ESHLEMAN, 2008, p. 396), o que nos indica a escolha deliberada de Filóstrato sobre quais sofistas biografar. Embora trate também de biografias, é muito diferente da VA neste sentido. As biografias aqui expostas são curtas e talvez apenas algumas Vidas possam ser de fato consideradas biografias por serem relatos de trajetórias de personagens históricos, outras são breves comentários como uma espécie de catálogo de nomes de sofistas e a apreciação de Filóstrato sobre os mesmos. A maior biografia da VS, e que de fato tem uma expressão de biografia propriamente, é a de Herodes, o ático (Livro II), provavelmente pela proeminência que este sofista tenha tido em Atenas, cidade de Filóstrato, servindo para o biógrafo como um modelo em sua cidade. Swain (1991, p. 150), mesmo apontando que Eunápio de Sardes, também biógrafo de sofistas, considerou a VS de Filóstrato como Ν- Bios, analisa a obra como bem diferente das tradicionais biografias do Principado, sendo uma mistura de biografia e doxografia.55 O título Vidas dos Sofistas talvez não seja o original. Com exceção das vidas de Herodes e Polemão, as demais biografias não se enquadram no que se constituía esse gênero na época. A biografia escrita por Filóstrato é bem sui generis, pois está pontilhada de 50 Sobre os contatos de Apolônio com imperadores romanos, descritos na obra, percebemos pela VA que a vida pública de Apolônio decorreu junto a Nero, Vespasiano, Tito e Domiciano. 51 Os temas tratados na VA, organizados por livro, encontram-se em um texto elaborado por nós no Apêndice 1. 52 Seis filósofos da chamada Antiga Sofística e dois filósofos da época da Segunda Sofística. 53 Nove sofistas. 54 Quarenta e três sofistas. 55 Doxografia: doΝgregoΝ α – doxa,ΝqueΝsignificaΝopiniãoΝeΝ αφ αΝ– grafia, que significa escrita; são relatos de ideias de um pensador por outro. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 64 informações sobre a profissão de sofista e juízos de estilo, em detrimento das notícias biográficas propriamente. De acordo com Flinterman (1995, p. 29), uma série de biografias da VS mostra o próprio meio cultural do autor. Elsner (2009, p. 08) acredita que a VS é baseada nos modelos da obra Vidas ilustres, de Suetônio, mostrando os sofistas como heróis. Ainda conforme Elsner, Filóstrato mudou o gênero das biografias para uma história cultural do que ele realmente considerava importante no período. É uma defesa dos sofistas como provedores da cultura, da retórica e da educação, na qual a filosofia pode ser incluída e a formulação de uma cultura grega está claramente citada. Para Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff (apud SWAIN, 1991, p. 149), a retórica não é o interesse central da VS, nela Filóstrato não quer apenas expor um tipo de orador, mas um grupo distinto que possui valores sociais, culturais e políticos. Concordamos com Wilamowitz-Moellendorff (apud SWAIN, 1991, p. 149) que afirma ser a VS importante para percebermos o universo cultural do autor; e acrescentamos que por isso a obra é fundamental para compreendermos os valores de Filóstrato, de modo que nós a analisaremos como uma autoexaltação à sua categoria de sofista dentro do Império Romano. Entretanto, discordamos da afirmação de que não há elementos retóricos na VS. Em linhas gerais, compreendemos retórica não como uma mera arte literária, mas como uma técnica de persuasão que pode conduzir o estudioso a uma melhor compreensão sobre aspectos político-culturais de dada sociedade. A retórica foi aspecto central das obras dos sofistas, e certamente está presente na VS e em todas as obras de Filóstrato. Há dois Filóstratos citados como sofistas na VS: Filóstrato, o egípcio (VS, I, 486) e Filóstrato de Lemnos (VS, II, 623). Segundo Soria (1982, p. 72), Filóstrato, o egípcio, não possuía relações com a família do nosso autor. Já Filóstrato de Lemnos certamente era um parente de nosso Filóstrato, como já tratamos neste capítulo. Soria (1982, p. 09-11) acredita que a VS foi escrita em Atenas, pois Filóstrato escreve sobre as cidades da Ásia, as viagens dos sofistas e suas atuações na perspectiva de um habitante de Atenas. Não concordamos que por ele escrever em tal perspectiva, isso signifique que estivesse em Atenas no momento da escrita das biografias, informação que não temos dados para confirmar ou negar, apenas podemos perceber que ele se posiciona como um ateniense, o que de fato Filóstrato era. A estudiosa citada acima (1982, p. 10) ainda infere que a obra interessava a artífices do discurso contemporâneos do autor, aos alunos de retórica de Filóstrato e a pessoas que gostavam de literatura e oratória. Enfim, a pessoas que se formavam em escolas nas quais a CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 65 retórica era objeto central de estudo e a pessoas familiarizadas com os nomes principais da arte retórica. O interesse na produção do texto, de acordo com a tradutora, foi de informar, mostrar habilidades de narrador do autor e também mostrar sua agudeza crítica.56 Sobre a datação de escrita da VS, em uma passagem da biografia de Heliodoro (VS, II, 626-627), após mostrar os favores que este sofista recebeu do imperador, que pela cronologia do próprio documento, era Caracala, Filóstrato menciona o que fez Heliodoro após a morte do imperador, deixando-nos entender que a VS foi escrita após a morte deste. Há segurança também em afirmarmos que a obra foi escrita após o governo de Heliogábalo, talvez durante o governo de Severo Alexandre ou um de seus sucessores, já que Heliogábalo é citado na biografia do sofista Eliano (VS, II, 624) de maneira negativa. Não acreditamos que Heliogábalo estivesse vivo na época de escrita da VS, já que, sendo assim, dificilmente Filóstrato escreveria negativamente sobre ele. O próprio Filóstrato nos remete a tais conclusões quando refere, na mesma passagem sobre Heliogábalo, que Filóstrato de Lemnos admirava um homem que escreve depreciando um imperador, estando este vivo.57 Filóstrato ainda indica que Aspásio de Ravena, o último sofista mencionado, estava velho quando ele escrevia a VS (II, 628) e antes de tal indicação mostra Aspásio jovem e atuante na corte imperial de Caracala. A conclusão que podemos tirar dessa informação, em conjunto com a conclusão que já temos de que a obra é posterior a Heliogábalo, é que a VS foi escrita no governo de Severo Alexandre ou pouco tempo depois. 1.3.2 Obras de autoria consensual Cartas – Parte das Cartas é mencionada no Suda como de autoria de Filóstrato II Segundo Bowie (2009, p. 26), a epistolografia foi um gênero que atraiu sofistas. Como já afirmamos neste capítulo, o tema dos sofistas que escrevem cartas é uma constante na VS de Filóstrato (I, 504, 510, 537; II 547, 552, 562, 563, 565, 571, 607, 628), e muitos sofistas exerceram a função de escritores de cartas dos imperadores romanos, ab epistulis. Bowersock (1969, p. 106-108) também registra que era muito comum sofistas de língua grega, frequentadores das cortes imperiais romanas, se tornarem epistulis graecis, função que este estudioso acredita ter sido uma das pretensões de Filóstrato junto à corte de Júlia Domna, 56 Teceremos nossas considerações sobre os interesses de Filóstrato na escrita da VS no terceiro capítulo; por enquanto afirmamos apenas que Filóstrato desenvolve nesse texto a sua imagem do que era ser um sofista. 57 Sobre as recorrentes visões negativas e condenatórias de Heliogábalo por parte dos grupos privilegiados da elite romana, sugerimos a leitura de GONÇALVES, 1998/1999. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 66 do que não discordamos, embora julguemos que na época de escrita da VA e da VS suas pretensões para os sofistas iam muito além do cargo de epistulis graecis.58 Filóstrato chega a mencionar do que necessita um imperador para escrever uma cartaμΝ“PoisΝumΝimperadorΝaoΝescreverΝumaΝcartaΝnãoΝnecessitaΝdeΝargumentosΝretóricos, mas de seu próprio critério, sem ambiguidades, uma vez que o que ele diz é lei e o intérprete da lei éΝaΝclareza”Ν(VS, II, 628). Cartas também aparecem nos estudos de Filóstrato na VA, presentes como um dos meios de comunicação de Apolônio de Tiana. Ao todo temos na VA dez cartas de Apolônio, somadas a elas estão três cartas de respostas para Apolônio. Os destinatários dessas cartas são os mercadores de trigo de Aspendo, o sábio indiano Iarcas e os demais sábios brâmanes, filósofos (Musônio Rufo e Demétrio), o sofista Escopeliano e imperadores (Vespasiano e Tito).59 Com Filóstrato não poderia ser diferente e ele nos legou algumas cartas escritas. Ao todo temos setenta e três cartas que a tradição aceita serem de Filóstrato. No entanto, devemos notar que os temas das cartas dos sofistas na VS e de Apolônio na VA diferem da maior parte das cartas de Filóstrato. As cartas de Apolônio na VA são cartas de comunicação propriamente, onde há manutenção de amizades, agradecimentos, pedidos e oferecimentos de favores, conselhos, elogios e depreciações. Algumas cartas da VA são cartas de recomendação, pois como bem nos mostra Hodkinson (2007, p. 286), tais cartas eram essenciais para obtenção de hospitalidades em viagens do mundo antigo. As cartas dos sofistas da VS apresentam temas variados, nelas há tentativas de intermediação de conflitos, cartas que os sofistas enviavam para amigos60 e mesmo cartas de sofistas para imperadores. Em relação às cartas de sofistas intermediando conflitos, na VS temos a carta de Isócrates a Filipe da Macedônia tentando colocar este em paz com os atenienses (VS, I, 504) e a carta de Herodes, o ático, a um governador das províncias orientais, Avídio Cássio, repreendendo-o por atentar contra o imperador Marco Aurélio Desta última, citamos: 58 Como demonstraremos na análise desses documentos na Tese. As cartas de Apolônio aparecem nas seguintes passagens da VA: I, 15; I, 24; III, 51; IV, 46; V, 41; VI, 28; VI, 33. Em VA, V, 40, Filóstrato refere-se a trocas de cartas entre Apolônio e Dião de Prusa (intelectual também conhecido como Dião Crisóstomo), mas não mostra nenhuma carta. As cartas que aparecem na VA e não são de Apolônio são as respostas de Musônio Rufo a Apolônio (IV, 46), a recomendação de Apolônio feita pelo rei indiano Fraotes ao brâmane Iarcas (II, 42) e os elogios do imperador Vespasiano em uma carta a Apolônio (VIII, 3). No segundo capítulo desta Tese trabalharemos sobre o que a tradição manuscrita nos remete de cartas de Apolônio e como iremos tratá-las em relação à VA. Como já indicado, faremos uma análise de aspectos sobre o Apolônio das cartas e aspectos sobre o Apolônio da VA. 60 VS, I, 537; II 552, 571. 59 CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 67 ώerodesΝoΝrepreendeuΝemΝumaΝcartaΝnestesΝtermosμΝ“ώerodesΝaΝἑássioμΝEstásΝ loucoς”ΝEstaΝcartaΝdeveΝserΝconsideradaΝnãoΝapenasΝumaΝrepreensão,ΝmasΝaΝ prova da firmeza de um homem que coloca a serviço do imperador as armas de sua inteligência (VS, II, 563). Já em relação às cartas de sofistas para imperadores, podemos ver que o pai de Herodes, o ático, também sofista, escreve cartas ao imperador Nerva (VS, II, 547, 548), a primeira sobre um tesouro que havia encontrado, a segunda pedindo ajuda para a cidade de Troia. O imperador responde positivamente e pede que Herodes cuide do pedido, que era o abastecimento de água em Troia. Herodes recebe dinheiro do pai para ajudar a cidade de Troia e também troca muitas cartas com o imperador Marco Aurélio. Segundo Filóstrato, o imperador era muito amável nestas cartas. Em uma delas, apresentada na VS, o imperador saúda Herodes como seu amigo e pergunta sobre coisas pessoais do sofista. Além disso, na carta Marco Aurélio fala em seu desejo de se iniciar nos Cultos de Mistério e no desejo de que o sofista fosse seu iniciador. O imperador escreveu muitas vezes a Herodes e sobre muitos temas, mostrando grande amabilidade em suas linhas, vou expor um resumo neste relato fazendo uma seleção da carta. O começo da missiva dizia: “Saudações,Ν amigoΝ ώerodes”έΝ ApósΝ fazerΝ umΝ comentárioΝsobreΝ asΝ barracasΝ de inverno das campanhas daquela época, manifestar suas condolências por sua mulher que havia morrido há pouco tempo e dizer, também, algo sobre a debilidade de seu corpo, continuouΝ escrevendoμΝ “Desejo-vos boa saúde e, sobre mim, sabei que vos tenho muito afeto e não considereis ter recebido injustiças se tiver em falta com algum de seus servidores, usei contra eles um castigo tanto quanto moderado, como era possível. Não sintais raiva por isso se em alguma coisa vos entristeci, pedi-me satisfação no templo de Atenea, em vossa cidade, na celebração dos Mistérios. Pois fiz um voto, quando a guerraΝeraΝmaisΝdifícil,ΝdeΝmeΝiniciarΝeΝdesejariaΝqueΝvosΝfôsseisΝmeuΝguia”Ν (VS, II, 562). Como mencionamos, também Apolônio de Tiana, na VA, troca cartas com imperadores. Ele repreende Vespasiano por ter tirado a liberdade da Grécia (VA, V, 41) e se mostra capaz de estar próximo do imperador Tito, quando este estava prestes a assumir como imperador e que, como o imperador Marco Aurélio ao sofista Herodes, citados na VS, é muito gentil e coloca Apolônio como amigo. Apolônio a Tito, o general romano, saudações: A ti, porque não quiseste ser proclamado por teu triunfo e por verter o sangue inimigo, concedo-te a coroa da moderação, uma vez que sabes por que alguém deve ser coroado. Satisfeito com essa carta, disse Tito: – Em meu próprio nome e em nome de meu pai, agradeço-te e me lembrarei disso. Pois eu conquistei Jerusalém, mas tu conquistaste a mim (VA, VI, 29). CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 68 Sabemos que as cartas no Império Romano eram uma forma de manutenção das amizades, criação de círculos e de relacionamentos sociais, além de espaço para negociações de status social (MORELLO; MORRISON, 2007), o que parece ser a função das cartas de Apolônio mostradas na VA e das cartas dos sofistas da VS. Já as cartas do próprio Filóstrato podem ser um valioso material, dentre as outras obras do autor, para a compreensão de seu universo cultural e interesses intelectuais. Porém, em sua maioria, são cartas a respeito de temas literários. No mundo antigo havia cartas de cunho político-administrativo, cartas cotidianas e cartas literárias, caracterizadas em diferentes gêneros literários presentes nas escritas das cartas em si, incluindo meditações, tratados, etc. (HODKINSON, 2007, p. 285).61 No corpus de cartas de Filóstrato é difícil saber de fato quais seriam as cartas reais, possivelmente enviadas aos seus destinatários, e quais seriam as cartas literárias. Mas o que podemos perceber é que a grande maioria do corpus epistolar filostratiano se refere a temas que se assemelham a poemas, a conselhos relacionados ao amor, ao sucesso literário, entre outros assuntos, usando de metáforas e muitas referências à literatura antiga e à mitologia. Assim, concordamos com a posição de Simon Goldhill (2009, p. 303), de que pouco podemos saber sobre a rede de relacionamentos de nosso autor, seus contatos sociais e políticos por meio das cartas, diferentes dos casos das cartas de Cícero, Plínio, Libânio e Sinésio, por exemplo. Embora, para nós, mesmo não podendo articular uma rede de relações e contatos bem estruturados e claros, pode-se, por meio da tradição epistolar de Filóstrato, ter alguma ideia sobre suas intenções e preocupações. As cartas de Filóstrato são divididas atualmente em dois grupos. O primeiro grupo compõe-se de cinquenta e quatro cartas de conteúdo amoroso. As Cartas de Amor são mencionadas no Suda como de autoria de Filóstrato II. Algumas dessas cartas possuem referência ao nome do destinatário, outras não. A maior parte dos destinatários destas cartas é generalizada nas expressões para um menino e para uma mulher. O segundo grupo compõe-se das dezenove cartas restantes, as quais tratam de diversos temas e são sempre endereçadas a uma pessoa bem precisa. Algumas dessas pessoas são bem conhecidas, sofistas, artistas e governantes. No entanto, Goldhill (2009, p. 302) atenta para o fato de algumas das pessoas citadas poderem não ser as conhecidas personagens τwenΝ ώodkinsonΝ usaΝ oΝ termoΝ “cartasΝ reais”Ν paraΝ definir as cartas que não eram de temas literários propriamente. O que Hodkinson chama de cartas reais são cartas que eram de fato enviadas com a função de levar a conhecimento do destinatário determinada notícia. Não utilizamos o termo utilizado pelo autor, pois acreditamos que todas as cartas são reais, mesmo as cartas que são chamadas por ele como literárias e ambas tinham como função estabelecer uma comunicação, com a diferença de que algumas eram escritas para serem enviadas e outras eram peças de literatura. 61 CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 69 da vida pública do momento, mas homônimos. Contudo, acreditamos que são essas cartas, de conteúdo não ligado ao amor, que nos dão algumas pistas das relações de nosso autor, em especial as já citadas Cartas 70, 72 e 73. Das demais cartas, cujos destinatários temos certeza de quem são, ou pelo menos alguma hipótese razoável levantada, estão as Cartas 42, 65 e 69 (para o filósofo grego estoico Epicteto, que viveu no século I), a Carta 66 (provavelmente para o escritor de romances Caritão), a Carta 67 (provavelmente para Filemão, antigo escritor grego de comédias), a Carta 68 (a Ctesidemo, talvez o mesmo que foi interlocutor do sofista Herodes, o ático, que aparece na VS, II, 552), a Carta 70 (para Cleofonte e Gaio, embora desconhecidos da documentação, a própria carta esclarece serem pessoas de Lemnos), Carta 72 (para Antonino, que possivelmente é o imperador Caracala) e a Carta 73 (para a imperatriz Júlia Domna). Como podemos perceber, alguns dos destinatários das cartas não viveram no mesmo período de Filóstrato, como Epicteto, Filemão, Caritão e Ctesidemo. O que torna estas cartas peças de literatura retórica, sendo que os aconselhamentos destinados ali a tais destinatários são endereçados para os leitores em geral. Filóstrato, portanto, utiliza-se de prováveis conhecimentos sobre atitudes desses famosos escritores aos quais ele endereça as cartas para advertir seus leitores sobre suas preocupações. Podemos perceber nestas cartas uma característica interessante de nosso autor, a mistura de elementos de realidade com elementos de ficção; seus destinatários são personagens que existiram de fato (realidade), mas que não são seus contemporâneos (ficção). Entre essas dezenove cartas com nome preciso do endereçado, três tratam de conselhos de amor (Cartas 41, 43 e 44) para homens (Aristóbulo, Atenais e Diodoro) que nenhum estudo conseguiu identificar quem podem ter sido. A Carta 70, como já expudemos neste capítulo, é interessante para percebermos a relação de Filóstrato com a Ilha de Lemnos. A Carta 73 é endereçada à imperatriz Júlia Domna. Embora essa carta seja curta, ela é a mais extensa do grupo de cartas de Filóstrato e lança explicações sobre a maneira de nosso sofista conceber a sofística e a retórica, além de ligar essas práticas com as dos filósofos. Para Júlia Augusta: Nem sempre o divino Platão invejou os sofistas, embora alguns tenham acreditado nisso. A verdade é que ele os imita desde que passeou pelas encantadoras cidades, grandes ou pequenas, como Orfeu ou Tamíris. Platão não esteve mais perto de invejar os sofistas do que a imitação perto do ciúme. Consideramos o invejoso como um homem de qualidade inferior, já a imitação é o que inspira os homens distintos. Uma pessoa difama o que ele concluiu, mas imita o que ele é capaz de fazer melhor ou tão bem quanto os outros. Então Platão está ávido de empregar o CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 70 estilo retórico dos sofistas. Ele não foi excedido por Górgias em “gorgianismos”ΝeΝeleΝofereceuΝfalarΝcomΝoΝestiloΝdeΝώípiasΝeΝdeΝProtágorasέΝ Alguns admiram um sofista, outros admiram outro. O filho de Grillo admirou o Héracles de Pródico, no qual Pródico traz forte vício e virtude e propõe que ele escolha uma destas formas de vida. E aqui temos muitos excelentes admiradores de Górgias, o primeiro de todos, os gregos da Tessália, entre os quais a oratória éΝ chamadaΝ “gorgianismo”,Ν e,Ν então, os gregos como um todo, no centro dos quais está Olímpia, onde ele falou contra os bárbaros na base do templo. Aspásia de Mileto dizem ter sido afiada no idioma de Péricles em imitação àquilo que fazia Górgias. É bem conhecido que Crítias e Tucídides, em suas elevações de sentimentos para Górgias, adaptaram estas qualidades e encaixaram-nas em seus próprios estilos, nas escolhas felizes das formas de suas palavras e na letra totalmente em seu vigor. Ésquines, o socrático, que recentemente despertou interesse em controlar o estilo de seus diálogos, não hesitou em discursar sobre Targélia e a imitar Górgias, escrevendo o seguinte: Targélia de Mileto foi para Tessália e viveu como o tessaliano Antíoco, rei de todos tessalianos. Além disso, as construções em assíndeto e as transições bruscas, como encontradas nos discursos de Górgias, são regularmente empregados em todos os círculos, mas, especialmente, entre os poetas épicos. Então, minha imperatriz, convences Plutarco que é mais avançado que algum outro grego, que não se sinta incomodado com os sofistas, e não calunie Górgias. Se não conseguir convencê-lo, ao menos tu, que é cheia de sabedoria e inteligência, saberás que nome dar a pessoas como ele, pois eu, mesmo que pudesse dizer, não devo (Carta 73). Acreditamos que a carta acima foi escrita de modo a Filóstrato ostentar suas ligações com Júlia Domna. A autenticidade da autoria filostratiana desta carta foi questionada por Bowersock (1969). O argumento de Bowersock (1969, p. 104-105) é que no final da carta, o autor pede que Júlia convença Plutarco a pensar diferente, mas Plutarco não é um contemporâneo de Filóstrato, já não estava mais vivo neste período. Portanto, a carta possui, para esse estudioso, um elemento duvidoso e possivelmente foi escrita por alguém que não estava ciente desta periodização. Contudo, conferimos que ao mencionar a ideia de convencer Plutarco, Filóstrato teve como intenção dizer para Júlia que se convencesse do erro de Plutarco sobre os sofistas. Talvez ainda ela estivesse lendo uma obra de Plutarco nessa época e Filóstrato sabia de tal fato, ou pode ter havido um erro na forma de escrita nesta parte da carta nas transmissões da tradição manuscrita. O próprio Bowersock (1969, p. 105) observa que há um paralelo de informações e termos técnicos nesta carta e na biografia do sofista Górgias na VS. O paralelo estaria na admiração de Péricles, Crítias e Tucídides por Górgias, como podemos ler na carta acima citada e na coleção de biografias: [...] quando [referindo-se a Górgias] pronunciava seus discursos em Atenas, já em idade avançada, não era surpreendente que maravilhasse pessoas do povo, mas, pelo que sei, atraía também os homens mais eminentes, como CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 71 Crítias e Alcebíades em sua juventude e Tucídides e Péricles, já maduros (VS, II, 493). Mas Bowersock prefere achar que uma pessoa tentando se passar por Filóstrato usou de seus próprios termos e informações para falsificar a autoria da carta. Nós, porém, preferimos inferir que esse paralelo é uma forma de vermos os dois trabalhos como do mesmo autor. Além disso, o uso do nome de Plutarco na carta mostra, novamente, a característica de mistura de ficção e realidade, já presentes em outras cartas do autor, mencionadas acima. Sobre as intenções da Carta 73, mesmo que ela não tenha sido lida por Júlia, ao escrevê-la Filóstrato quer mostrar-se capaz de falar com a imperatriz ou, pelo menos, com alguém da mesma estirpe dela. Filóstrato nos sugere nesta carta sua capacidade de aconselhar a imperatriz, mesmo que seja apenas em assuntos literários. Já na Carta 72, citada neste capítulo, endereçada a Antonino (Caracala), com tom mais enérgico, Filóstrato diz que Caracala devastou a casa onde vive. Como mencionamos ao apresentar essa carta, provavelmente, ela foi escrita após a morte de Caracala e não foi endereçada ao imperador vivo, devido às consequências negativas que teria ao autor. Nessa carta podemos perceber a aversão de Filóstrato a Caracala e, certamente, podemos acreditar que ele quis deixar registrada esta aversão aos seus leitores. Acreditamos que apenas a Carta 72 de Filóstrato possa ser comparada, de certa maneira, a uma carta de Apolônio na VA, mas as demais cartas de nosso sofista são bem diferentes em temática das de seu biografado na VA. Entretanto, a Carta 72 tem um tom muito parecido com uma das três cartas que Apolônio envia para Vespasiano na VA, sendo ambas um ataque aos imperadores, como podemos ler na epístola do tianeu apresentada por Filóstrato: Apolônio ao imperador Vespasiano, saudações: Escravizastes a Grécia, segundo dizem, e pensais ter conseguido algo mais que Xerxes, mas não vos dais conta de que conseguistes menos que Nero. Pois Nero, que havia conseguido, renunciou a isso. Adeus (VA, V, 41).62 Sobre a autenticidade das cartas filostratianas, estas têm sido analisadas em termos de linguagem, estilo e espírito (forma de descrição e posicionamento do autor), como nos informa o Prefácio de uma das edições das cartas de Allen Rogers Benner e Francis Fobes 62 Esta carta também pode ser encontrada na tradição epistolar de Apolônio de Tiana. Ver nosso catálogo das cartas de Apolônio (Apêndice 2), quando cruzamos informações dessas cartas com informações da VA, tratadas no próximo capítulo. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 72 (1947) e, embora haja certas divergências em alguns pontos, em geral os estudiosos têm classificado as cartas filostratianas como de um só autor, classificação que seguimos. Para finalizar, cumpre fazer notar que temos poucos estudos modernos sobre as cartas de Filóstrato. De acordo com Goldhill (2009, p. 287), as cartas aparecem nesses poucos estudos como um exemplo trivial de literatura ficcional, mas são consideradas diferentes em relação à tradição epistolar da Antiguidade como um todo. Para esse autor, Filóstrato rejeita os aspectos comuns de saudações e de certas estratégias das cartas da Antiguidade, de modo que o conjunto de cartas filostratianas deva ser lido dentro das intenções de nosso sofista em demarcar uma identidade grega no Império Romano.63 Não discordamos de Goldhill sobre podermos perceber traços identitários nestas cartas, assim como em todas as obras de Filóstrato. Mas acreditamos que o excesso de preocupação de estudos atuais em buscar a compreensão de uma identidade grega e, consequentemente, uma valorização do passado grego, nas obras de Filóstrato, acaba deixando de lado a percepção de outros temas que também foram de interesse do sofista.64 Temas e preocupações que estão por trás da própria valorização da identidade grega e pretensas capacidades por conta de sua paideia. Além disso, para nós, é preciso não apenas perceber que há elementos identitários gregos no corpus filostratiano, mas compreender o que significa compor obras com esses elementos no contexto em questão, o que a maior parte dos estudiosos não faz. Imagens – Obra mencionada no Suda como de autoria de Filóstrato II e também de Filóstrato III Temos duas obras intituladas Imagens no corpus como de autoria dos Filóstratos.65 A primeira obra, que pode ser de Flávio Filóstrato, consta de dois livros com a descrição em prosa de sessenta e cinco quadros expostos em uma galeria em Nápoles. No início do texto, 63 Neste sentido Goldhill (2009) relaciona as cartas de amor com a Carta 73, para Júlia Domna. Ele acredita que as cartas de amor de Filóstrato devam ser lidas como espécie de manuais dos sentimentos, ajudando o leitor a expressar sua paixão como um grego (GOLDHILL, 2009, p. 297). Já na Carta 73, para Goldhill (2009, p. 304), Filóstrato liga-se enquanto sofista a uma longa tradição da sofística grega. O autor conclui que todas as cartas filostratianas juntas, então, nos dão um exemplo de como era um π πα υ – pepaideumenos (pessoa instruída, que possuía a paideia) no Império Romano. 64 Como exemplos desses estudos, além do texto de Goldhill (2009), podemos citar outros textos que fazem parte da obra Philostratus (2009), organizada por Bowie e Elsner, como os capítulos de Whitmarsh e Jason König. E também o livro de Flinterman (1995) e a Tese de Abraham (2009). 65 Nas traduções desta obra do grego para as línguas modernas e nas menções dos estudiosos, vemos outros títulos como Descrições de Quadros ou apenas Quadros. Iremos tratar a obra com o título de Imagens por ser esta a tradução da denominaçãoΝ gregaΝ Eἰ – Eikones. Sobre a autoria das Imagens, como são duas obras intituladas Imagens de autores chamados Filóstratos, alguns estudiosos definem a primeira obra como de Filóstrato, o velho e a segunda como de Filóstrato, o jovem. A obra Imagens de nosso Filóstrato está sendo estudada por Rosângela Santoro de Souza no Programa de pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo – USP, com o projeto de pesquisa Écfrase e phantasia: pintura e(m) palavra: Filóstrato, o velho. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 73 Filóstrato menciona que fez estudos sobre pintura por quatro anos com Aristodemo de Caria. A obra trata-se de uma compilação de explicações sobre obras de arte que Filóstrato deu a um menino de dez anos, filho de um amigo que o hospedou em Nápoles, por ocasião dos Jogos de Nápoles, e aos colegas desse menino. Podemos perceber nessas menções o interesse de Filóstrato por pintura, chegando a estudar sobre a temática com Aristodemo de Caria. Não há nenhuma informação sobre quem foi Aristodemo em outros documentos. Lemos a obra como uma espécie de aula de oratória e arte aos jovens, lembrando que ministrar aulas era uma das funções dos sofistas da época. Outro detalhe é o gosto do autor das Imagens por jogos atléticos, já que ele menciona estar em Nápoles devido aos jogos locais. Em um tratado do retor Menandro, do final do século III, tanto a obra Heroicos, como as Imagens são atribuídas ao mesmo Filóstrato. De Lannoy acredita que a reputação desta obra, que ele chama de Antigos Quadros, deve ter sido muito boa para ser citada por Menandro e também copiada pelo outro Filóstrato (DE LANNOY, 1997, p. 18). Em outra passagem da obra de Menandro aparecem as obras VA e VS. Segundo De Lannoy (1997, p. 2422), os estudiosos que atribuem Antigos Quadros a outro Filóstrato e não a Flávio Filóstrato se apoiam em uma nota descoberta pelo estudioso oitocentista Kayser ao lado do manuscrito da VS transmitido pelo Código Vaticano. Essa nota opõe o autor da VA, VS e das Cartas ao autor das Imagens e atribui a autoria desta última obra a Filóstrato de Lemnos. Contudo, não devemos deixar de observar que a autoria de uma obra deve ser analisada a partir de dados da própria obra, do seu estilo linguístico e literário, temas, etc. e não a partir de referências externas, como a nota acima citada. É nesse sentido que alguns estudiosos apontam essa obra como de autoria do mesmo Filóstrato estudado por nós. De Lannoy (1997, p. 2426) afirma que, em uma análise linguística rigorosa, vemos termos que se repetem na VA, VS, Heroicos e Imagens. De Lannoy é enfático nesse ponto e afirma que se não classificarmos as Imagens dentro do corpus de Flávio Filóstrato, deveríamos então rever a autoria de pelo menos quatro dos oito livros da VA. Steinmann (apud DE LANNOY, 1997, p. 2427) nos mostra que no Ginástico temos a história do atleta olímpico Arriquião, presente também nas Imagens (II, 6). O atleta de pancrácio Arriquião, que já havia vencido nas Olimpíadas, quando combatia na terceira vez pela cora olímpica estava a ponto de sucumbir, e o atleta Erixias o conduziu a desejar vivamente a morte, ao lhe gritarΝ deΝ foraμΝ “queΝ belaΝ mortalhaΝ éΝ nãoΝ renunciarΝ àΝ vitóriaΝ em τlímpia!”Ν (Ginástico, 21). CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 74 Neste quadro que está em Olímpia, o mais belo acontecimento olímpico se trata do pancrácio, prova de homens de verdade. Aqui foi coroado o atleta Arriquião com a vitória. Arriquião que foi morto. Um juiz aqui lhe coloca a coroa [...] (Imagens, II, 6). Também não podemos deixar de observar que o tema da apreciação e crítica de arte está presente em uma passagem da VA. Trata-se de um diálogo presente no Livro II, no mesmo tom de ensinamento de outros diálogos da obra, entre Apolônio e seu discípulo Damis. O tema do diálogo é o valor da arte e sua característica de imitação (mimesis). Logo no início da obra Imagens temos uma ideia também repetida na VA, que diz respeito à arte como forma de verdade: Quem desdenha da pintura, atenta contra a verdade, atenta também contra a sabedoria que devemos aos poetas, já que poetas e pintores contribuem por igual ao nosso conhecimento do desenvolvimento e dos aspectos dos heróis [...] (Imagens, I, 1). – Damis, tem algum valor a pintura? – Sim, respondeu, se for também verdade (VA, II, 22). No trecho acima das Imagens, Filóstrato ainda esclarece outro tema de interesse que pode ser percebido em textos do corpus, o conhecimento sobre o mundo dos heróis, presente no texto Heroicos e também na VA em passagens sobre os heróis Aquiles (VA, III, 19; IV, 16) e Palamedes (VA, IV, 13), na própria elaboração da representação heróica de Apolônio em toda VA e em passagens como aquela em que Apolônio elogia a mitologia que trata das façanhas dos heróis. Dizem que Apolônio começou a perguntar a seus colegas o seguinte: – Existe uma mitologia? – Sim, por Zeus, disse Menipo, ao menos a que os poetas elogiam. – E como considera Esopo? – Um mitólogo e fabulista, somente. – E em qual classe de mitos há sabedoria? – Na dos poetas, respondeu, pois cantam os sucessos ocorridos. – E os de Esopo? – Rãs, asnos e charlatanismos, aptos para que os devorem velhas e crianças. – Ainda assim me parecem aptos para a sabedoria os de Esopo, pois se referem a heróis, dos quais se nutre toda a poesia [...] (VA, V, 14). Podemos perceber também nas Imagens algo já delineado em outros escritos considerados de Filóstrato, a obsessão pelo naturalismo. Swain (2009, p. 44) acredita que nas Imagens, como no Ginástico, Filóstrato procura defender a ideia de que a experiência e a CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 75 prática humana devem seguir a natureza. Também como defesa da autoria de Flávio Filóstrato das Imagens, Junther (apud DE LANNOY, 1997, p. 2428) observa o interesse pelo tema agonístico, também presente na VA e na VS. Interesse este que para Schimd e Mantero (apud DE LANNOY, 1997, p. 2428), ligam-se ao interesse maior do corpus de Flávio Filóstrato: o desejo de restauração dos antigos valores gregos.66 Como percebemos então, além da menção no Suda desta obra ser de Filóstrato II, há fortes indícios linguísticos e temáticos que se repetem em outras obras e nas Imagens, levando-nos a também classificá-la como de autoria de Flávio Filóstrato. Heroicos – Obra mencionada no Suda como de autoria de Filóstrato II Caracteriza-se como um diálogo ficcional entre um marinheiro fenício anônimo e um produtor de vinho. Os dois discutem sobre fantasmas de heróis da guerra de Troia, especialmente sobre Aquiles, tema que aparece em uma passagem da VA. Filóstrato faz nesta obra, assim como na VA, uma correção à obra homérica, em relação ao herói Palamedes, apresentado como injustiçado por Homero. Em quinto lugar lhe perguntei [Apolônio ao fantasma de Aquiles]: – Por que motivo Homero não conhece Palamedes, ou se o conhece, por que o exclui da nossa narração? E ele respondeu: – Se Palamedes não houvesse chegado a Troia, Troia nem existiria. Mas uma vez que o homem mais sábio e mais combativo morreu como havia decidido Ulisses, Homero não o introduziu em seus poemas, para não cantar infâmias contra Ulisses (VA, IV, 16). [...] suprimiu [referindo-se a Homero] qualquer menção ao divino Palamedes em benefício de Ulisses e atribuiu a Aquiles não apenas as façanhas guerreiras, até decidir que sempre que Aquiles lutasse passaria por alto os demais aqueus; pela mesma razão não cantou em seus versos a batalha de Mísia, não fez menção alguma aos feitos em que a mulher mais bela que Helena tomou parte e nenhum combate célebre dos homens que, em valentia, não estavam atrás de Aquiles. E, se tivesse falado de Palamedes, não conseguiria depois ocultar a terrível injustiça que Ulisses cometeu em relação a ele (Heroicos, 24). A ideia de continuação da existência dos heróis da Guerra de Troia e de buscar a “históriaΝ verdadeira”Ν sobre eles é, de acordo com Solmsen (1940, p. 561), o centro do 66 A ideia de desejo de Flávio Filóstrato de restaurar os antigos costumes gregos, trabalhada por muitos estudiosos, será mais bem discutida por nós ao longo da Tese. Por enquanto, cabe mencionar que não vemos nenhum interesse e razão em restaurar valores gregos nas obras do corpus contra o Império Romano, o que de fato Filóstrato não era segundo nos parece. Perceberemos os valores gregos no corpus em análise conjunta com a trajetória de inserção de Filóstrato nas estruturas político-administrativas do Império Romano. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 76 trabalho, o que estamos de acordo. Portanto, o interesse de Filóstrato não está na Guerra de Troia, mas na descrição dos seus heróis. De acordo com Elsner (2009, p. 05), Heroicos pertence a um vasto gênero de diálogo associado a Platão e aos escritos populares entre os membros da Segunda Sofística, como Plutarco e Luciano. Elsner (2009, p. 11) classifica a obra Heroicos como um diálogo filosófico-religioso, sendo que as reflexões filosóficas do diálogo se assemelham aos temas tratados nas performances sofísticas. Em relação ao estilo de ensinamento por diálogo, percebemos também semelhança com a VA e os diálogos entre Apolônio e seu discípulo Damis. Os temas dos diálogos entre Apolônio e Damis são variados, mas seguem uma linha de reflexões filosófico-religiosas, como no texto Heroicos. Nas duas obras saber e religiosidade aparecem imbricados. Ainda em VA e Heroicos, o corpo humano aparece como algo que precisa ser cuidado para a heroicização e divinização do personagem. Na VA, os cuidados de si de Apolônio estão relacionados com a negação de práticas sexuais, uma dieta que não inclua carne, a prática de atividades físicas e o uso de nada que esteja relacionado a animais nas vestimentas.67 No Heroicos, a referência é a divinização de Protesilau, ligada ao seu desprendimento das impurezas do corpo.68 [...] repudiou os alimentos animados, como não puros e maléficos para a mente. Comia frutos secos e legumes, afirmando que era puro quando vindo da própria terra. Também o vinho dizia que era uma bebida pura por vir aos homens de uma planta tão bem cultivada, mas era contrário à composição da mente, por escurecer o éter que havia na alma (VA, I, 8). [...] ele não se casaria e jamais teria relações sexuais, excedendo também o exemplo de Sófocles (VA, I, 13). [...] esse homem não se alimenta de animais, nem bebe vinho [...] (VA, I, 21). Por acaso, levar esse estilo de vida é a única coisa que provoca a agudez dos sentidos ou se trata de um poder para as coisas mais importantes e admiráveis? (VA, VIII, 7.9). Almas tão divinas e bem-aventuradas como essa, iniciam realmente sua vida quando se desprendem das impurezas do corpo, é quando conhecem os deuses e se convertem em seus servidores (Heroicos, 7). 67 Estamos compreendendo cuidados de si, segundo a definição de Michel Foucault (2010). Cuidado de si, conformeΝ esteΝ estudiosoΝ (βί1ί,Ν pέΝ βη),Ν seriaΝ “umΝ comportamentoΝ apreciadoΝ comoΝ manifestaçãoΝ deΝ virtude,Ν firmezaΝdaΝalmaΝeΝdeΝdomínioΝdeΝsiέ”ΝTalΝcomportamento,ΝtãoΝfamiliarΝaoΝcristianismo,ΝeraΝtambém conhecido na Antiguidade Clássica e adotado por alguns filósofos e correntes filosóficas, como o pitagorismo que Filóstrato nos indica ser a filosofia de Apolônio de Tiana. 68 Protesilau é herói central do Heroicos, um príncipe tessálio lendário que participou da expedição contra Troia e foi morto imediatamente ao chegar à praia inimiga (HARVEY, 1998, p. 421). CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 77 Podemos observar que a obra Heroicos possui certa familiaridade com a VA também ao descrever um fenício com vestimentas gregas, que estudou filosofia na cidade (Heroicos, 1, 2, 4), assim como Apolônio, que era da Capadócia, mas usava trajes gregos, segundo a representação de Filóstrato. A exaltação dos costumes gregos aparece nitidamente na obra, sendo Homero evocado constantemente. Segundo Solmsen (1940, p. 566-569), o pitagorismo está presente em Heroicos quando Filóstrato alude à evocação da alma de Aquiles (Heroicos, 43). Acrescentamos também a alusão ao guerreiro Euforbo, cuja alma era a mesma de Pitágoras (Heroicos, 42). Percebemos que essa doutrina da imortalidade, ligada ao nome de Pitágoras, é referida logo no começo da VA quando Filóstrato repete a ideia do Heroicos de que Pitágoras e Euforbo de Troia eram as mesmas pessoas (VA, I, 1) e quando Apolônio se diz a própria encarnação do deus egípcio Proteu (VA, I, 4).69 O Heroicos também tem sido apresentado por estudiosos de Filóstrato como uma valorização do autor aos costumes e a tradição dos gregos. Dialexis 2 – O Suda menciona que Filóstrato II escreveu discursos retóricos No Suda temos a informação de que Filóstrato escreveu discursos e provavelmente também os declamou em suas atividades de sofista. Essa menção do Suda nos leva a acreditarmos que ele também publicou estes discursos. Um destes discursos chegou até nós com o nome de Dialexis 2.70 A temática desse discurso é a mesma presente no Prefácio da obra Imagens e também na VA (II, 22), cujas passagens citamos ao tratar de Imagens, e remete à necessidade de o homem imitar a natureza. Filóstrato contrapõe Ν- nomos a φ - physis e segue uma tradição, que, segundo Henrique Cairus (2004, p. 07), foi comum entre muitos pensadores gregos dos séculos IV e V a.C., como Tucídides e alguns tratadistas hipocráticos, queΝ identificaramΝ “oΝ nomos como aquilo que é eminentemente humano, como aquilo que é gerado na esfera de influência do homem, e que deve harmonizar-se com o que lhe é externo, a saber, a physis.”Ν Portanto,Ν Dialexis 2 pode ser caracterizado como significativo dos interesses de Filóstrato em afirmar temas da tradição cultural, especialmente literária, grega. 69 Alguns estudiosos mais antigos desenvolveram a ideia de que ao associar Apolônio à doutrina pitagórica de transmigração das almas, Filóstrato o estaria ligando a um deus, dando-lhe estatuto divino e desligando-o da magia nefasta, α – goeteia, para os romanos (SOLMSEN, 1940, p. 567). 70 Tivemos acesso a esse discurso traduzido do grego para o inglês em BOWIE; ELSNER, 2009. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 78 1.3.3 Obras de autoria questionada Nero – Diálogo mencionado no Suda como de autoria de Filóstrato I Diálogo transmitido com os manuscritos de Luciano.71 Contudo, por seu estilo muito diferente de Luciano e semelhante ao de Filóstrato II, pela menção de temas semelhantes na VA e pela classificação do Suda como obra de Filóstrato I (MacLEOD, 1993, p. 505), os estudiosos o incorporaram ao corpus filostratiano. Trata-se de um diálogo que acontece em 68 na Ilha de Gyara, entre Musônio Rufo (um filósofo estoico que foi perseguido pelo imperador Nero, mas que recebe, em outros tempos, favores especiais de Vespasiano) e Menécrates.72 O tema inicial do diálogo é a construção de um canal no Istmo, empreendida por Nero, mas o diálogo segue para uma discussão sobre Nero e seus dotes musicais. Novamente vemos que o autor mistura ficção (o provável diálogo inventado) e realidade (a criação do canal). De acordo com Macleod, (1993, p. 505), tradutor do diálogo Nero do grego para o inglês, há poucas dúvidas de que esse diálogo seja de um dos três Filóstratos. Porém, esse tradutor acredita que seja obra de Filóstrato I, o pai de nosso autor, seguindo as informações do Suda. Elsner (2009, p. 03), entretanto, classifica o diálogo entre as obras de Flávio Filóstrato e assim também o classificaram Kayser, já no século XIX, segundo nos indica Macleod (1993, p. 506) e Solmsen (1940). Como sabemos, para De Lannoy (1997, p. 2395) há uma confusão no Suda e Filóstrato I parece nunca ter existido. Além disso, como já afirmamos, seria impossível Filóstrato I ter vivido na época de Nero (54-68) e ter um filho vivendo no período dos Severos (193-235). Para De Lannoy (1997, p. 2399), o diálogo Nero é de Filóstrato II, pois há passagens nele que aparecem de maneira semelhante na VA (IV, 24) e em Heroicos, como o próprio projeto de Nero de construir um canal através do Istmo de Corinto. A questão da abertura do canal no Istmo também é assunto tratado na VS (II, 551), na biografia de Herodes, o ático, mostrando o desejo desse sofista de empreender, de maneira evergética, essa obra. 71 Luciano foi um escritor do século II, nascido em Samósata, parte romana da Síria (HARVEY, 1998, p. 312). De acordo com De Lannoy (1997, p. 2396), Menécrates foi um cidadão da Ilha de Lemnos. Macleod (1993, p. 507) informa que ele tem sido considerado pelos estudiosos, usualmente, como um personagem imaginado por Filóstrato, mas que é citado por Suetônio (As Vidas dos Doze Césares, Nero, 30) e Dião Cássio (História Romana, XLIII, 1) como um músico admirado por Nero. Menécrates é também mencionado por Petrônio no Satyricon (LXXIII), obra contemporânea ao governo de Nero. Pensamos que talvez Filóstrato tenha usado esse personagem, citado por outros autores do Império como alguém a quem Nero rendia admiração, justamente em tom retórico a fim de convencer melhor seus leitores dos atributos artísticos negativos de Nero, depreciando-o pelas palavras de um artista que esse imperador possivelmente admirou. 72 CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 79 Além disso, De Lannoy compara Nero com Heroicos por ambas as obras serem escritas em forma de diálogo, terem a mesma base estrutural e serem elaboradas com as mesmas técnicas literárias. Assim, mesmo as extensões das duas obras sendo diferentes, ambas apresentam semelhanças impressionantes em relação às técnicas literárias, como a ideia de entretenimento entre narrador73 e seu interlocutor.74 Nos dois textos há uma conversa preliminar na qual o narrador mostra conhecimentos sobre um tema e um número de fatos que interessa ao interlocutor, entre outras habilidades literárias que as obras possuem em comum (DE LANNOY, 1997, p. 2401). Podemos perceber ainda que há em todo o diálogo um tom depreciativo em relação ao imperador Nero, algo também comum na VA (IV, V, VII) e em outros escritores do período imperial, como Suetônio (As Vidas dos Doze Césares, Nero), Tácito (Anais) e Dião Cássio (História Romana, LXI). Outra relação de Nero com a VA é a citação de Musônio Rufo. A primeira aparição de Musônio na VA (IV, 35) é quando Filóstrato trata das hostilidades de Nero com os filósofos. Percebemos também que em Nero, Musônio aparece em diálogo com Menécrates, e na VA (IV, 46) com Apolônio de Tiana, por meio de trocas de cartas. Por todas as referências citadas acima, classificamos esta obra também dentro do corpus de textos de Flávio Filóstrato. Ginástico – Texto mencionado no Suda como de autoria de Filóstrato I Trata-se de um relato sobre arte atlética e atletas da Grécia, com referência especial aos Jogos Olímpicos. O objetivo central do escritor é instruir os mestres treinadores dos atletas para que estes consigam bons resultados, o que para ele era fundamental, especialmente porque a arte da ginástica de seu tempo tinha decaído em relação ao passado. Na obra Filóstrato trata as práticas de ginástica como algo próprio da natureza humana, que se desenvolvem paralelamente com a vida. Alguns autores como Francesca Mestre (1996), tradutora do texto, defendem que nesta obra há uma forte vontade de restauração das práticas gregas antigas, sendo o esporte visto como uma das atividades centrais da paideia helênica. Elsner (2009, p. 05), defendendo que a obra foi escrita por Flávio Filóstrato, vê nela um tom apologético dos valores da Segunda Sofística e acredita que tenha sido escrita antes da introdução de Filóstrato na corte de Júlia. Ainda conforme Elsner (2009, p. 05), em 73 74 Em Heroicos o narrador é o produtor de vinhos, no diálogo Nero é Musônio. Em Heroicos o interlocutor é o fenício, no diálogo Nero é Menécrates. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 80 contraste com os outros textos de Filóstrato, Ginástico tem a forma de um tratado técnico combinado com a defesa de uma habilidade pedagógica grega no treinamento dos atletas, mesclando dois gêneros, o estudo e a apologia, muito comum na Segunda Sofística. Em relação à autoria, concordamos com a apologia do esporte como elemento da paideia. No entanto, novamente percebemos o excesso dos estudiosos em ler os textos de Filóstrato como parte de uma vontade de restaurar práticas gregas, sem crítica ao que isso significava para ele. Um argumento em favor da autoria da obra Ginástico ser de nosso Filóstrato está na menção ao atleta Hélix, contemporâneo de Filóstrato. Segundo Dião Cássio, Hélix participou dos Jogos Capitolinos – Ludi Capitolini – em Roma na época de Heliogábalo (218-222), obtendo duas vitórias. Além disso, o jovem deve ser estimulado com aplausos, esse é o entretenimento mais estimulante para eles. Com tal técnica foi treinado Hélix, o fenício, e não apenas quando jovem, mas também em idade adulta, sua fama chegou a ser admirável, sobretudo em relação a outros que eu mesmo sei que foram preparados na moleza (Ginástico, 46). Sardanápalo [referindo-se a Heliogábalo] conduziu jogos e numerosos espetáculos nos quais Aureliano Hélix, o atleta, foi campeão. Esse homem superou de longe seus competidores, ele desejava competir em ambos, luta e pancrácio, em Olímpia e, de fato, foi vencedor nos dois eventos dos Jogos Capitolinos. (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXX, 10, 2-3). Assim, pode ser que a dupla vitória de Hélix atenha atraído Filóstrato para mencionálo. Caso essa ideia seja correta, a obra Ginástico, além de ser do nosso Filóstrato e não do Filóstrato I pela datação, teria sido escrita após o acontecimento dos jogos de 219 e não antes da introdução de Filóstrato na corte severiana, como defende Elsner. De Lannoy (1997, p. 2407), pondera que a obra trata de Hélix no passado, o que torna ainda mais questionável que sua autoria seja de Filóstrato I, já que este estaria bem idoso quando a glória de Hélix tivesse passado. Também Flinterman (1995, p. 07) concorda que há uma dificuldade em enquadrar Filóstrato I como escritor após 220; data que marca as vitórias de Hélix, sendo a escrita do texto Ginástico posterior a elas – o que faria a obra não ser de Filóstrato I. Além disso, há em Ginástico paralelos com Heroicos em relação ao atletismo. É nesse sentido que percebemos Protesilau apresentado nesta obra como amante do atletismo (Heroicos, 14), havendo também em Heroicos discussões sobre práticas esportivas. Para De Lannoy (1997, p. 2409), as duas obras têm em comum a ideia de renovar aspectos da cultura grega. Embora De Lannoy não especifique quais seriam estes aspectos, podemos identificá- CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 81 los com o atletismo, o culto aos heróis e a mitologia grega. Tais características, para nós, podem ser facilmente notadas também na VA em relação à representação de Apolônio como ordenador de cultos religiosos gregos. Dessa forma, para Bowie (1994), Mestre (1996), De Lannoy (1997), Elsner (2009) e Swain (2009), o texto Ginástico pode ser considerado como de autoria do mesmo escritor da VA e da VS. Concordamos com a ideia de a autoria de Ginástico ser de Flávio Filóstrato, corroborando as considerações mencionadas acima. Além disso, acrescentamos que Ginástico mostra um autor preocupado com o controle do corpo, os cuidados de si que os atletas deveriam ter para obter sucesso, tomando os devidos cuidados em relação à alimentação, com o excesso de ingestão de vinho, e em relação à prática sexual. Os que comem muito são facilmente reconhecidos por terem a testa franzida, por sua respiração profunda e agitada, pelos olhos fundos que lhes fazem as clavículas e pelas linhas oblíquas das cavidades das laterais. Os que tomam muito vinho têm o ventre excessivamente volumoso, aspecto sanguíneo e líquido nas laterais e nos joelhos. Aqueles que dos prazeres sexuais passam para o treinamento ginástico serão facilmente reconhecidos: faltam-lhes forças, respiram agitadamente, têm impulsos débeis, esgotam-se com os esforços e cedem logo em seguida (Ginástico, 48). Os que comem muito, se praticam esportes leves ou pesados, devem ser tratados com massagens de cima para baixo para eliminar a gordura que lhes sobra em partes do corpo (Ginástico, 50). O cuidado de si, nesses aspectos, e a preocupação com a alimentação e as práticas sexuais, podem ser bem percebidos em toda representação de Apolônio de Tiana na VA, como já mencionamos neste capítulo. Ginástico não trata explicitamente de relações políticas propriamente, tratadas muito bem em VA, VS e Nero, o que poderia nos levar a pensar que aquela obra tenha sido escrita antes da introdução de Filóstrato na corte de Júlia e suas preocupações ligadas diretamente às altas esferas do poder político romano. Mas, pela citação do atleta Hélix, referida acima, tratado no passado na obra, concordamos com a datação da obra Ginástico ser posterior a 219, quando Hélix recebeu glórias em Roma. Também achamos que o desenvolvimento de temas aparentemente apenas culturais não significa que uma obra deva ser lida sem preocupações políticas. É assim que nos propomos ler a afirmação de características da paideia também no Ginástico, dentro das preocupações de Filóstrato em afirmar um papel para seu grupo, possuidor desta paideia dentro do contexto em que vivia. CAPÍTULO 1 EM TORNO DE FILÓSTRATO | 82 Sobre a autoria das várias obras do corpus, percebemos que as liga um tema geral, a apresentação de traços da tradição e da cultura helênica, como mostraram Whitmarsh (2007), Bowie (2009), Swain (2009) e Elsner (2009). Estamos de acordo com essa percepção, embora julguemos que essa é uma característica geral do corpus, havendo peculiaridades de temas de uma obra para outra que devem ser tratados pelos estudiosos. Acreditamos também que apenas pautar na defesa de uma temática não basta para classificar as obras do corpus como do mesmo autor. Sendo assim, consideramos fundamental que o estudioso que procura classificar a autoria de obras analise especialmente seus estilos e as respectivas características de linguagem. Em relação à classificação das obras pelo estilo, Anderson (1986, p. 295) acredita que podemos concluir que há uma grande semelhança de estilo entre os vários Filóstratos, tese refutada por De Lannoy (1997, p. 2429) como pura ilusão, já que não há nenhuma menção a uma possível identidade de estilo entre Flávio Filóstrato e Filóstrato de Lemnos na VS, o que deveria acontecer, já que o estilo das obras é de fato muito parecido. Concordamos com os autores que classificam todas as obras que chegaram até nós, remetidas a um autor chamado Filóstrato, como de autoria da mesma pessoa,75 no caso, de autoria de Flávio Filóstrato, pela semelhança de estilo entre as mesmas, pelas semelhanças linguísticas e pelos motivos em comum que se repetem de uma obra para outra, como tratamos na análise de cada uma delas. Com referência à datação de escrita das obras que fazem parte do corpus de Flávio Filóstrato, pelos personagens citados e pelo estudo de temas e acontecimentos relatados acima, estamos de acordo com Goldhill (2009, p. 287-288), em que o corpus variado de nosso autor foi escrito no início do século III, provavelmente nos seus dois ou três primeiros decênios. Finalmente, cabe ressaltar que o corpus de Filóstrato é importante para compreender a escrita da VA, uma vez que nosso documento principal de pesquisa mostra, de maneira geral, características de todas as obras do autor, como, por exemplo, a mistura de ficção e realidade, tão presentes nas Cartas e em Nero, e a mistura de estilos literários, como veremos ao tratar o gênero literário da obra sobre o tianeu no próximo capítulo. 75 Com exceção da Parte 2 de Imagens, em que o próprio autor se identifica como neto do Filóstrato escritor de uma obra homônima mais antiga, chamada na tradição de primeira parte das Imagens. CAPÍTULO 2 CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA 2.1 Considerações sobre o gênero literário da Vida de Apolônio de Tiana M uitos estudiosos se propuseram a discutir o gênero literário da VA. Desde 1917 com o texto Apollonius von Tyana und die biographie des Philostratus, de Eduard Meyer (apud ANDERSON, 1986, p. 156), que levantou a hipótese da invenção do testemunho ocular de Damis, citado por Filóstrato como fonte para a escrita da VA (I, 3), têm-se discutido muito sobre o quão longe o autor poderia ter ido na utilização de elementos de ficção, dando margem à discussão sobre o gênero literário da obra. Dessa forma, temos sua classificação como romance, biografia, hagiografia, aretologia ou, ainda, um gênero híbrido entre essas formas.1 De maneira geral, temos três tipos de opiniões que analisam gênero e realidade histórica das informações em conjunto. Uma primeira opinião sobre o gênero da obra defende a historicidade das informações trazidas na VA. Nesse sentido, o texto filostratiano seria uma biografia-histórica. Entre os autores que compartilham essa opinião, o trabalho mais conhecido é o de Fulvio Grosso, La Vita di Apollonio di Tiana come fonte storica (1954), que acredita na semelhança entre o retrato do Apolônio de Filóstrato e a realidade histórica desse personagem. Uma segunda opinião critica a historicidade do texto de Filóstrato, considerando o caráter extremamente ficcional e imaginativo do autor. Partilhando essa opinião temos como principal estudioso Bowie, importante intelectual inglês estudioso da Segunda Sofística, que desenvolve a tese em questão no texto Apollonius of Tyana: Tradition and Reality (1978). Christopher Jones, na Introdução de sua tradução da VA para a Harvard University Press – Loeb Classical Library (2005), também afirma que a obra tem muito de ficção, que o Apolônio de Filóstrato certamente é muito diferente do Apolônio histórico e que mesmo diante da dificuldade em se construir um Apolônio histórico, percebemos a imaginação do autor sobre este personagem. Embora afirmando não aceitar a VA como um romance, em Apollonius of Tyana in legend and history (1986), Maria Dzielska confronta documentos que citam Apolônio e a possibilidade de as informações serem procedentes, em busca do Apolônio histórico. Essa historiadora apresenta vários argumentos para convencer o leitor de que Filóstrato inventou muito sobre o personagem, concordando com as afirmações de Bowie (1978) e posicionando-se contra os argumentos de Grosso (1954). 1 Ainda neste subcapítulo explicaremos o que são aretologias. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 85 Já uma terceira opinião é a dos estudiosos que acreditam nos aumentos de Filóstrato, porém, construídos sobre um fundo de realidade do Apolônio histórico, ficando a VA entre a história, a biografia, a ficção, e prenunciando aspectos hagiográficos para alguns, como Marc Van Uytfanghe, em La vie d’Apollonius de Tyane et le discours hagiographique (2009). O gênero literário da VA, diante dessa perspectiva, será chamado por nós de gênero híbrido. Desse grupo podemos destacar ideias trazidas pelo historiador espanhol Gascó, no texto El viaje de Apolônio de Tiana a la Bética (siglo I d.C.), de 1985, os esforços de Anderson em Philostratus. Biography and Belles Lettres in the third century A.D. (1986) e as reflexões de Flinterman em Power, Paideia & Pythagoreanism (1995). Este último considera a obra entre a biografia e o romance, chamando-a de vida romanceada. Também estão entre estes estudiosos James Francis, que no artigo Truthful Fiction: new questions to old answers on Philostratus’s Life of Apollonius (1998), sustenta que elementos de ficção e realidade estão misturados na obra, não havendo uma distinção clara entre eles. Segundo Francis, entretanto, estudiosos modernos, entretanto, afirmam que ficção e história são categorias que se opõem, assertiva com a qual ele não concorda. O próprio Bowie parece rever seu posicionamento de 1978 e em Philostratus. Writer of fiction (1994) aponta algumas características da VA que excluiriam elementos de romance e demonstrariam a intenção de Filóstrato de escrever uma biografia com fundo histórico. Para nos posicionarmos diante desse debate, começaremos analisando o título do texto buscando perceber se ele nos indica algo sobre sua proposta literária. De acordo com Swain (2003, p. 381), o título original da VA parece ser T Ν Ν ΝΤυα α Ἀπ Ν– Ta es ton Tuanea Apollonion, Em honra de Apolônio de Tiana. É esse também o título aceito na primeira edição da VA para a Harvard University Press – Loeb Classical Library, traduzida por F. C. Conybeare em 1921. O título já indica o tom laudatório da obra em relação ao protagonista. Se aceitarmos tal título como o original filostratiano, como fazem esses estudiosos, nele Filóstrato não nega sua defesa de Apolônio. Além disso, o autor retira de Apolônio as suspeitas de praticante de magia e charlatanismo que parecem ter recaído sobre ele (VA, I, 2; V, 39) e o apresenta como um digno herói para os que não o conheciam. Portanto, Filóstrato já nos indica que será parcial ao descrever Apolônio, sua admiração podendoΝserΝpercebidaΝemΝtodaΝaΝobra,ΝcomoΝconstatamosΝnoΝtrechoΝaΝseguirμΝ“[έέέ]ΝnemΝsequerΝ omitidaΝpeloΝsábioΝemΝcujaΝhonraΝescreviΝestesΝrelatos”Ν(VA, III, 6). A ênfase de Filóstrato na admiração que as pessoas rendiam a Apolônio também pode ser percebida nesta outra passagemμΝ“[έέέ]ΝporΝconsideraremΝnossoΝhomemΝmaisΝpoderosoΝqueΝaΝtempestade,ΝoΝfogoΝeΝasΝ CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 86 maiores dificuldades, queriam embarcar com ele e lhe rogavam que lhes permitisse sua participaçãoΝnaΝtravessia”Ν(VA, IV, 13). Conforme Adam Miller Kemezis (2006, p. 141), o uso do artigo grego T , seguido da preposição daria o sentido encomiástico que, no entanto, opõe o texto a uma biografia propriamente e por isso têm-se preferido traduzir seu título para O livro de Apolônio.2 No entanto, Jones (2005) diz que a preposição não necessariamente pode dar um tom encomiástico à obra. De qualquer forma, Philippe Levillain (2003, p. 145) pondera que as biografias gregas tinham caráter elogioso. O gênero biográfico antigo buscava modelos paradigmáticos, com heróis cheios de virtudes que as novas gerações deveriam seguir (SILVA, M. F., 2004, p. 24).3 Mas não eram apenas elogios que apareciam nas biografias antigas. Jose Luis Calvo Martínez (2004, p. 38) atenta para a intencionalidade dos biógrafos antigos em elogiar (classe encomiástica) ou denegrir (classe difamatória) um indivíduo, ressaltando seu caráter (ethos)ΝpeloΝexameΝdeΝsuasΝaçõesΝouΝpalavrasέΝE,ΝnesteΝsentido,Ν“[έέέ]ΝaΝ biografia serve para veicular as ideias sobre o comportamento moral individual, com maior motivo se converte desde seus inícios em um instrumentoΝ deΝ ideologiaΝ política”Ν (MARTÍNEZ, 2004, p. 48). Revelar o caráter de um personagem era aspecto fundamental das biografias antigas (COX, 1983, p. XI). Dessa maneira, o texto de Filóstrato se encaixa perfeitamente no modelo de uma biografia com intenções de mostrar um indivíduo que deveria ser seguido e copiado por seu valor moral, construindo nele um herói. Além disso, Filóstrato se propõe a escrever uma biografia e usa o termo Ν– bios: “QuantoΝaΝmim,ΝvouΝdeixarΝesseΝhomem,ΝjáΝqueΝnãoΝmeΝpropusΝaΝinjuriá-lo, mas proporcionar o relato da vidaΝdeΝApolônioΝaΝquemΝaindaΝnãoΝaΝconhece”Ν(VA, V, 39). O biógrafo Eunápio de Sardes, nos últimos anos do século IV (provável datação de sua obra Vidas de filósofos e sofistas) reconheceu a VA também como uma bios, mencionando que com esse nome Filóstrato nomeou sua narração sobre o tianeu, mas que o denso caráter apologético da obra se sobrepõeμΝ“EΝόilóstratoΝdeΝδemnosΝescreveuΝumΝrelatoΝcompletoΝsobreΝApolônio,Νintitulandoo Vida de Apolônio, mas que deveria tê-lo intitulado A visita de deus à humanidade”Ν (EUNÁPIO, Vidas de filósofos e sofistas, 354). 2 Na maioria das edições a que tivemos acesso, a tradução do título é Vida de Apolônio de Tiana. Levillain (2003) trata de biografias gregas, mas como nos mostra Maria de Fátima Silva (2004), há um consenso de que as biografias como gênero literário autônomo são uma criação helenística. Contudo, desde muito tempo na história da Grécia havia ascendentes para as biografias, como a peça Os cavaleiros, de Aristófanes, analisada por Silva (2004) e textos encomiásticos como o Evágoras, de Isócrates e o Agesilao, de Xenofonte (DOSSE, 2009, p. 124). 3 CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 87 A característica central de um texto biográfico é ser uma sequência cronológica de uma vida, ou várias vidas no caso das biografias coletivas, do nascimento do biografado até a sua morte, revelando seu caráter. Desse ponto de vista, inegavelmente a VA é uma biografia, com a peculiaridade de que não relata a morte do biografado, mas seu desaparecimento e as histórias sobre o que se fala a respeito de sua morte no final do Livro VIII, o último livro da obra. Pensando também em características centrais das biografias de todos os tempos, Bourdieu, no capítulo A Ilusão Biográfica, da obra Razões Práticas (1996), tentou formular uma teoria da biografia. Para este sociólogo, toda biografia é uma ilusão, pois o biógrafo tentando imprimir um sentido para a vida do biografado, estabelece uma cronologia organizada e objetiva, com acontecimentos em ordem contínua, totalmente previsíveis. Nesse sentido, um dos pontos que o biógrafo ressalta, ainda conforme Bourdieu (1996, p. 74), é o que já havia de promissor na vida do biografado em seus primeiros anos, como observamos queΝ όilóstratoΝ faz,Ν porΝ exemplo,Ν nestaΝ passagemμΝ “AoΝ chegarΝ àΝ idadeΝ deΝ aprenderΝ asΝ letras,Ν mostrou sua capacidade de memória e o poder de sua aplicação [...] Todos os olhos se voltavamΝparaΝele,ΝpoisΝeraΝadmirávelΝdesdeΝmuitoΝtenraΝidade”Ν(VA, I, 7). A descrição detalhada da infância e juventude do biografado, dando ênfase a esses períodos e mostrando os anos formativos como fundamentais para determinar a maneira de ser do biografado, é outro aspecto que caracterizava as biografias na Antiguidade Clássica, como mostram T. Häag e P. Rousseau (2000, p. 03). Porém, como a infância dos personagens era, em geral, pouco conhecida, os biógrafos eram hábeis em preencher as lacunas. Essa característica é facilmente percebida na VA, pois Filóstrato descreve desde quando a mãe de Apolônio engravida, seu nascimento e até detalhes sobre sua formação na juventude (VA, I, 412). Ele chega a mencionar que Apolônio é a encarnação do deus egípcio Proteo (VA, I, 4), que aparece à mãe do biografado quando esta estava grávida, anunciando que ela o esperava e ligando Apolônio a sabedoria de uma divindade. Segundo Häag e Rousseau (2000, p. 06), as biografias antigas também tinham como característica o enfoque mais no indivíduo do que nos eventos históricos, desenvolvendo um topos biográfico com ênfase no carisma do herói, na duração de sua vida e na sua morte. Percebemos que Filóstrato faz isso na VA, onde os acontecimentos e mensagens políticas são tratados como mero pano de fundo à vida de Apolônio, não sendo, porém, menos importantes para passar uma das mensagens que o biógrafo pretendeu atingir, segundo nossa interpretação. Como exemplo disso, percebemos na passagem em que Apolônio aconselha Vespasiano sobre aspectos característicos de um bom governante, mensagens extremamente CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 88 importantes que Filóstrato provavelmente queria transmitir aos seus leitores e à casa imperial de sua época, que são, no entanto, mostradas como aspectos de Apolônio como bom conselheiro, sábio e de caráter nobre, em meio à narrativa sobre sua vida, cronologicamente apresentada (VA, V, 27-33). Como podemos notar, portanto, algumas passagens de feitos de Apolônio são subservientes à nobreza de seu caráter, que aparece destacada a todo o momento na obra, mostrando justamente que ele é bom conselheiro por ser ilustre e bom.4 Como lemos em passagens como esta a seguir, em que Apolônio é considerado bom pelo sátrapa do rei parto, na frase pronunciada por este: 5 – Como um grande achado, os deuses nos trazem aqui este homem, pois se trata de um bom homem e, como outro homem bom, fará nosso rei muito melhor, mais moderado e suave. Isso, efetivamente, se manifesta neste homem. Correram, assim, anunciando a todos a novidade, que ante as portas do rei estava um sábio grego e bom conselheiro (VA, I, 28). A mesma nobreza de caráter de Apolônio é destacada em sua defesa da acusação de praticante de magia frente a Domiciano, quando ele próprio comenta em diálogo com o imperadorΝacusadorΝqueΝ“[έέέ]Νqualquer homem que seja considerado bom, vê-se honrado com a denominação deΝdeusΝ[έέέ]”Ν(VA, VIII, 5). Desta maneira, dentro dos padrões do que era uma biografia na Antiguidade Clássica (e tendo como ideia que Filóstrato não usaria o termo – bios para definir seu estilo se não fosse de fato essa sua intenção, sendo que ele como escritor conhecia o caráter de tal gênero), preferimos classificar a VA como tendo uma natureza biográfica. Porém, não devemos desconsiderar o caráter ficcional da VA. Para tratar desse aspecto, primeiramente devemos perceber que havia uma tradição conhecida em torno de Apolônio de Tiana anterior ao texto de Filóstrato, embora a mesma não nos pareça muito grande ou não nos chegaram informações suficientes para considerá-la como tal. Sabemos que Apolônio é mencionado de maneira negativa em Luciano de Samósata: “EsteΝmestreΝeΝamanteΝeraΝtianeuΝeΝdosΝqueΝsabiamΝdeΝtodaΝaΝsuaΝtragédia,ΝjáΝvêsΝdeΝqueΝtipoΝéΝ oΝ homemΝ deΝ quemΝ teΝ falo”Ν (δUἑIAστ,Ν Alexandre ou o falso profeta, 5). De acordo com Gascó (1986, p. 280), podemos também considerar a passagem XXIX da obra Philopseudes, deΝ δuciano,Ν comoΝ mençãoΝ irônicaΝ eΝ críticaΝ aΝ ApolônioμΝ “σesteΝ momentoΝ entrouΝ naΝ casaΝ oΝ 4 Há, no entanto, uma longa discussão de estudiosos sobre a historicidade de muitos elementos que aparecem na VA como feitos de Apolônio, que apresentaremos ainda neste tópico. 5 Sátrapa era a denominação dos governadores de províncias, satrapias, dos antigos Impérios Persa e Parto. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 89 pitagórico Arígnoto, o de cabelo comprido e aspecto solene. Já se sabe a quem me refiro, àquele que goza de tanta fama por sua sabedoria e que leva o nome de deusέ”ΝἑoncordamosΝ que tal passagem da obra de Luciano pode referir-se a Apolônio, pois confere com descrições da VA e das cartas sobre o cabelo, a sabedoria e o caráter divino de Apolônio, estando, no entanto, em Luciano de forma pejorativa.6 Aparecem menções a Apolônio em Dião Cássio, contemporâneo de Filóstrato, quando o autor se refere de maneira duvidosa à visão da morte do imperador Domiciano por Apolônio, também relatada na VA (VIII, 26). Certo Apolônio de Tiana, naquele mesmo dia e naquela mesma hora, quando Domiciano estava sendo assassinado (como que determinando precisamente os eventos que aconteciam em ambos os locais) subiu no alto de uma rocha em Éfeso (ou possivelmente em outro lugar) e, tendo reunido a população, proferiu estas palavrasμΝ “ἐom,Ν Stéfano!Ν ἐravo,Ν Stéfano!Ν όereΝ oΝ desgraçadoΝ sanguinário!Ν Atingiste,Ν feriste,Ν matasteέ”Ν IssoΝ éΝ oΝ queΝ realmenteΝ aconteceu,Ν embora eu duvide dez mil vezes (História Romana, LXVII, 18). Dião Cássio também menciona negativamente as práticas religiosas do imperador Caracala ligadas a Apolônio de Tiana. Sua afeição a magos ( Ν– magois)ΝeΝfeiticeirosΝ( Ν– goesin) era tão grande que ele elogiou e honrou a Apolônio da Capadócia, que viveu na época de Domiciano e foi julgado como mago e feiticeiro. A este ele ergueu um templo (História Romana, LXXVIII, 18, 4). Tais passagens de Dião Cássio são bem significativas para percebermos que, mesmo na época em que Filóstrato viveu e escreveu sobre Apolônio havia, uma imagem negativa deste personagem, como o próprio autor nos indica (VA, I, 2), e que ele buscou reverter. Dião sublinha o aspecto negativo de Apolônio ao escolher citar que ele viveu sob Domiciano. Entre todos os imperadores que governaram enquanto Apolônio estava vivo, Domiciano foi justamente o imperador que o acusou de práticas mágicas, segundo Filóstrato (VA, livros VII e VIII). Também pela análise das passagens de Luciano podemos perceber que havia uma imagem negativa de Apolônio na tradição. Neste momento perguntamos: não seria arriscado para Filóstrato escrever sobre um personagem com imagem negativa em sua época? E nossa resposta é não, desde que o biógrafo selecionasse o que dizer, o que ele fez, ressaltando, exagerando e até criando 6 Sobre o cabelo comprido de Apolônio: VA, I, 8, 32; VIII, 7.2, 7.5. Sobre sua sabedoria: VA, I, 2, 29, 38, 40; II, 41; III, 6, 12, 16, 17, 23, 38; IV, 10, 40; VII, 11, 14; VIII, 7.1, 7.11. Sobre seu caráter divino: VA, I, 2, 21; II, 17, 29, 41; III, 16, 25, 28; IV, 10, 20, 45; V, 12; VI, 39, 43; VII, 38, 41; VIII, 13, 15, 23, 26. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 90 características positivas de Apolônio e legitimando sua escrita ao mencionar que foi encomendada por Júlia Domna (VA, I, 3), o que pode ser real ou não, mas que de fato legitimava a obra. Voltando às menções a Apolônio na documentação, em autores posteriores a Filóstrato temos referências a este personagem em vários escritos, entre os quais: Orígines, Contra Celso, VI, 41; História Augusta, (Vida de Alexandre Severo, 29, 2 e Vida de Aureliano, 24) e Eusébio de Cesareia, Resposta a Hierocles. Nesta última obra, seu autor critica Hierocles, que no texto Amante da Verdade, desconhecido atualmente, compara Apolônio de Tiana a Jesus Cristo.7 Além dessas referências não devemos deixar de mencionar a tradição de cartas atribuídas a Apolônio que, segundo Filóstrato, foi utilizada por ele na escrita da VA, sendo o uso destas cartas citado em passagens da biografia, assim como algumas delas. Tenho recolhido informações, em parte de cidades que o amavam, em parte de templos que se viram restaurados por ele quando seus ritos já haviam caído em desuso, em parte do que disseram outros acerca dele, e, em parte de suas cartas. Ele manteve correspondência com reis, sofistas, filósofos, eleos, délficos, indianos, egípcios, sobre os deuses, os costumes, os princípios morais e as leis, e, em suas cartas arrumava aquilo em que erravam (VA, I, 2). De que foi realmente a Císsia deixou testemunho no que escreveu ao sofista de Clazómenas, pois era tão nobre e generoso que, quando viu os erétrios se lembrou do sofista e lhe comunicou por escrito o que viu e o que fez entre estes. Ele lhe pede, ao longo de toda a carta, que tenha piedade dos erétrios e que se ocupe deles em um discurso, não se recusando a chorar por eles (VA, I, 23). Embora a origem dessas cartas seja bastante controversa, elas podem ter sido lidas na época de escrita da VA, criando aspectos de memória em torno do personagem. Ainda teríamos uma obra de Máximo de Egas (VA, I, 3) e tradições locais sobre Apolônio citadas 7 Christopher Jones, em Testimonia (2006), cataloga, no volume III da VA publicado pela Harvard University Press (Loeb Classical Library), uma série de menções a Apolônio de Tiana em grego e latim, de autores posteriores a Filóstrato, como todos os acima citados, além de: citação no léxico bizântino Suda, Porfírio, Jâmblico, um autor anônimo conhecido como Peregrino de Bourdeaux, Arnóbio, Lactâncio, Libânio, Temístio, Amiano Marcelino, Jerônimo, Agostinho, Flávio Marcelino, Pseudo-Ambrósio, Eunápio, Sinésio, Nilo, Cirilo, Isidoro, Pseudo-Nono, Basílio, Pseudo-Justino, Macário e Sidônio. Dzielska (1986, p. 75) observa que Apolônio é citado como Ν– goes (praticante de magia no sentido negativo entre gregos e romanos) em uma homilia de João Crisóstomo. Em relação à cultura material, referências a Apolônio aparecem em uma inscrição honorífica de Mopsouhestia (atual Adana, na Turquia) e em um papiro mágico grego. Há também menções de talismãs atribuídos a Apolônio em Pseudo-Justino, autor do século IV, e em outros autores da Antiguidade Tardia e da Idade Média (DZIELSKA, 1986, p. 107-108). Ainda temos descrições, por cronistas bizantinos, de monumentos dedicados a ele com poderes apotropaicos, erguidos em Bizâncio (CORNELLI, 2001, p. 65). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 91 como documentos usados por Filóstrato, como lemos na primeira passagem da VA citada acima (VA, I, 2). Portanto, tendo em vista a existência real de uma memória em torno de Apolônio, anterior ao trabalho de Filóstrato, não podemos considerar o caráter simplesmente inventivo da VA. Para nós, diante desses elementos apresentados, nosso Filóstrato não poderia desconsiderar a memória e mesmo a provável existência de um culto a Apolônio e criar um personagem totalmente fantasioso, fruto unicamente de sua imaginação e talento literário.8 Além disso, também devemos considerar a reputação do autor, um famoso sofista, membro de um grupo de intelectuais próximos da imperatriz Júlia Domna. No entanto, como podemos perceber, essa tradição, pelo menos a julgar pelo que chegou até nós, não era muito grande, o que deixou margem para os exageros e aspectos ficcionais. Um exagero, em nossa leitura estaria nesta passagem, na qual Apolônio discursa em várias cidades e recebe o reconhecimento de toda a Grécia. Tal caracterização do tianeu nos causa estranhamento sobre como um personagem tão conhecido, como é o Apolônio mostrado por Filóstrato, possa não encontrar eco parecido em outros documentos que chegaram até nós: Um rumor imediato e insistente se estendeu pelo mundo grego, que nosso homem estava vivo e havia chegado a Olímpia [...]. Mas quando se confirmou sua chegada à Grécia, todos se reuniram para vê-lo, como nunca havia acontecido antes, nem em uma olímpiada [...] os mais distintos dos atenienses se reuniram no templo e a juventude de toda a terra, que se reunia em Atenas, se encontrava também em Olímpia. Vieram, ainda, alguns de Mégara e muitos beócios, gente de Argos, Fócide e da Tessália, e eram os mais distintos entre eles (VA, VIII, 15). Sendo assim, mesmo diante de um fundo de historicidade sobre o personagem, devemos notar que Filóstrato foi bastante parcial em alguns elementos, exagerando para fazer com que seu Apolônio receba o reconhecimento que pretende, selecionando o que queria dizer sobre seu personagem, excluindo as referências negativas e usando apenas as positivas, conforme suas pretensões de transformar seu Apolônio em um herói. O próprio Filóstrato nos mostra que selecionou o que dizer ao não usar o livro de Moeragenes sobre Apolônio por nesteΝfaltaremΝelementosΝsobreΝoΝbiografadoμΝ“AΝεoeragenesΝsemΝdúvidaΝnãoΝiremosΝrecorrer,Ν 8 O culto em torno de Apolônio é citado por Filóstrato em relação às cidades que o amavam (VA, I, 2), em relação ao erguimento de um templo dedicado a ele (VA, I, 5) e estátuas em sua honra em templos em Tiana (VIII, 30). Dião Cássio (História Romana, LXXVIII, 18, 4) informa que Caracala acendia incensos a Apolônio e em viagem a Tiana mandou erguer um templo a ele, provavelmente o templo citado por Filóstrato. Na Vida de Alexandre Severo (29, 2), o escritor da História Augusta menciona que este imperador tinha um altar em honra a Cristo, Apolônio de Tiana, Abraão e Orfeu, o que comentaremos ainda neste capítulo. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 92 pois mesmo tendo escrito quatro livros sobre Apolônio, ignorou muitas coisas sobre nosso homem”Ν(VA, I, 3). 9 Há estudiosos, como Pajares (1979, p. 18), Flinterman (1995, p. 69) e Swain (2003, p. 384), que acreditam que o livro de Moeragenes trazia elementos negativos sobre a imagem de Apolônio e por essa razão foi rejeitado por Filóstrato, ideia com que concordamos já que percebemos que nosso sofista nega a veracidade de testemunhos que mostram seu Apolônio em situações negativas, como podemos ler:10 Estas preliminares de sua defesa, que aconteceram em um lugar privado ante Domiciano, nos descreveu Damis desta maneira, mas divulgaram uma versão maliciosa na qual dizem que ele se defendeu primeiro e foi preso depois, quando rasparam seu cabelo. Também inventaram uma carta, escrita em jônio e entediante por sua prolixidade, e nela pretenderam dizer que Apolônio suplicou a Domiciano, pedindo que ele lhe livrasse das ataduras (VA, VII, 35). Filóstrato rejeita a informação de que Apolônio tenha se envolvido amorosamente com a mãe do sofista Alexandre Peloplatão, negando tal envolvimento na VS em meio à biografia de Alexandre, em passagem já citada no primeiro capítulo (VS, II, 570). O que podemos perceber aqui é que novamente Filóstrato selecionou o que dizer sobre Apolônio na VA, para que nada entrasse em conflito com o tipo heroico que desejava construir,Ν criandoΝ aΝ “ilusãoΝ biográfica”Ν daΝ coerênciaΝ deΝ umaΝ vida,Ν apontadaΝ porΝ ἐourdieuΝ como comum nas biografias. Mas, não podemos deixar de notar que há muitos elementos de ficção em toda a obra, como o encontro de Apolônio com Aquiles (VA, IV, 16), que poderia ser fruto de lendas em torno de Apolônio ou mesmo uma criação filostratiana. Há ainda um topos literário muito comum aos textos da Antiguidade, a descrição de Nero e Domiciano como maus imperadores.11 Além disso, a longa extensão do livro era incomum nas biografias antigas. Como já observou Bowie (1994, p.187), temos ainda a divisão da obra em oito livros, mais comum aos romances greco-romanos do que às biografias daquele tempo. Embora Cornelli (2001, p. 07) discorde que falta na VA um elemento muito comum aos romances ficcionais da Antiguidade Clássica, as intrigas eróticas, Anderson (1986, p. 230) 9 O livro de Moeragenes sobre Apolônio é desconhecido atualmente. A hipótese destes estudiosos sobre os aspectos negativos em torno de Apolônio tratados por Moeragenes se baseia na informação dada por Orígenes, escritor cristão do século III, de que esta obra apresentava aspectos sobre a magia, característica que, como vimos, é rebatida em seus elementos negativos por Filóstrato para seu biografado. 11 A imagem negativa de Nero é citada em: VA, IV, 35, 36, 44 e V, 7, 10, 28. Sobre Domiciano representado como mau imperador: VA, VI, 32, 42; VII, 4-9, 42 e VIII, 25. 10 CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 93 cita que mesmo Apolônio levando um estilo de vida ascético, elementos eróticos não deixam de estar presentes na VA, com o que concordamos. Na realidade, Filóstrato não privou seus leitores, acostumados com essa temática literária, como podemos ler na passagem sobre as investidas sexuais do governador da Cilícia a Apolônio (VA, I, 12), na discussão sobre a entrada dos eunucos nos gineceus e quando Apolônio narra a Damis a história do eunuco apaixonado (VA, I, 36). Vejamos uma das passagens: – E o que podias me pedir? Pergunta Apolônio ao governador. – O que deve ser pedido aos jovens bonitos, respondeu. – Pedimos-lhes que nos deixem participar de sua formosura e não nos neguem sua beleza juvenil. O governador disse isso voluptuoso, com o olhar lacrimejante e com intenção própria das pessoas lascivas e infames como ele. Mas Apolônio, olhando-o de lado, disse: – Estás louco, imundo (VA, I, 12). Cornelli (2001, p. 54) também acredita que não há na VA a renúncia consciente a qualquer outra intencionalidade por parte de Filóstrato que não seja a diversão, o que, caracterizaria a VA como um romance. No entanto, não acreditamos que os textos de ficção na Antiguidade Clássica tivessem como intenção apenas de divertir seus leitores. Como exemplo disso podemos citar um famoso texto literário do Principado Romano, as Metamorfoses (também conhecido como O asno de ouro), de Apuleio. Ao analisarmos esse romance percebemos que Apuleio defende aspectos da religiosidade de que era adepto pela descrição do caráter redentor do culto da deusa Ísis, além de poder ser uma espécie de resposta à acusação de magia que Apuleio sofreu anos antes, narrada em outra obra de sua autoria, o discurso Apologia.12 Voltando aos elementos de ficção presentes na VA, outro ponto que nos indicaria as invenções de Filóstrato são os erros cronológicos cometidos em alguns momentos da obra. Como já observou Anderson (1986, p. 178-179), há um possível erro, que preferimos chamar de recurso literário, no encontro de Apolônio com o imperador Vespasiano em 69, em Alexandria (VA, V, 27). Tal encontro não é mencionado por Tácito e Suetônio quando estes escritores narram, em suas obras, a estadia desse imperador em Alexandria. Anderson (1986, p. 179) também atenta para a passagem que desenvolve a estadia de Apolônio na Bética em 68, ocupado em discutir a revolta de Vindex, enquanto Nero estava em viagem para a 12 Esta e outras discussões em torno de Apuleio, especialmente sobre sua acusação de praticante de magia e a obra Apologia, foram analisadas em nossa Dissertação de mestrado, publicada como livro: SILVA, S. C. Magia e Poder no Império Romano. A Apologia de Apuleio. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2012. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 94 Grécia.13 No entanto, nessa ocasião Nero já estava de volta a Roma. Anderson (1996, p. 179), porém, em seu afã de mostrar que o livro de Damis de fato existiu, acredita que os erros estão em Damis, o testemunho ocular cujo diário Filóstrato diz usar, e não na obra de nosso sofista, tendo sido reproduzido pelo sofista a partir do que leu em Damis, do que discordamos. O motivo de discordarmos de Anderson e vermos os equívocos de datas ligados à ideia das criações literárias do sofista está no fato de Filóstrato mostrar Apolônio sendo consultado por Vespasiano, como na passagem que Anderson afirma estar em desacordo com outros documentos. Pensamos que era interessante, para os objetivos que acreditamos ter Filóstrato, projetar-se em seu personagem como um bom conselheiro imperial. Assim também estaria a importância em mostrar Apolônio discutindo sobre os caminhos e descaminhos da revolta de Vindex. Para nós, era tão importante Filóstrato se concentrar em mostrar Apolônio como homem capaz de pensar na solução de conflitos dentro do Império Romano que o local onde estava Nero neste momento acaba sendo algo de menor importância para o autor, deixando passar o erro cronológico. Além disso, diferentemente de Anderson (1986), não aceitamos a existência real do livro de memórias de Damis, como mostraremos no próximo tópico desse capítulo. A historicidade das viagens de Apolônio também incomodou alguns estudiosos. Assim, Gascó (1985) se interrogou sobre quanto haveria de invenção na estadia de Apolônio na província da Bética, descrita por Filóstrato no Livro V da VA. Gascó chega à conclusão de que havia coisas que poderiam despertar o interesse de um pitagórico como Apolônio naquela região. No entanto, esse historiador percebe um esforço de Filóstrato durante a narrativa em mostrar elementos que convençam o leitor de que a viagem foi real. Na mesma linha de interpretação segue Flinterman (1995, p. 86), analisando que a viagem de Apolônio à Índia pode ter acontecido sabendo da interação existente entre pitagóricos, o tianeu e o hinduísmo. De forma diferente, Elsner (1997) exclui totalmente a possibilidade de as viagens terem acontecido e diz que as mesmas são um topos retórico da Segunda Sofística, pois as viagens de Apolônio refletem os lugares canônicos da retórica geográfica da época: Índia, Babilônia, Ásia Menor, Atenas, Esparta, Roma, Gades, Líbia e Egito. Em um estudo minucioso, Dzielska (1986) considera que o Apolônio histórico realizou suas atividades apenas em poucas cidades da Ásia Menor, especialmente em Éfeso, Egeia, Tiana e Antioquia. Para essa historiadora, Apolônio jamais esteve na Índia, na região da Pérsia ou na Bética e ele não podia 13 A revolta de Vindex foi uma insurreição contra o poder romano na Gália durante o governo de Nero (BRUNT, 1959, p. 531). Júlio Vindex foi governador da Gália Lugdunense e o primeiro governador a se rebelar contra Nero (JONES, 2005, p. 19). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 95 ser tão conhecido nas vastidões de todo o Império. A documentação material referente a Apolônio – amuletos, epigrafia e citações em outros textos literários – aparece apenas em poucas referências relacionadas ao oriente grego do Império Romano. Assim, Dzielska considera que o Apolônio histórico não era tão conhecido como mostra Filóstrato, não esteve com imperadores e nem foi processado por Domiciano. Para Dzielska, as viagens de Apolônio são criações de Filóstrato a fim de mostrar o caráter universal de sua sabedoria, salvaguardando-o, assim, de uma imagem ligada às práticas mágicas negativas. Para nós, possivelmente, nem todas as viagens de Apolônio são invenções filostratianas, até mesmo porque elas estão nas cartas de Apolônio de certa forma, ou seja, fazem parte de uma tradição paralela à obra de Filóstrato. Concordamos com os autores que acreditam na possibilidade da real existência de Apolônio como viajante e acreditamos também que algumas das viagens podem ter sido reais, mas sendo parte considerável delas possíveis criações do autor, conforme seus interesses em mostrar a importância de determinadas regiões em relação ao Império Romano.14 Talvez Filóstrato teve como intenção, consciente ou não, mostrar quais as relações político-culturais que um personagem como Apolônio poderia ter desempenhado nestas regiões. Assim, concordamos com Dzielska (1986), que Filóstrato transforma Apolônio em um viajante em perspectiva imperial, tendo sido as viagens do Apolônio histórico, talvez, reduzidas às cidades da Ásia Menor. Apolônio não é citado por nenhum de seus contemporâneos, o que faz com que Dzielska (1986) acredite ainda mais na redução de suas atividades apenas a uma parte do Oriente greco-romano. Realmente, causa-nos estranheza um renomado sábio que viaja por todo Império e até fora dele, aconselha imperadores e se relaciona com diversos monarcas e governantes, como mostra Filóstrato, não ser citado dessa forma em nenhum documento de sua época que tenha chegado até nós, o que não poderia acontecer mesmo tendo sido perdida parte considerável da documentação antiga. Por isso não podemos deixar de desconfiar sobre a historicidade do Apolônio filostratiano. O próprio narrador menciona que já esteve em um dos locais que Apolônio visita: “Saltaram,Ν portanto,Ν doΝ barcoΝ eΝ eleΝ topouΝ comΝ oΝ túmulo,Ν encontrouΝ umaΝ estátua enterrada junto ao local. Estava escrito na estátua: Ao divino Palamedes. Assim colocado no local, comoΝ euΝ tambémΝ oΝ viΝ [έέέ]”Ν (VA, IV, 13). Esta citação busca, provavelmente, convencer o leitor da realidade dessa viagem de Apolônio, o que para nós soa muito mais como uma demonstração dos conhecimentos e interesses de Filóstrato, que ajudaram na criação de 14 Desenvolveremos melhor este argumento ao tratar das viagens de Apolônio na VA e nas cartas da tradição entorno deste personagem, em contraste, ainda neste capítulo. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 96 grande parte das viagens. Lembremos que Filóstrato comenta também sobre o túmulo de Palamedes em sua obra Heroicos (33), o que mostra que essa viagem de Apolônio a Lesbos, ilha grega onde ficava o túmulo, pode ser mais uma criação, fruto dos conhecimentos e temas que interessavam ao autor, do que uma viagem que tenha na realidade acontecido. Filóstrato também nos faz desconfiar da realidade das viagens de Apolônio quando mencionaΝ asΝ palavrasΝ doΝ protagonistaΝ aosΝ seusΝ discípulosμΝ “PorΝ outroΝ lado,Ν apósΝ haverΝ percorrido tantas terras, como nunca homem algum, vi numerosas feras, árabes e indianas [έέέ]”Ν(VA, IV, 38). Essa frase nos parece exagerada, pois nela o autor coloca seu protagonista como o maior viajante do mundo de então, o que causa dúvidas e corrobora as hipóteses anteriormente explanadas sobre a criação de parte considerável das viagens do tianeu. Além disso, mesmo que as viagens tivessem mesmo acontecido como descritas na VA, para nós, há um exagero ficcional por parte do autor que pode ser percebido, especialmente, na riqueza de detalhes de todos os diálogos de Apolônio, impossíveis de serem tão minuciosos ainda que acreditássemos na realidade de Damis enquanto testemunha ocular das viagens, como lemos neste diálogo, por exemplo, situado na obra antes de Damis conhecer Apolônio: Quando um desses amigos de discussões sutis lhe perguntou por que não formulava questões, repudiou: – Porque quando eu era jovem formulava questões, mas agora não tenho que fazê-las, e sim ensinar o que descobri. – Como então, Apolônio, deve dialogar o sábio? O outro lhe perguntou de novo. – Como um legislador, respondeu, pois é obrigação do legislador converter aquilo de que está convencido em preceitos para as pessoas (VA, I, 17). Para nós, os diálogos em textos de natureza biográfica são recursos literários para que estas se tornem mais verossímeis. Assim também estariam os detalhes geográficos e etnográficos das regiões e dos povos que Apolônio encontra em suas viagens, possivelmente fruto do conhecimento do autor e até de um topos literário, como observou Anderson (1996, p. 129), especialmente nas descrições de indianos e etíopes. Um pouco dos conhecimentos geográficos e etnográficos de Filóstrato pode ser visto nestas passagens selecionadas por nós: A Mesopotâmia se configura do Eufrates ao Tigre, que fluem desde a Armênia e das colinas do Tauro, abraçando uma zona continental na qual há cidades, mas mais aldeias. Suas tribos, da Armênia até a Arábia, onde acabam os rios, são, na maioria, nômades. Estão tão convencidos de que são ilhas, que afirmam que chegam ao mar quando caminham pelos rios e consideram os rios como limite da terra. Após circundar o citado continente, CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 97 desembocam no mesmo mar. Há quem diga que a maior parte do Eufrates se oculta em um pântano e que o rio termina na terra. Mas alguns sustentam uma opinião mais audaciosa ao afirmar que, correndo até a terra, reaparece no Egito e se mescla com o Nilo (VA, I, 20). E assim Apolônio, com o Ganges à direita e o Hifasis à esquerda, desceu até o mar, após uma jornada de dez dias desde a colina sagrada. Em sua caminhada apareceram ante seus olhos muitos avestruzes, muitos touros selvagens, muitos asnos, leões, panteras e tigres, assim como uma espécie de macaco diferente dos de pimenta, pois eram negros, de pelo espesso, com expressões caninas e parecidos com homens pequenos. Conversando sobre o que iam vendo, como de costume, chegaram junto ao mar, onde havia pequenas construções e se encontravam ancoradas ante elas barcos de carga semelhante às tirrenas. Dizem que o Mar Vermelho era muito azul e que se chama assim por causa do rei Eritras, que deu nome a esse mar (VA, III, 50). Porém, como veremos no quarto capítulo, acreditamos que toda essa riqueza de detalhes geográficos e etnográficos têm um propósito por parte de Filóstrato, que seria o de lançar seu personagem, uma projeção de seu grupo de sofistas, como alguém capaz de estar próximo de imperadores e resolver diferentes tipos de problemas como conselheiro imperial ou ocupando cargos político-administrativos nas cidades do Oriente imperial. Devemos ressaltar que o narrador desta obra é o próprio Filóstrato e isto fica muito claro em várias passagens do texto, tais como VA, III, 45; IV, 19, 25, 45; V, 1; VIII, 29. Ao se inserir diretamente na obra, algumas passagens misturam claramente conhecimentos do autor/narrador à descrição da vida de Apolônio e de suas viagens, como na longa passagem em que Apolônio conta a Damis sobre os elefantes da Índia, misturando seus conhecimentos sobre animais, com conhecimentos sobre os feitos de Alexandre, o Grande e também sobre governantes como Juba, rei da Numídia (VA, II, 12-17). Podemos duvidar que uma passagem longa como esta e cheia de detalhes estivesse no livro de memórias de Damis, o que o configuraria como um ótimo tratado histórico e etnográfico, muito mais do que um diário. No entanto, devemos ter claro que sendo as viagens de Apolônio invenções ou não de Filóstrato, o fato de o sofista tê-las narrado já mostraria seu interesse por elas no momento histórico em que vivia. Em nosso modo de entender, a possibilidade de as viagens serem reais e não criações do autor não faz da escrita da VA, desta maneira, menos ligada aos interesses de Filóstrato para nós. Além disso, possíveis elementos ficcionais e as intervenções de Filóstrato no texto não descaracterizam a VA como tendo natureza biográfica, pois, como mostra Momigliano (1986, p. 128), fatos e ficção eram mesclados livremente nas biografias antigas. A biografia antiga e a história eram duas categorias diferentes, possuíam regimes de verdade CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 98 diferenciados e a preocupação fundamental dos biógrafos era destacar o caráter do biografado em tom laudatório, construindo nele um modelo paradigmático a ser seguido ou a ser negado. O caráter ficcional das biografias é sempre tão latente para os estudiosos que François Dosse (2009, p. 55) chega a chamá-las de gênero impuro, não se incomodando com o quanto pode haver de ficção nelas. Não chamaríamos as biografias de gênero impuro como Dosse, pois percebemos que há uma peculiaridade no gênero que é justamente ter elementos de diferentes estilos literários. No entanto, parece-nos que Filóstrato exagera estes elementos ficcionais em determinadas partes do livro e por termos como hipótese que grande parte das viagens de Apolônio são criações de Filóstrato, preferimos perceber a VA como possuindo um gênero híbrido. Portanto, consideramos a VA como obra de natureza biográfica com elementos exagerados de ficção. Há ainda uma discussão sobre a VA enquanto uma hagiografia. Como sabemos, as hagiografias, muito comuns na Antiguidade Tardia e Idade Média, eram relatos de vida de homens com caráter sagrado. Seu surgimento acompanha o desenvolvimento do cristianismo e, de acordo com Dosse (2009, p. 140), os primeiros textos com características hagiográficas remontam ao século II com os relatos de vidas dos mártires cristãos. As teses que buscaram ler a VA como uma hagiografia se apoiaram fundamentalmente em comparar Apolônio de Tiana a Jesus Cristo e a imagem deste trazida pelos Evangelhos, analisando ambos os personagens como homens divinos ( ῖ theios aner). ἀ Ν– Em relação às comparações de Apolônio e Jesus Cristo, temos desde especulações mais antigas, como a de Eduard Norden, de 1923 (apud UYTFANGHE, 2009), até textos mais recentes como os de Boulogne (1999), Cornelli (2001) e Uytfanghe (2009). Sem entrar no debate comparativo entre os dois personagens propriamente, mas fazendo uma relação de Paganismo versus Cristianismo, Patrícia Cox (1983, p. XIV) indica que a VA mostra traços de hagiografia como a Vida de Pitágoras e a Vida de Plotino, de Porfírio e a Vida de Orígenes, de Eusébio. Para Cox, nos séculos III e IV, quando as escolas filosóficas pagãs e o cristianismo competem por reconhecimento e para serem guardiões do Império, os biógrafos assumem a característica de criarem hagiografias de culto, que, no entanto, ainda não recebem esta denominação, eram vidas de filósofos divinos em que interagiamΝelementosΝdeΝfantasiaΝeΝrealidadeέΝAindaΝsegundoΝἑoxΝ(1λκγ,ΝpέΝη4)μΝ“EsseΝtipoΝdeΝ biografia [de filósofos divinos] deve ser tratada como um estágio na história da biografia greco-romana, partilhando certas características do gênero e também contendo marcas como umaΝúnicaΝparteΝdaΝtradiçãoΝbiográficaέ” CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 99 Em que pesem as considerações de Cox, acreditamos que não cabe aqui entrar em uma discussão sobre as ações de Apolônio em comparação a Jesus Cristo ou do cristianismo em relação ao paganismo no contexto de escrita de nossa obra. Além disso, consideramos o raciocínio de Cox típico das análises anteriores a posições mais atuais, que seguimos, as quais se preocupam com o papel das confluências culturais e com as diversidades no Império Romano. Preferimos, por isso, excluir a ideia de Paganismo versus Cristianismo na nossa análise da documentação. No entanto, devemos nos posicionar diante do debate sobre a VA como hagiografia e, nesse sentido, acreditamos que ela pode sim, prenunciar aspectos de um novo gênero literário, ou melhor, de uma nova forma de escrever biografias, que mais tarde serão as biografias de santos, as hagiografias. Tais aspectos estariam na divinização de Apolônio, criando um herói helenizado de natureza sobrenatural, que, porém, é relido em épocas posteriores, com novos referenciais culturais, como um santo não cristão. No entanto, não devemos considerar a VA como propriamente uma hagiografia, pois esse tipo literário não nos parece muito claro na época de seu autor, que pretende fazer uma biografia e, como vimos, encaixa sua narrativa dentro dos principais aspectos deste gênero clássico. Também concordamos com Uytfanghe (2009) em que, mesmo havendo elementos na VA que possam lembrar certos aspectos de Jesus dos Evangelhos, estes estão muito dispersos na obra que é muito longa. Esse autor também nos informa que as verdadeiras bios hagiográficas são posteriores à VA, dos séculos IV e V, o que há na obra de Filóstrato é uma biografia com elementos hagiográficos, especialmente pelo fato de o autor não mostrar nenhum erro do biografado, tentando inclusive esconder coisas que possam denegrir sua reputação, como a negação de seu caráter enquanto um goes (VA, I, 3). No entanto, para nós, a VA deve ser lida dentro do universo mental de seu autor, de sua época e de seu entorno literário, que era muito mais próximo das ambições que configuraram a Segunda Sofística, do que do cristianismo no Império Romano. Outro termo que é ligado ao estudo do gênero da VA por alguns estudiosos é o de aretologia (ἀ α αΝ- aretalogia). Segundo Cornelli (2001, p. 75), são aretologia os textos contandoΝ osΝ favoresΝ divinos,Ν umΝ “relatoΝ formalΝ daΝ carreiraΝ marcanteΝ deΝ umΝ mestre impressionanteΝqueΝfoiΝusadoΝcomoΝbaseΝdeΝinstruçãoΝmoral”έΝἑoxΝ(1λκγ,ΝpέΝ4θ)ΝcomplementaΝ que muitos estudos se voltaram para as biografias de filósofos divinos na busca de um gênero que teria dado forma e conteúdo aos Evangelhos, que seriam as histórias de homens com capacidades de produzir milagres. Destes estudos Cox (1983, p 48) nos informa que Moses Hadas confirma na VA características de uma aretologia. Cornelli (2001, p. 75 e 81) concorda em classificar a VA como aretologia, percebendo a existência de milagres (que este estudioso CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 100 defineΝ comΝ oΝ termoΝ gregoΝ ἀ α Ν – aretai) realizados por Apolônio e defendendo que as aretologias não são um gênero literário propriamente, assim como a VA não se encaixa em nenhum padrão definido, nem em nenhum gênero fixo. No entanto, Cox (1983, p. 47) acredita que não devemos definir as biografias dos filósofos divinos como aretologias, pois não há na documentação antiga sugestão para a classificação dos escritos sobre a vida de homens divinos em estrutura literária com este conceito. Aretologia, segundo Cox, é um catálogo de virtudes e o termo foi ampliado para definir as vidas de homens divinos. Neste sentido, concordamos com Cox. Portanto, preferimos não classificar a VA como aretologia e percebemos os estudos que a analisam desta forma, como a tese de Cornelli, voltados para a comparação da mesma com os Evangelhos, buscando conclusões que comprovem a existência de elementos em comum entre estes textos, o que não é nosso objetivo. Finalmente, faz-se importante discutirmos um ponto central de nossa Tese: qual a relação entre biógrafo e biografado na VA? Como alguns estudos sobre biografias a que tivemos acesso tratam da relação entre biógrafos e biografados em biografias antigas, e como nos posicionaremos sobre o assunto? Allain Billaut (1993) considera que a VA pode ser pensada como uma autobiografia literária de Filóstrato, embora não trate em momento algum, explicitamente, de aspectos da vida do biógrafo. Para este estudioso, tanto na VS como na VA, Filóstrato fala de si e compõe um autorretrato, declarando sua identidade estética como literato. Momigliano (1986, p. 22) também considera que, pelo caráter seletivo de toda biografia, é difícil separar biografia e autobiografia em alguns casos. Em que pesem as considerações de Billaut e Momigliano, não consideramos a VA como uma autobiografia. Para nós, autobiografias são análises sistemáticas de nossos próprios sentimentos e de nossa personalidade com características biográficas. Porém, concordamos com Billaut em que aspectos da identidade do autor são facilmente percebidos na obra, mas, mais do que aspectos do autor como literato, como sublinha Billaut, para nós, na VA, Filóstrato deixa claro sua paideia grega projetada no biografado e sua visão de como deveria ser o Império Romano e a posição dos intelectuais gregos na administração do mesmo. Também concordamos com Momigliano em que a inevitável seleção do que dizer sobre o biografado está presente na VA, mas não pensamos que por isso ela chegue a ser uma autobiografia. Consideramos, como Häag e Rousseau (2000, p. 17-19), que as biografias são conduzidas substancialmente pelas intenções do autor, que seleciona o que deve ser falado conforme as demandas da circunstância. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 101 Ainda pensando nessa relação autor/personagem, Jean Orieux (1989, p. 36) acredita que muitas vezes nas biografias o retrato do biografado é o retrato do próprio biógrafo. Dosse (2009) está convencido de que as biografias são, de certa forma, um espelho do escritor, pois este preenche lacunas com sua intuição e, podemos complementar, com seu universo cultural. Além disso, o biógrafo precisa dar à sua narrativa o efeito do vivido, imprimindo, inevitavelmente, subjetividade na obra. Outro aspecto que Dosse sublinha na relação biógrafo/biografado é o envolvimento do escritor com o personagem. Um dos exemplos citados por Dosse (2009, p. 75) é de Stepan Zweig, em sua narrativa da vida de Erasmo de Roterdão, de 1935: Quando Zweig escolhe Erasmo para tema biográfico, está em Londres, fugindo do nazismo. Por meio da figura de Erasmo, Zweig sonha com uma Europa inteiramente diferente da criada pela política de Hitler, que o força a um exílio ainda mais distante em 1941, no Brasil. Isso diz bem a que ponto o biógrafoΝ éΝ assumido,Ν aliciadoΝ porΝ seuΝ herói,Ν oΝ “guerreiroΝ daΝ paz”Ν numaΝ EuropaΝhumanista,ΝoΝ“defensorΝmaisΝeloquenteΝdoΝidealΝhumanitário,ΝsocialΝeΝ espiritualέ”ΝInimigo do fanatismo, Erasmo lhe enseja a oportunidade de dar força e vida à sua palavra de ordem para combater a maré montante inexorável do perigo totalitário em 1935 [...]. Como no exemplo acima, acreditamos que Filóstrato atribui um papel para seu Apolônio, fazendo dele um símbolo do intelectual perfeito, capaz de aconselhar e colocar ordem no Império Romano por seus atributos de bom orador, homem divino, bom filósofo e possuidor de todas as características de quem recebeu a paideia grega e faz bom uso dela. Apolônio é um modelo que tem as mesmas qualidades ressaltadas em seus sofistas na VS e que, por isso, pode ser considerado como uma projeção do ideal que Filóstrato buscava para si enquanto intelectual e para sua categoria, a dos sofistas gregos do Império Romano. Apolônio é o defensor da importância da cultura grega dentro do Império Romano e, consequentemente, da importância de sofistas como Filóstrato e seus biografados da VS, ocupando cargos públicos e estando ao lado dos imperadores em suas viagens e nas tomadas de decisões mais importantes do Império. Dosse (2009, p. 71) ainda nos indica que na seleção feita pelo biógrafo sobre o que dizer ou ressaltar sobre seu biografado, podemos encontrar traços do retrato do próprio biógrafo. Neste caso, Dosse nos dá como exemplo a biografia de Armand-Jean le Bouthillier de Rancé, Vie de Rancé, escrita por François-René Chateaubriand, em 1884. Nessa biografia, Chateaubriand se projetou em Rancé, tratando especialmente da velhice do biografado, momento da vida em que o biógrafo estava. E então nos perguntamos, o que prende mais a atenção de Filóstrato ao retratar Apolônio? CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 102 Para responder a esta pergunta iremos concordar com Flinterman (1995, p. 01), que bem observou que a VA apresenta três questões especiais em meio aos relatos da vida de Apolônio: a extensão dos contatos entre o protagonista e os demais personagens das monarquias e cidades por onde passa, a maneira como o autor determina esses contatos e a maneira como os personagens da VA podem interferir na política como sujeitos falantes. Tais aspectos, como buscaremos demonstrar no próximo capítulo, estão em confluência com as atividades de sofistas como Filóstrato e seus biografados da VS, e são fundamentais para percebermos que Filóstrato projetou em Apolônio um intelectual grego que poderia ocupar cargos político-administrativos e estar próximo dos imperadores romanos. Por fim, para concluir este subcapítulo, consideramos que a VA possui uma natureza biográfica, apresentando elementos fundamentais das biografias antigas, como um fundo histórico e a própria mistura de relatos da história de vida do personagem com elementos de ficção. No entanto, há criações intencionais do autor que chegam a acentuar o que pode se caracterizar a ficção própria das biografias, como a possível invenção das viagens de Apolônio para regiões fora da Grécia e do Oriente imperial. Assim, vemos mesclar nessa obra elementos variados que mostram aspectos próprios dos estilos literários de Filóstrato, caracterizados em outras obras de sua autoria, como o biográfico na VS e o romance no Heroicos. Além disso, ela prenuncia elementos hagiográficos e traz, certamente, as intenções, as seleções, o universo cultural e os aspectos ideológicos de seu biógrafo, projetados em características de seu biografado. Portanto, acreditamos que podemos chamar a VA de biografia, mas devemos estar atentos ao hibridismo como característica de seu gênero literário. 2.2 Datação, público e fontes da Vida de Apolônio de Tiana As edições da VA que chegaram até nós são fruto de uma longa tradição manuscrita. Pajares (1979) e Jones (2005), tradutores da obra, fazem constar que há muitos manuscritos contendo diferenciações no emprego de alguns termos. Alguns destes podem trazer-nos o texto original de Filóstrato.15 O manuscrito mais antigo conhecido da VA é do século XI, o manuscrito Laurenciano LXIX, 33 (Biblioteca Laurenciana, Florença). Jones (2005, p. 22) informa que os possíveis manuscritos da Antiguidade permanecem perdidos e que existem 15 Não procuraremos ter acesso aos principais manuscritos, por não ser esse o cerne de nossa pesquisa, mas utilizamos as edições modernas consideradas de melhor qualidade, resultados de minuciosas pesquisas dos tradutores. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 103 vinte e cinco testemunhos manuscritos da obra desde o século XI, alguns incompletos ou mencionando apenas trechos da mesma. Além dos manuscritos, segundo Pajares (1979, p. 59), dispomos como testemunho complementar sobre a VA os resumos antigos de Fócio, do século IX (FOCIO, Biblioteca, códices 44 e 241).16 Contudo, mais importante do que considerar como esta obra chegou até nós em sua tradição manuscrita (o que é feito pelos seus tradutores, buscando se aproximar, por suposições, o máximo possível do que pode ser o texto original), um trabalho fundamental que devemos fazer é nos posicionar sobre a possível datação de escrita da VA, já que intentaremos pensar nas intenções de Filóstrato na escrita desta biografia dentro de sua trajetória. Para nós, a data de escrita da VA está ligada às posições e interesses do autor no momento de elaboração do texto. Contudo, não há um consenso sobre quando essa biografia foi escrita, embora os estudos mais recentes tenham se posicionado de maneira parecida ao datar a VA e seu direcionamento, diferenciando-se neste aspecto de alguns estudos mais antigos. Solmsen (1940, p. 559) defendeu que a VA foi escrita durante o governo do imperador Caracala (211-217), já que a obra, como um todo, visou satisfazer à mãe de Caracala, Júlia Domna, e seu pitagorismo, mas, a biografia em si satisfazia a Caracala, que rendia culto a Alexandre e a Apolônio.17 Lenz (apud SWAIN, 2003, p. 392) defendeu que a VA foi escrita bem no início do século III, voltada para o jovem e futuro imperador Caracala. Outro estudioso a defender que a obra estava ligada ao contexto dos dois primeiros imperadores severianos foi Calderini (apud FLINTERMAN, 1995, p. 218-219), que propunha a datação de 202-205 para a escrita da obra, baseando-se na ideia de que as várias menções aos perigos de maus conselheiros imperiais no texto fossem uma forma de advertir Septímio Severo contra seu prefeito do pretório, Plautiano, com quem Júlia Domna tinha problemas. Assim, Filóstrato teria servido como porta-voz dos anseios de Júlia. Calderini ainda defendeu que trechos complementares teriam vindo a fazer parte da VA após 206, como a metafórica comparação de Ciro e Artaxerxes com Geta e Caracala (VA, I, 28), e de Vespasiano com Septímio nas advertências de Apolônio sobre a sucessão dinástica, o que, seriam advertências para Septímio Severo em uma linguagem metafórica (VA, 5, 35). 16 Para maior conhecimento da tradição manuscrita da VA, ver BOTER, 2009. Embora Solmsen (1940) não afirme explicitamente que Alexandre, o Grande está presente no texto da VA, notamos sua percepção desse fato nesta sua afirmação e complementamos, com nossa observação, que o antigo reiΝmacedônioΝapareceΝemΝpartesΝdaΝobraΝcomoΝumaΝespécieΝdeΝ“sombra”ΝdeΝApolônio,ΝespecialmenteΝnaΝviagemΝΝ do biografado à Índia, onde outrora esteve Alexandre. Alexandre é citado na VA em: II, 9; II, 12; II, 21; II, 24; II, 33; II, 43; III, 53. Contudo, não defendemos, como Solmsen, que a presença de Alexandre na obra busque atrair a atenção de Caracala, admirador do antigo rei. Sobre isso, apresentaremos nossas considerações na análise documental no Capítulo 4 desta Tese. 17 CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 104 Acreditamos que as teses acima são conduzidas especialmente pela menção de Filóstrato sobre ter escrito a biografia a pedido de Júlia. Foi Damis, homem nada ignorante, que viveu nos tempos da Antiga Ninos. Esse homem se tornou discípulo de Apolônio e escreveu um relato de suas viagens, das quais afirma ter feito parte, assim como afirma ter participado de suas discussões, discursos e profecias. Um descendente de Damis levou seu livro de memórias, até então desconhecido, ao conhecimento de Júlia. E a mim, que pertencia ao seu círculo (visto que ela elogiava e admirava todos os discursos retóricos), ela me encarregou de redigir estes ensaios e me ocupar da sua publicação, pois o de Ninos fez sua narração de forma clara, mas não prática (VA, I, 3). Jamais poderemos ter certeza se tal informação é verdadeira. Dzielska (1986, p. 188) acredita que sim, pois a imperatriz seria a única pessoa capaz de atrair a atenção de Filóstrato para Apolônio, um sábio de poderes mágicos, conhecido apenas nas distantes regiões orientais do Império, de onde vinha também Júlia, segundo essa historiadora. Acreditamos que o trecho de Filóstrato acima transcrito legitimava a escrita da VA, como a Carta 73, já citada no primeiro capítulo por nós, em que nosso sofista mostra aos seus leitores sua proximidade com a corte e a confiança da imperatriz em seu trabalho. Mas também compartilhamos da crença de Dzielska, e vários outros pesquisadores, de que Filóstrato pode ter-se interessado em escrever a VA a pedido de Júlia. No entanto, para nós, o produto final da VA, dado a ler tempos mais tarde, é muito mais fruto das perspectivas e interesses do sofista do que a defesa de práticas e interesses da imperatriz. Podemos acreditar também que a imperatriz não estava mais viva quando a obra veio a público. Provavelmente, portanto, Filóstrato iniciou seu trabalho, ou pelo menos se propôs a desenvolvê-lo, quando Júlia estava viva, mas não o desenvolveu por completo e só o concluiu tempos depois de sua morte, quando tinha outros interesses e disposições. Sabemos que Júlia Domna morreu em 217. A própria VA indica ter sido escrita após 215 quando Caracala ergueu um templo para Apolônio em Tiana (VA, I, 5) e deixa pistas para a escrita após 211 quando Caracala assassina o irmão Geta.18 Além de termos essa certeza sobre a datação após 215 e percebermos um curto intervalo até a morte de Júlia em 217, vemos que a obra não é dedicada à Imperatriz, embora Filóstrato mencione que a escreveu a seu pedido. Tal fato nos indicaria que todo o texto, ou ao menos parte dele, foi escrito e trazido a público após a morte de Júlia, pois não acreditamos que o autor deixaria de dedicar a 18 Esta ideia se baseia na hipótese, já discutida por diversos estudiosos, de que há na VA (I, 28) uma metáfora da relação entre Caracala e Geta na citação da relação entre os filhos do rei persa Darío, Ciro e Artaxerxes, que como os sucessores severianos ao trono, disputam o poder e o trono do pai e um irmão assassina o outro. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 105 obra à sua benemérita, especialmente sendo ela a imperatriz romana. Além disso, como bem observou Whitmarsh (2007, p. 35) ao analisar a linguagem da obra, Júlia é referida com verbos no passado, o que também indicaria a datação da VA como posterior a sua morte em 217. No mesmo sentido, uma série de estudos mais atuais, como os de Bowie (1978), Carmen Padilla (1991), Flinterman (1995), Swain (2003), Whitmarsh (2007), Elsner (2009), entre outros, aceitam a publicação da VA datada após 217. Para Bowie (1978, p. 1670) a VA foi escrita entre 222 e 235, sendo que os elementos de comportamento monárquico apontados por Filóstrato na obra visavam a contribuir para as condutas político-administrativas do jovem imperador Severo Alexandre. Embora Bowie não aponte quais são estes elementos que visam as condutas de Severo Alexandre, podemos concordar com ele se percebermos, como mostra Hidalgo de la Vega (1995, p. 189), que na VA Filóstrato teorizaΝ aΝ melhorΝ formaΝ deΝ α poder,ΝpráticaΝqueΝmostravaΝoΝ α ao governante tirano. 19 α – Basileia, contra o exercício tirânico do – basileus como uma figura carismática em oposição Para nós, portanto, esse modelo de governante apontava para o ideal de conduta esperado por Filóstrato para o novo imperador da casa dos Severos, considerado pelaΝaristocraciaΝdirigenteΝdaΝépocaΝcomoΝumaΝnovaΝesperança,ΝapósΝoΝ“mauΝgoverno”ΝdeΝseuΝ primo Heliogábalo.20 Flinterman (1995, p. 221) também acredita possível concluir que a VA tenha sido escrita após 222, ou seja, após o governo de Heliogábalo, pois para ele há duas passagens que se referem a situações do período posterior ao imperador Heliogábalo, como na anedota sobre o jovem arcádio: Também a mim, respondeu, foi meu pai que me perdeu. Pois, ainda que eu seja arcádio de Messena, não me deu uma educação de grego, mas me enviou para cá para aprender leis, e, por vir por estes motivos, o imperador não me viu com bons olhos (VA, VII, 42). Para Flinterman, a passagem acima denota aspectos que não parecem ser do período em que viveu Apolônio, pois até o governo de Marco Aurélio não era comum que provinciais 19 No entanto, Hidalgo de la Vega (1995) acredita que esta teorização sobre o bom governante visava a legitimar o governo de Septímio Severo. 20 Em Herodiano podemos perceber que as características de Severo Alexandre eram sempre apresentadas favoravelmente, sendo apenas questionada a influência de sua mãe sobre ele, mas, mesmo assim, não culpando o imperador em si, que rendia muito respeito à mãe, conforme o historiador romano. (História do Império Romano, VI). Já Heliogábalo, chamado de Basiano ou de Antonino, é mostrado como tendo costumes bárbaros e dançando como um bárbaro ao som de flautas e outros instrumentos (História do Império Romano, V, 3, 8). Finalmente, Herodiano comenta a predileção dos romanos em relação a Severo Alexandre, jovem educado com moderação e inteligência e as esperanças que esse jovem inspirava aos romanos em contraposição ao mau imperador Heliogábalo (História do Império Romano, V, 8, 2). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 106 das partes orientais do Império viessem a Roma estudar leis, chegando até a figurarem entre os famosos juristas romanos, o que aconteceria especialmente com os Severos. É assim que Flinterman (1995, p. 96) aponta o caso de Teodoro de Neocesareia, que foi para Roma estudar leis em 230. Flinterman também nos apresenta a tese oitocentista de Göttsching (apud Flinterman 1995, p. 217) de que as críticas a Nero apontadas em várias passagens da VA (IV, 35, 36, 44; V, 7, 10, 28) seriam uma espécie de críticas metafóricas a Heliogábalo. Sendo assim, o autor conclui que Filóstrato não escreveria um trabalho com tais características durante o próprio governo de Heliogábalo. Concordamos com Flinterman e Bowie e acrescentamos que, para nós, há na VA muitas passagens que podem ser interpretadas como referências metafóricas a imperadores severianos ou a ligações de Filóstrato com tais imperadores, de alguma forma. Além das passagens já citadas relacionadas aos imperadores Septímio Severo, Geta e Caracala, podemos destacar também as várias referencias a Apolônio como sacerdote do Sol21 e a identificação do rei indiano com o próprio Sol (VA, III, 28), como uma espécie de alusão a Heliogábalo, também sacerdote e identificado com o Sol.22 Porém, não pensamos que ligar Apolônio ao culto ao Sol seja uma forma de chamar a atenção de Heliogábalo para esse personagem, já que esse imperador é criticado por Filóstrato na VS (II, 624-625).23 Portanto, acreditamos ser improvável que Filóstrato pretendesse algo de um imperador que não admirava. Devemos considerar que a VA é uma obra muito grande e que Filóstrato pode ter começado a escrevê-la durante o período de um imperador e terminado no período de outro. Mas, se analisarmos os temas da VA dentro da trajetória de Filóstrato, podemos considerar que há passagens que podem nos indicar que Filóstrato se preocupava de maneira especial com a situação das cidades gregas, estando, possivelmente, na Grécia no momento de sua escrita (VA, IV, 2; IV, 8, IV, 31). Tais preocupações estão relacionadas ao seu papel como sofista dentro das cidades gregas, como uma espécie de conselheiro da solidariedade e da harmonia entre as cidades gregas. Esse papel era comum aos sofistas, pois, como indica Hidalgo de la VegaΝ(βίίβ,ΝpέΝιλ),ΝosΝsofistasΝeramΝ“porta-vozes dos interesses citadinos entre 21 Tratam-se das passagens: VA, I, 16; I, 31; II, 28; II, 38; III, 14; III, 15; III, 33, VI, 10; VI, 11; VII, 10; VII, 31; VIII, 13. 22 Também o pai de Júlia Domna era sacerdote do sol em Emesa, na Síria. 23 Essa passagem corresponde a um trecho da biografia do sofista Eliano, comentada no Capítulo 1, e trata de um encontro deste sofista com Filóstrato de Lemnos, possível parente de nosso Filóstrato como tratado no Capítulo 1 desta Tese. Embora a passagem não seja algo dito pelo próprio Filóstrato, nosso autor, acreditamos que se ele não compartilhasse da visão de tirano que recaía sobre Heliogábalo, essa imagem deste imperador não estaria na VS. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 107 sua cidade e o poder imperial, colaborando com o processo integrador e de coesão que cumpriaΝaΝcidadeέ” Sendo assim, sabemos que Filóstrato provavelmente voltou a viver na Grécia após a morte de Júlia Domna em 217. Portanto, provavelmente a VA não foi escrita antes de 217. Além disso, ainda considerando a escrita da VA dentro da trajetória do autor e de nossa hipótese de Apolônio ser representado em diversas situações como conselheiro de governantes e ser este papel uma projeção para as funções de Filóstrato e sua categoria de sofista, devemos considerar que Filóstrato escreveu a obra após perder sua posição na corte imperial, ou seja, novamente após 217 quando morre Júlia Domna e quando não temos mais registros das relações de Filóstrato com a corte. Dessa forma, Filóstrato escreveu a obra quando não estava mais em contato próximo com a corte imperial, o que era extremamente vantajoso para um intelectual como ele no período, podendo usá-la, mesmo que não intencionalmente, como recurso para chamar a atenção do novo imperador para atributos e atuações de um intelectual de sua formação, projetados no biografado. Por tudo isso, acreditamos que Filóstrato tenha escrito, ou pelo menos concluído a VA sugerindo suas intenções finais do momento em que vivia, durante o governo de Severo Alexandre (222-235). Acrescentamos a essa hipótese o argumento de que o Império Romano passava por muitos problemas em suas fronteiras nesse período, e tal situação pode estar representada também metaforicamente na obra.24 Além disso, Severo Alexandre é citado como admirador de Apolônio de Tiana: Ele seguia esse estilo de vida. Primeiro, se ele tinha a oportunidade, isto é, se não tivesse dormido com sua esposa, ele sacrificava no início da manhã horas no santuário dos deuses domésticos, onde guardava imagens dos imperadores divinizados, tendo escolhido apenas os melhores e alguns homens de almas de santidade incomum, incluindo Apolônio e, como relata um escritor de sua época, Cristo, Abraão, Orfeu e outros do gênero, e as imagens de seus ancestrais (História Augusta, Vida de Severo Alexandre, 29, 2). Se tal admiração realmente existiu, a escolha de Apolônio de Tiana por Filóstrato pode ter objetivado chamar a atenção do imperador para a leitura da biografia, utilizando os atributos de um carismático personagem já admirado por Severo Alexandre que, segundo nossas conjecturas, eram atributos que Filóstrato buscou demonstrar que ele e os sofistas possuíam. Não há registros de que a VA tenha sido lida pelo imperador Severo Alexandre, mas acreditamos que essa pode ter sido uma pretensão do sofista, pois a admiração de Severo 24 Situações estas a serem trabalhadas no Capítulo 4 desta Tese. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 108 Alexandre por Apolônio, documentada pela História Augusta, deveria tê-lo conduzido à leitura do texto de Filóstrato. Ao defendermos a ideia de que Filóstrato pôde ter buscado escrever a biografia de Apolônio visando sua leitura pelo imperador Severo Alexandre, entramos na discussão sobre o público ao qual a obra se destinou. Alguns autores defenderam que a VA foi endereçada a um membro da família imperial severiana: Calderini (apud FLINTERMAN, 1995, p. 218-219) acreditava que Filóstrato buscou aconselhar Septímio Severo quando escreveu a VA. Lenz (apud SWAIN, 2003, p. 392) entendeu a obra como voltada para instruir Caracala. Solmsen (1940, p. 568) interpretou a VA como expressão da vontade de Filóstrato de agradar a Caracala e Júlia Domna. Bowie (1978, p. 1670) afirmou que foi para Severo Alexandre que Filóstrato endereçou seus escritos acerca de Apolônio de Tiana, também voltando seus conselhos para a instrução desse imperador. Diferente dos estudiosos citados acima, um grupo de pesquisadores entende a VA endereçada às elites e não aos imperadores severianos. E. M. Schtajerman (apud FLINTERMAN, 1995, p. 221), em uma análise da VA a partir de uma perspectiva teórica marxista,ΝrelacionandoΝalgumasΝpassagensΝdaΝobraΝcomΝaΝ“criseΝdoΝescravismo”ΝnoΝséculoΝIII,Ν defendeu que Filóstrato endereçou a biografia às aristocracias municipais. Segundo essa estudiosa russa, Filóstrato acreditava que a aristocracia municipal precisava de um programa político fundado no funcionamento tranquilo, um autogoverno das elites municipais reforçado por um imperador que se mantivesse longe de ideais tirânicos, respeitando os direitos da elite social. Em sua visão, a VA não foi destinada a nenhum imperador, e sim aos membros da aristocracia municipal do Império. Mesmo não concordando com a análise de Schtajerman, Flinterman (1995, p. 222) menciona que sua visão sobre a obra não ser direcionada a um membro da corte imperial é um avanço em relação às demais pesquisas. Hidalgo de la Vega (1995, p. 218) também defende que a VA foi escrita voltada para as elites, mas para a elite grega em particular. Essa historiadora liga as intenções filostratianas a um programa políticoreligioso de salvação representado pelo mago pitagórico Apolônio, cuja mensagem filosóficoreligiosa era facilmente compreendida pelos leitores da elite grega. Como podemos perceber, quando todos autores apontam o público ao qual Filóstrato destinou seu texto baseiam-se essencialmente em episódios da obra e não na obra como um todo. O primeiro grupo de autores volta-se aos episódios nos quais Filóstrato mostra o protagonista Apolônio em contato com imperadores, analisando tais passagens como metáforas dos conselhos que Apolônio dá aos imperadores com quem dialoga, para conselhos CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 109 de Filóstrato aos imperadores severianos. Já Schtajerman (apud FLINTERMAN, 1995) parece se basear essencialmente nas passagens em que Filóstrato se refere à necessidade de harmonia entre as cidades gregas. Hidalgo de la Vega (1995), por sua vez, analisa a obra em sua totalidade, mas lê as intenções de Filóstrato como ligadas à legitimação de aspectos da corte severiana para a elite grega leitora. Não devemos pensar que a obra se destinou apenas a um imperador; tal análise é muito reducionista. Não julgamos que a obra tenha se destinado aos primeiros imperadores severianos pela própria datação que defendemos para sua escrita, já apresentada. Portanto, como as demais obras da Antiguidade Clássica, Filóstrato sabia que seu texto seria lido por grupos da elite leitora da época. Thomas Schimtz (2009, p. 65) percebe que, na VS, Filóstrato tem alguns leitores em mente, mostrando valores e perspectivas que seriam compartilhados entre ele e tais tipos de leitores. Partindo dessa mesma ideia, também podemos assumir que a VA já possui seu público-alvo: partícipes da aristocracia imperial, especialmente da parte grega oriental do Império, cujos valores em relação ao poder romano, à administração imperial, à posição dentro do Império Romano compartilha com um sofista como Filóstrato e seu Apolônio. Neste sentido, compartilhamos da ideia de Hidalgo de la Vega (1995) para o público leitor da VA. Para nós, portanto, o autor tem como público da biografia grupos da elite imperial. O próprioΝ όilóstratoΝ declaraΝ queΝ suaΝ obraΝ éΝ endereçadaΝ “AosΝ amantesΝ doΝ saber,Ν poisΝ podemΝ aprenderΝ aquiΝ coisasΝ queΝ aindaΝ nãoΝ sabiam”Ν (VA, I, 2). Sendo assim, sua obra está voltada para os letrados, que como ele haviam recebido a paideia e eram os que amavam o saber em sua concepção. Mas não seriam necessariamente aos gregos, enquanto identidade étnica, que estaria voltada a obra, mas aos homens que tinham recebido a paideia, identificada por essa educação como grega. Em várias passagens da VA o saber é relacionado àqueles que receberam a paideia, ou seja, seus leitores. Ter recebido a paideia era ser culturalmente convertido em grego para Filóstrato e, portanto, era ser capaz de se identificar com os valores transmitidos por ele.25 Mas também inferimos que acreditar que a obra se destinou apenas à aristocracia grega seria desconsiderar que Filóstrato esteve junto a imperadores em um momento de sua carreira e chegou a escrever cartas (Carta 72, Carta 73) para membros da família imperial, mostrando essa sua capacidade, ou pretensa capacidade, de tê-los como interlocutores. Além 25 Essa ideia fica em evidência em VA, III, 43, quando Damis diz querer acompanhar Apolônio, pois assim se tornaria educado (π πα υ – pepaideumenos) ao invés de bárbaro ( α – barbaros). Acompanhando Apolônio, Damis se mesclaria com os gregos e seria convertido em um deles. No Capítulo 3, mostraremos como essa noção também é expressa na VS. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 110 disso, acreditamos que as passagens nas quais Apolônio aconselha imperadores podem ser metáforas usadas pelo autor para demonstrar sua capacidade e a de sua categoria de sofista de estarem próximos de imperadores, como já mencionamos. Há também alguns elementos compartilhados na VA e na corte severiana que indicariam pistas para essa possível pretensão de Filóstrato de ser lido pelos Severos, são eles: o próprio protagonista herói da biografia, Apolônio, admirado pela casa severiana (VA, VIII, 31; DIÃO CÁSSIO, LXXVIII, 18, 4; História Augusta, Vida de Severo Alexandre, 29, 2); as aproximações de Apolônio com Alexandre, especialmente no que tange às viagens e contatos com a Índia (VA, II III), sendo Alexandre admirado por Caracala e Severo Alexandre; o culto ao Sol, tão presente nas práticas de Apolônio, culto esse de que o pai de Júlia Domna era sacerdote em Emesa, na Síria (DIHLE, 2004, p. 310) e de que o imperador Heliogábalo foi seguidor. Indo mais além, não nos isentando de refletir sobre as intenções do próprio Filóstrato, percebemos que o autor pode ter desejado mostrar em Apolônio uma espécie de representante de aspectos da cultura da corte severiana, pois sabemos, segundo Albert Dihle (βίί4,Ν pέΝ γ1ί)Ν queΝ “esteΝ clãΝ tinhaΝ desenvolvidoΝ umaΝ peculiarΝ sínteseΝ entreΝ asΝ tradiçõesΝ religiosas de sua própria região com o status eΝestiloΝdeΝvidaΝdasΝaltasΝcamadasΝgregasέ”ΝσãoΝ podemos deixar de perceber como Apolônio caracteriza a simbiose de elementos sírios em sua representação como sacerdote do Deus Sol e um estilo de vida dos grupos das elites gregas. 26 É neste sentido que reforçamos nossa hipótese de Apolônio ser uma forma de Filóstrato atrair a atenção da corte severiana para a biografia que escreveu e para a identificação com os elementos que ali elabora. Após situarmos qual o momento mais adequado, segundo nossas conjecturas, para a escrita da VA e qual seu possível público leitor, busquemos agora analisar a relação de Filóstrato com as fontes do texto. Filóstrato nos indica que se utilizou das seguintes fontes: cartas escritas por Apolônio; histórias populares sobre Apolônio, contadas pelas pessoas e recolhidas pelo biógrafo em cidades e templos restaurados pelo biografado (VA, I, 2); o livro de Máximo de Egas sobre Apolônio (VA, I, 3); o testamento do biografado (VA, I, 3) e o livro de memórias de Damis - ὑπ α α - hypomnemata (VA, I, 3), discípulo de Apolônio de Tiana. O livro de memórias de Damis parece ser a principal fonte da VA, já que ele é mencionado por Filóstrato 26 Sobre Apolônio como seguidor de costumes e tradições da elite grega, podemos ver algumas representações na VA: Apolônio recebe a paideia grega (I, 7), conhece o passado e a literatura grega (passagens como: VII, 28; VIII, 2; VIII, 7.6; VIII, 7.15) e se veste como os filósofos antigos, genuinamente áticos (II, 40). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 111 em passagens de todos os livros.27 Como já expusemos neste capítulo, Filóstrato cita a existência de outra biografia de Apolônio, escrita por Moeragenes, que, porém, não foi encontrada até nossos dias e que Filóstrato diz compor de quatro livros que ele não usou por ignorar muitas coisas sobre Apolônio (VA, I, 3). Não temos outras notícias atualmente nem sobre o livro de Moeragenes, nem sobre o de Máximo de Egas, assim como sobre o testamento de Apolônio e o livro de memórias de Damis. A real existência de Damis e de suas memórias ainda hoje é motivo de discussão por parte dos estudiosos. Um primeiro grupo de estudiosos não duvida que Filóstrato usou realmente o livro de Damis; entre eles estão Anderson (1986) e Flinterman (1995).28 Outro grupo de estudiosos julga que Damis seja uma invenção de Filóstrato; entre esses estão Bowie (1978, 1994), Dzielska (1986), Swain (2003) e Jones (2005). Anderson (1986, p. 166-169) acreditou ter encontrado referências a Damis em um documento medieval, defendendo que Dini, um exorcista de demônios da Mesopotâmia, era o discípulo de Apolônio. Anderson também tentou mostrar que Damis poderia ser um epicurista citado por Orígines na obra Contra Celso, tese que achamos difícil de ser sustentada já que Damis é mostrado como pitagórico na VA (VII, 15). Para Anderson (1986, p. 285), Damis ainda teria existido por Apolônio ser, em algumas ocasiões, muito diferente dos sofistas da VS. De acordo com Anderson, onde Apolônio se assemelha aos sofistas é criação de Filóstrato, onde se difere é informação de fora. Para nós, Apolônio se assemelha em muitos aspectos aos sofistas da VS, mas também se diferencia em outros, e não podemos concordar com Anderson em que só por haver certas diferenças significa que o livro de memórias de Damis foi usado. Lembremos que havia elementos conhecidos sobre Apolônio que Filóstrato precisava respeitar, não sendo Apolônio inteiramente uma criação sua. Acreditamos na capacidade do sofista de saber até onde poderia ir na suas criações, não sendo capaz de colocar sua reputação de escritor em risco de ser questionada. Flinterman (1995, p. 85) apoia sua afirmação da existência de Damis, essencialmente, na ideia de que Filóstrato mostra ter certas reservas com relação ao livro de memórias de Damis no que diz respeito a escritos de Apolônio sobre astrologia (VA, III, 41) e atitudes que poderiam parecer práticas de α – goeteia (VA, V, 11; VII, 38). Essas reservas, de acordo com Flinterman, não existiriam se o livro de Damis fosse inventado. 27 VA, I, 2; II, 3, 10, 28; III, 15; III, 17; III, 27; III, 33; III, 41; III, 45; III, 51; IV, 19; IV, 25; V, 7; V,10; V, 24; VI, 4; VI, 6; VI, 22; VI, 32; VII, 10; VII, 15; VII, 28; VII, 34; VII, 35; VII, 38, VII, 42; VIII, 20; VIII, 31. 28 Flinterman (1995, p. 79) informa sobre outros autores que compartilham da mesma opinião: Phillimore (1912), Grosso (1954) e Taggart (1972). De acordo com Flinterman (1995, p. 75) ainda há autores que defendem que Filóstrato se utilizou de um texto pitagórico pseudográfico do século II ou III. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 112 Bowie (1978, p. 1653), por sua vez, acredita que a invenção de Damis poderia ser perigosa para Filóstrato, pois isso colocaria em questão a imperatriz Júlia Domna, que segundo o próprio Filóstrato, teria recebido das mãos de um familiar de Damis o referido livro de memórias. Bowie (1978, p. 1670) ainda considera a possibilidade de esse parente de Damis ser Flávio Damiano de Éfeso, sofista leal à casa dos Severos, que aparece entre os sofistas da VS (II, 606) e foi fonte de informações para Filóstrato sobre Élio Aristides (VS, II, 582). Mesmo assim, Bowie não acredita na real existência do livro de Damis e vê sua citação na VA como uma espécie de recurso literário já utilizado por Filóstrato no texto Heroicos. Filóstrato teria enfrentado os riscos da criação de Damis a fim de dar maior credibilidade a sua narrativa. Jones (2005, p. 05) também entende a criação de Damis como uma forma de Filóstrato tornar o texto autêntico, o que é encontrado em muitas obras da literatura antiga. Solmsen (1940, p. 558) afirma que não há dúvidas de que as referências a Damis no texto dão autenticidade à história fabulosa do herói de Filóstrato. Para Jones (2005, p. 05-06) há uma semelhança grande, nesse sentido, entre a VA e outra obra atribuída a Filóstrato, o Heroicos. Em Heroicos, Filóstrato menciona os encontros do fantasma de Protesilau, herói da Guerra de Troia, com o narrador da obra. Para Jones, portanto, Filóstrato pensava que seus leitores reconheceriam a amizade de Protesilau com o narrador do Heroicos como uma invenção inofensiva de sua criatividade, e assim também supunha que os leitores veriam Damis. Em favor do grupo de estudiosos que considera a possibilidade de invenção do livro de Damis, acrescentamos como argumento, os erros geográficos contidos no texto. Se Damis acompanhou de fato Apolônio em suas viagens, anotando os locais por onde passavam no questionado livro de memórias, seria pouco provável a existência de erros geográficos. Tais erros podem ser percebidos quando o narrador cita, por meio de informações obtidas de Damis, que Apolônio foi da Antiga Ninos para a Babilônia passando pela Císsia (VA, I, 24). Filóstrato confunde a região da Císsia com a região dos cosseos, montanheses nômades. Outro erro também é localizado na confusão do Mar Vermelho com o Golfo Pérsico (VA, III, 4).29 Há ainda uma necessidade muito grande de Filóstrato em citar Damis como fonte de informação a todo o momento na obra. Tal necessidade nos parece fruto do próprio desejo e preocupação do narrador em convencer o leitor sobre a existência de Damis, que poderia ser 29 As informações sobre esses erros geográficos nos são fornecidas por Pajares (1979, p. 96-97, 175), nas notas de rodapé da tradução da VA feita para a Editora Gredos. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 113 colocada em dúvidas. O narrador ainda cita que Damis nada omitia sobre Apolônio (VA, VII, 27), numa tentativa, a nosso ver, de novamente conferir credibilidade à sua fonte. A discussão sobre a invenção ou não de Damis se faz importante em nossa pesquisa a partir do momento que ela põe em debate o quanto o Apolônio da VA é ou não uma criação de Filóstrato. Contudo, sendo inventada ou não a fonte, acreditamos que Filóstrato poderia trabalhar deliberadamente em cima do livro de Damis se ele tivesse mesmo existido, devido ao acesso restrito que as pessoas tinham a esse documento. Além disso, mesmo que a obra tenha existido, defendemos que o autor não deixou de se posicionar e mostrar seus próprios valores sobre o que narra, excluindo e incluindo o que lhe fosse pertinente e estivesse dentro de suas convicções, selecionando o que lhe parecesse mais interessante. Flinterman (1995, p. 83), mesmo defendendo a existência de Damis, nota que Filóstrato aduz seus próprios conhecimentos em algumas passagens, como em VA, II, 11-16, quando as conversas entre Apolônio e Damis alteram-se com conhecimentos do narrador. É assim que este historiador, embora defenda o uso por Filóstrato de várias fontes de diferentes tipos, conclui que a principal característica da VA é ser uma criação do biógrafo (FLINTERMAN, 1995, p. 88). Mesmo Anderson (1986) e Flinterman (1995), que defendem a existência do livro de Damis, não negam que a VA tem muito da criação e do contexto que viveu Filóstrato. Ao grupo de estudiosos que defendem a existência do livro de Damis, acrescentamos que a invenção de uma fonte inexistente poderia comprometer nosso sofista, especialmente se considerarmos que os Severos rendiam admiração por Apolônio de Tiana e mesmo que Júlia Domna já estivesse morta na época que a obra é escrita, os demais membros da casa severiana poderiam querer este livro como documento, até mesmo porque, como Filóstrato afirma, ele lhe foi dado por Júlia Domna (VA, I, 3) e pertencia, desse modo, à casa imperial e, como sabemos pela História Augusta, os Severos rendiam simpatia por Apolônio. No entanto, se Filóstrato o inventou, certamente, sabia que não correria tais riscos. Por fim, uma última hipótese sobre o livro de Damis nos é apresentada por Dzielska (1986, p. 26), que não acredita em sua existência, mas mostra que alguns estudiosos, como B. L. Taggart (1972) e W. Speyer (1974), teriam suposto que o livro de Damis poderia existir de fato, mas como criação de pitagóricos seguidores de Apolônio, a fim de difundir a filosofia de seu mestre, não sendo um testemunho ocular das viagens e parte da vida de Apolônio. Portanto, de acordo com essa visão, o livro de memórias apresentado a Júlia Domna já conteria falsificações. Aceitar essa ideia seria absolver Filóstrato de uma falsificação, o que Bowie (1978, p. 1663) nega, acreditando que o único testemunho falso é a menção de Filóstrato sobre o uso do livro de Damis. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 114 É difícil nos posicionarmos de forma cabal sobre a existência ou não de Damis. Porém, não negamos que muito do que é apresentado na VA seja fruto de criação, talento literário, ideologia e exagero do autor, especialmente no que diz respeito às viagens de Apolônio para além dos limites do oriente grego, pois, como já discutimos, dificilmente o Apolônio histórico fez tais viagens, que são detalhadamente descritas por Damis, o que seria um forte indicativo de sua invenção. Outra constatação dos problemas de Filóstrato em relação ao testemunho de Damis está, conforme nossa leitura, na apresentação de temas tratados em momentos em que Damis é citado como ausente, como no episódio em que Apolônio se encontra com Domiciano (VA, VII, 32), no qual, mesmo Damis estando ausente para nos testemunhar toda a conversa, os diálogos são citados em detalhes por Filóstrato. Outra passagem em que Damis está ausente, segundo o narrador, é quando Apolônio conversa e aconselha o governador da Bética sobre Nero (VA, V, 10). Nessa passagem, no entanto, Filóstrato não mostra detalhes do que foi conversado, apenas conclui o conselho a partir de uma frase que, segundo ele, Damis diz ter ouvido na despedida de Apolônio do governador. Uma das passagens em que percebemos que Filóstrato não consegue uma informação do livro de Damis, por este estar ausente no momento, está em VA, I, 26: A respeito dos magos, Apolônio disse o suficiente: que teve relação com eles, que aprendeu algumas coisas e que partiu após lhes haver ensinado outras. Damis não sabe o que conversaram, pois foi proibido de acompanhálo quando ia vê-los. Disse, no entanto, que visitava os magos ao meio-dia e meia-noite e que, uma vez, lhe perguntou: – E sobre os magos? E Apolônio lhe respondeu: – Sábios, mas não em tudo. No entanto, a menção da ausência de Damis como motivo para a falta de informação não compromete a hipótese de Damis ter sido inventado, uma vez que Filóstrato menciona essa ausência e a falta de informação justamente em uma passagem que trata da questão da relação de Apolônio com a magia, o que de fato era algo um pouco incômodo para Filóstrato que, como já mostramos, buscou livrar seu protagonista de qualquer relação com aspectos mágicos considerados negativos em sua época. Mas Filóstrato procura explicar em uma passagem da VA como ele pôde tratar de um assunto que Damis não estava presente, o que para nós mostra a preocupação do narrador em afirmarΝaΝexistênciaΝpoucoΝprovávelΝdoΝlivroΝdeΝmemóriasμΝ“SobreΝessasΝcoisasΝafirmaΝqueΝnãoΝ CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 115 assistiu pessoalmente por ter passado aquele dia na aldeia, mas por tê-las ouvido de Apolônio, escreveuΝemΝsuaΝnarração”Ν(VA, III, 27). Além dos argumentos apresentados acima sobre a possível criação de Damis, devemos considerar que havia a necessidade da presença de Damis na obra para Apolônio ter com quem dialogar e transmitir suas mensagens, especialmente porque a obra é estruturada em diálogos. Portanto, há mais indícios que levam à ideia de que o livro de Damis tenha sido uma invenção do autor do que os que dão pistas sobre sua existência real. Filóstrato teria criado esse testemunho para dar legitimidade a sua obra. A preocupação de Filóstrato em legitimar o texto da VA também pode ser percebida numa passagem em que o narrador comenta o mito de Apolo Dafneo e questiona o leitor sobre a proposta de seu relato, seguindo o questionamento de uma reflexão de Apolônio sobre a identidade de Ladão, um dos personagens do mito, que eraΝgregoΝeΝbárbaroμΝ“TalvezΝpudesseΝparecerΝqueΝmeΝportoΝdeΝmaneiraΝmuitoΝpuerilΝaoΝnarrarΝ mitosΝcomoΝeste,ΝmasΝseΝnãoΝforΝporΝmitologia,ΝoΝqueΝpropõeΝmeuΝrelatoς”Ν(VA, I, 16). Assim, vemos a preocupação do narrador em que seu relato fosse levado a sério e não considerado uma invenção, mostrando as reflexões possíveis atrás dos mitos. Filóstrato imprime por meio das viagens, que podem ter sido criadas por ele e atribuídas à narração de Damis, a sua visão de atuação do protagonista em um nível geográfico muito amplo, deixando marcas de seus conhecimentos étnicos e de geografia, muitas vezes marcados por erros próprios de alguém que não era um especialista no tema e, logicamente, deixando traços de seus ideais político-ideológicos. Ele demonstra possuir conhecimentos variados, como nas descrições sobre a geografia e os animais de diferentes regiões.30 Porém, mais do que nesses trechos em que os conhecimentos do narrador ficam explícitos, acreditamos que Filóstrato se faz presente no texto também nas passagens que tratam propriamente de assuntos político-administrativos. Nelas apresenta suas convicções, ainda que seja narrando o que lhe era aceitável da personagem histórica que foi Apolônio e excluindo o que não estava de acordo com seus ideais políticos. A juventude de Apolônio, o início de seus estudos filosóficos e de sua atuação na região da Jônia são narrados pelo sofista Máximo de Egas, que Filóstrato menciona ter usado 30 Sobre os conhecimentos geográficos apresentados na VA: I, 20 (descrição geral da Mesopotâmia), I, 24 (descrição da região dos erétrios), I, 25 (descrição da Babilônia), II, 2 (descrição da região do Cáucaso), II, 8 (descrição do Rio Cófen e do Monte Nisa), III, 1 (conhecimentos geográficos sobre o Rio Hífasis), V, 1 (descrições de Gades, atual Cádiz), VI, 1 (descrições geográficas da Etiópia, comparações entre os Rios Nilo e Indo). Sobre as descrições de animais das regiões por onde Apolônio viaja, muitas delas maravilhosas e fantasiosas, como as descrições de unicórnios e dragões: VA, II, 2, 6, 11-12; 14-15, III, 1, 2, 6-8, 48, 49, 50; VI, 1, 24. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 116 para conhecer essa fase da vida de Apolônio (VA, I, 12). Pouco depois disso, Apolônio inicia suas viagens para além da região da Jônia e já no Livro I, no início das viagens, conhece Damis, a partir daí, Filóstrato menciona que sua principal fonte de conhecimentos sobre o protagonista é o livro de memórias de Damis. Portanto, para nós, corroborando Dzielska (1986), o Apolônio histórico se manteve possivelmente atuante na região da Jônia e no oriente grego, e o conhecimento que Filóstrato mostra sobre o personagem nessa região pode ser fruto do livro de Máximo de Egas e de tradições locais que ele buscou reunir, mas também selecionou e mostrou conforme seus interesses. Outra documentação citada por Filóstrato na escrita da VA são as cartas de Apolônio. Além da obra de Filóstrato, tais cartas são a fonte mais rica que temos sobre Apolônio, transmitidas de maneira independente da biografia. Muitas delas foram organizadas por Stobaeus, no século XV. Portanto, analisar essas cartas é a melhor forma de perceber como Filóstrato seleciona o que dizer sobre seu biografado. Comparar este material com a VA nos conduz a uma reflexão sobre como o Apolônio da biografia é, em grande parte, uma criação do autor. Há uma grande problemática em torno da autenticidade das cartas transmitidas como tendo sido escritas por Apolônio de Tiana. Em sua totalidade esse corpus epistolar possui cerca de cem cartas, sendo que na VA há dez delas citadas, algumas com as respectivas respostas dos destinatários.31 As cartas transmitidas pela VA de Filóstrato também foram encontradas na tradição manuscrita independente, podendo ter sido incorporadas ou não a partir da VA. Nesse sentido, tais cartas podem ser fruto da criação filostratiana, tese defendida por Penella (1979). Flinterman (1995, p. 70-72) argumenta que são muitas as hipóteses sobre a relação destas cartas com a VA: todas as cartas transmitidas pela VA podem ter sido criadas por Filóstrato, o biógrafo pode tê-las produzido a partir de tradições anteriores sobre Apolônio, as cartas não citadas na VA podem ter sido produzidas baseadas na VA, assim como as cartas podem ter sido de fato produzidas por Apolônio ou pela tradição independente e anterior a Filóstrato e serem, como o biógrafo cita, parte de suas fontes. Filóstrato refere na VA à existência de cartas que Apolônio teria escrito sobre suas conversas, com o rei parto Vardanes, que não estão na tradição epistolar conhecida atualmente: “Essa é a conversa que Damis afirma que nosso homem manteve. Essa conversa, Apolônio nos deixou em forma de carta, além de ter resumido outras coisas em suas cartas sobre o que ele disse nessas conversas” (VA, I, 32). 31 As cartas de Apolônio são citadas em: VA, I, 15, 24; III, 51; IV, 27; IV, 46; V, 41; VI, 28, VI, 33 e VIII, 3. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 117 No entanto, não há na tradição nenhuma carta sobre Vardanes, nem para outro destinatário sobre o que Apolônio teria tratado com esse rei parto. A citação acima da VA mostra que pode haver outras cartas da tradição que não chegaram até nós ou, o que nos parece mais provável, que Filóstrato criou essa informação, assim como o livro de memórias de Damis, para dar credibilidade às suas referências sobre Apolônio. Abraham (2009, p. 25) acredita que o Apolônio histórico de fato escrevia cartas, possibilidade que pode ser real tendo em vista o valor das cartas como forma de comunicação na Antiguidade, mas a autenticidade destas cartas, ou pelo menos de algumas delas, não deixa de ser imensamente questionável. Vemos que o próprio Filóstrato menciona sobre uma carta de Apolônio, falsa, fruto do primeiro encontro entre Apolônio e Domiciano (VA, VII, 35). Embora Abraham (2009, p. 28) acredite ser difícil avaliar o valor que essas cartas podem ter, diante da dificuldade em saber a autenticidade das mesmas, com o que concordamos, o testemunho das cartas valerá para nós a partir do momento em que percebemos nele a existência de outra documentação sobre Apolônio capaz de nos ajudar a compreender a construção do Apolônio de Filóstrato, em analogias e contraposições. Os destinatários das cartas transmitidas pela tradição são filósofos, sacerdotes homens que ocupavam cargos políticos nas cidades do Império Romano, populações de cidades, reis, comerciantes, seu irmão, outro parente cujo vínculo consanguíneo não especifica, amigos, um general romano e futuro imperador (Tito) e para os imperadores Domiciano e Vespasiano. Os destinatários das cartas transmitidas na VA são: os mercadores de trigo da cidade grega de Aspendo, o sofista Escopeliano, Iarcas e os demais sábios brâmanes, o filósofo Musônio, o imperador Vespasiano, o general Tito e o filósofo Demétrio. Podemos perceber que, se tais cartas foram mesmo selecionadas por Filóstrato a partir de uma tradição anterior, o biógrafo selecionou poucas cartas, mas que nos mostram uma visão geral de tipos de pessoas com as quais Apolônio se relacionava (filósofos, sábios indianos, população das cidades, homens públicos e mesmo um imperador e um importante general romano), mostrando o caráter público do protagonista. Em uma passagem da VA, Filóstrato menciona quem eram os destinatários das cartas de Apolônio e qual o objetivo das mesmas: “EleΝ manteveΝ correspondênciaΝ comΝ reis,Ν sofistas,Ν filósofos, eleos, délficos, indianos e egípcios, sobre os deuses, os costumes, os princípios morais e as leis. E em suas cartas ele corrigiaΝaquiloΝqueΝestavaΝerrado”Ν(VA, I, 2). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 118 Nota-se que Filóstrato deixou de citar qualquer carta de cunho privado na vida do tianeu, no caso as cartas ao seu irmão, a um parente, a amigos e concidadãos de Tiana e mesmo a seus discípulos, já que algumas cartas do corpus epistolar de Apolônio são para seus alunos, não mencionadas na VA.32 Nesse mesmo sentido, nota-se a ausência na VA de relatos como este a seguir, em que Apolônio manifesta o seu desejo de ajudar os familiares de um falecido amigo, cuidando de seus negócios e ajudando a educar seu filho (Carta 13): Para os dirigentes de Selêucia: Estrato se afastou da condição humana, deixando tudo o que era mortal nele na terra. Mas nós, que ainda estamos punidos aqui, ou, em outras palavras, que ainda estamos vivos, devemos cuidar de seus negócios. Seria, portanto, dever de cada um de nós realizar alguma tarefa agora ou futuramente, alguns de nós, na condição de seus familiares, outros simplesmente como seus verdadeiros amigos. Nunca teremos outro momento para provarmos poder fazer isso, pelo menos, se qualquer uma daquelas denominações eram verdades no passado. Nesse sentido, eu, particularmente, quero ajudá-lo da seguinte forma: irei educar Alexandre, seu filho com Seleucis, e irei transmitir meu conhecimento a ele. Certamente, a partir de agora, estou lhe dando coisas muito maiores, eu poderia ter lhe dado muito dinheiro, se fosse correto para ele ter dinheiro. Nas cartas, Apolônio mantém uma relação diferente com a cidade de Selêucia, remetendo a Carta 12 aos dirigentes dessa cidade, tratando-a também como sua pátria natal e mostrando o desejo destes em tê-lo na cidade. Para os dirigentes de Selêucia: A cidade, que é inclinada como vós para com os deuses, e para aqueles homens que merecem a aprovação, é ao mesmo tempo feliz em si mesma e ajuda aqueles a quem testemunha atingir a virtude. Não é difícil iniciar um ato de bondade, mas sim é a melhor das ações humanas. Mas, para encontrar um retorno adequado, o que está muito longe de ser fácil, é como encontrar algo que é equivalente impossível, pois é claro que é o segundo em ordem e nunca pode ser o primeiro em espécie. Sou obrigado, portanto, a invocar ao deus em vossos nomes para que ele possa recompensá-los, quem se mostrou superior a si mesmo não apenas potencialmente, mas na realidade, nenhum ser humano pode recompensar tais atos. Vossos desejos de que eu deveria visitá-los é em si uma parte de vossa bondade comigo, pois, pessoalmente, eu teria rezado por ter vossa cidade como minha cidade natal. Vossos enviados, Hierônimo e Zeno, são todos estimados como meus amigos. A ligação forte de Apolônio com as cidades da Ásia Menor, como sendo sua região de origem, não é mencionada na VA e, pelo contrário, é negada quando Filóstrato escreve que Apolônio não tinha sotaque, mesmo sendo dessa região (VA, I, 6). 32 Embora saibamos dos limites estreitos entre vida pública e vida privada na Antiguidade, diferente de nossa atualidade, não podemos deixar de observar a exclusão de Filóstrato em citar cartas que não envolvessem a imagem extremamente pública de Apolônio, como cartas para familiares e amigos. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 119 Também não há na VA descrições de amizades de Apolônio, apenas a menção de uma fala do tianeu a Domiciano, dizendo que não valorizava o dinheiro, tendo deixado tudo que tinha para seu irmão e amigos (VA, VIII, 7.3). Na VA são valorizados seus contatos com outros sábios e homens que ocupavam cargos públicos. As amizades de Apolônio, contudo, aparecem em muitas cartas da tradição independente, como nas Cartas 46, 47, 48.1, 48.2, 48.3 e 49. Também as Cartas 58.1, 58.2, 58.3, 58.4, 58.5, 58.6 e 58.7, endereçadas a Valério, provavelmente procônsul da Ásia, têm um tom de aconselhamentos de amigo, junto com conselhos sobre governo e administração. Há outras cartas com conselhos morais cujos destinatários podem ser amigos de Apolônio, já que não são filósofos, sábios, reis e nem administradores conhecidos pela historiografia.33 Outra característica presente nas cartas do corpus epistolar é o contato de Apolônio com Tiana (Cartas 11.1, 44.1, 47, 49, 48.1, 48.2, 48.3, 49, 53, 55.1, 55.2 e 73). A VA (I, 13) menciona que Apolônio volta para sua terra natal após a morte de seu pai a fim de sepultá-lo, retornando tempos depois para ajudar seu irmão com problemas de bebida em excesso. No entanto, as descrições filostratianas nos levam a perceber que Apolônio não permaneceu em Tiana por muito tempo. Filóstrato menciona rapidamente que ele, após ter ajudado o irmão, ajudou também outros parentes e já o descreve em voto de silêncio na região da Panfília e da Cilícia (VA, I, 15). O Apolônio da VA,ΝsegundoΝasΝpalavrasΝdeΝDamis,ΝdirigidasΝaoΝmestreμΝ“– Do mesmo modo que tu, Apolônio, respondeu, fui embora após abandonar os meus, como tu, movidoΝpeloΝdesejoΝdeΝaprenderΝeΝinvestigarΝoΝqueΝháΝemΝterraΝestranha”Ν(VA, II, 11). Nas cartas, entretanto, o filósofo chega a mencionar que seus concidadãos pedem que ele volte para Tiana e ele aceita (Carta 47), o que não aparece em nenhum momento da VA. Para a assembleia e para o povo de Tiana: Vós pedis que eu volte, e eu o aceito, pois, é claro, o que poderia ser mais conveniente, uma cidade convocar seus próprios cidadãos a fazer-lhes honra? Durante todo o tempo das minhas viagens, mesmo se eu vos irritei, eu viajei, a fim de trazer à cidade boa vontade, fama e amizade das cidades ilustres e também dos homens ilustres. E se mereceis uma reputação ainda maior e mais alta, minha própria pessoa e meus talentos, só teriam sido suficientes para elevar-vos a tal influência e admiração. Apolônio afirma na tradição epistolar que viajou muito, mas sempre viajava pensandoΝemΝtrazerΝfamaΝeΝamizadesΝaΝTianaέΝEleΝdeclaraΝtambémΝqueΝ“cadaΝpessoaΝsensataΝ 33 Estamos citando integralmente na Tese apenas cartas que necessitam ser analisadas por nós, por estarem, de alguma forma, ligadas à compreensão de nosso objeto de pesquisa. As cartas com caráter apenas ilustrativo serão mencionadas, mas não citadas integralmente. Sobre o conteúdo de todas as cartas da tradição ver Apêndice 2. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 120 deve dar prioridadeΝ aosΝ assuntosΝ deΝ suaΝ cidade”Ν (Carta 11.1). De maneira diferente, o Apolônio da VA é mostrado como alguém que viaja em busca de conhecimentos que serão transmitidos aos gregos nesta carta do tianeu ao sábio brâmane Iarcas, citada na VA (III, 51): Apolônio a Iarcas e aos demais sábios, saudações: A mim, que cheguei à vossa presença a pé, me concederam o mar, mas também ao me fazerem partícipe da sabedoria que possuem, me concederam, assim mesmo, viajar pelo céu. Darei igualmente conta disso aos gregos e os farei partícipes de minhas palavras, como se estivésseis presentes, se é que não bebi inutilmente o de Tântalo. Passai bem, nobres filósofos. O Apolônio da tradição epistolar se preocupa em aconselhar que seus irmãos tenham filhos, para continuar a reproduzir o corpo de cidadãos de Tiana (Carta 55.2) e mostra-se feliz ao receber a carta de um parente, ressaltando a amabilidade pela lembrança do laço consanguíneo entre ambos (Carta 49). Para seu irmão: Também deves sentir-te envergonhado de como os teus irmãos estão até agora. O mais velho de nós ainda nem casou, e o mais novo tem perspectivas de ter filhos, mas apenas futuramente. Somos três filhos de um único pai, mas nós três não temos um único filho. Além disso, há igual perigo para nossa cidade ancestral e para as gerações depois de nós. Porque, se nós somos melhores do que o nosso pai era (embora de um modo geral sejamos inferiores, pois ele era nosso pai), não devemos esperar que aqueles que nascerem depois de nós sejam melhores? Então, haverá algumas pessoas a quem, pelo menos, devemos deixar os nossos nomes, assim como nossos antepassados, criados por nós. Minhas lágrimas me impedem de escrever mais, e na verdade não tenho assunto mais urgente para escrever (Carta 55.2). Para Ferociano: Fiquei muito contente com a carta que me enviaste, uma vez que isso mostra amabilidade e lembra nossos laços de sangue. Estou convencido de teu desejo para nos encontrarmos. Irei pessoalmente a ti o mais rápido possível, especialmente porque o deus parece aconselhar-me a isso. Então, por favor, fica onde estás. Assim que eu estiver por perto, vais encontrar-te comigo antes dos meus entes queridos e amigos, uma vez que esse privilégio é teu por direito (Carta 49). Em uma das cartas, no entanto, Apolônio diz que sua cidade ainda não o reconhece como ele acha que deveria e reclama com o irmão sobre isso (Carta 44.1), alegando que é justamente por Tiana que ele busca ser um homem distinto. Na Carta 53, um grego chamado Cláudio agradece a Boulé de Tiana por Apolônio ter visitado a Grécia e ajudado a melhorar sua juventude. Como podemos analisar, há uma diferença importante entre o Apolônio da VA, um cosmopolita que apenas se preocupa com seu irmão no começo de sua carreira, antes de CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 121 iniciar suas viagens e o Apolônio das cartas, um cidadão de Tiana que se preocupa com sua cidade natal. Sobre a pátria de Apolônio, embora Filóstrato mencione que ele nasceu em Tiana e volta quando precisa ajudar seu irmão, sua pátria é toda a terra, como ele nos indica nesta passagemμΝ“εinhaΝéΝtodaΝaΝterraΝeΝmeΝestáΝpermitidoΝviajarΝporΝelaΝtoda”Ν(VA, I, 21). Os vínculos de parentesco do Apolônio da VA não são valorizados. O Apolônio da VA não aparece em retorno para sua cidade natal, ele é um viajante que não dedica atenção especial a sua cidade de origem, a preocupação com sua pátria apenas é mencionada na VA quando Apolônio comenta com o rei indiano que sua viagem se estendeu demais e os de sua pátria podem pensar que os desconsidera (VA, III, 33). No entanto, Tiana não é mencionada nas discussões de Apolônio com esse rei, e pelo contrário, nessas discussões Apolônio defende Atenas e os gregos como um todo. As preocupações do Apolônio na VA estão voltadas para a busca do conhecimento, para os contatos com os diferentes povos nas regiões por onde passa, para a busca de harmonia entre as cidades gregas e para o aconselhamento sobre a melhor forma de governo dado aos imperadores e aos governantes em geral. Assim, o Apolônio das cartas, em certa medida, tem uma relação com o mundo ainda com perspectiva local e mesmo quando menciona estar longe de Tiana, mostra-se preocupado com sua cidade (Carta 73). Pelo contrário, o Apolônio de Filóstrato se volta para o cosmopolitanismo, para o universal e se posiciona como um grego dentro do Império Romano e fora dele, capaz de resolver problemas internos da administração romana e circular por regiões fora dela (Império Parto, Índia e terra dos gimnosofistas).34 O Apolônio das cartas esteve em Cesareia (Carta 11.2), em Selêucia (Cartas 12 e 13), na região grega do Peloponeso (Carta 24) e em Sardes (Cartas 30, 38, 40, 41, 56, 75, 75a e 76), pois há muitos conselhos aos habitantes desta última cidade; talvez também tenha estado em Esparta (Cartas 42a, 63 e 64), Éfeso (Cartas 65 e 66), Mileto (Carta 68), Trales (Carta 69), Sais (Carta 70) e outras cidades da região da Jônia (Carta 71). São essas as cidades e pessoas das mesmas que aparecem nas relações do Apolônio das cartas. Na Carta 34 há ainda uma referência de Apolônio a suas viagens pela região de cultura grega: Argos, Fócis, Locris, Sícion e Mégara. As cartas de Apolônio que mostram sua relação com a Índia estão integralmente na VA, Cartas 77b e 77c, podendo ser criações de Filóstrato incorporadas posteriormente à tradição. Não está na VA a Carta 78, aos brâmanes indianos, cujo tema é o conhecimento 34 Estes temas desenvolveremos no Capítulo 4 da Tese. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 122 adquirido com estes sábios, no entanto todo o conteúdo da carta pode ser lido no Livro III da obra de Filóstrato. Também não há na tradição epistolar paralela à VA menções a estadia de Apolônio na região da Mesopotâmia e suas relações com o rei parto Vardanes. O Apolônio das cartas também mostra ter recebido certa rejeição das cidades da Península Itálica (Carta 14), que não chegou a visitar: Para Eufrates: Muitas pessoas me perguntam frequentemente por que eu não tenho convites para ir à Itália ou, se os tive, por que eu não fui como tu e qualquer outra pessoa. A primeira pergunta que eu mesmo fiz não vai responder a isso, de modo que ninguém pode pensar que eu sei a razão, quando eu nem me importo com isso. Quanto à segunda questão, entretanto, o que eu preciso dizer é que eu preferia ter sido convidado a ter chegado sem o ser. Adeus (Carta 14). Mas o Apolônio de Filóstrato visita Roma mais de uma vez (Livro IV e Livro VIII), visita Dicearquia (Livro VIII) e tem a Península Itálica também como local de destino no Livro VI.35 Tais passagens podem ser de fato criadas por Filóstrato, que não poderia, para nós, deixar de ver o protagonista da VA passando pela capital do Império se seus objetivos são, segundo uma de nossas hipóteses, mostrar um personagem capaz de circular de forma positiva por todo o Império Romano e também fora dele. Também não há menção alguma nas cartas da tradição, sobre a estadia de Apolônio em Gades, nem sobre sua estada junto aos gimnosofistas etíopes. Não podemos afirma, mas supor, que as viagens de Apolônio são criações filostratianas, como já discutimos neste capítulo. No entanto, o Apolônio das cartas é muito diferente em termos de viagens do Apolônio da VA, o que, de certa maneira, apoiaria nossa hipótese sobre a criação dessas viagens por Filóstrato. As cartas de Apolônio da tradição são referidas como escritas em grego. Filóstrato menciona (VA, VII, 35) que nunca encontrou uma carta do seu biografado em jônio, embora tenha ouvido rumores de ele ter escrito também nessa língua e, mesmo, haver uma carta considerada de Apolônio escrita em jônio, que ele acredita ser falsa. A possibilidade de Apolônio ter escrito em uma linguagem de sua região de origem é real, pois como mostra Gleason (2006, p. 229), no início do Principado ainda se mantinham línguas locais na Capadócia. No entanto, a valorização da cultura grega é algo marcante na VA e, nesse sentido, Filóstrato pode ter rejeitado que seu protagonista escrevesse em outra língua ou dialeto. A 35 A estadia de Apolônio pela Península Itálica no Livro VI é apenas mencionada e Filóstrato não comenta detalhadamente o que ele fez nessa região. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 123 valorização da cultura grega também é algo encontrado nas cartas da tradição independente, mas de forma diferente. Nas cartas, Apolônio é apresentado como grego: Para Eufrates: Será que tu, também, me indiciarias? Se fosses honrado o suficiente para fazê-lo. Poderias fazer desta banalização, encargos fáceis: “ApolônioΝevitaΝtodosΝosΝestabelecimentosΝdeΝbanhoέ”ΝSim,ΝeΝeleΝnuncaΝsaiΝ deΝsuaΝcasa,ΝeΝmantémΝseusΝpésΝsegurosέΝ“σuncaΝoΝvêsΝmover qualquer parte deΝseuΝcorpoέ”ΝSim,ΝporqueΝeleΝguardaΝaΝsuaΝalmaΝem constante movimento. “EleΝusaΝum longoΝcabeloέ”ΝEΝassimΝfizeramΝosΝgregos,ΝporqueΝeleΝeraΝgregoΝ eΝnãoΝumΝbárbaroέΝ“EleΝusaΝroupasΝdeΝlinhoέ”ΝSim,ΝeΝestasΝsãoΝasΝmaisΝpurasΝ coisas sagradas também. "Ele pratica adivinhação." Sim, porque muitas coisasΝsãoΝobscuras,ΝeΝdeΝoutraΝformaΝéΝimpossívelΝenxergarΝoΝfuturoέΝ“εasΝ essaΝatividadeΝ nãoΝéΝ corretaΝ paraΝ umΝ filósofo”έΝ τΝ queΝ éΝ certoΝ paraΝ oΝdeusςΝ (Carta 8.1). Os argumentos acima expostos também estão na VA, mas desenvolvidos com mais ênfase, como nas diversas contraposições de Apolônio entre gregos e bárbaros e ele, sendo considerado grego por sua cultura (I, 16; II, 37; III, 23; V, 4, 9; VI, 20; VIII, 10), na apresentação do sátrapa indiano que diz ao rei Vardanes que Apolônio era um homem grego e divino (VA, II, 17), em outros momentos em que ele também é apresentado como grego e sábio (VA, I, 28, 29; III, 28) e em sua valorização entre os indianos por ser um filósofo grego (VA, III). Apolônio valoriza tudo que é grego, mas mais especificamente o que é ático, como o linho que lhe oferece Fraotes (VA, II, 40): O indiano lhe dava ouro, pedras preciosas, vestidos de linho e milhares de coisas do gênero. Apolônio disse que tinha bastante ouro, pois Vardanes havia dado, escondido dele, ao guia, mas que tomaria os vestidos de linho, porque se pareciam com o manto filosófico dos antigos e eram genuinamente áticos. Diante dessas considerações, concordamos com uma observação de Flinterman (1995, p. 94-96 e p. 232), para quem ser grego na tradição de cartas estava ligado a um estilo de vida e a uma ética, enquanto na VA ser grego era ter recebido a paideia das elites e ter, nesse sentido, uma grande familiaridade com a tradição literária grega e com a ideia de pureza linguística.36 Novamente vemos parte da projeção do autor, um renomado sofista grego que recebeu a paideia e a infundiu como modelo de cultura em seu protagonista. A língua de Apolônio é puramente ática, sem sotaque, conforme mostra Filóstrato: “SuaΝlínguaΝeraΝoΝáticoΝeΝissoΝnãoΝseΝalteravaΝdevidoΝaΝumΝsotaqueΝporΝcausaΝdeΝsuaΝregiãoΝdeΝ 36 Como tratamos no Capítulo 1, Filóstrato, no seu Apolônio, demonstra um amplo conhecimento do material literário grego, citando frequentemente trechos de obras, nomes de escritores de diversos gêneros e um amplo conhecimento sobre mitologia, história e religiosidade gregas. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 124 origem”Ν(VA, I, 7). Gleason (2006, p. 244) informa que o ponto chave da educação da elite grega era a eloquência no dialeto arcaizante ático grego. Portanto, o Apolônio de Filóstrato é mostrado como aquele que fala a linguagem ideal para Filóstrato e os sofistas da Segunda Sofística, é a projeção do modelo perfeito do escritor.37 Há ainda duas valorizações de Atenas na VA. A primeira é quando um rei indiano diz nãoΝseΝrelacionarΝbemΝcomΝosΝgregosΝeΝmenosprezaΝosΝatenienses,ΝosΝchamandoΝdeΝ“escravosΝ deΝ Xerxes”Ν (VA, III, 31). Apolônio prontamente se levanta para defender os atenienses e convence o rei do valor dos gregos. Outra passagem em que Atenas é valorizada perante a Grécia está nos elogios de Apolônio à cidade de Gades, chamada de Gadeira, pela cidade educar seus cidadãos ao molde dos atenienses (VA, V, 4). Algo muito interessante pode ser percebido nas passagens acima da VA, Apolônio não é simplesmente grego como mostram as cartas, mas é um grego ático como Filóstrato, mesmo sendo da Capadócia e não de Atenas. Ele recebeu a paideia típica dos aristocratas gregos e, assim como nosso sofista, estudou retórica (VA, I, 7). Apolônio também é comparado pelos partos ao general Temistócles, o ateniense (VA, I, 29). Temistócles manteve amizade com o rei parto Artaxerxes no século V a.C. Aqui Filóstrato faz, como podemos interpretar, uma comparação entre a relação que aquele ateniense teve com o antigo rei parto e a que Apolônio iniciará com o atual rei parto, Vardanes. É interessante notar essa representação de Apolônio como grego, e especialmente como ático, que vai ao encontro da afirmação de Gleason (2006, p. 228) que nos mostra que os gregos rendiam lealdade primeiramente a sua cidade e depois à Grécia como um todo. Por isso também, vemos a projeção de Filóstrato, um ateniense, no protagonista de sua obra. Sobre a lealdade dos intelectuais gregos do Império à sua cidade, Hidalgo de la Vega (2002, p. 83) tambémΝ comentaΝ queΝ “muitasΝ referências literárias e, sobretudo, epigráficas foram conservadas mostrando a importância desse vínculo afetivo e político com a cidade de nascimento. As lápides sepulcrais são um bom exemplo desse profundo sentimento patrióticoέ”Ν τΝ queΝ podemosΝ perceberΝ éΝ que,Ν comoΝ mencionamos,Ν όilóstratoΝ nãoΝ ressaltaΝ aΝ relação de Apolônio com Tiana, mas sim sua característica enquanto ático e suas ligações com Atenas, ressaltando, neste caso, sua própria pátria e não a do biografado. Diferente do Apolônio ático e defensor de Atenas da VA, o Apolônio da tradição epistolar tece duras críticas à cidade, como podemos ler nesta carta: 37 O grego ático era o grego das elites intelectualizadas, baseado no grego da época clássica da pólis de Atenas (séculos V e IV a.C.), almejado pelos intelectuais da Segunda Sofística em oposição ao demótico, falado pelas camadas populares (WHITMARSH, 2001, p. 272). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 125 Para o povo de Sais: Vós sois descendentes dos atenienses, como Platão o disse no Timeu. Eles, porém, baniram da Ática a deusa que compartilham convosco, a que vós chamais Neith e eles Atena, e assim eles já não permanecem gregos, e vou explicar o que queroΝ dizerΝ comΝ “nãoΝ permanecem.”ΝσãoΝháΝanciãoΝsábioΝemΝAtenas,ΝabsolutamenteΝninguémΝtemΝ uma barba espessa, uma vez que ninguém tem barba. O adulador fica ao lado dos portões, o informante em frente dos portões, o cafetão antes das Longas Muralhas, o aproveitador antes de Munychia e do Pireu. A deusa nem sequer mora em Sounio (Carta 70). Ele se apresenta como grego nas cartas, mas nega, desta forma, uma identidade ática: Para os Efésios, no Santuário de Artêmis: Alguém, grego por natureza, veio da Grécia, e não um ateniense ou alguém de Mégara, mas alguém com um nome melhor, planejando residir com a sua deusa. Dai-me um lugar onde eu não precise de purificação, mesmo que eu fique sempre em casa (Carta 66). Na VA (IV, 22), Filóstrato menciona que há uma carta da tradição em que Apolônio comenta que a deusa não está mais em Atenas, mas ameniza a crítica de Apolônio à sua pátria alegando que essa crítica é feita aos combates de gladiadores, ou seja, a um costume da cultura romana e não propriamente ateniense. Além disso, Filóstrato não menciona a dura crítica da carta de que os atenienses não são mais gregos. O Apolônio da VA éΝ bemΝ recebidoΝ emΝ Atenas,Ν ondeΝ “acolhiam-noΝ afetuosamente”Ν (VA, IV, 17). E os mais distintos dos atenienses vão ao seu encontro, junto com gregos de outras cidades, ao descobrirem que ele não havia sido morto após acusações de Domiciano (VA, VIII, 15). Em contraposição dessas informações da VA, o Apolônio das cartas é rejeitado pelos atenienses: Para os éforos e lacedemônios: Muitas vezes vós me convocastes para ajudar a vossa legislação e vossa juventude, enquanto a cidade de Sólon não faz isso. Veneram a Licurgo (Carta 64). Portanto, a característica de Apolônio como um grego ático, para nós, é uma criação de Filóstrato não encontrada nas cartas e mostra claramente uma projeção ateniense do autor e de seus sofistas no protagonista da obra. Além disso, o próprio Filóstrato menciona (VA, VII, 35), como já referimos, uma carta de Apolônio escrita em jônio, considera falsa e rejeitada pelo sofista. Assim, Filóstrato caracteriza seu Apolônio como ático e exclui referências sobre ele que não o relacionem com o grego ático, selecionando, mais uma vez, o que dizer sobre o biografado. Filóstrato também o menciona como adorado em Atenas, diferentemente do que a tradição de cartas mostra. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 126 Além das críticas a Atenas, há uma crítica mais contrastante com a VA nas cartas, que diz respeito aos sofistas e professores de literatura: Para Eufrates: Sinto amizade para com os filósofos, mas para sofistas, professores de literatura ou qualquer outro tipo de pessoa como essas, não sinto amizade agora, nem posso sentir futuramente. Ora, tudo isso não se destina a ti, a menos que sejas uma dessas pessoas, mas basta o seguinte: controlar as tuas emoções, tentar ser um filósofo e não a te ressentires com filósofos reais, uma vez que a velhice e a morte já estão perto de ti (Carta 1). Observamos que, diferentemente do que pode ser lido na carta que acabamos de citar, o Apolônio filostratiano não é contrário aos sofistas, ele é contrário apenas aos exageros retóricos (VA, V, 40). Ele aconselha um jovem a estudar a arte de falar bem, a ter uma boa pronuncia em grego e diz que para isso há uma solução: O remédio não consiste, entretanto, em algo muito especial, pois em todas as cidades há uma classe de homens que ainda não conheces, chamados professores. E lhes dando uma pequena parte de teus bens obterás, com toda a segurança, ganhos maiores, pois te ensinarão a arte forense, uma arte fácil de adquirir. Pois se eu tivesse te conhecido ainda menino, ter-te-ia aconselhado a frequentares as portas de filósofos e sofistas a fim de engrandeceres com sua sabedoria (VA,VI, 36). Em relação à Grécia de maneira mais ampla, há uma defesa da mesma nas cartas endereçadas ao imperador Vespasiano (Cartas 42f, 42g e 42h), cartas estas citadas integralmente na VA. Se essas cartas endereçadas a Vespasiano não foram de fato criadas por Filóstrato e incorporadas mais tarde à tradição como de autoria de Apolônio, então podemos perceber como o biógrafo selecionou o que queria ressaltar sobre a imagem do biografado na tradição já existente sobre ele: a importância da Grécia e de Apolônio como grego perante um imperador romano. No entanto, essas cartas podem ser criações de Filóstrato, o que não nega nossa ideia de que o autor valorize nelas os gregos perante um imperador. Devemos ressaltar que, como tratamos no primeiro capítulo, a Carta 42f, citada integralmente na VA (V, 41), tem um tom muito parecido com a Carta 72, do próprio Filóstrato, o que nos faz refletir mais sobre a possibilidade de essas cartas serem criações filostratianas. Portanto, frente ao imperador romano Filóstrato valoriza a Grécia de maneira geral, enquanto em outras situações, ele situe Apolônio como ático e não como jônio. Igualmente nas cartas, Apolônio menciona sempre gregos em oposição aos “bárbaros”Ν(Carta 8.1, Carta 34 e Carta 67), assim como na VA (I, 16; I, 19; I, 24; II, 5; II, 37; VI, 20; VIII, 7.15; VIII, 10). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 127 O Apolônio que critica práticas gregas de seu tempo aparece na VA (I, 16; IV, 5, 21, 22, 23, 27, 31). Na Carta 32 há uma crítica aos cidadãos de Éfeso, que se preocupam demasiadamente com o embelezamento da cidade. Há ainda uma crítica aos costumes espartanos que está na VA (IV, 27) e na Carta 63. A existência da Carta 63, inclusive, é citada na VA. Também há uma crítica às práticas religiosas atuais da cidade de Atenas (Carta 70) e uma crítica aos jônios por usarem nomes latinos (Carta 71), a qual também aparece na VA (V, 5). No entanto, as referências ao passado grego clássico estão, como já observou Flinterman (1995, p. 100), especialmenteΝpresentesΝnoΝtextoΝdeΝόilóstrato,ΝcomΝoΝqueΝconcordamosμΝ“τsΝ atributos do protagonista da VA têm um considerável peso da bagagem cultural e literária de όilóstrato,ΝcujaΝautoconsciênciaΝgregaΝtemΝimportânciaΝfundamentalέ” Outro aspecto diferente do que nos é apresentado na VA, já observado por Flinterman (1995, p. 72), é a relação de Apolônio com o título de mago – – magos. Apolônio aceita bem o título nas Cartas (Carta 16 e Carta 17), apresentando-seΝ comoΝ umΝ magoΝ ( filósofo pitagóricoΝ(φ φ Νπυ α )e Ν– philosofos pithagorikos). Para Eufrates: Julgas que devem ser chamados de filósofos os que seguem Pitágoras, e da mesma forma, sem dúvida, aqueles que seguem a Orfeu. Mas eu penso que mesmo aqueles que seguem a Zeus devem ser chamados magos, se pretendem ser piedosos e honrados (Carta 16). Para Eufrates: Os persas chamam os homens piedosos de magos, de modo que aquele que adora os deuses ou tem uma natureza divina é um mago. Mas tu não és um mago, e sim um incrédulo (Carta 17). No entanto, embora no início da VA Filóstrato mostre que Apolônio teve relações comΝosΝmagosΝ( – magois) da Babilônia, o biógrafo ressalta o caráter de sabedoria do biografadoΝeΝseuΝestatutoΝenquantoΝhomemΝdivinoΝ( ῖ ἀ Ν– theios aner), negando-lhe o título de mago e também a ligação de filósofos como Empédocles, Pitágoras, Demócrito e Platão com este tipo de arte. A Apolônio, no entanto, ainda que se ocupasse de práticas semelhantes a estas e se aproximasse da sabedoria de maneira mais divina que Pitágoras por sua negação às tiranias, e apesar de ter nascido em tempos nem tão antigos, nem tão recentes, os homens ainda não o conhecem por sua sabedoria, que praticava de maneira filosófica e verdadeira. Mas, ao invés disso, alguns falavam dele por uma coisa, outros por outra, outros ainda por ter relações com os magos da Babilônia, os brâmanes da Índia e os gimnosofistas do Egito, o consideram um mago ou o caluniam como um intruso entre os sábios, por lhe conhecerem mal. Porque Empédocles, o próprio Pitágoras e Demócrito, que conviveram com os magos e disseram muitas verdades sobrenaturais, nunca se sentiram atraídos por esta arte. E CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 128 Platão, que foi ao Egito e que misturou muitas coisas de profetas e sacerdotes deste lugar com suas próprias teorias e que, como um pintor, deu cores ao que já tinha esquematizado, jamais foi tomado por um mago, mesmo quando lhe invejaram mais que nenhum outro por sua sabedoria. Assim, tampouco o feito de ter pressentido e previsto muitas coisas poderia incluir Apolônio neste tipo de sabedoria [...] (VA, I, 2, ). Vemos que o caráter divino de Apolônio aparece nas cartas (Cartas 44.1 e 48.3), mas com certa modéstia por parte de Apolônio em se apresentar assim. Para Hestiaeo, seu irmão: Por que é surpreendente que a maioria da humanidade pensa que estou mais perto de um deus, e alguns pensam que sou um verdadeiro deus e até agora somente minha cidade ancestral falhava em me reconhecer, quando é para ela que eu particularmente tenho esforçado para me distinguir? Não, porque nem a vós, meus irmãos, então eu vejo, é que é claro que eu me tornei superior à maioria das pessoas em princípios e caráter. Caso contrário, como poderíeis me condenar de forma tão severa a ponto de supor que eu precisava lembrar todos os assuntos, sobre os quais nem mesmo o maior tolo poderia suportar sendo instruído? Isto é, sobre a própria cidade e irmãos (Carta 44.1). Para Diotimo: Pessoas boas, no entanto, aceitam a versão verdadeira, tendo uma afinidade com ela, mas as más aceitam o contrário, e podemos rir de seu desprezo, quero dizer de sua inferioridade. Eu deveria mencionar somente isso sobre mim por hora, que os deuses têm muitas vezes falado de mim como um homem divino não apenas aos indivíduos, em particular e em muitas ocasiões, mas publicamente também. Seria uma pena dizer algo mais profundo ou elevado sobre si mesmo. Eu oro por tua boa saúde (Carta 48.3). O caráter divino de Apolônio também aparece na VA, quando Filóstrato ressalta seu biografado com tal característica por ser um sábio superior aos demais, sendo este elemento expresso pelo próprio autor/narrador ou pelas falas de personagens da obra.38 Por conseguinte, parece-me que não devo ver com indiferença a ignorância das pessoas, mas dar uma visão exata desse homem nos momentos nos quais falou ou fez cada coisa e as particularidades de sua sabedoria pelas quais foi considerado sobrenatural e divino (VA, I, 2).39 – Ele é, respondeu, divino Apolônio (VA, I, 21).40 Também escreveu a [referindo-se ao sátrapa indiano] seu rei, para que não fosse inferior a Vardanes a respeito de um homem grego e divino (VA, II, 17). 38 Citamos aqui apenas passagens nas quais Apolônio é mencionado como homem divino, mas há diversas passagens da VA que tais características ficam evidentes. Para saber mais sobre a análise de Apolônio como um homem divino sugerimos a leitura de: KOSKENNIEMI, 1998; CORNELLI, 2001 e HIDALGO DE LA VEGA, 2001a. 39 Narrador. 40 Fala do sátrapa do reino parto. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 129 [...] ainda que seja o mais divino entre os homens (VA, II, 29).41 Além disso, mandarei uma carta a Iarcas, o mais velho dos sábios, para que não acolha Apolônio como a alguém inferior a ele mesmo e a vós, como a filósofos e acompanhantes de um homem divino (VA, II, 41).42 – Eu penso, respondeu, que és o mais sábio e muito mais divino (VA, III, 16).43 [...] e há aqueles que jogaram pedras em cima dele e o injuriaram terrivelmente, a um homem divino e bom (VA, III, 25). – Proponho-te um brinde, rei, por um homem grego, indicando Apolônio, que estava reclinado abaixo dele e denotando com um gesto de sua mão que era nobre e divino (VA, III, 28).44 Que conhecia de antemão essas coisas por impulso divino e que não eram corretos os que consideravam nosso homem um feiticeiro [...] (VA, V, 12). Então dei-me conta pela primeira vez de que era divino e superior à sabedoria comum e corrente [...] (VA, VIII, 13).45 – Ouvi falar de ti, Apolônio, que és sábio em assuntos divinos (VA, VIII, 23).46 Além destas passagens que mencionam o caráter divino de Apolônio, em outras passagens da VA seus poderes enquanto tal são descritos, como quando ele consegue ressuscitar uma jovem (VA, IV, 45), sua capacidade de cura (VA, VI, 43), sua capacidade de livrar Éfeso de uma praga (VA, IV, 10), seu poder de exorcismo (VA, IV, 20), sua capacidade de descobrir um tesouro escondido (VA, VI, 39), quando ele livra sua perna das correntes que o prendiam (VA, VII, 38), desaparece em Roma e aparece em Dicearquia (VA, VII, 41) e tem uma visão do momento exato da morte de Domiciano (VA, VIII, 26). Portanto, o Apolônio das cartas não se incomoda com o título de mago, embora mostre também seu caráter divino. Já o Apolônio de Filóstrato não possui o caráter de mago, numa tentativa de livrá-lo de qualquer confusão que a magia poderia ter neste período por ter 41 Fala de Fraotes, rei indiano. Fala de Fraotes, rei indiano. 43 Fala de Iarcas, sábio indiano. 44 Fala de Iarcas, sábio indiano. 45 Fala de Damis. 46 Fala do governador da Grécia. O texto em grego trata este personagem como governador da Grécia, porém não existia uma Província da Grécia no Império Romano, acreditamos que talvez seja o governador da Província da Acaia. 42 CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 130 certa ambiguidade, ele é um homem muito sábio, cuja sabedoria é tão grande que o eleva ao caráter de divino, que é exaltado em várias passagens.47 Ainda analisando as diferenças entre o Apolônio das cartas e o da biografia, Flinterman (1995, p. 73) observa que não há aprofundamento na relação hostil entre Apolônio e o filósofo estoico Eufrates na VA.48 Mas, embora essa inimizade seja tratada em diversas passagens da biografia (VA, V, 39; VII, 9, 16), Filóstrato não tece nenhum comentário sobre a conspiração dos estoicos para matar Apolônio, mencionada em várias cartas (Cartas 36, 60 e 77). Para nós, essa seleção de informação do escritor, busca não causar nenhum tipo de impressão negativa do leitor em relação ao protagonista, excluindo, assim uma leitura que pudesse denegri-lo perante, especialmente, simpatizantes do estoicismo. Outro ponto de discordância na imagem de Apolônio nas cartas e na VA estaria, conforme já observou Flinterman (1995, p. 96), no fato de o tianeu parar de discursar publicamente em determinado momento de sua vida, conforme as Cartas 10 e 34, o que não acontece na VA. Para Dião de Prusa: Algumas pessoas consideram a razão pela qual eu parei de falar diante de grandes plateias. Bem, eis aqui a resposta para aqueles que se importam de saber uma coisa dessas. Todo argumento é incapaz de ajudar, a menos que seja singular e dirigido a uma única pessoa. Portanto, aqueles que discursam de qualquer outra forma provavelmente o fazem por desejo de fama (Carta 10). Para os sábios no Museu: Visitei Argos, Fócis, Locris, Sícion e Mégara, e embora eu costumasse discursar antigamente, parei de fazer isso lá. Qual é a razão, alguém pode perguntar? Posso dizer a vós e às Musas: Tornei-me um bárbaro, não por longa ausência da Grécia, mas por longa presença na Grécia (Carta 34). De uma forma geral, na sociedade do Principado usava-seΝoΝtermoΝ α α – mageia para definir as práticas religiosas dos persas, que, no entanto, não eram consideradas de maneira negativa. Mas os romanos distinguiam as práticas de cunho mágico, consideradas populares, maléficas e charlatãs, a goetia – α – goeteia – de outra magia incorporada em rituais de deuses da religião oficial romana e parte de estudos filosóficos, a teurgia. De acordo com Joseph Bidez (apud DODDS, 2002, p. 284), a teurgia era um tipo de prática de magia baseada na relação entre espíritos celestes. O objetivo principal da teurgia era, assim, atingir as forças divinas, sendo normalmente oposta a goetia, que invocaria forças maléficas, na crença dos antigos romanos. A teurgia, portanto, era uma assimilação de rituais religiosos e especulações filosóficas com uma base mágica. A fim de atingir o conhecimento, desta maneira, os filósofos teurgos praticavam ritos mágicos. Conforme Jacyntho Lins Brandão (1991, p. 113-114), a magia ligada à filosofia, por um lado, era considerada um conhecimento místico, por outro lado, era uma espécie de conhecimento científico, o que fazia com que fosse aceita por largas faixas das camadas mais eruditas do Império Romano. 48 Conforme Dzielska (1986, p. 45-47), Eufrates foi um filósofo estoico da Síria, provavelmente da cidade de Tiro, contemporâneo de Apolônio. Eufrates era amigo de aristocratas romanos e parece ter sido amigo de Plínio, com quem, talvez, tenha se encontrado na Síria em 81/83. A esposa de Eufrates era filha de Pompeu Juliano, um dos homens mais influentes da Síria em sua época. 47 CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 131 Na VA, Filóstrato nos apresenta o voto de silêncio que Apolônio faz por cinco anos, logo no início de suas viagens (VA, I, 15), mas ele nunca para de discursar em público. Mesmo pouco tempo antes de seu desaparecimento, já no final do último livro da biografia, Apolônio mostra-se em discussões nas cidades gregas: Tendo, durante quarenta dias, mantido discussões em Olímpia e se ocupado em profundidade de muitos temas, disse: – Por várias cidades discursarei diante de vós, gregos, em procissões, em mistérios, em sacrifícios, em libações – pois necessitais de um homem instruído, mas agora é importante que eu vá até Lebadea, pois ainda não vi Trofônio, ainda que tenha visitado seu santuário (VA, VIII, 19). Também é importante analisarmos a obra de Filóstrato em contraste com as cartas da tradição sobre o papel de Apolônio enquanto ordenador de cidades gregas e intermediador de conflitos. Filóstrato escreve que ele mandava cartas consertando aquilo que estava errado (VA, IV, 1) e o demonstra no papel de ordenador de costumes de cidades e de conflitos em diversas situações (VA, I, 15; IV, 4, 8; V, 20, 26; VI, 38, VIII, 7.7). No entanto, apenas nas Cartas 56 e 75 há menções metafóricas de Apolônio sobre conflitos na cidade de Sardes, cidade não mencionada na VA, assim como nessas duas cartas. Nestas, ele comenta, aos próprios habitantes de Sardes, o problema de eles manterem conflitos internos. Também na Carta 77a, que está integralmente na VA, Apolônio dá conselhos aos mercadores de trigo que deixavam a população da cidade de Aspendo passando fome. Portanto, embora as cartas indiquem, de certa forma, esse papel de Apolônio, parece-nos que na VA ele aparece enfatizado. E como bem observou Dzielska (1986, p. 54), na VA Apolônio aparece como sendo convidado pelas cidades para servir como conselheiro de diversos assuntos e, acrescentamos, intermediar conflitos (IV, 6, 33; VIII, 23), tipo de convite que não aparece na tradição epistolar. Outra característica interessante a ser analisada é a maneira como Apolônio se relaciona com o poder romano. Nas cartas, Apolônio aconselha Domiciano a evitar os “bárbaros”,Ν poisΝ paraΝ elesΝ seriaΝ umΝ benefícioΝ receberemΝ oΝ governoΝ dosΝ romanosΝ eΝ nãoΝ oΝ contrário: Para Domiciano: Devei evitar os bárbaros e não governá-los, uma vez que os bárbaros são como eles são, não é certo que eles devam receber um benefício (Carta 21). Um comentário semelhante é feito por Apolônio na VA, aconselhando Domiciano, não em forma de carta, mas defendendo-se perante esse imperador da acusação de praticante de magia: CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 132 Não devemos levar a sério os bárbaros, nem os considerarmos como sensatos por serem nossos maiores inimigos e incapazes de estarem em paz com nossa estirpe (VA, VIII, 7.8). A semelhança de conteúdo da Carta 21 e da passagem supracitada nos leva a duas hipóteses: ou Filóstrato se utilizou de fato dessa carta, escrita antes da VA, e a transcreveu como conselho dado pessoalmente por Apolônio a Domiciano ou essa carta foi escrita posteriormente à VA, aproveitando-se das criações filostratianas sobre Apolônio. Infelizmente, não podemos com certeza optar por uma dessas afirmativas dispondo apenas do material documental que chegou até nossa atualidade. Como na VA (IV, 33; V, 10; VII, 4, 5), Apolônio aconselha administradores romanos e governantes das cidades gregas sobre questões administrativas (Cartas 20, 21, 30, 31, 42a, 42f, 42g, 42h e 54): Para Domiciano: Se tens poder, como de fato tens, talvez devesses também adquirir previsão. Para veres, se tens visão, mas não o poder, precisarias do poder mesmo assim. Para cada um desses sempre precisa do outro, assim como a visão precisa de luz e luz precisa da visão (Carta 20). Para os questores romanos: Estais ocupando o primeiro cargo. Ora, se sabeis como ocupar os cargos, como é que graças a vós as cidades estão em situação pior do que nunca? Mas se não sabeis, deveríeis ter aprendido antes a função para poderdes realizá-la mais tarde (Carta 30). Para os procuradores da Ásia: Por ventura as árvores silvestres estão causando danos por seu crescimento, para cortardes seus galhos e deixardes suas raízes? (Carta 31). Para os éforos: É a marca dos verdadeiros homens não errar, e dos nobres perceberem seus erros (Carta 42a). Para Vespasiano: Apolônio saúda o imperador Vespasiano. Disseram-me que haveis escravizado a Grécia. Julgais que possuis mais do que Xerxes tinha, mas sem perceber que possuis menos que Nero. Nero tinha ambos e recusou. Adeus (Carta 42f). Para o mesmo: Se pensais tão mal dos gregos para torná-los escravos, quando eles são livres, porque precisais de minha presença? Adeus (Carta 42g). Para o mesmo: Nero libertou os gregos no jogo, mas vós os escravizastes seriamente. Adeus (Carta 42h). Apolônio aos procuradores romanos: Alguns de vós fazeis a supervisão dos portos, edifícios, cercas e passarelas, mas as crianças nas cidades, os jovens e as mulheres, não são objeto de qualquer preocupação por parte de vós ou para vossas leis. Seria bom ser governado (Carta 54). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 133 No entanto, podemos perceber que a administração dos romanos aparece de maneira negativa nas cartas, como fica claro nas Cartas 30 e 54. Na VA, Apolônio aparece criticando certos costumes da cultura romana adotados pelos gregos (I, 16; IV, 5; IV, 22), que também estão nas cartas (Cartas 70, 71 e 72), tais costumes seriam o hábito dos banhos, a adoção de nomes latinos e os combates de gladiadores. Mas o poder atribuído ao Império de Roma tem imagem positiva no texto filostratiano, como no trecho em que o autor, ao criticar a tirania de Nero, compara-o a uma fera que habita o coração das cidades, ou seja, Roma é o centro das cidades, é seu coração, sua parte vital (VA, IV, 30). Bowie (1978, p. 1682) acredita que na Carta 14, na qual Apolônio diz nunca ter sido convidado para ir à Itália, ao contrário de seu inimigo Eufrates, ele está criticando o inimigo por servir o poder de Roma. Talvez essa interpretação possa ser feita tendo em vista a negação de Apolônio ao poder dos romanos nas Cartas 30 e 54, supracitadas, no entanto a crítica de Filóstrato ao inimigo Eufrates, de ser a favor dos romanos, não nos parece em consonância nessa epístola. Além disso, todas as cartas da tradição em que Apolônio se relaciona com imperadores romanos estão integralmente na VA (Cartas 42f, 42g, 42h), o que poderia nos levar a supor que essa relação possa ser uma criação filostratiana, já que não encontra correspondente em uma tradição paralela, que chegou até nós, sobre o controverso tianeu. Como todas as cartas para imperadores romanos da tradição estão repetidas na VA, Dzielska (1986, p. 40) sugere que as mesmas podem ter sido inventadas por Filóstrato e terem entrado posteriormente na tradição epistolar em torno de Apolônio. A historiadora acredita também que nosso sofista criou a relação de Apolônio com estes imperadores deliberadamente. Flinterman (1995, p. 236) supõe que é quase certo que, ao tratar sobre o reinado de Nero e a dinastia dos Flávios na VA, Filóstrato usou biografias do período e outros textos históricos, produzindo um resultado respeitável em relação às atividades de Apolônio nestes contextos e devemos duvidar que os contatos entre Apolônio de Tiana e os imperadores já existisse antes da VA, sendo que as cartas que caracterizam essa relação podem ter entrado na tradição por meio do texto filostratiano. Dzielska (1986, p. 42) também duvida das relações, mostradas na VA, entre Apolônio e personagens famosos e conhecidos atualmente, que são os sofistas Escopeliano (I, 23) e Dião de Prusa (V, 31) e os filósofos Demétrio (IV, 5) e Musônio Rufo (IV, 35). Dião e Escopeliano, como observamos, são biografados na VS por Filóstrato (I, 487; I, 514), sendo, portanto, personagens bem conhecidos por nosso sofista e parte de seu próprio meio cultural. Filóstrato menciona que Dião de Prusa se relacionou com Apolônio também na VS (I, 488). A CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 134 única coisa que temos como certa é que Apolônio não aparece nas obras de Dião que chegaram até nós. Também temos certeza, como observa Dzielska, que as cartas de Apolônio para personagens famosos e conhecidos atualmente, ou pelo menos seu conteúdo, estão na VA, o que leva esta estudiosa a refletir sobre a forte possibilidade de o Apolônio histórico não se ter relacionado com nenhuma destas pessoas, sendo tais relações fruto das criações de Filóstrato.49 Já sobre a relação de Apolônio de Tiana e Eufrates, filósofo inimigo de Apolônio que é o principal destinatário de suas cartas (Cartas 1-8.1, 14-18, 50-52, 60, 82 e 94), Bowie (1978, p. 1676-1677) supõe que a mesma possa não ser uma criação de Filóstrato, já aparecendo, provavelmente no texto de Moeragenes sobre Apolônio, que, como já citamos, conforme deduções a partir da maneira como Filóstrato o menciona na VA (I, 3), trazia uma imagem negativa de Apolônio, devendo por isso frisar as rivalidades do tianeu. Dzielska (1986, 44-48) acredita na possibilidade de o Apolônio histórico se ter de fato relacionado com esse personagem e a rivalidade entre ambos ter acontecido pela diferença das correntes filosóficas que eles seguiam. Na busca de interpretações sobre a relação do Apolônio das cartas com o Apolônio filostratiano, sabemos, conforme Momigliano (1986, p. 123), que o uso de cartas em biografias foi comum nas obras do biógrafo e historiador romano Cornélio Nepote (100-25 a.C.), por exemplo. Momigliano conclui que algumas das cartas citadas por Cornélio como de autoria de Cornélia, mãe de Caio Graco, na biografia deste, podem ser invenções deste biógrafo.50 Sabendo que a invenção de cartas era comum em biografias da Antiguidade, podemos supor que algumas cartas que estão na VA foram criadas por Filóstrato e incorporadas posteriormente à tradição de cartas de Apolônio. Dessa forma, Filóstrato também ajudou a criar uma imagem do Apolônio que temos nas cartas e, nesse sentido, comparar tais documentos, não seria um método nem um pouco seguro para se chegar a um Apolônio além da biografia de Filóstrato. Mas, como resolver isso? Como responder sobre as características de Apolônio que temos em comum na biografia e nas cartas diante das necessidades de nossa pesquisa? Sobre os pontos em comum entre o Apolônio das cartas e o da VA, acreditamos que a identificação dessas características podem nos indicar duas hipóteses possíveis. A primeira 49 São as cartas para Escopeliano (Carta 19), Dião de Prusa (Cartas 9 e 10), Musônio Rufo (Cartas 42b-e) e Demétrio (Carta 77e). 50 Cornélio Nepote (ou Cornélio Nepos) viveu de 100 a 25 a.C., aproximadamente, foi um escritor nascido na Gália Insúbria, viveu em Roma e foi amigo de Catulo; entre seus livros se destacam obras biográficas (HARVEY, 1999, p. 140-141). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 135 seria que as cartas sejam realmente fruto de uma tradição posterior à VA, e por isso trazem elementos criados por Filóstrato, já presentes em seu texto. Se esta hipótese pudesse ser demonstrada, resolveríamos nossos problemas, afirmando que Apolônio é mesmo uma criação filostratiana. Porém, não podemos chegar a uma conclusão sobre isso. A segunda hipótese seria que as cartas trazem de fato uma visão de mundo de Apolônio ou que a tradição paralela a Filóstrato, em torno deste personagem, criou sobre ele, visão essa que Filóstrato buscou reproduzir em partes, selecionando o que usaria da tradição e o que descartaria ou mudaria, sendo que talvez alguns elementos da VA foram também incorporados a essa tradição de cartas escritas depois do trabalho de Filóstrato e adicionadas a outras já existentes. Ou seja: a tradição de cartas mostra características de Apolônio além do que está na biografia de Filóstrato, e mostra também criações de Filóstrato sobre Apolônio em cartas criadas pelo biógrafo e aceitas mais tarde pela tradição como de autoria do pitagórico de Tiana. Talvez esta segunda hipótese seja a mais segura, pois de fato existem testemunhos sobre Apolônio além de Filóstrato, e a própria análise das cartas mostra que há certas diferenças entre as duas tradições – como, por exemplo, já vimos na primeira parte deste capítulo que Luciano de Samósata, em textos anteriores a VA, tratou o tianeu como um feiticeiro charlatão, e de modo bem diferente o tratou o texto filostratiano. Diante de mais perguntas do que respostas, no entanto, estamos certos de que, se há informações nas cartas que coincidem com pontos da biografia, por uma tradição paralela e anterior à criação filostratiana, Filóstrato somente reproduziu tais ideias na obra porque concordava com elas. Inclusive, a identificação entre biógrafo e biografado pode ter sido o que levou à escolha deste personagem para a escrita da biografia Vida de Apolônio de Tiana ou a aceitação do pedido de Júlia Domna para escrever sobre o tianeu. Lembremos que as representações da Grécia, do mundo bárbaro, dos romanos e, especialmente, da identidade grega diante do Império Romano, eram a característica essencial dos trabalhos dos escritores da Segunda Sofística. Portanto, nosso biógrafo, que é também o biógrafo dos sofistas, não retrataria um personagem se não compartilhasse com seu posicionamento perante um assunto central em todo o seu corpus. Na busca de mais indícios sobre as projeções de Filóstrato em seu Apolônio, no terceiro capítulo analisaremos Apolônio de Tiana em contraste com os sofistas da VS e também com algumas ideias expressas em obras de intelectuais com tradição como sofistas certamente lidos por Filóstrato por fazerem parte de seu universo cultural e estarem, na maioria, presentes na VS. No entanto, ainda antes disso, cabe fazermos uma discussão sobre CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 136 temáticas tratadas por estudiosos acerca da VA e dos principais pontos apontados para motivações de sua escrita. 2.3 Abordagens historiográficas sobre a Vida de Apolônio de Tiana Como já mostramos ao longo deste capítulo, há diversas discussões sobre a escrita da VA, questionamentos sobre a historicidade de Apolônio, sobre as fontes utilizadas por Filóstrato, sobre a parcialidade do autor na representação do controverso tianeu e até sobre a classificação da obra como romance, biografia, hagiografia, aretologia ou ainda um gênero híbrido. Interessará a nós, neste momento, analisar como alguns autores estudaram as possíveis intenções de Filóstrato desenvolvidas durante a escrita do texto, ou seja, as motivações filostratianas. Neste sentido, perceberemos também como, de certa maneira, estes estudos nos mostram as tendências de interpretações e temas estudados na VA. Cabe ressaltar que, como pudemos constatar, há menos estudos sobre as intenções filostratianas do que em relação aos recursos literários utilizados por Filóstrato, pelo menos no material bibliográfico a que conseguimos ter acesso. De maneira geral, notamos que existem alguns tipos de opiniões e mesmo grupos de autores que defendem ideias sobre as intenções filostratianas na escrita da VA; entre esses autores estão tradutores de suas obras, filólogos, filósofos e historiadores. Um primeiro grupo de estudiosos defende que houve ligações entre a escrita da VA e os interesses político-religiosos dos primeiros imperadores severianos, Septímio e Caracala, e da imperatriz Júlia Domna. Para eles, a obra teria servido como apoio a um programa ideológico, político e religioso que a corte severiana procurou esboçar conscientemente, uma vez que a imperatriz Júlia Domna mostrava interesse pelo neopitagorismo, filosofia ligada à religiosidade e aos cultos mistéricos de que Apolônio é mostrado como seguidor, na VA. Classificamos alguns destes estudiosos como comentaristas, por não desenvolverem um estudo específico sobre a obra, não deixando, porém, de opinar sobre os motivos que levaram Filóstrato a escrever a VA. Como comentaristas estão os tradutores Alberto Bernabé Pajares, no prefácio da edição da VA publicada pela Gredos Editorial (1979), e Jones, no prefácio de uma das edições da Harvard University Press (2005).51 Como comentarista também classificamos a opinião do historiador Michael Grant, em The Severans (1996). A mesma 51 Jones (2005, p. 18) ainda acrescenta que a origem de Júlia Domna, a Síria romana, região onde a influência de Apolônio era forte, fizeram-na interessar-se por esse personagem, assim como se interessaram por ele Caracala e Severo Alexandre. O que teria, conforme Jones, motivado a escrita da obra por Filóstrato a mando da imperatriz. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 137 opinião, mas não em forma de comentário e sim de estudo sistematizado, sobre os motivos que levaram Filóstrato a escrever a obra, estão nos trabalhos de Hidalgo de la Vega, em El intelectual, la realeza y el poder político (1995) e Cornelli, na Tese Sábios, filósofos, profetas ou magos? (2001). No entanto, os autores acima, ao acreditarem que a obra tenha sido escrita no período dos dois primeiros Severos para expressar aspectos do governo desse período, não atentaram para o fato de que a VA pode ter sido escrita, ou pelo menos finalizada e dada a ler, após a morte de Júlia em 217 e o fim do governo de Caracala, já que, como mencionamos neste capítulo, Filóstrato não dedica a obra à imperatriz e a trata com verbos no passado. Sendo assim, como já observou Whitmarsh (2007, p. 35), se a VA foi escrita após o governo de Septímio e Caracala, não haveria razões para a obra ser uma defesa dos ideais desses governos. Nesse sentido, corroborando Whitmarsh, discordamos destes autores sobre a motivação da escrita da VA se tratar da legitimação do governo da dinastia dos Severos. Como já tratamos neste capítulo, não duvidamos da possibilidade de Filóstrato ter sido motivado, inicialmente, a escrever sobre Apolônio por tê-lo conhecido por meio de Júlia Domna. No entanto, pela forte possibilidade de a obra ter sido finalizada e dada a ler após a morte da imperatriz, acreditamos que o produto final que Filóstrato apresenta aos seus leitores não tem relação com a legitimação das práticas político-religiosas severianas. Embora discordemos da proposta dessa proposta sobre a escrita da VA, destacamos as contribuições de Hidalgo de la Vega (1995) em relação a uma importante temática desenvolvida por Filóstrato na obra, a basileia sagrada. Assim, para a pesquisadora, Filóstrato mostra na VA as bases teórico-ideológicas da basileia romana mediante a figura do homem divino, Apolônio, capaz de mediar o poder mundano do imperador com o poder sagrado dos deuses por meio de sua divindade. Conforme esta historiadora: A união mística entre basileu e filósofo é desenvolvida, mas adaptada às pretensões políticas de Septímio Severo, como não poderia ser de outra forma dada a relação de Filóstrato com a corte imperial. Os conselhos de Apolônio expressam o marco de uma prática política concreta (HIDALGO DE LA VEGA, 1995, p. 202). Hidalgo de la Vega volta ao estudo das características dos homens divinos em Hombres divinos: de la dependencia religiosa a la autoridad política (2001a), quando retoma as características de Apolônio enquanto tal. Percebemos que Apolônio é, de fato, descrito como um homem divino e que os fundamentos da realeza sagrada estão presentes na CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 138 biografia. Porém, não acreditamos que Filóstrato tenha colocado estes elementos na obra a fim de legitimar o governo de Septímio Severo, pelas razões que já mencionamos. Também buscando compreender a figura do homem divino, mas em comparação com Jesus Cristo, Cornelli (2001) desenvolve sua Tese de doutorado na Universidade Metodista de São Paulo, dentro de uma linha de pesquisa sobre o Jesus Histórico, a linha Nova Busca do Jesus Histórico. Por estar nessa área de estudos e preocupações, Cornelli nos remete à historicidade de Apolônio e de Jesus Cristo e busca compreender a magia, que talvez seja parte da realidade histórica desses personagens, como eixo fundamental na construção dos homens divinos, aspecto que, no entanto, aparece de maneira incômoda na obra de Filóstrato e nos Evangelhos Sinóticos e por isso é reinterpretado de forma a ser aceito, tanto na obra de Filóstrato em seu Apolônio, como nos Evangelhos Sinóticos ao tratar de Cristo. Portanto, não discordamos de Hidalgo de la Vega e de Cornelli sobre a construção feita por Filóstrato de Apolônio como homem divino e também sobre o papel importante de Apolônio na construção de uma realeza sagrada, proposta por Hidalgo de la Vega e da magia reconfigurada na figura de Apolônio, proposta por Cornelli. Porém, não acreditamos que Filóstrato quisesse com isso legitimar práticas severianas, especialmente no início dessa dinastia, pela temporalidade que conferimos à escrita da obra: o governo de Severo Alexandre. Ainda voltados para os aspectos político-religiosos da VA, um segundo grupo de estudiosos analisa a escrita da obra como uma forma encontrada por Filóstrato para tentar barrar as influências do cristianismo em Roma, criando uma espécie de rival para Jesus Cristo dentro dos princípios da filosofia clássica. Entre estes estudiosos está Boulogne, que em Apollonios de Tyane. Le mythe avorté d’une sagesse totale (1999), também relaciona a obra com as propostas político-religiosas de Júlia Domna, mas afirma haver uma mitificação da figura de Apolônio por Filóstrato com o intuito de barrar a expansão do cristianismo, em efervescência no Império. Para Boulogne (1999, p. 309), Apolônio é uma invenção ideológica, a mando da esposa de Septímio Severo, do poder pagão frente ao poder cristão. Ou seja, esse autor concluiu que o Apolônio de Filóstrato é um arquétipo de todo o saber filosófico do paganismo, um herói comparável a Cristo, a fim de lhe ser superior.52 Boulogne retoma a ideia da construção de Filóstrato de Apolônio enquanto homem divino, comparando-o a Jesus representado no Evangelho de 52 Boulogne (1999, p. 309) afirma que, embora o sistema filosófico mais destacado seja o pitagorismo, os demais tipos de conhecimentos não são excluídos de maneira alguma. O saber dos indianos também aparece em destaque, mas ele não exclui saberes de outras partes do Império Romano e do mundo conhecido, ou seja, Apolônio é mostrado como possuidor de um saber universal. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 139 εateusΝ eΝ concluindoΝ queΝ oΝ όilóstratoΝ deΝ ApolônioΝ éΝ “umaΝ belaΝ invenção da ideologia do poderΝpagãoΝparaΝensaiarΝaΝchegadaΝdoΝcristianismo”Ν(ἐτUδτύσE,Ν1λλλ,ΝpέΝγίλ)έ No entanto, ao analisar a VA como uma forma de barrar o cristianismo e criar um rival para Cristo, a mando da corte de Júlia, Boulogne desconsidera a relação da obra com a paideia, as disposições de Filóstrato e suas próprias intenções políticas na escrita do texto. Whitmarsh, no texto Prose literature and the severan dynasty (2007), e Swain, em Culture and nature in Philostratus (2009), aceitam a ideia de que a escrita da VA foi uma forma de conter a expansão do cristianismo, mas trazem uma novidade em relação à proposta de Boulogne. Para estes autores, Apolônio é também uma afirmação da identidade grega de Filóstrato. Estes autores, porém, não consideram a escrita da obra ligada aos ideais da corte de Júlia Domna. Whitmarsh (2007, p. 31-35) atenta para os elogios e para a universalização da cultura grega presentes na VA e defende que, longe de a obra continuar uma legenda severiana, o Apolônio explorado é tipicamente uma fascinação filostratiana da cultura, etnia, retórica e literatura sofística grega e de sua identidade enquanto grego. Whitmarsh (2007, p. 50) ainda afirma estar certo de que Filóstrato leu os escritores cristãos e que a promoção de Apolônio como homem divino é uma confrontação à literatura cristã emergente. No entanto, ele nos parece contraditório quando afirma que podemos acreditar que os escritores não cristãos do período severiano liam as obras uns dos outros, mas que não podemos ter certeza de que os cristãos eram lidos fora dos seus próprios círculos: Nós podemos falar de um diálogo entre estes vários autores com certeza, a questão permanece aberta. Enquanto nós podemos ter certeza de que Filóstrato conhecia Élio e podemos conjecturar que Élio conhecia Ateneu, há, por outro lado, dúvidas. Seria maravilhoso saber se os críticos cristãos como Clemente ou Hipólito eram lidos fora dos círculos cristãos. Mas não há evidências para isso (WHITMARSH, 2007, p. 50). Portanto, os próprios argumentos de Whitmarsh sobre a motivação de Filóstrato estar ligada ao confronto do cristianismo se contradizem. Swain (2009, p. 37), por sua vez, acredita que a VA foi escrita durante o governo de Severo Alexandre (222-235) e com ela Filóstrato buscou divulgar os interesses religiosos deste imperador e alertá-lo para o perigo do cristianismo que se aproximava da corte romana, já que a mãe de Severo Alexandre, Júlia Mamea, e o próprio imperador podem se ter interessado pelos cristãos segundo documentos da Antiguidade Tardia, a História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia e a História Augusta. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 140 Filóstrato diz aos seus leitores que escreve sobre Apolônio a pedido de Júlia Domna. O trabalho foi concluído algum tempo após seu suicídio em 217, mais provavelmente durante o governo do imperador Severo Alexandre (223-35), filho de sua sobrinha Júlia Mamea. Filóstrato certamente visa, em parte, divulgar os interesses religiosos de Alexandre. Este era um jovem imperador e a influência de sua mãe sobre ele é conhecida. Júlia Mamea teria tornado públicas suas preferências pelo cristianismo. Ela era muito piedosa, segundo Eusébio (História Eclesiástica), que lembra que ela teria convocado para sua escolta militar ninguém menos que Orígines e ouviu dele sobre a fama do Senhor e a excelência de seus ensinamentos. Também muito interessante é o fragmento de uma carta de Júlia ao bispo Hipólito de Roma, explanando sobre o simbolismo do Êxodo. A existência desta carta faria acreditarmos na ideia exposta na História Augusta de que Alexandre teria um altar para Cristo, Abraão, Orfeu e Apolônio em sua capela privada (Vida de Alexandre, 29, 2) [...]. Como um cortesão dos Severos (pelo menos de Júlia Domna), Filóstrato não poderia ter ignorado estes desenvolvimentos. Assim, ele chama Apolônio em sua ajuda (SWAIN, 2009, p. 37). Para Swain, então, a VA, assim como as demais obras de Filóstrato, foram uma defesa do helenismo e nesta obra o helenismo aparece como combatendo o cristianismo. Não discordamos de Whitmarsh e Swain sobre a identidade grega e a defesa da cultura grega estarem presentes na VA e nos demais textos de Filóstrato, mas não pensamos que isto estivesse ligado ao combate ao cristianismo, pois era comum no período e nos escritos dos autores da chamada Segunda Sofística, como nos textos de Plutarco e outros escritores gregos do Principado, por exemplo. Pensamos ainda, que esses autores não atentam para algumas particularidades da temática da obra e de sua produção, que são os contatos político-culturais do Império presentes na VA, a posição de Filóstrato enquanto sofista e a descrição do personagem com características que parecem ser do próprio escritor. Além disso, nenhum deles liga a escrita da VA e o papel de conselheiro e de intermediador no texto, papel este que Filóstrato parece já ter ocupado ou chegado perto de ocupar quando analisamos sua trajetória e suas disposições, como mostramos no Capítulo 1. Além disso, notamos que Whitmarsh e Swain deduzem que a VA foi uma forma de conter o cristianismo com argumentos retirados de fora do seu texto: que Filóstrato tenha lido os textos cristãos e que certos documentos escritos na Antiguidade Tardia demonstram que o cristianismo estava crescendo no período dos Severos, dentro da própria corte. Para nós, como elementos do combate ao crescimento do cristianismo não estão presentes dentro do próprio texto da VA, é muito inseguro fazermos conjecturas sobre essa ideia, já que é o texto, ligado à análise do contexto, que deve responder às nossas hipóteses. Whitmarsh também trata Apolônio sendo descrito como um homem divino, como a tradição em torno de Jesus Cristo. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 141 Mas, para nós, Filóstrato pretende com isso elevar as características de conhecimento de seu protagonista a uma categoria de homem divino, o que obviamente asseguraria um caráter de respeito ao personagem e aos seus atos. Além disso, a categoria de homem divino não é uma novidade do contexto, ela já existia no mundo antigo antes mesmo de o cristianismo emergir (CORNELLI, 2001, p. 31). Por isso, para nós, o homem divino de Filóstrato não tem necessariamente alguma relação com a criação de um rival para Cristo, como deduziu Whitmarsh. Também consideramos que a VA serviu mais tarde, após o período em que viveu Filóstrato, para discussões entre cristãos e não cristãos. Como mostramos neste capítulo, Apolônio é citado pelos cristãos Orígines e Eusébio de Cesareia. Portanto, acreditamos que, enquanto estudiosos, devemos ter cuidado em não cair em anacronismos ao analisar a VA como uma obra escrita dentro da disputa político-religiosa de cristãos versus não cristãos, pois ela pode de fato ter sido usada nas contendas desse caráter do século IV, mas não na época de sua própria escrita. Para nós, os trabalhos que leem a VA dentro de tal disputa estão muito influenciados pelas leituras que foram feitas da VA pelos autores cristãos posteriores a Filóstrato, especialmente pelo material que nos é transmitido por Eusébio de Cesareia (Resposta a Hierocles) sobre a leitura de Hierocles, governador da Bitínia, perseguidor de cristãos ao lado de Dioclesiano no início do século IV, que teria valorizado os atributos miraculosos de Apolônio contra Jesus. Hierocles sim, pelo que nos mostra Eusébio, teria criado em Apolônio um rival para Jesus Cristo. Assim, autores como Whitmarsh (2007) e Swain (2009) projetaram extemporaneamente uma problemática político-religiosa do século IV na época severiana. Vemos, pois, que um primeiro grupo de autores esteve atento na legitimação dos ideais de governo dos primeiros Severos na escrita da obra, sendo que alguns deles se preocuparam com a construção do homem divino nessa legitimação, como Hidalgo de la Vega e Cornelli. Trazendo uma novidade na proposta destes, Boulogne continuou com a ideia da construção do homem divino para servir às ideias de Júlia Domna, mas propondo lê-la como forma de barrar o cristianismo no Império. Estudos mais recentes, como os de Whitmarsh e Swain, dentro das propostas da Nova História Cultural e seus interesses pelo estudo das identidades, lançam este novo elemento, a identidade, na interpretação da escrita da obra, porém continuam se apoiando na ideia de a VA ser uma obra que procurou conter a influência cristã no Império. Igualmente influenciados pelo estudo das identidades, muito em voga nas Ciências Humanas atualmente e, como vimos, já prenunciados por Whitmarsh e Swain, estão duas CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 142 teses de doutorado que, no entanto, não se preocupam com o cristianismo como motivação da escrita da biografia de Apolônio. A primeira Tese é do historiador holandês Flinterman, defendida na University of Nijmegen, Holanda, em 1993, e publicada como livro, intitulado Power, Paideia & Pitagoreanism. Greek identity, conceptions of the relationship between philosophers and monarchs and political ideas in Philostratus’Life of Apollonius (1995). A segunda Tese trata-se do estudo Magic and Religion authority in Philostratus’Life of Apollonius of Tyana, do classicista norte-americano Abraham, defendida em 2009 na University of Pennsylvania, Estados Unidos. O livro de Flinterman (1995) é a obra que analisamos cujo estudo nos parece mais minucioso e detalhado sobre a VA, compartilhando com ideias dos atuais debates sobre datação, estilo, etc., em torno do texto. O objetivo do livro é analisar as atitudes de Apolônio como um filósofo político ativo, resultado das interações associadas com o saber miraculoso, representado pelo pitagorismo, de um lado, e a paideia, a mentalidade cultural do sofista, de outro lado. Para chegar a seus objetivos, Flinterman expõe um interessante estudo sobre o quanto Filóstrato pode ter respeitado a antiga tradição em torno do sábio de Tiana, desenvolvendo um estudo sobre as cartas de Apolônio em comparação à VA. No estudo das cartas, Flinterman observou pontos interessantes entre a VA e a epistolografia, mas deixou de observar outros, que pudemos desenvolver neste capítulo na parte sobre o estudo da tradição epistolar do biografado. Portanto, Flinterman liga diretamente a escrita da obra a aspectos de identificação de seu autor como um grego, elementos estes que, reiteramos nossa opinião, estão de fato presentes na obra. No entanto, ao apontar as razões para a escrita da VA, Flinterman defende que a mesma foi de fato escrita a mando de Júlia Domna, mas por ter sido concluída após a morte da imperatriz, para o autor, Filóstrato se interessa em continuá-la, porque o material era atrativo para a adaptação literária. É comum a referência ao fato de Filóstrato ter começado o trabalho sobre a VA sob as ordens de Júlia Domna e a intenção apologética da visão de Apolônio ser algo corrente em seu círculo. Não há razões de dúvidas das instruções da imperatriz neste trabalho. E veremos que a corte de Júlia era muito variada, incluindo filósofos platônicos e pitagóricos, sendo possível supor que ambos, estes filósofos e a imperatriz, buscavam uma imagem positiva de Apolônio. Entretanto, não estamos convencidos de que a imagem de Apolônio de Filóstrato cumpra com as expectativas em todos esses caminhos. A VA foi completada após a morte de Júlia, sugerindo que o interesse de Filóstrato não é o mesmo da reflexão e devoção da imperatriz e de seu filho por Apolônio. Na visão do autor, desgosto e desprezo por algo que pode se aproximar da goeteia ficam claros, sendo que seu interesse pelo sábio de Tiana pode estar muito mais relacionado com a ideia de que essa CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 143 história oferecia um material atrativo para a adaptação literária. Ao mesmo tempo, podemos refletir sobre o crescente interesse acerca de Apolônio nos círculos educados. A controversa imagem do protagonista faz com que seja impossível que o autor não adote sua visão particular, a natureza do material o forçou reservas, que ele oferece em certos aspectos de respeito à tradição sobre Apolônio (FLINTERMAN, 1995, p. 66). Portanto, embora Flinterman (1995) desenvolva um estudo importante sobre a paideia de Filóstrato e a representação da atuação política de Apolônio, ele não analisa essa atuação ligada às motivações da escrita da VA – com o que não concordamos, já que vemos a atuação política de Apolônio vinculada à paideia de Filóstrato e a VA como uma forma do autor defender papéis político-administrativos para seu grupo, os sofistas, e para si mesmo dentro do Império Romano. Além disso, Flinterman percebe que é difícil mostrar que os episódios da VA sempre refletem as opiniões de Filóstrato, já que o historiador considera grande o respeito do autor pela tradição pré-filostratiana em torno de Apolônio. Para Flinterman (1995, p. 226), diferente da VS, em que os valores e ideias de Filóstrato podem ser encontrados em estado puro, na VA, uma aproximação com Filóstrato só é possível de ser percebida pela análise da autoconsciência da identidade grega. Quando Flinterman analisa Apolônio enquanto conselheiro de monarcas (1995, p. 227), por exemplo, ele não relaciona essa ocupação com uma projeção de Filóstrato para si, embora destaque que o sofista esteve junto à corte imperial e chegou a viajar com esta corte. Para ele, Apolônio como conselheiro apenas mostra, pelos conselhos dados, o que membros das elites esperavam de um imperador romano. Por fim, Flinterman conclui seu livro com uma análise sobre Filóstrato com a qual não podemos concordar: A afirmação de seu próprio papel como veículo da cultura grega, da qual toda a obra de Filóstrato é um eloquente testemunho, está acompanhada por um limitado interesse na política imperial, havendo um campo de visão restrito para olhar os desenvolvimentos sócio-políticos (FLINTERMAN, 1995, p. 240). Como mostramos no primeiro capítulo da Tese, Filóstrato ocupou cargos políticoadministrativos nas cidades gregas, viajou com a corte imperial, mostrou suas disposições para aconselhar a imperatriz em uma de suas cartas e, como veremos no terceiro capítulo ao analisar a VS, mostra seus sofistas em papéis atuantes na política citadina grega e também imperial. Portanto, ele e seus sofistas não são apenas observadores dos desenvolvimentos CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 144 sócio-políticos, são sujeitos atuantes, característica que, para nós, diferente de Flinterman, não deixa de estar presente em Apolônio como parte do que nele projetava o biógrafo. Devemos perceber também que neste livro, Flinterman não se interessa pelas viagens de Apolônio e o papel que os contatos político-culturais possuem na constituição da própria atuação política do biografado, e não se preocupa em analisar a questão político-geográfica na biografia. Flinterman (1995, p. 227) chega a mencionar que Filóstrato estava ciente dos problemas com a defesa das fronteiras em sua época, pois acredita que ele viajou com Caracala e sua corte em uma operação no Reno e no Danúbio, além de mostrar na VA intercâmbios entre povos fora do âmbito das invasões, mas Flinterman deixa de apresentar qualquer ligação desses elementos com o que nos é mostrado na VA. Dessa forma, em que pese o reconhecimento pelo trabalho extenso e minucioso desse historiador holandês, há outros pontos na VA que foram ignorados por ele e merecem nossa atenção. Também preocupado com a questão da identidade grega de Filóstrato como chave de compreensão do texto da VA, mas atento à questão das viagens de Apolônio, especificamente a viagem à Índia, temos a Tese do estadunidense Roshan Abraham (2009). Examinando a passagem do protagonista pela Índia, defende a ideia de que Filóstrato expõe a Índia como uma utopia grega, por ser um local no qual os romanos e seu império não atingiram. O objetivo de Abraham é examinar como Filóstrato mostra a visita de Apolônio à Índia com uma visão grega utópica. Para ele, Filóstrato queria demonstrar que a Índia é mostrada como uma terra de identidade grega, sem os problemas que o Império Romano poderia trazer em sua administração. Apolônio representa, para o autor, a ascensão do homem divino e os contornos de uma identidade grega no Império. O autor ainda conclui que a acusação de Apolônio como praticante de magia mostraria os perigos que essa prática tinha para a política tradicional e para a religiosidade articulada, sendo justamente este poder que dava autoridade a Apolônio. Concordamos com Abraham que a acusação de Apolônio frente ao imperador Domiciano demonstra o perigo que os romanos viam nestas práticas e o poder que homens com esses atributos significavam para a política. No entanto, percebemos em toda a VA o esforço de Filóstrato em defender Apolônio como homem divino, negando sua identificação como um goes (praticante da goetia) e, nesse sentido, atribuindo-lhe autoridade. Por isso, não lemos essa acusação presente na VA como forma de Filóstrato mostrar como Apolônio era considerado um poder contrário à política e às práticas religiosas aceitas. No artigo The geography of culture in Philostratus’ Life of Apollonius of Tyana (2014), Abraham retoma a ideia da Índia, mais especificamente da cidade dos sábios CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 145 brâmanes, Paraca, como local onde havia uma identidade grega idealizada e perfeita, por não ter sido tocada pelo imperialismo romano. Nesse artigo, o historiador complementa sua ideia observando que durante as passagens de Apolônio por cidades gregas ele encontra uma decadência cultural pelas mesmas terem recebido influências da cultura imperialista romana. Há, conforme o autor, um deslocamento da visão etnocêntrica (Roma e Grécia são regiões de costumes corrompidos) para a periferia (Índia não corrompida). Para nós, tanto na Tese de 2009, quanto no artigo de 2014, Abraham deixa de perceber que o Apolônio de Filóstrato não é contra o poder romano, mas, pelo contrário, ele o aceita e apoia, colaborando com administração do Império. Esse problema ocorre, em nossa perspectiva, pela falta da análise de quem é Filóstrato e sobre o de que trata seu corpus, falta, portanto, de uma análise da VA em diálogo com os demais textos do corpus filostratiano e a trajetória do sofista. Pois quando estabelecemos tal diálogo, especialmente com a VS, percebemos claramente que Filóstrato e seus sofistas estavam inseridos nas estruturas político-administrativas do Império, não negando o poder dos romanos e até fazendo parte da afirmação desse poder. Falta de atenção maior comete o autor ao não perceber que Apolônio é um conselheiro imperial na VA, não contra Roma, mas contra imperadores tiranos, como Nero e Domiciano. Diante da observação de que Filóstrato não era contra o Império Romano, contestamos a tese de Abraham e acreditamos que, quando Filóstrato mostra os elementos gregos presentes no Oriente, como na Índia, não é para mostrar essa região como um lugar ideal por não ter sido atingido pelos romanos, mas para afirmar sua própria identidade, mostrando como os elementos da cultura grega eram importantes também fora dos limites do Império Romano, servindo como facilitadores de uma comunicação, da qual alguém como Apolônio, possuidor desses elementos, poderia ser de alguma forma intermediador. Abraham destaca as críticas de Apolônio à cidade de Antioquia como uma crítica aos elementos da cultura romana presentes nesta cidade, como a existência de banhos públicos, e novamente interpreta Apolônio como contrário ao Império Romano. Consequentemente, a Antioquia que Apolônio atinge é uma região fronteiriça, com uma mistura de cultos gregos e bárbaros e uma forte presença romana. Apolônio encontra homens sem seriedade, semibárbaros, incultos (VA,ΝI,Ν1θ)έΝόilóstratoΝusaΝoΝconceitoΝdeΝ“semibárbaros”ΝparaΝsugerirΝ a miscigenação cultural que já ocorreu ali. Enquanto Apolônio encontra cultos gregos e bárbaros, seu interesse particular é nos cultos gregos [...] Apolônio se interessa em restaurar os cultos tradicionais da religiosidade grega e ignora os cultos de Antioquia (ABRAHAM, 2009, p. 48-49). CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 146 Tendo em vista que Filóstrato não era contrário aos romanos, diferentemente de Abraham, lemos sua crítica aos costumes romanos e bárbaros dessa cidade, não como uma crítica ao poder e a administração do Império Romano em si, mas como censura a certos costumes, aproveitando a ocasião para reafirmar a cultura grega como elemento de ordenamento de certas práticas.53 Mas, apesar das críticas acima elencadas, há pontos interessantes na Tese de Abraham, como a análise das cartas de Apolônio com relação à VA, algo que achamos fundamental para qualquer pesquisador que queira compreender o Apolônio filostratiano, trabalho também desenvolvido por Flinterman, que na tese de Abraham (2009) ganha novas observações, embora também deixe de perceber alguns pontos desenvolvidos por nós neste capítulo. De maneira geral, o objetivo de Abraham se perde ao longo da Tese. Nos últimos capítulos não compreendemos mais se o objetivo do autor é tratar da Índia como modelo de utopia grega, do helenismo de Filóstrato defendido na criação de Apolônio ou se é tratar da defesa de Apolônio diante da acusação de magia, tudo isso ficando confuso. Na conclusão não há relação entre esses três temas e nem o objetivo que o autor considera ter no inicio da Tese. Além disso, em nenhum momento o autor se pergunta sobre quem era Filóstrato ou em que momento ele vivia e como isso pode ter influenciado na escrita da VA. O autor simplesmente não se questiona sobre quais eram os interesses de Filóstrato em escrever sua obra, ele chega a citar que Filóstrato pertencia ao círculo de Júlia e escreveu a biografia a seu pedido (ABRAHAM, 2009, p. 10), mas não se insere nos debates tratados sobre as razões da escrita da VA ligadas à corte severiana. Ademais, ao afirmar que Filóstrato escreveu a biografia a mando da imperatriz romana, Abraham se contradiz, pois acredita que Filóstrato era contrário ao poder romano e por isso vê a Índia, região não conquistada pelos romanos, como uma utopia. Se Abraham acredita mesmo que Filóstrato escreveu a VA para a imperatriz romana, deveria perceber que ele não podia se posicionar contrário ao Império Romano na obra. Por fim, cabe-nos notar que os estudiosos que leram a identidade grega de Filóstrato como contrária a uma identidade romana, como Abraham (2009), não perceberam que há confluências culturais entre gregos e romanos e não há um embate identitário entre Filóstrato e os romanos. Portanto, salientamos que a identidade grega de Filóstrato, e mais especificamente sua identidade como culturalmente ateniense, estão presentes na construção de seu Apolônio, 53 Trabalharemos melhor as críticas de Apolônio na VA a costumes da cultura romana no próximo capítulo. CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 147 mas não em embate com uma identidade romana, mas em diálogo com esta e com outras que aparecem na obra e, por isso, deve ser analisada em termos de fronteiras identitárias, proposta que temos nesta Tese. Assim, considerando as análises dos importantes estudiosos citados, porém diferente de suas perspectivas sobre as motivações de Filóstrato na escrita da obra e sobre os temas estudados na VA, propomo-nos a analisar este texto conjuntamente com as demais obras de Filóstrato e outros documentos da época, à luz da paideia do autor e de suas possíveis intenções, verificando as relações entre a obra, a trajetória filostratiana e inserção no contexto, a partir da percepção de que há indícios de uma similaridade entre aspectos da vida de Filóstrato e do Apolônio representado e também de aspectos dos sofistas da VS com Apolônio. Buscamos perceber, portanto, como Filóstrato constrói em Apolônio funções que poderiam ser desempenhadas por ele e por sofistas que possuíam a paideia, como Apolônio e os sofistas da VS, funções como conselheiro imperial, membro da corte, parte dos cortejos imperiais em viagens e também intermediador de conflitos entre as cidades da parte oriental, assim como defensor dos direitos destas cidades perante os imperadores de Roma. Não estamos negando a construção de Apolônio como homem divino, como mostram os estudos de Hidalgo de la Vega (1995, 2001a) e Cornelli (2001), por exemplo, mas buscamos analisar outros aspectos da representação do sábio pitagórico filostratiano. Também diferentemente do que fizeram os estudiosos até o presente momento, procuraremos nos próximos capítulos da Tese relacionar as viagens de Apolônio e a construção dos seus contatos político-culturais com povos e culturas por onde passou dentro da dinâmica de criação de funções que poderiam ser exercidas por alguém que possuísse a paideia grega no Império Romano e como nessas descrições Filóstrato nos mostra qual é o Império Romano idealizado por ele, no qual a cultura grega tem um papel fundamental, não em termos de oposição à estrutura político-administrativa romana, mas como elemento de integração e ordem. Portanto, diferente dos estudos que foram apresentados, pretendemos perceber a escrita da VA dentro da ótica da integração do Império Romano, porém na visão específica de seu autor, um sofista grego. Analisar a questão da apresentação de espaços geográficos e contatos político-culturais na VA, o que nos parece inédito até o presente momento em relação aos estudos a que conseguimos ter acesso, é algo que nos parece importante, uma vez que, para nós, houve um interesse especial do autor em escrever a VA, pois, como ele mesmo nos mostra na passagem a seguir, ele se interessou muito nas viagens de Apolônio por seus contatos com povos, destacando a relação destes com o Império Romano: CAPÍTULO 2 EM TORNO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA | 148 Pois bem, com precisão, e por eu não ter omitido nada do que está escrito por Damis, queria me referir também ao que constituiu o objeto de seu interesse enquanto viajava por entre bárbaros. Mas há, em minha narração, coisas mais importantes e mais dignas de admiração. No entanto, não deixarei de mencionar estas duas em absoluto: o valor que Apolônio deu ao atravessar povos bárbaros e alucinados, que ainda não estavam submetidos aos romanos [...] (VA, I, 20). Para nós, dessa forma, muitos incidentes da VA, mesmo alguns que passam despercebidos em uma primeira leitura, estão enraizados na história do Império Romano, especialmente de sua parte oriental, e na administração que Filóstrato visava para a mesma. Assim, os sofistas possuem um papel importante que, certamente, Filóstrato não deixou de ressaltar na construção de Apolônio, assim como na VS, o que trataremos no capítulo a seguir. CAPÍTULO 3 CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO 3.1 A Segunda Sofística de Filóstrato: identidade grega e Império Romano A s informações que iremos apresentar neste subcapítulo se referem à percepção e à classificação dos sofistas e da Sofística, mais especificamente da chamada Segunda Sofística, segundo Filóstrato. Ao ter a Segunda Sofística como objeto de estudo, inevitavelmente o pesquisador deve mencionar Filóstrato, uma vez que sua coleção de biografias de sofistas é o documento mais antigo, que chegou até nós, no qual o termo Segunda Sofística (Δ υ αΝ φ – Deutera sophistike) aparece pela primeira vez (ANDERSON, 1993, p. 13; TRAPP, 2004, p. 113; ABRAHAM, 2014, p. 478), como podemos ler nestas passagens: A que lhe sucedeu, que não deve ser chamada de nova, pois é antiga, mas sim de Segunda Sofística, expunha discursos nos quais o orador personificava os tipos do pobre, do rico e do tirano, e questões em que encarnava personagens concretos, para os quais a história é guia adequada (VS, I, 481). A respeito de Esquines, filho de Atrometo, que afirmamos ser o iniciador da Segunda Sofística, há que lembrarmos o que segue (VS, I, 507). Diante dessa denominação usada por Filóstrato, quase todo estudo moderno a respeito da temática, pelo menos aqueles a que tivemos acesso, faz alguma menção ao nosso autor como criador dessa expressão. Nas próximas páginas iremos nos centrar na análise documental das representações de Filóstrato sobre a Sofística, o que delimita nossos estudos. Como mostrado por Anderson (1989, p. 81), a Sofística de Filóstrato pode trair o que realmente foi a Sofística, seu retrato dos sofistas pode ser mais traiçoeiro do que o foi o de Apolônio, justamente por dar a impressão de ser mais confiável. Embora discordemos de Anderson (1989) em relação a uma “traição”Ν filostratianaΝ naΝ suaΝ imagemΝ daΝ SegundaΝ SofísticaΝ – já que não consideramos representações como meras abstrações, mas como o real na ótica do autor – concordamos com a ideia central de Anderson, ou seja, a de que a Sofística apresentada na VS é uma construção de Filóstrato e o pesquisador deve estar atento a isso. Dessa forma, buscaremos pela Sofística de Filóstrato dentro da problemática que a envolve, como uma representação do real por um autor específico. Sendo assim, consideramos a VS como um relato sobre sofistas, escolhidos CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 151 deliberadamente por Filóstrato, e uma afirmação das atividades em que esses profissionais estavam envolvidos, fruto das vontades do biógrafo. Percebemos que pesquisadores contemporâneos usam o conceito de Segunda Sofística em suas análises sobre outros sofistas, encaixando seus autores dentro da Segunda Sofística, sem discutir que esta designação aparece pela primeira vez na VS e, possivelmente, sendo cunhado por Filóstrato de maneira intencional. Tais pesquisadores mencionam Filóstrato e o aparecimento da expressão, porém não discutem se podem ou não usá-la para classificar o autor por eles estudado, já que quando Filóstrato a definiu para ordenar e classificar seus biografados teve intenções próprias de sua posição e contexto, querendo, dessa maneira, dar nome àquilo que afirmava. Embora não seja nosso propósito principal, ao analisar os sofistas de Filóstrato, acreditamos que podemos contribuir para que pesquisadores que estudam outros sofistas possam se posicionar melhor sobre as possibilidades ou não de usar a designação filostratiana para incluir seus autores como participantes da Segunda Sofística. Cumpre destacar que não compreendemos a Segunda Sofística propriamente como um movimento literário e político consciente e estruturado, como pode transparecer de uma leitura acrítica da VS. Para nós, interpretar a Segunda Sofística como movimento só é possível a partir de uma leitura sem investigação em torno de Filóstrato. Ao fazer uma leitura crítica da VS, percebemos que seu autor teve o intuito, consciente ou não, de estruturar um movimento em torno dos sofistas e da sua cultura no Império Romano. Assim, analisaremos este intuito filostratiano como estratégia de afirmação e de criação de uma identificação dos sofistas perante o poder e a política administrativa do Império Romano. Alguns autores, como Bowersock (1969), Bowie (1970), Swain (2003) e WallaceHadrill (2008), consideram a Segunda Sofística como movimento. No entanto, Silva (2007) conclui que a Segunda Sofística foi um exagero historiográfico e literário, considerando-a como um fenômeno identitário, mas também se utilizando da expressão movimento (SILVA, M. A., 2007, p. 02). Já Whitmarsh (2001), por sua vez, se propõe a não tratá-la como um movimento, mas como um fenômeno identitário de escritores em torno da cultura grega no Império Romano. Ou seja, para o pesquisador, a Segunda Sofística foi uma prática retórica destes autores. Bárbara Borg (2004, p. 02) indica que, nos últimos anos, os estudos sobre os sofistas no Império Romano têm observado que a Segunda Sofística não envolveu um movimento literário propriamente, mas um sistema de valores, um modo de pensar e a afirmação de uma identidade grega, que poderiam ser expressos de variadas formas conforme os diferentes sofistas. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 152 Portanto, como podemos notar, mesmo com muitas pesquisas já publicadas, tratar da Segunda Sofística continua sendo algo problemático e que divide as opiniões dos pesquisadores. Percebemos a existência da Segunda Sofística, mas corroboramos a concepção expressa acima por Whitmarsh (2001) e Borg (2004), de que ela não foi um movimento, mas uma afirmação identitária em torno da cultura grega. Notamos que o grupo de autores que concorda com essa ideia, em geral analisa as motivações desses intelectuais em afirmar esta cultura grega contextualizando-os em face do Império Romano. É dessa forma que nos propomos ler a obra de Filóstrato, percebendo o diálogo estabelecido por ele entre a afirmação da cultura grega e os papéis dos sofistas com a dinâmica imperial em que viviam, de acordo com especificidades de seu habitus. Porém, não pretendemos tratar de todo amplo espectro de problemas que abarca os estudos sobre a Segunda Sofística além de Filóstrato, envolvendo seus variados aspectos, demarcações temporais e espaciais, situação histórica, utilizações no contexto do Império Romano, disputa entre áreas para seu estudo, etc.. O que objetivamos apresentar aqui é o que Filóstrato entendeu como Segunda Sofística, as características identitárias desses intelectuais em sua representação e suas atribuições, sempre na ótica do nosso sofista. Não é a Sofística em si que nos interessa, mas a Sofística enquanto vista e considerada por Filóstrato, pois é nesse ambiente e nesse tipo de intelectual que acreditamos espelhar nosso autor ao escrever sobre Apolônio de Tiana.1 Iniciemos tratando do próprio termo sofista ( φ Ν– sophistes). De acordo com George Briscoe Kerferd (2003, p. 4η),Ν “oΝ nomeΝ sofistaΝ estáΝ claramenteΝ relacionadoΝ comΝ asΝ palavrasΝ gregasΝ φ – sophos eΝ φ α – sophia,Ν comumenteΝ traduzidasΝ porΝ ‘sábio’Ν eΝ ‘sabedoria’έ”ΝτΝtítuloΝdeΝsofista,ΝatribuídoΝaΝόilóstratoΝpelaΝdocumentaçãoΝantiga,ΝcomoΝvimos no que diz respeito à epigrafia, identificava o mestre da eloquência, aquele que se ocupava dos níveis superiores da paideia. Em Filóstrato, os sofistas são oradores virtuosos com grande reputação pública. Anderson (1993, p. 16) observa que para Filóstrato ser sofista significava realizar uma grande gama de atividades, como ser um performático orador e ensinar discípulos. Acrescentamos, como veremos no próximo subcapítulo, que além da característica central de ser aquele que realiza discursos públicos em diversas situações e ensina retórica, os sofistas de Filóstrato estavam envolvidos em uma série de atividades político-administrativas, tanto em nível de suas cidades, como em nível Imperial. O sofista como notável declamador e mestre de retórica, entre outras passagens, pode ser visto nestes trechos da VS: Em vista disso, é visando analisar Apolônio de Tiana como projeção de Filóstrato e dos sofistas na VA – nossa hipótese central de pesquisa – que faremos neste capítulo o exame documental da VS. 1 CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 153 A mim me parece que Esquines improvisou mais que todos, como embaixador e nos relatórios após seus esforços, como advogado e como orador público, e que somente deixou seus discursos escritos para não ficar abaixo das peças de Demóstenes [...] (VS, I, 482). Não é surpreendente que, quando Escopeliano exercia seu magistério em Esmirna, atraía para ela jovens lídios, carios, meônios, eólios e os gregos de Mísia e da Frígia, pois Esmirna se aproximava de todos os povos por estar perfeitamente dotada de vias de acesso por terra e mar. Mas vinham também capadócios e sírios, até egípcios e fenícios, os mais distintos dos aqueus e toda a juventude de Atenas (VS, I, 518). Mas Swain (1991, p. 159) informa que inscrições epigráficas mostram que nem todos os sofistas eram homens tão notáveis como Filóstrato apresenta, o que, para nós, já demonstra como a VS é uma obra de autoelevação da categoria de sofista em relação à vida pública, indicativa de uma preocupação que parece ter rodeado nosso autor também na VA. Alguns sofistas, como o próprio Filóstrato, escreveram em variados gêneros literários e discursaram sobre temas diversos: poesia, história, oratória, além do interesse de Filóstrato sobre o gênero epistolar, que mostramos no primeiro capítulo. Hípias de Élide se interessou por temas como geometria, astronomia, música, ritmo, pintura e escultura (VS, I, 495). Varo improvisava sobre doutrinas filosóficas (VS, II, 596). Ptolomeu desenvolveu seus discursos com temas tirados da história ática (VS, II, 595). Antípatro escreveu uma história das façanhas do imperador Septímio Severo (VS, II, 605) e Eliano adquiriu fama escrevendo histórias (VS, II, 624). A denominada Segunda Sofística é o centro da atenção de Filóstrato na VS, mas, para apresentá-la, o biógrafo expõe um quadro geral da Antiga Sofística, na época da Grécia Clássica. Filóstrato começa pelos intelectuais que iniciaram a arte da eloquência, o que caracteriza fundamentalmente um sofista filostratiano (VS, I, 484). A arte de discursar em público, como todas as implicações que essa habilidade poderia trazer ao sofista, teria iniciado na Grécia por volta dos séculos V e IV a.C., com Górgias e Protágoras, e desenvolveu-se intensamente no período imperial dos Antoninos até os dias em que Filóstrato vivia. São apresentados sofistas contemporâneos ao biógrafo na VS, ainda vivos na época de escrita das biografias. A Segunda Sofística na VS inicia com Esquines (VS, I, 507), sofista do período de conquistas de Filipe da Macedônia na Grécia. Filóstrato estabelece, pois, uma diferença de nomenclatura entre a sofística praticada na Hélade Clássica CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 154 das póleis – a Antiga Sofística – e a sofística praticada sob o Império Macedônico e depois sob o Império Romano – a Segunda Sofística.2 AndersonΝ (1λκθ,Ν pέΝ 1κ)Ν reconheceΝ quãoΝ questionávelΝ éΝ oΝ usoΝ doΝ termoΝ “SegundaΝ Sofística”,Νpois,Ν paraΝ esteΝpesquisador,Ν “nãoΝhouveΝumaΝrupturaΝrealΝ naΝ históriaΝdaΝSofísticaΝ comoΝumΝtodoέ”ΝParaΝnós,Νόilóstrato denomina a Sofística do Império Romano como Segunda intencionalmente, a fim de ligá-la à antiga sofística dos tempos da pólis grega. Ao mesmo tempo, o autor não a denomina como nova, pois já é, em seus dias, antiga (VS, I, 481). Interpretamos essa informação como um claro intuito filostratiano em identificar seus sofistas com a Grécia Clássica, mas, por meio dela, ele deixa, para nós, entrever sua visão das diferenças entre a Sofística dos tempos clássicos e a Sofística sob o Império Romano. Compreendemos tal diferenciação como a percepção de Filóstrato sobre a diversidade cultural decorrente das transformações na cultura grega clássica nos períodos do Império Helenístico e, contemporaneamente, do Império Romano. Sua busca em ligar seus sofistas e a Sofística de sua época ao passado clássico grego parece intencional e adaptada ao momento plural e hibridizado culturalmente que vivia.3 Segundo Silva (2007, p. 40), a Segunda Sofistica foi o nome atribuído a um “despontarΝ daΝ tradiçãoΝ literáriaΝ grega”,Ν comΝ oΝ aparecimento de muitos escritores e declamadores de diversas sociedades que se viam como herdeiros dos gregos. No entanto, Silva (2007) afirma a existência da identidade grega do escritor Plutarco, não o situando integrado ao Império Romano e não distinguindo, de maneira geral, que Plutarco vivia em um momento totalmente diferente do período clássico das póleis. Classificamos Filóstrato como grego, mas percebemos que ele mesmo assinalava a diversidade cultural de sua época e a cultura grega integrada ao Império Romano, além da existência de elementos compartilhados entre os grupos greco-romanos das elites. Dessa maneira, chamaremos Filóstrato de grego por ser assim que ele próprio o faz, mas ressaltamos e temos claro que ele usa essa identificação 2 Há uma lacuna no texto entre o último sofista biografado do século IV a.C., Esquines, e o primeiro sofista da era imperial romana mencionado, Nicetes de Esmirna. Portanto, o período helenístico é ignorado. Swain (1991, p. 151) percebe esta lacuna e a classifica como uma forma de Filóstrato ligar o estilo literário de Nicetes, e dos demais sofistas da era imperial romana biografados, diretamente com a forma de fazer declamações ficcionais iniciada por Esquines. Desta maneira, teria sido uma forma de Filóstrato ligar os sofistas da Segunda Sofística diretamente ao passado clássico das póleis – com o que concordamos. 3 Não estamos afirmando com isso que a cultura grega da época clássica fosse “pura”, porque não analisamos nenhum sistema cultural desta maneira. No entanto, vemos na análise das definições filostratianas de Antiga e da Segunda Sofística que a cultura grega de sua época é percebida como diferente da cultura grega clássica por não ter recebido as influências do Império Macedônico, primeiramente, e depois do Império Romano, e as transformações culturais decorrentes do processo de integração entre diferentes culturas que estruturas imperiais possibilitam. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 155 em todo o seu corpus como estratégia de integração e obtenção de status para si e para o grupo a que pertencia, o dos sofistas. De fato, na VS a cultura grega e, essencialmente, a língua grega, a arte de escrever e falar em grego são elementos fundamentais de identificação entre estes homens que, no entanto, descendem, em grande maioria, mas não apenas, das regiões do Oriente do Império Romano com forte presença de elementos da cultura helênica hibridizada e de culturas locais. Na VS temos sofistas de Atenas, Náucratis, Esmirna, Éfeso, Bizâncio, Prusa, Mileto, Síria, Tarso, Cilícia, Pérgamo, Tessália, Lícia, Nicomédia, Arábia, Ravena, Roma, Gália, Síria, entre outras cidades e regiões do Império. Portanto, estes homens tinham várias identidades em si, embora Filóstrato frise a cultura grega para afirmação da mesma. Filóstrato nos dá como exemplo Ptolomeu de Náucratis (Egito), que extraía seus temas da história ática, recordando com frequência temas do passado grego (VS, II, 595). Favorino, nascido na Gália, também é um exemplo de escritor não grego de nascimento, mas que, segundo Filóstrato, conduzia sua vida como um grego (VS, I, 489). Iseo era um sofista sírio, que, no entanto, citava Homero e discursava sobre a antiga pólis de Esparta (VS, I, 513514). Eliano mesmo sendo romano de nascimento e não tendo o grego como língua natural, é admirado por Filóstrato por se expressar em puro ático como os atenienses do interior. Portanto, Eliano é admirado por ter adquirido um bom vocabulário grego (VS, II, 624). Para nós, tais exemplos mostram que Filóstrato entendia o Império Romano como diversificado, mas, tendo a cultura grega como elemento integrador, especialmente nas partes orientais desse Império, e que por isso mesmo deveria ser valorizada. Assim, ele afirma sua posição, e de seus sofistas, como intelectual que possuía a paideia e era continuador do passado clássico glorioso das póleis, tão citado pelos intelectuais da Segunda Sofística. A Segunda Sofística, para Filóstrato, tem raízes na cultura grega e abarca intelectuais de outras partes do Império Romano, como um fenômeno de identificação, mas uma identificação marcada por fronteiras. Não é um fenômeno étnico propriamente, sendo que uma das principais características destes intelectuais era, para Filóstrato, uma consciência de serem gregos por terem recebido a paideia. Percebendo estas fronteiras, embora sem mencionar este conceito, Bowersock (1969, p. 17) analisa a Segunda Sofistica como um fenômeno ecumênico ( ἰ υ – oikoumene), de integração entre gregos e romanos, voltados para o desenvolvimento escrito ou falado de temáticas da história clássica grega e do período da República Romana, especialmente sobre o tempo das Guerras Púnicas. Também CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 156 percebemos as intenções da Sofística de Filóstrato dentro da proposta de ecumenismo.4 Para nós, a sofística de Filóstrato busca um elemento em comum, a cultura grega, para todo o Império Romano, e especialmente para suas partes orientais, o que pode ser percebido nas várias origens dos intelectuais por ele biografados, mencionadas acima. Uma passagem interessante da VS mostra um sofista não nascido nas regiões gregas, Heliodoro, o árabe, que demonstra seus conhecimentos sobre a cultura grega diante do imperador Caracala (que pertencia, como sabemos, à dinastia africano-síria dos Severos), a pedido do soberano. Esta passagem é, conforme Millar (1969, p. 13), uma das mais significativas para compreendermos o caráter da cultura grega no momento, pois tanto o imperador em questão, como o sofista não eram de origem propriamente grega. Quando o árabe percebeu que, por intercessões da divindade estava em uma situação propícia, tirou proveito do entusiasmo do imperador, da mesma forma como os marinheiros alçam as velas quando o vento é favorável, e disse: – Senhor, concedei-me uma ocasião para a declamação. E o imperador lhe disse: – Eu te ouvirei, fala sobre isto: Demóstenes, depois de fracassar ante Filipe, defende-se da acusação de covardia (VS, II, 626). Ademais, como lemos em toda a VA, a cultura grega se estende para povos de fora da administração romana, como partos, indianos e etíopes, sendo, para Filóstrato, um elemento essencial nos processos de comunicação, internos e externos, do Império. Além do caráter ecumênico da sofística filostratiana, há outras características importantes nas relações desses intelectuais com o poder do Império Romano. Alguns estudiosos merecem destaque por seus importantes trabalhos acerca da Segunda Sofística e no contexto do Império Romano, havendo divergências de posições sobre o tema. De maneira geral, observamos que alguns estudos tenderam a ler a valorização da cultura grega nas obras destes sofistas da época imperial como um escapismo em relação aos valores imperiais e à cultura romana. No entanto, de maneira distinta, outro tipo de análise dos estudiosos tende a rever a ideia de escapismo, pensando a valorização da cultura grega como estratégia política por parte desses intelectuais. Portanto, a expressão exagerada da cultura grega nas obras dos sofistas recebeu diversas análises, que podemos classificar, grosso modo, em dois tipos de visões opostas: de 4 A ideia de ecumenismo nos discursos dos sofistas foi bem estudada por Hidalgo de la Vega (2005, 2008), embora em uma concepção um pouco diferente do que foi esse ecumenismo. Para a qual, o ecumenismo seria uma espécie de projeto de construção política, cultural e territorial de dominação do Império Romano sobre todo o mundo conhecido na época (a oikoumene), presente nos discursos desses intelectuais. Nessa proposta, o poder romano é visto nos textos dos sofistas como presente em toda oikoumene. O que também nos parece correto em relação à visão filostratiana (VA, VII, 3; VIII, 6, 13). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 157 negação à política imperial e aos valores romanos à integração ao Império Romano. É interessante observarmos que não há, em termos temporais, uma mudança na tendência em ler a valorização da cultura grega por esses intelectuais. Não há, em um momento, um grupo que analisa tal valorização como contrária a Roma, mudando, com o passar do tempo, para uma nova visão dos estudos que percebem essa exaltação como integração ao Império. De maneira geral, ao mesmo tempo em que encontramos intelectuais com uma opinião, encontramos outros com visão oposta. Desde o trabalho clássico de Bowersock sobre a Segunda Sofística, Greek Sophists in the Roman Empire (1969), os estudos têm-se confrontado neste sentido. Com algumas variações na maneira de interpretar a relação identidade grega/passado grego e Império Romano, podemos perceber que entre o primeiro grupo de estudiosos, preocupadosΝ emΝ refletirΝ sobreΝ aΝ buscaΝ doΝ passadoΝ “clássico”Ν comoΝ nãoΝ negaçãoΝ aoΝ ImpérioΝ Romano, estão as pesquisas de Bowersock (1969), Gascó (1990), Whitmarsh (2001), Hidalgo de la Vega (2001b, 2002, 2006), Jones (2004a), Urías Martínez (2006) e, no Brasil, Guarinello (2009). Já no segundo grupo de estudiosos, que, de maneira geral, analisam a cultura grega valorizada devido ao presente negativo dos gregos em relação ao Império Romano, destacamos, iniciando os debates, o texto de Bowie, Greeks and the past in the Second Sophistic (1981),5 uma resposta à proposta de Bowersock (1969) e, seguindo esta tendência no Brasil, Silva (2007). Bowie desenvolverá a mesma ideia em outros trabalhos, como no artigo The Importance of Sophists (1982). Há ainda autores que ficam em posição intermediária entre estes grupos, como Veyne (1999, 2009), que em seus trabalhos analisa os escritores gregos como antirromanos, ou em um caminho intermediário. Mas Veyne analisa também a helenização como forma de fusão de culturas, criando a civilização greco-romana. Já Woolf (1994) acredita que o uso do passado era um recurso dos gregos para jogar com suas posições e favores no mundo de Roma e revelava-se como fonte de inquietação, promovendo um descontentamento com a ordem presente das coisas. No entanto, Woolf percebe tais defensores do passado grego como integrados ao Império. E temos também a perspectiva de Anderson (1993), como veremos, que analisa estes intelectuais, e suas complexas atitudes, integrados ao Império, mas nostálgicos do seu passado glorioso. Isso não quer dizer, portanto, que para Veyne (1999, 2009), Woolf (1994) e Anderson (1993) os intelectuais gregos não estavam integrados às estruturas do Império Romano, mas esses estudiosos, possivelmente seguindo o texto clássico 5 A obra de Bowie tem sua primeira edição em 1970. No estamos, utilizando a seguinte versão do texto de Bowie: BOWIE, E. L. Los griegos y su pasado en la Segunda Sofística. In: FINLEY, M. I. (ed.). Estudios sobre Historia Antigua. Madrid: Akal, 1981, p. 185-230. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 158 de Bowie (1981), analisam o uso do passado grego pelos sofistas, de certa maneira, como um sinal de descontentamento em relação ao poder dos romanos. Além dos trabalhos citados, não podemos deixar de mencionar as propostas de Swain (2003) e Whitmarsh (2001). Embora chegando a conclusões diferentes, ambos interpretam a afirmação da cultura grega nos escritores do Principado como forma de conservar um status do passado no presente, conforme Swain (2003), e como negociação da relação com o passado em meio à competição por status pela aristocracia do Império, nas palavras de Whitmarsh (2001). Embora concordemos com a ideia de uma negociação de posições e status e com a afirmação do passado grego por Filóstrato, devemos ressaltar que os dois pesquisadores entendem os escritores gregos como marcando um espaço literário que os diferencia dos romanos – com o que, como trataremos mais adiante, não concordamos porque não nos parece que houvesse, entre o que é ser grego e o que é ser romano no Principado, uma separação rígida. Apresentaremos a seguir um pouco desse debate. Começaremos com Bowersock (1969), que enfatiza em sua obra a importância política dos sofistas gregos. Para ele, estes intelectuais da Segunda Sofística compartilhavam ideais políticos imperiais. Bowersock (1969, p. 01) acredita que as obras deles não devem ser lidas apenas como literárias. Embora sejam peças de literatura, seus textos devem ser compreendidos no contexto das relações de seus autores com a política, porque eles procuravam determinar o destino do Império Romano e nunca antes gozaram de tanto prestígio público como no contexto do século II d.C. Bowersock (1969, p. 15) também afirma que: Esses homens não se esqueciam de suas tradições e, quando se tornavam parte integrante do mundo romano, não rejeitavam seu legado. Pelo contrário, a preocupação com seus antecessores e passado se transformava mais enfaticamente. Isto aparece em seus ensinamentos e discursos, mas não porque os sofistas eram nostálgicos ou porque afirmavam sua grandeza contra os romanos. Eles nasceram sem rancor ao Império Romano; não faziam objeção à palavra ῥω αῖ , um termo coletivo e não prejudicial. Mas, de fato, havia certo nacionalismo em outros. O imperador Adriano era filohelênico. Marco Aurélio escreveu suas Meditações em grego e como um grego. Era possível haver um orgulho grego de ser romano, sem perda e negação de sua tradição cultural. Para Bowersock (1969), ainda, os sofistas eram membros da elite detentora de poder, ideia corroborada por Anderson (1993) que, no entanto, considera a Segunda Sofística como umΝ “RenascimentoΝ ύrego”,Ν quandoΝ oΝ helenismo,Ν ligadoΝ aΝ umaΝ nostalgiaΝ doΝ passado,Ν tomaΝ sinais visíveis. Anderson (1993, p. 101) acredita que: CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 159 [...] a visão de passado disponível para eles era complexa e idiossincrática, e nós devemos olhar cuidadosamente para as diferentes formas com que eles eram capazes de ver isso e usar disso. É comum aceitar que, no início do Império, o mundo grego voltava-se com nostalgia para seu passado e que isso constituía uma reação à impotência política do presente. Aspectos desta imagem eram suficientemente autênticos e um diagnóstico geral é, em parte, verdadeiro. Não estamos de acordo com a tese de Anderson (1993) de que a Segunda Sofística foiΝ umΝ “RenascimentoΝ grego”Ν deΝ intelectuais gregos ligados à elite romana. Primeiramente porque achamos que Anderson (1993) não tem razão quando posiciona os intelectuais gregos e a elite romana como duas coisas diferentes. Em segundo lugar, porque Anderson (1993) tem uma ideia de elite como algo homogêneo em termos de camada social e classifica os sofistas como membros de um grupo grego diferente dos romanos. Interpretamos os sofistas de Filóstrato como membros de um grupo privilegiado do próprio Império. E, embora Filóstrato defenda a educação grega homogênea de seus biografados, como percebemos, os elementos dessa educação não eram fixos e coerentes no século III, mas hibridizados. Conforme Woolf (1998, p. 55), a própria paideia grega havia sido totalmente reformulada, sob o Principado, pelo pensamento romano, incorporando marcas de conduta vistas pela aristocracia como traços de sua distinção. Há, sem dúvidas, uma excessiva valorização da cultura grega em Filóstrato, masΝ falarΝ emΝ umΝ “RenascimentoΝ grego”Ν éΝ desconsiderarΝ aΝ ligaçãoΝ dessesΝ intelectuais com os valores imperiais, ignorando sua inserção na estrutura do Império Romano e não considerando a valorização que promoviam como afirmação filostratiana de um papel para os que possuíam a paideia por meio de um uso do passado grego clássico. Porém, mesmo destacando a possibilidade de nostalgia dos escritores gregos da Segunda Sofística, Anderson (1993) os entende como intelectuais ligados diretamente à elite romana por meio de vínculos de patronagem. A relação dos intelectuais gregos com a elite imperial é tratada muito mais em seus aspectos pedagógicos e literários, por Anderson, embora ele não deixe de mencionar as atividades dos sofistas relacionadas com os aspectos político-administrativos das cidades e do Império. Gascó (1990) mostra que era comum encontrar intelectuais da Segunda Sofística, como Plutarco ou Dião de Prusa, apaziguando conflitos em suas cidades e chamando os nobres a serem fiéis intermediários entre suas cidades e Roma, por entenderem que esta oferecia o melhor marco político possível. Assim também, destaca Gascó, podemos encontrar em Élio Aristides a ideia de que Roma era uma pólis que assegurava o melhor regime político (Discurso XXVI). Assim sendo, o passado grego é tomado por esses intelectuais a partir de CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 160 sua utilidade dentro do Império Romano, assim como fez Arriano de Nicomédia ao tomar a figura de Alexandre em sua AnábasisέΝ “ArrianoΝ deΝ σicomédiaΝ podeΝ olharΝ oΝ passadoΝ gregoΝ comoΝ portadorΝ deΝ umaΝ tradiçãoΝ eΝ ensinoΝ queΝ podiamΝ serΝ úteisΝ paraΝ seuΝ tempo”Ν (ύASἑÓ,Ν 1990, p. 15). Hidalgo de la Vega (2001b) conclui que a obsessão pelo passado grego na obra dos autores da época imperial não era uma recusa a Roma, mas uma forma de integração dos gregos e de afirmação de sua paideia e língua no Império Romano. Era uma forma de ressaltar que a Grécia e os gregos tinham de se inserir no Império, recusando o passado helenístico. Isso não significava que esses escritores não fossem críticos do poder de Roma, mas, em geral, lhe eram favoráveis por lhes proporcionar segurança e ordem. Hidalgo (2001b, p. 143) nos informa que da paideia grega se derivava a humanitas romana, como podemos ver em Plínio (Cartas, VIII, 24, 2) e era isso que fazia com que os romanos pudessem ser vistos pelos gregos como libertadores. Os mesmos autores irão defender que os romanos na verdade defenderam os gregos e os libertaram do jugo macedônico. Assim, as referências ao passado grego não são contra Roma como alguns autores irão considerar, mas sim a favor de Roma, como a potência que pode trazer de volta um passado anterior às guerras entre os próprios gregos e ao domínio macedônico. Plutarco, por exemplo, via um caráter filo-helênico na política romana.6 Referindo-se ao período e escritores da Segunda Sofística, Hidalgo (2006, p. 424-425) afirma: [...] coloca-se de relevo que a oratória sofística, que havia conseguido sua excelência literária, se erige agora como um veículo importante para afirmar e também redefinir a identidade dos gregos em contato ou em confronto com a identidade dos romanos e com a identidade do passado grego, em um período em que a pars orientalis, como todo o Império Romano em seu conjunto, conseguiu um grande florescimento tanto no campo cultural, como no econômico, e também no político. Urías Martínez (2006) ressalta que os próprios romanos se utilizaram da ideia de valorização da cultura grega clássica como forma de criação de uma identidade imperial, especialmente nas partes orientais do Império. Esse historiador se coloca, assim, totalmente em desacordo com o grupo de estudiosos que veem a valorização do passado grego como algo contra Roma, e destaca os sofistas comprometidos em construir um presente a partir de uma visão arcaizante do passado. Assim escreve: 6 Sobre o filo-helenismo, Woolf (1994, p. 132) o define como uma predileção de alguns romanos para com a cultura grega, manifestada em coleções de arte grega e na concessão de lugares privilegiados aos gregos na política imperial. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 161 Esse processo tem seu fiel reflexo nas aristocracias das cidades gregas: estas veem nesse processo de volta aos valores clássicos um caminho ótimo para fomentar sua integração com o poder central romano; portanto, veremos como também desde as cidades se favorecem vias de conhecimento que permitem proteger a identidade helênica (URÍAS MARTÍNEZ, 2006, p. 450). τsΝ sofistas,Ν conformeΝ UríasΝ εartínezΝ (βίίθ,Ν pέΝ 4η1),Ν valorizavamΝ “seremΝ gregosΝ paraΝ seremΝ romanos”,Ν comΝ oΝ queΝ estamosΝ deΝ acordoΝ noΝ queΝ dizΝ respeitoΝ aΝ όilóstrato,Ν que,Ν como vimos no primeiro capítulo, estava totalmente ligado às estruturas de poder imperiais. Também dentro da linha de pesquisadores que percebem a valorização da identidade grega dos sofistas integrada ao Império Romano, Guarinello (2009, p. 154) escreve que a culturaΝ gregaΝ seΝ “tornouΝ eficienteΝ eΝ instrumentalΝ paraΝ oΝ processoΝ deΝ manutençãoΝ daΝ ordem imperial. Por isso foi conscientemente apoiado e incentivado pelos imperadores, sobretudo a partirΝ doΝ séculoΝ IIΝ dέἑέ”Ν τΝ mesmoΝ historiadorΝ (βίίλ,Ν pέΝ 1ηη-156) ainda aponta, de maneira geral, características do que seria essa identidade grega no Império Romano: – O mundo urbano, o universo das póleis e o estilo de vida ligado a ele: assembleias populares, ginásios para práticas de exercícios físicos, templos, oráculos, ritos e divindades associadas ao panteão grego clássico; – O saber transmitido por escolas nas cidades, dirigidas por oradores e filósofos; – A mudança na ideia de uma identidade grega ligada a uma identidade étnica, tornando-se uma identidade cultural, independente do local de origem e nascimento de cada indivíduo. – Língua que buscava reproduzir o grego falado na época clássica de Atenas, o ático. – Memória em comum aos gregos, relacionada ao passado clássico e às histórias de Atenas e Esparta. Todas as características acima, propostas por Guarinello (2009) como elementos identificadores da valorização da identidade grega no Império, são facilmente percebidos no corpus filostratiano. O universo das cidades é o ambiente de circulação dos sofistas da VS e também, em grande parte, de Apolônio da VA, embora Apolônio vá além das cidades do Império, chegando, como veremos, a sair de suas fronteiras político-administrativas. Os ambientes de declamação dos sofistas eram assembleias (VS, I, 519), espaços de recebimento do imperador (VS, II, 625), inauguração de templos (VS, I, 533) e mesmo espaços de sociabilidade do homem antigo, como uma taverna em que amigos tomavam vinhos (VS, II, 627). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 162 Os ginásios em que se praticavam esportes, nos moldes do que eram no passado grego, são elemento central de valorização do Ginástico de Filóstrato, como podemos ler, entre outras, nestas passagens: Sem dúvida, os leões de hoje não são inferiores aos de antigamente, o mesmo podemos dizer dos cães, dos cavalos e dos touros. No reino vegetal, as vinhas de hoje crescem como as de antigamente e também os frutos da figueira em nada mudaram. Com respeito ao ouro e às pedras preciosas, seguindo os ditames da natureza, todas são iguais agora como antes. De maneira distinta, no que se refere aos atletas, todas as virtudes antigamente lhes eram atribuídas; não que a natureza as tenha perdido – ainda hoje há homens valentes, de grande beleza física e inteligência – mas o que ocorre é que aquelas qualidade naturais têm sido deformadas e deixaram de ter seu poder por causa de entretenimentos inadequados e práticas pouco apropriadas (Ginástico, 2). Com o tempo tudo mudou, antes eram homens com batalhas reais em suas bagagens, agora, já não sabem o que fazer com as armas. Antes estavam cheios de energia, agora são homens indolentes, não são fortes como antes, mas gordos, porque prevaleceu a glutoneria siciliana. Os estádios perderam vigor, sobretudo quando se apoderou da ginástica a arte da adulação (Ginástico, 44). A valorização da prática de esportes também está na VAμΝ“EsseΝfoiΝoΝdiscursoΝsobreΝ Timasião, ao qual chamavam Hipólito, pelos olhos com que o tinha visto sua madrasta. PareciaΝtambémΝcuidarΝdeΝseuΝcorpoΝeΝpraticavaΝmaravilhosamenteΝaΝginástica”Ν(VA, VI, 3). Templos, oráculos, ritos e divindades gregas também são parte dos roteiros das viagens de Apolônio. Ele vive no templo de Asclépio, em Egas, ainda nos tempos de sua educação filosófica (VA, I, 8), local que ele transforma em seu Liceu e sua Academia (VA, I, 13). Filóstrato observa bem costumes gregos entre os erétrios na Císia e percebe que possuem templos em estilo grego (VA, I, 24). Entre os vários santuários que Apolônio visita está o santuário de Dionísio em Nisa (VA, II, 8-10), cidade do Império Parto, mas que na descrição de Filóstrato possui um templo para um deus grego, que ele não deixa de ressaltar. E όilóstratoΝ mencionaΝ sobreΝ ApolônioμΝ “όrequentava,Ν pois,Ν lugaresΝ maisΝ sérios,Ν eΝ viviaΝ nosΝ templosΝsempreΝabertos”Ν(VA, I, 16). Na VS podemos citar, como exemplo, esta passagem em que Filóstrato mostra que ele próprio e seu amigo Gordiano, ao qual é dirigida a dedicatória da obra, praticaram a arte da oratória, ou discutiram sobre ela, em um templo: Reuni para ti, em dois livros, uma relação de filósofos com reputação de sofistas e os sofistas com toda a razão de serem chamados assim, sabendo que sua linhagem tem relações com essa profissão, uma vez que entre seus antepassados está Herodes, o ático. Também me recordo de nossas CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 163 interessantes práticas em Antioquia, no templo de Apolo Dafneo (VS, I, 480). A arte da sofística, para Filóstrato, tem relações com a profecia e com os oráculos, pois também tem inspiração divina (VS, I, 481). E ele conta que o sofista Polemão seria digno de ser enterrado em um templo religioso: Não tem sepultura alguma em Esmirna, embora muitas sejam assinaladas como suas. Alguns dizem que foi enterrado no jardim do recinto sagrado de Árete, outros dizem que foi enterrado não longe desse lugar, na beira do mar, onde há um templo pequeno e nele uma estátua de Polemão [...]. Mas nada disso é verdade, pois se tivesse morrido em Esmirna, não o teriam considerado indigno de jazer em qualquer um dos admiráveis templos da cidade (VS, I, 543). O sofista Herodes, o ático, não deixava de embelezar templos em Atenas (VS, II, 551), oferecia sacrifícios religiosos por sua saúde (VS, II, 562) e chegou a receber do imperador Marco Aurélio um pedido para que o iniciasse em cultos mistérios (VS, II, 563). Ptolomeu de Náucratis também era benemérito do templo de sua cidade (VS, II, 595), e outros sofistas exerciam funções de sacerdotes, como veremos ainda neste capítulo. Portanto, a religiosidade grega é parte do cenário em que se desenrolam as viagens de Apolônio e também parte da vida dos sofistas relatados na VS. O sofista como professor está na VS (I, 523; II, 558, 564, 583, 614) e o filósofo professor transmissor da cultura grega está na VA, um dos papéis de Apolônio, que possui vários discípulos aos quais está sempre ensinando algo, como nesta passagem: [...] após sugerir algo mais sensato, se lhe ocorresse, reunia-se com seus discípulos e os estimulava para que perguntassem o que quisessem. Afirmava, efetivamente, que os que praticavam esse tipo de filosofia deviam, ao amanhecer, conversar com os deuses, ao avançar o dia, manter conversações com os deuses e, no restante do tempo, manter conversas sobre os assuntos humanos (VA, I, 16). Apolônio também defende o papel da educação, e consequentemente do professor transmissor da cultura grega, no diálogo com o flautista Cano, na ilha de Rodes, nas duas primeiras passagens a seguir e para o jovem amestrador de pássaros na última passagem: Compreendendo que o jovenzinho, um novo rico e sem educação, tinha construído uma casa em Rodes e reunido nela várias pinturas e pedras de todos os países. Apolônio lhe perguntou quanto dinheiro havia gasto com professores e com a educação, e ele respondeu: – Nem um dracma. [...] CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 164 – E sobre a riqueza, jovem, quem será melhor guardiã, a pessoa instruída ou a pessoa não instruída? E, como o outro se calou, acrescentou: – Parece-me, jovem, que não tens uma casa, mas é a casa te possui. Eu, por exemplo, ao entrar em templo, veria com muito mais agrado uma pequena estátua de ouro e marfim do que uma ordinária grande de barro cozido (VA, V, 22). O remédio não consiste, entretanto, em algo muito especial, pois em todas as cidades há uma classe de homens que ainda não conheces, chamados professores. E lhes dando uma pequena parte de teus bens obterás, com toda a segurança, ganhos maiores, pois te ensinarão a arte forense, uma arte fácil de adquirir. Pois se eu tivesse te conhecido ainda menino, ter-te-ia aconselhado a frequentares as portas de filósofos e sofistas a fim de engrandeceres com sua sabedoria (VA,VI, 36). Já observamos neste capítulo que a identidade grega era algo cultural e construída em fronteiras identitárias, não sendo um fenômeno propriamente étnico, e era algo característico dos sofistas filostratianos. O aticismo, valorização do grego falado em Atenas na época das póleis, como língua está na VA (I, 7, 17), como tratamos no segundo capítulo desta Tese, e na VS. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem da VS referente ao sofista Aristócles de Pérgamo: O estilo de seus discursos, brilhante e ático, mais apto para a eloquência de aparato do que para o discurso forense, já que faltava em sua linguagem a expressão insuflada e os ânimos momentâneos. Seu aticismo, se posto à prova, podia ser comparado à língua de Herodes, e poderíamos mostrar sutilizas mínimas, mais do que um verbo grandioso e sonoro (VS, II, 568). A obra de Filóstrato se encaixa, a nosso ver, perfeitamente nos aspectos identitários destacados por Guarinello (2009). No entanto, como mencionamos, mesmo diante de autores que analisaram aspectos da identidade grega e os sofistas, da chamada Segunda Sofística, integrados ao Império Romano e a valorização da cultura grega do passado como mecanismo de integração, há autores que apontam os sinais de arcaísmo dos gregos desde o final do século I a.C. até o início do século III d.C., como forma de fugir da dominação romana, mostrando que a Grécia também tinha um passado de glórias. É com as reflexões de Bowie que vemos iniciar essa propostaμΝ “Para assegurar que a Grécia tinha motivos iguais a Roma para proclamar sua grandeza, os aristocratas antigos começaram a viver cada vez mais a grandeza política do passadoΝemΝsuasΝprincipaisΝatividadesΝculturais”Ν(ἐτWIE,Ν1λκ1,ΝpέΝβγί)έ Bowie (1981, 1982), portanto, contesta as ideias de Bowersock (1969) e os estudiosos que concordam com este último, e analisa os sofistas como não comprometidos com a política romana, vendo a Segunda Sofística como um movimento de descontentamento CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 165 que busca na exaltação do passado clássico grego um retorno fugidio. Tal retorno ao passado é, para Bowie uma espécie de manifestação identitária e política. Segundo ele (1982, p. 54), a afirmação de Bowersock sobre a participação política dos sofistas em relação a Roma está ancorada apenas no testemunho de Filóstrato, sendo, por isso, errada. Bowie ainda apresenta umaΝ listaΝ deΝ sofistasΝ deΝ outrasΝ camadasΝ sociaisΝ eΝ nãoΝ apenasΝ daΝ “elite”,Ν comoΝ apontouΝ Anderson (1993). Mesmo acentuando que a proposta de Bowersock (1969) sobre a participação dos sofistas na política do Império Romano estava apenas apoiada na análise da obra de Filóstrato, Bowie (1981, p. 230) não deixa de mencionar que para ele, até mesmo Filóstrato era, de certa forma, contrário a Roma. É assim que este pesquisador lê a crítica de Apolônio de Tiana ao uso de nomes latinos pelos gregos. De fato, Apolônio faz tal crítica, como podemos ler nesta passagem: Ao chegar em Esmirna, os jônios saíram ao seu encontro, pois celebravam as Panionias. Ao ler o decreto jônio, em que lhe pediam que participasse com eles na reunião e ao não encontrar um nome jônio (pois um tal Lúculo havia assinado o movimento), enviou uma carta à Assembleia censurando esse estrangeirismo. Efetivamente, havia também um Fabrício e outros, da mesma forma, nos decretos. Ele lhes censurou e se manifestou em uma carta a respeito (VA, IV, 5). Diferentemente de Bowie, no entanto, acreditamos que não podemos ler essa censura de Apolônio ao uso de nomes latinos pelos gregos como uma recusa de Filóstrato aos romanos, uma vez que o próprio nome gentilício de nosso sofista, como já mencionamos no primeiro capítulo, era um nome latino, Flávio, mostrando que ele possuía cidadania romana. Talvez essa censura seja algo feito pelo Apolônio histórico e incorporado à VA pelo sofista, já que Apolônio censura o uso de nomes latinos em uma de suas cartas e Filóstrato não faz essa crítica em nenhuma de suas outras obras que chegaram até nós. Entretanto, não é impossível que essa carta tenha sido produzida posteriormente à escrita da VA, partindo da informação de Filóstrato contida em VA, IV 5. A carta de Apolônio em questão tem o mesmo assunto da carta mencionada na VA, na passagem citada acima, como enviada a Assembleia de Esmirna: Para os Jônios: Vós julgais possuir a designação de "Jônios" por causa de vossa prosápia e pela emigração de muito tempo atrás, mas os gregos têm a forma e a aparência de seres humanos assim como têm seus costumes particulares, leis, linguagem e modo de vida. A maioria de vós, no entanto, nem mesmo mantém vossos nomes, e vossa recente prosperidade vos fez perder as características de vossos antepassados. Esses não querem sequer recebê-los em seus túmulos, já que tornastes estranhos para eles. Seus nomes eram como os de heróis, almirantes e legisladores, mas agora são Lúculos, CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 166 Fabrícios, Lucianos, ó povo de sorte! Para mim "Mimnermos" seria um nome preferível (Carta 71). Outra possibilidade de análise da recusa ao uso de nomes latinos pelos gregos estaria em lê-la de maneira relativizada, como ideia de Filóstrato, mas percebendo que seu texto e sua trajetória de vida podem conter tanto elementos favoráveis à política romana, quanto críticos. No entanto, de maneira geral, Filóstrato não era contrário ao Império Romano e, se tomarmos essa última possibilidade de análise como válida, ele seria contrário a algumas práticas que envolvem elementos da cultura romana, como a adoção de nomes latinos pelos gregos que, no entanto, ele carregava em seu próprio nome: Lúcio Flávio Filóstrato (Lucius Flavius Philostratus). Outros momentos em que Filóstrato poderia, por meio de Apolônio de Tiana, ter se manifestado como contrário a práticas culturais romanas estaria em sua crítica aos banhos e aos jogos de gladiadores: Após falar o suficiente, ungia-se de azeite e, após uma massagem, se banhava em água gelada, pois chamava aos banhos quentesΝdeΝ“aΝvelhice do homemέ” Assim, quando proibiram os banhos em Antioquia por causa de graves imoralidades, disse: – O imperador, a despeito de seus erros, vos deu mais anos de vida. E quando os efésios queriam apedrejar o governador por não aquecer os banhos, disse: – Censuram o governador porque os banhos não são confortáveis, eu vos censuro porque banhastes (VA, I, 16). Corrigiu também em Atenas o seguinte: os atenienses, reunidos no teatro, junto à Acrópole, presenciavam matanças de homens. A isso havia mais paixão que agora em Corinto, assim que havia atraído, em grandes quantidades, adúlteros, prostitutos, cafetões, ladrões, traficantes de escravos e gente deste tipo, lhes armavam e mandavam lutar uns contra os outros. Apolônio assumiu este assunto e ao ser convidado pelos atenienses para ir a Assembleia, disse que não penetraria em um lugar impuro e cheio de sangue. Dizia isso em carta. Dizia também que estranhava como a deusa não havia abandonado a Acrópole (VA, IV, 22). Como Filóstrato mesmo menciona na passagem acima citada, a crítica de Apolônio aos jogos de gladiadores em Atenas está em uma de suas cartas (Carta 70). Também critica em uma carta o costume de evitar os banhos (Carta 8.1). Interpretamos essas duas criticas a elementos da cultura romana da mesma forma como pudemos interpretar a crítica ao uso de nomes latinos pelos gregos, ou seja, como algo cultural e pontual, e não significando uma recusa por parte Filóstrato ao próprio Império Romano. Além disso, mesmo se considerarmos que a crítica aos jogos gladiatoriais é feita por Filóstrato, por intermédio de seu Apolônio, não estamos pretendendo com isso aceitar que nosso sofista fosse contrário aos romanos, mas a CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 167 uma prática de sua cultura que, como já mostrou Veyne, era considerada grosseira pelos refinados intelectuais gregos: A delicadeza, a doçura e o refinamento eram privilégio dos gregos. Os romanos eram julgados por seus combates de gladiadores, como outrora foram nossas corridas ou strip-teases, eram espetáculos que mostravam a grosseria de uma nação estrangeira (mas não eram por isso menos adotados, se bem que nas regiões gregas eram estigmatizados e adotados). Em termos de arte, a literatura e o pensamento dos romanos era áspero e rude, que não compreendia grande coisa (VEYNE, 1999, p. 531-532). Portanto, sendo os jogos gladiatoriais considerados uma prática rude pelos intelectuais gregos, nos parece que Filóstrato, ou Apolônio, a quem ele dá voz, compartilha desse valor. Bowie (1982, p. 54) ainda afirma que os sofistas filostratianos são apenas homens das camadas abastadas, mas, conforme nossa leitura, há menções a alguns sofistas que não seguem esse padrão. Percebemos que Filóstrato busca, logo no início de cada biografia, mostrar a origem social do biografado. Os sofistas escolhidos são, em grande parte, membros de famílias de posses. Filóstrato não deixa de mencionar que alguns sofistas, como Polemão (VS, I, 530), Herodes, o ático (VS, I, 545), Antíoco de Egas (VS, II, 568), Hermócrates, (VS, II, 597) tinham antepassados ilustres na política imperial romana, homens que ocuparam o Consulado. Outros sofistas, embora não mencionados como descendentes de cônsules, eram de famílias com alta dignidade, tais como Evodiano de Esmirna (VS, II, 596), Damiano de Éfeso (VS, II, 605), Antípatro de Hierápolis (VS, II, 607) e Heraclides de Esmirna (VS, 612).7 Contudo, alguns sofistas não são de famílias abastadas, o que também é mencionado, como Dionísio de Mileto (VS, I, 521), que não descendia de antepassados ilustres e que passou a ser membro da ordem equestre por favores do imperador Adriano; Segundo de Atenas, que era filho de um carpinteiro (VS, I, 544); Rufo de Perinto, que Filóstrato menciona não ter vindo de uma família de cônsules (VS, II, 597) e Quirino da Nicomédia, cuja família não era nem ilustre, nem desprezível (VS, II, 621). O próprio Filóstrato declara que apenas mencionará os pais dos seus biografados quando forem personagens notáveis (VS, I, 479), ou seja, há também os que vieram de famílias menos abastadas. Como podemos ler, há menção explícita aos cargos ocupados pelos familiares desses sofistas na política imperial. Nem todos os sofistas da VS descendiam dos grupos privilegiados do Império, mas o biógrafo só menciona suas ascendências em caso de 7 No relato sobre Damiano de Éfeso percebemos claramente como as ordens sociais e a ligação destes sofistas com o poder romano eram importantes para Filóstrato; nessa biografia ele menciona que Damiano de Éfeso teve muitos antepassados e ascendentes que mereceram as honras de figurarem no Senado (VS, II, 605). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 168 terem familiares ocupando importantes cargos. Isso nos mostra o valor que tais cargos tinham na visão de Filóstrato sobre os sofistas. Voltando ao debate historiográfico sobre o uso do passado grego, Gascó (1990, p. 25-26) vê a ideia de recusa ao Império por parte dos sofistas gregos e a ideia de que eles visavam “protegerΝaΝdignidadeΝhelênicaΝeΝterΝalgoΝaΝoporΝaoΝmedíocreΝcontextoΝpolíticoΝqueΝaΝ dominaçãoΝromanaΝimpunhaΝàsΝcidadesΝgregas”, como exagerada nas análises de Bowie, com o que concordamos. Silva (2007), no entanto, situa o autor grego que estuda, Plutarco, dentro da ideia de Segunda Sofística, como crítico da política imperial romana e não preocupado em integrar gregos e romanos; pelo contrário, para essa historiadora, Plutarco busca mostrar a importância da cultura grega dentro do Império, mas de maneira a delimitar o espaço dessa cultura, sendo seu sentimento de pertença uma resistência cultural e intelectual ao Império (SILVA, M. A., 2007, p. 205): A recorrente argumentação de que Plutarco funde a cultura grega à romana, sugerindo a formação do povo greco-romano, mostra-se inconsistente em vista do discurso plutarquiano do grande valor de hábitos gregos, como a religião, a filosofia, a literatura, e de outros elementos que constituem o homem grego de Plutarco (SILVA, M. A., 2007, p. 204). Tal interpretação nos parece discutível, uma vez que a autora, como outros estudiosos que mostramos, separa gregos e romanos como duas culturas totalmente distintas, embora em comunicação. Mas, ao mesmo tempo em que acredita não haver integração entre gregosΝ eΝ romanos,Ν elaΝ apontaμΝ “[έέέ]Ν escritosΝ deΝ PlutarcoΝ representamΝ aΝ expressãoΝ daΝ singularidade e da utilidade da tradição cultural grega para o fortalecimento político do Império”Ν(SIδVA,ΝεέΝAέ,Νβίίι,ΝpέΝίλ)έΝEΝpoucoΝdepoisΝacrescentaμ Sob essa perspectiva, a nossa tese é a de que Plutarco narra a história do mundo grego, apresentando nuances como Esparta e Atenas, porém, acentuando os hábitos e costumes praticados na Grécia como um todo; por tal motivo, falamos em identidade grega em Plutarco. A nosso ver, os escritos plutarquianos estão voltados para a demonstração da contribuição dos gregos ao longo da história do Império, e é nessa longuíssima duração que irá discorrer sobre a interação entre gregos e romanos. Não se trata de um processo de exaltação da cultura grega voltado para a glorificação do passado grego, mas de desconstrução de imagens negativas dos gregos no Império (SILVA, M. A., 2007, p. 10). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 169 Assim, da mesma forma, a autora quer mostrar gregos não integrados aos romanos ao mesmo tempo em que acentua que Plutarco discorre sobre essa exaltação da imagem dos gregos de maneira relacional com o Império Romano. O estabelecimento de fronteiras identitárias, para Silva (2007, p. 205) não é analisado como forma de integração, como fazemos em nossa análise da cultura grega de Filóstrato, masΝcomoΝseparaçãoΝe,ΝemΝsuasΝpalavras,Ν“necessidadeΝdeΝvisibilidadeΝdeΝindivíduosΝqueΝnãoΝ seΝacomodamΝperfeitamenteΝaoΝpoderΝromano”έΝPlutarco,Νportanto,ΝconformeΝaΝpesquisadora,Ν deveria ser entendido enquanto dominado e exaltando a cultura grega a fim de preservar sua identidade e atenuar a dominação. Jones (2004a) também nota que uma visão muito comum em alguns trabalhos recentes sobre a Segunda Sofística mostra que ser grego e ser romano eram atitudes opostas neste período. Jones (2004a, p. 14) acredita que o debate sobre a marcante helenidade nos textos dos escritores da Segunda Sofística é muito vago em alguns estudos. Concordamos com Jones (2004a) em relação aos estudos sobre nosso autor, pois, como vimos na apresentação das obras do corpus expostas neste capítulo, os estudiosos ressaltam a preocupação das obras filostratianas em mostrar a cultura grega, mas não analisam o significado disso. O suposto patriotismo helênico é, para Jones, uma verdadeira quimera, sendo a real identidade dos π πα υ – pepaideumenoi mais complexa do que uma simples oposição gregos versus romanos.8 Novamente concordamos com Jones e, como já expressamos neste trabalho, a identificação dos sofistas deve ser, então, analisada como constituída de multicamadas, da qual ser heleno é apenas uma parte. Como exemplo das análises que mostram que ser grego era ser hostil a Roma, Jones (2004a, p. 14) indica a visão de Veyne (1999) sobre Dião de Prusa, por exemplo. De acordo com Veyne (1999, p. 535), citações aos escritores romanos estão ausentes das obras de ficção de maior parte de escritores gregos da Segunda Sofística, assim como estão ausentes da ideia de cultura dos gregos. De fato, podemos perceber isso na ausência de 8 Pepaideumenoi era uma expressão usada para definir homens considerados instruídos, que haviam recebido a paideia. A paideia é considerada a forma de diferenciação destes sofistas em uma sociedade dividida entre educados (honestiores) e ignorantes (humiliores) (ANDERSON, 1989, p. 105), ou no grego: instruídos (π πα υ – pepaideumenoi) eΝnãoΝinstruídosΝ(ἰ α – idiotai ouΝἀπα υ Ν– apaideutoi, aquele que não recebeu a paideia). Podemos ver em Filóstrato que pepaideumenoi é aquele que recebeu a paideia grega (VA, III, 43). Esse fator também era o que aqueles homens instruídos sentiam diferenciá-losΝdosΝ“bárbaros”Ν( α – barbaroi). A diferenciação fica clara na passagem em que Filóstrato descreve Damis, o discípulo de Apolônio: “AΝlinguagemΝdoΝassírioΝeraΝ medíocre,ΝpoisΝnãoΝtinhaΝelegânciaΝ deΝestilo,ΝeducadoΝcomoΝfoiΝentreΝosΝbárbarosΝ [έέέ]”Ν(VA, I, 19). Assim também um homem grego podia tomar fama de bárbaro se fosse considerado ignorante (VA, I, 16). Sobre os conceitos de honestiores e humiliores, acreditamos que tal divisão bipolarizada deve ser questionada, uma vez que a sociedade imperial romana era muito mais complexa. Mas percebemos tal divisão como forma de Filóstrato marcar posições. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 170 citações da literatura latina, como um todo, na obra de Filóstrato. Veyne não acha que isso signifique uma recusa dos gregos, mas indiferença e ignorância em relação aos romanos. A consciência de ser heleno encontra no aticismo um refúgio contra todo o poderio romano. Conforme Veyne (2009, p. 99-100), a busca pelo passado grego é vista em alguns estudos modernos como forma de compensação de seus autores em relação ao presente de dominados, interpretado como escapismo de sua opressão. Veyne vê tais atitudes como uma forma de nostalgia, mas não um escapismo, pois desde muito antes da era imperial os escritores gregos já tinham seu passado como referência permanente e tema literário. Em trabalho posterior, Veyne abranda sua opinião sobre as atitudes dos intelectuais gregos em relação ao Império RomanoΝ eΝ afirmaΝ queΝ “eraΝ possível,Ν aoΝ mesmoΝ tempo,Ν desprezar Roma, orgulhar-se de ser grego e apoiar a ordem imperial. Ser xenófobo, helênico patriota,ΝeΝ‘colaborador’έΝDeΝfatoΝessaΝeraΝaΝposiçãoΝmajoritária”Ν(VEYσE,Νβίίλ,ΝpέΝιλ)έΝΝτΝ mesmo historiador também escreve que muitos gregos faziam carreira senatorial e equestre e “assumiamΝaquiloΝqueΝchamamosΝdeΝnacionalidade imperial, isto é, reuniam em sua pessoa a culturaΝhelênicaΝeΝoΝpoderΝromano”Ν(VEYσE,Νβίίλ,ΝpέΝκγ)έΝΝDestaΝforma,ΝeleΝconcluiΝqueΝháΝ uma integração cultural entre gregos e romanos que chegam a formar um Império grecoromano, título do seu livro: O Império greco-romano. De maneira diferente dos intelectuais supracitados, preocupados com a relação sofistas e poder imperial romano e a integração entre gregos e romanos, B. P. Reardon (1971) se volta para a perspectiva literária dos escritos dos sofistas da Segunda Sofística, vendo-os como intelectuais não preocupados com a política, e sim com questões de retórica e estilo literário. Nesse sentido, critica o valor da VS enquanto documento e cita Filóstrato como um autor irritante, com intensa preocupação com as atividades políticas e sociais dos sofistas, muito mais do que em relação às suas atividades literárias (REARDON, 1971, p. 115-118). De fato, concordamos que a preocupação de Filóstrato em mostrar os sofistas em atividades políticas é grande. Mas, para nós, isso não torna seu valor documental menor, muito pelo contrário, essa maneira de representar os sofistas, dando enfoque em suas atividades político-administrativas, está relacionada com as intenções de Filóstrato em relação ao papel que quer mostrar que os sofistas estavam aptos a desempenhar. Além disso, não consideramos que o valor documental de um texto esteja em dizer verdades sobre determinado assunto, como nos parece pensar Reardon (1971, p. 117) quando escreve que o retrato de Élio Aristides feito por Filóstrato está longe do que é encontrado nas obras do próprio Aristides. Consideramos que os textos sempre denotam a intenção, consciente ou não, de seu autor. Entendemos que Filóstrato seleciona o que dizer sobre seus biografados e, mais CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 171 uma vez, vemos sua obra como repleta das suas intenções sobre o que escrever a respeito dos sofistas e que, por esta razão, pode diferir do que está na obra dos próprios sofistas, como observou Reardon (1971) em relação a Élio Aristides. Sobre os sofistas filostratianos em atividades político-administrativas, vemos que eles empregavam seus discursos na vida cotidiana, proferiam declamações quando as cidades recebiam importantes visitantes em embaixadas e ocupavam cargos na administração das regiões de língua grega do Império. Grande parte dos sofistas da VS também ocupou cadeiras de retórica em Atenas e Roma. De acordo com Filóstrato, como lemos no trecho abaixo, ocupar a cadeira de retórica, tanto a municipal de Atenas, como a imperial de Roma, significava ser encarregado da educação dos jovens, atividade que consideramos não menos política, uma vez que o sofista era encarregado da paideia desses estudantes, futuros ocupantes de cargos político-administrativos. Na época em que o imperador Marco Aurélio visitou Atenas com a finalidade de se iniciar nos Mistérios, nosso homem [referindo-se ao sofista Adriano de Tiro] estava na posse da cadeira de retórica e Marco havia incluído, entre as questões que lhe interessavam em Atenas, não deixar de conhecer a competência de seu trabalho. Pois, de fato, havia-o encarregado da educação dos jovens, não por ter comprovado seu valor ao vê-lo discursar, mas por acreditar em sua fama (VS, II, 588). Há ainda vários outros sofistas mencionados como professores, tendo suas escolas de retórica. Os sofistas que ocuparam a cadeira de retórica em Atenas foram Loliano de Éfeso (VS, I, 526), Teodoto de Atenas (VS, II, 566), Adriano, o fenício (VS, II, 587), Pólux (VS, II, 593), Hipódromo da Tessália (VS, II, 618), Filisco da Tessália (VS, II, 621). Sobre a cadeira de retórica de Roma, Filóstrato menciona que foi ocupada pelos biografados: Filagro (VS, II, 580), Pausânias (VS, II, 594), Aspásio de Ravena (VS, II, 627) e Evodiano de Esmirna (VS, II, 596). Há, ainda, outros sofistas ocupando cargos sacerdotais, que não estavam desvinculados da vida política do Império Romano. Favorino foi proclamado sumo sacerdote (VS, I, 490); Escopeliano foi sumo sacerdote da Ásia, como seus antepassados (VS, I, 515); Evodiano de Esmirna, pela dignidade de sua família, chegou a ser sumo sacerdote (VS, II, 596); Apolônio de Atenas foi sacerdote sagrado, hierofante no templo de Elêusis (VS, II, 600) e Heraclides da Lícia foi sumo sacerdote na Lícia (VS, II, 613), pois seus textos e declamações eram retóricos e seus conteúdos literários, mesmo que não tratassem diretamente de assuntos políticos, tinham intenções políticas. Isso é o que notamos nos discursos dos sofistas que tratavam de temas do passado grego; mesmo que nesses discursos não fosse tratado nenhum tema CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 172 especificamente sobre política, apenas a escolha do tema do passado grego já denota, para nós, uma intenção política em relação ao presente. Diante do que pudemos analisar na VS, não concordamos com as teses de Reardon (1971) e Bowie (1982), de estarem os sofistas voltados para ações pedagógicas simplesmente, conforme o primeiro estudioso, e não serem comprometidos com a política imperial, conforme o segundo. Pelo menos não foi essa a imagem que nosso autor buscou passar sobre sua categoria. Em Filóstrato vemos claramente os sofistas ocupando cargos na administração de suas cidades e do Império Romano, além de muitos deles terem contatos bem próximos com os imperadores de Roma. Não podemos afirmar que isso era comum entre todos os sofistas. Para tal generalização precisaríamos analisar as obras de outros autores do período e documentação epigráfica, o que não é nosso objetivo nesta pesquisa. Contudo, dentro das possíveis intenções filostratianas de afirmação da categoria da qual ele fazia parte, notamos que os sofistas eram, para Filóstrato, comprometidos com a política de suas regiões e com a política imperial, como já destacou Bowersock (1969). Além disso, não podemos concordar com a separação que Reardon (1971) e Bowie (1982) fazem de cultura e política. Mesmo que os sofistas estivessem apenas ocupados com atividades literárias, como Reardon (1971) quis mostrar, eles não deixavam de estar envolvidos com aspectos políticos e administrativos das cidades gregas e do Império. Frente a todo o debate historiográfico exposto, pensamos que um fator fundamental a ser considerado na análise da relação entre os sofistas e poder imperial é a trajetória de cada autor analisado, seu habitus, usando o conceito bourdieusiano. Whitmarsh (2001) dá um interessante exemplo da diferença nesse sentido, ao analisar a relação de três escritores da Segunda Sofística, a partir da reflexão sobre a origem de cada um e sua inserção nas estruturas de poder imperiais. Musônio, Dião de Prusa e Favorino são os autores estudados neste ensaio de Whitmarsh. Veyne (1999) também registra que há diferenças de um autor grego para outro e, assim, ele diferencia os textos de Plutarco dos de Élio Aristides e dos Dião de Prusa. Para Veyne (1999, p. 525), há autores como Arriano e Dião Cássio, por exemplo, que se veem numa perspectiva identitária imperial e não simplesmente grega. Mas Veyne (2009, p. 97) afirma que Apolônio de Tiana, ou talvez o seu biógrafo Filóstrato, era hostil a Roma. Não concordamos com esta afirmação sobre Filóstrato. Percebemos que, nas obras do corpus, Filóstrato apresenta atitudes complexas em relação ao poder romano e à sua helenidade, atitudes que não podem ser tomadas como contraditórias, uma vez que são parte de suas fronteiras identitárias e de seus interesses. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 173 De fato, como mostramos no primeiro capítulo, as obras Heroico, Ginástico, Cartas, Imagens, Dialexis 2, Nero, VA e VS tratam de assuntos relativos à cultura dos antigos gregos, a personagens helênicos, a um sentimento helênico e fazem muitas menções ao passado, aos mitos, instituições e tradições da cultura grega. Mas, como já tratamos, os traços identitários gregos para Filóstrato não são uma questão étnica, nem definida em termos do local de nascimento. Ser grego, para Filóstrato, era ter recebido a paideia e, especialmente, falar a língua grega e compartilhar dos valores gregos, mas já inseridos na organização do Império Romano. Isso tudo não negava sua inserção na política e administração romana. Para Filóstrato, ser grego não negava outras identificações que eram articuladas e se comunicavam nesta época. Acreditamos que a exaltação da helenidade nas obras de Filóstrato deve ser vista mais como valorização da paideia e dos que a possuíam dentro das estruturas do Império Romano, do que como escapismo e negação diante dos romanos. Esse é, para nós, o valor da cultura grega na obra de Filóstrato. No entanto, devemos salientar que, como mostra Woolf (1994), os grupos de elite, de origens e cultura grega, já possuíam seu lugar de prestígio na organização administrativa do Império Romano. Portanto, o que percebemos que Filóstrato faz não é afirmar sua cultura grega porque lhe faltasse espaço, o que não acontecia, mas afirmar papéis para seu grupo de sofistas, que possuíam a paideia. Dessa maneira, ele mostra a cultura grega, e especialmente o passado grego, de que ele e seus sofistas se mostram herdeiros diretos, como instrumento de poder e promoção para si e para o grupo. Como já mencionamos, grande parte dos sofistas que Filóstrato escolheu para biografar são ligados às estruturas administrativas romanas. Além disso, em uma passagem da biografia de Dião de Prusa, Filóstrato cita que durante um discurso para soldados, quando estes se sublevavam pedindo o assassinato do imperador Domiciano, Dião explicou aos revoltosos que era melhor serem sensatos e acatarem as decisões dos romanos, mostrando, explicitamente como a VS situa sofistas em ações a favor do poder imperial. [...] após dizer isso e dar a conhecer que ele não era um mendigo, nem quem pensavam, e sim o sábio Dião, rejeitou com veemência a acusação do tirano e explicou aos soldados que era melhor serem sensatos e acatarem as decisões dos romanos. E, certamente, o poder de persuasão desse homem foi tal, que fascinou inclusive aqueles que não conheciam bem a cultura grega (VS, I, 488). Com certeza esse discurso de Dião de Prusa não seria citado por Filóstrato se ele não concordasse com a ideia expressa. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 174 Por outro lado, Soria (1982, p. 156) conclui que Filóstrato ignora na VS, deliberadamente, o mundo de Roma e por isso não trata sobre o tempo em que o sofista Herodes esteve em Roma, que foi um período longo, tratando apenas do período em que este viveu na Grécia e dos cargos que ali ocupou. Entretanto, notamos que Filóstrato não deixou de indicar que ele mesmo esteve junto à corte imperial, vivendo, provavelmente, um tempo em Roma (VA, I, 3). Além disso, na biografia do sofista Aristócles (VS, II, 567), Filóstrato menciona que este ouviu as lições de Herodes em Roma.9 Essas informações nos levam a acreditar que a conclusão de Soria pode ser questionada e a omissão do período no qual Herodes viveu em Roma tem outra motivação, que, contudo, não nos caberia indagar nesta pesquisa, mas que não deve ser interpretada como uma rejeição aos romanos. Não queremos afirmar com isso que Filóstrato se via propriamente como um romano, pois em várias situações da VA e da VS ele indica que existia alteridade entre gregos e romanos.10 Porém, ressaltamos que os traços identitários, para nós, são fluidos e dependem de determinadas situações, interesses e em relação ao que está se tratando. Como vimos, Filóstrato foi um homem de um grupo privilegiado economicamente, próximo dos altos círculos de poder do Império Romano; essa sua origem e formação nos moldes da paideia não deixam de ser facilmente percebidas nas suas obras. No entanto, ele se posicionou como um grego, mas especificamente como um ateniense, membro do grupo dos sofistas, que era parte da elite administrativa e intelectual do Império Romano. 11 No mesmo sentido, discordamos da afirmação de Veyne sobre as hostilidades de Filóstrato em relação a Roma e também da conclusão geral que esse historiador nos aponta sobre os escritores gregos do período imperial. Veyne (2009, p. 84) considera que as atitudes dosΝ escritoresΝ gregosΝ eramΝ umΝ mistoΝ deΝ patriotismoΝ eΝ “colaboração”,Ν sendoΝ queΝ haviaΝ 9 Há outras passagens com registros de sofistas que viveram em Roma, como em VS, II, 596, ou de sofistas que proferiram discursos na capital do Império, como em VS, II, 589 e até mesmo de sofistas romanos, como Eliano (VS, II, 624). 10 Como em VS, I, 486; I, 493; I, 494; I, 495; I, 502 para os gregos. E VS, I, 488; II, 613; para os romanos. No entanto, ressaltamos que podemos perceber que a identidade romana não exclui as características identitárias gregas nos sofistas de Filóstrato, como no caso de Eliano. Ou seja, há fronteiras nas representações identitárias de Filóstrato, claramente percebidas aqui. Eliano nasceu, viveu em Roma e nunca saiu da Península Itálica. Mas por ter recebido a paideia, possuía uma característica central dos sofistas filostratianos, que o identificava no grupo: ele seΝ expressavaΝ emΝ “gregoΝ puro”,Ν conseguidoΝ comΝ muitoΝ esforçoΝ porΝ habitarΝ umaΝ cidadeΝ deΝ línguaΝ distinta (VS, II, 624-625). 11 Para Jones (2004a, p. 20) não devemos ignorar as cidades desses autores em seus discursos, pois a ideia de uma identidade grega, tão presente nos estudos acerca dos intelectuais da Segunda Sofística, possuía conotações diferentes em relação às diferentes cidades de onde estes autores procediam. Em Filóstrato a valorização de Atenas, da cultura ática e do aticismo falado nesta região é constante, como em VS, II, 568. Além disso, em Filóstrato temos uma diferenciação entre a língua grega usada por um escravo indiano que fala mal o grego e a pura língua grega ática (VS, I, 490), sendo a primeira citada como motivo de riso pelos sofistas Herodes e Favorino. Também em VS,ΝI,ΝηίγΝtemosΝumaΝoposiçãoΝentreΝaticismoΝeΝ“coisaΝde bárbaroέ” CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 175 variações de reação conforme as escolhas pessoais.12 Muitos gregos da elite política e intelectualΝpreferiramΝfazerΝosΝpapéisΝdeΝ“colaboradores”ΝdoΝpoder romano para não perderem seus privilégios de camada social abastada. Também criticamos a opinião expressa por AndersonΝ (1λλγ),Ν deΝ queΝ aΝ SegundaΝ SofísticaΝ eraΝ umΝ “RenascimentoΝ grego”Ν deΝ intelectuaisΝ ligados à elite romana, uma vez que este autor separa os gregos dos romanos. Pensamos que Veyne também separa gregos de romanos de maneira muito delimitada ao propor que os gregos colaboravam com os romanos, sem perceber que as identificações não tinham limites tão precisos em determinadas situações. Para concluir este subcapítulo, verificamos que Filóstrato via seu ambiente numa perspectiva sofística. Afinal, ele foi um dos escritores a catalogarem a existência e o universo dos sofistas na VS, deixando transparecer esse universo em seus demais textos. Isso demonstra a importância que os sofistas tinham para ele, levando-o a se preocupar em escrever e afirmar a história de sua categoria. Assim, enquanto sofista, Filóstrato demonstrou o valor de seu grupo e o ethos sofístico em relação ao restante da sociedade em termos de paideia. Filóstrato molda a Segunda Sofística e as funções dos sofistas da sua maneira. Ele define sua posição enquanto sofista a partir da estruturação da obra e da forma como percebia que deveria ser a atuação de uma pessoa com sua formação dentro do Império Romano e o que ele gostaria que fosse notado pelos leitores, escolhendo sobre quais sofistas dizer e o que dizer, assim como faz com Apolônio. Portanto, há uma maneira própria de ação em nosso autor. Por fim, cumpre ressaltar que, após o que foi exposto, compreendemos as representações dos sofistas de Filóstrato como nos indica Kendra Eshleman (2008, p. 395). Para essa autora, as páginas da VS de Filóstrato estão cheias de episódios sobre complexos jogos de autoapresentação e negociações por status, que implicam em definir o que significava ser um sofista e a notabilidade de receber tal denominação. Além disso, a visão do círculo de sofista de Filóstrato seria algo quase incestuoso, autocontido, autogerador e autoregulador da comunidade. Dessa forma, a obra filostratiana sobre os sofistas buscaria caracterizar papéis, funções e modelos de comportamento para o grupo e afirmar tais características. Para nós, Filóstrato buscou defender na VS que existia um grupo social homogêneo, identificado a partir de sua formação e inserção político-social, especialmente no que tange às 12 Mas concordamos com Veyne em recorrer às escolhas pessoais e, por isso, reafirmamos a necessidade de buscar a compreensão da trajetória pessoal de Filóstrato, fundamentada na ideia bourdieusiana de habitus. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 176 estruturas político-administrativas do Império Romano. Não obstante, pensamos que esse grupo podia não ser homogêneo e que nem todos sofistas tinham o mesmo grau de influência que Filóstrato teve e defendeu para o grupo. É em busca dessa defesa, que lemos seu uso do termo Segunda Sofística para definir o momento e esses intelectuais, ligando-os ao prestigiado passado grego. Como busca de status e prestígio político-social para si e para o grupo, também interpretaremos a VA nas páginas da Tese que seguirão. 3.2 As funções dos sofistas e filósofos no Principado Romano Como o documento principal desta pesquisa, a VA, trata da vida de um filósofo, na qual identificamos atributos do autor, um sofista, é fundamental que compreendamos como Filóstrato representa a estreita relação entre sofistas e filósofos em sua época. Feito isso, buscaremos reconhecer na VA, na VS e na historiografia sobre Principado Romano, que tivemos acesso, quais as principais funções para estas duas categorias. Notamos que há na VS uma proximidade entre sofistas e filósofos que, algumas vezes, torna difícil distinguir as duas categorias. De fato, havia uma grande dificuldade em classificar um intelectual no Império Romano como filósofo ou sofista (STANTON, 1973, p. 350). Há estudos, como o de Bowersock (1969) e o de Johannes Hahn (apud SIDEBOTTON, 2009), que afirmam que no período da Segunda Sofística, um intelectual podia combinar os dois papéis, ideia que Harry Sidebottom (2009) aceita em alguns casos, mas discorda em outros. Conforme Sidebottom (2009, p. 69), sofistas e filósofos tendiam a se encontrar na mesma categoria, tinham a mesma educação, podiam ensinar e fazer performances nas mesmas funções, filósofos podiam exibir esquemas oratórios e sofistas organizar disputas filosóficas, embora algumas funções fossem mais características de um ou de outro papel. Jean Gagé (1971, p. 226) refere-se aosΝ sofistasΝ comoΝ “personagensΝ genéricos”,Ν intelectuaisΝ prestigiados, sábios em eloquência em grego e latim, oradores das festas públicas e atravessadores das fronteiras incertas entre a retórica e a filosofia. Na Segunda Sofistica os papéis do filósofo e do orador se tornam muito próximos, para esse estudioso. Conforme Anderson (1993, p. 133-134), os intelectuais nesse período estudavam tanto filosofia quanto retórica, e, embora se dedicassem muitas vezes ao conhecimento das duas áreas, autonomeavam-se de uma ou de outra forma.13 13 Anderson (1993, p. 134) cita os filósofos como pensadores e os sofistas como comunicadores. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 177 Em Filóstrato, ambos os papéis possuíam uma combinação (HAHN apud SIDEBOTTON, 2009, p. 69) e, como analisamos, a documentação mostra exemplos de sofistas como filósofos ou como oradores. Os filósofos, para Filóstrato, eram considerados sofistasΝquandoΝeramΝótimosΝoradoresμΝ“DeΝmaneiraΝsemelhanteΝtambémΝόavorino,ΝoΝfilósofo,Ν suaΝfluídaΝeΝbelaΝpalavraΝoΝproclamouΝsofista”Ν(VS, I, 489). De fato, Filóstrato não diferenciou muito bem estas categorias em termos de práticas, o que lhe rendeu críticas pouco mais de um século após a escrita da VS pelo também biógrafo deΝfilósofosΝeΝsofistasΝEunápioΝdeΝSardesμΝ“[έέέ]ΝόilóstratoΝdeΝδemnosΝemΝumaΝdiscussãoΝsemΝ importância e em estilo superficial, mas agradável, registrou as vidas dos mais distintos sofistasέΝσoΝentanto,ΝasΝvidasΝdosΝfilósofosΝnãoΝforamΝrecordadasΝcomΝprecisão”Ν(EUσÁPIτ,Ν Vidas de filósofos e sofistas, 354). Um dos casos mais interessantes que mostram que as funções de sofistas e filósofos podiam combinar em um mesmo intelectual é o de Dião de Prusa, biografado por Filóstrato e destacado como alguém que tinha de fato atributos diversos. Além disso, devemos ressaltar que Filóstrato o cita como filósofo e amigo de Apolônio de Tiana (VA, V, 27-40; VS, I, 488), embora essa amizade não tenha sido documentada por outras obras que chegaram até nós. A Dião de Prusa nem sei como chamá-lo por causa de sua perfeição em tudo. Pois era um chifre de Amaltea, segundo dizem, uma confluência das caraterísticas mais elevadas, era o melhor da oratória, esteve atento ao eco sonoro de Demóstenes e de Platão, assim como as pontes aumentam o tom dos instrumentos musicais. Dião acrescentava seu tom pessoal com veemente sensibilidade. Por outra parte, os discursos de Dião destacam de forma excelente um resumo das qualidades de seu espírito. Assim, advertiu, mais de uma vez, as cidades com problemas, sem parecer mordaz nem odioso, mas como quem continha a impetuosidade dos cavalos, com freio mais do que com açoites; ao contrário, elogiou as cidades bem governadas, não dava impressão de ensiná-las, mas de lhes mostrar que pereceriam se não mudassem. Ademais, o tom de sua filosofia não era nem medíocre nem irônico, mas firmemente insistente, com um toque de delicadeza e de benevolência. Era também talentoso para escrever histórias, como nos prova sua obra Os getas, ele viajou tão longe que foi até os getas, durante seu exílio. Em O Euboico e em o Elogio ao papagaio, Dião escreveu com cuidado sobre assuntos insignificantes. Não há muito valor nestas obras, são valiosas apenas como obras sofísticas, pois é próprio de um sofista tratar com seriedade tais coisas (VS, I, 487). G. R. Stanton (1973, p. 353) argumenta que Dião de Prusa é um autor difícil de ser classificado pelos estudiosos modernos, embora o próprio Dião, conforme Stanton (1973, p. 354), se considerasse como um filósofo. Como lemos na citação acima, Filóstrato também mostrou que não sabia bem como chamá-lo, mas, acabou por considerá-lo historiador e CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 178 filósofo e, por sua seriedade em tudo e boa oratória, também um sofista. Portanto, embora Filóstrato considere Dião como filósofo, ele o biografa entre os sofistas da VS, mostrando não ver problema na dupla classificação de Dião e mostrando que um intelectual podia reunir em si as características de sofista e filósofo, o que nos parece ter sido também o caso de seu Apolônio. O historiador espanhol Urías Martínez (2010, p. 853), especialista em sofistas no Império Romano, nos mostra que na epigrafia da época imperial, um mesmo personagem podia ser considerado orador e filósofo, lembrando os casos de Marco Valério Taurino, em epígrafe de Corinto da segunda metade do século II, e a inscrição sobre T. Flávio Glauco, importante intelectual ateniense, em epígrafe do mesmo período. Também temos a epígrafe de Esmicros e de Demétrio, este último aluno em Éfeso do sofista Favorino, biografado por Filóstrato (VS, I, 489). Nas duas primeiras epígrafes aparecem os termos sofista e filósofo, nas duas últimas temos os termos retor e filósofo. Dião Cássio, historiador contemporâneo de Filóstrato, também nos parece considerar que as condições de sofista e filósofo podiam confluir em um mesmo intelectual, como lemos nesta citação em que o historiador se refere aos desentendimentos de Júlia Domna com o prefeito do pretório Plautiano como razão para a imperatriz se ter rodeado de intelectuais: “PorΝestaΝrazão,ΝelaΝcomeçouΝaΝestudarΝfilosofiaΝeΝpassavaΝseusΝdiasΝnaΝcompanhiaΝdeΝsofistas”Ν (História Romana, LXVII, 15, 7). Para Filóstrato, a Sofística Antiga deve ser considerada uma retórica que se dedicava àΝfilosofia,ΝjáΝqueΝosΝtemasΝeramΝosΝmesmosμΝ“Devemos considerar a Sofística Antiga como retóricaΝdedicadaΝàΝfilosofia,ΝpoisΝdiscorreΝsobreΝosΝmesmosΝpontosΝqueΝosΝfilósofos”Ν (VS, I, 480). Os sofistas da VS eram alunos de filósofos, assim como filósofos frequentaram também as escolas dos sofistas. Esta arrogância e orgulho, ele adquiriu [referindo- se ao sofista Polemão] de Timócrates, o filósofo, com quem manteve relação durante quatro anos quando foi à Jônia [...] e Polemão, que tinha sido discípulo dos dois, foi a favor de Timócrates e o chamava, com suas próprias palavras, pai (VS, I, 536). A Grécia trata injustamente o sofista Cresto de Bizâncio, desdenhando de um homem que recebeu de Herodes a melhor educação que um grego pode receber e que, por sua vez, formou muitos homens ilustres, entre eles Hipódromo, o sofista, Filisco, Iságoras, o poeta trágico, retores eminentes como Nicomedes de Pérgamo e Áquila, o originário da Galácia Oriental, Aristeneto de Bizâncio, filósofos reputados como Calescro de Atenas, CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 179 Sospis, sacerdote a serviço do altar, e muitos outros dignos de estima (VS, II, 591). Algumas funções são vistas na VS como próprias de ambos os papéis, como aconselhar cidades e estabelecer concórdias cívicas, embora as estratégias para realizar tais feitos pudessem variar (SIDEBOTTOM, 2009, p. 73). Outras atividades, embora fossem tanto de filósofos como de sofistas, são mostradas como primeiramente de um e depois de outro. Assim, conforme nossa leitura, aconselhar indivíduos era uma atividade principalmente de filósofos, já adornar festivais era atividade principalmente de sofistas. É assim que vemos Dião de Prusa, enquanto filósofo que também era, aconselhando os soldados romanos, em passagem já citada por nós neste capítulo (VS, I, 488), e Polemão, o sofista, discursando na inauguração de um templo em Atenas: O Olympeion de Atenas, construído depois de uma pausa de quinhentos e sessenta anos, foi consagrado pelo imperador como uma grandiosa batalha contra o tempo e, este, também incumbiu a Polemão de pronunciar um discurso na cerimônia (VS, I, 533). Sidebottom (2009, p.75-78) influenciado pelas análises antropológicas do simbólico, fruto de suas leituras de Clifford Geertz, nos mostra que ao estudar os simbolismos e representações de sofistas e de filósofos na sociedade da época da Segunda Sofística, em expressões públicas de gratidão, em estátuas e outros símbolos, como vestimentas, estilo do cabelo e da barba, gestos e expressões faciais, podemos notar a existência de uma diferenciação. Tais simbolismos eram exclusivos e construídos em contraste. Havia uma comunicação não verbal de gestos e símbolos que caracterizavam os sofistas, bem demonstrada em várias passagens da VS, e bem conhecidas e interpretadas pelos contemporâneos de Filóstrato. Gestos na hora de falar, vestir-se e arrumar-se eram preocupaçõesΝconstantesΝdessesΝsofistasέΝ“τΝtítuloΝdeΝsofistaΝeraΝsempreΝumaΝestimativaΝdeΝsuaΝ virtuosidade, mas a autoapresentação em termos de forma físicaΝ eraΝ sempreΝ decisiva”Ν (SIDEBOTTOM, 2009, p. 81). Concordamos com Sidebotton (2009) e percebemos os contrastes nas construções das imagens de sofistas e filósofos em Filóstrato em relação ao cabelo e vestimentas, como podemos ler nas passagens a seguir sobre a preocupação dos sofistas: Alexandre Peloplatão tinha aspecto de um deus e atraía os olhares por sua beleza; era por sua barba encaracolada e de tamanho medido, olhos doces e grandes, nariz proporcional e dentes brancos, de largura bem formada, adequados para a oratória (VS, II, 570). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 180 Desempenhava suas funções [referindo-se ao sofista Adriano de Tiro] na cátedra de Atenas com grande pompa, vestia roupas caras e levava sobre si maravilhosas pedras preciosas, ia a suas aulas em uma carruagem com freios de prata e, após dar suas aulas, voltava a sua casa suscitando inveja com seu séquito de estudantes de retórica [...]. Eu sei bem que alguns deles choram quando se lembram dele e que imitam seu tom de voz, seu modo de andar e a distinção de suas roupas (VS, II, 587). Filóstrato ainda nos dá um exemplo de um sofista de origem síria, Iseo, que se vestia com tecidos delicados e coloridos, o que, no entanto, parece questionar, de certa forma, a ideia de masculinidade que é feita sobre ele, pois o biógrafo frisa que Iseo mudou ao tornar-se mais adulto e passou a ser mais moderado, tanto nas roupas, como no gosto pelos prazeres do amor e da comida (VS, I, 513). Em outra passagem, Filóstrato nos mostra que os sofistas chegavam mesmo a se destacar por seus cuidados com a aparência, mostrando como o imperador de Roma reconheciaΝ AlexandreΝ PeloplatãoμΝ “EstouΝ prestandoΝ atençãoΝ emΝ tiΝ eΝ reconheço-te bem. És aquele que se dedica a cuidar dos cabelos, a escovar os dentes, a cortar as unhas e sempre cheiraΝaΝperfumes”Ν(VS, II, 571). E Filóstrato mostra que um sofista mal vestido chegava a não ser reconhecido como tal por outro, ao narrar que, quando Hipódromo da Tessália entrou na escola de Megistias, este o confundiu com alguém que ia falar sobre algum dos estudantes, ou mesmo o pai de algum deles, por seu aspecto rude, com um manto vulgar e vestimentas não apropriadas para falar em público (VS, II, 619). Portanto, a boa aparência física era, na concepção de Filóstrato, algo essencial para um sofista. De maneira diferente, a preocupação com a aparência física não era frequente entre os filósofos e a VS apresenta algumas diferenciações nesse sentido. Aristócles de Pérgamo, quandoΝ filósofo,Ν “tinhaΝ oΝ aspectoΝ desalinhadoΝ eΝ tosco,Ν aΝ roupaΝ suja”,Ν masΝ “logoΝ seΝ tornouΝ elegante”Ν quandoΝ passouΝ aoΝ ensinoΝ sofísticoΝ (VS, II, 567). A aparência de filósofos com roupas rotas pode ser analisada na descrição de Dião de Prusa, em passagem já citada neste capítulo, quando Filóstrato narra sobre as roupas esfarrapadas usadas por esse intelectual (VS, I, 488). Filóstrato registra como o hábito de se depilar, do sofista Escopeliano, chegou a irritar o filósofo Timócrates. Assim, quando se produziu uma desavença entre Timócrates e Escopeliano, porque este havia se entregado aos cuidados com a depilação e os emplastros CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 181 de peixe, a juventude que frequentava Esmirna tomou partido de um ou de outro [...] (VS, I, 536). E, diferentemente dos sofistas que se preocupavam em manter sua boa aparência na hora de discursar, o filósofo Eufrates de Tiro se exaltava a ponto de seu cabelo ficar todo eriçado, embora sua linguagem despertasse grande admiração no sofista Polemão: Mas quando ouviu Eufrates de Tiro, ficou excessivamente admirado com a modalidade filosófica deste. Era tão desmedidamente colérico que, quando falava, sua barba se eriçava e seus cabelos pareciam com os de leões agitados (VS, I, 536). O cabelo parece ter sido um diferencial entre aqueles homens. Filóstrato informa que o imperador Caracala disse reconhecer a que classe de homens pertencia o sofista Filisco da Tessália por seu cabelo e pelo tom de sua voz (VS, II, 623). No entanto, ele não menciona que tipo de cabelo era esse, que, pelas referências acima citadas, acreditamos ser bem cuidado. Já o cabelo comprido é uma característica de filósofos que marca o início de Apolônio de Tiana enquanto tal e que liga seu discípulo Damis a ele, eles ainda usam um manto que também caracterizava os filósofos: Depois de realizada a purgação de seu ventre, largou seus adornos e se cobriu de roupas de linho, recusando as de animais. Deixou crescer seu cabelo e foi viver no templo (VA, I, 8). Apolônio disse que tinha bastante ouro e milhares de coisa deste tipo, uma vez que Vardanes havia dado escondido ao guia, mas que pegava só os vestidos de linho, pois pareciam o manto de filósofo dos antigos e parecia genuinamente ático (VA, II, 41). Bem, disse [Apolônio a Damis], assim iremos, eu como estou, mas quanto a ti, é preciso que transformes o teu aspecto no de uma pessoa mais comum, ou seja, que não deixes o cabelo comprido, que mudes teu manto de filósofo por uma vestimenta de linho e troques o calçado (VA, VII, 15). Fisicamente o Apolônio da VA se assemelha aos filósofos, mas também pratica ações de sofista, como desenvolveremos neste capítulo e no próximo. Dessa forma, para Filóstrato as funções de filósofos e sofistas não eram bem delimitadas, mas o aspecto físico, sim, diferenciava ambas as condições. Tais contrastes foram trazidos por nós na documentação material em forma dos bustos apresentados nos Anexos 14, 15, 16 e 17. Nos dois primeiros bustos, o de um sofista da época imperial romana, de nome desconhecido (Anexo 14) e o do sofista Herodes, o ático (Anexo 15), biografado por Filóstrato na maior biografia da obra (VS, II, 545), podemos CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 182 perceber a barba menor, assim como o cabelo curto. Já no segundo e no terceiro busto, de filósofos, (Anexos 16 e 17), eles apresentam a barba e o cabelo mais compridos. O último desses bustos (Anexo 17) é considerado pelos pesquisadores como sendo, possivelmente, o de Apolônio de Tiana. No entanto, a diferenciação em relação aos aspectos físicos não parece algo muito claro em outro escritor do Principado Romano, Apuleio, talvez justamente porque nesse escritor as fronteiras entre ser sofista e ser filósofo são mais difíceis de serem delimitadas. Apuleio se define e se mostra reconhecido como filósofo em diversos momentos de seus textos (Apologia, III, 6; IV, 1, VI, 4; VII, 2; X, 7; XIII, 5; XVII, 6; LXXIII, 5; XCII, 11; Flórida, XVIII, 1), mas se mostra também como sofista e, embora não refira a si mesmo com essa denominação, faz eloquentes declamações públicas em diferentes cidades por onde passa, atividade característica dos sofistas (Apologia V, 1; XXIII, 2; LXXIII, 2; Flórida, XVIII, 1).14 Algumas dessas conferências estão reunidas em sua obra Flórida, na qual podemos ver sua capacidade de orador. Também podemos perceber em toda Apologia que Apuleio tinha um esquema para falar, outra importante característica dos sofistas.15 Em Apologia, Apuleio relata que tinha o cabelo comprido e despenteado, marca dos filósofos, mas tinha um enorme cuidado com os dentes, usando um creme dental para limpálos, pois destaca ser essa uma necessidade do bom orador público: O próprio cabelo, que meus inimigos dizem que levo comprido para tirar vantagem da beleza, podes tu mesmo ver quão gracioso e atrativo é. Eriçado, emaranhado e embaraçado, parece um punhado de estopa, impossível de desembaraçar por causa de minha grande despreocupação, não de me cuidar, mas de me pentear e me desembaraçar: a meu ver, já refutei a acusação contra meu cabelo, que eles formularam como se se tratasse de um crime capital, de forma suficiente (Apologia, IV, 12).16 E deves cuidar em especial de tua boca, situada em um lugar bem visível, pois está exposta a todos os olhares. Além disso, o homem se serve dela com grande frequência, seja para dar um beijo em alguém, seja para dissertar ante um auditório, seja quando dirige suas súplicas no templo [...]. Imagina agora um orador dotado de elevada eloquência: diria, com o estilo que lhe é 14 Mas, consideramos que Apuleio não possui uma das características centrais dos sofistas da Segunda Sofística, a afirmação da cultura grega e da língua grega. Embora ele demonstre que sabia bem a língua grega (Apologia, XXXVI, 5; Flórida, IX, 29, XVIII, 37), suas obras são escritas em latim, mostrando, no entanto, que a arte de discursar em público também chamava a atenção dos habitantes das regiões por onde passa, que são na África romana. 15 Sobre a retórica na obra Apologia e a montagem do discurso por Apuleio ver SILVA, S. C., 2012. 16 Porém, notamos que Apuleio encontrava-se diante de um tribunal sob uma acusação de praticante de magia, cuja autodefesa resultou na obra Apologia, como mencionamos no segundo capítulo desta Tese. Devemos considerar este discurso como altamente retórico, podendo haver um exagero na forma de Apuleio se apresentar como despretensioso de ambições em cuidar de seu cabelo, a fim de defender-se da acusação de tirar vantagens de sua imagem, usando um cabelo comprido e atraente. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 183 próprio, que todo homem que sente preocupação de falar bem deve cuidar de sua boca com muito mais cuidado do que o resto do seu corpo, pois é a antessala da alma, a porta do discurso e o lugar de reunião das ideias (Apologia, VII, 3-6). Dessa maneira, assim como as atividades de um e outro intelectual não estão bem separadas em Apuleio, os cuidados e despretensões com a aparência não aparecem bem delimitados entre o filósofo descuidado e o sofista zeloso. Os cuidados do sofista com sua imagem parecem bem marcados na VS de Filóstrato e são destacados como diferencial entre sofistas e filósofos por Sidebottom (2009) e também na documentação material, como vimos nos bustos que apresentamos. Em Filóstrato, portanto, a diferenciação na aparência está um pouco mais clara, embora as duas práticas possam se encontrar em um mesmo intelectual, tendendo mais para uma do que para outra, o que pode ser notado, especialmente, na preocupação com o aspecto físico que os sofistas têm, o que, para nós, deve ser interpretado, mais uma vez, como uma busca de Filóstrato em afirmar as características e atributos do seu grupo. Flinterman (2004) tentou demonstrar que havia outro elemento de diferenciação entre sofistas e filósofos, utilizando como documentação de análise a VS de Filóstrato. O elemento tratado por Flinterman seria a relação entre sofistas e imperadores e filósofos e imperadores. Flinterman argumenta que em seus contatos com os imperadores, os filósofos se definiam como conselheiros, enquanto os sofistas buscavam distanciar-se enfaticamente dessa imagem. As buscas dos sofistas de atenção dos imperadores e dos membros da família imperial eram justificadas sempre em contatos de natureza literária e retórica, como praticantes de uma arte que servia como meio de construção da identidade da elite grega. Os sofistas, para Flinterman (2004, p. 376), buscavam mostrar a autonomia de suas funções, sendo suas performances elemento central nas representações das relações deles com o poder romano (FLINTERMAN, 2004, p. 366). No entanto, não podemos concordar totalmente com Flinterman no que tange às representações filostratianas. Como mostraremos a seguir, havia várias formas de os sofistas se relacionarem com os imperadores, apresentadas por Filóstrato. Em geral, eles aparecem em missões diplomáticas frente aos poderosos de Roma a fim de negociar sobre questões relativas às suas cidades, outras vezes ocupando cargos próximos dos imperadores. Mas há também momentos em que eles são apresentados como conselheiros ou, pelo menos, como oradores capazes de convencer o imperador, o que não os configurava como conselheiros em si, mas CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 184 mostrava seu poder de persuasão em convencer o imperador de algo. Há algumas passagens da VS significativas nesse sentido: Polemão, o sofista, tem sido meu conselheiro nestas decisões [fala do imperador Antonino Pio a respeito de Polemão], o que o preparou para alcançar perdão mais que suficiente como gratidão pelos seus bons serviços17 (VS, I, 534). Chamar a Aristides de fundador de Esmirna não é um elogio vazio, mas justo e verdadeiro. Pois, de tal forma chorou ante Marco a ruína dessa cidade arrasada por terremotos e rachaduras, que no resto do discurso, o imperador rompia em soluços [...] o imperador deixou cair lágrimas sobre o escrito e prometeu a reconstrução da cidade conforme o pedido de Aristides (VS, II, 582). Outro exemplo que podemos citar de um sofista como conselheiro imperial, está na própria trajetória de Filóstrato, que, como mostramos no primeiro capítulo, provavelmente viajou com o cortejo severiano e se mostrou capaz de aconselhar a imperatriz Júlia Domna na sua Carta 73, mesmo que sejam, conforme o conteúdo desta carta, meros conselhos literários. O sofista Antípatro de Hierápolis também parece figurar entre os conselheiros de Caracala (CROOK, 1975, p. 85). Voltando à relação entre filósofos e sofistas, de maneira geral, sabemos que na época severiana, em que viveu Filóstrato, o estudo de retórica continuou a competir com a filosofia pelo prestígio de seus intelectuais, mas os sofistas eram mais numerosos e recebiam mais reconhecimento social (TRAPP, 2007, p. 478). Além disso, os sofistas de Filóstrato são mais completos que os filósofos, pois discutem temas filosóficos com habilidades retóricas e, como os filósofos, também possuem a capacidade de servir ao poder imperial, sendo ainda mais renomados, como lemos na já citada passagem da VS, I, 484. Também na Carta 73, para Júlia Domna, examinada no primeiro capítulo, lemos que, para Filóstrato, sofistas podiam ser admirados por filósofos que os imitavam, como no caso de Platão. Novamente, nessa carta, vemos Filóstrato afirmar a superioridade de seu grupo, preocupação que parece constante em toda a sua obra. Mais um ponto que devemos analisar ao relacionarmos sofistas e filósofos diz respeito à busca por admiração, fama e honras. Segundo Sidebotton (2009, p. 85), era comum na época romana que filósofos evitassem a admiração e a glória e não buscassem multidões, ao contrário dos sofistas. Nesse sentido, Apolônio tem muito mais de um sofista do que de um 17 Palavras descritas como do imperador Adriano. As decisões de que o trecho trata podem ser sobre a cidade de Esmirna, onde vivia Polemão e para a qual o sofista conseguiu favores do imperador, conforme nos descreve Filóstrato (VS, I, 531). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 185 filósofo, mais um ponto que percebemos, como os demais tratados no segundo capítulo desta Tese, da projeção de sofista de Filóstrato em seu protagonista. Podemos ver Apolônio diante da multidão que o admira em Alexandria nesta citação de Filóstrato: Quando caminhava desde o navio até a cidade olhavam-no como se fosse um deus e abriam caminho para ele nas ruas como aos que portam objetos sagrados. Enquanto era escoltado com mais pompa que os governadores de províncias, doze homens eram conduzidos até o lugar de execução, alguns eram bandidos, segundo a acusação [...] (VA, V, 24). Também notamos Apolônio honrado e aplaudido por uma multidão, embora não por ocasião que ele tenha buscado, mas quando foi acusado e se defendeu de práticas mágicas diante de Domiciano: Quando nosso homem disse tais palavras, levantou-se um aplauso maior do que o que admite um tribunal imperial, o imperador considerou que os presentes estavam testemunhando a favor de Apolônio e, comovido pelas respostas, porque eram fortes e cheias de sentido, disse [...] (VA, VIII, 5). Para finalizar essas considerações sobre sofistas e filósofos, percebemos, portanto, que há na VS uma diferença de nomenclatura e de representação física entre filósofos e sofistas, mas as atividades, muitas vezes, se confundiam e um mesmo intelectual podia ser apresentado como sofista e filósofo. De maneira geral, um filósofo era também sofista quando, para Filóstrato, tinha elegância de linguagem, como podemos ler, entre outras, nestas passagens: Leão de Bizâncio ouviu as lições de Platão quando ainda era jovem. Quando adulto foi chamado de sofista por ser versado em todas as modalidades de oratória e persuasivo nas respostas (VA, I, 485). Eudoxo de Cnido, embora tenha dado atenção às doutrinas da Academia, foi, no entanto, incluído entre os sofistas pelo ornamento de sua linguagem e sua facilidade para a improvisação, merecendo a designação de sofista no Helesponto, em Propóntide, em Mênfis no Egito e além de Mênfis, no limite da Etiópia e na região onde moram os ascetas nus (VS, I, 484). Pelas mesmas características com que os filósofos podiam ser também sofistas na VS, podemos considerar Apolônio como um filósofo e sofista na VA, pois, como lemos no trecho a seguir, foi assim que Filóstrato o considerou pela voz de Eliano, prefeito do pretório de Roma, que conheceu e admirou Apolônio: A espada imperial estava sob o poder de Eliano e este homem, desde muito tempo, admirava Apolônio, pois o encontrou uma vez no Egito. Mas nada CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 186 dizia em sua defesa diante de Domiciano, pois seu cargo não o permitia, já que, se tratando de alguém que incomodava o imperador como poderia elogiá-lo e interceder por ele como amigo íntimo? Contudo, usava os recursos que podia para ajudá-lo. Assim, momentos antes da chegada de Apolônio, o caluniava, e dizia: – Imperador, os sofistas falam com facilidade, como sabeis, com espalhafato. Como não desfrutam de nenhuma vantagem na existência, desejam a morte, provocando os que possuem espadas. Penso que é isso mesmo que achava Nero, para não se ver obrigado por Demétrio a matá-lo. Pois quando se deu conta de que esse queria morrer, não o dispensou da sentença de morte por compaixão, mas por desprezo de matá-lo. E também a Musônio, o etrusco, pesa sua contínua oposição ao seu poder, o confinando em uma ilha chamada Giara. Além disso, os gregos se sentem tão atraídos por esses sofistas que vão até onde estão para se entrevistarem com eles e visitarem diretamente a fonte. Pois para a ilha, que carecia de água, resultou numa descoberta de Musônio da fonte que agora celebram os gregos como a do cavalo no Helicão (VA, VII, 16). – Concedei-me [fala de Eliano referindo-se a Apolônio] o tempo que falta até o julgamento, pois vou fazer uma investigação privada e não na vossa frente sobre o modo de pensar do sofista. E, se reconheceis que cometeu um delito, suspendei os trâmites do tribunal e podereis ir em paz, mas não negueis ser julgado pelo imperador (VA, VII, 17). No primeiro trecho citado acima, lemos que também o filósofo Musônio é considerado por Filóstrato, na fala de Eliano, como sofista. Desta maneira, consideramos que Apolônio poderia ter figurado entre os sofistas da VS, como seu amigo Dião de Prusa. No entanto, sabemos que os sofistas da VS estavam ligados entre si de alguma forma, nenhum intelectual está ali fortuitamente. Filóstrato cita apenas vinte sofistas de cada geração, o que, como observou Eshleman (2008, p. 396), é um número muito pequeno e, na sua maioria, os sofistas da Segunda Sofística que aparecem na obra têm relações de parentesco ou faziam parte do mesmo grupo de formação. Já em relação aos termos usados para distinguir sofistas e retores, Jones (apud SWAIN, 1991, p. 161) sugere que Filóstrato usa estes termos de maneira confusa. Bowersock e Bowie (apud SWAIN, 1991, p. 162) percebem que na obra de Filóstrato o conceito de sofista incluía também o de retor e um intelectual não deixava de ser retor quando se tornava sofista, já que os retores eram, em geral, os professores de eloquência e os sofistas eram os hábeis oradores públicos. O que podemos perceber é que o sofista de Filóstrato é um título, um designativo elogioso conferido aos melhores em eloquência, mesmo que fossem também filósofos: Os antigos chamavam sofistas não apenas os oradores que sobressaíam por seu brilho e sua eloquência, mas também os filósofos que divulgavam suas doutrinas com fluidez, dos que seremos obrigados a nos ocupar primeiro, porque pareciam ser por alcançar tal renome (VS, I, 484). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 187 Mas os sofistas de Filóstrato não são apenas hábeis oradores públicos, são homens que ocupam diversas funções na política e na administração das cidades do Império Romano e são também professores de retórica na maior parte do tempo, como lemos neste trecho sobre ώeraclidesΝ daΝ δícia,Ν queΝ tambémΝ eraΝ umΝ destacadoΝ oradorμΝ “[έέέ]Ν aΝ umΝ sofistaΝ queΝ trabalhaΝ ensinandoΝ meninosΝ aΝ maiorΝ parteΝ doΝ dia,Ν comoΝ fariaΝ frenteΝ àΝ essaΝ multidãoς”Ν (VS, II, 614). Herodes, o ático, também é citado como professor de jovens (VS, II, 558). Já sobre o uso dos termos sofista e retor, Sidebotton (2009, p. 70-71) observou que ambos são usados, de maneira geral, de formas intercambiáveis pelo biógrafo. Não podemos concordar com tal observação em vista das seguintes passagens onde há uma distinção no uso dos termos sofista e retor: Iseo, o sofista sírio, entregou-se aos prazeres em sua juventude, vivendo dominado pela comida e apaixonado pelo vinho, vestindo com tecidos delicados, muito dado ao amor e participando sem recato em escandalosos encontros [...]. Assim, ao perguntar-lhe o retor Ardis se certa mulher lhe parecia bonita, Iseo respondeu muito sensatamente [...] (VS, I, 513). [...] entre eles Hipódromo, o sofista, Filisco, Iságoras, o poeta trágico, retores eminentes como Nicomedes de Pérgamo e Áquila, o originário da Galácia Oriental, Aristeneto de Bizâncio, filósofos reputados como Calescro de Atenas, Sospis, sacerdote a serviço do altar, e muitos outros dignos de estima (VS, II, 591). [...] continuava sua preparação durante as tertúlias [referindo-se ao sofista Herodes, o ático], enquanto bebia, e de noite, em seus momentos de insônia, peloΝqueΝosΝindolentesΝeΝfrívolosΝoΝchamariamΝdeΝ“retorΝcheioέ”ΝἑadaΝpessoaΝ sobressai em uma coisa e é melhor que outra em algum ponto; assim, um é melhor na improvisação, outro na preparação meticulosa do discurso, mas Herodes manejava todas as modalidades melhor que nenhum sofista [...] (VS, II, 564). No trecho acima, sobre Herodes, o ático, podemos ler que Filóstrato trata Herodes como sofista. O termo retor é usado por ele para indicar que pessoas o designavam assim, e pelo tom crítico com que estas pessoas se referiam a Herodes, podemos perceber o termo retor como menor que sofista para Filóstrato. O que também podemos ler na VA: Mas a mim [fala de Apolônio], que tenho presente que tipo de homem se trata, me parece que o sábio não manifestaria seu próprio caráter de forma sã se buscasse simetrias e antíteses, e fizesse vibrar sua língua ao modo de serpentes. Bem, estas coisas são características dos retores, e nem esses precisam disso! (VA, VIII, 6). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 188 Segundo entendemos, em Filóstrato o valor do sofista era maior que o do retor. Pelo trecho abaixo percebemos que para Filóstrato, mesmo que um sofista pudesse ser também retor e ambas as funções estivessem em relação, há uma diferenciação na nomenclatura: Chamo sábias a poesia, a música, a astronomia, a arte dos sofistas e dos retores e as não forenses; e chamo menos sábias a pintura, a modelagem, a arte dos escultores, os timoneiros e agricultores e aquelas que obedecem às estações, pois estas artes não deixam de merecer muito a aproximação com a sabedoria (VA, VIII, 7.3). Soria (1982, p. 27) considera que as críticas de Platão e seus seguidores aos primeiros sofistas gregos diminuíram o valor desta designação, mas não reduziram suas funções, no entanto, talvez por isso muitos professores de eloquência preferiram ser chamados de retores. Percebemos que em Filóstrato o valor de ser considerado um sofista não foi, de maneira alguma, negativo, pois nosso autor em nada depreciou o termo sofista. Urías Martínez (2010) considera que, pela análise da documentação textual e epigráfica, ser considerado um sofista naquele momento tinha uma profunda carga positiva, constituindo um dos títulos mais importantes com que se podia homenagear um indivíduo – o que concordamos, pela leitura e análise da obra de Filóstrato. Vejamos agora as principais atribuições de sofistas e filósofos no Principado Romano. Em relação aos sofistas, Filóstrato nos mostra vários deles em funções administrativas nas cidades do Império, como são os casos de Heraclides, que foi magistrado em Esmirna (VS, II, 613); Polemão, que presidiu os Jogos Olímpicos (VS, II, 530); e Apolônio de Atenas, que prestou serviços considerados de grande importante nessa cidade (VS, II, 600). Um exemplo dos cargos ocupados pelos sofistas da VS fica claro neste trecho: Apolônio de Atenas alcançou renome entre os gregos como bom orador em assuntos forenses e não desprezível na declamação artística. Ensinou em Atenas na época de Heraclides e do sofista homônimo [referindo-se a Apolônio de Náucratis] e ocupou a cadeira de retórica política, remunerado com um talento. Foi também personalidade eminente nos assuntos públicos, presidiu a embaixadas sobre questões graves e prestou serviços que os atenienses consideravam de importância; foi nomeado arconte epônimo e magistrado de aprovisionamentos e, já idoso, sacerdote encarregado de pronunciar as palavras sagradas no templo de Elêusis (VS, II, 600). Outra menção recorrente na VS, como também pudemos ler na citação acima sobre Apolônio de Atenas, é sobre o sofista enquanto agente político dos interesses da sua cidade em relação às demais cidades gregas e em relação à administração do Império Romano. Nesse CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 189 sentido, os sofistas aparecem na VS como oradores públicos defendendo os interesses de sua cidade e como embaixadores frente a governantes.18 Hípias de Élide, um sofista da Antiga Sofística, serviu em várias missões em nome de sua cidade, conseguindo riquezas para a mesma. Como representante de Élide, tomou parte de grande número de embaixadas, mais que nenhum outro grego e em nenhum lugar prejudicou sua fama com discursos oficiais ou dissertações; pelo contrário, conseguiu riquezas e foi inscrito em tribos de cidades pequenas e grandes (VS, I, 495). Pródico também serviu em embaixadas em nome de Atenas (VS, I, 496) e Esquines foi em embaixada até Filipe da Macedônia (VS, I, 508). Em relação aos sofistas que viveram sob o Império Romano, temos Heliodoro da Arábia, que foi designado para defender o interesse de sua região na terra dos celtas (VS, II, 625). O sofista Escopeliano é mostrado por Filóstrato como ideal para embaixadas da mais alta importância em nome de sua cidade: O sucesso que tinha em suas embaixadas pode ser avaliado também a partir do que se segue: O povo de Esmirna precisava de alguém que fosse embaixador em seu nome, e a razão da embaixada era da mais alta importância. Ele [Escopeliano] estava velho e havia passado da idade de viajar. Foi nomeado o sofista Polemão que nunca havia desempenhado antes uma embaixada. Quando este suplicava à divindade pelo seu êxito, pediu que lhe fosse dado o poder de persuasão de Escopeliano e, abraçando-o diante da Assembleia, educadamente citou em sua honra as palavras de Patroclia [...] (VS, I, 521). Escopeliano também serviu a embaixadas não apenas em nome da cidade de Esmirna, mas em nome de uma comunidade maior, representando todos os gregos, o Κ 18 Ν– Estamos utilizando o termo embaixador para uma compreensão mais fácil da função destes homens, mas devemos ressaltar que não existiam diplomatas, como atualmente, no mundo romano antigo e, como nos indica Bruno Miranda Zétola (2010, p. 13), o termo embaixador começou a ser usado no Renascimento e não era usado na Antiguidade. Os termos usados eram legatus,ΝemΝlatimΝeΝπ υ Ν– presbeutes, em grego. Segundo Millar (1988, p. 368), a diplomacia fazia parte, entre outras, de funções de um homem público na Roma Republicana. No Império esta função pode ser encontrada. Mas a função de embaixador, em relação às condutas estrangeiras, era feita pelo próprio imperador, membros de sua família, seus conselheiros e sua corte. Em relação às cidades do Império e suas condutas perante o imperador de Roma, como vimos, essa função era realizada pelos homens públicos, especialmente bons oradores. Urías Martínez (2006, p. 575), nos mostra que os sofistas serviam não apenas como embaixadores de suas cidades perante o imperador de Roma, mas podiam se encaminhar até representantes menores do poder (governadores, magistrados, patronos de Roma das distintas cidades, etc.), embora as embaixadas para os imperadores sejam bem mais numerosas na documentação. Ainda conforme Urías MartínezΝ(βίίθ,ΝpέΝηιλ)ΝoΝobjetivoΝdasΝembaixadasΝdasΝcidadesΝgregasΝaoΝimperadorΝeraΝ“aΝintegraçãoΝcívicaΝeΝaΝ afirmaçãoΝ daΝ identidadeΝ comunitáriaΝ doΝ pontoΝ deΝ vistaΝ ideológicoΝ eΝ espiritualέ”Ν σesseΝ sentido,Ν aoΝ vermosΝ osΝ sofistas filostratianos em tais missões, novamente percebemos que nosso autor não era contra Roma, sendo seus sofistas elementos de integração entre os gregos e o poder imperial. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 190 koinon,19 junto ao imperador Domiciano (VS, I, 520).20 Sobre sofistas em missões junto a imperadores romanos defendendo interesses citadinos, temos citações de Marcos de Bizâncio em missão, em nome dos bizantinos, frente ao imperador Adriano (VS, I, 530). Polemão defende Esmirna ante Adriano (VS, I, 531-536). Alexandre Peloplatão defende Selêucia ante Antonino Pio (VS, II, 570). Apolônio de Atenas preside, no dizer de Filóstrato, embaixadas das mais graves, diante do imperador Septímio Severo (VS, II, 600). Servir em embaixadas era uma das principais atuações políticas das aristocracias orientais no marco citadino do Império Romano (URÍAS MARTÍNEZ, 2006a, p. 581), o que salienta o destaque que Filóstrato quis dar aos seus sofistas como aristocratas altamente ativos na política de suas cidades perante a ordem imperial romana. Urías Martínez (2006, p. 586) mostra que a documentação epigráfica também traz a informação destacada por Filóstrato sobre o sofista como um dos principais agentes em embaixadas. Além da atuação em nível citadino, houve sofistas que adquiriram altas posições na administração do Império, conforme o testemunho filostratiano. Dionísio de Mileto foi nomeado sátrapa por Adriano (VS, II, 523). Na biografia de Dionísio de Mileto (VS, II, 524), Filóstrato menciona o sofista Céler, que foi secretário imperial. Antípatro foi secretário imperial de Severo, figurou na lista dos cônsules e foi governador da Bitínia, sendo esse sofista também nomeado preceptor dos filhos de Septímio Severo, os futuros imperadores Geta e Caracala (VS, II, 607). Alexandre Peloplatão foi chamado por Marco Aurélio para ser seu secretário imperial em assuntos gregos (VS, II, 571). O sofista Quirino foi advogado do fisco (advocatus fisci), cargo de que o próprio imperador o incumbiu (VS, II, 621). Caracala colocou o sofista Heliodoro à frente do mais importante órgão de advogados públicos de Roma, como homem especialmente adequado para tribunais e litígios (VS, II, 626). E assim como o próprio Filóstrato, muitos de seus sofistas foram bem próximos dos imperadores romanos. Filóstrato menciona que o imperador Trajano levou Dião de Prusa para Roma por suas capacidades de bom orador e o fez subir no carro triunfal em que desfilavam os imperadores após as guerras (VS, I, 488). Favorino teve um desentendimento com o imperador Adriano, mas este não lhe fez nenhum mal (VS, I, 489).21 O imperador Nerva 19 Koinón é um termo que define numerosas associações de cidades gregas. Sabemos que em 131/132, momento de grande desenvolvimento dos escritos da Segunda Sofística de Filóstrato, o imperador romano Adriano criou uma nova organização das cidades gregas, o Pan-helênio. Mais informações sobre o Pan-helênio em SPAWFORTH; WALKER, 1985. 20 O motivo dessa embaixada junto a Domiciano é o edito deste imperador, promulgado entre 92 e 95, proibindo os vinhedos na região da província da Ásia. Temos informação sobre esse edito também na VA, IV, 42. 21 Favorino foi exilado, ao que tudo indica, devido a problemas com o imperador Adriano (WHITMARSH, 2001, p. 296). No entanto, essa informação é ocultada da VS, provavelmente de forma consciente por Filóstrato, a fim de não denegrir a imagem de seu biografado. Filóstrato também nega que a estadia de Dião de Prusa entre CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 191 buscou defender o sofista Nicetes quando este se desentendeu com um cônsul (VS, I, 499). Dionísio de Mileto recebeu honras do próprio imperador, pessoalmente, que o inscreveu na ordem equestre, nomeou-o sátrapa de povos muito importantes e o fez inscrever nas listas dos mantidos pelo Museu22 (VS, I, 524). Marco de Bizâncio foi admirado por Adriano por ocasião de uma embaixada ao imperador. Polemão foi conselheiro de Adriano e recebeu deste imperador e de Trajano isenções de pagamento de impostos (VS, I, 532). Herodes, o ático, é apresentado como mantendo ótimas relações com o imperador Marco Aurélio, os dois trocam cartas e Filóstrato informa que o imperador mandava tantas cartas a Herodes, a ponto de chegarem três portadores de cartas em um mesmo dia na casa do sofista (VS, II, 562). Herodes coloca, segundo as palavras de Filóstrato, sua inteligência a serviço de seu imperador (VS, II, 563), o que podemos compreender como um ato de lealdade na visão filostratiana. Marco Aurélio teve desejo de ouvir Hermógenes de Tarso, que obteve fama como sofista ainda muito jovem (VS, II, 577). O sofista Élio Aristides chorou diante de Marco Aurélio a destruição de Esmirna, e é citado como o fundador dessa cidade por Filóstrato, pois conseguiu dinheiro deste imperador para reconstruir a cidade quando ela foi destruída por um terremoto (VS, II, 582). Quando Marco Aurélio visitou Atenas, para iniciar-se nos cultos mistéricos, colocou entre seus afazeres importantes conhecer o sofista Adriano, que ocupava a cadeira de retórica de Atenas (VS, II, 588). Filóstrato narra que o sofista Antípatro, preceptor dos filhos de Septímio Severo, desejava casar sua feia filha com o sofista Hermócrates, e este se negava a aceitar o matrimônio, mas acabou por aceitá-lo quando Septímio Severo o chamou até o Oriente e lhe deu a jovem como esposa. Severo ouviu Hermócrates declamar e lhe rendeu muita admiração, concedendo-lhe favores, que, porém, não foram aceitos por Hermócrates, alegando já ter recebido herança de seus antepassados, pedindo apenas incenso ao imperador (VS, II, 611). Embora o imperador Caracala, chamado pelo seu nome Antonino, seja apresentado negativamente por ter retirado a isenção de impostos concedida aos sofistas que ocupavam a cadeira de retórica de Atenas e ter desmerecido os discursos de Favorino, ele é apresentado também positivamente, já que concedeu isenção de serviços públicos para Filóstrato de os getas (VS, II, 488) tenha sido motivada por exílio. Sobre o exílio de Favorino e Dião de Prusa, ver WHITMARSH, 2001. 22 De acordo com Filóstrato (VS, I, 524), essa lista é a do Museu de Alexandria, na qual estavam inscritos pesquisadores e intelectuais mantidos às expensas públicas. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 192 Lemnos (VS, II, 623). Por fim, vemos Filóstrato registrarΝqueΝAspásioΝdeΝRavenaΝ“foiΝaΝmuitasΝ regiões da terra acompanhando o imperador” (VS, II, 627). 23 Alguns sofistas ocuparam a posição de ab epistulis graecis. Esta função, espécie de secretário imperial, era exercida por aqueles que se encarregavam da correspondência imperial24 (SORIA, 1982, p. 227). Filóstrato menciona sofistas ocupando tal posição na burocracia imperial em várias partes da VS: Alexandre Peloplatão sob o governo de Marco Aurélio (VS, II, 571), Adriano de Tiro sob Cômodo (VS, II, 590), Antípatro de Hierápolis sob Septímio Severo (VS, II 607), e Aspásio de Ravena sob um dos Severos (VS, II, 629). Na VA (I, 12), a ocupação de secretário imperial é mencionada como algo próprio de homens de dignidade. O exemplo citado é o de Máximo de Egas, um dos autores mencionado como fonte de Filóstrato em sua biografia de Apolônio de Tiana. Além disso, o biógrafo menciona que Máximo era um prestigioso orador, o que o fazia também merecedor da função deΝsecretárioΝimperialμΝ“EssasΝeΝmuitasΝdoΝgêneroΝforamΝnarradas por Máximo de Egas, que foiΝjulgadoΝdignoΝdeΝserΝumΝdosΝsecretáriosΝdoΝimperador,ΝencantadorΝcomoΝeraΝnaΝoratória”Ν (VA, I, 12). Antípatro de Hierápolis é um caso paradigmático de sofista que esteve próximo dos imperadores de Roma na época severiana. Filóstrato nos descreve os cargos por ele ocupados, como já mencionamos, e sua proximidade como tutor dos filhos de Septímio Severo, o recebimento do grau consular e o governo da Bitínia (VS, II, 607). Além do testemunho filostratiano, uma inscrição encontrada em Éfeso, datada entre os anos 200 e 205, mostra uma resposta de Caracala para uma missão diplomática dos efesianos. Nessa inscrição, há uma referência aos membros do consilium do princeps,Ν incluindoΝ Antípatro,Ν “meuΝ amigo,Ν professor e ab epistulis”Ν(BOWERSOCK, 1969, p. 55-56). Portanto, a relação entre sofistas e imperadores é positiva e afirmada na VS. Os sofistas servem ao poder romano como conselheiros imperiais, secretários, preceptores dos futuros imperadores, ocupando cargos públicos e também negociando em nome de suas cidades, o que pode ser tanto positivo para a cidade, como para o funcionamento políticoadministrativo do Império. Nas cidades helênicas estes sofistas serviam em cargos administrativos, como negociadores perante o poder imperial e também providenciando dinheiro em forma de 23 Segundo Soria (1982, p. 248), Filóstrato, possivelmente, se refere ao imperador Caracala. No século II e início do III, a posição de ab epistulis para as correspondências gregas era monopolizada por sofistas e retores do Oriente do Império. Em alguns documentos a designação ab epistulis não aparece sempre precisamente, como no caso da VS de Filóstrato. Tal posto poderia ser uma oportunidade de ascensão de ordem social (BOWERSOCK, 1969, p. 50). 24 CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 193 evergetismo. Como podemos ler nas passagens a seguir, a primeira sobre o sofista Herodes e a segunda sobre Heraclides da Lícia: Herodes erigiu para os atenienses o teatro em memória de Regila25 e mandou fazer o teto de cedro, madeira cara até para estátuas. Estas edificações estão em Atenas e não há iguais em nenhum outro lugar do Império Romano; mas devem ser dignas de menção também o teatro coberto que edificou aos coríntios, muito inferior ao de Atenas, mas que figura entre os poucos que são elogiados em outros lugares; as estátuas do Istmo; a estátua colossal do deus do Istmo e a de Anfítrite e os demais presentes que encheram o templo, sem omitir o delfim de Melicertes. Dedicou também, ao deus Pítico, o estádio de Delfos; a Zeus, a condução das águas de Olímpia; e, aos tessálios e aos gregos que moram em torno do Golfo de Malíaco, as piscinas das Termópilas, de águas medicinais para enfermos. Colonizou também Orico no Épiro, agora já em declínio, e Canusio na Itália, melhorando suas condições de vida com o abastecimento de água de que necessitavam, e ajudou cidades de Eubea, Peloponeso e Beócia. E, sendo extremo na magnificência de suas obras, acreditava não ter feito nada notável porque não havia aberto o Istmo [...] (VS, II, 551). Colaborou com o ornato de Esmirna erguendo no ginásio de Asclépio uma fonte de óleo com cobertura dourada e foi, entre eles, o magistrado portador da coroa cujo nome os habitantes de Esmirna mencionaram por anos (VS, II, 613). O comprometimento com a política imperial garantia aos sofistas certos privilégios e favores, como a mudança de ordem social para a ordem equestre ou senatorial, imunidade de pagamento de tributos, recompensas materiais e os descritos cargos administrativos. Bowersock (1969, p. 41) nota que na época dos governos de Septímio Severo e Caracala parece ter havido certa facilidade de os imperadores revogarem imunidades desses intelectuais, o que sugere uma insegurança e não permanência de certas garantias. Em nossa leitura, notamos esse fato presente na VS em uma passagem na qual Filóstrato descreve o sofista Filisco perdendo sua imunidade por ordens de Caracala. Filisco foi até Roma a fim de resolver um litígio, aproximou-se dos matemáticos e filósofos que rodeavam Júlia [referindos-e à Júlia Domna] e conseguiu dela a nomeação imperial para a cátedra de retórica de Atenas. Mas Antonino [referindo-se a Caracala], como os deuses de Homero que não fazem concessões de bom grado em tudo e, às vezes, fazem contra sua vontade, estava irritado e se mostrava ressentido com ele por ter prosperado facilmente. E quando inteirou-se que Filisco tinha um litígio pendente e ele seria o juiz, mandou que Filisco se defendesse por si mesmo e não por intermédio de outro. Quando Filisco se apresentou frente ao tribunal causou desgosto por sua postura afetada, pareceu descuidado, com a voz afeminada, com a linguagem descuidada e fixando seu olhar em outros lugares e não em seus próprios pensamentos. Por esses motivos, o imperador se colocou 25 Esposa do sofista Herodes. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 194 contra Filisco e o fazia calar-se, intervindo em todo o seu discurso, fazendolhe perguntas embaraçosas e como as respostas de Filisco não se ajustavam às perguntas, gritou: – Que tipo de homem é esse que nos revela seu cabelo? Que classe de orador é esse que nos revela sua voz? E depois de muitas interrupções dessas colocou-se do lado dos heordeanos. E quando Filisco argumentou: – Vós me isentastes dos serviços públicos ao conceder-me a cátedra de Atenas. O imperador lhe respondeu gritando: – Nem a ti, nem a nenhum outro que se dedique ao ensino, pois eu nunca privaria as cidades de receber serviços por pessoas que fazem discursos insignificantes. No entanto, depois desse episódio outorgou a Filóstrato de Lemnos, quando esse tinha vinte e quatro anos, a isenção dos serviços públicos por uma declamação. Estas foram as causas pelas quais Filisco perdeu suas isenções, mas os defeitos de seu olhar, de sua voz e de seu porte não o fizeram perder a condição de homem mais versado que nenhum outro orador na cultura grega e na arte da composição (VS, II, 623). Diante do que foi mostrado, podemos conjecturar que esta insegurança em relação aos privilégios dos sofistas, bem mostrada por nosso autor como existente nos tempos de Caracala, pode ter sido um dos fatores, mas não o único, que levou Filóstrato a afirmar a posição, a importância e o papel do sofista na sociedade. Para nós isso está presente nessa afirmação da VS e também na VA, ao termos como hipótese de pesquisa que Filóstrato projeta e, assim, afirma, funções de sofistas no sábio Apolônio de Tiana. Anderson (1989, p. 40) nota que houve muitas situações de desprezos entre sofistas e imperadores na época de Severo e Caracala, embora esses também tenham elevado outros sofistas como Apolônio de Atenas, Heliodoro ou Filóstrato de Lemnos, segundo indicações da VS. Contudo, para nós, a exposição enfática da aproximação entre sofistas e imperadores na VS pode ser uma estratégia de Filóstrato visando a convencer seus leitores do papel dos sofistas junto ao poder romano, o que Anderson (1989) não parece ter percebido. Devemos comentar ainda que na VS (II, 626) Filóstrato tece uma crítica a Caracala, tido como um mau imperador, por ofender a comunidade dos sofistas, nos termos de Eshleman (2008, p. 405), ao elevar o desconhecido Heliodoro, o árabe, à ordem equestre, nomeando-o advocatus Fisci e fazendo plateias aplaudir. Tal crítica pode ser, mais uma vez, interpretada por nós como afirmação dos próprios valores dos sofistas de Filóstrato, em sua época, para seus leitores. A análise da VS, em conjunto com nossas observações sobre as reflexões de Anderson nos leva a reafirmar a possibilidade de essa obra ser uma forma de autoexaltação da categoria de sofista por Filóstrato em um momento de possíveis diminuição do status e das garantias desses intelectuais. É devido à necessidade dessa exaltação que reconhecemos a ideia de que os sofistas filostratianos são tão destacados como ocupando cargos político- CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 195 administrativos. Tal exaltação foi, possivelmente, voltada aos dirigentes romanos, em especial ao imperador governante da época, que, como registramos, provavelmente era Severo Alexandre. Já em relação às funções dos filósofos na sociedade do Principado, James Warren (2007, p. 133) mostra que não é uma prática fácil de ser definida nesse contexto, com o que concordamos e, como vimos, estava relacionada de certa maneira à prática dos sofistas. Conforme John M. Dillon (2008, p. 940), os papéis assumidos pelos filósofos na sociedade do Império Romano eram variados e importantes e podemos dissociar o filósofo como professor, do filósofo como homem de Estado e atuando enquanto figura pública. O filósofo como figura pública, ocupando altos cargos, está na VA no personagem Telesino, citado por ApolônioΝemΝdiálogoΝcomΝoΝtambémΝfilósofoΝDemétrioμΝ“– Encontro inesperado seria, disse, se nos encontrássemos com Telesino, pois certamente se refere ao filósofo que alcançou o cargoΝconsularΝnaΝépocaΝdeΝσero”Ν(VA, VII, 11). Como professores, os filósofos instruíam não apenas aqueles que tinham interesses profissionais em filosofia, mas também jovens de famílias aristocráticas que desejavam completar sua educação, tendo interesse em leis e em serviços públicos. Já como figuras públicas, ressalta Dillon, os filósofos serviam como embaixadores, embora não tenhamos uma lista extensa, como temos dos grandes sofistas neste período, e de tempos em tempos serviam em funções administrativas. Um notável exemplo nesse sentido é o de Filão de Alexandria, que conduz uma delegação de judeus de Alexandria até o imperador Calígula. Plutarco foi a Roma para negócios públicos não especificados pelo menos duas vezes no período de 75 a 95. Exemplos de filósofos atuando como administradores são fornecidos por Amônio, professor de Plutarco e o próprio Plutarco, se as informações de Eusébio estiverem corretas, foi indicado como procurador da Aqueia por Adriano. O filósofo como embaixador é algo encontrado em Filóstrato. O primeiro intelectual mencionado como embaixador por nosso autor é Leão de Bizâncio, que figura na VS entre os filósofos considerados também como sofistas. Leão, intelectual da época helenística, convence Filipe da Macedônia a não conquistar sua cidade, Bizâncio, por meio de sua boa oratória. Ou seja, o fato de ser bom orador aparece aqui sendo destacado por Filóstrato como elemento nas negociações de guerra e paz do mundo antigo. Na mesma passagem da VS, aparece o sofista Demóstenes convencendo os atenienses sobre a liberdade de Bizâncio. Assim, foi ao encontro de Filipe quando este comandava uma ação militar contra Bizâncio e lhe perguntou: – Dizei-me, Filipe, por que motivo começais esta guerra? E ele lhe respondeu: – Tua cidade, por ser a mais bela CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 196 das cidades, induziu-me a amá-la e, por isso, venho às portas de minha amada. Respondendo, disse Leão: – Não devem ir com espadas à porta de sua amada aqueles que desejam ser correspondidos, pois os apaixonados não precisam de instrumentos bélicos, e sim musicais. Bizâncio se tornou livre, depois que Demóstenes dirigiu longos discursos aos atenienses e Leão poucas palavras a Filipe. Esse mesmo Leão foi como emissário a Atenas quando, muito tempo atrás, a cidade se debatia em discórdias e se regia por normas diferentes das tradicionais, e ao apresentar-se ante a assembleia provocou uma risada geral por seu aspecto, pois estava gordo em excesso. Mas, sem ligar para as risadas, disse: – Do que rides, atenienses? Perguntou. – Por acaso é porque sou obeso? Tenho uma mulher muito mais gorda e quando estamos bem, temos espaço suficiente na cama, mas se estamos em discórdia nem a casa nos basta. O povo de Atenas voltou à harmonia, apaziguados graças a Leão, que improvisou magistralmente em concordância com as necessidades da ocasião (VS, I, 485). Portanto, como vimos, o papel de embaixador era tanto de sofistas como de filósofos conforme Filóstrato, mas os filósofos embaixadores para nosso autor são aqueles que tinham também capacidades sofísticas e, por isso, figuram na sua VS. Apolônio de Tiana é outro filósofo mostrado tendo as mesmas isenções de obrigações de um embaixador de Roma em relação aos povos de fora do Império Romano, como podemos ler no trecho a seguir: Por isso, mais tarde, ao chegar à Babilônia, o sátrapa encarregado das grandes portas, como sabia que se tratava de uma viagem de conhecimento, lhe mostrou uma imagem de ouro do rei. Se alguém não se curvasse ante a imagem não era permitido que passasse. No entanto, para um embaixador do imperador de Roma, não havia necessidade de curvar-se, mas ao que chegasse de terras bárbaras para visitar a região se não prestasse essa honra à imagem, era detido desonradamente. As obrigações dos sátrapas entre os bárbaros tinham essas coisas. Pois bem, quando Apolônio viu a imagem, disse: – Quem é esse? E ao ouvir que era o rei, acrescentou: – Esse, ante quem vocês se curvam, se for objeto de meu louvor por ser considerado um homem de bem, se sentirá grandemente recompensado. Dizendo isso passou pelas portas. Admirado o sátrapa o seguiu, tomou sua mão e lhe perguntou, por meio de um intérprete, seu nome, sua pátria, ao que se dedicava e por que os visitava. Após anotar essas informações, assim como sua vestimenta e seu aspecto, ordenou que aguardasse ali. όoiΝatéΝosΝhomensΝconsideradosΝ“oΝouvidoΝdoΝrei,”Νdescreveu-lhes Apolônio e lhes contou que não queria nem curvar-se, nem parecia um homem comum. E eles lhe ordenaram que trouxesse com respeito, sem violência nenhuma contra ele (VA, I, 27-28). No entanto, Apolônio, com toda a sua superioridade de grande sábio, construída por Filóstrato, não serve nesta função, embora tenha o mesmo reconhecimento, diante de um povo consideradoΝ “bárbaro”,ΝqueΝumΝ embaixadorΝromano teria. Tal representação, para nós, pode ser interpretada como uma visão de Filóstrato sobre a capacidade de intelectuais como CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 197 Apolônio, que possuíam a paideia, em também servir em tais funções, ou seja, uma capacidade do próprio escritor da VA. Os filósofos de Filóstrato, considerados também com reputação de sofistas, não são mencionados ocupando cargos propriamente público-administrativos, assim como Apolônio na VA, o que não significa que eles não interferissem na política, especialmente como embaixadores de suas cidades, como vimos, e como intermediadores de conflitos nas cidades gregas, como veremos, ao tratar das funções de Apolônio. Os filósofos de Filóstrato são, em geral, professores e pensadores. Favorino, por exemplo, é mostrado como sumo sacerdote, mas que gostava de proclamar-se livre de cargos públicos para dedicar-se à filosofia, embora tenha ocupado funções públicas ao se ver compelido a isso: Proclamado sumo sacerdote, recorreu contra os usos tradicionais de sua terra natal em normas que regulam tais questões, argumentando estar livre de cargos públicos para dedicar-se à filosofia, mas ao ver que o imperador ia condená-lo, negando sua condição de filósofo, lhe antecipou e disse: – Senhor, tive um sonho que devo lhe comunicar. Meu mestre Dião me apareceu e me aconselhou a respeito do litígio, dizendo que a gente vem à vida não apenas para nós, mas também para nossa terra natal. Aceito, pois, senhor, este serviço do Estado e obedeço meu mestre (VS, I, 490). Hidalgo de la Vega (1995, p. 12) ressalta outra função dos filósofos na época do Principado: dar solidez teórica à política, legitimando ou contestando o poder imperial e as estruturas administrativas por meio de propagandas políticas e representações do poder coletivo de Roma. A historiadora também cita (1995, p. 56) que sofistas e filósofos colaboravam propagando a ideia de uma unidade cultural dentro do mundo mediterrânico com uma clara utilidade política. Não podemos negar que o sofista Filóstrato desenvolve em seu Apolônio uma teoria de poder em sua VA, teoria essa bem observada pela estudiosa acima mencionada e já citada por nós no segundo capítulo. Filóstrato desenvolve uma teorização acerca da melhor forma de basileia, contra o exercício tirânico do poder, prática que mostrava o basileus como uma figura carismática em oposição ao exercício tirânico do poder. Apolônio admite as características que deve ter o soberano ideal, o príncipe perfeito, contrastando com a personalidade nefasta do mau soberano que exerce o poder de maneira tirânica. Assim, Filóstrato elabora, pela boca de seu protagonista, uma teoria sobre o bom monarca, como podemos ler nos trechos que seguem: – Faz-me monarca [fala de Vespasiano em diálogo com Apolônio de Tiana]. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 198 – Já vos fiz monarca, respondeu, pois após elevar preces por um monarca justo, nobre, sensato, com cabelos brancos e pai de filhos legítimos, sem dúvida era por vós que dirigi minhas preces aos deuses. Muito contente com estas palavras, o monarca e também a multidão do templo comemoravam, em consonância com sua resposta lhe perguntei: – O que pensas sobre o governo de Nero? – Nero, respondeu Apolônio, é possível que soubesse tocar uma cítara, mas seu governo o cobriu de ignomínia porque foi demasiadamente fraco, ou pretencioso demais. – Então aconselhas que o governante seja equilibrado? Perguntou. – Não sou eu, respondeu, e sim a divindade que definiu a integridade como equilíbrio [...] (VA, V, 28). Apolônio respondeu [ao imperador Vespasiano]: – Vós me perguntais coisas que não posso ensinar. Pois a realeza é o mais importante que há entre os homens, mas não é ensinada. No entanto, dir-vosei o que deveis fazer, em minha opinião, para que vosso comportamento seja são. Não tenhais o que se armazena por riqueza, pois isso é melhor do que a areia de qualquer lugar junto? Também em relação aos homens que lamentam seus tributos, pois é coisa de lei ruim e sem cor de ouro se sai de lágrimas. Usai a riqueza da melhor forma que os reis podem fazer, se forem necessitados, socorrei-os, e aos que possuem muito, garanti a segurança de suas riquezas. Que a capacidade de fazer tudo vos amedronte, pois com prudência fareis uso dela melhor. Não corteis os maiores e mais sobressalientes talos, pois esse preceito de Aristóteles é injusto, mas arrancai a má vontade, como os espinhos do trigo e mostrai-vos temível para os rebeldes, não pelo castigo em si, mas pela certeza de que serão castigados. Que a lei, imperador, impere também sobre vós, pois legislareis com mais prudência se não violardes a lei. Aos deuses, atendei-os mais que antes, pois são grandes os benefícios que podeis obter deles e importantes as questões que eles vos encomendam. No que diz respeito ao poder, trabalhai como um imperador, no que diz respeito a vossa pessoa, como um particular. Em relação aos jogos, bebidas e amores e à recusa a tais coisas, o que eu deveria aconselhar a vós, que nem em vossa juventude os aprovastes? Tendes dois filhos, soberanos e nobres, conforme dizem. Exercei vossa autoridade especial sobre eles, pois vossos erros, sem dúvida, cairão sobre vós. Recorrei, inclusive, à ameaça de que não lhes entregareis o poder se não forem homens de bem, para que não considerem o poder uma herança, mas um prêmio pela virtude. Em relação aos prazeres, vizinhos de Roma, que são muitos, minha opinião é, imperador, que vades acabando com eles com tacto, pois é difícil converter um povo com a prudência de um golpe. Mas deveis introduzir, pouco a pouco, ordem em suas consciências, reformando algumas coisas claramente, outras mais discretamente (VA, V, 36). Segundo Hidalgo de la Vega (1995, p. 189), também intelectuais como Dião de Prusa, Apuleio e Plínio, o jovem, foram importantes na confrontação dialética de uma teoria política sobre a basileia. Portanto, a função de teórico da política imperial pode ser encontrada no filósofo Apolônio, elaborada pelo sofista Filóstrato, o que nos mostra que essa parece ter sido função tanto de filósofos, como de sofistas. Mas o filósofo, de acordo com Filóstrato, não era apenas um intelectual voltado aos exercícios teóricos e reflexivos, ele era atuante no CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 199 campo político-administrativo, como vimos nos casos citados acima de seus filósofos/sofistas como embaixadores e em Apolônio, cujas práticas e papéis políticos serão mais bem analisados no próximo capítulo. Ainda sobre a teoria político-filosófica na VA, Hidalgo de la Vega (1985, p. 202) ressalta que há uma defesa da escravidão, da organização escravista do Estado Romano, conservando os privilégios dos grupos de elite, atendendo fugazmente às necessidades dos grupos sociais mais pobres, para evitar uma desestruturação da organização social básica, como fica exposto na passagem a seguir, continuando os conselhos de Apolônio a VespasianoμΝ “AΝ respeitoΝ dosΝ escravosΝ eΝ dosΝ libertosΝ queΝ o poder vos concede, cortai seus luxos e molezas, acostumados a adotar atitudes mais humildes quanto mais poderoso seja o amoΝqueΝtenham”Ν(VA, V, 36). Além disso, como veremos no próximo capítulo, Filóstrato projeta em seus sofistas e em seu Apolônio a ideia de haver um elemento que une culturalmente o mundo em que estes personagens circulam, e esse elemento é a cultura grega. Uma das principais funções de filósofos no Principado – como pudemos ler em um dos trechos supracitados da VA, na resposta de Apolônio ao imperador Vespasiano, e que como vimos também é destacada nos sofistas da VS em relação a Polemão e o imperador Adriano e Élio Aristides e o imperador Marco Aurélio – é a de conselheiro de governantes.26 Um dos exemplos mais conhecidos nesse sentido é de Sêneca, preceptor e, por algum tempo, o principal conselheiro de Nero. Oswyn Murray (apud RAWSON, 1989, p. 235) notou, ao estudar os intelectuais da Segunda Sofística, uma tendência entre todos os importantes imperadores para terem conselheiros filósofos, mas de fato essa prática é bem mais antiga. Diante de tais considerações, podemos concordar que ser filósofo era, segundo Veyne (1989, p. 240), um status, e esses homens assumiam uma alta condição moral por suas pregações. No entanto, não devemos deixar de mencionar que mesmo diante de importantes funções, havia ainda outro ponto da imagem do filósofo da época que dizia respeito a um paradoxoΝqueΝelesΝdesfrutavam,ΝpoisΝelesΝeramΝaoΝmesmoΝtempoΝ“bufõesΝeΝsantosΝdaΝcultura”,Ν nas palavras de Veyne, chegavam a ter grande reconhecimento por parte de parcela da população e também desprezo e zombaria por parte de outros, principalmente por parte de outros filósofos. 26 Outra função muito importante de Apolônio é a de ordenar diversos tipos de situações nas cidades gregas. Tal função do tianeu, por receber grande destaque na VA, será tratada por nós no próximo capítulo de maneira mais detalhada. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 200 Lucien Jerphagnon (1981, p. 169-170) comenta que havia contrapontos na imagem do filósofo no período do Principado, destacando a existência de filósofos que andavam pelas ruas, nas vielas e portas de templos das cidades romanas, considerados, principalmente por outros filósofos, como loucos, charlatões de barbas e cabelos compridos. Ser filósofo, portanto, podia significar realidades e personalidades muito diferentes, que vão do exemplar ao lamentável, do imperador filósofo Marco Aurélio até um conferencista mundano, subversivo e pouco confiável, e os filósofos também tinham níveis sociais muito distintos. Coube a Filóstrato salvar Apolônio dos aspectos negativos que suas práticas podiam configurar também enquanto filósofo, caracterizando-o como alguém com as maiores capacidades que podiam ter um filósofo e um sofista juntos. É assim que interpretamos o porquê de Filóstrato transformar o seu Apolônio em um sábio, um homem total, com capacidades oratórias perfeitas em grego ático e desempenhando da melhor maneira possível as funções clássicas de filósofos e sofistas em seu período, como pudemos ler em diversas citações da VA feitas por nós no segundo capítulo e também nestas a seguir, em que Apolônio é exaltado como grande sábio: Ouviu também as doutrinas de Epicuro, pois não as menosprezava, mas foram as pitagóricas em que aplicou sua indescritível sabedoria (VA, I, 7). O assírio sentiu veneração quando ouviu suas palavras, olhava-o como uma grande divindade e o acompanhava acrescentando sua sabedoria e recordando o que aprendia (VA, I, 19). – Um grande presente, rei, pois a convivência com tais homens me faz mais sábio, e voltarei melhor do que sou agora (VA, I, 40).27 – Tomara que escuteis vossas pregações, disse, pois será grato para todos aqueles que possam gozar de vossa sabedoria. Eu aguardarei que regresseis, pois é preciso julgar alguns processos em que vossa presença me ajudará muito (VA, II, 38).28 Quando viam nosso homem na Jônia, chegando em Éfeso, nem sequer os trabalhadores estavam em seus ofícios, mas o seguiam, uns o admirando por sua beleza, outros por sua forma de viver, outros por seu porte, outros por tudo isso. Corriam boatos sobre ele, alguns procedentes do oráculo de Colofão, que celebrava nosso homem como partícipe de sua sabedoria, autenticamente sábio e coisas do gênero, outros, do oráculo de Dídima, outros vindos do templo de Pérgamo, pois a muitos que ali iam para recuperar sua saúde, o deus lhes mandava que procurassem Apolônio, uma vez que era isso que queria e lhe parecia bem as Moiras (VA, IV, 1). 27 28 Fala de Apolônio de Tiana ao rei parto Vardanes, sobre os sábios indianos. Fala do rei indiano Fraotes a Apolônio de Tiana. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 201 – Assim que tu, Apolônio, dado que entre os sábios és um que possui boa relação com outros sábios, cuides do teu sepulcro e reinstales a estátua de Palamedes, que está abandonada de maneira negativa (VA, IV, 16).29 Vemos que Dillon (2008, p. 940) destaca que, no Principado, o filósofo não é ainda umΝ“homemΝtotal”,Νcaracterística que será encontrada entre os neoplatônicos da Antiguidade Tardia.30 Mas esse estudioso bem observa que, no período que estudamos algumas figuras já são assim: Alexandre de Abonuteichos,31 Apolônio de Tiana e Juliano, o teurgo,32 com o que concordamos, no que diz respeito aos nossos estudos sobre Apolônio. Apolônio é um homem total. Nesse sentido, ele reúne na VA características do que era considerado positivo na época para os filósofos, reputação que ele tinha na tradição, e para os sofistas, ele é um sábio que excediaΝ aΝ naturezaΝ humana,Ν comoΝ podemosΝ lerΝ nestaΝ citaçãoΝ deΝ όilóstratoμΝ “EΝ ApolônioΝ deΝ Tiana, que superava em sabedoria a natureza humana, colocava Escopeliano entre os homens dignosΝdeΝadmiração”Ν(VS, I, 521). A compreensão dos atributos de um sábio para Filóstrato pode ser ajuizada neste trecho da obra Heroicos: Quirón, originário do monte Pelião, era em tudo igual a um homem, segundo Protesilao; era um sábio, em suas palavras e em seus feitos. Praticava vários tipos de caça, ensinava a arte da guerra, instruía os médicos na arte da medicina, formava músicos e educava os homens na justiça; eram seus discípulos Asclépio, Telamão, Peleu e Teseu, e até Héracles o visitava frequentemente, quando não se encontrava longe, realizando alguns de seus trabalhos (Heroicos, 32). Assim, podemos perceber o que é o homem total para Filóstrato: o que reúne as capacidades acima mostradas na figura mitológica de Quirón. Além do caráter divino, Apolônio também reúne conhecimentos variados sobre medicina (VA, I, 9; IV, 1, 10), leis e justiça (VA, I, 2; VI, 21; VIII, 7.2;), astronomia (VA, III, 30), entre outros assuntos. Ademais, o sábio de Filóstrato é o homem bom, aquele que deve estar ao lado dos governantes como conselheiro, como é mostrado em passagem da VA (I, 28), já citada por nós no Capítulo 2. 29 Fala do espírito de Aquiles a Apolônio de Tiana, sobre o túmulo do herói Palamedes. Embora Dillon não explique o que seria um homem total em sua percepção, estamos considerando como total aquele intelectual que, como Apolônio de Tiana é transformado em sábio por Filóstrato, tendo diversos tipos de capacidades que configuram as funções de filósofos, sofistas e, também, capacidades miraculosas, no mundo romano do Principado. 31 Personagem envolto em aspectos mágicos e religiosos do período imperial romano (século II), considerado pelo escritor Luciano, na obra Luciano ou o falso profeta, citada por nós no Capítulo 2, como um charlatão. 32 De acordo com Joseph Bidez (apud DODDS, 2002, p. 286), foi o primeiro homem a se denominar teurgo, viveu na segunda metade do século II. 30 CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 202 Além do que já expusemos, concordamos com Anderson (1993, p. 141) quando este estudioso afirma que: Mas é o biógrafo dos sofistas, Filóstrato, que providencia a mais ambiciosa síntese entre filosofia e retórica em sua apresentação extravagante do sábio doΝ séculoΝ I,Ν ApolônioΝ deΝ TianaέΝ AΝ “vida”Ν doΝ sábio,Ν queΝ pareceΝ terΝ feitoΝ aparições efusivas pelas cidades do Oriente, Atenas e Roma, e ganhou fama por suas declarações lacônicas, parece não ter sido um material promissor para o sofista que, no entanto, acrescenta ingredientes ao que suas fontes reais podiam lhe oferecer. O biógrafo ainda produz um panegírico romântico que não apenas faz uso dos recursos sofísticos, como também explora as coincidências entre sofista e sábio. Portanto, Filóstrato transforma seu Apolônio em um sábio com atributos de filósofo, o que suas fontes parecem tê-lo mostrado que o biografado era, defendendo, entretanto, esse filósofo de qualquer ligação com os juízos negativos que os filósofos podiam ter na época. Filóstrato também mostra seu protagonista como sofista em determinadas ocasiões, o que o biógrafo em si era e, mais do que tudo isso, transforma-o em sábio, ultrapassando os limites do gênero biográfico, como destacamos no capítulo anterior, o que leva Anderson, a nosso ver,ΝaΝcolocarΝentreΝaspasΝaΝpalavraΝ“vida” na citação acima. A fim de continuar nossas reflexões sobre Apolônio e suas características comuns em relação aos sofistas, desenvolveremos a seguir algumas análises a respeito da temática em um estudo de Apolônio e os sofistas da VS e Apolônio e alguns intelectuais com tradição como sofistas. 3.3 A relação entre Apolônio de Tiana e outros intelectuais com tradição de sofistas São vários os aspectos que ligam o Apolônio da VA aos sofistas. Neste subcapítulo buscaremos comparar o Apolônio filostratiano com os sofistas da VS e tecer algumas considerações sobre as práticas que Filóstrato relata como parte de seu Apolônio, paralelamente à análise de práticas e características de alguns importantes intelectuais do Império Romano com tradição como sofistas: Apuleio, Dião de Prusa e Élio Aristides.33 A escolha desses três intelectuais não foi fortuita. Apuleio foi escolhido por percebermos uma semelhança na sua autodefesa diante da acusação de praticante de magia, narrada por ele na sua Apologia, com a defesa que Filóstrato atribui a Apolônio da mesma acusação. Dião de Prusa e Élio Aristides foram escolhidos porque alguns pesquisadores, como Dzileska (1986) e 33 Já apresentamos os argumentos para considerarmos os filósofos Dião de Prusa e Apuleio também como sofistas, com relação a Élio Aristides, sabemos que ele figurou entre os sofistas da VS (II, 581) e, conforme Stanton (1973, p. 355), ele próprio gostava de usar o termo sofista para se definir em suas obras. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 203 Anderson (1986) nos apontaram semelhanças entre estes sofistas e Apolônio. Assim, buscamos ler alguns discursos desses sofistas biografados por Filóstrato, certamente lidos por nosso autor ao escrever sua VS. Nessas leituras, constatamos a existência de elementos em comum entre Apolônio e os dois intelectuais. Buscaremos mostrar como, para nós, Filóstrato constrói seu Apolônio a partir de leituras das obras e sobre as vidas de outros personagens com tradição como sofistas. Começaremos com uma característica bem importante que envolve os sofistas e o tianeu: a ligação destes com a magia e com a adivinhação. Assim como Apolônio, alguns sofistas estiveram envolvidos com a magia. Mesmo preparados por meio de técnicas de retórica e estudos sistematizados, há uma passagem da VS na qual Filóstrato defende uma lenda segundo a qual o sofista Dionísio de Mileto tinha boa memória devido a forças mágicas, método chamadoΝ porΝ όilóstratoΝ deΝ caldeuμΝ “AΝ lendaΝ queΝ seΝ contaΝ sobreΝ Dionísio,Ν deΝ queΝ exercitava seus alunos na mnemotécnica seguindo métodos caldeus, vou mostrar de onde vem”Ν(VS, II, 523).34 O elogiado sofista Polemão menciona que não conseguiria ter feito um de seus importantes discursos sem a ajuda e o estímulo inicial da divindade: E ele, como de costume, fixando os olhos em seus pensamentos à medida que se apresentava, entregou-se ao discurso e da base do templo pronunciou uma peça oratória extensa e admirável, e desenvolveu, como proêmio do discurso, a ideia de que o estímulo inicial do discurso não lhe havia surgido sem a ajuda da divindade (VS, I, 533-534). Outro sofista de Filóstrato, Antíoco, também busca pelo deus Asclépio nas descrições da VS:35 Passava a maioria das noites no tempo de Asclépio por causa de seus sonhos e por causa das relações entre os que permaneciam acordados e falando com os outros, pois o deus somente falava com quem estivesse desperto, transformando com a proeza de sua ciência ao acabar com as enfermidades de Antíoco (VS, II, 568). 34 Destacamos que era comum na literatura romana antiga encontrar a magia relacionada com os caldeus. Conforme João Pedro Mendes (1993, p. 199), a casta de magos da Caldeia, por ser conhecida como remetente aos primórdios do povo sumério-arcádio, era referida como possuindo conhecimentos sobre práticas divinatórias, médicas e astrológicas. 35 O deus Asclépio (no grego Ἀ π – Asklepios e no latim Aesculapius) era o deus da medicina, chamado na tradução no português de Esculápio. Conforme Harvey (1998, p. 62), o centro mais famoso de culto a este deus era em Epídauros, onde os pacientes que buscavam pela cura dormiam no templo e a cura ocorria durante a noite ou, por meio de sonhos, as pessoas obtinham conhecimento sobre como se curar. Em Roma, o primeiro templo dedicado a esse deus foi construído em 293 a.C., numa ilha do Rio Tibre (HARVEY, 1998, p. 209). Como podemos ler, Asclépio parece ter sido muito cultuado entre os sofistas do Império Romano. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 204 Portanto, ainda que os sofistas se preparassem com estudos sistematizados e técnicas apuradas, elaborados pelos mestres de retórica, uma relativa aura místico-religiosa envolvia a ideia de sofista para Filóstrato, assim como Apolônio de Tiana também estava envolto em magia e religiosidade. Filóstrato, inclusive, frisa a ligação da filosofia e da sofística com a adivinhação no começo da VS: A filosofia se relaciona bem com a mântica, baseada em conhecimentos humanos de egípcios e de caldeus, e, antes deste dos indianos, buscando a verdade com o curso das miríades dos astros; a sofística se relaciona com a profecia e os oráculos de inspiração divina (VS, I, 481). Lembremos que conhecimentos caldeus e indianos são parte das buscas por sabedoria nas viagens de Apolônio, que esteve entre os magos babilônicos nas descrições do Livro I, entre os indianos no Livro II e III, entre os egípcios, especialmente em Alexandria, lugar considerado de sabedoria, no Livro V, e entre os gimnosofistas no Livro VI. De acordo com Kerferd (2003, p. 46): Desde o início a sophia era, de fato, associada ao poeta, ao vidente e ao sábio, todos os que revelavam um saber não concedido aos outros mortais. O saber assim obtido não era uma questão de técnica como tal, fosse poética ou qualquer outra, mas conhecimento dos deuses, do homem e da sociedade, ao qualΝoΝ“sábio”ΝafirmavaΝterΝacessoΝprivilegiadoέ Do século V a.C., em diante, o termo sophistes é aplicado a muitos desses primeiros sábios – a poetas, inclusive Homero e Hesíodo, a músicos e rapsodos, adivinhos e videntes, aos Sete Sábios e a outros antigos sábios, aos filósofos pré-socráticos, e a personagens tais como Prometeu, sugerindo poderes misteriosos. Não há nada de depreciativo nessas aplicações, muito pelo contrário. Consideramos que Kerferd (2003), ao tratar dos sofistas ligados, de certa forma, ao mistério, está se referindo aos sofistas da Grécia Clássica, quando misticismo e saber tinham relações bem diferentes do que tinham esses mesmos fenômenos no Principado Romano da época de Filóstrato e de seus sofistas. No entanto, podemos perceber Filóstrato ligando seus sofistas da VS também à magia e à religiosidade, o que não parece ter sido incomum no Principado. Como exemplo de sofista iniciado em cultos mistéricos, envolvido em práticas de teurgia e ocupando cargos sacerdotais, citamos Apuleio, escritor do século II, período em que se situam alguns dos biografados da VS. Nas obras de Apuleio, especialmente no discurso Apologia, sua ligação com práticas mágicas, de caráter teúrgico, e sua característica como sofista ficam bem expressas. E como o sofista Antíoco (VS, II, 568), Apuleio também rendeu CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 205 culto ao deus Asclépio, chamado por ele de Esculápio (Apologia, 55, 10 e Flórida, XVIII). Os sofistas Polemão (VS, II, 535) e Hermócrates (VS, II, 611) visitaram o templo de Asclépio em Pérgamo. Heraclides da Lícia colaborou com a ornamentação da cidade de Esmirna erguendo uma fonte de azeite no ginásio de Asclépio (VS, II, 613). E também Élio Aristides foi fiel seguidor das curas de Asclépio, relatadas em seus Discursos sagrados. O deus Asclépio aparece especialmente relacionado com as representações de magia, por ser um deus ligado à cura. Esse deus, como vemos, é uma constante entre vários sofistas e também está presente nas honras de Apolônio que, como já mencionamos neste capítulo, viveu no templo de Asclépio em Egas na época de início dos seus estudos filosóficos, onde fazia o próprio deus feliz por ser testemunha das suas curas a enfermos (VA, I, 8). No entanto, voltando à comparação de Apolônio e Apuleio, um dos pontos mais interessantes está, conforme nossas reflexões, na defesa da acusação de práticas mágicas de ambos, a de Apuleio, já mencionada por nós no segundo capítulo da Tese, escrita por ele próprio e dada a ler anos mais tarde à defesa diante do procônsul no discurso Apologia, e a de Apolônio apresentada na VA. Apolônio é acusado, de maneira geral, de ser um feiticeiro ( – goes), mas como no caso de Apuleio vários pontos são, conforme mostra Filóstrato, levados a tribunal nessa acusação. Na VA (VII, 20) temos a apresentação dos seguintes pontos de acusação contra Apolônio:36 – sua maneira de vestir e sua forma de viver; – ser objeto de culto por pessoas; – ter feito uma previsão em Éfeso sobre uma praga;37 – ter falado contra o imperador Domiciano, algumas vezes em privado, outras com a intenção de que os deuses ouvissem; – e a mais grave de todas, segundo o texto: ter realizado o sacrifício de um menino para Nerva, que, como sabemos, será o próximo imperador depois de Domiciano. Como percebemos, embora os aspectos mágicos que envolvem Apolônio estejam presentes na acusação; especialmente nos pontos que dizem respeito a sua forma de viver que o preparava para uma vida ascética e lhe dava condições de fazer previsões (VA, VIII, 5), seu poder de fazer previsões e sua capacidade de fazer rituais para um governante; há outros pontos que dizem respeito diretamente à pessoa do imperador. O fato de ter falado contra ele, 36 Em VA, VIII, 5, o biógrafo comenta que houve outros pontos de acusação, mas que o acusador, Domiciano, se centrou nesses, que considerava conclusivos e difíceis de contestar. 37 Previsão descrita em: VA, IV, 10. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 206 obviamente, era algo de valor político. No entanto, devemos perceber que mesmo os pontos de acusação que parecem apenas religiosos extrapolavam na Antiguidade dessa conceituação, sendo que não podemos, para a sociedade do Principado, separar política de religiosidade, pois eram esferas que se interpenetravam. Dessa forma, acreditamos que a acusação contra Apolônio de Tiana tenha sentido em torno das relações de poder que envolviam o imperador Domiciano e o personagem de um mago, poder causado pelo saber do mago e, consequentemente, sua capacidade em exercer um poder, o que causa temor no imperador. Como Apuleio, Apolônio advoga em causa própria frente ao tribunal. A defesa de Apolônio, mostrada por Filóstrato, segue como uma defesa da filosofia. No primeiro trecho citado a seguir, como podemos ler, Apolônio mostra a Domiciano que ao acusá-lo, o imperador se opõe à filosofia: Na causa entre mim e o imperador, quem será o juiz? Prosseguiu Apolônio. Pois vou demonstrar que ele cometeu injustiça contra a filosofia (VA, VIII, 2). O litígio entre nós, imperador, se refere a questões graves. Pois vós vos envolveis em questões que nunca nenhum imperador se havia envolvido e dais assim a impressão de que tendes má vontade contra a própria filosofia, sem nenhum motivo justo (VA, VIII, 7.1). Que grau de verdade alcança essa acusação fica evidente no testemunho destes senhores, pois eu não estava nos subúrbios, mas na cidade; não estava fora das muralhas, mas em uma casa; não estava com Nerva, mas com Filisco; não estava degolando, mas suplicando por uma vida; não estava em favor do Império, mas da filosofia [...] (VA, VIII, 7.15). Filóstrato também mostra Apolônio comparando sua defesa com a do filósofo Sócrates, que foi acusado de corromper a juventude ateniense (VA, VIII, 2, 7). Como já tratamos no segundo capítulo, Apolônio é, no texto filostratiano, um sábio sendo suas práticas de caráter mágico-religioso parte de sua sabedoria, portanto ele é um teurgo, para Filóstrato, é aquele que tem seus conhecimentos revelados pelos deuses pela ascese divina. Nosso sofista retira de seu protagonista, dessa forma, qualquer ligação possível com a prática de magia considerada negativa, charlatanesca e punida por lei pelos romanos, a goetia, e faz uma verdadeira defesa da teurgia como forma de conhecimento: Tomemos, no entanto, em consideração, outros argumentos: os feiticeiros ( – goes) – e eu os considero os mais infortunados dos homens – recorrem uns ao interrogatório de espíritos, outros a sacrifícios bárbaros, outros a pronunciar algum verso ou a untar-se com algo, afirmando que CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 207 podem alterar o curso do destino.38 Muitos deles, submetidos a acusações, reconhecem ser expertos em tais procedimentos. Mas nosso homem se submetia aos ditados das Moiras e pressentia, como necessário, determinados acontecimentos, ele os conhecia de antemão, não por praticar a goetia, e sim por revelação divina (VA, V, 12). Na passagem abaixo, por exemplo, pela capacidade de Apolônio em se libertar das correntes que o prendiam durante a prisão ordenada por Domiciano, ele é visto como alguém com capacidades sobre-humanas, mas nunca como um mago no sentido negativo que isso poderia ter naquele contexto: E tendo falado isso, tirou a perna das correntes e disse a Damis: – Dei-te uma prova de minha liberdade, assim tem valor. Foi então que Damis se deu conta, pela primeira vez, da natureza de Apolônio, que era divina e sobre-humana, pois sem ter celebrado nenhum sacrifício – como fazê-lo se estava na prisão? – nem ter realizado orações, sem nada dizer, havia se libertado das correntes e, após voltar a colocar suas pernas nelas, voltava a se comportar como um prisioneiro. As pessoas mais simples atribuem tais feitos a feiticeiros, e o mesmo lhes acontece em várias ações humanas. À arte destes recorrem alguns atletas e também os competidores desejosos de vencer, mas estes em nada contribuem para a vitória, mas a vitória que obtêm por acaso, esses desgraçados, desmerecendo a si mesmos, atribuem a esta arte e não desconfiam dela, nem sequer quando vencidos [...]. Frequentam também as portas daqueles os comerciantes, e podemos encontrá-los atribuindo o êxito de seus negócios aos feiticeiros e as falhas a sua própria mesquinharia e a não terem realizado os sacrifícios como deviam. E fazem uso dessa arte especialmente os apaixonados [...]. As formas como produzem sinais no céu e realizam outros prodígios maiores, também foram incluídas em livros por alguns que deram gargalhadas dessa arte. Assim que a mim me basta denunciá-los, para que os jovens que se relacionam com eles não se habituem a tais práticas. Já perdi muito tempo nesta digressão em meu discurso. Por que eu iria me ocupar mais com um assunto condenado pela natureza e pela lei? 39 (VA, VII, 3839). Também nessa passagem podemos perceber Filóstrato afastando de Apolônio ligações com a goetia, em meio à autodefesa do tianeu frente a Domiciano: Quanto a essa arte, todos seus praticantes são gananciosos, pois as engenhosas demonstrações que fazem, as fazem para obter benefícios e gastam muito dinheiro enganando os que desejam alguma coisa, lhes Ao utilizarmos o termo feiticeiro estamos nos referindo ao – goes, os praticantes da magia considerada nefasta na época do Principado. 39 Outras passagens da obra poderiam configurar Apolônio e seus poderes como um feiticeiro, mas com essa longa crítica aos aspectos negativos da magia, além da defesa, em todo o texto, de Apolônio como divino, percebemos que Filóstrato livra seu biografado de ser considerado um – goes. Uma passagem interessante, nesse sentido, é quando Apolônio desaparece do tribunal ante Domiciano, após ser absolvido da acusação de práticas mágicas (VA, VIII, 5). 38 CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 208 convencendo de que são capazes de tudo. Desta forma, vê alguma riqueza em mim, imperador, para acreditar que me dedico a essa falsa sabedoria? Além disso, vosso pai me considerava acima do desejo de riqueza (VA, VIII, 7.3). Sabemos que no século III, justamente no período em que Filóstrato desenvolve sua produção escrita, com as Sentenças de Paulo, jurisconsulto contemporâneo a Caracala, as artes mágicas e divinatórias atraem uma atenção especial, e até mesmo a posse de livros mágicos passa a ser proibida. Paulo determina que todos os culpados de praticarem magia, feiticeiros, adivinhos, astrólogos e seus consulentes, deveriam ser expostos às feras ou crucificados ou, ainda, queimados vivos. Também seriam punidos aqueles que ministrassem poções abortivas e filtros amorosos e aqueles que praticassem sacrifícios humanos, sendo que sob estes últimos recaía a pena de morte (SILVA, G. V., 2003, p. 230-231). Consideramos que o acirramento legal das hostilidades contra praticantes de magia no período severiano pode ter sido um dos fatores que fez Filóstrato se preocupar tanto em defender seu Apolônio e reforçar o caráter teúrgico e divino de suas práticas.40 Mas o que nos interessa propriamente na discussão sobre as práticas mágicas e a defesa da acusação de Apulônio é compará-la com a defesa de Apuleio.41 Em sua Apologia, Apuleio também recorreu à filosofia para se defender da acusação de praticar magia e trouxe à tona, em diferentes pontos da defesa, suas especulações como filósofo místico e naturalista (rebatendo acusações relacionadas à magia e à sua imagem como filósofo) e como filósofo desprendido de preocupações com bens matérias (rebatendo acusações relacionadas ao casamento por interesses financeiros com a viúva Pudentila). Procurou, assim, demonstrar a importância da sua imagem como filósofo e convencer o juiz de sua inculpabilidade. A causa que Apuleio chama em defesa é a da filosofia: Confiado, sobretudo, neste principio, fico feliz por ter tido a sorte de ter a ampla possibilidade de defender a pureza da filosofia frente a ignorantes e provar minha inocência ante um juíz como tu (Apologia, I, 3). 40 No entanto, como destaca Silva (2003, p. 231), a magia e a adivinhação não constituem um problema de ordem política e religiosa a ponto de receber uma repressão ostensiva do Estado Romano no período severiano. 41 Apuleio é acusado de ter realizado práticas mágicas para se casar com uma rica viúva da cidade de Oea, na África Romana. A viúva em questão, Emília Pudentila, negava-se a casar-se novamente, tendo já contraído esponsais com o irmão de seu falecido marido, aliança desfeita antes de conhecer Apuleio. A acusação é feita legalmente pelo filho mais novo de Pudentila, embora Apuleio aponte outros nomes de envolvidos no processo de difamação e acusação contra ele, especialmente o nome de Emiliano, outro irmão do falecido marido de Pudentila. Os diversos pontos de acusação que caem sobre Apuleio foram reunidos e estudados por nós em nossa pesquisa de mestrado, por meio da análise da própria defesa e estruturação do discurso, em três categorias: 1) Pontos relacionados à imagem de Apuleio como filósofo, orador e homem público. 2) Pontos relacionados ao uso da magia e suas relações com as especulações filosóficas do acusado. 3) Pontos relacionados à possível aliança estabelecida com o casamento de Apuleio com Pudentila. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 209 Com efeito, assino a defesa não somente em minha própria causa, mas também em nome da filosofia, cuja majestade não admite a menor reprovação, como se tratasse da acusação mais terrível. E faço-o porque há pouco tempo os advogados de Emiliano [o acusador], com eloquência venal, disseram contra minha pessoa, particularmente, todas as invenções caluniosas que lhes ocorreram e, contra os filósofos em geral, todos demais tópicos que possam estar na boca dos ignorantes (Apologia, III, 6). Portanto, tanto Apuleio em sua defesa, quanto Filóstrato na de Apolônio usam a filosofia para legitimar as práticas de magia dentro dos limites que eram aceitos e para rebaterem as acusações. Cumpre ressaltar que o discurso de defesa de Apolônio apresentado por Filóstrato, não mencionado nas cartas da tradição, é considerado por alguns estudiosos, como Pajares (1979, p. 465) e F. W. Lenz (apud PAJARES, 1979, p. 465), como invenção filostratiana. Acreditamos que seja possível Filóstrato ter criado essa acusação e também sua defesa, uma vez que isso lhe dá mais oportunidades para defender seu biografado das nefastas práticas da goetia, especialmente diante da maior preocupação legal com a magia no período severiano, com as já aludidas Sentenças de Paulo.42 Além disso, Filóstrato pode ter usado a mesma estratégia de Apuleio por ter conhecimento de tal defesa com a leitura da Apologia, uma vez que Apuleio poderia ter chamado sua atenção por seu interesse em filósofos e sofistas. Também os sofistas biografados na VS estiveram envolvidos com difamações por estarem relacionados com a magia, como nos relata Filóstrato sobre Dionísio de Mileto e Adriano de Tiro.43 Sobre Dionísio, como já citamos, Filóstrato nos conta que as pessoas consideravam que esse sofista empregava artes mágicas frente aos seus alunos a fim de mostrar sua boa memória. Da mesma forma, Filóstrato defende o método chamado de caldeu, usado por Dionísio para ter boa memória, como algo sem qualquer ligação com a magia nefasta (VS, I, 523). Filóstrato também defende Adriano das difamações como feiticeiro: Morreu próximo dos oitenta anos e obteve grande fama, sendo na opinião de muitos considerado um feiticeiro. Mas, como eu já escrevi na parte sobre Dionísio,Ν umΝ homemΝ educadoΝ (π πα υ Ν – pepaideumenos) nunca se permitiria recorrer às artes de feiticeiros. Sou levado a pensar que, por narrar em seus discursos a vida e os costumes dos magos, foi-lhe atribuída tal denominação (VS, II, 590).44 42 Lembremos, como tratamos no segundo capítulo, que havia uma tradição em torno de Apolônio que o ligava às práticas de magia consideradas negativas e criticadas, já tendo o tianeu recebido críticas na documentação escrita que chegou até nossos dias em Luciano e Dião Cássio. 43 Filóstrato não esclarece se estas difamações viraram acusações de fato. 44 É interessante observarmos aqui que o termo usado para referir ao praticante de magia considerada negativa é Ν – goes,ΝenquantoΝoΝtermoΝ Ν – magos é citado de forma positiva relacionado às práticas de Apolônio que ao se ter contato com os magos persas não é considerado fazendo algo ilícito (VA, I, 25), embora tal contato CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 210 Embora muito ligados à religiosidade, ao culto aos deuses e, como vimos, também à magia, o saber do sofista de Filóstrato não era, entretanto, algo simplesmente fruto de revelação. Os sofistas filostratianos eram preparados por meio de técnicas voltadas para a arte de discursar. Filóstrato admira aqueles sofistas que tinham boa memória para decorar seus textos preparados anteriormente ou que tinham a habilidade da improvisação, mas o sofista era alguém que estudava a arte da oratória: Mais dotado aos estudos que ninguém, não descuidava as fatigas do trabalho e também continuava sua preparação durante as tertúlias, enquanto bebia e de noite, em seus momentos de insônia, pelo que os indolentes e frívolos o chamariamΝdeΝ“retorΝcheioέ”ΝἑadaΝpessoaΝsobressaiΝemΝumaΝcoisaΝeΝéΝmelhorΝ que outra em algum ponto; assim, um é melhor na improvisação, outro na preparação meticulosa do discurso, mas Herodes manejava todas as modalidades melhor que nenhum sofista [...] (VS, II, 564). Assim como os sofistas, Apolônio é mostrado por Filóstrato como alguém que estudou a arte retórica: “AosΝcatorzeΝanosΝseuΝpaiΝoΝlevaΝaΝTarso,ΝjuntoΝaΝEutidemoΝdeΝόeníciaέΝ EutidemoΝeraΝumΝbomΝretor,ΝqueΝlheΝensinavaΝeΝeleΝaprendiaΝcomΝseuΝmestreΝ[έέέ]”Ν(VA, I, 7). Apolônio é comparado aos retores em sua eloquência diante da defesa contra a acusação de praticante de magia: Mas a mim, que tenho presente que tipo de homem se trata, me parece que o sábio não manifestaria seu próprio caráter de forma sã se buscasse simetrias e antíteses, e fizesse vibrar sua língua ao modo de serpentes. Bem, estas coisas são características dos retores, e nem esses precisam disso! Pois nos tribunais, a habilidade evidente podia inclusive prejudicar, como se fizesse os juízes cair em uma armadilha (VA, VIII, 6). No entanto, em outra passagem Filóstrato apresenta Apolônio negando ser tão retórico em sua maneira de falar: A filosofia de Dião parecia, a Apolônio, muito retórica e organizada para adular, razão pela qual lhe disse: – Trata de agradar com a tua flauta e com a lira, e não com tua palavra. seja apresentado com certo receio, conforme interpretamos no segundo capítulo. Nesta passagem Filóstrato nos mostra as razões pelas quais ele poderia ter de fato receio ao mostrar Apolônio se relacionando com os magos persas,ΝumaΝvezΝqueΝaΝmagiaΝpersaΝpodiaΝserΝfacilmenteΝinterpretadaΝcomoΝaΝnefastaΝgoetiaέΝτΝusoΝdoΝtermoΝ Ν – goes era mais comum no vocabulárioΝáticoέΝDessaΝmaneira,ΝaoΝusarΝoΝtermoΝ Ν– magos, vemos claramente as intenções de Filóstrato em livrar seu personagem das interpretações negativas das práticas mágicas (ABRAHAM, 2014, p. 269). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 211 E muitas vezes nas cartas a Dião censurava-o por essa demagogia (VA, V, 40). Segundo Sidebotton (2009, p. 72), negar que tinham um esquema planejado de falar era uma das características dos filósofos, mas na prática eles eram altamente treinados nas artes da oratória e da retórica. E como lemos na VS, alguns frequentavam as escolas dos sofistas, como é o caso dos filósofos alunos de Cresto de Bizâncio (VS, 591). Dessa forma, nas passagens supracitadas da VA, Filóstrato busca atribuir a seu biografado uma característica dos filósofos, mas não deixa de mencionar, logo no começo da obra, que a retórica, elemento central de identificação dos sofistas, fez parte de sua formação. Outro elemento sempre presente como marca de identificação dos sofistas da VS e Apolônio são as viagens. As viagens dos sofistas filostratianos eram variadas, desde pequenos deslocamentos, até viagens para Roma e outras localidades mais distantes, como o caso da viagem de Nicetes de Esmirna até o imperador Nerva, que se encontrava nos Alpes: A viagem desse homem para além dos Alpes e do Reno aconteceu por ordem do imperador e a causa da viagem foi a seguinte: um cônsul de nome Rufo inspecionava a rendição de contas públicas de Esmirna com más intenções. Nicetes se havia desentendido com ele asperamente em um assunto e lhe disse: – Adeus. E não voltou a se apresentar ante o funcionário. Enquanto o cônsul tinha autoridade sobre uma única cidade, não pensou que havia sofrido uma humilhação, mas quando aquele foi encarregado de estar à frente das tropas da Gália lembrou-se o problema [...] e apresentou ante Nerva queixas contra Nicetes. O imperador lhe respondeu: – Ouvirás a defesa do próprio e se o considerares culpado, lhe darás um castigo [...]. Por essa razão Nicetes foi até o Reno e à Gália e, ao comparecer para sua defesa, comoveu de tal forma a Rufo, que derramou lágrimas por Nicetes em maior quantidade que as águas que lhe havia concedido para a defesa (VS, I, 512). Eudoxo de Cnido tinha fama de sofista no Helesponto e na terra dos ascetas nus (gimnosofistas), a Etiópia (VS, I, 484). Alexandre Peloplatão exerceu atividades em Antioquia, sua terra natal, em Roma, em Tarso e em todo o Egito (VS, II, 571), chegando até o lugar onde viviam os gimnosofistas. Assim como esses dois sofistas que tiveram relação com a terra dos gimnosofistas, na VA também temos a descrição da estadia de Apolônio de Tiana entre aqueles sábios ascetas etíopes (VA, VI). Alexandre Peloplatão também viajou para a Gália como secretário imperial e pela Itália, onde talvez tenha morrido (VS, II, 575). Já Aspásio de Ravena acompanhou Caracala em diversas viagens (VS, II, 627). O próprio Filóstrato, como mostramos no primeiro capítulo, nos deixa pistas em suas obras de ter viajado com imperadores, chegando a afirmar na VA que viajavaΝmuito,ΝtendoΝ“corridoΝaΝmaiorΝparteΝdaΝextensãoΝdaΝTerra”Ν(VA, VIII, 31). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 212 Élio Aristides viajou pela Grécia, Roma e Egito (VS, II, 582), lugares por onde Apolônio também passou. Ptolomeu de Náucratis viajou por muitas cidades e teve contato com muitos povos (VS, II, 596), também como o Apolônio da VA. Em vista disso, os sofistas da VS podem ser reconhecidos como possuindo atributos para estabelecer a comunicação e integração dentro do Império Romano, como Apolônio de Tiana nos é apresentado na VA. Assim, podemos considerar que Apolônio é aquele que se move perfeitamente na construção do autor, pois viaja para localidades onde estiveram diversos sofistas filostratianos, viajando, no entanto, muito mais do que qualquer um deles é descrito na VS. Ao pensar nas intenções de Filóstrato em se ligar a Júlia Domna e a seu círculo, Bowersock (1969, p. 109) reflete sobre a questão da mobilidade destes intelectuais e os contatos em diversas localidades do Império, especialmente na parte oriental, acreditando que filósofos e sofistas exerciam muitas atividades nas cidades por onde passavam, não se preocupando em estarem ligados à imperatriz para adulá-la. Dessa forma, conforme o historiador supracitado, a mobilidade geográfica e cultural é uma das primeiras características da Segunda Sofistica na história. Notamos que as viagens são a marca central de Apolônio de Tiana na VA, pois por ser justo, sente segurança em viajar por qualquer lugar do mundo conhecidoμΝ “[έέέ]Ν paraΝ osΝ queΝ trabalhamΝ deΝ maneiraΝ justa,Ν todoΝ lugarΝ éΝ umΝ lugarΝ seguro,Ν eΝ oΝ mar não o é apenas para aqueles que querem navegar, mas também para os que tentam cruzáloΝaΝnado”Ν(VA, V, 17). Com fama e influência nas grandes cidades do Oriente do Império Romano, como Atenas, Esmirna, Eféso, os grandes sofistas passavam pelo serviço civil romano e ofereciam seus prestigiados serviços como professores em Atenas e Roma, o que pudemos perceber claramente na questão das viagens e circulação de sofistas filostratianos e de Apolônio, que também é mostrado como professor, estando sempre rodeado de seus discípulos em suas viagens na VA, como podemos ler, entre outras (VA, I, 16; V, 11; VI, 3, 11; VIII, 8), nesta passagemμΝ“Assim,ΝrevelouΝaΝseusΝdiscípulos,ΝqueΝeramΝsete,ΝsuaΝdecisão”Ν(VA, I, 18). Anderson (1986, p. 126-127) nota também muitas semelhanças entre situações da biografia de Apolônio na VA com a biografia do sofista Herodes, o ático, na VS. Concordamos com a existência de paralelos em determinadas situações. Assim, lemos que Herodes envia uma mensagem ao governador Avídio Cássio, repreendendo-o sobre sua revolta contra o imperador Marco Aurélio (VS, II, 563). Apolônio também se envolveu em um caso semelhante ao negar-se a ajudar um governador de província como intermediador do deus Asclépio, descobrindo três dias depois que o mesmo estava envolvido em uma conspiração contra os romanos (VA, I, 12). Herodes é acusado de estar ligado em um complô contra Marco CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 213 Aurélio (VS, II, 560), o que, segundo Filóstrato, não é verdade. Apolônio é acusado de cumplicidade com Nerva contra Domiciano (VA, VII, 9). O pai de Herodes consulta Nerva sobre o que fazer com um grande tesouro que havia encontrado (VS, II, 548).45 Apolônio dá um conselho sobre o mesmo assunto ao rei da Pártia, quando este precisa servir como árbitro sobre o encontro de um tesouro (VA, I, 38). Ambos, Apolônio e Herodes, são envolvidos em problemas acerca do encontros de tesouros e o discurso de Apolônio vai ao encontro da ideia de filantropia, qualidade que Filóstrato mais admira em Herodes (VA, IV, 3; VS, II, 547). E ambos os personagens se envolvem em debates sobre a construção do canal no Istmo de Corinto (VA, V, 24; VS, II, 551). Além disso, Apolônio sai da acusação frente a Domiciano sem ser punido, como Herodes com relação à acusação frente a Marco Aurélio. O prefeito do pretório Eliano insiste com Domiciano que os sofistas, incluindo Apolônio como tal, anseiam pela morte (VA, VII, 16), e uma observação semelhante é feita sobre Herodes pelo prefeito do pretório Bassaeo ao imperador Marco Aurélio (VS, II, 561). Acrescentamos às observações de Anderson nosso entendimento de que, como Apolônio aparece sempre sendo defendido ao longo de toda a VA de qualquer situação que possa denegrir sua imagem, também Herodes recebe elogios e a defesa total de Filóstrato de situações que colocassem sua boa reputação de grande sofista em dúvidas. Exemplo disso acontece quando Filóstrato menciona que Peregrino Proteu ofendia e injuriava Herodes, tratando-o como um rústico que possuía linguagem bárbara (VS, II, 563). Devemos lembrar que a biografia de Herodes é a maior da VS, denotando o valor que esse sofista teve para nosso autor e, concordando com Kemezis (2006, p. 31), Herodes é o melhor sofista de todos segundo Filóstrato, uma vez que é aquele que se relaciona perfeitamente com o imperador (neste caso Marco Aurélio), característica que a nosso ver também aparece na relação de Apolônio com Vespasiano na VA. Voltando às observações de Anderson (1986, p. 127) sobre a proximidade de Apolônio com os sofistas, este historiador aponta que até perto da hora da morte há paralelos, como no caso de Polemão (VS, II, 539) que antes de morrer deixa um discurso escrito defendendo Esmirna, levado para ser lido pelo imperador, que concede à cidade os benefícios visados. Também Apolônio deixa com Damis uma carta ao imperador Nerva antes de desaparecer, contendo segredos que o destinatário precisava conhecer (VA, VIII, 28). Anderson vê nessas duas passagens uma espécie de presságio do sofista Polemão e de Anderson (1986, p. 127) menciona que o imperador consultado é AntoninoΝ Pio,Ν masΝ όilóstratoΝ registraμΝ “τΝ imperador,ΝgovernanteΝnaquelaΝépoca,Νσerva,ΝlheΝrespondeuΝ[έέέ]”Ν(VS, II, 548). Portanto, há um erro na leitura de Anderson sobre quem foi o imperador consultado. 45 CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 214 Apolônio sobre suas mortes, sendo precavidos e deixando, por isso, algo escrito sobre o que precisavam dizer aos imperadores. Podemos acrescentar ainda, ao que comenta Anderson, que os sofistas, assim como Apolônio, também aparecem ligados aos presságios. Além dos elementos expostos acima, que mostram identificações de Apolônio e os sofistas da VS e aspectos em torno de Apuleio, como comentamos ao iniciar este subcapítulo, exporemos a seguir algumas características em comum entre Apolônio, Dião de Prusa e Élio Aristides. Dião de Prusa viveu por volta dos anos 40 e 115 d.C. e é conhecido também como Dião Crisóstomo e Dião Cocceiano.46 Nasceu na província do Ponto-Bitínia e compôs sua produção literária durante o governo dos imperadores Vespasiano, Tito, Domiciano, Nerva e Trajano. Estudiosos consideram que Dião tem uma primeira fase de seus escritos voltada para os discursos sofísticos, para em seguida dedicar-se à filosofia, embora Filóstrato não faça essa separação na VS. É um dos intelectuais mais admirados por Filóstrato na VS, obra em que elogia, como vimos, sua perfeição em tudo o que fazia (VS, I, 487). Acreditamos que é justamente por esse ideal de perfeição que Filóstrato reconhecia em Dião de Prusa que podemos apontar semelhanças em algumas atitudes do protagonista da VA com Dião Como observado por Anderson (1986, p. 148) nos Discursos I, II, III e IV, Dião se mostra com uma figura greco-romana com as mesmas facetas filosóficas do Apolônio filostratiano, ambos se opondo a Domiciano e à filosofia eclética cínico-estóica.47 No Discurso XII, Dião instrui seu público sobre os deuses utilizando-se de exemplos sobre arte, como Apolônio o faz na VA (II, 22) em diálogo com seu discípulo Damis. Uma analogia mais interessante entre Apolônio e Dião está no papel de intermediador de conflitos que tiveram alguns sofistas.48 No Discurso XLVI, por exemplo, Dião de Prusa nos relata sobre sua atuação ao acalmar os ânimos da população de Prusa irritada com a subida de preços do trigo (GASCÓ, 1990, p. 38).49 Também o sofista Loliano de Éfeso parece ter servido em uma situação similar em Atenas, segundo nos testemunha o próprio Filóstrato: 46 Preferimos chamá-lo de Dião de Prusa por ser essa a forma como Filóstrato o chama na VS (I, 487). Apolônio se mostra contra Domiciano nos Livros VII e VIII e seu principal oponente é o filósofo estoico Eufrates (VA, I, 13; V, 28, 33, 37-38; VI, 28; VII, 9, 14, 36; VIII, 3, 7.16). 48 Esse papel será mais bem desenvolvido por nós no próximo capítulo, no entanto, não poderíamos deixar de mencioná-lo aqui, uma vez que é a ligação fundamental entre Apolônio e os sofistas, segundo nossa compreensão. 49 Neste discurso Dião de Prusa também se defende de ser culpado pela população de Prusa pela subida de preços do trigo. 47 CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 215 Reprovava, em uma declamação, a Leptines, uma vez que por culpa de uma lei por ele criada, o grão vindo do Ponto não chegou até os atenienses e, no momentoΝculminante,ΝdisseμΝ“– A boca do Ponto está fechada por uma lei e poucas sílabas impedem o aprovisionamento de Atenas; o mesmo poder que δeptinesΝtemΝcomΝsuaΝlei,ΝtemΝδisandroΝlutadoΝcomΝseusΝbarcos”Ν(VS, I, 527). Assim também faz Apolônio quando resolve o problema de abastecimento de trigo na cidade de Aspendo, na Panfília (VA, I, 15). Dzielska (1986, p. 44) encontra outro paralelo entre Dião de Prusa e Apolônio, levando-a a pensar que Filóstrato poderia estar muito envolvido em saber sobre Dião de Prusa para escrever sua biografia na VS quando escrevia a VA, estando, portanto, conforme as reflexões dessa historiadora, envolvido com a vida de Dião ao escrever sobre Apolônio. Na opinião da estudiosa há, neste sentido, uma continuidade nas duas obras de Filóstrato. O paralelo que aponta Dzielska é sobre a perseguição e expulsão de Roma que Dião sofreu por Domiciano, relatada no Discurso XIII, sobre seu desterro. Domiciano é o mesmo imperador considerado tirano que acusa Apolônio como praticante de magia e que é descrito na VA com grande hostilidade (Livros VII e VIII), acusação que, como tratamos, pode ter sido uma criação de Filóstrato. Outro tema recorrente em Dião de Prusa, e que pode ser encontrado nos atos de Apolônio na VA, é a questão do papel desses intelectuais na busca da concórdia – Ὁ α, homonoia – entre as cidades gregas. Desta forma, seguindo sugestões de Pajares (1979, p. 231), que observou haver semelhanças no discurso de Apolônio sobre a concórdia em Esmirna (VA, IV, 8), verificamos que também Dião pronunciou vários discursos sobre essa temática, tais como os de número XXXVIII, XL, XLI e XLII. No Discurso XXXVIII, o sofista clama aos habitantes da cidade bitínica da Nicomédia pela concórdia com relação à cidade vizinha de Niceia. O Discurso XL é pronunciado por Dião em sua cidade, Prusa, pedindo a paz com os habitantes de Apameia. Nele vemos Dião de Prusa sendo chamado pelos habitantes de Prusa para resolver conflitos como uma espécie de intermediador, assim como Apolônio também é chamado para intermediar e resolver o problema de abastecimento de trigo em Aspendo, por exemplo, na VA (I, 15), como citamos acima. Já no Discurso XLI, Dião de Prusa discursa em Apameia sobre a importância da concórdia. No seu discurso em Esmirna, no entanto, Apolônio pede pela concórdia interna dentro dessa cidade e não trata, como nos discursos de Dião, da rivalidade entre cidades, propriamente, embora no Discurso XL (16-18), Dião também trate da concórdia interna em Prusa. Também Élio Aristides discursou em busca da concórdia entre as cidades gregas, como podemos ler em seu Discurso XXIII. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 216 Gascó (1990) mostra que foi comum no período imperial romano encontrar muitas cidades gregas em conflito umas com as outras, como as rivalidades entre Niceia e Nicomédia, Esmirna e Éfeso, por exemplo. O principal ponto dessas rivalidades era a disputa por receber mais benefícios dos imperadores. O papel dos sofistas em tais rivalidades era defender determinada cidade e tentar realizar, de maneira geral, a concórdia entre elas para evitar conflitos com a administração imperial. Apolônio não aparece na VA defendendo nenhuma cidade específica, mas todas as cidades que eram, na visão de Filóstrato, reconhecidas como gregas. É assim que interpretamos a defesa de Apolônio, de que as cidades gregas deviam ser governadas por procônsules de cultura helênica (VA, V, 36). Gascó (1990, p. 22-23) reconhece a possibilidade da mesma posição de defesa dos gregos contra o mando dos que não possuíam as raízes helênicas nas represálias a um governador da Bitínia, provavelmente Vareno Rufo, no Discurso XLIII, de Dião de Prusa. Semelhança parecida nos temas de discurso de Apolônio e Dião de Prusa está nas conferências que ambos pronunciam na cidade de Alexandria, capital da província romana do Egito. Nessa cidade tanto Apolônio, quanto Dião, censuram costumes de corrida de cavalos: Como Alexandria estava muito atraída pelas corridas de cavalos e seus habitantes frequentavam muito os hipódromos para esse espetáculo, sendo que chegavam a matar-se, Apolônio lhes dirigiu um conselho com esse propósito, quando, após entrar em um templo disse: – Até quando seguireis morrendo? Não por vossos filhos, nem pelos templos, mas para contaminar os recintos sagrados ao chegardes cheios de sangue coagulado, matando dentro das vossas muralhas? Segundo parece, Troia foi saqueada por um cavalo apenas, o que chocou os aqueus, mas a vós, vos subjugam carros e cavalos, e por culpa deles não é possível viver pacificamente. (VA, V, 26). Por essa razão, portanto, que eu estava certo em dizer que vos falta seriedade, pois de fato não sois sérios, nem mesmo com quem estão familiarizados, e muitas vezes vêm pessoas ante de vós na forma de: mímicos e bailarinos que dobram agilmente os pés, homens que cavalgam em velozes cavalos, aptos a se mexerem [...]. Isso na verdade é a natureza do que se vê regularmente aqui, e há interesses em coisas nas quais é impossível ver inteligência, prudência, disposição ou a devida reverência aos deuses, mas é uma disputa apenas estúpida, uma ambição desenfreada, uma tristeza vã, uma alegria sem sentido, uma zombaria e uma extravagância. Ao dizer essas coisas, eu não estou tentando desviar-vos de tais divertimentos e passatempos populares ou propor uma lei para colocar um fim a eles – eu deveria estar louco para tentar isso – mas eu estou pedindo, que, assim como vós vos dedicais rapidamente e constantemente a esse tipo de coisa, então deveis, finalmente, ouvir um discurso honesto e adotar a franqueza, cujo objetivo é o vosso próprio bem-estar (DIÃO DE PRUSA, Discurso XXXII, 4-5). CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 217 Também devemos observar que Filóstrato, por meio de seu Apolônio, compara Alexandria a Troia na mesma passagem citada da VA, como Dião em relação à questão dos cavalos, fazendo uma metáfora entre a destruição e Troia pelo cavalo de Troia e a destruição moral de Alexandria pelos costumes – no caso a corrida de cavalos considerada, violenta por ambos: Por isso temo que venhais a parecer perecer como os troianos – se me é permitido a observação banal de que Troia também foi destruída por um determinado cavalo, no entanto, enquanto os troianos talvez tenham sido aprisionados por um único cavalo, vossa captura resulta do trabalho de muitos cavalos (DIÃO DE PRUSA, Discurso XXXII, 88). Da mesma forma que Dião de Prusa, Apolônio aparece na VA como um conselheiro moral ao povo de Alexandria. A comparação entre estes discursos é inevitável. Trapp (2004, p. 123) acredita que Filóstrato faz essa apresentação de Apolônio de maneira a nos convidar para a comparação, especialmente porque logo na sequência do discurso apresenta Apolônio em diálogo com Dião de Prusa, considerado amigo do tianeu na VA, e com o filósofo Eufrates, diante do imperador Vespasiano. Trapp (2004, p. 119) considera que em outros discursos de Dião, como o destinado aos habitantes de Rodes, por exemplo, há uma mensagem similar e também uma proposta moral, mas que neste, voltado para os habitantes de Alexandria, o sofista apresenta um brilho especial, sugerindo que há neste discurso uma esperança a mais de Dião acerca dos alexandrinos e uma ideia comum no período de que a cidade era um lugar inconstante e marcado por rebeliões, deslealdades e ilegalidades. Como exemplo disso, o autor cita uma carta ao imperador Adriano, transmitida na História Augusta. O que nos parece é que Filóstrato concordava com Dião de Prusa em suas percepções sobre Alexandria, transmitindo uma imagem muito similar na VA. Outro discurso de Dião de Prusa que parece ecoar na VA é seu Elogio da cabeleira. Nele, Dião faz uma defesa do cabelo comprido. Apolônio, diante de Domiciano, defende seu cabelo comprido e despenteado como uma defesa do modo de viver dos filósofos (VA, VIII, 7. 6). Antes dessa defesa do cabelo comprido, Apolônio defende sua forma de vestir-se, sua abstinência pitagórica, sua recusa à riqueza e as práticas religiosas típicas de sua filosofia. Dião chama para sua defesa o passado grego, mostrando que os espartanos na Batalha das Termópilas tinham seus cabelos compridos. Apolônio também menciona que Leônidas, o rei de Esparta na ocasião da Batalha das Termópilas, tinha longa cabeleira: E parece-me que os espartanos também não ignoraram uma questão de tamanha importância, pois naquela ocasião memorável, quando de sua CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 218 chegada antes da grande e terrível batalha, em um momento em que sós e isolados dos outros gregos foram suportar o ataque do grande Rei, em número de trezentos, eles se sentaram e arrumaram seus cabelos (DIÃO DE PRUSA, Elogio da cabeleira). Também o rei de Esparta, Leônidas, deixou seu cabelo crescer por sua virilidade e por parecer respeitável a seus amigos e terrível para os inimigos. Por isso os espartanos têm o cabelo comprido, por exemplo dele e não menos pelo de Licurgo e Ifito (VA, VIII, 7.6). Por fim, devemos notar que Dião de Prusa manteve relações bem próximas com alguns imperadores romanos – Vespasiano, Nerva e Trajano – ao que ele alude no Discurso XL (BOST-POUDERON, 2011, p. 95), quando menciona trocar cartas com um imperador romano. Apolônio, de maneira semelhante, mantém relações como conselheiro dos imperadores Vespasiano e Nerva, com os quais também troca cartas na VA. A relação de Apolônio com esses imperadores, no entanto, não aparece nas tradições de cartas que não são citadas na obra de Filóstrato, como tratamos no segundo capítulo, o que nos leva a considerar a possibilidade da criação filostratiana. Assim como pudemos ver semelhanças entre Apolônio e Dião de Prusa, encontramos similaridades entre o Apolônio da VA e Élio Aristides. Este sofista também figura entre os biografados de Filóstrato na VS (II, 581), recebendo uma biografia também um pouco mais longa que as demais, não sendo, no entanto, maior do que a de Herodes, o ático, professor de Aristides. Como sabemos, Aristides viveu desde por volta de 117 até cerca de 180, tendo nascido numa cidade chamada Adrianos, na região da Míssia, província da Ásia. Escreveu sua obra no período dos Antoninos. Um dos primeiros pontos, como mostra Anderson (1986, p. 125), é que Filóstrato narra que é Marco Aurélio que procura por Élio Aristides durante a estadia da corte na cidade de Esmirna, a fim de ouvi-lo discursar. Da mesma forma, é o imperador Vespasiano que é citado na VA indo até Apolônio de Tiana a fim de aconselhar-se com o sábio. Portanto, tanto Aristides, como Apolônio são tão bons intelectuais que são mostrados por Filóstrato como capazes de serem procurados por imperadores. Aristides manteve relação com Marco na Jônia, segundo ouvi de Damiano de Éfeso. O imperador se encontrava em Esmirna havia três dias e, não tendo notícias de Aristides, perguntou aos Quintílios se havia passado despercebida ao orador a multidão que lhe rendia homenagem. E eles responderam que também não o haviam visto. No dia seguinte, chegaram escoltando Aristides. O imperador, então, lhe perguntou: – Por que te vemos assim atrasado? – Senhor, disse Aristides, estava muito ocupado no estudo de uma questão e quando o pensamento se ocupa de algo não deve ser interrompido. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 219 Muito contente com o comportamento do sofista, tão sensível e compenetrado em seu trabalho, de novo o imperador lhe perguntou: – Quando te ouvirei? E Aristides respondeu: – Proponde-me um tema e amanhã me ouvireis (VS, II, 582, 583). Após se haver dirigido ao povo, o imperador, em termos nobres e conciliadores, sem se estender em um longo discurso, disse: – Agora está aqui o de Tiana? – Sim, lhe responderam, e nos fez melhores. – Como poderia ele entrevistar-se conosco? Prosseguiu. – Pois tenho muita necessidade desse homem. – Encontrar-se-á convosco no templo, disse Dião, pois combinou isso comigo para quando voltasse ali. – Vamos, disse o imperador, para fazer súplicas aos deuses e para nos reunirmos com varão tão nobre (VA, V, 27). A própria nobreza de caráter que é destacada pelo imperador em Apolônio, na passagem acima, aparece destacada pelo imperador em um sonho de Aristides sobre ele próprio e tal imperador:50 – Nós também agradecemos aos deuses por recebermos a atenção de um homem como tu. Pois pensamos que não és menor na arte da oratória. E o mais velho começou a dizer que era próprio dele ser nobre de caráter e perito na arte retórica (Discurso XLVII). Também em relação às semelhanças com a obra do sofista em questão, Anderson (1986, p. 147) observa que o ato de Apolônio frequentar, consultar e restaurar templos e ritos que haviam passado por modificações, muito comum, como notamos, em passagens da VA (I, 16; IV, 1, 23, 24), também é encontrado em Aristides. É assim que lemos em seu Discurso XLVII sobre sua decepção ao não encontrar uma antiga estátua no templo do deus Asclépio, vendo outra em seu lugar:51 Entrei pela porta e vi uma estátua diferente da antiga, com o olhar cansado. Estranhando, perguntei onde estava a antiga e alguém a colocou na minha frente. E ainda que não a reconhecesse por completo, ajoelhei-me rapidamente, Depois, dando a volta ao templo encontramos o sacerdote e eu comecei a lhe falar sobre isso: 50 Aristides não menciona que imperador aparece neste seu sonho, com o qual ele viaja junto nas imagens oníricas. 51 Esse discurso também é classificado como Discurso Sagrado I e faz parte dos chamados Discursos Sagrados, de Aristides. O objeto principal desses discursos são suas experiências com relação à cura e ao culto do deus Asclépio, ligadas a epifânias e imagens oníricas. Como sabemos pelo próprio Filóstrato (VS, 581), Aristides sofria de tremores nervosos, o que levou ao templo de Asclépio, em Pérgamo, na região da Míssia, em busca da cura. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 220 – Em Esmirna tive um sonho em que falava contigo sobre o templo, mas me calei porque o assunto era importante demais para mim. E agora, já faz um tempo, tive outro sonho sobre o mesmo assunto. Ao mesmo tempo tinha a intenção de falar com ele sobre o restabelecimento da estátua em seu antigo lugar (Discurso XLVII, 11, 12). É de Anderson (1986, p. 126), da mesma forma, a observação de que Aristides se mostrou contra as comédias no Discurso XXIX e Apolônio contra as pantomimas, advertindo a população de Éfeso, como podemos ler nas passagens a seguir, que buscamos na documentação mencionada: Uma destas práticas, que é muito agradável para a plebe, mas que desagrada as pessoas honradas, peço que seja abolida. Refiro-me aos insultos e às orgias diurnas. Por Zeus! Também devo acrescentar aquelas que se celebram pela noite e peço que não haja nem poetas, nem atores a praticá-las e que não se trate com leviandade o que nem deveria ser tratado (Discurso XXIX, 4). Não é necessário que o educador vá ao teatro e ali faça suas advertências. Esses lugares estão consagrados aos prazeres e a diversão. Mas, é claro, há lugares com estes mesmos nomes, nos quais se deve praticar a filosofia. E não se deve burlar de tais lugares, nem insultar em público livremente. É necessário, antes de qualquer coisa, que se guarde a vergonha, educando e insultando como homens livres (Discurso XXIX, 21). O primeiro discurso que dirigiu à população de Éfeso, da base do templo, não o fez como os socráticos, mas buscou dissuadi-los e separá-los dos demais, recomendando-lhes que se dedicassem unicamente à filosofia, tendo encontrado em Éfeso mais indolência e arrogância do que havia encontrado antes, pois estavam dominados por dançarinos e interessados apenas em contorcionismos, por toda a parte viam-se flautas, efeminados, pompas (VA, IV, 2). Anderson (1986, p. 147) compara Apolônio aos sofistas Libânio e Aristides, em relação à prática religiosa como parte do estilo de vida do π πα υ – pepaideumenoi.52 A prática religiosa de Apolônio está presente em toda a VA como cerne condutor da vida do protagonista em meio a sua filosofia pitagórica. Concordamos com tais apreciações em relação a Aristides, uma vez que a devoção desse sofista e suas práticas religiosas constantes podem ser percebidas em seus Discursos sagrados. Aristides chega a negar mais de uma vez as indicações médicas dos estudiosos de medicina da época, preferindo seguir as revelações de Asclépio, que lhe indicava o que fazer em relação às suas enfermidades (Discurso XLVIII, 56, 63). Portanto, neste ponto, a relação de Apolônio – citado como o intermediador de 52 Libânio foi um sofista atuante da cidade de Antioquia, na província da Síria (SILVA, E. M., 2012, p. 125). Viveu entre 314 e 394, cerca de cem anos depois de Filóstrato. CAPÍTULO 3 SOFISTAS E FILÓSOFOS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO | 221 Asclépio junto aos homens (VA, I, 9) – com Aristides, o fiel seguidor do mesmo deus, está estabelecida em nossa interpretação. Além das comparações que buscamos desenvolver neste subcapítulo de elementos que caracterizam Apolônio e os sofistas, por fim, Anderson (1993, p. 232) observou que algumas conversas entre Apolônio de Tiana e outros personagens da VA são apresentadas dentro dos modelos sofísticos, como nas supostas conversas entre Apolônio e o filósofo cínico Demétrio (VA, VII, 10), quando este é apresentado como Odisseu e Apolônio como Héracles, metaforizando a covardia e a braveza. Para Anderson, o que acontece nessa cena, expressa de forma sutil a ornamentação que caracterizava os discursos sofísticos. Desta forma, apresentamos como Filóstrato projetou em seu Apolônio características comuns dos sofistas. Buscaremos, no próximo capítulo, interpretar como o autor projeta – na sua construção de Apolônio – sua visão dos contatos político-culturais entre povos e o Império Romano, as fronteiras que separavam e uniam povos fora e dentro da diversidade que era esse Império, afirmando a identidade grega e marcando funções para os sofistas na administração do Império. CAPÍTULO 4 CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA 4.1 O Império Romano em que viveu Filóstrato: a dinastia dos Severos U m dos principais pontos discutidos pela historiografia sobre a dinastia dos Severos, que governou o Império Romano de 193 a 235, é o que esses imperadores significaram em termos de ruptura e continuidade em relação às dinastias anteriores, principalmente em relação à dinastia diretamente anterior, a dos Antoninos. Nesse sentido, tais debates buscam refletir sobre o que os elementos de ruptura ou continuidade podem nos mostrar sobre o Império Romano no momento histórico em questão. Não deixaremos de apresentar pontos importantes dessa discussão, uma vez que acreditamos que alguns deles são fundamentais para compreendermos as motivações e os anseios de Filóstrato ao escrever a VA e apresentar os contatos político-culturais de Apolônio pelas regiões por onde passou em suas viagens. Buscaremos dialogar com a historiografia moderna e também apresentar algumas observações a partir da análise documental das obras de Dião Cássio e Herodiano, importantes historiadores do período severiano.1 Antes de analisarmos esse contexto, cabe mencionar algumas informações sobre os dois historiadores da época dos Severos cujas obras serão tratadas. O primeiro deles, Dião Cássio, nasceu em Niceia (Bitínia), foi um intelectual da ordem senatorial que residiu em Roma e fez parte da corte imperial entre 200 e 210. Recebeu diversos sinais de prestígio político sob o governo de Heliogábalo e Severo Alexandre, os dois últimos imperadores da dinastia, chegando a dividir o consulado com este último em 229, sendo o segundo consulado do historiador. Foi governador de províncias, tendo seguido importante carreira política. Foi um dos amici, conselheiros, de Alexandre Severo (CROOK, 1975, p. 91). Sua obra História Romana é marcada por valores senatoriais, o que não podemos deixar de perceber ao mostrar suas considerações sobre o momento em que vivia. Já os aspectos biográficos do historiador Herodiano são bem menos conhecidos pela historiografia, que parte da interpretação de sua própria obra para deduzir dados sobre ele. A origem de Herodiano é incerta, havendo autores que o têm como nascido na Síria (MAZZARINO, apud GONÇALVES, 1996, p. 54) e outros a alguma cidade da Ásia Menor, em uma cidade da Anatólia (CASSOLA; TORRES ESBARRANCH; ROQUES apud 1 Em relação às obras de Filóstrato, especialmente a VA, faremos a análise nos subcapítulos posteriores. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 224 GONÇALVES, 1996, p. 54). A segunda posição é a mais provável, uma vez que há inúmeras referências e informações do escritor sobre as cidades da atual Ásia Menor.2 Herodiano viveu entre 180 e 250, ocupou cargos político-administrativos no Império (HERODIANO, História do Império Romano, I, 2, 5), mas cargos de menor importância do que Dião Cássio, e escreveu os oito livros da História do Império Romano de 180 a 238. Mazzarino (apud GONÇALVES, 1996, p. 56) julga ser Herodiano um liberto, e considera-o um escritor de corte da época dos Severos, assim como podemos considerar Dião Cássio e Filóstrato que também tinham proximidades com a corte severiana. Certamente, a posição subalterna de Herodiano em funções político-administrativas, em comparação a Dião e Filóstrato, marcará seus escritos, o que devemos destacar. No entanto, não estamos pensando na obra de Herodiano como refletindo valores das camadas populares, uma vez que, como próximo à corte imperial, sua visão vai ao encontro de valores das elites, especialmente dos senadores romanos.3 O primeiro imperador da dinastia dos Severos foi Septímio Severo,4 que chegou ao poder após a crise sucessória iniciada com a morte do imperador Cômodo em 192, tendo como consequência, uma séria guerra civil no ano de 193, ano em que foram proclamados vários imperadores. Severo casou-se, em 180, antes de se tornar imperador, com Júlia Domna, que se tornou imperatriz romana com a ascensão do marido. Foi uma mulher de grande influência política durante o governo de Septímio e do filho Caracala. Foi também, como tratamos nos capítulos anteriores, personagem importante na inserção de Filóstrato na corte e, segundo o biógrafo, na própria escrita da VA. Diferentemente dos imperadores anteriores, todos com ascendentes na Península Itálica, Septímio Severo foi o primeiro imperador provincial sem ligações familiares com a Península Itálica.5 Nascido em Leptis Magna (atual Al-Khums, na Líbia), cidade da África Proconsular, vinha de uma família equestre, tendo atingido a ordem senatorial romana.6 Seguiu uma próspera carreira política, foi governador da Sicília e cônsul e governador da Panônia. Júlia Domna, por sua vez, era de uma nobre família da província da Síria 2 Em sua História do Império Romano, III, 2, 9, Herodiano parece mencionar as cidades da Bitínia como tendo alguma ligação com eleμΝ“EsseΝmesmoΝmal de inveja e rancor passou para nossas cidades mais prósperas. Assim, emΝἐitíniaΝ[έέέ]”έΝ 3 Para mais informações sobre Herodiano sugerimos a leitura de GONÇALVES, 1996. 4 Novamente, sugerimos ver os Anexos 12 e 13, esquemas genealógicos da família severiana. 5 Carrié e Rousselle (1999, p. 49) frisam que alguns imperadores Antoninos, Trajano e Adriano, também eram da província da Hispânia Bética, mas descendiam da Península Itálica. 6 Macrino, que interrompe temporariamente a dinastia severiana (217-218), também foi membro da ordem equestre antes de atingir a ordem senatorial (HERODIANO, História do Império Romano, V, 1, 5). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 225 (BABELON, 1957, p. 31, 34).7 Era filha de Caio Júlio Basiano, sumo-sacerdote do Sol, da cidade de Emesa (atual Homs, na Síria).8 A nobre família de Júlia Domna tinha fortes conexões com as cidades da região e grande participação na administração imperial romana (MILLAR, 1993, p. 304). Portanto, pela primeira vez na história do Império, temos uma dinastia formada por um imperador sem laços familiares com Roma e uma imperatriz de origem oriental. Certamente essa diferença será marcante no governo dos Severos, que não deixaram de criar formas de legitimidade para seu poder e, mais importante em nossa análise, foi marco característico das mudanças que o poder romano estava adquirindo, que refletirão na escrita de obras do momento, como a VA, especialmente no que tange à importância que Filóstrato deu em toda a obra às viagens de Apolônio e aos contatos dele tanto nas partes ocidentais, mas, preferencialmente, nas partes orientais, ressaltando a cultura grega e o passado grego como mediadores destes contatos. Um dos aspectos discutidos sobre a dinastia dos Severos como apresentando mudanças é o de alguns historiadores que a analisam como sendo uma Monarquia Militar. Como sabemos, Septímio Severo foi aclamado ao poder imperial pelo exército da Panônia, do qual ele era general, ou seja, os soldados conseguiram impor um imperador a Roma. Vejamos, então, o que mostra a documentação e como esses documentos foram lidos de duas maneiras distintas pela historiografia, ao longo dos anos. Dião Cássio (História Romana, LXXVII, 15, 2), em tom de crítica devido à sua posição senatorial, informa que antes de morrer Septímio aconselhou seus dois filhos, ἑaracalaΝeΝύetaΝqueμΝ“Vivei em harmonia, enriquecei os soldados e desprezai todos os outros homensέ”ΝτutraΝpassagemΝinteressanteΝdeΝDiãoΝἑássio,ΝnesseΝsentido,Νé quando ele comenta queΝἑaracalaΝdisseμΝ “σinguémΝ noΝmundoΝ deveΝterΝmaisΝdinheiroΝ do que eu, mas eu quero e devo dá-loΝaosΝsoldados”Ν(História Romana, LXXVIII, 10, 4). Ainda segundo Dião: Ele [referindo-se a Septímio Severo] foi acusado de tornar a cidade turbulenta com a presença de tantas tropas, de sobrecarregar o Estado com seus gastos excessivos e, acima de tudo, de colocar a esperança de sua segurança na força do exército, em vez de na boa vontade dos seus partidários no governo (História Romana, LXXV, 2, 3-4). 7 Dião Cássio (História Romana, LXVIII, 24) apresenta a imperatriz como sendo de origem plebeia e vulgar, o que, conforme Jean Babelon (1957, p. 35), deve ser interpretado como reação incômoda à prepotência da imperatriz. Gonçalves (2003, p. 332) também comenta a citação da História Augusta de Júlia como nobilem orientis mulierem, mostrando o problema de Dião Cássio em apresentar a imperatriz como de origem modesta. 8 Ver Anexo 18, mapa localizando as províncias romanas da África do Norte no final do século II e a cidade de Leptis Magna e Anexo 19, mapa localizando a província da Síria e a cidade de Emesa. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 226 Sobre a relação entre Caracala e os exércitos, Dião Cássio deixa entrever claramente sua visão senatorial: Agora, este grande admirador de Alexandre, Antonino [referindo-se a Caracala], gostava de gastar dinheiro com os soldados e manteve um grande número deles para lhe prestarem assistência, alegando uma desculpa atrás da outra e uma guerra atrás da outra. Mas ele fez com que isso desmoronasse seu negócio, despojou e triturou todo o resto da humanidade e os senadores não eram mais considerados importantes [...]. Em seguida, houve as condições que obrigavam a fornecer grandes somas em todas as ocasiões, isso sem receber qualquer remuneração e, algumas vezes, na verdade, a um custo adicional para nós em tudo o que ele fornecia ou concedia aos soldados [...] (História Romana, LXXVIII, 9). EΝemΝrelaçãoΝaΝώeliogábalo,ΝconhecidoΝcomΝváriosΝnomes,ΝDiãoΝinformaΝqueμΝ“AvitoΝ fez muitas promessas, não apenas para os soldados, mas também para o Senado e para o povo [έέέ]”Ν(História Romana, LXXX, 1, 3). Avito, também conhecido como Falso Antonino, assírio, Sardanápalo, ou mesmo Tiberino (esta última denominação recebeu depois de ter sido assassinado e jogado no rio Tibre), entrou em Antioquia um dia após a vitória e prometeu dois mil sestércios para cada um dos soldados que estavam com ele a fim de impedi-los de saquear a cidade (História Romana, LXXX, 1, 1). Desta forma, em Dião Cássio, como lemos, a importância do exército e a preocupação dos imperadores em recompensarem os soldados com dinheiro ficam claras, especialmente, no caso dos dois primeiros imperadores severianos, Septímio Severo e Caracala. Herodiano (História do Império Romano, III, 6) também comenta as palavras de Septímio voltadas ao exército, reconhecendo a importância deste em seu poder e também no de seu inimigo Albino e comenta que Septímio distribuiu uma grande quantia de dinheiro para seus soldados antes de avançar contra aquele inimigo. O historiador também mostra sua visão sobre a importância do exército quando Caracala matou o irmão Geta e se tornou o único imperador (História do Império Romano, IV, 4, 7) e a importância do exército no retorno dos Severos ao poder, com as tramas de Júlia Mesa, irmã de Júlia Domna e avó dos futuros imperadores severianos Heliogábalo e Severo Alexandre (História do Império Romano, V, 3). A própria paternidade dos jovens e futuros imperadores, foi forjada, segundo o historiador Herodiano, por Mesa, colocando-os como filhos de Caracala com as primas, para que o exército os aceitasse (História do Império Romano,Ν V,Ν ι,Ν γ)έΝ Ν εesaΝ aindaΝ “davaΝ algumaΝ CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 227 quantidade de dinheiro para que fosse repartida com os soldados em segredo a fim de ganhar deles o afeto paraΝAlexandreΝ[έέέ]”Ν(História do Império Romano, V, 8, 3). Sobre a ascensão de Heliogábalo, chamado no momento de Antonino,9 Herodiano relata queμΝ “QuandoΝ oΝ SenadoΝ eΝ oΝ povoΝ romanoΝ foramΝ informadosΝ doΝ queΝ aconteceu,Ν todosΝ ouviram as notícias a contragosto, mas submeteram-se porΝ forçaΝ àΝ decisãoΝ doΝ exército”Ν (História do Império Romano, V, 5, 2). E sobre as extravagâncias que Heliogábalo cometia, Herodiano comenta que o medo de sua avó era em relação ao que o exército poderia pensar daquiloμΝ“AoΝverΝisto,Νεesa, suspeitando que os soldados desaprovariam o modo de vida do imperador, teve medo de ver-se reduzida de novo a uma posição sem relevância se algo ocorresseΝaΝAntonino”Ν(História do Império Romano, V, 7, 1). É diante dessa perspectiva sobre o poder dos exércitos no período severiano, trazida pela documentação, que alguns historiadores apontaram essa dinastia como uma Monarquia Militar, como Mikhail Rostovtzeff (1957) que baseando-se, para nós, em uma leitura acrítica de textos que desenvolvem um olhar dos grupos senatoriais, como Dião Cássio e Herodiano, defendeu que Septímio aumentou o conteúdo de militares, militarizou definitivamente o Estado Romano e foi contra o Senado.10 Compartilhando essa ideia temos os historiadores Roger Rémondon (1967) e Petit (1974). Gonçalves nos dá como exemplo também a opinião do italiano Francesco de Martino (apud GONÇALVES, 2006, p. 180), em linha de reflexões semelhante à de Rostovtzeff, Rémondon e Petit, situando Septímio como recebendo apoio para seu poder essencialmente no elemento militar e tendo sua ascensão como marco de uma luta contra a velha aristocracia dirigente em favor das camadas populares, nas quais os militares eram recrutados. No entanto, a visão dos Severos como uma Monarquia Militar tem sido criticada pela historiografia mais atual. Assim sendo, concordamos com Carrié e Rousselle (1999, p. 55-56) que percebem que embora Septímio Severo tenha sido aclamado pelos soldados, ele também 9 Heliogábalo se chamava Vario Avito Basiano e passou a chamar-se Marco Aurélio Antonino quando foi aclamado imperador, aos 14 anos, novamente em clara referência aos imperadores Antoninos. No entanto, ele muda seu nome tempos mais tarde para Heliogábalo como referência ao Deus Sol de Emesa, Elagabal. Herodiano, porém, o trata como Antonino em toda sua obra e nada comenta sobre a mudança de nome do imperador. 10 A obra de Rostovtzeff é de 1926, estamos utilizando uma edição de 1957: ROSTOVTZEFF, M. Social and Economic History of the Roman Empire. New York: Oxford University Press, 1957. Silva e Soares (2013, p. 148) mostram como a interpretação de Rostovtzeff sobre o século III, e o Império Romano como um todo, estava impregnada de sua percepção enquanto refugiado da Revolução Russa. Sendo assim, o historiador vê o séculoΝIIIΝ“marcadoΝporΝumaΝrevoluçãoΝqueΝdestruiuΝosΝfundamentosΝdaΝvidaΝeconômica,ΝsocialΝeΝintelectualΝdoΝ Mundo Antigo, e que nãoΝ deixouΝ nenhumaΝ contribuiçãoΝ positivaέ”Ν (SIδVA, G. V.; SOARES, 2013, p. 148). Também o vemos destacando Cômodo como um mau imperador que, entre outros feitos negativos, confiscou bensΝ dasΝ “classesΝ altas”Ν eΝ destacando Septímio Severo como destruidor do poder da aristocracia em favor do exército (ROSTOVTZEFF, 1957, p. 305-306). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 228 teve um cursus honorum ligado ao Senado e se preocupou com a legitimação do seu governo pelos senadores. Estes historiadores apontam os Severos, especialmente Septímio, como imperadores muito ligados às questões do Direito. Segundo eles, Septímio foi um imperador jurista que manifestou notáveis atitudes em termos de governo civil, de acordo com os princípios fundamentais do Direito, de igualdade e universalidade. Carrié e Rousselle (1999, pέΝηη)ΝchegamΝaΝchamarΝoΝgovernoΝdeΝSeptímioΝdaΝ“idadeΝdeΝouroΝdosΝjuristasέ” Dentre os imperadores com formação jurídica, Septímio aparece como o que mais teve tarefa enquanto juiz e legislador. Partindo dessa reflexão, nós observamos que o direito no momento severiano teve de fato grande importância, sendo o momento de famosos juristas como Papiano, Ulpiano e Paulo, todos provinciais com carreira também como prefeitos do pretório e conselheiros imperiais. Além disso, justamente no tempo dessa dinastia, durante o governo de Caracala, a importante Constitutio Antoniniana, que será tratada ainda neste subcapítulo, foi outorgada. Também na linha de interpretação que busca contrapor à ideia dos Severos como Monarquia Militar, Gonçalves (2006, p. 182) conclui que: Assim, acreditamos que realmente os primeiros Severos procuraram apoio entre os militares, mas não foram os únicos a fazer isso, nem se apoiaram apenas nos soldados. As bases da associação do imperador com o exército foram firmemente estabelecidas por Augusto, e os imperadores subsequentes preservaram e reelaboraram estas ideias (CAMPBELL, 1984, p. 409). Septímio Severo não tentou deliberadamente se basear unicamente no militarismo. Como todos os imperadores, ele baseou sua posição num suporte militar, mas também reconheceu a necessidade de acomodar os desejos das aristocracias romanas e provinciais. Concordamos com os historiadores que buscam rebater a ideia dos Severos como uma Monarquia Militar. Mas, observamos que o argumento de alguns historiadores, como Harmand (1959), para isso, se ampara na ideia de que há continuidades em relação aos Antoninos. Embora Harmand (1959) discorde em diversos pontos de que os Severos apresentam pontos de continuidade com os Antoninos, especialmente no que tange à ascensão de uma família imperial oriental, sua conclusão geral é que os Severos devem ser classificados como dentro do arco cronológico do Alto Império, e não do Baixo Império, justamente porque apresentam muitas continuidades.11 Sabemos que Septímio Severo e seus descendentes buscaram formas de equiparação com os Antoninos, a começar pela escolha do 11 Trataremos das classificações da dinastia severiana dentro das denominações dadas para os períodos da história do Império Romano ainda neste tópico. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 229 nome do filho de Septímio, seu sucessor Caracala, nomeado como Marco Aurélio Antonino.12 Harmand (1959, p. 21) trabalha com a ideia de que os Severos, assim como os Antoninos, buscaram a hereditariedade dinástica, sendo que o exército, nesse sentido, não foi fundamental para garantir os próximos imperadores severianos.13 Para nós, estratégias como essa de buscar elementos tradicionais da política imperial romana, apoiados em modelos seguidos pelas antigas dinastias, foram justamente meios de legitimação adotados pelos Severos por se saberem com elementos culturais e políticos um pouco diferentes. Isso, portanto, não significava propriamente continuidade, mas era uma tentativa de mostrar que havia continuidade para acalmar os ânimos dos grupos aristocratas. Dessa forma, concordamos com Gonçalves (2007, p. 01) que Septímio, assim como, acrescentamos, seus sucessores, “preferiuΝadotarΝumaΝimagemΝdeΝcontinuidadeΝparaΝadquirirΝforçaΝpolíticaΝeΝpoderΝ fazerΝmodificaçõesΝnoΝImpério”έ Diante das reflexões feitas até o presente momento, portanto, não vemos uma ruptura total entre os Severos e as dinastias anteriores, mas não podemos deixar de observar que há mudanças no que tange à importância dos exércitos em serem capazes de fazer um imperador.14 Para nós, a preocupação em ligar-se aos Antoninos também está relacionada à própria percepção imperial de mudanças e, dessa forma, surge a necessidade de legitimação.15 Não devemos fazer uma leitura da documentação como transmitindo verdades, sem analisar o 12 Lembremos que o imperador Marco Aurélio é considerado na tradição romana escrita como um bom imperador e o imperador filósofo. Ao ligar-se a Marco Aurélio como filho, dando também seu nome ao seu próprio filho, Septímio buscava, assim, associar-se a essa tradição de bom princeps. Várias outras estratégias foram usadas por Septímio e seus sucessores no mesmo sentido, entre elas destacamos: proclamar-se filho de Marco Aurélio; interromper a damnatio memoriae (danação da memória) de Cômodo, seu irmão desta forma; morar na antiga domus dos Antoninos no Palatino e iniciar-se nos Mistérios de Elêusis em Atenas, como Marco Aurélio fez outrora. O filho mais velho de Septímio, o futuro imperador Caracala, chamava-se Septímio Basiano, tendo, no entanto, trocado seu nome em 196 para Marco Aurélio Antonino. O imperador Heliogábalo também recebeu o nome de Antonino, em clara alusão a dinastia anterior. Severo Alexandre, por sua vez, preferiu não adotar o nome, pois havia enfrentado um usurpador sírio chamado Antonino. 13 Septímio Severo nomeia seu filho mais velho, Caracala, como Augusto, em 198, e seu filho mais novo, Geta, como César, em 209, demonstrando claramente suas intenções dinásticas (GORRIE, 2004, p. 61). No entanto, essa era uma novidade no Império, em que as sucessões seguiam, em geral, o princípio da adoção e não o da hereditariedade direta (embora tenhamos exceções como, por exemplo, Marco Aurélio e Cômodo). 14 Além de Septímio, cujo poder foi delegado pelas legiões do Danúbio, Heliogábalo também foi feito imperador com o apoio dos soldados do campo de Emesa. Macrino o foi pelas legiões e Severo Alexandre pelos pretorianos (PETIT, 1974, p. 10 e 54). Herodiano nos relata que também Maximino, que sucedeu Alexandre Severo, foi aclamado pelo exército (História do Império Romano, VI, 8, 4). 15 A busca de legitimação severiana também pode ser vista em outros artifícios, como obras arquitetônicas, divulgação de sonhos premonitórios, cunhagem de moedas, bustos imperiais, títulos imperiais e cerimônias, e não apenas na ligação da imagem dos Severos com os Antoninos. Algumas dessas formas de legitimação surgiam diretamente dos imperadores, mas também podiam vir em formas de obras de literatura. A VA, por exemplo, recebeu muita atenção da historiografia nesse sentido, havendo, como apresentamos no segundo capítulo, autores que a analisam como forma de legitimação das práticas severianas por parte de Filóstrato. Em A noção de propaganda e sua aplicação nos Estudos Clássicos: o caso dos Imperadores Romanos Septímio Severo e Caracala (2013), Gonçalves estudou esses aspectos durante o governo dos dois primeiros Severos. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 230 significado das informações passadas pelos documentos, como fizeram certos historiadores que afirmam terem sido os Severos uma Monarquia Militar. Em nossa leitura, se a importância dos soldados no governo severiano está nos textos do período é porque alguma coisa incomodava esses escritores ligados ao Senado, esse incômodo era uma peculiaridade dessa dinastia e se amparava no fato de Septímio inaugurar a ideia de que o exército podia impor um imperador. Desta maneira, pela historiografia contemporânea proposta, vemos que os Severos também criaram formas de legitimar seu poder com os grupos das elites justamente por apresentarem diferenças. Portanto, estão aí os pontos de uma transformação a caminho. Integrando a política com o desenvolvimento literário, Kemezis (2006), discorre sobre uma mudança em relação a uma temática literária muito presente em escritores do período severiano, que é a relação destes com o passado. Conforme Kemezis (2006, p. 05), há uma diferença nas narrativas históricas da época dos Antoninos para a época dos Severos, relacionada com a percepção de paz e harmonia pelos primeiros e na percepção de fim dessa paz pelos segundos. Sendo assim, o sentido de passado para os escritores do período dos Antoninos é o de um passado distante, é o que outros fizeram em tempos diferentes, com seu efeito cessado. Já os escritores do período severiano relacionam-se com o passado com vistas a seu presente, uma vez que, enquanto membros dos grupos das elites, estão percebendo claramente as mudanças no que tangem à aproximação dos imperadores com o exército e suas relações com a tradição senatorial romana. Não podemos concordar com Kemezis (2006) de que escritos de autores romanos busquem apenas ser narradores sem intenções com seu presente, como ele indica em relação aos escritores da época dos Antoninos. Acreditamos que, mesmo que inconscientemente, os escritos sempre estão intrinsecamente ligados ao seu presente com propósitos contemporâneos. Também não concordamos que o período Antonino tenha sido um período de paz romana. Sabemos que, de fato, durante vinte e quatro anos os Antoninos não precisaram deixar Roma por conflitos nas fronteiras (KEMEZIS, 2006, p. 14), como os Severos tanto precisaram fazer, mas lembremos que é justamente com Marco Aurélio que se iniciam as ondas migratórias germânicas nos territórios ocidentais do Império. No entanto, não podemos deixar de considerar que Kemezis (2006) tem razão ao apontar que os escritores severianos perceberam as mudanças de sua época em relação às dinastias anteriores. Isso pode ser lido nas preocupações de Dião Cássio e Herodiano ao narrarem as ligações dos Severos com o exército, como comentamos acima, e nas próprias passagens da VA, nas quais Filóstrato mostra Apolônio como fazendo ritos em louvor ao Sol, CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 231 que remetem diretamente aos cultos de matriz oriental dos quais o pai de Júlia Domna era sacerdote, e aos imperadores Severo Alexandre e, especialmente, Heliogábalo.16 Em Filóstrato, para nós, as mudanças de sua época também podem ser vistas nas diversas passagens em que Apolônio reforma ritos e templos de cultos gregos, a fim, em nossa leitura, de demonstrar a importância de se valorizarem as antigas tradições gregas como forma de comunicação e identificação nesse império em que um imperador pode ter suas origens também nas províncias orientais e em que os contatos político-culturais estão cada vez mais estendidos, como mostra a análise da Constitutio Antoniniana.17 Antes de analisar as origens provinciais dos Severos, faz-se importante discutirmos outra ideia que vem associada à percepção dos Severos como uma Monarquia Militar: a de crise do século III. Entre os diversos historiadores que buscam elementos da crise no governo dos Severos, embora com linhas diferentes de interpretação, destacamos o iluminista Edward Gibbon e, novamente, Rostovtzeff (1957), Rémondon (1967) e Petit (1974).18 Gibbon (1989, p. 87) também faz uma leitura acrítica da documentação escrita, de natureza senatorial e, dessa maneira, considera o período dos Antoninos, até Cômodo, como “oΝperíodoΝdaΝhistóriaΝdoΝmundoΝduranteΝoΝqualΝaΝcondiçãoΝdaΝraçaΝhumanaΝfoiΝmaisΝditosaΝeΝ mais próspera.”Ν EmΝ contrapartida,Ν comΝ ἑômodo,Ν passandoΝ pelosΝ Severos,Ν inicia-se o “declínioΝ eΝ queda”Ν doΝ ImpérioέΝ ύibbonΝ (1λκλ,Ν pέΝ 1ίβ-1ίγ)Ν consideraΝ SeptímioΝ SeveroΝ “oΝ principalΝ autorΝ doΝ declínioΝ doΝ ImpérioΝ Romano”,Ν ἑaracalaΝ “oΝ inimigoΝ comumΝ daΝ humanidade,”Ν ώeliogábaloΝ aqueleΝ queΝ “desonravaΝ asΝ principaisΝ dignidadesΝ doΝ ImpérioΝ aoΝ distribuí-lasΝaosΝseusΝnumerososΝamantes”, e Severo Alexandre como o único Severo que fez umΝ“reinadoΝrazoavelmenteΝpróspero,ΝqueΝdurouΝtrezeΝanosέ”ΝAΝvisãoΝdeΝύibbon,Νentretendo,Ν está totalmente influenciada pelos valores de liberdade nas concepções iluministas de seu tempo. Sua obra corresponde, conforme anseios de seu momento histórico, à ideia suprema de liberdade, e o Império Romano em sua “épocaΝ deΝ ouro”, para ele, é um momento a ser recuperado e que possui um auge (Antoninos) e o início da queda (Severos). Para Rostovtzeff (1957, p. 309), com a morte do último imperador severiano, Severo Alexandre,Ν oΝ ImpérioΝ entraΝ emΝ umΝ “completoΝ colapso”. Mas o historiador russo também identifica problemas no Império Romano a partir de Cômodo, passando pelos Severos. 16 Como já tratamos no segundo capítulo, as passagens são: VA, I, 16; I, 31; II, 28; II, 38; III, 14; III, 15; III, 33, VI, 10; VI, 11; VII, 10; VII, 31; VIII, 13. 17 Apolônio como reformador de cultos e templos gregos está em: VA, I, 16; IV, 11, 21, 24, 31. 18 A obra de Gibbon em questão é Declínio e queda do Império Romano, em seis volumes. O primeiro foi publicado em 1776 e o último em 1788. A edição que utilizamos foi: GIBBON, E. Declínio e queda do Império Romano. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 232 Rémondon (1967) vê problemas desde o governo de Marco Aurélio, com as invasões germânicas e as inúmeras despesas militares. Os Severos tentam tomar medidas para acabar com os problemas econômicos, mas elas não são eficazes, conforme o estudioso, sendo o fim do governo de Severo Alexandre o início da crise que tem, portanto, sua origem antes mesmo de os Severos assumirem o poder e se estenderia até o governo do imperador Anastácio (491518). Petit (1974) vê problemas na capacidade de governo de Marco Aurélio e percebe que com esse imperador e seu filho Cômodo novos grupos sociais, de origem provincial e “bárbara”,ΝsãoΝintroduzidosΝnaΝsociedade,ΝaspirandoΝpor uma igualdade social. Nesse período prepara-se, conforme Petit (1974, p. 40), uma revolução levada a cabo por Septímio Severo.19 No entanto, uma historiografia mais atual tem rebatido o uso do conceito de crise associada aos Severos; entre seus adeptos citamos novamente os mesmos que rebatem o conceito de Monarquia Militar: Carrié e Rousselle (1999) e Gonçalves (2006). Também podemos citar Kemezis (2006) e Renan Frighetto (2012). ἑarriéΝeΝRousselleΝ(1λλλ),ΝpreocupadosΝemΝdiscutirΝaΝconcepçãoΝdeΝ“fimΝdoΝmundoΝ antigo”ΝeΝaΝdenominaçãoΝdoΝperíodo entreΝosΝséculosΝIIIΝeΝIVΝcomoΝ“ἐaixoΝImpério”,ΝbuscamΝ redimensionar a importância do século III não como um momento catastrófico para os rumos do Império, mas como um contexto de grandes transformações. Assim, frisam as origens provinciais de Septímio, o Edito de Caracala e o aumento substancial de cristãos nesse período, mostrando que os sinais de crise partem de uma leitura de documentos escritos com forte carga de juízos morais. Concordando com esses historiadores franceses, para Gonçalves (2006, p. 178), alguns pesquisadores buscaram elementos dessa crise nos Severos devido a uma leitura acrítica da documentação que apresenta essa dinastia como um período de forte importância dos exércitos, o que já discutimos, e partem da visão documental de tradição senatorial, que sustenta Caracala e Heliogábalo como maus imperadores. Já o historiador estadunidense Kemezis (2006, p. 27) usa o termo “crise do século III”, mas acredita que muitos problemas que irão assolar o Império entre 240 e 270 não estavam presentes no período severiano. Kemezis vê um sucesso nas campanhas expansionistas de Septímio, nas relações com os povos fronteiriços do Império e percebe um 19 O que Petit (1974) compreende como revolução, pelo que podemos apreender da leitura de sua obra, é o caráter militar do governo dos Severos. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 233 declínio na atividade epigráfica nas cidades que, no entanto, não se dá devido a uma crise, mas está associado, para ele, ao Edito de Caracala. E Frighetto (2012, p. 55) aponta que: É necessário, porém, que tenhamos precaução ao analisarmos tais momentos de instabilidade, pois tendemos, quase sempre, a vê-los duma forma extremamente negativa e pessimista. Daí surge o conceito de crise, sendo este, geralmente, associado unicamente à ideia de quebra, de ruptura ou decadência de algo que anteriormente fora perfeito e que foi substituído pelo imperfeito. Portanto, os historiadores que rebatem o uso do conceito de crise associado aos Severos não deixam de perceber essa dinastia como apresentando mudanças e transformações em relação ao Império Romano de outrora, mas apresentam argumentos para que estas mudanças não sejam vistas em termos negativos, carregados de juízos de valor e fruto de uma leitura da história como havendo momentos de progressos e outros de regressões. Para discutirmos melhor o conceito de crise em relação ao período severiano, vejamos o que podemos analisar a partir da documentação. Para Dião Cássio, Marco Aurélio foi o último dos bons imperadores e seu governo foiΝaΝ“IdadeΝdeΝτuro”ΝdoΝImpérioΝRomano,ΝvindoΝdepoisΝdeleΝaΝ“IdadeΝdeΝόerro,”ΝqueΝseriaΝoΝ governo dos Severos. Assim, ele escreveu, no final suaΝnarrativaΝsobreΝosΝAntoninosμΝ “Este assunto trataremos a seguir no próximo tópico, pois a nossa história desce agora do reino de ouroΝparaΝoΝreinoΝdeΝferro,ΝqueΝéΝnoΝqualΝvivemΝosΝromanosΝatualmente”Ν(História Romana, LXXII, 36, 4). Dião Cássio descreve ainda as guerras civis que terminaram com Septímio Severo no poder imperial (História Romana, LXXV, 6; LXXVI, 6) e uma série de problemas nas fronteiras orientais no final do período severiano (História Romana, LXXX, 3). Herodiano vê que os anos entre o fim do reinado de Marco Aurélio (180) e a proclamação de Gordiano III (238) como um período negativo em termos de poder imperial: Durante um período de sessenta anos o Império Romano esteve em mãos de maus senhores, período no qual o tempo exigiu e produziu um número muito grande de situações conflitivas e surpreendentes. Os imperadores de idade mais avançada, por sua experiência com os assuntos públicos, com suma diligência, mantiveram o controle sobre si mesmos e sobre seus súditos, mas os que eram mais jovens, levando uma vida mais despreocupada, introduziram todo tipo de novidade. Por isso, como é natural, a diferença de idade e de autoridade se traduziu em atuações distintas (HERODIANO, História do Império Romano, I, 1, 5-6). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 234 Outras críticas são feitas por Herodiano. Para ele, Septímio foi o imperador que mais amou o dinheiro (História do Império Romano, III, 8, 7); Plautiano foi o prefeito do pretório mais temido de todos os tempos, de origens humildes, mas elevado de posição e recebendo enorme poder em pouquíssimo tempo (História do Império Romano, III, 10, 6-7). Entre vários problemas de caráter, Caracala é mostrado como ganancioso e vestindo roupas próprias de bárbaros e de mulheres. Assim como Caracala, Macrino se esbalda em uma vida cheia de luxos (História do Império Romano, V, 2, 4-6). Heliogábalo é pintado com os piores vícios e costumes, além de confiar a seus escravos e libertos, de atividades vergonhosas, o governo das províncias consulares (História do Império Romano, V, 7, 7). Herodiano também nos indica que fortes problemas nas fronteiras, tanto no Ocidente, quanto no Oriente, aconteceram especialmente no governo de Severo Alexandre, considerado, no entanto, um bom imperador na visão geral herodiana: Estas notícias inquietavam Alexandre e afligiam aos soldados da Ilíria ao pensar que haviam sofrido uma dupla desgraça, uma por parte de seus padecimentos na guerra contra os persas e outra pelas notícias que cada um havia recebido sobre seus familiares mortos pelos germanos (História do Império Romano, VI, 7, 3-4). Diante das indicações documentais, concordamos com os historiadores que buscam negar o conceito de crise para o período severiano, percebendo tal conceito se apoiando em uma leitura que não analisa a natureza da documentação. Herodiano e Dião Cássio, ressaltamos, partem de uma visão senatorial romana que se mostra não satisfeita com as mudanças que os Severos introduziram, como fica claro nas citações que fizemos de suas obras. Além disso, suas visões para os problemas de seu tempo são extremamente personalistas, voltando-se para a incapacidade e para as mudanças que os imperadores podem ter representado. Mas não podemos negar que em diversas passagens a documentação mostra que os Severos tiveram muitos problemas em suas fronteiras em relação a germanos, partos e persas, o que já evidenciava mudanças que repercutiriam também nos rumos políticos e administrativos do Império dali para a frente. Outra mudança evidente marcada pela ascensão dos Severos está relacionada às origens da dinastia, tendo Septímio nascido na província da África Proconsular e Júlia Domna na Síria. Caracala e Geta nasceram na Gália, Heliogábalo e Severo Alexandre na Síria. 20 Desta maneira, alguns historiadores têm discutido as origens provinciais e as diferenças 20 Caracala e Geta nasceram na cidade de Lugdunum (Lyon, na atual França), capital da Gália, quando Septímio ocupava o cargo de legatus pro praetore na região. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 235 culturais desses imperadores, especialmente em relação a Septímio Severo, o primeiro deles. Sabemos que a História Augusta mostra o fundador da dinastia severiana tendo uma irmã com dificuldades para falar latim e ele também tendo um forte sotaque regional (KEMEZIS, 2006, p. 38). No tocante aos costumes não romanos dos Severos, também lemos o comentário do senador Dião Cássio sobre o banquete de casamento de Caracala com Plautina, filha do prefeitoΝ doΝ pretórioΝ PlautianoμΝ “EΝ todosΝ nósΝ estávamosΝ juntosΝ entretidosΝ emΝ umΝ banquete,Ν parte em estilo real e parte em estilo bárbaro, recebendo não só as habituais iguarias cozidas, masΝ tambémΝ carneΝ cruaΝ eΝ diversosΝ animaisΝ aindaΝ vivos”Ν (História Romana, LXXVII, 1, 2). Dião também observa que ἑaracalaμΝ“[έέέ]ΝaindaΝpossuíaΝaΝastúciaΝdeΝsuaΝmãeΝeΝdos sírios, a raça a queΝpertencia”Ν(História Romana, LXXVIII, 10, 2). Antonino pertenceu às três raças e não possuía nenhuma das respectivas virtudes, mas tinha combinado em si todos os seus vícios, a inconstância, a covardia e a irresponsabilidade da Gália, a dureza e a crueldade da África e a astúcia da Síria, onde ele cresceu ao lado de sua mãe (História Romana, LXXVIII, 6). André Pigniol (1949, p. 396) vê Septímio Severo como um provincial sem vínculos patrióticos com os romanos, representando a vingança de Aníbal contra o Império Romano. Carrié e Rousselle (1999, p. 50) também citam a ideia de uma vingança de Aníbal com a ascensão de Septímio, mas comentam que não houve uma exclusão dos itálicos dos cargos político-administrativos e do exército durante essa dinastia. No entanto, mesmo diante das possíveis diferenças regionais e culturais dos Severos; o que não negamos, concordamos que Septímio de fato poderia possuir elementos de cultura púnica, como seu sotaque, por exemplo, e Júlia Domna seus costumes sírios;21 devemos analisar suas identidades como analisamos a de Filóstrato enquanto grego no terceiro capítulo da Tese, com fronteiras identitárias marcadas por um Império plural e híbrido em determinadas circunstâncias, cujos elementos de identificação greco-romanos eram aceitos em certa medida pelas elites do Império. Portanto, acreditamos, como Kemezis (2006, p. 37), que 21 O próprio estilo de cabelo de Júlia Domna, que, conforme Bárbara Levick (2007, p. 03) a tornava popular, era também detestado pelo contemporâneo dos Severos, o cristão Tertuliano, que o considerava como sinal de sua orientalização. Gonçalves (2003, p. 349) nos indica que esse cabelo era chamado de cabelo em forma de “tartaruga”,Ν“emΝqueΝosΝfiosΝsãoΝrepartidosΝnoΝmeioΝeΝcobremΝasΝorelhas,ΝcomoΝimitandoΝumΝcascoΝdeΝtartaruga, terminandoΝnumΝcoqueέΝPenteadoΝouΝperucaΝqueΝfoiΝmuitoΝcomumΝnasΝprimeirasΝimagensΝdaΝimperatrizέ”ΝώidalgoΝ de la Vega (2012, p. 146) comenta que o estilo de penteado de Júlia Domna não foi uma novidade trazida por ela, pois já tinha sido usado por Brutia Crisipina, esposa de Cômodo, mas foi Júlia Domna que o deixou conhecido, havendo características orientais nele. Para o estilo de cabelo de Júlia Domna ver Anexo 20. No mesmo artigo citado, Gonçalves (2003, p. 345) destaca que o próprio boato em torno de um possível incesto entre Júlia e seu filho Caracala, citado em Dião Cássio e Herodiano, pode ser fruto do fato de a imperatriz ter vindo do Oriente, onde o incesto não era tão mal visto como nas províncias ocidentais. Para mais informações sobre as interpretações de aspectos orientais nas representações de Júlia Domna, ver LEVICK, 2007. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 236 o retrato que alguns historiadores mostraram de Severo como um estrangeiro dentro da cultura romana é exagerado. Conforme esse historiador, “SeveroΝeraΝconhecedorΝeΝmembroΝdaΝculturaΝ e da sociedade greco-romana,Ν nãoΝ haviaΝ problemasΝ nissoέ”Ν DihleΝ (βίί4,Ν pέΝ γ1ί) também ressalta, como já citamos no segundo capítulo, que essa dinastia desenvolveu uma fusão de elementos de suas regiões com elementos gregos – que nós mudaríamos para elementos da cultura das elites greco-romanas. Diante dessas observações, podemos ainda citar o caso de Apuleio, também membro dos grupos das elites da sociedade da África Pronconsular, para quem o púnico aparece como umaΝculturaΝdoΝ“outro”ΝemΝsuaΝApologia (IX; X, 6; XXIV, 6, 10; XCVIII, 8) identificando-se muito mais com a formação nos moldes da paideia da época imperial do que com os costumes da cultura púnica da região onde havia nascido.22 Mas é Heliogábalo que é apresentado na documentação de Dião Cássio e Herodiano como o responsável por frisar as diferenças culturais dessa dinastia, com seus costumes exóticos aos olhos das elites greco-romanas. Uma das primeiras coisas que Heliogábalo faz ao se tornar imperador foi construir um templo em Roma para adoração do deus Sol, Elagabal (HERODIANO, História do Império Romano, V, 5, 8), do qual seus ancestrais da família de Júlia Domna, ele e o futuro imperador Severo Alexandre tinham tradição enquanto sacerdotes, como citamos no segundo capítulo. Nesse templo um meteorito negro servia de estátua do deus. Mesmo as roupas de Heliogábalo e suas vestimentas pareciam estranhas aos olhares dos romanos, assim como o imperador é mostrado dançando à moda dos bárbaros. Além disso, ele era frequentemente visto, até mesmo em público, usando vestimentas bárbaras que os sacerdotes sírios usavam, e isso foi a razão de receberΝ oΝ apelidoΝ deΝ “oΝ assírioέ”Ν UmaΝ estátuaΝ deΝ ouroΝ doΝ όalsoΝ AntoninoΝ [referindo-se a Heliogábalo] foi erguida, e ela se difere pela sua grandeza e excesso de adornos (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXX, 11, 2; 12, 2). Não descreverei os cantos bárbaros que Sardanápalo [referindo-se a Heliogábalo], junto com sua mãe e sua avó, cantaram a Elagabal, ou os sacrifícios secretos que ele ofereceu ao deus, matando meninos e usando feitiços, na verdade, alimentando um leão, um macaco e uma serpente no templo dos deuses, jogando no meio deles órgãos genitais humanos, e praticando também outros ritos profanos, e ao mesmo tempo usando invariavelmente inúmeros amuletos. Importante elencar que ele chegou ao absurdo extremo a ponto de cortejar uma mulher para Elagabal, como se o deus tivesse qualquer necessidade de casar e ter filhos (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXX, 11; 12). 22 No entanto devemos considerar o caráter do discurso Apologia, que tratamos no terceiro capítulo ao apresentá-lo. Por ser uma autodefesa diante de uma acusação, Apuleio usa de sua formação aos moldes da paideia para equiparar-se ao proncônsul, juiz do processo, e negar a cultura de seus acusadores, considerando-a rústica e bárbara. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 237 Costumava sair em público vestido de maneira bárbara com túnicas de manga larga, costuradas e talhadas de ouro e púrpura. Suas pernas também estavam cobertas, desde as pontas dos pés até a cintura, com roupas igualmente bordadas de ouro e púrpura. O colorido de uma coroa de pedras preciosas iluminava em sua cabeça [...]. Enquanto Basiano desempenhava suas funções de sacerdote e dançava junto aos altares de maneira bárbara ao som de flautas, seringas e outros instrumentos, todos olhavam para ele, especialmente os soldados, porque sabiam que pertencia à família imperial (HERODIANO, História do Império Romano, V, 3, 6-8). Sua roupa estava entre as vestimentas dos sacerdotes fenícios e a luxuosa indumentária dos medos. Detestava os vestidos romanos e gregos porque, dizia, eram feitos de lã, uma matéria prima pobre. Apenas gostava dos tecidos de seda. Aparecia em público ao som de flautas e tambores, sem dúvida em honra ao seu deus. Ao vê-lo desta maneira, Mesa se enfadava muito e, suplicante, tentava convencê-lo de que, ao se aproximar de Roma, com sua entrada no Senado, trocasse aquelas roupas por uma vestimenta romana. Temia que aquela roupa estranha e bárbara em todos os detalhes causasse desgosto nos que o vissem por não estarem acostumados. Temia que pensassem que aquilo não se tratava de coisas de homem, mas de mulheres. Mas Antonino menosprezou o conselho da anciã e ninguém o convenceu (HERODIANO, História do Império Romano, V, 5, 4-6). Já em relação a Severo Alexandre, considerado pela documentação escrita o modelo de bom príncipe, esse imperador parece ter negado suas origens sírias, insistindo em mostrar suas tradições com origens greco-romanas (GRANT, 1996, p. 26). Foi isso que possivelmente o fez ser reconhecido como o bom príncipe da dinastia severiana pelos membros das elites que nos deixaram grande parte da documentação textual, como as obras trabalhadas de Dião Cássio e Herodiano, ao contrário do seu primo e antecessor no poder imperial, Heliogábalo, aquele que impôs seu deus de matriz oriental ao próprio culto imperial e aos deuses tradicionais da religiosidade romana. Portanto, é fato que os Severos apresentavam elementos culturais diferentes dos aceitos como forma de identificação dos grupos imperiais das elites, mas quando exaltavam tais elementos de origem, como fez Heliogábalo, eram denegridos pelas fontes escritas de origem senatorial, quando mostravam mais adaptados ao sistema de valores greco-romanos eram aceitos, como aconteceu com Septímio e sua esposa Júlia e, especialmente, com Severo Alexandre. No entanto, é certo que o papel das províncias e dos provinciais no poder do Império passou por algumas mudanças no contexto severiano e o Oriente imperial recebeu destaque nesse período em costumes, tradições e cargos que passaram a ser ocupados por provinciais, vindos das regiões orientais. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 238 Estas mudanças começaram pela expulsão dos soldados da guarda pretoriana por Septímio Severo assim que assumiu o poder (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXV, 2-4), constituindo uma nova guarda pretoriana, formada por soldados vindos das províncias, o que era inédito até então, uma vez que os pretorianos eram sempre soldados vindos da Península Itálica, o que causa estranhamento e desconforto ao senador Dião Cássio. Também o prefeito do pretório de Septímio, Plautiano, era líbio, assim como o imperador (HERODIANO, História do Império Romano, III, 10, 6). Carrié e Rousselle (1999, p. 49) frisam que com essa dinastia, instalou-se no Império oΝ“eixo africano-sírio”,Νcom provinciais de fato no poder. Por isso, é preciso compreender o que eram os provinciais, pois com os Severos homens de origens das províncias se firmaram definitivamente em altos postos da administração e da política imperial, como os próprios casos de Dião Cássio e do jurista Ulpiano. É considerável a mudança na própria nobreza dirigente, que a partir do século II passou a ser formada pelas camadas superiores das cidades provinciais, principalmente orientais. Ocorreu também a introdução de muitos homens da ordem equestre em cargos antes reservados apenas aos senadores. Pela primeira vez alguns membros do Egito, por exemplo, ascenderam ao Senado romano (LE GLAY; VOISIN; LE BOHEC, 1996, p. 387). Gonçalves (1998/1999, p. 156) informa que na época de Heliogábalo 52,5% dos senadores têm origens provinciais e 57, 6 % deles são das partes orientais do Império, tendo sido postos no Senado em promoções realizadas pelo imperador. Em Dião Cássio podemos ler sobre homens dos grupos das elites das províncias do período de ώeliogábaloμΝ “[έέέ]Ν algunsΝ queΝ nuncaΝ conheceramΝ Roma,Ν vieramΝ paraΝ exercerΝ aΝ autoridadeΝ tradicionalΝ [έέέ]”Ν (História Romana, LXXX, 3, 3). Também podemos ler sobre a entrada no Senado de homens sem um cursus honorum tradicional na época de Heliogábalo: Quando o Falso Antonino se invernou na Nicomédia, e em muitos outros lugares, aqueles que lideravam iniciar uma rebelião, como se fosse a coisa mais fácil do mundo, eram incentivados pelo fato de que muitos homens tinham entrado na ordem suprema contra as expectativas e o mérito (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXX, 7, 3-4). Logo, há uma melhoria no status das províncias nesse período (GRANT, 1996, p. 28). Há, nesse sentido, autores que defendem a ideia de uma orientalização do Império a partir dos séculos II e III, como Fergus Millar (1988, p. 346), e nos indicam que o eixo de gravidade do Império Romano deslocou-se para o Oriente no período. É diante dessas mudanças em marcha e de uma focalização maior do espaço políticogeográfico oriental do Império que Carrié e Rousselle (1999, p. 50) percebem que, mesmo CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 239 que a abertura aos provinciais não seja uma novidade dos Severos, pois ela já tinha sido iniciada com Marco Aurélio, os Severos são os imperadores que estendem as múltiplas facetas da universalização de Roma. Seguindo essa linha de reflexão sobre dinastia severiana, em outro trabalho, Carrié (2011, pέΝ 1β)Ν afirmaΝ queμΝ “σãoΝ éΝ deΝ se espantar que seja precisamente esta dinastia que difundiu a cidadania romana a todo território do Império e que suprimiu definitivamente a clivagem de natureza étnica entre conquistadores e conquistados, dominadores e submetidosέ” Sobre a Constitutio Antoniniana, ou Edito de Caracala, sabemos que foi uma concessão da cidadania romana a todos os habitantes livres do Império, com exceção única aos povos chamados dediticii, promulgada pelo imperador Caracala em 212.23 Muitos pesquisadores têm interpretado a Constitutio como forma de arrecadar mais dinheiro para o Império, uma vez que um maior número de cidadãos significava mais pessoas pagando impostos ao Estado Romano.24 Essa visão novamente nos parece vir de uma leitura da interpretação de Dião Cássio na época da promulgação por Caracala: Esta foi a razão pela qual ele estendeu a cidadania romana a todos os povos do Império; nominalmente ele os estava honrando, mas a proposta real era aumentar por esse meio sua própria renda, uma vez que, enquanto estrangeiros, esses povos não tinham que pagar a maioria dos impostos (História Romana, LXXVIII, 9, 3-7). No entanto, já no século XIX temos a leitura de outros elementos que essa constituição pode nos indicar sobre seu contexto de promulgação. Sendo assim, Jean Réville (2006, p. 09), em obra de 1886, afirma que o Edito de Caracala demonstra a característica cosmopolita da sociedade romana na primeira metade do século III, quando há um afluxo de membros das elites do Império para ocuparem cargos político-administrativos em Roma. Pat Southern (2004, p. 52) mostra que as causas do Edito de Caracala são muitas e os efeitos dele também são variados. Segundo essa estudiosa, a lei pode ser interpretada como dando continuidade a uma política do pai de Caracala, que buscava certa equalização, do que a própria autora discorda, uma vez que ao longo do Império houve mudanças no status da cidadania romana, sendo que uma nova divisão social era criada entre honestiores e humiliores. Por outro lado, a lei pode ser vista também como um tipo de agradecimento do imperador a um vasto público por apoiá-lo, especialmente após o assassinato do seu irmão e 23 Há uma discussão historiográfica sobre quem eram os dediticii e o porquê de eles não terem recebido a extensão da cidadania. Aceita-se que eram povos de tribos entre o Danúbio e o Eufrates, recém-conquistados na época severiana (GRANT, 1996, p. 31). 24 Entre os pesquisadores que fazem esta interpretação do Edito de Caracala citamos: Michel Christol e Daniel Nony (1993) e Sartre (1994). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 240 corregente Geta, em 212. Southern também considera que há comentários sobre possíveis motivos religiosos, sendo o Edito uma espécie de agradecimento aos deuses por parte do imperador. Mas, segundo ela, concordando com Dião Cássio, a principal motivação de Caracala ao estender a cidadania foi angariar mais fundos para o Estado Romano, com o aumento da arrecadação de impostos. Grant (1996, p. 31) acredita que de fato a razão da promulgação da constituição foi o aumento de rendas, no entanto, para ele: Mas a aprovação era também símbolo da vasta mudança que havia gradualmente alcançado o Império Romano. Ele era agora uma communis patria, uma pátria comum e uma comunidade, o ultimato unificava a evolução gradual do poder autocrático no qual as províncias eram tão boas quanto a Itália e suas sociedades eram igualadas, assim como os habitantes do grande Estado universal de Alexandre III, o Grande, que Caracala tanto admirava. A constituição também universaliza a religião e levava à comoções, lembrando a democracia, o que diminui as diferenças legais entre as camadas baixas e as camadas altas da sociedade, os honestiores e os humiliores. Da mesma forma, Grant (1996, p. 31) pontua que essa constituição foi um ato calculado para desviar a atenção da população do Imperador e seus problemas com sua família, como o assassinato de Geta. Kemezis (2006, p. 53) concorda com Southern sobre as possíveis motivações religiosas do Edito e com Grant sobre a questão do assassinato de Geta. Para o primeiro historiador, a Constitutio foi motivada por agradecimento pelo fato de a conspiração de Geta contra o irmão não ter dado certo. Em papiros sobreviventes com cópia do decreto, Caracala mostra gratidão aos deuses por terem-no salvado de Geta. Sendo assim, Caracala parece movido a fortalecer a relação do povo, em geral, com os deuses e, então, concede a cidadania. O imperador liga a piedade e a segurança com o status legal e espiritual de seu povo, para este historiador. Já conforme A. N. Sherwin-White (1939), a Constitutio foi uma forma de elevar o status dos provinciais e resume as mudanças pelas quais o Orbis Terrarum estava passando naquele momento, o que, no entanto, não uniformiza o estatuto de todo o Império. SherwinWhite também pontua (1939, p. 221-222) que o efeito do aumento das taxas, considerado por Dião Cássio, foi quase nulo, não alterando muito a situação que já existia anteriormente. Esse pesquisador percebe que com os Severos há uma equalização e uma fusão de elementos gregos e latinos no mundo romano, destacando, além da Constitutio, também a extensão do ius Italicum para uma lista de cidades, como Emesa, privilégio que implicava uma CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 241 assimilação ao status das colônias itálicas e imunidade de taxas. Portanto, para SherwinWhite (1939, p. 223), embora o status das províncias na prática não fosse o mesmo, o Edito deΝ ἑaracalaΝ “identifica toda a população do Império com Roma, providenciando uma fundamentação jurídica para o desenvolvimento da antiga ideia de Romaniaέ” Para Harmand (1959, p. 26-28), com os Severos, a linha de demarcação entre Ocidente e Oriente é cruzada, havendo um alargamento do horizonte imperial e a Constitutio, chamada por esse estudioso de reforma de Caracala, parece mais uma obra que propõe unificar e conduzir melhor o Estado, deixando uma dupla cidadania a todos e mostrando claramente que a relação entre o chefe de Estado e seus súditos havia mudado, marcando a orientalização do Império. É importante frisarmos que nesta época noventa e nove por cento dos habitantes da parte Oriental do Império passam a ser cidadãos romanos (SWAIN, 2009, p. 34). Segundo Alejandro Bancalari Molina (2000, p. 24), a Constituição evidencia uma simbiose entre Ocidente e Oriente, pois ao ditá-la Caracala criava um novo mundo, um império novo, único política e juridicamente por meio de uma cidadania universal. Este historiador (2007, p. 252-253) também aponta que é comum encontrar moedas da época com referencias a Caracala como pactor orbis, propagator orbis, rector orbis e com a legenda de aeterni imperii. E assim interpreta o interesse e a preocupação de Caracala em outorgar um caráter global ao edito, que correspondia à sua ideia de universalidade do orbis Romanus. Portanto, ainda segundo Bancalari Molina, a Constitutio simboliza um processo de maturação e afirmação da ideia de império universal e ecumênico e foi um amplo desenho político, religioso e jurídico. Bancalari Molina (2000, 2007) liga a promulgação da Constitutio à busca de imitação de Alexandre, o Grande, por Caracala, tese também defendida por Millar (1993, p. 142). Dessa maneira, como podemos ler, as implicações do Edito de Caracala vão além das questões econômicas, havendo muitos pesquisadores que se dedicaram a refletir sobre outros sentidos da lei, percebendo como a promulgação desse edito teve como causas e consequências as mudanças pelas quais passava o Império Romano e que a dinastia dos Severos significou um ponto de mutação. Acreditamos que as razões e as consequências de promulgação de leis, editos e constituições podem ser diversas e é nesse sentido que vemos uma forte possibilidade de a VA também poder ser lida em conformidade com questões abertas por essa realidade. Sobre a relação de Filóstrato com o Edito, Swain (1996, p. 380) afirma que não há diferença no que era o mundo de Filóstrato após a extensão da cidadania feita por Caracala CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 242 em 212. Segundo ele, para Filóstrato o mundo imperial era necessariamente romano em termos político-administrativos, cultural e espiritualmente era grego e o tratamento imperial à camada senatorial, da qual o autor fazia parte em nível municipal, continua o mesmo nessa época. Logo, como lemos, Swain não vê nenhum impacto da promulgação do Edito na obra filostratiana, com o que não concordamos. Como já comentamos no trato documental da VA, a obra provavelmente foi escrita após 212, ou seja, após a Constitutio Antoniniana. Para associar a promulgação da lei às obras de Filóstrato nos remetemos ao que indica Hidalgo de la Vega (2008) sobre o Edito. Para essa pesquisadora, a extensão da cidadania foi o auge de uma política de consenso que se desenvolveu no Império Romano especialmente a partir do século II, após um período de relações conflituosas que deram lugar a um consenso universorum. Não acreditamos que houvesse de fato um consenso total entre as elites dentro do Império Romano mantenedor da ordem, mas pensamos que o poder romano e alguns membros dos grupos privilegiados, como Filóstrato, por exemplo, buscavam por ele em seus escritos por meio de variadas formas de negociação e pela criação de elementos que dessem uma identidade à pluralidade que era esse Império.25 Em nossa visão, na VA, Filóstrato busca pela ordem imperial através da tentativa de afirmar um espaço discursivo comum, no qual a língua e a cultura grega como um todo eram o elemento que identificava variados povos dentro do Império Romano, especialmente nas partes orientais. Portanto, lemos as intenções da VA assim como lemos as possíveis intenções da Constitutio Antoniniana. A proposta de Hidalgo de la Vega (2008) para ler as intenções da Constitutio Antoniniana mostra que o Império criou estratégias de consenso que impunham sua dominação e hegemonia, já aceitas pela população, sobretudo pelas elites, no século III. Ou seja, para Hidalgo de la Vega (2008) a Constitutio Antoniniana marca uma igualdade dos povos dentro do Império, mostrando que já havia uma hegemonia do poder romano internamente. Sendo assim, acreditamos no consenso, proposto por Hidalgo de la Vega (2008), como leitura das intenções do Imperador Caracala ao promulgar esta lei. Mas, diferente desta historiadora, não vemos esse edito imperial como auge de um consenso (consenso universorum) e hegemonia romana já existentes no Império. Nossa leitura da Constitutio Antoniniana percebe a possibilidade de ela ser uma estratégia de negociação, 25 Ao tratar da busca de um consenso no Império devemos mostrar o que foi apresentado por Clifford Ando (2000). Em linhas gerais, para este historiador, consenso não era a concordância de todas as ideias trazidas pelo poder romano, mas a criação de um espaço discursivo reconhecido por todos, no qual as divergências políticas e culturais podiam ser negociadas. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 243 visando o consenso a fim de manter a ordem e a integração, aspectos que continuavam a ser almejados pelos imperadores romanos no século III. Assim sendo, podemos notar aspectos essenciais do contexto e das inquietações que rondavam o momento em que nosso documento de pesquisa foi elaborado: momento de extensão da cidadania e de reflexões, negociações e construções ideológicas de membros dos grupos privilegiados sobre sua inserção no poder imperial e, especialmente, sobre as fronteiras que separavam e ligavam o Império Romano e sobre o que poderia identificar a pluralidade do Império. A circulação de Apolônio e a preocupação de Filóstrato em mostrar alguém com sua paideia, como tratamos no segundo capítulo, tendo a capacidade de manter contatos com povos dentro do Império Romano, e mesmo fora dele, colocando ordem em diferentes tipos de situações problemáticas pelas regiões por onde passa, parece-nos certamente influenciada pelo contexto de extensão da cidadania e inserção de diferentes povos e diferentes culturas dentro da cidadania romana. Embora saibamos hoje que os resultados da extensão da cidadania por Caracala não provocaram mudanças em relação à divisão dos grupos sociais, pois novas fronteiras foram criadas no interior da cidadania, acreditamos que intelectuais como Filóstrato, que viviam e escreviam justamente naquele momento, refletiram e afirmaram em suas obras marcas de distinção enquanto membros dos grupos das elites e, especialmente, enquanto gregos no Império. Outra característica que, para nós, marca a dinastia dos Severos, e também o Apolônio de Tiana da obra filostratiana, é sua ligação com a religiosidade e, nesse sentido, com uma religiosidade com características orientais em alguns aspectos. Júlia Domna, como mencionamos, era filha de um sacerdote do deus Sol de Emesa, Heliogábalo passou a receber esse nome também em homenagem ao deus Elagabal, do qual era sacerdote, como Apolônio de Tiana na VA. Nas passagens abaixo, Herodiano nos mostra como o culto ao Sol podia ser considerado coisa do outro, dos bárbaros das regiões orientais, aos olhos de um membro das elites greco-romanas da época: Os dois meninos [referindo-se aos futuros imperadores Heliogábalo e Severo Alexandre] eram sacerdotes do Sol, a quem veneram os habitantes daquela região com o nome fenício de Elagabal. Seu povo construiu um grandioso templo, sem economizar ouro e prata, com muitas pedras. Não apenas lhe rendem culto os habitantes do lugar, mas todos os sátrapas vizinhos e os reis bárbaros, que a cada ano enviam oferendas preciosas ao deus, com o desejo de se diferenciarem. Não se vê nenhuma estátua que represente o deus feita pela mão do homem, como as dos gregos e as dos romanos. Há, no entanto, uma pedra enorme, de base redonda e com uma ponta em cima, cônica e negra. Garantem, com orgulho, que caiu do céu, e mostram pequenas CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 244 saliências e incisões em sua superfície, acreditam que é a imagem do Sol, na qual a mão do homem não interveio. É assim que a veem (História do Império Romano, V, 3, 4-5). Herodiano também escreve que a veneração do Sol era um costume parto: Quando saiu o sol, apareceu Artabano [rei parto enfrentando por Caracala] com a prodigiosa multidão de seu exército. Depois de saudar ao sol, como era seu costume, os bárbaros, gritando com enorme alvoroço, se voltaram contra os romanos com as flechas de sua rápida cavalaria (História do Império Romano, IV, 15, 1). Devemos ressaltar a ligação de Septímio Severo e Caracala com o deus egípcio Serápis, ao qual esse segundo imperador pode ter chegado a dedicar até mesmo sacrifícios humanos, segundo a visão de Dião Cássio (História Romana, LXXVIII, 23, 1-2).26 Também é muito grande a ligação dos Severos com a astrologia, horóscopos, oráculos, sonhos premonitórios e os chamados omina imperii e omina mortis (profecias e prognósticos sobre ascensão imperial ou morte dos imperadores). O casamento de Septímio Severo com Júlia, que aconteceu antes de ele se ter tornado imperador romano, por exemplo, também é feito, segundo a História Augusta, de acordo com a astrologia, pois um horóscopo determinou que Júlia se casaria com um futuro soberano (GONÇALVES, 2003, p. 332, GORRIE, 2004, p. 70). O próprio nome de Septímio (Sétimo), conforme Birley (2000, p. 145), parece ter recebido a influência das crenças místicas no poder da numerologia em sua escolha. São várias as passagens de Herodiano e Dião Cássio que tratam da temática.27 Herodiano nos relata sobre Septímio Severo que: Sonhos o haviam persuadido a vislumbrar certa esperança neste sentido, e também oráculos e outros presságios que aparecem para previsão do futuro. Reconhece-se que estes prognósticos não se equivocam e são verdadeiros quando os feitos posteriores lhes dão razão. O próprio Severo contou muitos desses prognósticos, recolhidos em sua autobiografia e nas dedicatórias de estátuas (História do Império Romano, II, 9, 3-4). 26 No entanto, podemos duvidar que Caracala tenha mesmo feito sacrifícios humanos, uma vez que Dião Cássio trata esse imperador como um mau príncipe e pode usar dessa afirmação como mais um argumento contrário a Caracala. 27 Em Herodiano podemos ler sobre esta temática em: História do Império Romano, II, 9, 5-6; III, 4, 3; IV, 12, 36. E em Dião Cássio: História Romana, LXXV, 3, 1-3; 8, 1; LXXVI, 3, 4; 5, 5, 11, 1-2; 16, 2-5; LXXVIII, 1, 46; LXIX, 2,1; 4, 1-4; 7, 1-5; 8, 1-6. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 245 A ligação de Apolônio de Tiana na VA com as previsões é muito grande, sendo mostrado que ele levava um estilo de vida diferente justamente para ser capaz de fazer previsões: [...] não levo uma vida como os demais; eu mesmo disse isso no princípio, a respeito do meu regime, que é leve e mais saudável que o sibaritismo dos demais. Isso, imperador, conserva meus sentidos indescritivelmente claros e não permite que haja nada nebuloso neles, mas, ao contrário, que percebam, como no reflexo de um espelho, tudo o que sucede ou venha a suceder (VA, VIII, 7.9). Uma das adivinhações mais conhecidas de Apolônio foi a que livrou a cidade de Éfeso de uma praga (VA, IV, 10) e sua visão sobre a morte do imperador Domiciano (VA, VIII, 26), também citada por Dião Cássio (História Romana, LXVII, 18). Apolônio era conhecedor de astronomia e astrologia, como vemos nas passagens a seguir: Participavam de reuniões dialéticas [referindo-se a Apolônio e ao brâmane Iarcas], mas os debates secretos, nos quais refletiam sobre astronomia e adivinhação, aplicavam à presciência e tratavam sobre sacrifícios e invocações com as quais os deuses gozavam. Damis disse que apenas Iarcas o acompanhava em seu filosofar, e compôs, como resultado das discussões, quatro livros Sobre a adivinhação pelas estrelas, que foi mencionado também por Moeragenes (VA, III, 41). Damis disse que Iarcas deu a Apolônio sete anéis com o nome dos sete astros, e que Apolônio os levava sucessivamente, de acordo com os nomes dos sete dias da semana (VA, III, 41). Para nós, a identificação de Apolônio com os elementos de adivinhação pode ser algo do personagem histórico que ele possivelmente foi, pois também estão em suas cartas. (Carta 8.1). Mas acreditamos que esse elemento pode ter criado mais uma identificação entre Apolônio e a casa imperial severiana, nos moldes do que pensamos que Filóstrato objetivava fazer em função de seus propósitos maiores com a escrita da obra. Voltando às características orientais da religiosidade severiana, Réville (2006, p. 34) destaca que elas favoreciam ainda mais o culto imperial, uma vez que as regiões do Oriente já estavam habituadas aos cultos dos reis como divindades. Septímio Severo recebe o título de dominus noster, que implicava uma autoridade divina com caráter sagrado. As imperatrizes também receberam honras divinas. Júlia Domna era Augusta, mãe da pátria e dos campos, ela fez seu culto ser associado ao de mãe dos deuses e foi elevada ao grau divino, como mais tarde o foram Júlia Mesa e Júlia Mamea. Ainda conforme Réville, Júlia Domna foi adorada CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 246 como uma espécie de nova Deméter e nova Juno na Grécia. E, como nos mostra Dião Cássio, ώeliogábaloΝnãoΝfoiΝbemΝaceitoΝaoΝseΝcolocarΝaoΝladoΝdoΝpróprioΝdeusμΝ“AΝofensaΝconsistiaΝnãoΝ na sua introdução de um deus estrangeiro em Roma ou na exaltação de modos muito estranhos, mas por ele mesmo se colocar perante o próprio Júpiter e por manipular para que fosseΝeleitoΝcomoΝsacerdote”Ν(História Romana, LXXX, 11, 1). No entanto, mesmo com a influência de características e ritos religiosos orientais presentes na corte, concordamos com Richard Krill (1978) que não devemos pensar o período dos Severos como um momento de modificações religiosas e orientalização nos cultos religiosos de maneira ampla. Para Krill (1978, p. 40-41), há um grande afluxo de deuses dos povos provinciais para Roma durante os Antoninos e os Severos, especialmente orientais, mas não há nenhuma grande mudança durante a dinastia dos Severos pelas suas origens. Com exceção de Heliogábalo, os Severos, mesmo com suas práticas com características orientais, também se esforçaram em manter os deuses da religião romana tradicional, o que nós vemos nas diversas reconstruções de templos em Roma ordenadas por Septímio Severo.28 E apesar da origem oriental severiana, Septímio Severo honrou o panteão romano tradicional em sua política religiosa e sua esposa se aproximou nas representações artísticas e na cunhagem de moedas com as divindades tradicionais romanas, como Vênus, Juno e Vesta (GORRIE, 2004, p. 66). A própria restauração do templo de Vesta por Septímio, após o incêndio durante o governo de Cômodo, aparecia na cunhagem das moedas como sendo patrocinada pela imperatriz, que era representada com o título de Vesta mater, o que criava uma comunicação de continuidade com o passado e com as tradições romanas. Diante de tais considerações, no âmbito religioso percebemos alguns elementos orientais na corte severiana, mas percebemos também a busca pela continuidade e legitimação, por meio do uso de certas práticas tradicionais da religiosidade romana. Devemos destacar, da mesma forma, a importâncias das mulheres no poder imperial da dinastia severiana. O poder de Júlia Domna está, certamente, referido na VA (I, 3), quando Filóstrato comenta ter escrito a obra a pedido da imperatriz, o que, em nossa interpretação, foi uma forma de legitimar a escrita de seu texto, como tratamos no segundo capítulo. As capacidades intelectuais e de poder de Júlia também ficam expressas quando Filóstrato escreve que fazia parte de um círculo de intelectuais em torno da imperatriz (VA, I, 3; VS, II, 28 De acordo com Gonçalves (2013, p. 133) a reconstrução de tempos empreendida por Septímio Severo fez parte de um grande programa de reformas de monumentos e prédios romanos e configurou-se comoΝumΝ“atoΝdeΝ refundação, o restaurador se transformava num novo fundador, deixando seu nome para a prosperidade [...]έ” CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 247 622) e escreve para ela uma carta (Carta 73), comentando os estudos retóricos de Júlia, o que expusemos no primeiro capítulo. Desde o início do governo de Septímio Severo, Júlia Domna exerceu grande influência nas decisões do imperador, atuando de maneira ativa na corte e na administração imperial, como nenhuma imperatriz antes dela havia conseguido (HIDALGO DE LA VEGA, 2012, p. 141, 159). Mas parece-nos que uma participação maior de Júlia Domna no poder imperial se deu no governo de seu filho Caracala, cuidando de suas correspondências e petições, atendendo homens importantes em recepções públicas, sendo a conselheira do filho imperador em assuntos políticos (DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXVIII, 18, 1-3) e acompanhando-o em suas viagens e campanhas militares, das quais, possivelmente, Filóstrato fez parte, como mencionamos no primeiro capítulo da Tese. O poder de Júlia Domna está presente em sua relação com os sofistas, pois foi a imperatriz que concedeu a cadeira de retórica em Atenas a Filisco da Tessália, uma decisão que cabia apenas a imperadores (HIDALGO DE LA VEGA, 2012, p. 144). A imagem de poder de Júlia Domna foi tão grande que Dião Cássio (História Romana, LXXIX, 23, 3) comenta que ela gostaria de governar Roma após a morte de Caracala, nos moldes das lendárias rainhas orientais que governaram soberanas sem estar à sombra de um homem. No trecho a seguir, além de uma crítica aos desejos políticos de Júlia Domna, lemos uma aproximação da imperatriz romana com o Oriente, em nossa análise: “E consequentemente, aceitou melhor seu filho, pois ela esperava para se tornar a única governante e queria ser igual à Semíramis e Nitócris, na medida em que se sentia da mesma forma que elas.” Júlia Domna tinha uma irmã, Júlia Mesa, que a imperatriz trouxe para viver em Roma (HERODIANO, História do Império Romano, V, 3, 2), junto com seu marido, Júlio Avito. Júlia Mesa e Júlio Avito tiveram duas filhas Júlia Soêmia e Júlia Mamea, a primeira mãe de Heliogábalo e a segunda de Severo Alexandre. Júlia Mesa é considerada, pela documentação, a grande responsável pela queda de Macrino e pela volta dos Severos ao poder imperial, com a ascensão de Heliogábalo. Conforme nos conta Herodiano (História do Império Romano, V, 3, 3; 4, 1-2), foi Júlia que financiou os soldados para aclamarem Heliogábalo, ainda conhecido como Basiano e chamado de Antonino pelo historiador. A documentação frisa que foi Júlia Mesa, seguida de suas filhas Soêmia e Mamea, que detiveram o poder durante o governo desastroso de Heliogábalo. As princesas sírias, como ficaram conhecidas, também receberam muitos títulos. Sobre Júlia Soêmia, a História Augusta (Vida de Heliogábalo, 4, 1-3) nos conta que foi a única mulher a ser considerada CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 248 membro do Senado romano, durante o governo de seu filho Heliogábalo, tendo organizado uma espécie de Senado paralelo formado por mulheres. Esse mesmo documento menciona que Júlia Mesa assistiu à sessão do Senado (História Augusta, Vida de Heliogábalo, 15, 6; 12, 3) e Dião Cássio (História Romana, LXXIX, 17, 2) também comenta sobre a presença das duas Júlias, Mesa e Soêmia, em reunião do Senado. E durante o governo de Severo Alexandre, aclamado imperador em 222 com apenas treze anos, Herodiano (História do Império Romano, V, 5, 8-9) conta que até na guerra pesavam as decisões da mãe do imperador: Mas Alexandre falhou ao não invadir o território com seu exército [referindo-se à guerra contra os persas], de um lado por temor, para não arriscar sua vida em defesa do Império Romano, de outro lado porque sua mãe o segurava por covardia feminina e por exagerado amor pelo filho. Ela, nesse sentido, debilitava seus valorosos impulsos, convencendo-o de que outros deveriam se arriscar por ele e ele não deveria colocar-se no meio da batalha. Outro aspecto do contexto severiano que para nós está refletido na VA são os problemas em relação aos povos de fora da administração romana na parte oriental, especialmente com os partos, povo que também formava um grande império e era uma potência, como Roma, e que nunca foi conquistado pelos romanos.29 Os Severos tiveram grande preocupação com as fronteiras, no Ocidente e, especialmente no Oriente, como refere Anthony Birley (2000, p.134) ao tratar das percepções de Septímio sobre a importância das fronteiras orientais.30 À região do Oriente próximo, em parte organizada em reinos subjugados ao Império Parto, é a quem os imperadores do período rendem grande atenção, o que, conforme Millar (1993, p. 142) estava claro para os habitantes do Império Romano.31 Portanto, durante o governo dos Severos, os grandes inimigos no Oriente foram os partos, durante o período de Septímio e Caracala, e os persas sassânidas, conquistadores de regiões da Pártia, durante o período de Severo Alexandre. Além dos problemas que aconteceram entre romanos, partos e persas no período, é importante notar que: 29 As relações de Apolônio com os partos serão analisadas nos próximos subcapítulos. As informações sobre a situação entre romanos, partos e persas, que desenvolveremos a seguir, são fruto de nossas interpretações de Dião Cássio e Herodiano em diálogo com alguns autores da historiografia atual, como Millar (1993), Southern (2004) e Gonçalves (2005). 30 O que não significa, ressaltamos, que os Severos não tiveram também problemas nas regiões ocidentais, como bem mostra Dião Cássio em diversas passagens de sua obra. 31 Ver Anexo 21, mapa do Império Parto. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 249 [...] empreender guerras aos partos se revestia de um sabor especial para os romanos. Além de ser uma terra rica, de cidades antigas e pela qual passavam grandes rotas comerciais, a Pártia havia sido conquistada pelo macedônio Alexandre, em seu caminho para a Índia, o modelo preferencial dos Imperadores romanos do Alto Império, e havia uma boa justificativa para empreender este combate, pois sempre se poderia vingar a derrota sofrida no passado. A Pártia era símbolo de uma Ásia remota e nunca completamente dominada nem mesmo por Alexandre. Acrescente-se que os romanos no Alto Império, com a diminuição das conquistas territoriais, buscaram fortalecer o limes com barreiras naturais como cadeias de montanhas e rios. Portanto, dominar as regiões próximas aos rios Tigre e Eufrates se convertia numa empresa de defesa mais do que de ataque. (GONÇALVES, 2005, p. 14). Para Birley (2000, p. 134), Septímio tinha uma aguçada percepção da importância das fronteiras orientais e era astuto sobre o modo como ele podia controlá-las.32 “τΝreinadoΝdeΝ Septímio Severo foi norteado por empreendimentos de grande envergadura: logo no princípio, por duas vezes – em 194-195 e em 197-199 – arremeteu contra os Partos, apodera-se da Alta Mesopotâmia transformada em província [...] e mais tarde [...] partiu para outros extremos [...]”Ν(ἑώRISTτδν NONY, 1993, p. 201). Assim, logo no começo do período severiano há guerras entre romanos e partos e, como consequência, a incorporação de parte da Mesopotâmia ao Império Romano (GRIFFITI, 2004, p. 317). Septímio cria uma província nessa região, em 198, a província de Osroena, na qual são estabelecidas duas das três recém-criadas legiões partas.33 A conquista de Septímio de parte da Mesopotâmia alterou profundamente a balança estratégica do Império (MILLAR, 1993, p. 142). Ao voltar da expedição contra os partos, Septímio Severo recebe o título de Parthicus Maximus, título que outrora o imperador Trajano tinha tomado pela primeira vez. Durante o período de Septímio Severo temos a divisão da província da Síria em duas menores, Síria Coele (norte) e Síria-Fenícia (sul), o que, conforme Sartre (1994, p. 53), aconteceu devido à importância que a Síria havia alcançado, provada pelo apoio da província ao governador Pescênio Nigro, inimigo de Septímio Severo.34 32 Trataremos aqui apenas dos problemas nas regiões orientais na época dos Severos, por acreditarmos que é nessa parte que Filóstrato apresenta, ainda que de maneira não implícita, preocupações na VA. 33 Dião Cássio (História Romana, LXXV, 1-3) relata as guerras empreendidas por Septímio Severo contra o reino de Osroena, em constante disputa entre romanos e partos. Por esse motivo compreendemos que o historiador romano conclui que, ao final, os romanos estavam lutando as batalhas desses povos (medos e partos) ao invés de suas próprias batalhas. 34 Ver Anexo 22, mapa das guerras romano-partas empreendidas por Septímio Severo. Ver Anexo 23, mapa do Império Romano em 230, após essas mudanças no território imperial feitas no tempo em que governou a dinastia dos Severos. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 250 Caracala inicia uma expedição militar contra os partos após voltar de uma campanha nas fronteiras da Germânia.35 Mas antes das campanhas militares, o imperador consegue um acordo com o rei parto Vologeno V, envolvendo a região da Armênia. No entanto, logo depois, Vologeno V é destronado pelo irmão Artabano, contrário ao acordo com os romanos. Caracala, então, tenta um casamento com a filha do rei parto Artabano V, inspirando-se em Alexandre, o Grande, a quem Caracala rendia grande admiração, tema que trataremos ainda neste tópico. Caracala envia ao rei parto uma embaixada com presentes e uma carta. Na carta busca unir-se ao rei parto para juntos formarem um grande império e anexarem povos bárbaros. A proposta dessa carta era fazer da Mesopotâmia um reino cliente e com isso deixar o trono ao futuro filho do casamento (HERODIANO, História do Império Romano, IV, 10, 14; DIÃO CÁSSIO, História Romana, LXXVIII, 1.1). Sem dúvida, esse matrimônio era muito semelhante ao de Alexandre com a princesa persa Roxana. Caracala imitava a ação estabelecida pelo macedônio (BANCALARI MOLINA, 2007, p. 250). O casamento é, no entanto, recusado pelo rei parto e as campanhas de Caracala no Oriente não têm o mesmo sucesso que as de seu pai anos antes. Caracala permite que suas tropas destruam necrópoles reais dos partos em Arbela, capital da região de Adiabene, o que causa muito rancor entre os partos (SARTRE, 1994, p. 53). Na VA, Apolônio repreende um prisioneiro que conheceu durante o período em que ficou preso aguardando ordens de Domiciano, alegando que se entre seus crimes estivesse o ato de roubar tumbas reais, seria de fato um criminoso. – Se tua riqueza foi obtida por meios ilícitos, como pirataria e posse de pessoas que matam outras, ou ainda por haveres removido de tumbas de reis de outrora, onde abundam ouro e tesouros, é preciso não apenas que te julguem, mas que te matem, pois essa riqueza é desonrada e não humana (VA, VII, 23). Essa fala de Apolônio pode, claramente, estar associada às críticas de Filóstrato aos atos de Caracala, que ele vivenciou em seu contexto histórico, especialmente porque sabemos que nosso sofista não gostava desse imperador, como já comentamos. Caracala foi assassinado em 217 pelos partidários de Macrino, seu prefeito do pretório, quando estava em campanha na região da Mesopotâmia. A guerra contra os partos arsácidas chegou ao fim com negociações territoriais durante o governo de Macrino, que também recebeu o título de Parthicus Maximus. Em seu curto governo, Macrino (217-β1κ)ΝpassouΝoΝtempoΝtodoΝnoΝτriente,ΝoΝqueΝ“serveΝparaΝilustrarΝ 35 Ver Anexo 24, mapa das guerras de Caracala no Oriente. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 251 o progressivo deslocamento da estrutura imperial de suas raízes em instituições na cidade de Roma”Ν(εIδδAR,Ν1λλγ,ΝpέΝ144)έ Sob o governo de Heliogábalo não temos registros de grandes problemas com os partos. As fontes textuais sobre o governo desse imperador se voltam essencialmente para Roma, não deixando claras informações sobre a situação das províncias (SOUTHERN, 2004, p. 59). Mas com Severo Alexandre os problemas nas fronteiras orientais voltam a receber grande destaque. Em 211/212, ainda durante o governo de Caracala, os persas, sob a dinastia Sassânida, iniciam várias tentativas de conquistar partes do Império Romano. Em 220 os persas, liderados por Artaxerxes I, soberano de Estakhr, na província de Fars, começam a ocupar o Império Parto, iniciam ataques a territórios romanos e se tornam uma das maiores preocupações do Império Romano no momento (MILLAR, 1988, p. 345). Em 224, os persas sassânidas matam o último rei parto arsácida.36 A instalação dos persas sassânidas na Mesopotâmia veio acompanhada de uma ofensiva contra Roma. Em 230 atacaram quase simultaneamente a Armênia, a Mesopotâmia (Nísibe) e a Síria. Severo Alexandre respondeu a ofensiva com as campanhas de 231 e 234, mas as cidades do norte da Síria conheceram os ataques estrangeiros (SARTRE, 1994, p. 54). Conforme Sartre (1994, p. 45) com a dinastia dos persas sassânidas no poder, há uma mudança radical na questão militar romana, Roma, agora, mais do que um Império conquistador, necessita proteger-se e conservar suas conquistas. É nesse sentido que lemos na documentação a necessidade de os romanos negociarem com os persas, a fim de os conterem e evitarem seus ataques. Durante o governo de Severo Alexandre, Herodiano informa que: [...] inesperadamente chegaram cartas dos governadores da Síria e da Mesopotâmia, informando que Artaxerxes, o rei dos persas, havia derrotado os partos, aumentando seu domínio sobre o Oriente, e havia matado Artabano, o rei anterior coroado com diadema. Também havia subjugado os bárbaros da região e os havia submetido ao pagamento de tributos. Depois de todas essas vitórias, continuava em estado de guerra e não permanecia dentro do limite do rio Tigre. Mas, depois de cruzar os rios que constituíam a fronteira do Império Romano, saqueava a Mesopotâmia e ameaçava a Síria. Acreditava que todo o território, que vai até a Europa, separado pelo Egeu e o estreito de Propóntide, conhecido com o nome de Ásia, era uma possessão dos seus antepassados. Queria, assim, recuperá-lo para o Império Persa. (História do Império Romano, VI, 2, 1). 36 A conquista do Império Parto pela dinastia Sassânida é um processo que durou anos. No entanto, aceitamos 226 como data da conquista, por ser nesse ano que Ardashir, rei sassânida, ascendeu ao trono do Império sassânida. Ver Anexo 25, mapa do Império Persa sassânida. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 252 Do mesmo modo, Dião Cássio traz importantes informações sobre os conflitos entre romanos e persas no contexto de Alexandre Severo: A situação na Mesopotâmia tornou-se ainda mais alarmante e inspirou um medo genuíno em todos, não apenas em Roma, mas no resto do mundo também. Pois Artaxerxes, um persa, depois de vencer os partos em três batalhas e matar o rei deles, Artabano, fez uma campanha contra Hatra, na tentativa de capturá-la como base para atacar os romanos [...]. Ele, consequentemente, se tornou temível para nós, pois estava acampado com um grande exército, ameaçando não apenas a Mesopotâmia, mas também a Síria (História Romana, LXXX, 3, 1-3). E Herodiano informa sobre a tentativa de diplomacia de Alexandre com Artaxerxes, enviando, mais de uma vez, negociadores para tratar com o rei dos persas para que este não entre em guerra contra os romanos, negociações essas que não dão resultado, iniciando-se a guerra (História do Império Romano, VI, 2-3, 4). Severo Alexandre se prepara para uma expedição militar no Oriente, partindo de Roma em 231. A principal proposta da expedição é um contra-ataque aos persas. Não há muitas informações sobre essa expedição, mas, de maneira geral, as campanhas contra os persas foram satisfatórias naquele momento e Alexandre Severo recebeu o título de Parthicus Maximus e Persicus Maximus.37 Mas a importância das negociações diplomáticas ficou clara, conforme mostrou Herodiano. Severo Alexandre morreu em 235 na Germânia superior, colocando fim à dinastia dos Severos. As fronteiras orientais e os conflito com partos e persas constituíram, como vimos, grandes preocupações para os Severos. Diante de tais considerações, acreditamos ser possível pensar que a preocupação de Filóstrato em mostrar Apolônio em contato com esses povos, valorizando a cultura grega nesses contatos, está associada ao que acontecia na época em que Filóstrato viveu e aos acontecimentos que lhe foram contemporâneos. A questão geográfica parece ter preocupado tanto os Severos que os estudiosos indicam que pode ser da época destes imperadores (de Caracala mais precisamente) a elaboração do Itinerário Antonino – Itinerarium Antonini, ou pelo menos de parte dele. Esse itinerário é uma espécie de guia de viagens, com rotas, estradas e distâncias de localizações, considerado o maior dos itinerários romanos que chegaram aos nossos dias.38 Achamos que a 37 Para uma compreensão geral da situação de conquistas romanas e Impérios Parto e Persa no Oriente ver Anexo 26, mapa do Império Romano e os conflitos no Oriente entre 114-270. 38 Francis Betten (1921, p. 296) informa que, embora o nome do itinerário remeta aos imperadores antoninos, parece que nenhum deles está relacionado com sua produção. Nicholas Reed (1978, p. 229) acredita que é bem provável que o itinerário tenha sido elaborado no século III. Ele pode ter sido elaborado durante o governo de Caracala ou, talvez, elaborado ou compilado nos idos de 280, seguindo indicações de estudos anteriores sobre nomes de lugares mencionados no itinerário que não existiam antes de 286. Mas a ausência de citações de legiões criadas após 286 deixa a data de elaboração não confirmada. O autor ainda comenta sobre a possível CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 253 escrita da VA e as preocupações de descrições de viagens e cenários geográficos podem ter ligação com as preocupações que levariam à elaboração desse guia. Além do mais, as preocupações com questões geográficas refletem, a nosso ver, também preocupações com questões identitárias, o que nos parece bem presente no período severiano e na VA. Além desses problemas nas fronteiras, também em relação à questão territorial, de alguma forma, devemos destacar que foi muito forte a ligação dos Severos com a imagem de Alexandre, o Grande, considerado pela tradição como um grande conquistador de territórios orientais. Conforme Bancalari Molina (2007, p. 244-246), a referência ao monarca se tornou quase obrigatória nos escritores da época imperial. Dentre os imperadores júlio-claudianos, Calígula e Nero se destacaram como admiradores de Alexandre. Trajano adulou o macedônio por seus triunfos militares e por suas conquistas orientais. Com os Severos, Alexandre, que representava o êxito militar e o elemento de coesão dos povos, foi o referente perfeito. Severo parecia visar o mito de Alexandre com intuitos propagandísticos e, de acordo com Dião Cássio (História Romana, LXXV, 13, 2), não deixou de visitar o túmulo de Alexandre em uma de suas viagens. Mas foi com Caracala que a figura de Alexandre tomou grandes proporções na imagem do imperador romano. No governo de Caracala a aemulatio/imitatio Alexandri chegou a um dos pontos mais fervorosos. Tanto a pessoa como o mito e o culto ao macedônio foram reforçados em Roma por este príncipe que tinha forte obsessão e mania de considerar-se o novo Alexandre, chegando inclusive a chamá-lo, comoΝcontaΝDiãoΝἑássioΝdeΝ“AugustoΝdoΝτriente”Ν[έέέ]έΝ Assim como alguns historiadores insistem na alexandrofilia do imperador, igualmente a arqueologia evidencia outros indícios do fanatismo e da admiração que ele sentiu pelo jovem conquistador. Por exemplo, um camafeu mostra a Augusta Júlia Domna representada como Olímpia, a mãe de Alexandre. Por sua vez, o culto religioso que se praticava em honra de divindades greco-orientais como Ísis, Serápis, Hércules e outras, confirmam que o imperador buscava se assimilar a Alexandre (BANCALARI MOLINA, 2007, p. 247-248). Dessa forma, percebemos a forte ligação de Caracala, justamente o imperador que promulgou a Constitutio Antoniniana, com o monarca macedônio. compilação do itinerário no século IV. Denis Van Berchem (1973) aproxima uma parte do itinerário da rota de viagens ao Oriente de Caracala em 214-215 e informa que o título do itinerário é Itinerarium provinciarum (imperatoris) Antonini Augusti, devido apenas a essa parte do mesmo, ligando, pelo menos essa seção do guia, ao imperador Caracala. O nome Antonino que aparece no título do guia, para nós, pode estar ligado ao nome oficial desse imperador. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 254 A imagem de Alexandre, o Grande, está ligada ao surgimento de Severo Alexandre no cenário político romano. Dião Cássio (História Romana, LXXX, 18, 1-3) escreve sobre o aparecimento do espírito do macedônio na Mésia Superior e na Trácia na época de adoção do futuro imperador por Heliogábalo, seu primo. A própria adoção do nome de Alexandre por este imperador liga-o ao monarca referenciado por sua dinastia, nome adotado pela primeira vez entre os imperadores romanos, conforme destaca Millar (1993, p. 149). Em História do Império Romano (V, 7, 3), Herodiano conta da mudança de nome de Alexiano (Severo Alexandre) para Alexandre para associar-se ao antigo rei macedônio. Notamos que o Apolônio da VA segue alguns passos do macedônio, especialmente em sua viagem para a Índia, e isso para nós novamente está relacionado ao contexto de Filóstrato em que a imagem de Alexandre se encontrava muito presente nas representações imperiais. Para concluir este subcapítulo, conferimos que, mesmo mediante as continuidades por nós apresentadas entre os Severos e as dinastias anteriores, não podemos negar que a característica essencial severiana é marcar no Império um momento de mutações. Resumiríamos tais mutações, ocorridas durante o governo dessa dinastia, nos seguintes pontos: as origens orientais dos membros da casa imperial, a importância do exército na aclamação dos imperadores, o maior número de equestres entrando no Senado de Roma, o grande número de provinciais de fora da Itália ocupando cargos político-admistrativos imperiais, a natureza dinástica do poder, a importância das mulheres da família imperial no comando do Império, especialmente durante o governo de Heliogábalo e Severo Alexandre, e, como destaca Kemezis (2006, p. 46), a relação dos imperadores com a fé e o divino que esteve ao lado da elevação ao poder. Por fim, cabe mencionar que alguns autores consideram os Severos como uma dinastia do Alto Império.39 Outros autores, por sua vez, os consideram dentro do arco cronológico de início da Antiguidade Tardia ou Baixo Império. 40 Sobre tais conceituações, cabe mencionar que discordamos das definições de Alto e Baixo Império. Na redação desta Tese preferimos usar a expressão Principado. Compreendemos Principado como o governo do Princeps,Ν quandoΝ háΝ umaΝ concentraçãoΝ deΝ “poderesΝ político-jurídicos, militares e religiosos nas mãos de um único líder, o princeps ou imperator” (SILVA, G. V.; SOARES, 2013, p. 141). Os historiadores utilizam o termo Principado para se referirem ao período 39 Como Harmand (1959). Como Frighetto (2012) e Jones (2001, p. 185), que em estudo sobre a VA, considera a mesma escrita no contexto da Antiguidade Tardia. 40 CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 255 correspondente aos primeiros séculos do Império Romano e, pelas razões apontadas, preferimos usar o termo Principado ao termo Alto Império. Em relação ao uso do conceito de Baixo Império, preferimos o uso da conceituação de Antiguidade Tardia. Os historiadores que optam pelo uso da denominação Antiguidade Tardia se contrapõem ao uso do termo Baixo Império,Ν poisΝ afirmamΝ queΝ esseΝ sugereΝ aΝ existênciaΝ deΝ umaΝ “queda”Ν ouΝ “decadência”Ν naΝ estrutura administrativa, nos valores estéticos, religiosos e morais do Império Romano desta época. Esses estudiosos entendem o período dos últimos séculos entre o Império Romano e a chamada Idade Média como um período de transformações.41 Diante do que apresentamos neste subcapítulo, para nós, a melhor definição para o momento histórico dos Severos é a de uma dinastia em um Império em mutação. Sabemos que as demarcações e denominações para períodos são cunhadas conforme linhas historiográficas de interpretação, mas, acima de tudo, são definições de caráter classificatório com a finalidade de dar sentido ao passado narrado.42 Além disso, sabemos que não devemos desconsiderar a diversidade existente no Império Romano, com diferenças e ritmos próprios em cada uma das regiões. Mas, para nós, a dinastia que apresentamos é exatamente o ponto de mutação entre o Principado e a Antiguidade Tardia. Assim sendo, estamos concordando com Carrié e Rousselle que iniciam sua obra L’Empire Romain en mutation; des Sévères à Constatin 192-337 (1999), justamente com a dinastia severiana.43 Feitas as referências sobre aspectos da dinastia severiana que consideramos importantes para a compreensão de nossa documentação, faremos agora a análise da representação de Filóstrato dos contatos político-culturais nas viagens de Apolônio. 41 Dentre os precursores na utilização do conceito de Antiguidade Tardia destacam-se os alemães Heinrich Fichtenau, Heinrich Dannenbauer, Eric Auerbach, Hans-Joachim Diesner e Karl Friedrich Stroheker, com a difusãoΝ doΝ termoΝ “Spätantike” (JAMES, 2008, p. 21), e as obras The World of Late Antiquity (1971), do irlandês Peter Brown e Decadence romaine ou Antiquité Tardive? IIIe-Ve siècle (1977), do historiador francês Henri-Irénée Marrou. No Brasil, destacamos os trabalhos da historiadora Margarida Maria de Carvalho. Há ainda autores que utilizamΝ oΝ termoΝ “Dominato”Ν paraΝ referir-se ao período posterior ao Principado, por acreditaremΝ queΝ aΝ expressãoΝ identificaΝ bemΝ umΝ “processoΝ deΝ centralizaçãoΝ políticaνΝ pelaΝ expansãoΝ semΝ precedentes da burocracia; por uma especialização das atividades administrativas e militares; por um decréscimo visível da competência institucional do Senado; pelo esvaziamento da noção de cidadania; pela perda de autonomia das cidades, colocadas sob tutela do poder central; e pela emergência de uma representação da realeza que fazia do imperador (o dominus ou α – basileus) um ser divino, deus et dominus natusέ”Ν(SIδVA,ΝύέΝ V.; SOARES, 2013, p. 142). Preferimos o termo Antiguidade Tardia ao termo Dominato por acreditarmos que ele define melhor as fronteiras entre a Antiguidade e a Idade Média. 42 Sobre as formas como os historiadores dão inteligibilidade aos períodos históricos, criando denominações que lhes dão sentido, sugerimos a leitura de GUARINELLO, 2003. 43 John Crook (1975, p. 126) enfatizaΝ queΝ “asΝ sementesΝ doΝ ImpérioΝ Romano Tardio são plantadas com os Severos [...]”. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 256 4.2 As viagens da Vida de Apolônio de Tiana: contatos político-culturais, fronteiras e identidade grega A VA nos remete a longas viagens durante toda a vida adulta do protagonista que, conforme Filóstrato, talvez tenha vivido até mais de oitenta anos (VA, VIII, 29). Apolônio sai da Capadócia, passando pelas províncias da Cilícia, Panfília e Síria. A caminho da Índia, passaΝ pelaΝ regiãoΝ daΝ Armênia,Ν porΝ terrasΝ doΝ ImpérioΝ Parto,Ν viajaΝ pelaΝ chamadaΝ “terraΝ dosΝ árabes”,ΝpelaΝἑíssiaΝeΝestabeleceΝpousoΝdeΝumΝanoΝnaΝἐabilôniaέΝσaΝvoltaΝdaΝÍndia,ΝApolônioΝ para novamente na Babilônia, volta a uma cidade que talvez seja Nínive (Assíria) ou Hierápolis (Síria) e depois para em várias cidades gregas. Então, viaja para Roma, Gades (Hispânia Bética, atual Cádiz), regiões do norte da África romana, Egito e Etiópia. Nos últimos livros, Apolônio faz novas viagens para cidades gregas, Roma e terras itálicas.44 Logo no começo das suas viagens, quando Apolônio se prepara para sair das fronteirasΝ administrativasΝ doΝ ImpérioΝ Romano,Ν mencionaΝ queΝ iráΝ “viajarΝ eΝ sairΝ deΝ suasΝ fronteiras”Ν (ἀπ ῖ αὶ ὑπ ῳ αἴ α – apodemein te kai hyperorioi airesthai), posicionando-se, em nossa análise, como um cidadão desse Império e tendo o limite entre ele e o outro, além do recebimento da paideia, também as fronteiras geográficas do Império Romano: Depois daquilo, concebendo a ideia de uma viagem mais distante, lhe veio à mente o povo indiano e seus sábios, que se chamam brâmanes e hircânios, dizendo que era bom para um homem jovem viajar e sair de suas fronteiras [...] (VA, I, 18). Dessa maneira, é como um grego, mas um grego inserido no Império Romano e em seu processo imperialista, e não contrário a esse, que interpretaremos as viagens de Apolônio nas páginas que seguem.45 O primeiro contato que ressaltamos nas viagens de Apolônio é o encontro do tianeu com seu futuro discípulo Damis (VA, I, 19). Na tradução do grego para o espanhol da Editora Gredos, Pajares (1980) traduz o nome da cidade desse encontro como Nínive. Jones (2005), por sua vez, em sua tradução da VA para a Harvard University Press (Loeb Classical Library) traduz como está no grego: Antiga Ninos. Jones (2001, 2005) propõe que a cidade tratada 44 Ver mapa do trajeto de viagens de Apolônio de Tiana em Anexo 1. Ver também Apêndice 3: Catálogo geográfico da Vida de Apolônio de Tiana e situação das localidades apresentadas em relação ao Império Romano na época dos Severos. 45 Iniciamos nossa interpretação das viagens seguindo a ordem cronológica das mesmas na VA, mas mudamos a interpretação da ordem de trajeto de Apolônio em alguns momentos, para fazer a análise dos contatos estabelecidos da maneira que consideramos mais adequada para a demonstração de nossa tese. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 257 como Nínive, a cidade do discípulo Damis, não é a cidade assíria de Nínive, mas a cidade de Hierápolis, na Síria. O problema ocorre porque Filóstrato não menciona o nome da cidade em si, mas a trata como Antiga Ninos (ἀ χαῖα ῖ – archaia Ninos) e, segundo Jones, pela análise da rota de viagem de Apolônio seria mais coerente que essa cidade fosse Hierápolis e não Nínive, sendo que a denominação Antiga Ninos podia referir-se tanto a Hierápolis, como a Nínive (JONES, 2001, p. 188). Concordamos com Jones que o trajeto mais coerente de ser compreendido seria Apolônio sair da região da Cilícia, passar na Antiga Ninos que seria Hierápolis (na Síria),46 passar em Zeugma, seguir pela Armênia (acima da Mesopotâmia), passando depois pela chamada terra dos árabes (Osroena, norte da Mesopotâmia) e descer rumo ao sul da Mesopotâmia. No entanto, devemos considerar que os conhecimentos geográficos dos antigos não eram precisos como os que temos hoje. Mas Jones defende (2005, p. 75) que Filóstrato (VA, I, 9) menciona que na Antiga Ninos havia um culto a um ídolo comparado com o mito grego de Io, que tinha cabeça de vaca. Hierápolis era famosa por ter o santuário da deusa síria Atargatis, com corpo de peixe. A citação da divindade zoomórfica seria uma pista para Jones de que a Antiga Ninos é Hierápolis na VA. No entanto, Filóstrato chama Damis de assírio em algumas passagens.47 O uso do termo assírio é visto por Jones (2005, p. 49) como um recurso literário mais arcaico. Observamos que Filóstrato também se refere à população da cidade de Antioquia, na Síria, como assírios.48 Filóstrato menciona ainda que Damis vivia na fronteira com os medos (VA, VII, 14) o que, entretanto, não nos dá pistas sobre ser a Síria ou a Assíria essa fronteira, pois isso dependeria da ótica do que é a fronteira com os medos de Filóstrato, caso ele tenha considerado a Mesopotâmia, sob larga influência de medos/partos, como região dos medos, a Síria (região fronteiriça com a Mesopotâmia) poderia ser a terra de Damis. 49 Mas caso ele não tenha considerado a Assíria como parte do Império Parto, por ser apenas uma região tributária, poderia ser essa a fronteira com os medos/partos.50 Como a relação estabelecida entre o tianeu e seu discípulo é extremamente importante na análise das fronteiras identitárias, tema que nos propomos desenvolver nesta tese, consideraremos as duas possibilidades de origem de Damis em nossa análise sobre sua relação com Apolônio. 46 Ver Anexo 19, mapa localizando Nínive (Assíria) e Hierápolis (Síria). ἑomoΝemμΝ“PorΝserΝassírioΝ(Ἀ - Assyrios) e viver próximo dos medos ( - Medois)”Ν(VA, VII, 14). Damis é chamado de o homem de Ninos em VA, I, 19 e de assírio também em VA, I, 19; III, 43 e VIII, 29. 48 “VisitouΝtambémΝAntioquia,ΝaΝgrande,ΝquandoΝtinhaΝdeixadoΝdeΝguardarΝsegredoΝeΝchegouΝatéΝoΝsantuárioΝdeΝ Apolo Dafneo, o que os assírios (Ἀ - Assyrioi)ΝrelacionamΝcomΝaΝlendaΝarcádia”Ν(VA, I, 16). 49 Ver Anexo 23, mapa localizando as províncias romanas da Síria. 50 Ver, novamente, Anexo 19, mapa localizando Nínive e a região da Assíria. 47 CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 258 Herodiano (História Romana, LXXX, 1, 1) e Dião Cássio (História Romana, LXXX, 11, 2; 12, 2) usaram o termo assírio para se referirem a Heliogábalo, que era sírio, em passagens citadas no tópico anterior. Essa indicação de Herodiano e Dião Cássio, assim como as próprias indicações da VA, demonstram que Jones parece ter razão ao afirmar que Damis era sírio, mesmo sendo, em algumas passagens, mencionado como assírio. Tais passagens apresentam a não existência de uma distinção muito clara entre os termos sírio e assírio para estes escritores. No encontro de Apolônio e Damis fica marcado algo que será desenvolvido em toda obra, a presença de elementos culturais gregos entre os bárbaros. Filóstrato nos descreve que há uma estátua de aspecto bárbaro, uma divindade em forma de animal que ele relaciona com Io, sacerdotisa de Hera e amante de Zeus, que foi transformada por Hera em uma vaca.51 Portanto, mesmo no mundo bárbaro que ele depreciará logo em seguida, o narrador, pelas palavras do protagonista, encontra elementos em comum com os gregos, o que mostra que um diálogo é sempre possível, sendo, a nosso ver, uma forma de mostrar que a cultura grega possuía elementos facilitadores do diálogo com os mais diferentes povos. Filóstrato expõe, em nossa visão, a cultura grega como elemento de comunicação que pode ser uma forma de integração interna, entre habitantes do Império Romano, se considerarmos Damis como sírio ou entre os gregos e os habitantes de fora do Império, se o considerarmos como assírio, pois ele rende admiração pelos gregos, dizendo:52 Quando me encontrei pela primeira vez com Apolônio, ele me pareceu cheio de sabedoria, sagacidade, sobriedade e constância e, quando vi a capacidade de memória que ele possuía e sua devoção pelo conhecimento, foi como algo sobrenatural para mim. Assim, percebi que acompanhando-o pareceria sábio e não ignorante, homem educado e não bárbaro. E, em sua companhia chegaria até os indianos, chegaria a vê-los e me mesclaria aos gregos, sendo transformado por ele em grego (VA, III, 43). Mas, por ter sido educado entre os bárbaros, Apolônio deprecia a linguagem de Damis como medíocre (VA, I, 19), assim como deprecia os bárbaros em outra passagem da VA, quando comenta que o assírio Damis não conhecia a liberdade como os gregos, pois vivia próximo às fronteiras com a terra dos medos, onde se honravam tiranos (VA, VII, 14). A 51 O mito de Io é descrito por Ovídio em sua obra As Metamorfoses (Livro I). Embora haja poucas informações sobre a organização do Império Parto, William Ainger Wigram (2002) informa que a região da Assíria, assim como outras cidades e comunidades, permaneceu por muito tempo sujeitada aos partos, pagando tributos e sendo governada por seus próprios sub-reis ou sátrapas, um privilégio que parece ter-se estendido do antigo Império Persa. Destacamos que a Assíria chegou a ser província romana com as conquistas de Trajano em 116, deixando de ser parte do Império Romano nos anos posteriores à morte deste imperador. 52 CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 259 cultura grega de Filóstrato passa aqui de elemento integrador para elemento diferenciador, mostrada em aspecto relacional com a cultura do outro (bárbaros: sírios ou assírios e medos), sendo, portanto, ressaltada em seus aspectos positivos (educação e liberdade contra tiranias). Cumpre notar outro aspecto da visão de Filóstrato nessa passagem, caso consideremos Damis sendo da Assíria, região parte do Império Parto, nosso sofista entende e frisa a diversidade cultural dessa formação imperial, pois não o considera como medo/parto, mas como um assírio.53 Da mesma forma, ele considera seus sofistas na VS em relação à formação imperial em que viviam, pois eles eram de várias partes do Império Romano, como apresentamos no terceiro capítulo da Tese. No entanto, uma coisa unia, para Filóstrato, tanto os sofistas vindo de diferentes partes do Império Romano, como também Damis, o bárbaro da Assíria e até os partos, chamados por ele de medos, como desenvolveremos a seguir: o conhecimento e a admiração pela cultura grega. Caso consideremos Damis como sírio de Hierápolis, devemos observar que Filóstrato reconhece os habitantes da Síria como bárbaros mesmo estando dentro das fronteiras administrativas do Império Romano. Porém, Filóstrato demonstra que acredita ser possível que eles se tornassem pessoas melhores, gregos no caso, se recebessem a paideia, como lemos na supracitada fala de Damis. Colocamos em relevância que também era da cidade de Hierápolis um dos sofistas da VS, Antípatro de Hierápolis (VS, II, 607), que, como mencionamos no primeiro capítulo, foi preceptor dos filhos de Septímio Severo e muito próximo de Filóstrato. A presença de Antípatro de Hierápolis na VS reforça nossa análise sobre a visão de Filóstrato de que, mesmo sendo da Síria, uma pessoa podia ser considerada grega se recebesse adequadamente a paideia. Em outra passagem Apolônio ensina a Damis que onde quer que o sábio esteja, ele deve se sentir como na Grécia, pois deve se manter como um grego, conservando a virtude. 53 Os medos dominaram a região da Média (Ásia central, Planalto iraniano), tendo partos e persas como reinos tributários. No século VI a.C. o rei dos persas Ciro rebela-se contra Astíages, rei da Média, derrotando-o e criando um novo império em que persas e medos ocupavam os principais cargos de governo, como os de sátrapas e generais (Primeiro Império Persa ou Império Aquêmenida). Em 330 a.C., no entanto, a Média é conquistada por Alexandre, o grande, e passa a fazer parte do Império Helenístico. Com a morte de Alexandre, a região se vê dividida entre o governo do Império Selêucida (descendente do Império Helenístico) e os partos. Estes últimos, por sua vez, aos poucos se fortalecem e começam uma grande conquista de território, formando um novo império na região, o Império Parto (GARTHWAITE, 2005). Durante o final da dinastia dos Severos, como já tratamos neste capítulo, o Império Parto é conquistado pelos persas da dinastia Sassânida (Império Persa Sassânida). Sugerimos, novamente, ver o Anexo 21, mapa localizando o Império Parto e o Anexo 25, mapa localizando o Império Persa sassânida. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 260 Talvez penses que errar na Babilônia seja menos grave do que errar em Atenas, Olímpia ou Pito, e não consideras que, para um homem sábio, a Grécia está em todo lugar, e ele não considerará ou confiará em nenhuma região, nem deserto, nem bárbaro, vivendo sob os olhos da virtude (VA, I, 35). A Grécia, portanto, na visão de Apolônio/Filóstrato, está no homem instruído, no recebimento da paideia, e não no lugar em si que este homem esteja ou do qual provenha. Podemos concluir, desta forma, que os sofistas, como típicos representantes destes homens instruídos (π πα υ – pepaideumenoi), para nosso autor, simbolizam a Grécia, em uma espécie de metáfora. A Síria, também possível região de origem de Damis, é justamente de onde provêm Júlia Domna, as mulheres de sua família, Heliogábalo e o imperador Severo Alexandre, o qual acreditamos ser, possivelmente, o governante do Império Romano na época em que Filóstrato apresenta sua VA. Sendo assim, considerando Damis dessa região, uma mensagem é passada por Filóstrato na VA: o imperador e as demais pessoas nascidas em uma região como a Síria podem tornar-se educadas com um preceptor grego ao seu lado, assim como Damis se tornará por seguir Apolônio. Em nossa análise, esse grego só poderia ser um sofista como o autor da biografia, com quem Apolônio apresenta diversas semelhanças. Filóstrato, nesse sentido, observa a transformação do Império em que vivia e marca uma posição para seu grupo e mais uma possível função para os sofistas junto à corte imperial. Após o encontro com Damis, Apolônio segue viagem com seus discípulos e dois escravos que o acompanhavam (VA, I, 18), e, então, chegam à cidade de Zeugma (VA, I, 20), na fronteira entre os territórios romano e parto. É possível que haja um erro geográfico de Filóstrato aqui, pois acima ele já havia descrito Apolônio em Nínive, cidade bem adiante de Zeugma.54 Como já comentamos no segundo capítulo, Filóstrato também mostra erros geográficos em outros momentos do trajeto do tianeu (VA, I, 24; III, 4, 35, 50).55 Mas o importante a ser considerado nesta passagem são os valores que Apolônio diz levar ao mundo bárbaro: justiça, virtude, temperança, coragem e perseverança. O funcionário parto que o recebe chama esses elementos de escravos, mas Apolônio rebate, mostrando uma diferença entre ele (o grego) e o bárbaro: esses elementos não são escravos, mas senhores, ou seja, são, 54 Ou um erro em considerar a cidade do encontro de Apolônio com Damis como Nínive, conforme tratamos na discussão apresentada por Jones (2001, 2005). Sugerimos, novamente, ver mapa em Anexo 19, localizando Zeugma e Nínive. 55 O erro geográfico em VA, I, 24 é Filóstrato confundir a Císsia com a região dos cosseos, povos montanheses nômades. A região da Císsia, cuja capital era Ecbátana (cidade mencionada por Filóstrato), era muito distante da Babilônia e não podia ser percorrida a pé em um dia, como sugere o sofista como duração da viagem de Apolônio até essa região (PAJARES, 1980, p. 96-97; JONES, 2005, p. 91 e 95). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 261 em nossa interpretação, dignos de serem servidos e não de serem servos; são propriamente o que diferencia, para Filóstrato, gregos e romanos de bárbaros. Chegando à Mesopotâmia, o funcionário aduaneiro que estava encarregado da passagem de Zeugma o levou até o registro e lhe perguntou o que levava consigo. E Apolônio lhe respondeu: – Justiça, virtude, temperança, coragem e perseverança. E, dessa forma, enumerou muitos nomes no feminino, ao que o outro que o olhava em sua ganância, disse: – Inscreve, então, no registro, suas escravas. – Não é possível, lhe respondeu, pois não são minhas escravas que lhes trago, mas minhas governantes (VA, I, 20). Em relação à Armênia, Apolônio apenas passa por essa região e pela terra dos árabes, mas vale observar que Filóstrato as menciona como terras de povos bárbaros e ruins, que ainda não haviam sido incorporadas pelos romanos, deixando implícito, para nós, sua visão dos benefícios de ser parte do Império Romano.56 O sofista também mostra desprezo por estas regiões ao não se interessar em tratar de assuntos das passagens de Apolônio por elas, escrevendo apenas, segundo ele, para nada omitir do relato de Damis: Pois bem, com precisão, e por eu não ter omitido nada do que está escrito por Damis, queria me referir também ao que constituiu o objeto de seu interesse enquanto viajava por entre bárbaros. Mas há, em minha narração, coisas mais importantes e mais dignas de admiração. No entanto, não deixarei de mencionar estas duas em absoluto: o valor que Apolônio deu ao atravessar povos bárbaros e alucinados, que ainda não estavam submetidos aos romanos e o conhecimento que adiquiriu, pelo procedimento árabe, da linguagem dos animais (VA, I, 20). No entanto, mesmo havendo certo desprezo do narrador pelos povos bárbaros, ele não deixa de mencionar que estes podiam ensinar algo até a um sábio como Apolônio, que era o conhecimento sobre a adivinhação, prática que despertou muito interesse nos imperadores Severos, como vimos no subcapítulo anterior. Continuando a viagem pela Mesopotâmia, Filóstrato expõe características geográficas dos rios Tigre e Eufrates e apresenta opiniões de moradores da região sobre como 56 A região da Armênia foi um importante território de disputas entre partos e romanos por sua privilegiada posição estratégica (ver a região da Armênia no mapa do Anexo 26). Chegou a ser incorporada como parte de província romana e também foi um reino-cliente do Império Romano. Durante as guerras que antecederam a dinastia severiana, Septímio pediu ajuda ao rei da Armênia em suas batalhas contra Nigro, que, no entanto, foi negada, alegando o monarca armênio neutralidade no conflito romano (GONÇALVES, 2005, p. 17). Caracala, como mostramos no subcapítulo anterior, fez negociações com o rei parto Vologeno V, envolvendo a Armênia. Portanto, era uma região foco dos romanos no período em que Filóstrato escreveu a VA. Para mais informações sobre a situação da Armênia durante o Império Romano, sugerimos a leitura de MITFORD, 1980. A terra dos árabes se refere aqui aos povos do norte da Mesopotâmia, conforme nota de rodapé número 6, do Apêndice 3. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 262 consideram a geografia local (VA, I, 20), proporcionado aos seus leitores um relato sobre costumes culturais, como o conhecimento dos árabes sobre a linguagem dos animais usado como forma de profetizar o futuro. Tais descrições étnicas e geográficas, a nosso ver, são importantes em um momento em que a região da Mesopotâmia era alvo de atenção dos imperadores de Roma, pois era justamente a área de interesses conflitantes dos romanos e partos e, depois, dos persas, como tratamos no tópico anterior sobre as conquistas dos Severos no Oriente. Continuando as viagens do tianeu, ainda descendo a região da Mesopotâmia, Apolônio se encontra na Císsia, onde viviam povos gregos erétrios deportados da ilha da Eubéia pelo rei persa Darío I (522-486 a.C.), mais de seissentos anos antes (VA, I, 23). Nesta passagem, novamente, Filóstrato apresenta uma descrição geográfica e etnográfica da região. Ali, Apolônio encontra templos em estilo grego e túmulos com epitáfios em grego, muitos destes sepulcros estavam destruídos e Apolônio os reergue em honra aos gregos (VA, I, 24). Ao descer a região da Mesopotâmia e chegar à fronteira da Babilônia, Apolônio primeiramente é barrado por um sátrapa, que após reconhecer quem ele era, diz que o admira há muito tempo, recebendo-o como hóspede e lhe oferecendo presentes. Apolônio, antes de ir embora,Ν chamaΝ oΝ sátrapaΝ deΝ “meuΝ caríssimoΝ amigo”Ν – ὦ Ν – o loiste (VA, I, 21), indicando a visão de Filóstrato sobre a possibilidade de amizade entre gregos, mais especificamente de alguém como Apolônio, e governantes do Império Parto. Ainda nessa passagem (VA, I, 21), o narrador, por meio de Apolônio, designa o rei parto Vardanes como medoΝ( ῆ Ν– medos) e não menciona, em momento algum, o termo parto.57 Para nós, essa forma de designar o rei parto busca ligar os partos aos antigos medos, uma vez que os partos formaram, em um passado distante, uma tribo do Império Medo, depois conquistado pelos partos, para, em seguida, ter seus territórios conquistados pelos persas Sassânidas. Desta maneira, a aproximação de partos e medos expressa, a nosso ver, a não distinção de ambos povos enquanto o mesmo tipo de bárbaro (o bárbaro oriental, inimigo do Império Romano), pois Filóstrato certamente sabia de suas histórias de interações culturais, mas também de suas rivalidades. Além disso, como nos mostra Charlotte Lerouge (2011, p. 146-147), a identificação que os antigos estabeleciam de um povo estrangeiro dependia muito 57 Vardanes II foi rei da Pártia entre 40-45, sucedeu a seu pai Artabano II após disputar o trono com o irmão Gotarzes (JONES, 2005, p. 83). Joseph Wiesehöfer (2001, p. 317) situa o governo de Vardanes, da dinastia Arsácida, entre 38 e 45. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 263 das crenças sobre suas origens e, graças a isso, temos muitos textos que tratam das origens dos partos, embora tais origens estejam marcadas por numerosas incertezas. Essa informação nos faz acreditar que Filóstrato identificou os partos e os medos na VA, remetendo à relação direta dos medos como inimigos, lembrando que os persas também eram identificados com os medos e eram considerados os grandes inimigos dos gregos e agora do Império Romano.58 Ao mesmo tempo em que os partos representaram de fato uma ruptura da dominação de vários outros povos no Oriente, eles são identificados por Filóstrato em uma relação de continuidade histórica com os medos, continuidade essa que os próprios partos frisaram como forma de legitimação de seu poder, conforme indica, novamente, Lerouge (2011, p. 152). Em plena época de guerras romano-partas, que foi o período severiano, e depois conquista da região por parte dos persas sassânidas, Filóstrato parece contribuir para que seus leitores vejam essas guerras em ligação com as Guerras Médicas e mesmo com a gloriosa expedição de Alexandre contra povos do Oriente. Apolônio entra na cidade da Babilônia (VA, I, 25-40), seu primeiro destino. Na Babilônia, encontra vestígios da cultura grega presentes em adornos de casas com pinturas de cenas mitológicas. Na entrada da cidade é barrado novamente por um sátrapa que lhe pede que preste reverência a uma estátua de ouro do rei parto, ato que, conforme Filóstrato, apenas não era pedido a um embaixador a serviço do imperador romano (VA, I, 27). Nessa passagem, citada integralmente por nós no Capítulo 3, Apolônio, no entanto, diz que só honrará o rei após conhecê-lo e demonstra seus sábios conhecimentos ao sátrapa que o deixa passar sem honrar a estátua. Vemos que o tianeu não serve ao imperador de Roma, mas tem capacidades para tal, pois é respeitado por sua sabedoria como se estivesse realizando uma embaixada oficial. Para nós, com esses dizeres, Filóstrato busca que seu discurso seja compreendido pelos seus leitores dentro de suas intenções de exaltação de alguém com a paideia grega. Finalmente, Apolônio se encontra pessoalmente com o rei parto Vardanes (VA, I, 2940), com quem passará um ano e oito meses (VA, I, 22).59 A primeira coisa que o rei diz a 58 Da mesma forma que Filóstrato não diferencia na VA partos e medos, Heródoto, a saber, não diferenciava medos e persas, chamando as guerras entre gregos e persas de Guerras Médicas, como se os dois povos fossem o mesmo. Lemos essa não diferenciação em: Heródoto, Histórias, I, CLXXXV e em outras passagens. O geógrafo Estrabão (64/63 a.C. - 24), no entanto, identifica uma unidade cultural entre medos, persas e armênios, mas os chama por nomes diferentes em sua Geografia. Estrabão não inclui os partos nessa comunidade cultural, embora sua língua e suas vestimentas sejam identificadas com influências dos medos pelo geógrafo, e seus costumes com os mesmos que Heródoto identifica para os persas (LEROUGE, 2011, p. 151-152). Dião Cássio e Herodiano também ligaram as origens dos partos aos persas (LEROUGE, 2011, p. 155). Em linhas gerais, esses povos estiveram em conflitos e interações por séculos. 59 Antes de encontrar o rei Vardanes, o tianeu se encontra com os magos babilônicos (VA, I, 26), mas, como comentamos no segundo capítulo, nada é dito sobre esse encontro provavelmente por uma apreensão de CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 264 Apolônio é que já lhe conhecia a fama, pois seu irmão havia visto Apolônio discursar em Antioquia e lhe havia falado sobre o sábio (VA, I, 31). Vardanes convida o tianeu a acompanhá-lo em uma celebração religiosa ao Sol, o que Apolônio faz, mas pede que o rei faça à sua maneira e ele de outra, pois não participava de sacrifíciosΝdeΝsangueμΝ“– Celebrai vós, rei, à vossa maneira e me permiti que celebre daΝminha”Ν(VA, I, 31). Na passagem acima há uma confluência nas práticas religiosas de Apolônio e dos partos e, embora com aspectos diferentes, ambos conseguem negociar os elementos de uma e de outra cultura e a celebração é realizada. Fica apresentada uma pluralidade cultural, o que, em nossa leitura, nos remete aos Severos. O culto do Sol, como já tratamos ao longo da pesquisa, é um elemento oriental que os Severos trazem a Roma. Vardanes conversa com Apolônio em grego e diz conhecer bem a língua grega. Achamos esse fato possível, lembrando que as origens da Pártia remontam a uma satrapia do Império Helenístico e, depois, do Império Selêucida, herdeiro das conquistas de Alexandre. O uso do grego, especialmente como língua de diplomacia e administração, se estendeu imensamente com as conquistas de Alexandre no século IV a.C. e depois com o Império Selêucida.60 No entanto, parece-nos um exagero de Filóstrato mostrar que o rei parto fala a língua de Apolônio, o grego ático, tão bem quanto sua própria língua de origem.61 Tomemos como exemplo o diálogo entre Apolônio e o rei parto Vardanes: Apolônio: – Rei, vós conheceis toda a língua grega ou apenas um pouco dela para compreender mais ou menos e não parecer descortês com algum grego? Rei: – Conheço toda a língua grega, respondeu, tanto quanto a do meu povo. Fala sobre o que quiseres, pois é seguramente por isso que me fazes uma pergunta (VA, I, 32). A mesma relação acontece com a língua grega entre os indianos (a Índia é o próximo local de estadia do tianeu). Apolônio chega a se admirar com o conhecimento que os indianos tinham do grego (VA, III, 12). No entanto, a nosso ver, o sofista apresenta também sua visão Filóstrato a fim de que seu protagonista não seja confundido com um mago charlatão diante da ambiguidade que a prática da magia apresentava em sua época. 60 E, como é conhecido, Alexandre conquistou o Egito, a Síria, a Palestina, e chegou ao Oriente até o norte da Índia ocidental, precisamente ao rio Hifasis – atual rio Beas, mais oriental dos afluentes do Punjab. Com sua morte, seus generais controlarão o Egito, a Ásia menor, Fenícia, Síria, Palestina, Mesopotâmia, regiões do atual Irã e norte da Índia (CASSIO, 1996, p. 991). Conforme Albio Cassio (1996) os testemunhos arqueológicos atestam que no Império Parto a língua grega era usada em documentos como contratos, cartas, base de estátuas e moedas. O que torna o testemunho de Filóstrato sob Vardanes e a língua grega coerente. 61 Como indica Cassio (1996), a língua grega que será difundida pelo Império de Alexandre e de seus generais, macedônios grego-fônicos, a koiné helenística (Κ Ν Ν – koine hellenike), é criada a partir do ático clássico, reunindo elementos de diferentes dialetos gregos, sobretudo, o jônico, permanecendo substancialmente ático no sistema fonológico. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 265 das interações culturais que existiam na Antiguidade, expondo como as identidades são marcadas pela fluidez das fronteiras, mesmo entre povos considerados bárbaros. Temos, assim, a autodescrição do rei indiano Fraotes para Apolônio: – Temia achar que eu fosse atrevido quando ainda não me conhecia por mim mesmo, e achar que eu era um bárbaro não por decisão da sorte. Mas, após ter te conquistado, porque vejo que me aprecias, não posso me ocultar, assim te demonstrarei em vários aspectos que estou bem preparado em língua grega (VA, II, 27). Apolônio conversa em grego com um mensageiro dos sábios que encontra ao chegar à cidade dos brâmanes:62 “DizemΝqueΝapósΝchegarΝcorrendoΝatéΝApolônio,ΝlheΝdirigiuΝaΝpalavraΝ em língua grega e lhes pareceu extremamente estranho que todos da aldeia falassem grego”Ν (VA, III, 12). E temos os diálogos entre o sábio brâmane Iarcas e o tianeu. No primeiro lemos que o sábio, além de falar em grego, está atento a essa língua, reparando um erro na carta de recomendação que lhe enviou o rei Fraotes sobre Apolônio e no segundo diálogo lemos sobre a admiração de Damis ao ver que o indiano falava grego muito bem: Ao ver Apolônio cumprimentou-o em língua grega e lhe pediu a carta do indiano. Apolônio estranhou essa sua clarividência e Iarcas lhe observou que faltava uma letra na carta, um delta, seguramente, que havia escapado a quem escreveu (VA, III, 16). Enquanto o indiano discursava, Damis afirma que sentiu grande admiração e que ele falou com grandiloquência. Ele nunca pensou que um indiano tivesse tal domínio da língua grega, e nem pensava sequer que um indiano conhecesse a língua grega, mas ele dissertou com muita facilidade e oportunamente (VA, III, 36). Diante dessas informações, indagamos o que diferencia para Filóstrato aqueles homens – o rei parto, considerado um bárbaro na VA (I, 37, 39), mas conhecedor da língua grega, o rei indiano Fraotes e os sábios indianos – daqueles que receberam a paideia, uma vez que eles sabem falar grego, interagem com a cultura grega e, como demonstramos no terceiro capítulo, não era o local de nascimento elemento decisivo na identificação como grego?63 Além disso, como sabemos, a língua era a melhor forma de distinção entre gregos e não MembrosΝ daΝ maisΝ elevadaΝ castaΝ sacerdotalΝ indiana,Ν “detentoresΝ doΝ poderΝ espiritual,Ν era-lhes prescrito o cumprimento de seis atos – ensinar,Νestudar,ΝsacrificarΝparaΝsi,ΝsacrificarΝparaΝoutros,ΝofertarΝeΝreceberΝofertas”Ν (ROSA, 2009, p. 120). 63 O rei parto Vardanes, mesmo governando bárbaros, por sua atenção ao sábio grego e pelo seu grande contato com a cultura grega, é considerado um homem bom na VA, inclusive, bom demais para governar bárbaros (VA, I, 40). 62 CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 266 gregos na Antiguidade, sendo que na origem do conceito de bárbaro estava justamente a ideia de que não fala grego (NIPPEL, 1996, p. 168). O que os diferencia, a nosso ver, é que, além de eles não terem um passado em comum, não estavam sob a administração de Roma, não estavam nos limites da cidadania e, por isso, são citados como sábios, mas ao mesmo tempo bárbaros, embora dentro dos limites do Império Romano também pudesse haver bárbaros, como veremos a seguir. O elemento diferenciador é, portanto, muito mais político-cultural do que geográfico. Mas, diferentemente de Filóstrato, que vê a possibilidade de comunicação entre falantes de grego e bárbaros, por mostrar que muitos bárbaros orientais falavam grego, seu contemporâneo Herodiano parece não ter a mesma ideia, ressaltando a fala do rei parto Artabano de que não poderia haver harmonia no casamento de sua filha com o imperador Caracala, que lhe pede em casamento, como já apresentamos, justamente por ambos não falarem a mesma língua (História do Império Romano, IV, 10, 5). Dessa maneira, embora existisse de fato uma comunicação em grego no Oriente romano e não romano, especialmente para fins diplomáticos, percebemos que Filóstrato exagera em sua apresentação justamente como forma, frisamos, de afirmação identitária, afirmação essa que não deve ser descontextualizada do momento em que ele vivia e das relações estabelecidas por ele com os homens e mulheres poderosos do Império Romano dos Severos. De volta à análise sobre os contatos político-culturais estabelecidos entre o tianeu e o rei parto, é interessante ligarmos a ideia de Apolônio se relacionar muito bem com o rei parto Vardanes (Livro I) mesmo, segundo nossas análises, confundindo partos com medos e, consequentemente, identificando-os com o inimigo secular dos gregos. A apresentação de Filóstrato das boas relações entre o tianeu e o rei parto só reforça nossa ideia de que Filóstrato quer mostrar como a cultura grega pode ser um elemento positivo de comunicação e boas relações, até com o inimigo. Portanto, Filóstrato e os sofistas, cujas capacidades são projetadas em Apolônio, têm muito a oferecer ao Império Romano na sua relação com os inimigos orientais, relações que, como desenvolvemos, passavam por um período de muitas guerras no contexto severiano. Filóstrato narra sobre a honra prestada pelo antigo rei Arsaces I, o fundador do Império Parto ao deus grego Dionísio, que ele diz ser chamado e honrado por todos orientais como Niso, havendo até um monte, Monte Nisa, dedicado ao deus, com um santuário. O monte é motivo de lendas para os bárbaros, segundo o narrador, e conhecido por todos os gregos (VA, I, 3). Lemos nessa passagem a identificação de Filóstrato de elementos culturais entre bárbaros e gregos, marcando hibridismos nas práticas culturais e afirmando a presença CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 267 da cultura grega no Oriente, embora Filóstrato diferencie histórias sobre Dionísio entre gregos e indianos (VA, II, 9). No entanto, há certo exotismo na descrição do outro após Filóstrato ter escrito sobre tais interações. O narrador nos conta sobre o aparecimento de homens de quatro cotovelos e de uma empusa, espécie de animal sugador de sangue a Apolônio e seus seguidores (VA, II, 4). E menciona as façanhas de Alexandre na região do monte Nisa (VA, II, 9). Nessas passagens, Apolônio nos parece uma espécie de sombra de Alexandre, sendo que o macedônio conquistador das terras indianas é lembrado a todo o momento. Filóstrato comenta que, em uma batalha na Índia, Alexandre consagrou um elefante ao Sol por tê-lo ajudado a combater (VA, II, 12). Em Taxila, cidade indiana, Apolônio encontra inscrições gravadas nas paredes de um templo, contando as façanhas de Alexandre (VA, II, 20) e, novamente, encontra um templo dedicado ao Sol (VA, II, 24). Os caminhos de Alexandre são seguidos por Apolônio também após sua estadia na Índia, o que Filóstrato faz questão de mencionar (VA, III, 53). Percebemos como muitos elementos do contexto severiano em que viveu Filóstrato estão presentes nessas narrações. Lembremos que Caracala tinha enorme admiração por Alexandre, o conquistador do Oriente, além de ser a divindade do Sol uma característica da família sacerdotal de Júlia Domna e seus descendentes. Após Apolônio deixar Vardanes, segue caminho para a Índia, Filóstrato demonstra novamente a relação de amizade estabelecida com oΝreiΝpartoμΝ“AΝregiãoΝpela qual passavam era fértil e as aldeias os recebiam com grande atenção, pois o primeiro camelo levava uma barra de ouro na frente, paraΝdemonstrarΝaΝtodosΝqueΝoΝreiΝlhesΝenviavaΝumΝdeΝseusΝamigos”Ν (VA, II, 1). E novas descrições étnicas são minuciosamente traçadas pelo narrador. Apolônio é bem recebido por todos os indianos, desde nômades montados em elefantes que cruzam seu caminho (VA, II, 6), até os sábios indianos, cujo encontro é mostrado como sendo o objetivo inicial da viagem (VA, III, 16, 29). Ao chegar à fronteira do reino dos partos com as terras indianas, Apolônio e seus seguidores se encontram com um sátrapa indiano que os recebe muito bem por trazerem uma carta de recomendações do rei parto Vardanes. Conforme Francisco Gusmán Armario (2012) os partos sempre foram um problema na relação dos romanos com os indianos, uma vez que seu território ficava nas rotas que ligavam o Império Romano à Índia. Mas, Filóstrato escreve exatamente o contrário, é o rei parto Vardanes que recomenda Apolônio para o rei indiano. Essa representação de Filóstrato é significativa e é compreendida também como uma afirmação da cultura grega de Apolônio, facilitadora da comunicação com partos e, por isso, admirada. O sofista expõe aos leitores da VA o valor da cultura grega até para se chegar à Índia. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 268 O sátrapa indiano oferece a Apolônio e seu grupo um barco oficial e um guia para acompanhá-los até o encontro com o rei, recomendando ao seu rei que não fosse inferior ao rei parto no trato comΝ “umΝ homemΝ gregoΝ eΝ divino”Ν (VA, II, 17). No caminho até Taxila, a maior cidade indiana, o narrador apresenta muitos detalhes geográficos sobre o rio Indo, sua fauna, sua flora e as condições meteorológicas no trajeto (VA, II, 18-20)64. Há um paralelismo muito grande na descrição de indianos e egípcios nessas passagens, mostrando que Filóstrato inegavelmente compara as duas regiões em termos geográficos e também em termos étnicos.65 Em relação às descrições geográficas e étnicas, que também aparecerão em diversos outros momentos do texto da VA (III, 1-9, 53-57, IV, 15; V, 1-7; VI, 1-3, 24-26), consideramos que elas não estão na obra apenas para ilustrar e embelezar a narrativa, função que de fato cumprem, mas parece-nos que o propósito delas pode ir além se considerarmos novamente o contexto severiano, as guerras no Oriente, a expedição de Caracala e a elaboração do Itinerário Antoniniano, feita possivelmente no mesmo contexto. Segundo Pedro Paulo Funari (2012, p. 09), o historiador romano Salústio (86-35 a.C.) considerou a geografia e sua apresentação essenciais para as batalhas e para determinar as características culturais que condicionavam os feitos históricos. Em nossa interpretação, portanto, as descrições étnicas e geográficas da VA têm o propósito de demonstrar os conhecimentos de Filóstrato, reforçando nossa hipótese sobre sua afirmação de que deveriam ser atribuídos papéis aos sofistas junto aos imperadores e ligando o texto da VA às suas preocupações conforme seu momento histórico. Prosseguindo seu trajeto, o tianeu chega a Taxila, na Índia, onde será hóspede do próprio rei indiano, Fraotes, por três dias. Logo ao encontrar o rei (VA, II, 26), a primeira observação de Apolônio é que o rei é um filósofo, o que o alegra muito e, para nós, mostra a importância que Filóstrato confere aos estudos dos monarcas e à ideia de um rei filósofo. Em conversa com Apolônio, o rei conta como evita a guerra com seus inimigos, os povos fronteiriços ao seu território, e Apolônio diz admirar o rei por sua busca pela paz, evitando as guerras. – E também os meus inimigos, declarou o rei, faço deles partícipes de minhas riquezas. Pois aos bárbaros que habitam junto dessa região, sempre hostis e fazendo incursões contra minhas fronteiras, acalmo-os com essas riquezas. Inclusive, a região é defendida por eles, que não somente deixam de invadir meus domínios, como até expulsam outros bárbaros vizinhos, que são intratáveis. 64 Segundo informações da Cambridge History of Iran, de 1983, as descrições de Filóstrato sobre a cidade indiana de Taxila são confirmadas por escavações arqueológicas, os detalhes mostrados pelo autor são, assim, suficientemente convincentes (JONES, 2001, p. 185). 65 Ver Anexo 27, mapa localizando a região indiana das viagens de Apolônio na VA e Taxila. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 269 E ao perguntar Apolônio se Poro também lhe tinha pagado algo, ele respondeu: – Poro amava a guerra, mas eu amo a paz (VA, II, 26). Essa passagem indica a visão do narrador sobre a importância de os governantes tentarem estabelecer a paz por meio de acordos e concórdias, evitando ao máximo as guerras, o que, pela leitura da VS e da VA, podemos ligar ao papel dos sofistas e de Apolônio como bons intermediadores de conflitos, tema que será trabalhado no próximo subcapítulo. Apolônio e os sofistas, portanto, são aqueles que cumprem o papel de assessorar governantes na busca pela concórdia e pela paz. Mais uma vez vemos os cultos ao Sol nas viagens de Apolônio pelo Oriente. O tianeu se mostra admirado pelo modo de Fraotes respeitar ao Sol (VA, II, 26). Apolônio desenvolve ainda uma longa conversa com o rei sobre os presságios e sobre as adivinhações realizadas por meio dos sonhos (VA, 36-38). Possivelmente aqui Filóstrato relaciona as práticas desse rei, como fez com as do rei parto Vardanes, com as práticas dos imperadores severianos e com o interesse do rei por presságios e adivinhações. O rei Fraotes se exercita à maneira grega (VA, II, 27) e pratica a filosofia (VA, II, 29), pois havia recebido uma educação de gregos junto aos sábios brâmanes (VA, II, 31), possuindo conhecimentos sobre obras literárias gregas, como as tragédias de Eurípides (VA, II, 32). Por tais práticas, Fraotes, como já comentamos, aparece como um modelo ideal de soberano e é elogiado em diversos momentos durante as conversas com Apolônio, Fraotes é idealizado justamente por ter sido educado à maneira grega por sábios brâmanes. As características ideais que Fraotes possui são expressas nesta passagem: Pois em um rei, uma filosofia moderada e indulgente consegue uma extraordinária combinação, como fica evidente em vós, mas a cuidadosa e avantajada parece vulgar, rei, por baixo de seu papel e, inclusive, os invejosos considerariam que isso implica certa vaidade (VA, II, 37). A partir do momento em que conseguimos estabelecer uma relação dos sábios brâmanes com Apolônio, pois o próprio se compara aos indianos em seus conhecimentos (VA, I, 26), e, estabelecemos relações do tianeu com os sofistas, para nós, Filóstrato deixa outra mensagem em sua representação de Fraotes como monarca ideal: ele é um rei sábio justamente porque teve sábios ao seu lado, presentes em sua educação, sendo esse, portanto, um papel que os sofistas podiam representar junto aos imperadores de Roma. Lembremos que Caracala e Geta, ainda crianças, foram educados por um sofista, Antípatro de Hierápolis, amigo de Filóstrato e biografado na VS (II, 607). Não é de estranhar, portanto, que nosso CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 270 sofista transmita essa mensagem na VA ao ligar Fraotes, o monarca ideal, a sábios análogos aos sofistas. Sabemos que era comum nos textos de gregos antigos se diferenciarem dos bárbaros do Oriente também por acreditarem que estes possuíam governos despóticos (NIPPEL, 1996, p. 177). No entanto, percebemos que Fraotes, ao contrário da tradicional imagem do déspota oriental, é visto como monarca ideal mesmo reinando em um mundo bárbaro. Portanto, a construção do outro na VA está totalmente ligada aos interesses de Filóstrato. O sofista trabalha com ideias e construções identitárias conforme seus propósitos. Após partir de Taxila, na busca pela terra dos sábios brâmanes, novamente Apolônio segue os caminhos de Alexandre, o que não deixa de ser mencionado por Filóstrato, que narra o encontro de Apolônio com uma estela de bronze que trazia escrito que ali era o limite do Império de Alexandre, (VA, II, 42). Esse limite, Apolônio, então, ultrapassa. Durante a travessia pelo rio Hifasis, o narrador nos conta que algumas árvores ao redor do rio são dedicadas à deusa Afrodite e a cultura grega se faz presente outra vez naquelas terras distantes. E novas descrições do outro como exótico aparecem ao verem uma mulher com uma metade do corpo negro e a outra metade branco, afirmando que ela nasceu assim por ter sido consagrada antes do nascimento à deusa Afrodite (VA, III, 1-4). Temos descrições de animais fantásticos como unicórnios míticos (VA, III, 2) e dragões (VA, III, 8), expondo que mesmo com as relações comerciais mantidas entre o Império Romano e a Índia, essa região ainda permanecia uma terra desconhecida e misteriosa para os escritores do Império. Segundo Gusmán Armario (2012, p. 252-254) há uma série de documentos, especialmente de natureza arqueológica, que mostram as relações comerciais entre Roma e Índia no século I. Tais trocas comerciais foram muito intensas, principalmente durante o período dos imperadores Augusto e Marco Aurélio. Filóstrato nos dá pistas dessas relações comerciais, e na VA (VI, 16) escreve sobre embarcações que partiam do Egito rumo à Índia. No entanto, Gusmán Armario (2012, p. 255), indica que as fontes literárias do Principado tratam muito pouco sobre as viagens rumo ao Oriente e, pelo menos em Filóstrato, a região é mostrada de forma bem exótica, em seus tipos de animais e tipos humanos, aos olhos de um grego do Império Romano. Mas, mesmo com esse exotismo étnico e da natureza, Filóstrato sempre descreve como Apolônio encontra elementos da cultura grega nas terras distantes: “ἑhegaram,Ν pois,Ν aΝ umaΝ fonteΝ deΝ águaΝ queΝ Damis,Ν logoΝ queΝ viu, afirma que se parece com Dirce,ΝnaΝἐeócia”Ν(VA, III, 17). E os sábios brâmanes “entoavam um canto como o hino de Sófocles, que se entoaΝemΝAtenasΝemΝhonraΝdeΝAsclépio”Ν(VA, III, 17). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 271 Assim como nas demais regiões por onde os viajantes já tinham passado, também os sábios indianos veneram divindades gregas e o deus Sol: Dizem que encontraram imagens de deuses, algumas não os surpreenderam, como no caso das indianas e das egípcias, mas também havia as mais velhas das estátuas gregas: Atena Políade, Apolo Delio, Dionísio Limneo, o Amicleo e outras tantas muito antigas. Dizem que os indianos as haviam erguido e veneravam de acordo com rituais gregos. Afirmam também que habitavam a parte central da Índia, considerando o pico da montanha como seu umbigo e celebrando ritos mistéricos com o fogo que há nela, que asseguram que são dos raios do Sol. Precisamente em sua honra, ao meio dia, entoam um hino todos os dias (VA, III, 14). Tratando ainda das relações comerciais entre Império Romano e Índia, Gusmán Armario (2012, p. 262) explica que com a ascensão da dinastia Sassânida, no período severiano, tais trocas são dificultadas, pois os persas passam a controlar o Golfo Pérsico, local essencial da rota dos romanos para a Índia. As trocas entre Império Romano e Índia, então, não desaparecem, mas sofrem alterações. Acreditamos que a escrita da VA, deste mesmo período, indica as pretensões de Filóstrato em mostrar como a cultura grega, encontrada na Índia, era algo importante para os romanos também em suas relações com as regiões do Oriente que não estavam sob a administração imperial. Voltando ao contato entre Apolônio e os sábios, sabemos que o tianeu foi até a Índia em busca de aumentar seus conhecimentos no contato com os brâmanes e, mesmo Filóstrato fazendo uma afirmação do saber grego – pois nas terras indianas Apolônio também ensina muito aos brâmanes – ali ele tem algo a aprender, como lemos no diálogo abaixo, entre Apolônio e o sábio indiano Iarcas, e na observação de Damis a seguir: – O que pensas, Apolônio, de nós? – O que eu penso? Não fica evidente o que penso, por ter vindo até vós, percorrendo um caminho que nenhum homem fez? – E o que acreditas que sabemos mais do que tu? – Eu penso, respondeu, que és mais sábio e muito mais divino. E que se não encontrar entre vós nada mais a aprender, terei aprendido que eu não tenho mais nada para conhecer. – Respondendo, o indiano disse: – Perguntamos aos recém-chegados de onde vêm e com qual propósito. Para nós, a primeira demonstração de sua sabedoria nos é dada com o fato de não desconhecer porque está aqui. [...] – Vens como participante dessa sabedoria, mas não de toda. – Ensina-me, então, toda a sabedoria, pediu Apolônio. – Sim, sem nada faltar, respondeu, pois isso é mais sábio que ter inveja e ocultar o que é digno de estudo. Mais ainda, Apolônio, vejo que tens boa memória, que é, das divindades, a que mais amamos. (VA, III, 16). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 272 Disse [referindo-se a Damis] que Apolônio, que já fazia uso da palavra com elegância e sem aspereza, melhorou, no entanto, na companhia daquele indiano e que, quando discutia sentado, assemelhava-se com frequência a Iarcas (VA, III, 36). À vista disso, na terra impenetrável dos sábios brâmanes, mesmo diante do exotismo local, Filóstrato define como também entre povos bárbaros pode haver algo de positivo e que os contatos podem ter valor para os não bárbaros (que são os gregos e os romanos). Um dos momentos mais significativos, em nossa leitura, nas conversas entre Apolônio e o sábio Iarcas está nesta fala do brâmane ao tianeu: – Parece que consideras como justiça o fato de não cometer injustiça e o mesmo, acredito, consideram todos os gregos. Pois como ouvi alguns egípcios que chegaram aqui certa vez, governadores romanos vão regularmente até vós com suas tochas levantadas, sem saber se vão governar miseráveis, mas vós, se estes não vendeis vossos veredictos, são chamados de justos. Ouvi dizer que a mesma coisa fazem traficantes de escravos ali, pois se chegam trazendo escravos cários, tratam de ponderá-los em seu modo de ser e estimam com elogios os escravos que não roubam. Dos governantes que afirmam estar submetidos, vós tendes a mesma estima e assim que, glorificando com os mesmos elogios dos escravos, os despedem como dignos de inveja, segundo acreditam (VA, III, 25). O que Iarcas realça é o fato de a Grécia estar sob o jugo do Império Romano sem que os gregos questionem isso e ainda considerem os romanos como justos. A atitude de Apolônio, ou melhor, do narrador Filóstrato, é calar-se após a fala do brâmane. Nada é comentado sobre isso, mostrando que Filóstrato consente, portanto, com o poder do Império Romano. Consideramos esse silêncio como um consentimento ao poder romano, pois o próprio Apolônio nos diz que é preciso saber ler no silêncio em outra passagem da obra (VA, I, 19). Da mesma forma, em relação aos espartanos, chamados pelos gregos em sua forma mais tradicional de lacedemônios, Apolônio os aconselha que mantenham silêncio diante da reprovação do imperador romano sobre o abuso de liberdade que viviam: Também na Lacedemônia aconteceu o seguinte: Chegou uma carta aos lacedemônios do imperador, que continha uma reprovação à sua Assembleia, dizia que abusavam de sua liberdade. Essas coisas caluniosas haviam sido escritas pelo governador da Grécia. Os lacedemônios se encontravam na incerteza e Esparta discutia consigo mesma se deveriam escrever buscando aplacar a cólera do imperador, ou se deveriam mostrar-se orgulhosos. Diante disso, fizeram de Apolônio seu conselheiro sobre o tom da carta. E ele, quando os viu divididos, apresentou-se ante a Assembleia e pronunciou este discurso: – Palamedes descobriu as letras não apenas para escrever, mas também para saber o que não deve ser escrito. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 273 Assim dissuadiu os lacedemônios de se manifestarem tanto de forma ousada como covarde (VA, IV, 33). Ainda durante a estadia de Apolônio junto a Iarcas, temos a descrição da chegada na terra dos sábios de um rei indiano de nome não mencionado. O rei chega junto acompanhado de pessoas em alvoroço, vestido com fausto e cheio de pedrarias, como os persas, é considerado desprovido de inteligência, falando coisas sem sentido, detestando os gregos e não falando a língua grega a ponto de precisar se comunicar com Apolônio usando o sábio Iarcas como intérprete (VA, III, 31). Iarcas comenta que se tratasse do rei Fraotes, que, como já mostramos, aparece como uma espécie de monarca ideal para Apolônio, haveria um silêncio e não todo aquele barulho (VA, III, 26). A apresentação desse rei de nome não mencionado, novamente, nos remete ao contexto severiano e tudo o que foi tratado por nós no subcapítulo anterior sobre Heliogábalo, imperador romano que se vestia ao modelo oriental e era sempre acompanhado de muitos rumores sobre sua vida e suas práticas, segundo os testemunhos de Dião Cássio e Herodiano. Assim, acreditamos que Filóstrato faz uma metáfora de Heliogábalo no rei indiano de nome não mencionado, e demonstra concordar com os historiadores severianos sobre a imagem negativa de Heliogábalo e sobre os valores que eram esperados de um monarca pelos grupos das elites. O barulho que acompanha o rei indiano denegrido parece, justamente, a representação dos boatos que rondavam o governo e a vida de Heliogábalo. Assim como Fraotes, o rei indiano que conhece a língua grega e admirava os gregos, é honrado e tido como um modelo de rei ideal, este segundo rei indiano, que não admirava os gregosΝeΝconsideravaΝqueΝ“nadaΝdosΝgregosΝéΝdignoΝdeΝmenção”Ν(VA, III, 29), é tido como um rei menor (VA, III, 27-33). Desse modo, a relação desses monarcas com a cultura grega e com os gregos também é um exemplo sobre o papel que Filóstrato defendia para os gregos, especialmente para os sábios. Para nós, possivelmente esses dois reis indianos simbolizam a visão de Filóstrato sobre Heliogábalo e Severo Alexandre e a relação de ambos com as tradições gregas no Império Romano. O monarca indiano diz que não gosta dos gregos por ter ouvido os egípcios, que visitam periodicamente a Índia, se referirem pejorativamente aos gregos. Mas após a conversa com Apolônio, o rei conclui que estava errado e diz que passará a não mais dar crédito aos egípcios (VA, III, 32). No entanto, Apolônio também viaja pelo Egito. Em Alexandria, capital da província romana do Egito, é recebido com mais honras do que o governador local e todos mantinham CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 274 uma admiração extraordinária por ele, especialmente porque os habitantes do Egito eram, no dizer do narrador, apaixonados pelos assuntos divinos, característica que, para nós, dava mais credibilidade ao tianeu, um homem extremamente respeitoso dos deuses e que tem como uma das funções na VA ser um ordenador de cultos religiosos conforme as antigas tradições gregas. Alexandria o amava, ainda que ausente, e sentiam muito sua falta. Além disso, no Alto Egito, por serem seus habitantes apaixonados pelos assuntos divinos, suplicavam que visitasse seus povos, pois diziam que muitos chegavam ali no Egito e muitos de todo Egito haviam se misturado com os dali. Apolônio era muito conhecido entre eles e os ouvidos dos egípcios estavam voltados para ele. Quando caminhava desde o navio até a cidade olhavam-no como se fosse um deus e abriam caminho para ele nas ruas como aos que portam objetos sagrados. Enquanto era acompanhado com mais pompa que os governadores de províncias, eram conduzidos até um lugar de execução doze homens, alguns bandidos, segundo a acusação [...] (VA, V, 24). Nesse trecho, Filóstrato refere a Alexandria como uma cidade do Egito, caracterizando os alexandrinos como egípcios apaixonados pelos assuntos divinos. Mas ao mostrar Apolônio extremamente reconhecido ali, deixa-nos entrever uma vontade em afirmar como a cultura grega era superior e reconhecida no local, mesmo diante da respeitada cultura egípcia. Ademais, o sacerdote egípcio da cidade aceita as propostas de mudanças religiosas feitas pelo grego Apolônio. No final da estadia em Alexandria, uma passagem significativa mostra que o tianeu respeitava a religiosidade e as tradições dos egípcios; trata-se do encontro de Apolônio com um leão domesticado como um cachorro, cuja alma era a do antigo faraó egípcio Amasis. Apolônio recomenda aos sacerdotes que enviem esse leão para a cidade de Leontópolis a fim de que ali seja cultuado como deveria ser um antigo faraó (VA, V, 42). Mas aqui Filóstrato rejeita Alexandria como uma cidade egípcia, pois recomenta que o leão seja enviado para o Egito, ou seja, fora de Alexandria. Ocorre uma espécie de confusão em tratar Alexandria como fazendo parte do respeitado Egito ou não. Pajares (1980, p. 330) acredita que Filóstrato mencione Alexandria à parte do Egito por essa cidade ter costumes e tradições gregas muito fortes. No entanto, o que lemos na VA é a crítica do autor aos costumes dessa cidade. Assim sendo, discordando de Pajares, para nós as críticas a Alexandria, pelo sofista, e sua rejeição da mesma como parte do Egito se devem às tradições da cidade, que haviam perdido sua helenicidade no julgamento filostratiano. Concordamos com Trapp (2012, p. 122) que a religiosidade da cidade é apresentada em tom de respeito. Para nós isso faz parte da própria tradição de Alexandria como uma terra CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 275 de sábios com muitos templos religiosos e do respeito que os antigos tinham pelas tradições milenares egípcias.66 No entanto, Apolônio é apontado como compreendendo mais sobre religiosidade que os habitantes da cidade (TRAPP, 2012, p. 122). No discurso, que já citamos ao tratar das semelhanças entre o Apolônio filostratiano e Dião de Prusa, no terceiro capítulo, Apolônio faz uma apresentação pública em um templo de Alexandria contra as corridas de cavalos no hipódromo, espetáculo que ele censura por relacionar ao derramamento de sangue e à violência. Nesse momento, Apolônio defende novamente a cultura grega no Império Romano, discursando a favor das competições de luta tipicamente gregas, como o pugilato e o pancrácio, que eram realizadas em Olímpia: E mais: em Olímpia, onde há competições de luta, do pugilato e do pancrácio, não morreu ninguém por culpa dos atletas, ainda que fosse possível se alguém cometesse excessos. Mas aqui é por causa dos cavalos que as espadas de um se colocam contra as de outro e os apedrejamentos andam na ordem do dia. Que caia fogo sob uma cidade assim, onde reina o lamento e a jactânciaΝ“deΝmatadoresΝeΝmortos,ΝondeΝaΝ terraΝemanaΝsangueέ”Ν Respeita a cratera comum do Egito, o Nilo! Mas para que lembrar do Nilo a homens que medem mais suas cheias com sangue do que com água? (VA, V, 26). Compreendemos que Filóstrato dá voz a Apolônio a fim de criticar um elemento da cultura romana que era encontrado em uma cidade provincial, as corridas de cavalo e a violência que ele censura nessas práticas, em que homens chegavam a se matar, segundo diz. No entanto, ele propõe os tipos de lutas gregas como forma alternativa de elemento identitário para esse Império. Diferentemente de outras passagens da VA nas quais ele encontra elementos da cultura grega nas cidades por onde passa, em Alexandria isso não acontece, ele até critica o que vê com a exaltação de práticas da cultura grega. Na exposição do narrador, com suas mudanças nas práticas religiosas e com seus aconselhamentos, Apolônio faz os habitantes de Alexandria melhores (VA, V, 28). Nesse sentido, Filóstrato considera que os habitantes de Alexandria devem respeitar o Egito, mas quando Apolônio lhes propõe diversões dignas de serem realizadas, enfatiza as tradições helênicas. Ao analisar a visão dos romanos sobre a cidade de Alexandria, Joana Clímaco (2013, p. 149) aponta que: Muitos relatos sobre a metrópole egípcia produzidos por não-alexandrinos nos fornecem importantes elementos para analisar a cidade segundo posições 66 No período ptolomaico foi valorizada a entrada de homens de todo Mediterrâneo, considerados eruditos, na cidade a fim de fazerem carreira no Museu e na Biblioteca (CLÍMACO, 2011, p. 65). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 276 imperiais, pois a cidade é definida a partir de jogos de poder e das relações estabelecidas com Roma. Nesse sentido, os relatos não apenas caracterizam e definem Alexandria, mas lançam luz sobre as preocupações e anseios romanos com relação à cidade que conquistara crescente importância no Mediterrâneo. Concordamos com essa historiadora e observamos que sua interpretação também pode ser válida para o caso dos gregos inseridos nas estruturas político-administrativas do poder imperial romano, como Filóstrato. Sobre a crítica de autores da época imperial aos costumes encontrados em Alexandria, no caso mais específico, os costumes voltados ao lazer, Clímaco (2013, p. 164) sugere que esta crítica era: [...] um modo de desviar o foco da Alexandria prazerosa e cultural, que estaria atraindo multidões e se destacando no setor. A elite romana não estimulava o desenvolvimento dessa tendência, pois por um lado, poderia aglomerar multidões e repercutir em caos e, pelo outro, a Capital do Império nos setores de entretenimento era Roma e não deveria haver outra. Não discordamos desta historiadora, mas acreditamos que no caso das críticas de Apolônio de Tiana devemos analisar a relação delas com as tradições culturais gregas em interação com o Império Romano, preocupação constante de Filóstrato. Clímaco (2013, p. 150-152) também mostra que pela relativa helenização da cidade de Alexandria, devido à sua fundação por Alexandre em 331 a.C., ela se tornou foco dos gregos. O grego Plutarco, por exemplo, cita Alexandria como um estabelecimento grego e afirma que Alexandre foi inspirado pelo poeta Homero na hora de fundar a cidade, o que Clímaco interpreta como uma forma de Plutarco legitimar a herança helênica de Alexandria. Acreditamos que por tal razão Filóstrato levanta tantas críticas à cidade quando percebe costumes não helenizados na mesma. É nesse sentido que lemos as críticas a um costume da cultura romana que ele não aceitava, justamente na passagem de Apolônio por Alexandria. Além disso, conforme Daniel de Figueiredo (2013, p. 72), Alexandria possuía uma intensa circulação de pessoas de diferentes lugares, o que contribuía não apenas para a troca de bens materiais entre elas, mas criava, da mesma forma, um ambiente propício para o intercâmbio de bens culturais. O espaço urbano de Alexandria atraía uma população muito diversificada, macedônios, egípcios, gregos, judeus, mercadores gauleses, viajantes do Oriente e de todo Mediterrâneo, escravos núbios, etc. (BALTA, 2005, p. 144-145). O sofista e filósofo Dião de Prusa, em um discurso dirigido à população de Alexandria, menciona como diferentes povos transitavam pela cidade de Alexandria: CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 277 Pois eis que no meio de vós, há não apenas gregos e italianos e pessoas da vizinha Síria, Líbia, Cilícia, nem apenas etíopes e árabes de regiões mais distantes, mas também bactrianos, citas, persas e alguns indianos, e todos estes ajudam a formar o público em seu teatro e sentar-se ao vosso lado, em cada ocasião. Por isso, enquanto vós, por acaso, estiverdes a ouvir uma única harpista, e também um homem com quem estais bem familiarizados, estareis sendo ouvidos por inúmeros povos que não estão. E enquanto estais assistindo a três ou quatro cavaleiros, vós mesmos estais sendo vigiados por inúmeros gregos e bárbaros também (DIÃO DE PRUSA, Discurso XXXII, 40). Conferimos que afirmar a cultura grega em um ambiente como Alexandria era algo muito importante de ser feito por Filóstrato por meio de Apolônio de Tiana. Assim sendo, Alexandria se torna o palco ideal para a crítica a um costume romano considerado violento e Filóstrato oferece aos alexandrinos, em contraponto, as práticas gregas como mais salutares. Saindo de Alexandria, ainda em terras egípcias, o tianeu encontra, como costumeiramente, resquícios da cultura grega: O lugar em que ergueram sua estátua, dizem que parece uma antiga praça como as ágoras que ficam nas cidades de fundação antiga, daquelas que apresentam ruínas de colunas, vestígios de muralhas, assentos, batentes, imagens de Hermes, parte dos monumentos destruídos pelas mãos dos homens, outros pelo tempo (VA, VI, 4). 67 Após sua estadia em Alexandria, Apolônio segue rumo à cidade dos sábios gimnosofistas nus,68 que, na VA (VI, 5) e na VS (I, 1) é situada nas fronteiras entre o Egito e a Etiópia, sendo os gimnosofistas ora tratados como egípcios (VA, I, 2; III, 32; VI, 10-11; VIII, 7.4), ora como etíopes distintos dos egípcios (VA, VI, 6, 16; VIII, 7.12).69 O local e mesmo a existência real de tal comunidade são questionados pelos pesquisadores, de acordo com Robiano (1992), havendo possíveis erros geográficos e/ou invenções literárias no texto filostratiano. As mais detalhadas notícias sobre os gimnosofistas da Etiópia que chegaram até nós na literatura aparecem na VA e na obra As etiópicas, do escritor tardo-antigo Heliodoro, que alguns estudiosos acreditam ter se inspirado nos escritos de Filóstrato. Lemos comentários 67 Talvez a cidade mencionada nessa passagem como local onde Apolônio e seus seguidores visitam o Templo de Mêmnon seja Tebas, no Egito, onde ficava uma estátua que os gregos acreditavam ser de Mêmnon, rei etíope da mitologia grega e herói da guerra de Troia. 68 AΝetimologiaΝdoΝtermoΝgimnosofistas,ΝnoΝgregoΝ υ Ν – gymnos, refere-se à nudez dos sábios (ROBIANO, 1λλβ,ΝpέΝ41κ)έΝSendoΝoΝtermoΝ φ – sofistes, o mesmo usado para designar os sofistas como Filóstrato. 69 Patrick Robiano (1992, p. 417) explica esse fato por considerar que Filóstrato não percebe a cultura etíope como muito diferente da egípcia, com o que não concordamos. Para nós, o que ocorre é que Filóstrato percebe os gimnosofistas em uma fronteira entre o Egito e a Etiópia e como nas fronteiras essas culturas se intercomunicam, há uma semelhança entre egípcios e etíopes. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 278 sobre a região em Plínio, o Antigo, e também na VS, de Filóstrato (I, 1), havendo poucos relatos em outros documentos (ROBIANO, 1992, p. 413). Conforme Rohde (apud ROBIANO, 1992, p. 414) e Claire Muckensturm-Poulle (1995, p. 116), Filóstrato se inspirou nos escritos dos historiadores da época de Alexandre em suas narrativas sobre os gimnosofistas indianos para escrever sobre os sábios chamados por ele de gimnosofistas e foi nisso seguido por Heliodoro. A descoberta em si destes personagens se deu por meio das conquistas de Alexandre e destes relatos. Novamente, vemos Apolônio como uma sombra de Alexandre em seus encontros. No entanto, Filóstrato não chama os sábios indianos de gimnosofistas, esta denominação é dada pelo sofista apenas aos sábios da Etiópia. Para Muckensturm-Poulle (1995, p. 113), de maneira geral, podemos compreender pelos textos antigos que os gimnosofistas não são um grupo étnico em um espaço específico, mas são homens sábios que levavam um modo de vida ordenado conforme seu espaço, preocupados com uma filosofia de mundo. Além disso, a visão que temos dos gimnosofistas perpassa pela ótica do helenocentrismo dos autores gregos. Salientamos, neste sentido, que os textos gregos não são unânimes na localização geográfica dos gimnosofistas (MUCKENSTURM-POULLE, 1995). Mas, ainda de acordo com Robiano (1992, p. 414), havia uma espécie de crença grega em uma continuidade cultural hierárquica entre indianos e etíopes, crença essa que é afirmada na VA. Concordamos com o autor, vemos que na descrição de Filóstrato, os sábios gimnosofistas são, a todo momento, comparados aos brâmanes indianos. Os brâmanes indianos, no entanto, são considerados comoΝmaisΝsábiosΝqueΝosΝetíopesμΝ“EleΝmeΝfezΝdirigir-me aos indianos antes que a vós, na ideia de eles serem mais sutis na inteligência”Ν(VA, VI, 11). Garantem que estes gimnosofistas habitam uma colina de pequena altura, a pouca distância do Nilo; garantem também que eram inferiores em sabedoria aos indianos, apesar de serem superiores aos egípcios, e andavam quase nus, como os que tomam sol em Atenas (VA, VI, 6). Isso é o que me parece também a vós sobre a sabedoria dos indianos, eles são divinos e se valem da ornamentação de estilo como o da Pítia, no entanto, vós [...] (VA, VI, 11). Também ouviu apresentar, mais ou menos, o seguinte quadro: que os indianos eram os mais sábios dos povos, que os etíopes haviam imigrado da Índia, mantinham seu saber ancestral e tinham seus olhos voltados para suas origens. Quando eu era mais jovem, deixei meu patrimônio a quem o quis e, nu, me uni a estes gimnosofistas, para aprender o conhecimento dos indianos ou, pelo menos, outros próximos àqueles (VA, VI, 16). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 279 Acreditamos que a depreciação dos gimnosofistas frente aos brâmanes, estabelecida por Filóstrato, advenha do fato de os mesmos, mostrados como fechados em sua colina, não terem interações com a cultura grega, o que é manifestado no desprezo dos gimnosofistas pelo saber de Apolônio. Ademais, como observa Robiano (1992, p. 422), os gimnosofistas de Filóstrato não possuem nenhuma relação aparentemente explicitada com outros grupos sociais e com a política. Em uma passagem da VA, Filóstrato relata que os gimnosofistas fingiram estar ocupados e se negaram, inicialmente, a conversar com Apolônio, alegando tal motivo (VA, VI, 8). Os gimnosofistas são mostrados como desprezando Apolônio por terem acreditado em calúnias sobre ele vindas de seu inimigo Eufrates (VA, VI, 7, 13). Mas, ao conversarem com o tianeu, valorizam seus conhecimentos e sua cultura. Filóstrato muda as expectativas expostas e apresenta uma ideia diferente sobre os gimnosofistas, que passam a ser considerados de fato sábios (VA, VI, 12-13). O que está sendo desenvolvido novamente, em nossa interpretação, é uma ideia de Apolônio como símbolo da cultura grega e a maneira como outros povos se relacionam com ela é o que estabelece a forma de Filóstrato os apresentar na obra. Em um primeiro momento, os gimnosofistas, embora se mostrassem conhecedores da cultura grega, ignoram Apolônio/cultura grega, pois não interagem com ela, passando a contemplá-la ao conhecê-la por forma de interação/diálogo com Apolônio.70 Filóstrato, assim, mostra aos seus interlocutores a importância de se valorizar a cultura dos gregos e a interação cultural. Na estadia de Apolônio na cidade dos gimnosofistas, ele crítica os sábios pela forma de representarem os deuses cultuados na região, que à semelhança da tradição religiosa egípcia eram zoomórficos e isso, para o tianeu, era uma prática ridicularizada: – A primeira pergunta que farei será sobre os deuses. O que induziu as pessoas a darem a estranha e ridícula forma dos deuses, exceto em alguns casos? Em alguns casos? Em raríssimos, aos que se erguem estátuas de forma sábia aos deuses, mas no restante de suas imagens parece que honram animais irracionais e desprezíveis mais que honram os deuses (VA, VI, 19). O contraponto que ele oferece ao culto aos deuses zoomórficos é, como no caso da crítica aos jogos dos habitantes de Alexandria, a cultura grega. Sobre as estátuas de deuses gregos,Ν ApolônioΝ dizμΝ “– São, sem dúvidas, a forma mais bonita e reverente possível de representarΝosΝdeuses”Ν(VA, VI, 19). 70 Os gimnosofistas são mostrados como conhecedores da cultura grega, embora ainda não interagindo com os gregos em: VA, VI, 19 (conhecedores da história ateniense clássica) e VA, VI, 20 (conhecedores de ritos espartanos). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 280 Além da observação sobre a afirmação da superioridade grega mais uma vez, nestas passagens, lemos como Filóstrato constrói a identidade cultural dos gimnosofistas em fronteiras, sendo a prática religiosa desses sábios semelhante à egípcia. Dessa forma, fronteira cultural e fronteira geográfica aqui são a mesma coisa, nas narrações de Filóstrato. Nada é tratado sobre a cultura da região da Etiópia nas práticas dos gimnosofistas, talvez porque Filóstrato não tivesse conhecimentos sobre a mesma. Nosso sofista nos dá ainda um interessante relato sobre o distanciamento nas características físicas entre ele e os povos dessa regiãoΝ fronteiriçaμΝ “τsΝ queΝ habitamΝ asΝ fronteirasΝ dessasΝ regiõesΝ nãoΝ sãoΝ totalmenteΝ negros,Ν mas semelhantes com a cor das duas regiões, são menos negros que os etíopes e mais negros queΝosΝegípcios”Ν(VA, VI, 2). A visão sobre os homens negros em Filóstrato aparece, da mesma forma, em sua descriçãoΝ dosΝ indianosΝ emΝ comparaçãoΝ àΝ populaçãoΝ daΝ EtíopiaμΝ “[έέέ]Ν aΝ divindadeΝ designouΝ como extremos de toda e terra a etíopes e indianos, fazendo negros tanto uns no Oriente, comoΝoutrosΝnoΝτcidente”Ν(VA, II, 18). Alain Bourgeois (1973), em seu estudo sobre a representação da negritude, embora de certa forma muito parcial, demonstrou que os gregos da Antiguidade conheciam e apreciavam os negros sem conotação racial pejorativa. Pelo contrário, havia uma ideia de superioridade destes últimos. Não acreditamos que na VA de Filóstrato os indianos e egípcios sejam considerados superiores aos gregos, mas de fato não há uma visão dos mesmos como inferiores aos gregos pela cor da pele. Como vimos, Filóstrato representa os povos com os quais se relaciona a partir dos contatos e relações desses com a cultura helênica, não por critérios étnicos e raciais. Já emΝ terrasΝ gregas,Ν naΝ cidadeΝ deΝ Esmirna,Ν ApolônioΝ percebeΝ estarΝ naΝ “[έέέ]Ν maisΝ bonita de todas as cidades que havia sob oΝsolΝ[έέέ]”Ν(VA, IV, 7). Esmirna é justamente uma das cidades que se configuraram na Antiguidade como grande centro de estudos sofísticos, pátria dos sofistas Polemão, Evodiano e Nicetes, local onde importantes sofistas estudaram e fizeram suas carreiras, como Escopelino, Élio Aristides e Heraclides. Apolônio vê que o povo de Esmirna se dedicava com grande interesse a todo tipo de atividade intelectual, o que faz crescer a importância da cidade para ele. A percepção de Apolônio sobre Esmirna é seguramente algo de projeção de Filóstrato sobre seu biografado, uma vez que na VS lemos a mesma impressão do sofista sobre essaΝ cidadeμΝ “A Jônia inteira era um grande recinto dedicado às Musas, mas Esmirna tinha uma posição essencial, como a ponte nos instrumentos deΝmúsica”Ν(VS, I, 516). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 281 Triunfar em Esmirna era a consagração máxima para um sofista, devido à importância da cidade entre o grupo de sofistas (SORIA, 1982, p. 116). Nesse sentido, vemos Filóstrato apresentando Apolônio muito bem recebido na cidade e ocupando funções de quem resolvia conflitos nela (VA, IV, 5-8), do que trataremos no próximo tópico. Após a passagem pelo mundo grego, Apolônio dirige-se a Roma e o narrador nos conta que o tianeuΝdisseμΝ“TemosΝdeΝnosΝdirigirΝà cidade que governa tantas partes do mundo habitado”Ν(VA, IV, 38). François Hartog (2004, p. 230) acredita que a viagem de Apolônio a Roma é um ato de resistência, uma vez que ele segue com seus discípulos para a capital do Império mesmo sabendo que naquele momento o imperador Nero estava desenvolvendo uma perseguição contra filósofos. Assim, Hartog analisa o personagem de Filóstrato como contrário à capital do Império. Não concordamos com essa visão de Hartog, primeiramente por todas as considerações que já apresentamos ao longo da Tese sobre a relação positiva entre Filóstrato, os sofistas por ele biografados e o Império Romano. Além disso, o que Filóstrato reflete em seu Apolônio é sua posição contrária a imperadores considerados tiranos, como Nero, e não ao Império Romano em si.71 Mas o mais importante a se considerar, para nós, é que, pela construção espacial e geográfica da VA, a estadia de Apolônio em Roma, a capital do Império, está exatamente no meio da obra (Livro IV), sendo Roma citada como o coração das cidades (VA, IV, 38). Ademais, Filóstrato termina o texto com Apolônio saindo de Roma e desaparecendo, tendo sido visto pela última vez em terras itálicas (Livro VIII). Essa construção espacial, para nós, diz muito sobre a visão de Filóstrato acerca do poder de Roma: Roma era o centro e o fim, simbolizados na trajetória de vida de Apolônio. Quando o sofista representa Roma no centro da obra e do trajeto das viagens de Apolônio, ele compartilha uma perspectiva romanocentrista que possuía enquanto membro dos grupos de aristocratas privilegiados que ocupavam cargos político-administrativos no Império, o que não significa que as regiões conquistadas sejam de fato meros sujeitos/súditos. Depois de sua primeira passagem por Roma, Apolônio parte para Gades, chamada na VA de Gadeira, na província da Hispânia Bética. Ali, novamente, encontra a cultura grega, mais especificamente a honra aos costumes e tradições dos atenienses como Filóstrato, presente entre os habitantes da cidade: 71 Filóstrato faz uma explanação sobre filósofos que foram contra governantes tiranos em: VA, VII, 1-3. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 282 Dizem que a população de Gades é muito helenizada e que educa como em nossa cultura. Apreciam os atenienses de modo muito especial entre os gregos e celebram sacrifícios em honra a Menesteu, o ateniense. Além do mais, são admiradores de Temístocles, o almirante, e por sua sabedoria e valor lhe ergueram uma estátua de bronze em posição de um pensador, como se estivesse ponderando sobre a resposta de um oráculo (VA, V, 4). A região da Bética é identificada com a Ática em outra passagem do texto filostratiano: A região da Bética, da qual é homônimo o rio, primeiro, dizem que é a melhor das regiões, já que está cheia de cidades e pastagens, pois o rio está canalizado por todas as cidades e, depois, porque está cheia de todos os tipos de cultivos e frutos da estação, como na Ática no outono e na época dos Mistérios (VA, V, 6). Na segunda citação observamos duas coisas, o esforço de Filóstrato em tratar a presença da cultura grega pelo Império e sua visão do Império Romano como um império de cidades. Conforme Guariello (2009, p. 149), o Império Romano representou uma vitória das cidades como forma de organização e núcleo mais dinâmico da vida social, especialmente em relação às cidades mediterrâneas, o que representa bem a cidade de Gades, localizada às margens do Mediterrâneo. Segundo Pilar Pavón Torrejó e Inmaculada Martín Pérez (1995, p. 205), embora Gades seja uma cidade do Ocidente romano, estava culturalmente longe das principais marcas culturais desse Ocidente imperial e, por outro lado, muito próxima do mundo grecohelenístico e romano. As autoras (1995, p. 214) acreditam que as marcas da cultura grega em Gades na VA podem ser fruto da intenção propagandística de Filóstrato, mas não deixa de ser um fato possível, pois o povo de Gades tinha vocação marítima e conhecia o Oriente grego. Em Gades, Filóstrato descreve as colunas de Héracles. Conforme Gascó (1985, p. 17) a descrição do templo de Héracles da cidade, feita por Filóstrato, pode ser considerada ampliação poética em cima de uma base real, pois se assemelha a outras descrições como de Estrabão e Sílio Itálico. No entanto, esse mesmo historiador (1985, p. 16) indica que muitos autores descrevem os habitantes da cidade de maneira não próxima à realidade da época. As informações sobre a presença da cultura helênica em Gades são, em nossa perspectiva, mais um indício dos objetivos de Filóstrato em mostrar que havia traços gregos em várias partes do Império Romano e fora dele, dentro de suas intenções que, no entanto, não eram simplesmente de propagandear a cultura grega em si, como defendem Pavón e Martín (1995), mas, principalmente, propagandear as funções de intelectuais herdeiros das CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 283 tradições da cultura grega, como os sofistas, dentro do Império Romano. Com esse intuito, para nós, o autor até exagera em suas representações da cultura grega em diversas partes do trajeto de Apolônio, como já trabalhamos em relação aos partos. No entanto, na Bética também havia cidades que não conheciam a cultura grega, o que é motivo de comentários depreciativos sobre a ignorância de seus habitantes, considerados bárbaros na VA: [...] os de Gades sabiam de qual vitória se tratava e sabiam que na Arcádia havia uma competição prestigiada, uma vez que, como disse; conheciam os costumes gregos. Mas as cidades vizinhas a Gades não sabiam nem o que eram os Jogos Olímpicos, nem o que era um concurso, nem uma competição e nem porque celebravam os sacrifícios. Assim chegaram às conclusões mais cômicas, acreditando que se tratava de uma vitória de guerra e que Nero havia capturado alguns homens chamados Olímpicos, pois nunca haviam tido a oportunidade de serem espectadores de uma tragédia, nem de um concerto de cítara (VA, V, 8). Damis se refere aos habitantes de Híspalis, uma cidade perto da Bética, e o que lhes aconteceu em relação a um ator de tragédia, algo que me parece digno de ser mencionado. Enquanto as cidades celebravam os sacrifícios pelas vitórias, pois as Píticas já haviam sido proclamadas, um ator de tragédia, dos que não se aventuraria a competir com Nero, percorria as cidades do Ocidente apresentando sua arte para ganhar a vida. Suas apresentações tinham sucesso com os bárbaros, primeiro, simplesmente por aparecer para homens que nunca haviam visto uma tragédia, mas também porque reproduzia os cantos de Nero escrupulosamente. Ao chegar a Híspalis lhe pareceu temível, entretanto, até o tempo que guardava silêncio em cena, pois somente de vê-lo com sapatos tão altos e roupas estranhas, aqueles homens davam passos largos com suas bocas abertas. Mas quando, aumentando o tom de voz, começou a falar de maneira grandiloquente, todos fugiram gritando que era um demônio. Assim eram os costumes dos bárbaros daquele lugar (VA, V, 9). Para Filóstrato, os bárbaros eram aqueles que não eram gregos, nem romanos. No entanto, na visão de Filóstrato existiam bárbaros sábios por valorizar a cultura grega, como os brâmanes indianos, os gimnosofistas etíopes e a população de Gades. O limite entre Filóstrato e os outros não estava simplesmente no fato de os bárbaros serem bárbaros, havendo bárbaros sábios por terem contato com a paideia. Essa ideia filostratiana nos faz refletir sobre a visão de Filóstrato da corte imperial severiana e como sua percepção de bárbaros na VA dialoga também com sua compreenssão sobre estes imperadores considerados bárbaros quando não se utilizavam de elementos da cultura greco-romana, como era o caso da maneira de falar de Septímio Severo, dos costumes nos banquetes comentados por Dião Cássio e dos exóticos costumes de Heliogábalo aos olhos dos historiadores de sua época. Parece-nos, novamente, CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 284 que Filóstrato afirma papéis para sua cultura grega diante dos Severos, e um deles era a capacidade de melhorá-los, tornando-os sábios. Gregos e romanos são citados como diferentes em muitas passagens do texto, mas sãoΝtambémΝposicionadosΝcomoΝtendoΝcostumesΝsemelhantesΝemΝsituaçõesΝcomoΝestaμΝ“[έέέ]ΝosΝ comensais estavam sentados como em um banquete, sem que o rei fosse tratado com deferência especial, coisa que, evidentemente, tinha grande importância entre gregos e romanosΝ[έέέ]”Ν(VA, III, 27). Em outra passagem, ao citar os romanos, Filóstrato se inclui entre eles, usando o pronome possessivo nossa - ἡ ᾶ Ν - hemas, em uma distinção de gregos e romanos versus bárbaros: “σãoΝlevemosΝaΝsérioΝosΝbárbaros,Νnem os consideremos como algo são, por serem nossosΝmaioresΝinimigosΝeΝincapazesΝdeΝestaremΝemΝpazΝcomΝnossaΝestirpe”Ν(VA, VIII, 7.8). Portanto, outra vez, as identidades são construídas na obra de Filóstrato em fronteiras identitárias que separam, mas também unem gregos, romanos e bárbaros, dependendo da situação e da intenção do autor. De maneira geral, na VA existem gregos e romanos versus “bárbaros”έΝ EntreΝ osΝ “bárbaros”ΝestãoΝosΝpartos,Ν os indianos e alguns povosΝdoΝ ImpérioΝRomanoέΝτsΝ “bárbaros”, para Filóstrato, eram os que não cultivavam a arte e não haviam recebido a paideia (VA, V, 9). No entanto, há bárbaros que receberam a paideia e são sábios, e também tipos de bárbaros para os quais a educação grega é de difícil apreensão, como os mencionados na passagem abaixo. Mas, mesmo para esse segundo tipo, a capacidade de tentar educá-los é exposta. O sofista evidencia que tais bárbaros não conheciam a liberdade, sugerindo-nos que o poder do Império Romano não era algo que privava os povos da liberdade, pois gregos, por exemplo, mesmo estando sob a administração romana, conheciam a liberdade na construção de uma oposição de gregos versus bárbaros, o que concluímos desta citação: Entretanto, a ação do de Elea e a dos assassinos de Cotis [refere-se aos sábios Heraclides e seu irmão Pitão, discípulos de Platão] não é excessivamente digna de elogio, pois escravizar trácios e getas é coisa fácil e, ao contrário, tentar educá-los é uma tolice, pois não desfrutam da liberdade, suponho, já que não consideram vergonhoso serem escravos (VA, VII, 3). Inclusive, é tradição entre os frígios vender os seus e, uma vez convertidos em escravos, não se preocupam mais com eles próprios. Os gregos, no entanto, são amantes da liberdade, e nenhum grego venderá um escravo fora de sua pátria, nem os mercadores de escravos os visitam. E a Arcádia, menos ainda, pois mesmo que apreciem a liberdade mais que os demais gregos, necessitam de uma grande quantidade de escravos (VA, VIII, 7.12). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 285 Filóstrato reconhece os bárbaros que, mesmo não estando sob a administração romana, valorizam um sábio de cultura grega como amigo, sendo capazes de lhe dar abrigo caso lhe fosse preciso fugir das tiranias do imperador Domiciano: Seria preciso abandonar, acredito, todo o território sobre o qual os romanos têm jurisdição e me dirigir a pessoas próximas a mim e que habitam fora do alcance de seus olhares. Estes seriam Fraotes, o babilônio [refere-se ao rei parto Vardanes], o divino Iarcas e o nobre Tespisão (VA, VII, 14). Podemos ler, igualmente, que muitos bárbaros são aqueles que não estão sob a administração romana (VA, I, 20) e que alguns deles não merecem consideração, pois são incapazes de estar em paz (VA, VIII, 7.8). Tudo isso analisado, obtemos uma conclusão: estar sob a administração romana é estar em paz, segundo nossa documentação; rebelar-se contra a ordem romana era rebelar-se contra todos os homens, como concluímos desta crítica aos judeus, atribuída ao filósofo Eufrates por Filóstrato: [...] faz tempo que eles se revelam não apenas contra os romanos, mas também contra todos os homens, já que depois de terem adotado uma forma de vida antissocial e sem ter em comum com os demais homens nem a mesa, nem as libações, nem as súplicas, nem os sacrifícios, estão mais distantes de nós que Susa, Bactra e os indianos (VA, V, 33). Sabemos que os judeus se caracterizaram como um problema para a ordem imperial romana, havendo um elemento de identidade judia como nenhum outro grupo étnico no Oriente próximo possuía equivalente: sua religião monoteísta fundamentada na Bíblia (MILLAR, 1993, p. 335) e, consequentemente, sua não aceitação do culto imperial. Assim sendo: A Judeia foi o principal foco de rebeliões no Oriente contra a experiência do Império Romano durante os séculos I e II (de 66 até 73, de 115 até 117 e de 131 até 135); e não foram poucas as vezes que estes levantes transbordaram a Palestina, engajando judeus na diáspora e, no caso de grandes e importantes cidades como Alexandria e Antioquia, provocando graves crises entre seus habitantes (DEGAN, 2009, p. 215). Os judeus, dessa forma, estando dentro do Império, são considerados por Filóstrato como revoltosos e, por isso, são denegridos, pois fogem de padrões de identificação e de ordenamento desse império, desviam a paz interna, consentida e afirmada por membros dos grupos privilegiados, como nosso sofista. É assim que pelas palavras de Eufrates, Filóstrato apresenta a ideia de que os judeus nem deveriam ter sido conquistados (VA, V, 33). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 286 Filóstrato demonstra sua animosidade contra os judeus expondo a visão de Apolônio sobre as cidades de Antioquia e Alexandria, espaços geográficos onde havia muitas comunidades judaicas. Embora Filóstrato escreva que Apolônio nega estar em Antioquia, (VA, III, 58), ele a visita nas passagens da VA I, 16-17 e VI, 38. Nesta última passagem, o sábio de Tiana se apresenta na cidade como mediador de um conflito. Apolônio alega que Antioquia era uma cidade de pessoas arrogantes e que não se interessavam pela cultura grega. Em nossa leitura, ele nega Antioquia por ali haver muitos judeus hostis ao Império Romano e por eles não se interessarem pelo helenismo, ligando ordem imperial à cultura grega. Além do mais, Filóstrato generaliza o que eram os judeus, desconsiderando as diferenças dentre eles, sendo que, conforme Ivan Esperança Rocha (2005, p. 01), a sociedade judaica era multifacetada na época imperial. Além disso, devemos considerar que havia judeus inseridos na ordem romana, como o exemplo do historiador Flávio Josefo, que recebeu a cidadania romana e foi próximo dos imperadores da dinastia dos Flávios em um momento de grandes tensões entre Império Romano e judeus. Outro elemento sobre a passagem de Apolônio acerca de Antioquia diz respeito ao culto grego de Apolo Dafneo pelos habitantes da cidade. Apolônio considera as pessoas de Antioquia, que rendiam culto a esse deus, como semibárbaras e incultas (VA, I, 16). Sendo assim, não são apenas os judeus que incomodam Apolônio na cidade de Antioquia, mas também os habitantes sírios que cultuam uma divindade grega, mas de forma que Apolônio não considera adequada. Lembremos que Antioquia está localizada na província da Síria, de onde eram Júlia Domna, Heliógabalo, Severo Alexandre, o sofista Antípatro e, possivelmente, o real ou fictício Damis. Portanto, uma especial atenção foi dada por Filóstrato, a essa região, onde ele critica até a tradição grega que encontra ali, sublinhando como a cultura grega deveria ser valorizada, mas adequadamente. Para finalizar, é preciso considerar que o trajeto de Apolônio mostra que suas viagens se dão nos extremos da terra conhecida: Índia/Egito e Etiópia/Gades. O que fica claro não apenas pela observação das viagens em si, mas pelas menções do próprio narrador (VA, II, 18). Ainda sobre a Índia e a Etiópia, como extremos do mundo: Uma vez que ganharam o cume do monte, dizem que viram uma planície muito lisa, cortada por fossas cheias de água. Umas eram diagonais, outras retas, alimentadas pelo rio Ganges e serviam de limite para a terra, assim como para armazenar água nas planícies quando a terra estava seca (VA, III, 5). A Etiópia se estende na parte ocidental mais além de toda a terra abaixo do sol, como os indianos sobre a oriental. Meroé é adjacente ao Egito, incluindo CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 287 uma parte inexplorada da Líbia, acaba no mar que os poetas chamam de Oceano, já que denominam assim a massa que rodea a terra (VA, VI, 1). E,ΝdaΝmesmaΝmaneira,ΝnestaΝpassagemΝsobreΝύadesμΝ“SobreΝasΝcolunasΝqueΝdizemΝqueΝ Héracles fixou como confim da terra, vou deixar o que é mítico de lado e escrever melhor sobreΝoΝqueΝéΝdignoΝdeΝserΝouvidoΝeΝcomentado”Ν(VA, V, 1). Héracles está, assim, representado nele, estabelecendo as fronteiras da terra em Gades, usando os montes como marcos e seguindo para dentro do oceano, onde se demonstra que não foi Héracles, o tebano, mas o egípcio que chegou em Gades e se transformou no agrimensor da terra (VA, II, 33). Diante do que foi analisado, consideramos que Filóstrato mesmo tendo escrito que Apolônio objetivou inicialmente o encontro com os brâmanes indianos e a busca de conhecimento pelas regiões por onde passava, usou os relatos de viagem de seu biografado para expor seu quadro de reflexões sobre os contatos político-culturais de Apolônio com os diferentes povos, tradições, geografias e poderes que encontrava em seus caminhos. Em relação ao Império Romano, propriamente, Filóstrato percebe a existência de uma grande pluralidade cultural pelas regiões por onde Apolônio passou, mas buscou reforçar a existência de características culturais gregas em todos os lugares de estadia e passagem do tianeu como forma de autoafirmação de si e de sua categoria, e também como forma de mostrar que havia um elemento – a cultura grega – que poderia dar identidade a esse Império. Não devemos deixar de perceber, ainda, que Filóstrato expõe uma identidade grega homogênea em seus contatos, sem considerar as diferenças entre os próprios gregos, o que foi uma característica comum aos escritores gregos da chamada Segunda Sofística, como informa Abraham (2014, p. 472). Em nossa análise das viagens de Apolônio, concordamos com Guarinello (2009, p. 152) quando escreveu queμΝ “σumΝ ImpérioΝ tãoΝ multifacetado,Ν ondeΝ asΝ comunicaçõesΝ eramΝ precárias e os instrumentos de emprego direto do poder bastante escassos, a questão da criação, manutenção e afirmação de identidades era, obviamente, de importância crucial para a manutenção deΝsuaΝidentidadeΝpolíticaέ” Além disso, é preciso considerar o contexto severiano no qual Filóstrato viveu. O Império Romano era plural e as culturas se interagiam. Filóstrato sabia disso, e seu momento histórico mostrava claramente que o imperador romano podia ser originário das províncias, a corte podia ser formada por um imperador da África romana e uma imperatriz da Síria, com seus descendentes formados por diferentes tradições e identidades. Assim sendo, pelo que CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 288 mostramos, Apolônio é um comunicador perfeito num Império heterogêneo e o redentor de um elemento identitário em meio à própria e peculiar diversidade. Para finalizar, a fim de cumprir seu objetivo de valorizar os gregos nesse Império Romano plural, Filóstrato sistematiza algumas funções para o sábio Apolônio em suas viagens e contatos, como mostraremos a seguir. 4.3 As funções de Apolônio na Vida de Apolônio de Tiana O objetivo das viagens de Apolônio, destacado tantas vezes na VA, é a busca por conhecimento filosófico (VA, I, 18, 32; II, 11; III, 16, 29; IV, 47). O tianeu busca sabedoria na Índia dos brâmanes (Livro II), em Gades (Livro V) e na terra dos gimnosofistas etíopes (Livro V), locais que eram famosos na Antiguidade como terras de sábios. Mas, em parte substancial de suas viagens o que ele faz não é buscar simplesmente o conhecimento e, mesmo nos locais famosos como terras de sábios, ele exerce outras funções que vão além das de um sábio errante que só busca aumentar sua sabedoria. São duas as funções que Apolônio exerce na VA: a de intermediador cultural e a de conselheiro de monarcas, governadores de províncias, imperadores e futuros imperadores romanos. Como intermediador cultural, Apolônio aparece em cidades do Império Romano e também fora dele, intermediando conflitos diversos e ordenando costumes, especialmente religiosos. Dessa forma, estamos de acordo com Hartog (2004, p. 224), que observa, que nas viagens do Apolônio filostratiano, ele ensina muito mais do que aprende. O fato de Apolônio ensinar tem um propósito que está diretamente ligado às funções e atividades dos sofistas e à visão de Filóstrato sobre a dinâmica das relações político-culturais do Império Romano, como buscaremos demonstrar nas próximas páginas. Comecemos pela função de intermediador cultural na resolução de conflitos. Logo no começo da obra (Livro I), após iniciar suas viagens, Apolônio é apresentado na região da Panfília e da Cilícia como aquele que acalmava a população em momentos de distúrbios. É assim que Filóstrato nos mostra que: Quando encontrava uma cidade agitada por distúrbios – e muitas estavam assim por causa de espetáculos não sérios, ao chegar, fazendo presença e manifestando com a mão ou com o rosto sua reprovação, acabava com a desordem e todos guardavam silêncio como nos mistérios. Refrear quem havia iniciado uma revolta por bailarinos e cavalos não é grande coisa, no entanto, era grande coisa os que sublevavam por tais motivos e, se viam um homem de verdade, se ruborizavam, recuperavam o controle de si mesmos e voltavam à razão com mais facilidade. Mas uma CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 289 cidade atormentada pela fome não era fácil de acalmar em sua fúria. No entanto, Apolônio, mesmo sem nada dizer, era o suficiente para acalmar os que encontravam em tal situação (VA, I, 15). A primeira situação em que Apolônio é envolvido como intermediador de conflitos é na cidade de Aspendo, na Panfília (VA, I, 15). Onde resolve o problema de abastecimento de trigo pelo qual a cidade passava, por conta do armazenamento do produto pelos mercadores, a fim de o venderem fora da cidade. A população havia tentado chamar a atenção do governador da província e se encontrava fazendo uma manifestação em frente à estátua do imperador Tibério. Mas, Filóstrato nos conta que esse apelo da população não havia obtido resultado. A ação de Apolônio consiste em procurar o governador da província, acalmar o povo e tratar diretamente com os mercadores de trigo, tudo isso de maneira gestual e por meio de uma carta, já que se encontrava em fase de cumprimento de voto de silêncio. O que faz com que as ações de Apolônio tenham êxito nessa situação são dois aspectos. O primeiro envolve a capacidade retórica por meio da carta do intermediador ao governador da província, atributo, que sabemos, era característica principal dos sofistas. Em outras situações descritas por Filóstrato, também a capacidade retórica de ApolônioΝfazΝcomΝqueΝeleΝsejaΝextremamenteΝrespeitadoΝ“eΝoΝqueΝdiziaΝtinhaΝumΝecoΝcomoΝasΝ normas ditadas por umΝ cetro”Ν(VA, I, 17). Filóstrato escreve essa frase logo após ressaltar o grego perfeito em ático medido e o estilo oratório bem desenvolvido do tianeu, o que novamente nos remete a ideia de que era a retórica, característica central dos sofistas, o que fazia Apolônio ser respeitado e persuasivo, segundo a descrição filostratiana. Mas devemos ter claro que esse grego apenas podia ser compreendido pelas camadas das sociedades do Império, especialmente na parte oriental, que tinham recebido educação formal, o que não era o caso de parte substancial das populações locais. Por isso, ressaltamos, há na construção do tianeu filostratiano um segundo aspecto de respeito: sua imagem venerável como sábio. Diante da população de Aspendo, Filóstrato destaca que Apolônio não diz sequer uma palavra, pois estava em voto de silêncio. Dessa forma, o respeito à imagem do sábio é fundamental na representação filostratiana de Apolônio. Essa característica é destacada, para nós, uma vez que a grande parte população podia não compreender bem a língua grega, usada nas funções de governo, mas desconhecida pela população em geral.72 Nada em relação ao caráter divino de Apolônio envolve a descrição do êxito do tianeu nesta situação. 72 A necessidade em conhecer a língua local era uma realidade dos funcionários de altos postos administrativos do Império que eram deslocados para as províncias durante o século II e primeiras décadas do século III, conforme nos relata Michel Molin (2011, p. 69). Essa realidade nos faz refletir sobre a importância de Filóstrato CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 290 Apolônio serve como intermediador do conflito entre espartanos e o imperador romano em passagem já citada no tópico anterior (VA, IV, 33), expondo sua capacidade em resolver conflitos administrativos também em relação aos imperadores romanos e as cidades provinciais. E em Antioquia, na Síria: O governador da Síria estava provocando dissensões em Antioquia e espalhando a suspeita entre os cidadãos porque a cidade, reunida em assembleia, não parava de mostrar suas discórdias. Mas, ao ocorrer um notável terremoto, eles se apavoraram e como ocorrem nos presságios celestes, começaram a orar uns pelos outros. Assim, Apolônio se apresentou a eles e disse: – A divindade colocou um mediador entre vós, não devais voltar à dissensão por temor à divindade. E assim lhes fez perceber o que estava para ocorrer e como deviam temer uns aos outros (VA, VI, 38). Mas não são apenas em casos de conflitos que Apolônio serve como intermediador nas cidades por onde passa. Quando ele se encontrava na Jônia, Filóstrato conta que podia resolverΝdiversosΝtiposΝdeΝsituaçõesΝenvolvendoΝaΝordemΝnasΝcidadesμΝ“[έέέ]ΝeΝfoiΝpassarΝpelasΝ outras partes da Jônia, resolvendo os assuntos de cada lugar e discursando aos presentes sobre algoΝdeΝbenefícioΝemΝcadaΝocasiãoέ” Visitavam Apolônio também delegações das cidades que desejavam fazê-lo hóspede e conselheiro sobre a vida e o erguimento de altares e imagens. E ele, a cada uma dessas coisas, umas por cartas, outras assegurando que iria pessoalmente, as resolvia (VA, IV, 1). Em Esmirna, a cidade em que os sofistas mais almejavam receber reconhecimento profissional, como tratamos, Apolônio: Tratou com os de Esmirna sobre como as cidades podiam administrar-se com segurança, ao ver que não concordavam entre si e não entravam em um acordo sobre suas opiniões, dizia que a cidade que pretende administrar-se corretamente requer uma concórdia nos conflitos. Como dava a impressão de que dizia algo incrível e sem consequências, Apolônio, ao dar-se conta de que as pessoas não seguiam sua argumentação, disse: – O branco e o preto não podem ser a mesma coisa, nem o amargo pode ser misturar bem com o doce, mas a concórdia pode ser obtida alegremente a fim de garantir a segurança das cidades. (VA, IV, 8). destacar o respeito ao sábio que compreende e é compreendido mesmo no silêncio, característica de Apolônio (VA, I, 14-15). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 291 Depois de discursar com uso de metáforas sobre a concórdia, tema muito presente nos discursos dos sofistas pelas cidades gregas, como salientado no terceiro capítulo, Apolônio consegue resolver o problema dos conflitos de opiniões entre a população de Esmirna, fazendo com que ela novamente se unisse (VA, IV, 10). O tema da concórdia e sua importância aparecem nas observações do narrador sobre as dissenções entre as cidades da Sicília (VA, V, 13). Em Olímpia, Apolônio recebe uma delegação de espartanos que o querem consultar. Os assuntos tratados são os ensinamentos do tianeu sobre sabedoria, valor, moderação, virtudes e assuntos religiosos (VA, IV, 27, 31). Tais assuntos são apresentados em forma de discursosΝdeΝApolônio,ΝqueΝ“impressionavaΝaΝtodosΝnãoΝapenasΝporΝsuasΝideias,ΝmasΝtambémΝ porΝ suasΝ formasΝ deΝ expressão”Ν (VA, IV, 31). Novamente é a maneira de se expressar em público, grande característica dos sofistas, um dos atributos que fazem Apolônio ser admirado. Dentro do âmbito de funções como intermediador cultural, mas não propriamente na resolução de conflitos, o tianeu é exposto ordenando cultos religiosos que haviam perdido o que lhes era tradicional. Assim, Filóstrato relata que: [...] se a cidade era grega e os cultos conhecidos, após convocar os sacerdotes, filosofava sobre os deuses e corrigia o que se desviava das práticas tradicionais. Caso a cidade fosse bárbara, e seus cultos diferentes, informava-se de quem os havia instaurado e porque havia feito isso, e, uma vez informado de como o culto era desenvolvido e após sugerir algo mais sensato do que era feito, se pudesse, reunia-se com seus discípulos e os incentivava a perguntarem o que quisessem (VA, I, 16). [...] dizem que foram por mar até Selêucia e, tendo encontrado um barco disponível, navegaram até Chipre, em Pafos, onde era a sede do templo de Afrodite, que foi admirado por Apolônio por sua construção simbólica e, após ter ensinado muitas coisas aos sacerdotes sobre o ritual do templo, navegou até a Jônia [...] (VA, III, 58). Após ter passado o inverno em todos os templos gregos, tomou caminho para o Egito no início da primavera, uma vez que já havia dado muitos conselhos e formulado muitas críticas às cidades, além de ter feito elogios a muitas, pois não se recusava a elogiar quando algo lhe parecia bom (VA, V, 20). A preocupação com a manutenção e o retorno às antigas tradições é uma constante nas passagens de Apolônio por cidades de cultura helênica, como na fala do espírito de AquilesΝaoΝaparecerΝparaΝApolônioμΝ“[έέέ]Νassim,ΝrecorroΝaΝumΝconselhoΝrazoávelμΝqueΝnãoΝseΝ mostremΝsoberbosΝcomΝosΝusosΝtradicionaisΝ[έέέ]”Ν(VA, IV, 16). Após ouvir essas palavras do CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 292 espírito de Aquiles, Apolônio, seguindo os pedidos do herói, serve como delegado deste na restauração do túmulo e do culto de Palamedes. Na região da Eólia, na Jônia, Apolônio restaura, então, o túmulo de Palamedes, o lendário herói da guerra de Tróia, e o culto a esse herói que, segundo nos conta Filóstrato, estava perdido naquela região (VA, IV, 13). Outra vez vemos a projeção de Filóstrato em Apolônio, pois Palamedes é, como tratamos no primeiro capítulo, o herói que Filóstrato comenta na obra Heroicos (24) ter sido injustiçado por Homero e por isso não receber a devida atenção dos gregos. Em Atenas, Apolônio ensina sobre práticas religiosas tradicionais aos moradores da cidade (VA, IV, 19), e repreende os atenienses pela maneira como estão celebrando as festas dionisíacas, com danças fora de tom e fora das tradições e com uso de vestimentas estranhas aos antigos costumes durante as celebrações (VA, IV, 21-22). Além disso, critica os jogos de gladiadores, como analisamos no capítulo terceiro (VA, IV, 22). Nas passagens acima, Filóstrato também mostra como seu Império Romano era culturalmente plural. No entanto, ele reconhece um problema de desordenamento nessa pluralidade e uma necessidade de ordem advinda da cultura grega tradicional, reconhecida em diversas partes desse Império, sendo, por isso, em nossa interpretação, o elemento identitário comum. E por outras cidades gregas, Apolônio ordena práticas religiosas conforme costumes tradicionais gregos: Visitou, assim, todos os santuários gregos, o dodoneu, o pítico, o de Abas, subiu até o Anfiarau e ao Trofônio, subiu ao Museu, ao Helicão. Ao visitar santuários e colocá-los em ordem, acompanhavam-no os sacerdotes e seguiam-no seus alunos, e eram erguidos verdadeiros brindes em discursos, em que estes se saciavam (VA, IV, 24). Sobre a atuação de Apolônio em Esparta, Filóstrato ressalta sua constante preocupação com assuntos religiosos e, especialmente, com a manutenção das antigas tradições gregas: Quando cruzou o Taígeto, viu a Lacedemônia ativa e as tradições de Licurgo em plena vitalidade, e não lhe pareceu desagradável conversar com as autoridades dos lacedemônios sobre o que queriam lhe perguntar. Assim, lhe perguntaram quando chegou como deveriam ser venerados os deuses [...] (VA, IV, 31). Já em Roma, após ganhar a admiração do cônsul Tigelino por meio de um diálogo, o cônsul diz que apoiará as ideias de reformas religiosas de Apolônio: “– Visitarei todos os CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 293 santuários ou lhes darei instruções por escrito aos respectivos administradores para que o recebam e o permitam introduzirΝreformas”Ν(VA, IV, 40). O cônsul romano fica desconte ao saber por Apolônio que os bárbaros (aqui se referindo aos partos e indianos) já deixaram que ele iniciasse as reformas religiosas em suas terrasέΝ Tigelino,Ν oΝ cônsul,Ν dizμΝ “– Os bárbaros receberam esses elogios antes dos romanos, mas eu teria desejado que isso, precisamente, tivesseΝ sidoΝ feitoΝ porΝ nós”Ν (VA, IV, 40). Portanto, essas reformas religiosas não dizem respeito apenas ao mundo grego e ao desejo de ver as tradições gregas mantidas nas cidades helênicas, mas diz respeito a todo o Império. Esse é um assunto pelo qual Filóstrato se interessa e deseja que fosse de interesse de uma autoridade romana como um cônsul. Em Alexandria, no Egito, Apolônio também realiza mudanças nas práticas religiosas e discute com o sacerdote egípcio sobre o valor dos sacrifícios de sangue em ritos religiosos, ao que ele era extremamente contrário: Quando subiu ao templo, a ordem que colocou ali e a razão que deu para cada coisa pareciam dispostas pela sua sabedoria divina. No entanto, a respeito do sangue de touro e de gansos e sobre os sacrifícios, não aprovava tais práticas, nem assistiu aos banquetes dos deuses (VA, V, 25). Apolônio, por meio das reformas e ordenamentos realizados na cidade de Alexandria, reforçando aspectos da cultura grega, deixa o Egito ordenado e rejuvenescido: Após Vespasiano partir de um Egito ordenado e rejuvenescido, convidou Apolônio a acompanhá-lo em sua viagem, mas ao tianeu não pareceu uma boa ideia, pois não havia visto o Egito em sua totalidade e ainda não havia chegado a conversar com os gimnosofistas, ainda possuía muita vontade de comparar a sabedoria indiana à egípcia (VA, V, 37). A importância da religião como elemento de ordenamento do Império, para nós, fica bem apresentada neste trecho: Uma vez que as dissensões haviam tomado conta das cidades do lado esquerdo do Helesponto, alguns egípcios e caldeus andavam mendigando por ali na busca de dinheiro em troca de celebrar sacrifícios por dez talentos em honra da Terra e de Posseidon. As cidades contribuíam, umas com o erário público e outras com fundos privados, uma vez que seus habitantes estavam com medo, mas os egípcios e caldeus se recusavam a celebrar os sacrifícios se o dinheiro não lhes fosse passado. Assim, a nosso homem, não pareceu bem ficar indiferente frente à população do Helesponto. Apresentando-se nas cidades, expulsou os que as haviam convertido em desgraça e após adivinhar as causas da cólera sobrenatural e celebrar o sacrifício adequado em cada uma, conjurou a ameaça com poucos gastos e a terra tornou-se calma (VA, VI, 42). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 294 Na citação acima, Apolônio é aquele que celebra os ritos de maneira adequada, com compromisso e sem necessidade de pagamentos para isso. Os ritos são, assim, um elemento de ordenamento e paz no Helesponto. Apolônio de Tiana é, portanto, um ordenador do que encontrava errado no seu caminho, fossem problemas administrativos em que ele funcionava como intermediador de conflitos ou fossem questões religiosas que ele considerava problemáticas, fugindo das tradições antigas. E todo esse ordenamento Apolônio faz para o imperador romano, em prol do Império: [...] corrigia as cidades em vosso benefício [fala Apolônio a Domiciano], de forma que, ainda que me considerassem um deus, tal engano comportava uma vantagem para vós, pois seguramente me recebiam com interesse, temerosos de não agradar a um deus (VA, VIII, 7.7). Filóstrato sublinha, igualmente, a religião como parte dos rituais cívicos do próprio imperador romano ao comentar que antes do encontro entre Apolônio e Domiciano para julgamento do tianeu, acusado como praticante de magia nefasta, Domiciano celebra ritos públicos aos deuses (VA, VII, 32). Compreendemos o papel de Apolônio como ordenador da religiosidade nas regiões do Império Romano por onde passa, valorizando elementos da cultura tradicional dos gregos, dentro da proposta de Filóstrato sobre a afirmação da cultura grega como elemento identitário do Império Romano. A religiosidade, como já apresentamos no terceiro capítulo, era um elemento fundamental para a manutenção da ideia de Império Romano em meio à sua pluralidade e, por isso, aparece de forma tão enfática nas práticas de Apolônio, sendo ordenála uma de suas principais funções como intermediador cultural. Em uma coletânea organizada por Anne Gangloff (2011), estudiosos apresentam pesquisas sobre no que consistiria o papel do intermediador cultural no Império Romano. Sobre o conceito, Gangloff (2011, p. 05-06) compreende os mediadores, ou intermediadores culturais, utilizando os dois termos, como conciliadores capazes de resolverem conflitos entre duas partes e atores de regulação social, política e cultural. Eram, portanto, homens que cumpriam funções oficializadas ou não, capazes de estarem em contato com diferentes culturas por suas profissões permitirem que fossem itinerantes, como era o caso dos sofistas. A autora mostra, dessa forma, que a manutenção do poder romano não se dava apenas por estratégias e elementos que envolviam o âmbito político e militar, mas também o cultural. Gangloff (2011, p. 06) apresenta como exemplo de intermediador cultural Dião de Prusa, intelectual que, como mostramos no capítulo anterior, inspirou muito o Apolônio CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 295 filostratiano. Dião de Prusa é considerado por Gangloff um intermediador porque percorria as cidades do Império difundindo uma cultura grega homogênea. Tal tarefa, que interpretamos sendo bem desempenhada por Apolônio em diversas situações, é uma maneira simbólica de Filóstrato afirmar vários cargos e funções que podiam ser ocupados pelos sofistas, também trazidos por ele na VS, tais como: magistrados nas cidades gregas, preceptores de futuros governantes, embaixadores, sátrapas, ab epistulis, etc. Diante do exposto, nossa visão sobre as funções exercidas pelo Apolônio de Filóstrato vão ao encontro da visão de Gangloff (2011) sobre Dião de Prusa. Ainda dentro da coletânea organizada por essa autora, chama-nos a atenção, em especial, a proposta de Molin (2011), que vê os altos funcionários da política administrativa do Império na função de intermediadores culturais pela mobilidade que seus cargos lhes permitiam, como governadores de províncias, legados, procuradores financeiros, entre outros. A carreira de todo o administrador de alto cargo na época imperial consistia em uma série de funções civis e militares que podia conduzi-los tanto ao Ocidente, como ao Oriente (MOLIN, 2011, p. 64). Conforme Molin, a função desses agentes, além de sua ocupação formal, seria a de eliminar ameaças contra a ordem pública e preservar tradições para manterem a coesão da população do Império Romano. Molin (2011, p. 61-62) destaca também que durante o período de governo de Septímio Severo há um número elevado de administradores civis movendo-se pelo Império. A cifra de mobilidade desses homens pelo Império Romano dobrou ano a ano durante o governo do primeiro imperador severiano. É assim que vemos como Filóstrato evidencia um tipo de intelectual específico, o sofista, em seu Apolônio, capaz de ser um intermediador cultural. Filóstrato mostra como esses sofistas podiam desempenhar tais funções por meio de seus discursos, mas também ocupando cargos na administração imperial, como os mostrados na VS e no texto de Molin (2011). É interessante ligarmos a esses dados também o fato de o próprio Filóstrato, como trabalhamos no primeiro capítulo, ter sido um intelectual que viajou muito pelo Império, embora não saibamos ao certo se ocupou cargos administrativos nessas viagens, ou se viajou apenas como conselheiro da corte imperial. Outro aspecto do papel de Apolônio como intermediador, mas não propriamente de um conflito, é lido na conversa de Apolônio com o rei parto Vardanes, sobre o problema dos descendentes de gregos erétrios trazidos como escravos pelos persas e que, no momento, viviam em território parto de maneira degradante (VA, I, 35). O rei atende ao pedido de Apolônio e diz que o sátrapa da região onde vivem os erétrios lhes dará atenção e os considerará seus amigos. Filóstrato reforça a capacidade de Apolônio em resolver problemas CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 296 administrativos e aconselhar governantes, não destacando, como no episódio do conflito em Aspendo (VA, I, 17), a retórica de Apolônio, mas a admiração que o rei lhe tributava enquanto sábio grego. Consequentemente, uma nova função desempenhada pelo Apolônio da VA é a de conselheiro de monarcas fora do Império e de governantes romanos. Apolônio é representado como um sábio que desempenha o papel de conselheiro para a aquisição de sabedoria pelos governantesέΝ EΝ ApolônioΝ dizμΝ “[έέέ]Ν souΝ euΝ queΝ osΝ aconselhava sobre a escolha da forma de sabedoria,ΝseΝnãoΝtivessemΝescolhidoΝainda”Ν(VA, VI, 11). A primeira passagem em que uma situação de aconselhamento é exposta está na entrada de Apolônio na cidade da Babilônia, quando Filóstrato nos conta que os partos “correram para anunciar a todos a boa notícia: que frente às portas do rei estava um homem sábio,ΝgregoΝeΝbomΝconselheiro”. (VA, I, 29). A sabedoria e o fato de ser grego estão nessa citação diretamente relacionados, portanto, ao aspecto de bom conselheiro inerente a Apolônio. Apolônio também aconselha o rei parto Vardanes em situações mais corriqueiras, como no caso do eunuco apaixonado (VA, I, 36) e sobre a melhor e mais segura forma de governar (VA, I, 37). Mas o momento mais interessante dos conselhos de Apolônio a Vardanes é quando o tianeu ajuda o rei parto a resolver uma situação conflituosa na região da Síria, província romana, um conflito, portanto, entre romanos e partos. O rei parto cobrava impostos de algumas aldeias próximas da cidade de Zeugma, possessões romanas, e chegam embaixadores em nome do governador romano da Síria para resolver a situação com o rei durante a estadia do tianeu ao seu lado. Apolônio aconselha ao rei: – Moderação, respondeu. – E, é claro, rei, eles [referindo-se aos romanos] podem obter isso inclusive sem sua vontade, já que a região faz parte do território deles, mas preferem com seu consentimento. Apolônio acrescentou que mesmo por aldeias maiores que aquelas, parte de propriedades privadas, o rei não deveria criar disputas com os romanos e não deveria iniciar uma guerra nem por motivos maiores (VA, I, 38). O poder dos romanos para Filóstrato é demonstrado nessa passagem, assim como são demonstradas a capacidade do sábio Apolônio em defender as fronteiras do Império Romano dos inimigos através de seus bons conselhos e a necessidade de negociações que o Império Romano tinha com os inimigos. Desse modo, Filóstrato afirma que os romanos podem conseguir territórios mesmo sem negociação com os inimigos, através da guerra, mas que antes disso há tentativas de negociações. Nessa situação, possivelmente, Filóstrato passa duas CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 297 mensagens. A primeira mostra que a cultura grega é valorizada por povos das regiões orientais fora do Império Romano, a ponto de o rei parto ouvir o conselho de Apolônio e um sábio como o tianeu podia servir em funções de negociação em nome do imperador de Roma por este atributo. A segunda mensagem seria que Apolônio pode ser um bom conselheiro do próprio imperador romano para situações conflituosas. Ademais, a guerra romana é exposta como um momento de extermínio, legitimando a capacidade belicosa dos romanos. Antes de partir da Babilônia, em busca da Índia, Apolônio aconselha o rei parto Vardanes a ser generoso com os magos, pois são sábios fiéis ao rei (VA, I, 39). Uma vez que Apolônio se compara aos magos em seus conhecimentos (VA, I, 26), lemos essa passagem como uma espécie de recado implícito aos governantes romanos, possíveis leitores do texto, conforme discutimos no segundo capítulo, sobre o papel dos sábios de estarem ao lado dos governantes, na visão de Filóstrato. Igualmente em relação ao rei indiano Fraotes, Apolônio serve como conselheiro e, conformeΝasΝpalavrasΝdoΝreiμΝ“– Reconheço, pois, que estou perplexo, por isso te tomo como conselheiro”Ν(VA, II, 39). Da mesma forma, sábios de outro tipo aparecem como conselheiros na VA, os sábios brâmanes indianos, e sobre eles Filóstrato escreve: [...] o próprio rei a quem está submetida a região pergunta a esses homens sobre tudo que deve dizer ou fazer, como quem consulta ao oráculo de um deus, e eles, ou lhe indicam o que é mais vantajoso fazer, ou lhe proíbem e advertem por meio de sinais o que não é vantajoso (VA, III, 10). Na terra dos sábios brâmanes indianos Apolônio servirá como conselheiro de outro rei indiano, de nome não mencionado. Nessa passagem é justamente destacada a sua característica como bom conselheiro por ser um homem grego: Enquanto mantinham diálogo [Apolônio e o sábio Iarcas], um mensageiro se aproximou de Iarcas e lhe disse: – O que chegou à primeira hora da tarde para entrevistar-se convosco sobre seus assuntos. E Iarcas respondeu: – Que venha, e assim será melhor sua volta após ter conhecido a um varão grego (VA, III, 23). Desse rei, Apolônio e os sábios brâmanes serão conselheiros de segredos de Estado – do que, no entanto, não temos relato do assunto concreto, pois Filóstrato indica que sua fonte de informações, Damis, não pôde participar da reunião entre Apolônio, os brâmanes e o rei justamente por se tratar de segredos entre o rei e seus conselheiros (VA, III, 33). CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 298 Como conselheiro de governantes romanos, o governador da província romana da Hispânia Bética é o primeiro a procurar Apolônio para tal função. O tianeu, sabendo do interesse do governador em conhecê-lo, lhe escreve dizendo que ele, o governador, podia ir até Gades a seu encontro, ou seja, é o governador que vai até Apolônio, deixando, nos dizeres do narrador, “oΝprotocoloΝdeΝsuaΝmagistratura”ΝparaΝirΝatéΝoΝsábio,ΝcomΝquem permanece três dias. Os assuntos tratados entre o governador e Apolônio não são contados por Damis, mas Filóstrato indica que parecem ter sido sobre a tirania do imperador romano do momento, Nero. (VA, V, 10). E na despedida de Apolônio do dito governador, Filóstrato expõe claramente que não era contrário aos romanos, contrariando aqueles estudiosos mostrados no terceiro capítulo que defendem ser nosso sofista contrário ao Império Romano. O narrador nos conta que: “Prevendo,Ν pois,Ν oΝ queΝ ocorreria,Ν ApolônioΝ haviaΝ alinhadoΝ oΝ governadorΝ vizinhoΝcomΝVindex,Νtomando,Νassim,ΝquaseΝqueΝasΝarmasΝemΝdefesaΝdeΝRoma”Ν(VA, V, 10). Na cidade de Alexandria, Apolônio encontra-se com o imperador romano Vespasiano, que tinha tornado imperador recentemente. Vespasiano é citado como buscando pelo tianeu a fim de que este o fizesse imperador, ou seja, servisse de conselheiro em questões de governo (VA, V, 27-28). Durante as conversas de Apolônio com o imperador, são dados os conselhos sobre governo e Apolônio diz que ele já fez Vespasiano um governante ao pedir aos deusesΝporΝ“[έέέ]ΝumΝgovernanteΝjusto,ΝcomΝcabelosΝbrancosΝeΝpaiΝdeΝfilhosΝlegítimosΝ[έέέ]”Ν(VA, V, 28). Nessa mesma passagem, Apolônio aconselha Vespasiano que tome também Dião de Prusa e Eufrates, outros dois intelectuais como ele, como seus conselheiros. Como conselheiro de um imperador romano, está reiterada a ideia de que Filóstrato não representa seu Apolônio como contrário ao Império Romano, como já discutimos, mas como um sábio grego que pode de diferentes maneiras participar do poder e da administração imperial; no caso aqui mostrado ele participa como conselheiro. Nos dizeres do imperador, Filóstrato afirma as capacidades do biografado para tal função: [...] faço de ti o conselheiro de minhas inquietações, sobre a segurança da terra e do mar, com o objetivo, se os deuses me permitirem, de cumprir minha tarefa. Mas, se os deuses forem contrários tanto a mim quanto aos romanos, não lhes incomodarei contra seus desejos (VA, V, 29). Outro interessante conselho que Apolônio dá a Vespasiano é que este governe pelas leisμΝ“QueΝaΝlei,Νimperador, impere também sobre vós, pois legislareis com mais prudência se não violardes aΝlei”Ν(VA, V, 36). Nesse sentido, vemos Filóstrato remetendo a uma ideia que os gregos compartilhavam desde a época da Grécia clássica das póleis: a importância das leis, CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 299 que eram o verdadeiro governante dos gregos. Sobre essa temática, conforme José Ribeiro Ferreira (1992, p. 18): A pólis estava baseada na aceitação absoluta das leis no sentido lato – incluindo nelas o que nós chamamos a constituição, o conjunto de regulamentações e normas que informam a vida da cidade – e de uma administração despersonalizada. Segundo Jean-Pierre Vernant (1981), a crença dos gregos na importância das leis estava fundamentada na ideia de uma ordem no poder e as leis eram necessárias para que fosse possível uma prestação de contas dos que exerciam autoridade política. Filóstrato incorpora essa ideia para o espaço de seu Império Romano, mostrando que ele não era contra o Império e, pelo contrário, Apolônio era o conselheiro dos imperadores, desde que estes não fossem tiranos, mas respeitassem as leis: Devemos perceber que ele estava em desconforto com as leis [sobre o tirano Domiciano], porque inventaram os tribunais (VA, VIII, 1). Perguntaram-lhe como considerava as leis vigentes entre eles. E ele respondeu: – Como mestres excelentes, mas os mestres são famosos se os alunos não fazem algazarras (VA, IV, 31). Dou conta de que vos estou censurando [discurso de Apolônio para Domiciano], ao invés de me defender, mas devo dizer isso sobre as leis, pois se não as considerais suas governantes, não governareis (VA, VIII, 7.2).73 Lemos, novamente, na VA a afirmação da cultura grega antiga para a manutenção do Império Romano e a importância de alguém com a paideia grega, como Apolônio/Filóstrato e os sofistas, como conselheiros imperiais. Dentro da mesma proposta de afirmação da identidade grega no Império, Apolônio aconselha Vespasiano a respeitar os deuses, não se entregar aos vícios de bebidas e amores, tomar atitudes enérgicas com escravos, não se mostrar preguiçoso diante dos seus súditos e colocar nos cargos de governadores de províncias das regiões de língua grega (Oriente do Império), homens que falem grego e nas regiões de língua latina (Ocidente do Império), homens que falem latim: Sustento que deveis enviar pessoas adequadas às províncias que correspondem por sorteio, na medida em que a sorte o permita. Os que falam grego devem mandar sobre os gregos e os que falam latim, sobre os de sua 73 Outras passagens onde aparece o papel destacado das leis no governo são: VA, I, 34; II, 40; III, 8; IV, 41; VII, 14. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 300 mesma língua ou afins: na época que passei pelo Peloponeso, a Grécia era governada por um homem que não conhecia os costumes gregos, e os gregos não o compreendiam em nada. Por essa razão, fracassaram seus empreendimentos, pois seus conselheiros e assessores nas decisões dos tribunais comercializavam as sentenças, tratando o governador como a um escravo (VA, V, 36). Nessa citação há a afirmação da existência de duas grandes áreas culturais, o Ocidente que falava latim e o Oriente que falava grego. O que Filóstrato faz nessa passagem da VA, para nós, vai ao encontro do que afirma Guarinello (2009, p. 153), de que a afirmação destas duas grandes áreas demonstra que havia uma preocupação de grupos privilegiados em “criarΝ umΝ instrumentoΝ paraΝ construirΝ eΝ gerenciarΝ umaΝ identidadeΝ imperialΝ queΝ legitimasseΝ aΝ posição do imperador e a supremacia das elitesΝ nasΝ cidadesΝ doΝ Impérioέ”Ν Esse bilinguismo jamais erradicou o uso das línguas locais (MOLIN, 2011, p. 60), o que vimos, inclusive, nos exemplos sobre a família severiana no subcapítulo anterior. Acreditamos que Filóstrato, como um intelectual neste império, sabia disso, mas usa desta representação para afirmar a superioridade de sua posição. Apolônio serve de conselheiro ao general e futuro imperador Tito, a quem aconselha ter moderação no caso de guerras e mortes de inimigos por meio desta carta da VA: Apolônio a Tito, o general romano, saudações: A ti, porque não quiseste ser proclamado por teu triunfo e por verter o sangue inimigo, concedo-te a coroa da moderação, uma vez que sabes por que alguém deve ser coroado (VA, VI, 29). Tito, após ter sido proclamado imperador, pede que Apolônio vá a seu encontro na cidade de Tarso, onde frisa que tomará o tianeu como conselheiro, como outrora fez seu pai Vespasiano (VA, VI, 30).74 Apolônio, então, faz suas recomendações a Tito sobre o poder do Império Romano. Os conselhos dados ao imperador são: que seja virtuoso, que seja um modelo de virtude para seus filhos, que tome o filósofo Demétrio, amigo de Apolônio, como conselheiro, que tema as pessoas mais próximas mais do que os maiores inimigos, e que vença seus inimigos pelas armas. Nos conselhos a Tito lemos que, embora Apolônio seja um intermediador de conflitos e um conciliador em busca de harmonia pelas cidades por onde passa, Filóstrato não nega a importância da guerra na sociedade em que vivia. Além disso, novamente ele reforça a virtude como característica necessária ao bom governante, o valor da hereditariedade para os 74 Conforme Pajares (1980, p. 30), na verdade, após Tito ter obtido em 70 o título de cônsul ordinário junto a seu pai, o imperador Vespasiano, ele obtêm a tribunicia potestas. Filóstrato continua mencionando que Vespasiano era imperador em VA, VI, 32-34. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 301 imperadores, conselho já dado ao imperador Vespasiano, e os cuidados com uma imagem que nos é trazida pelos biógrafos imperiais romanos, a das intrigas palacianas tão presentes na história das cortes imperiais. Outro importante conselho dado a Tito é que tenha atenção com algumas pessoas da cidade de Tarso, que eram seus inimigos, capazes de se unir com pessoas de Jerusalém para se rebelarem contra ele. Novamente são os judeus, povo incômodo para Filóstrato, como já tratamos, e parte substancial da população de Jerusalém, o problema que nosso sofista aponta a Tito para ter cuidado. Filóstrato demonstra a capacidade de Apolônio em ser um bom observador sobre os problemas das regiões do Império em relação ao imperador e ao poder de Roma: – E se eu te demonstrasse que alguns destes [referindo-se à população de Tarso] são inimigos teus e de teu pai, que tramaram com a população de Jerusalém uma rebelião e que são aliados secretos de teus mais declarados inimigos? Que te aconteceria? (VA, VI, 34). Apolônio dá conselhos aos possíveis futuros sucessores de Domiciano em forma de cartas enviadas a Roma, citadas na VA e que não estão na tradição epistolar do tianeu, o que nos dá pistas de que podem fazer parte da criação de Filóstrato sobre Apolônio como conselheiro de governantes, função que poderia ser uma projeção de uma pretensão para os sofistas. O conselho que Filóstrato conta ser dado por Apolônio nestas cartas é que os candidatos ao trono imperial, Órfito, Rufo e Nerva, se afastem de Domiciano, sejam moderados, para serem reconhecidos como nobres e fortalecedores da liberdade: Dado que Apolônio havia sido amigo íntimo desses homens durante o tempo em que Tito havia reinado com seu pai, enviava cartas continuamente a eles, exortando-os a moderação para ganharem a causa dos monarcas nobres. Distanciou esses homens de Domiciano por causa da crueldade que este demonstrava e os fortalecia na causa da liberdade para todos (VA, VII, 8). O governador da Grécia (província da Acaia) procura Apolônio e frisa que vai ao encontro dele por saber de seu conhecimento sobre assuntos divinos (VA, VIII, 23). Nesse momento Filóstrato, pelos dizeres de Apolônio, destaca que seu sábio era um bom conhecedor de assuntos humanos também, mostrando-nos que além do caráter divino que deu ao seu personagem, também queria posicioná-lo em situações de conselheiro de assuntos que ficavam aquém das esferas religiosas e sobrenaturais, o que o aproxima mais dos sofistas declamadores públicos. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 302 Não desconsideramos os aspectos de Apolônio como homem divino no texto filostratiano, o que já mostramos no segundo capítulo ao tratar das pesquisas sobre esse tema na VA. Entretanto, dentro da problemática que desenvolvemos nesta Tese, sobre as funções de Apolônio e a ligação delas com a afirmação da cultura grega e, consequentemente, com os sofistas gregos no Império, parece-nos que a representação de Apolônio como homem divino cumpre na VA a função de retirar do tianeu todos os aspectos negativos que poderiam ser correntes sobre ele na época de Filóstrato. Voltando à caracterização de Apolônio como conselheiro, o último governante romano que aparece na VA procurando Apolônio é Nerva, já então imperador romano. Este se comunica por carta com Apolônio que o considera um bom e moderado imperador no texto. Apolônio dá conselhos sobre a forma de governar (VA,ΝVIII,Νβκ)ΝeΝrespondeΝqueΝ“– Estaremos juntos, imperador, por muito tempo, durante o qual não mandaremos em ninguém, nem ninguémΝ emΝ nós”Ν (VA, VIII, 27). Compreendemos, portanto, que o poder dos bons imperadores é considerado justo e não é uma autoridade para nosso sofista, o que novamente nega as teses de que Filóstrato seria contrário aos romanos, tratadas no terceiro capítulo. Vemos que o tianeu não é um conselheiro que vive próximo à corte imperial. Como viajante, são os governantes romanos que vão até Apolônio para se encontrarem presencialmente ou trocam cartas com ele a fim de receberem seus conselhos, como fica evidente nesta fala de Apolônio para Domiciano: [...] eu nunca frequentei as cortes dos imperadores, com exceção da de vosso pai, no Egito, precisamente quando não era ainda imperador, ademais, foi ele que veio até mim. Nunca falei de forma servil com o povo em favor de imperadores. Nunca me vangloriei pelas cartas que os imperadores me escreveram, ou de outras que eu escrevi para eles. Nem me perdi de mim mesmo para obter seus presentes (VA, VIII, 7.11). A função dos sábios como professores e conselheiros dos imperadores, mais precisamente junto de Severo Alexandre, aparece em Dião Cássio (História Romana, LXXX, Fragmento): Quando o falso Antonino foi posto para fora do caminho, Alexandre, filho de Mamea e primo de Antonino, herdou o poder supremo. Ele imediatamente proclamou sua mãe Augusta, e ela assumiu a direção dos negócios, reunindo os sábios ao redor de seu filho a fim de que seus hábitos pudessem ser corretamente formados por eles. Ela também escolheu os melhores homens do Senado como conselheiros, informando-os sobre tudo o que tinha que ser feito. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 303 Dião Cássio (História Romana, LXXVII, 17, 1) comenta sobre a liberdade que Septímio dava a seus conselheiros para falarem, mostrando que o imperador ouvia de fato seus conselhos:75 “Ademais, ele costumava fazer isso com excelência, pois permitiu mais tempo aos litigantes, e deu a nós, eΝaosΝseusΝconselheiros,ΝtotalΝliberdadeΝparaΝfalarέ” E Herodiano (História do Império Romano, III, 15, 6) expõe os conselheiros de Septímio Severo tentando reconciliar, sem sucesso, os irmãos Caracala e Geta logo após a morteΝ doΝ imperadorμΝ “Quando estiveram juntos, sua mãe tentou reconciliá-los, também tentaramΝ algunsΝ cidadãosΝ distintosΝ eΝ osΝ conselheirosΝ deΝ seuΝ pai”έΝ εas Herodiano dá grande destaque, em várias passagens de sua obra, ao papel dos conselheiros imperiais sob Severo Alexandre:76 Como primeira medida elegeram dezesseis senadores, que inspiravam um respeito maior pela idade e que viviam com maior moderação, para que fossem assessores e conselheiros do imperador. Não se dizia, nem se fazia nada, se antes não fosse examinado e aprovado por eles. Essa forma de principado, em que se passava de uma insolente tirania a um modo de governo aristocrático, foi de agrado do povo e do exército, mas, sobretudo, do Senado (HERODIANO, História do Império Romano, VI, 1, 1). Assim, como primeira medida, depois de consultar seus conselheiros, decidiu enviar uma embaixada para tentar deter o ataque às aspirações dos bárbaros por meio de uma carta (HERODIANO, História do Império Romano, VI, 2, 3). Depois de tomar essa medida e reunir um exército numeroso, Alexandre considerou, então, que havia equilíbrio entre as forças de suas tropas e as dos bárbaros. Após consultar seus conselheiros, dividiu seu exército em três colunas. À primeira ordenou que inspecionasse os territórios do norte, indo para a região da Armênia, região amiga de Roma, a fim de invadir o território dos persas. A segunda enviou para reconhecer as comarcas orientais do território bárbaro, onde as descrições mostram haver numerosas lagoas que recebem a confluência das águas do Tigre e do Eufrates [...] (HERODIANO, História do Império Romano, VI, 5, 1-2). 75 Pela análise da documentação, Crook (1975, p. 81) acredita que os conselheiros dos Severos eram os famosos juristas da época e outros amici que formavam um só consilium, consultado pelos imperadores em diversos tipos de situações. As questões consultadas eram sobre finanças, legislação, política de guerra, assuntos de governo, política externa, decisões sobre benefícios e punições e tipos de competências jurídicas (CROOK, 1975, p. 88, 116). 76 Herodiano também mostra a importância dos conselheiros para ajudar o imperador a resolver problemas com as fronteiras do Império durante o governo de Marco Aurélio, um imperador considerado bom pela tradição antiga e que, nesse sentido, ouvia seus conselheiros (História do Império Romano, I, 3,5; 4,3; 5,2). Herodiano também trata da importância dos conselheiros durante o governo de Cômodo (História do Império Romano, I, 6, 1, 2, 8; 8, 1, 13, 7). A importância dos conselheiros na época de Septímio Severo aparece em História do Império Romano, III, 14, 9. Sobre o mesmo tema no governo de Caracala: História do Império Romano, III, 15, 6; IV, 3, 5. E em Heliogábalo: História do Império Romano, V, 5, 1. Já Dião Cássio (História Romana, LXXVIII, 10, 5), ao denegrir Caracala, destaca que ele não pedia conselhos a ninguém. Portanto, fica evidente como a imagem de bom imperador para estes escritores aristocratas também estava ligada à capacidade dos mesmos ouvirem seus conselheiros. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 304 Alexandre e os conselheiros que o acompanhavam estavam já preocupados com a Itália, pois pensavam antes que o perigo germano não tinha nada a ver com os persas (HERODIANO, História do Império Romano, VI, 7, 4). Dessa forma, Filóstrato, ao mostrar Apolônio como conselheiro e enfatizar este aspecto do tianeu, compartilha de inquietações de seus contemporâneos. A terceira passagem da obra de Herodiano, citada acima, é ainda mais interessante, pois apresenta como no período de Severo Alexandre, quando acreditamos que a VA foi dada a ler, os conselheiros romanos eram importantes nas questões dos conflitos no Oriente, região em destaque nas viagens de Apolônio. Podemos conjecturar que foi a tenra idade do imperador Severo Alexandre, que tinha apenas catorze anos quando assumiu o poder do Império, que levou Herodiano a prestar tanta atenção na importância dos conselheiros imperiais em sua obra. Nesse sentido, temos mais um elemento para justificar nossa hipótese de que a VA foi concluída e dada a ler na época de Severo Alexandre, podendo haver relação entre a imagem de Apolônio como conselheiro imperial, salientada por Filóstrato, e as intenções do sofista em afirmar uma posição para seu grupo diante de um período em que, como lemos em Dião Cássio e Herodiano, havia uma grande necessidade destes conselheiros. Além do mais, os problemas nas fronteiras durante o período severiano inevitavelmente podem ter despertado em Filóstrato a necessidade de legitimar os sofistas em Apolônio como conselheiros nesses assuntos e bons intermediadores das relações entre o Império Romano e seus inimigos. Na passagem abaixo da VA, Apolônio exibe ao imperador Domiciano seus conhecimentos sobre os inimigos, no caso armênios e babilônios, e, consequentemente, Filóstrato chama a atenção de seus leitores para a capacidade de alguém como Apolônio ser conselheiro imperial também por este atributo. Além do mais, nesta passagem Apolônio salienta não ser contra o imperador romano: É o caso dos armênios e dos babilônios, e de quantos governem estas regiões, que dispõem de uma grande cavalaria, arqueiros de todos os tipos, uma terra aurífera e uma multidão de homens, que eu conheço bem, ouvireis com risos que vai sofrer deles algum dano que faria perder a vós e ao vosso Império e, ao contrário, sobre um homem sábio, ouvis dizer que é uma arma contra o imperador dos romanos (VA, VIII, 7.1). Como mencionamos no primeiro capítulo, esses conselheiros imperiais não parecem ter formado propriamente um órgão constituído, eram amici principis, nas palavras de Crook (1975, p. 03). Assim também não havia um local padrão para o encontro destes amici (CROOK, 1975, p. 109). Desse modo, podiam desempenhar a função de conselheiro tanto um CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 305 sábio itinerante como o Apolônio da VA e os sofistas viajantes, como intelectuais próximos da corte imperial, o que liga a representação de Apolônio como conselheiro a papéis que Filóstrato parece ter ocupado durante sua carreira, indicados no primeiro capítulo. No entanto, Édouard Cuq (apud CROOK, 1975, p. 01-02) acredita que no começo do Império, com Augusto, foi estabelecido um corpo de membros do Senado em funções de consilium publicum, o qual, porém, foi abandonado ao longo dos anos, aparecendo ocasionalmente na documentação e no tempo. Assim, o imperador Adriano o tornou um órgão legislativo, Septímio Severo manteve-o como uma espécie de conselho de governo e o mesmo se transformou no consistorium na Antiguidade Tardia. Já Mommsen (apud CROOK, 1975, p. 02) defendeu que havia três tipos de instituições constituídas por conselheiros imperiais. A primeira seria um comitê senatorial criado por Augusto e que desapareceu anos mais tarde, embora tenha voltado a aparecer no período de Severo Alexandre. A segunda seriam os amici principis, um corpo de conselheiros administrativos e homens da corte escolhidos pelos imperadores e que todos tiveram ao seu lado. A terceira instituição seria um conselho legislativo que já existia durante a República e que se tornou um corpo assalariado durante o governo de Adriano. Crook, por sua vez, não vê diferenças entre a segunda e terceira instituição mostradas por Mommsen. Pela análise da VA, o que nos parece é que Apolônio é um dos amici principis, independente da existência de um órgão formalizado. No entanto, diante da própria trajetória de Filóstrato como membro da corte imperial e homem que ocupou cargos administrativos pelas cidades gregas, somada à nossa percepção sobre a trajetória de seus sofistas, especialmente de Dião de Prusa, e a análise das próprias funções que Apolônio poderia desempenhar, ligadas, da mesma maneira, à reflexão sobre a necessidade que a documentação severiana nos mostra sobre haver conselheiros próximos ao imperador Severo Alexandre, ousaríamos sugerir que Filóstrato poderia visar que os sofistas, projetados em seu Apolônio, pudessem ocupar a função oficializada de conselheiro imperial se a mesma chegou a existir enquanto um órgão formal, como sugerem os estudiosos para determinados momentos do Império, no período severiano.77 Outra informação importante que Crook (1975, p. 85) nos fornece é que o período severiano é um dos momentos em que estes amici parecem ter tido mais influência e no qual a 77 Crook (1975, p. 84-85) mostra os possíveis amici de Septímio e Caracala. Como já informamos, entre os amici de Caracala provavelmente esteve, segundo esse estudioso, o sofista Antípatro de Hierápolis, biografado na VS. É interessante notar que uma das qualidades que Filóstrato destaca em Antípatro é sua capacidade de escrever cartas (VS, II, 607), uma das formas de comunicação entre Apolônio e os imperadores. CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 306 atividade desse conselho foi mais ativa. Tal informação vem ao encontro de nossa ideia de que as funções do Apolônio da VA visam à política severiana. Dessa maneira, ao situar Apolônio como conselheiro, Filóstrato poderia de fato estar objetivando apontar alguém como ele e seus sofistas nesta importante função no contexto. Como conselheiro ou como intermediador cultural, Filóstrato apresenta em seu Apolônio um mensageiro da paz levada por meio da respeitada cultura grega, reconhecida em diferentes partes do Império Romano e fora dele. Apolônio visa à paz e à integração por meio de elementos identitários gregos. Apolônio, como os sofistas, é, então, um tipo de intelectual que poderia estar próximo de imperadores romanos e também poderia ocupar cargos nas cidades, tanto em nível imperial, como em nível municipal, sendo ainda aquele que era capaz de intermediar relações entre os grupos das elites gregas com o poder de Roma e entre o poder romano e os habitantes do Império. Molin (2011) e Cécile Bost-Pouderon (2011) acreditam que esses agentes intermediadores estavam a favor da pax romana. Tal ideia é propícia de ser empregada na análise da construção do Apolônio filostratiano, lido por nós como a construção de um intermediador da ordem e da manutenção do poder do Império, especialmente por meio de elementos da cultura grega. Dessa forma, devemos ressaltar que lemos o conceito de pax romana não como uma paz real existente, pois como sabemos o Império Romano mantinha suas legiões nas fronteiras e conflitos constantes com os inimigos, como vimos que ocorreu na época severiana especialmente com partos e persas. A pax romana em Filóstrato é um ideal do Império Romano, do qual Apolônio, como uma figura do sofista, era um agente executor em diferentes tipos de funções. Cabe-nos destacar que o Apolônio filostratiano também é um combatente das tiranias, o que já comentamos ao longo da Tese ao tratar de sua experiência enquanto grego no Império Romano. Inferimos que essa não é uma função propriamente de Apolônio na VA, mas faz parte de sua trajetória por se deparar com a perseguição de Nero aos filósofos e com uma acusação frente a Domiciano, imperadores considerados tiranos pela tradição literária imperial de natureza aristocrática. Nesse sentido, acreditamos que Filóstrato evidencie que um sábio como Apolônio era capaz de exercer atividades públicas também por essa qualidade – a de ser contrário às imposições tirânicas e saber defender os governados contra tal tipo de poder – como lemos nessa passagem: Apolônio, ao contrário, sem temer pôr a pátria em perigo, nem desesperado por sua vida, nem forçado a palavras insanas, nem defendendo a missios e getas, nem diante de um homem que não governava simplesmente uma ilha, CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 307 mas cujo poder se fazia por toda a terra e por todo mar, e quando exercia uma dura tirania, tomou posição em defesa dos interesses dos governados, usando da mesma forma de pensar que se opôs a Nero (VA, VII, 3). Por essa razão, reuniu ao seu redor toda a inteligência que conservava no Senado e toda a inteligência que se via em alguns de seus membros, frequentando as províncias e raciocinando com argumentos filosóficos com os governadores, dizendo que o poder dos tiranos não era imortal e que, pela própria razão de parecerem temíveis, eram mais vulneráveis (VA, VII, 4). E, novamente, vemos a importância de o imperador governar respeitando as leis nas críticas ao tirano Nero: E por que é tão meticuloso no papel de Creonte e Édipo que teme equivocarse abandonando a si mesmo e aos romanos de tal forma que, ao invés de promulgar leis, canta e mendiga fora das portas, dentro das quais deveria sentar o imperador que rege os destinos da terra e do mar? (VA, V, 7). Assim, o imperador romano de Filóstrato é aquele que governa justamente por ter as leis como guia, o que não faz dele um déspota. O imperador romano e seu respeito aos códigos jurídicos são, da mesma forma que a religiosidade, a cultura grega (especialmente no Oriente imperial) e a paz, um símbolo da unidade imperial. E Apolônio é aquele capaz de ajudar o imperador a governarΝracionalmenteμΝ“[έέέ]ΝeleΝvos considera um déspota [Apolônio referindo-se à maneira como o inimigo Eufrates considerava Domiciano], eu vos considero meu governante, ele vos oferece uma espada, eu, aΝreflexão”Ν(VA, VIII, 7.16). No trecho acima fica evidente outra visão de Filóstrato sobre seu momento histórico, o da dinastia dos Severos. Estes ficaram amplamente conhecidos pela própria imagem construída pelos historiadores contemporâneos como uma dinastia que deu grande importância aos exércitos. Filóstrato parece não negar essa importância, mas afirma, da mesma forma, a importância dos sábios ao lado dos imperadores, ajudando-os a refletirem sobre o governo e a administração. Para finalizar, percebemos que Filóstrato sugere que seu Império Romano possui o poder sobre todo o mundo conhecido (VA, VII, 3; VIII, 6,Ν 1γ),Ν sobreΝ todaΝ aΝ ἰ υ – oikoumene. Há, portanto, um ideal de nosso autor para que esse Império consiga se relacionar com superioridade até mesmo com os povos de que não possui controle administrativo (indianos e partos). Consequentemente, Apolônio é representado como capaz de ajudar a manter a ordem, por meio da harmonia e da integração dentro do Império Romano, por suas funções que ressaltam a identidade grega. Apolônio também é aquele capaz de se comunicar e CAPÍTULO 4 O IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: O CONTEXTO SEVERIANO, AS VIAGENS E AS FUNÇÕES DE APOLÔNIO DE TIANA | 308 estabelecer contatos com os povos de fora da administração romana por ser o símbolo da cultura grega reconhecida e valorizada fora dos limites administrativos do Império Romano. E, exercendo funções reais ou idealizadas dos sofistas de Filóstrato, a representação de Apolônio indica, portanto, qual Império Romano nosso autor constrói como ideal. Desta maneira: Tais foram as andanças de nosso homem em benefício de templos e cidades, diante de povos e em benefício de povos, assim como em benefício de mortos e doentes, diante de sábios e não sábios, e diante imperadores que o fizeram seu conselheiro sobre a virtude (VA, VI, 53). CONSIDERAÇÕES FINAIS CONSIDERAÇÕES FINAIS A o longo desta Tese, mostramos vários elementos que, em nossa interpretação, nos fizeram reconhecer o Apolônio de Tiana, representado por Filóstrato, como o modelo de um sofista, grupo de que o autor da VA fazia parte. Foi assim que vimos como os sofistas da VS, (outra obra escrita pelo mesmo autor da VA), possuem funções muito semelhantes às do Apolônio filostratiano, como a prática de discursar em público, a tradição de serem intelectuais viajantes, a busca pela concórdia nas cidades, a proximidade com imperadores, a exaltação exagerada das tradições gregas e a função de conselheiro e de intermediador cultural. Atenção especial foi dada por nós a Dião de Prusa, uma espécie de intelectual considerado perfeito por Filóstrato na VS (I, 487), um sábio, no qual nosso autor se inspirou muito na construção de seu tianeu, trazendo-nos temas de discursos de Dião de Prusa para as falas de Apolônio de Tiana, como o caso da defesa do cabelo comprido (VA, VIII, 7.6) e das críticas às práticas de lazer na cidade de Alexandria (VA, V, 26). Da mesma forma, observamos muitas semelhanças entre o Apolônio de Filóstrato e outros intelectuais da época com tradição de sofistas, tais como Apuleio, Élio Aristides e Herodes, o ático, os dois últimos biografados na VS de Filóstrato. Com Apuleio, há uma semelhança na construção das defesas diante da acusação de praticante de magia, de que ambos foram objeto. Com Élio Aristides, Apolônio possui em comum uma ligação muito forte com o aspecto religioso, semelhanças em temática de discurso e na relação com imperadores. Já com Herodes, o ático, o biografado que Filóstrato dedica mais páginas de sua VS, Apolônio possui semelhança na relação estabelecida com um imperador romano e em muitas situações descritas na VS e na VA. Ademais, o Apolônio filostratiano possui muitos contrastes com o Apolônio que aparece nas cartas consideradas pela tradição como escritas pelo tianeu. O Apolônio de Filóstrato é um grego ático, como o autor, e, diferentemente do Apolônio das cartas, não mantém relações estreitas com Tiana e com seus concidadãos. O Apolônio da VA vai a Roma mais de uma vez, tem uma relação positiva com Atenas e é valorizado na pátria de Filóstrato, enquanto o Apolônio das cartas nunca foi a Roma e não mostra boas relações com Atenas. Partindo, neste sentido, da premissa de que Apolônio de Tiana é um modelo de intelectual inspirado nos sofistas na descrição de Filóstrato, apresentamos como a exaltação exagerada da cultura grega na VA, também presente em outras obras do corpus filostratiano, e sua onipresença durante o trajeto do tianeu, têm um significado especial: o de afirmar CONSIDERAÇÕES FINAIS | 311 posições e funções para os sofistas na administração imperial, a fim de garantir a ordem e a integração no Império Romano e também de facilitar contatos entre o poder romano e povos de fora da administração imperial. Muitos estudiosos apontaram a exaltação exagerada da identidade grega de Filóstrato, tão presente na VA, mas não se questionaram sobre as razões de o autor enfatizar seu Apolônio como um grego no Império Romano severiano. Esses autores simplesmente apresentaram Apolônio como grego e mostraram como essa era uma preocupação de Filóstrato ou, em uma visão a que nos opomos frontalmente, entenderam a identidade grega do Apolônio filostratiano como oposição ao poder imperial romano. Ao contrário desses estudiosos, não consideramos Filóstrato, de maneira alguma, como oposto ao Império Romano, pois entendemos a VA como uma forma de o autor mostrar diversas maneiras da identidade grega, da paideia e, especialmente, de os sofistas servirem na manutenção da ordem imperial e nas relações do Império com povos de dentro e de fora de sua administração. No que concerne ao que chamamos de relações dentro do Império Romano, Filóstrato percebeu o Império como garantia de segurança e paz, embora essa paz, como sabemos, fosse uma construção ideológica de membros dos grupos das elites, como nosso sofista. A cultura grega, para nosso autor, é um elemento que ajuda na criação de um espaço discursivo em comum entre os grupos aristocráticos e na manutenção da ordem imperial, é o que dá unicidade em meio à pluralidade, especialmente nas partes orientais. Em relação à pluralidade do Império, Filóstrato nos apresenta o culto a deuses zoomórficos do Egito, os espetáculos de lazer de Alexandria, que fogem das tradições gregas e, por isso, são criticados por Apolônio, os habitantes da Hispânia, alguns conhecendo a cultura grega, outros se espantando com apresentações teatrais e os judeus que eram diferentes deles (gregos e romanos) nas práticas religiosas, nos hábitos alimentares e nas súplicas. Mas o Império Romano do sofista grego Filóstrato possui uma identificação em comum: os elementos da cultura grega que Apolônio encontra em diversas regiões por onde passa. No entanto, a esses elementos unem-se elementos do poder romano para formar uma identificação, o que torna gregos e romanos diferentes de bárbaros para o autor (VA, VIII, 7.8). Ambos os elementos, cultura grega e poder romano, juntos, estabelecem a ordem imperial romana, para a qual a cultura grega e os sofistas, possuidores e transmissores dessa cultura, cumprem um papel de excelência e devem ser, por isso, inseridos em diversos tipos de funções mostradas tanto na VS, quando no Apolônio da VA. CONSIDERAÇÕES FINAIS | 312 Portanto, o Império Romano de Filóstrato é definido por dois poderes: de um lado, o conhecimento e as tradições gregas e, de outro lado, o Estado imperial romano, integrando diferentes tipos de povos e culturas. No entanto, por viver em um momento de ascensão de uma dinastia oriental, a dos Severos, Filóstrato e seus contemporâneos não deixaram de sentir as mudanças que se operavam e mostraram como esses elementos também entraram em ação na própria corte imperial e na transmissão de uma linguagem comum, a linguagem da ordem imperial. É assim que lemos a visão de Dião Cássio sobre o banquete imperial hibridizado da corte de Septímio Severo e a construção do próprio Apolônio de Tiana da VA, que realiza frequentemente o típico culto ao Sol, tão caro aos costumes siríacos da família de Júlia Domna. Dessa forma, mesmo defendendo em toda a VA uma cultura grega homogênea, em uma visão quase essencialista da cultura, Filóstrato é marcado pela fluidez das interações culturais, e seu próprio nome mostra isso: Lúcio Flávio Filóstrato. Nosso sofista deixou entrever também sua visão sobre o momento em que vivia e a interação cultural dentro da pluralidade do seu Império Romano. Porém, a influência de elementos culturais de fora da cultura greco-romana das elites teve limites para esses escritores por nós trabalhados, e o imperador Heliogábalo, ao transcender tais limites, foi criticado por Dião Cássio, Herodiano e por Filóstrato, em forma de metáfora na VA, por meio da imagem do rei indiano adornado de pedras que não sabia falar a língua grega (VA, III, 26). Já o imperador Severo Alexandre, que frisou menos essas diferenças e compartilhou mais dos valores culturais greco-romanos, foi mais bem aceito por aqueles escritores das elites. É no contexto de Severo Alexandre, o monarca idealizado por tais escritores e tido por eles como uma esperança após o desastroso governo de Heliogábalo, que acreditamos que Filóstrato deu a ler a VA, visando, talvez, a que a mesma fosse lida pelo imperador. Para chegarmos a essa reflexão, fizemos considerações sobre a possível datação de escrita da VA no segundo capítulo. No âmbito externo do Império Romano, vimos como nas viagens de Apolônio, o sábio dialoga com governantes de fora da ordem imperial e afirma o poder romano, com o qual consente, se opõe aos povos considerados bárbaros em vários costumes, mas também mostra como havia elementos em comum entre ele, grego, e esses povos. Tal caracterização foi uma forma de demonstrar aos romanos como a cultura grega podia ser um elemento importante nas negociações e nas interações com povos de fora do Império, essencialmente nas partes Orientais em relevância no contexto severiano, momento de intensas guerras com partos e de conquista do Império Parto pelo Império Persa Sassânida. As viagens de Apolônio CONSIDERAÇÕES FINAIS | 313 para fora dos limites do Império Romano, nesse sentido, são muito mais uma criação filostratiana do que uma realidade do Apolônio histórico. Elas não são referidas nas cartas da tradição não citadas na VA e são a ferramenta utilizada por Filóstrato para expor a onipresença da cultura grega dentro e fora do Império Romano. Nessas viagens há uma afirmação da cultura grega em diálogo com a cultura do outro. Compreendemos que as representações do outro são resultados de uma autocompreensão, autoconhecimento e autoafirmação daquele que representa. É pelos contrastes estabelecidos que se constrói e se afirma uma imagem de si próprio. Apolônio aparece nessas viagens como uma espécie de sombra de Alexandre, o Grande, seguindo seus caminhos pela Índia, onde encontra muitos resquícios da passagem do macedônio em terras que nunca fizeram parte do Império Romano e nas quais há, na narração filostratiana, uma forte presença da cultura grega. Apolônio visita Alexandria, a cosmopolita capital da província do Egito, fundada em 331 a.C. por Alexandre, e ali tece as críticas mais ásperas que podemos ver a uma localidade do Império Romano, reconhecendo na cidade a forte presença de violentas práticas de lazer tipicamente romanas e sugerindo, como alternativa, práticas de luta gregas (VA, V, 26). Acreditamos que tais críticas são mais densas nessa cidade justamente por ela ter sido fundada por Alexandre. Por meio das viagens, Filóstrato demonstra, igualmente, que Apolônio tem bons conhecimentos geográficos e étnicos das regiões orientais do Império em um momento de tensão e conflitos no Oriente, conhecimentos esses muito necessários em termos estratégicos aos imperadores. Sem analisar o habitus de Filóstrato e, portanto, sua trajetória, seus interesses e suas disposições, fica, a nosso ver, impossível chegar às considerações finais a que chegamos. Filóstrato fez parte da corte dos Severos, possivelmente acompanhou os cortejos imperiais em viagens e se mostrou capaz de relacionar-se de maneira muito próxima com Caracala e Júlia Domna, aos quais o sofista escreveu cartas (Carta 72 e Carta 73). O autor também apresentou sofistas com essa característica, ressaltamos, em especial, o caso de Dião de Prusa, próximo a Nerva e Trajano (VS, I, 487). Os interesses e as capacidades de Apolônio também foram apreciados em comparação aos sofistas. Assim, seu Apolônio é representado como possuindo capacidades de aconselhar imperadores e demais governantes romanos e de estabelecer a concórdia interna no Império e boas relações externas, uma vez que os elementos de sua formação, aos moldes da paideia grega, são reconhecidos em diversas partes, dentro e fora do Império Romano. A importância da concórdia é muito grande para Filóstrato, o que é mostrado nessa citação: CONSIDERAÇÕES FINAIS | 314 “AosΝhomensΝque se colorem em acordo, também toda a terra parecerá única”Ν(VA, VI, 2). O que compreendemos, nesse sentido, é que Apolônio como intermediador e conselheiro é aquele que coloca em ordem o que está com problemas e estabelece a concórdia para a administração dos romanos, o que ficou compreendido pela própria fala de Apolônio ao imperador Domiciano, no sentido de que ele, Apolônio, era a pessoa que colocava o que estava errado em ordem para o imperador governar (VA, VIII, 7.7). Embora houvesse semelhanças entre sofistas (o grupo que Filóstrato fazia parte) e filósofos (o que de fato o Apolônio histórico parece ter sido, especialmente em termos de suas práticas), havia também uma diferença no que diz respeito à apresentação física: corte de cabelo, barba e forma de se vestir. Para Filóstrato, entretanto, um intelectual podia ter as duas caracterizações, como foi o caso de Dião de Prusa e, como demonstramos, o caso de Apolônio. No entanto, na representação de Apolônio, Filóstrato vai além e cria um verdadeiro sábio, com a melhor reputação possível, a ponto de ser considerado um homem com atributos divinos, o que excluía do tianeu todas as caracterizações negativas que lhe atribuíram outros documentos, como os textos de Luciano (Alexandre ou o falso profeta, 5 e Philopseudes, XXIX) e Dião Cássio (História Romana, LXVII, 18; LXXVIII, 18, 4). Apresentado como homem divino e sábio, a representação feita por Filóstrato exclui de Apolônio uma imagem que podia torná-lo um reconhecido inimigo da ordem romana, transformando-o, pelo contrário, em um legítimo elemento para a manutenção dessa ordem.1 Ressaltamos, assim, que Apolônio era um intelectual híbrido, um sábio que reunia características de sofistas e filósofos e que, além de tudo, era divino. Da mesma forma, VA é uma obra de gênero literário híbrido, misturando características do que era na época biografia, romance e hagiografia, num gênero que estava nascendo. Como Apolônio e o gênero da VA, o contexto severiano é diverso em termos culturais, com culturas em intensas interações. Nesse sentido, em nossa leitura, só foi possível compreender as razões de tamanha exaltação à identidade grega e definição e defesa de funções para os sofistas gregos em Apolônio, por meio de um estudo sobre o contexto histórico de Filóstrato e as práticas e representações sobre a dinastia dos Severos. Também foi extremamente importante perceber o que estava acontecendo nas fronteiras orientais do Império Romano com os povos inimigos, partos e persas, durante os Severos para chegar às considerações que chegamos sobre as funções dos sofistas e de sua cultura grega segundo Filóstrato. Para isso, foi essencial termos contato com os textos de Dião Cássio e Herodiano, historiadores da época severiana. 1 MacMullen (1966) apresenta algumas caracterizações que podiam ser reconhecidas como de inimigos da ordem romana, e entre eles estão os magos e certos tipos de filósofos. CONSIDERAÇÕES FINAIS | 315 Dião Cássio descreveu o banquete da corte de Septímio Severo quando do casamento de seu filho Caracala com Plautila, banquete esse que, pela análise do que foi mostrado por Dião Cássio, podemos caracterizar como hibridizado culturalmente. O mesmo apontou certas características do temperamento de Caracala como advindas de suas origens siríacas, frisando também que os desejos de Júlia Domna, em relação ao poder, tinham relação com suas origens orientais. Dião Cássio e Herodiano também foram extremamente críticos ao perceberem a insistência de Heliogábalo em trazer seus costumes orientais para Roma. O historiador Herodiano escreveu sobre os costumes religiosos dos Severos, o culto ao Sol e a prática de adivinhação por meio de sonhos. Herodiano e Dião Cássio nos indicaram problemas nas fronteiras, tanto no Ocidente quanto no Oriente, especialmente no período de Severo Alexandre, apontando importantes informações sobre os conflitos entre partos e persas e sobre as tentativas de diplomacia entre o imperador romano e os persas. A imagem de Alexandre, o monarca macedônio, apareceu extremamente ligada aos Severos, em especial a Caracala, nas obras dos referidos autores. Destarte, a análise das obras dos dois historiadores acima mencionados fizeram-nos apreender melhor as características do contexto severiano que, a nosso ver, estão refletidas nos desejos de Filóstrato em sua representação de Apolônio de Tiana. Do mesmo modo, esta documentação nos ajudou a refletir e seguir uma posição historiográfica sobre vários aspectos debatidos em torno da dinastia dos Severos, como a interpretação sobre a promulgação da Constitutio Antoniniana, a classificação dessa dinastia como uma Monarquia Militar e a ideia de crise do século III ligada aos Severos. A Constitutio Antoniniana, promulgada por Caracala em 212, foi lida por nós como uma espécie de estratégia de negociação imperial a fim de manter a ordem e a integração por meio de um elemento identitátio, a cidadania comum, que ligava todos os habitantes do Império a Roma. Assim como lemos os anseios de Filóstrato na escrita da VA, mas no caso de nosso sofista, ele defende a importância da cultura grega para uma identificação imperial, especialmente para o Oriente imperial. Em relação à classificação dos Severos como uma Monarquia Militar, percebemos como isso advém de uma leitura acrítica da documentação, especialmente dos escritos de Dião Cássio. Se ligarmos a VA ao seu contexto de produção também neste sentido, notaremos como Filóstrato não está preocupado em demonstrar a força do imperador romano advinda dos exércitos. Para ele, o bom imperador é aquele que exerce um poder moderado respeitando as leis e os deuses, para o que é essencial ter um sábio como conselheiro. Para nosso autor, a CONSIDERAÇÕES FINAIS | 316 ordem imperial é mantida pelo poder do imperador (VA, VIII, 7.7) e por elementos culturais identitários, para os quais a cultura grega possui papel de destaque. Não conseguimos compreender uma ideia de crise do século III no Império Romano de Filóstrato. Em nossa visão, para Filóstrato há mutações e transformações, fruto das interações culturais, especialmente com a dinastia severiana no poder, mas não há uma crise como alguns historiadores apontaram ao analisar o século III, ideia, no entanto, refutada por outro grupo de historiadores com os quais concordamos. As cidades na VA continuam sendo os centros políticos e administrativos do Império, onde Apolônio discursa, intermedia conflitos e ordena principalmente práticas religiosas. As cidades são, na VA, os locais propícios para a difusão de formas de integração e, assim, da almejada ordem imperial de Filóstrato. Para nosso autor, a cidade de Roma era idealizada como o centro políticoadministrativo, o que fica evidente na maneira como Roma aparece na obra (no meio e no final). No entanto, o elemento referencial da VA não é Roma, pelo que pudemos interpretar, mas a cultura grega no Império Romano. A preocupação em afirmar a cultura grega não foi algo exclusivo de Filóstrato, sendo comum nas obras dos autores englobados por ele dentro do que é conhecido como Segunda Sofística. No entanto, há uma peculiaridade na afirmação da cultura grega em Filóstrato. Primeiramente porque, em nossa interpretação, na VA e na VS isso significava afirmar funções para os sofistas. Mas, o mais importante de se observar, é que Filóstrato afirma a identidade cultural grega em meio às confluências culturais próprias do período de ascensão da dinastia dos Severos, com os costumes orientais trazidos diretamente para a corte imperial, como já comentamos, e a promulgação da Constitutio Antoniniana. Sendo assim, afirmar-se enquanto grego nesse momento tem uma diferença em relação aos contextos anteriores. Não é para menos que é Filóstrato que denomina o que ele e os escritores gregos que biografa viviam, a chamada Segunda Sofística, o que demonstra o quão importante essa afirmação identitária e, principalmente, de posições para seu grupo, foi para nosso autor. Ao trabalharmos com a experiência de Filóstrato sobre a extensão dos contatos político-culturais e sobre formas de integração, percebemos que nossa pesquisa se torna atual tanto dentro dos temas em voga nos debates acadêmicos, como diante da própria contemporaneidade que vivemos e seus processos de globalização. No entanto, não queremos seguir modismos analíticos contemporâneos e estamos atentos, pautados nas reflexões de Carrié (2011), em tomar cuidado com relação ao uso de conceitos como globalização e mundialização quando tratamos do Império Romano. Sabemos que a escolha de nosso objeto CONSIDERAÇÕES FINAIS | 317 de estudo está ligada a nossas preocupações enquanto profissional da história que fala de determinado lugar social, espaço e temporalidade. Porém, tratar o Império Romano como uma forma de globalização seria um anacronismo, já que tais conceitos têm sentido em relação à reflexão econômicaΝcontemporâneaΝeΝ“ultrapassamΝoΝnívelΝgeográficoΝdaΝ‘unificação’ΝparaΝdarΝ aΝestaΝumΝnívelΝsistêmico”Ν(ἑARRIÉ,Νβί11,ΝpέΝίβ,Νίι-08).2 É interessante nos debruçarmos sobre um tema que proporciona reflexões sobre nosso presente. Mas, novamente nos utilizando das reflexões de Carrié (2011, p. 24), sabemos queΝ “nãoΝ temosΝ nadaΝ queΝ esperarΝ doΝ comparativismoΝ passado-presente, tendo muito mais a esperar do comparativismo sincrônico, na medida em que ele procura muito mais contrastes queΝasΝhomologiasέ” Ainda sobre a escolha de nosso objeto e nosso momento histórico, Bloch, em sua Introdução à História (1941), já ressaltou que o historiador tem necessidade de estar sempre em contato com seu presente e são suas experiências cotidianas que, de maneira consciente ou não, o fazem buscar os elementos de estudo sobre o passado. Conforme Jacques Le Goff (2003, p. 537), a própria escolha do documento pelo historiador não é fortuita e depende de sua organização mental e da sua posição na sociedade de sua época, não sendo menos neutra do que sua intervenção na interpretação. Sobre a subjetividade na análise do historiador, Keith Jenkins (2005, p. 33) escreve queμΝ“oΝpassadoΝqueΝ‘conhecemos’ΝéΝsempreΝcondicionadoΝporΝ nossasΝ própriasΝ visões,Ν nossoΝ próprioΝ ‘presente’έΝ Assim como somos produtos do passado, assimΝtambémΝoΝpassadoΝconhecidoΝ(aΝhistória)ΝéΝumΝartefatoΝnosso”έΝ Não devemos deixar de nos posicionar sobre a complexa relação historiadorsubjetividade. Acreditamos na presença da subjetividade do historiador em sua análise, mas vemos a história como uma disciplina que possui critérios de cientificidade e técnicas próprias deΝ “operaçãoΝ historiográfica”,Ν comoΝ bemΝ nosΝ mostrouΝ εichelΝ deΝ ἑerteauΝ (βίίβ)έΝ Assim,Ν concordamos com Chartier (2002, p. 97) e Certeau (2002, p. 66-67) que entendem a história comoΝ práticaΝ científicaΝ comΝ operaçõesΝ específicas,Ν porémΝ comΝ saberΝ limitadoΝ peloΝ “lugarΝ social”ΝdeΝondeΝfalaΝoΝhistoriador,Νde onde se organizam os métodos e onde “seΝdelineiaΝumaΝ topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhe são propostas, se organizam”Ν(ἑERTEAU,Νβίίβ,ΝpέΝθι)έΝ 2 Carrié (2011) também afirma que utilizar o conceito de globalização para o Império Romano seria usar dos mesmos valores que fizeram outros historiadores utilizarem o conceito de romanização, já veemente criticado devido seu forte caráter de análise do Império em termos de difusão voluntária de valores culturais de um dominador e recepção desejada destes valores por conquistados. Análise esta, ligada ao próprio contexto póscolonial moderno destes historiadores. CONSIDERAÇÕES FINAIS | 318 Portanto, entendemos que os interesses historiográficos são condicionados pelo presente e pela posição do historiador, o que possivelmente aconteceu em nosso recorte do estudo sobre as representações filostratianas dos contatos entre diversos povos e a representação de Filóstrato sobre Apolônio na VA. Lembremos que, como apresentamos na Introdução, escolhemos trabalhar com a VA inicialmente pela sua temática relacionada à magia. Contudo, o tema se foi delineando à medida que as leituras foram desenvolvidas. As perguntas foram sendo possíveis a partir do próprio documento, mas provavelmente condicionadas pelo nosso presente, pelas nossas inquietações e posições diante dele. Não obstante, diante das variadas indagações que temos atualmente sobre os processos identitários, os contatos entre diferentes povos e culturas, frente à riqueza de temas desenvolvidos na VA, assim como em todo o corpus filostratiano no contexto da dinastia dos Severos, há a permanência de um campo aberto para inúmeras possibilidades de investigações aos interessados nas interpretações sobre o Império Romano. Não podemos negar que nossa análise de Filóstrato, pela própria natureza da obra e do grupo que pertenceu nosso autor, fica centrada à visão de Império Romano de um membro das elites, assim como são as visões dos autores que ajudaram em nossa percepção sobre o momento severiano – Dião Cássio e Herodiano. Dessa maneira, o que buscamos delinear em nossa interpretação de Filóstrato e de seu Apolônio de Tiana, mais do que a finalização de uma pesquisa, pode ser o caminho de abertura para outras análises, tanto de novos temas dentro da documentação apresentada, como sobre outros grupos, com diferentes documentações, no âmbito da problemática das construções identitárias e suas fronteiras. REFERÊNCIAS 320 REFERÊNCIAS 1. Fontes Documentais APOLLONIUS OF TYANA. Letters of Apollonius. In: PHILOSTRATUS. The Life of Apollonius of Tyana. Editado e traduzido por Christopher P. Jones. Cambridge/Massachusetts/London: Harvard University Press, 2006, vol. III, p. 10-79. ______. The Epistles of Apollonius. In: PHILOSTRATUS. The Life of Apollonius of Tyana. Tradução de F. C. Conybeare. London/New York: William Heineamnn/G. P. Putman’sΝsons, 1921, vol. II, p. 407-481. APULÉE. Apologie. Texto estabelecido e traduzido por Paul Valette. Paris: Les Belles Lettres, 1960. APULEYO. Apologia. Flórida. 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YSSEδT,ΝDέVέSέΝStradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δifeΝofΝApolloniusΝofΝTyana”,ΝΝMaster Drawings, vol. 32, n. 4, 1994, p. 351-359. ZÉTOLA, B. M. Política externa e relações diplomáticas na Antiguidade Tardia. Tese de Doutorado defendida na Universidade Federal do Paraná/UFPR, 2010. APÊNDICES 342 APÊNDICE 1 O CONTEÚDO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA E SEU DESENVOLVIMENTO NA OBRA Livro I Filóstrato cita suas fontes para a escrita da VA, descreve o nascimento de Apolônio de Tiana na Capadócia e sua educação na Jônia. Apolônio é apresentado como sábio pitagórico e estilo de vida ascético. O tianeu passa por cidades de províncias romanas orientais, enquanto faz planos de uma viagem para Índia. É mostrada a estadia de Apolônio na Mesopotâmia e sua apresentação a Damis, seguidor de Apolônio que Filóstrato diz ser a fonte principal de informações para seu texto. São narrados o contato de Apolônio com os magos da Babilônia e a apresentação de Apolônio a Vardanes, rei parto. Há uma discussão sobre o valor da pobreza. Apolônio aconselha Vardanes e se despede do rei rumo à Índia. Livro II Continuando a viagem, com destino à Índia, Apolônio passa pelas regiões do Cáucaso e Tauro. Há discussões de cunho filosófico entre Apolônio e Damis sobre a proximidade da terra com o céu e descrições de animais tidos como exóticos pelos viajantes. Ao chegar à Índia Apolônio é apresentado ao rei indiano Fraotes, com quem dialoga e quando se têm uma descrição da admiração mútua entre ambos, destacando-se a elevada sabedoria de Apolônio mesmo junto a Fraotes, que ele considera sábio. Na sequência relata-se a despedida de Fraotes e a continuação da viagem pela Índia. Livro III Ainda na Índia, Apolônio busca conhecer os brâmanes e sua sabedoria. Conhece Iarcas, um líder brâmane com quem terá muitas conversas e discussões sobre temas variados. Apolônio também conhece outro rei indiano, de nome não mencionado, que menosprezava os gregos, mas que é convencido de sua superioridade por nosso sábio. Apolônio e seus acompanhantes vão embora da Índia, passam novamente pela região da Mesopotâmia para reencontrarem o rei parto Vardanes, descem até Selêucia, navegam até o Chipre, param em Pafos (onde Apolônio ensina muitas coisas aos sacerdotes do templo de Afrodite) e navegam até a Jônia, em seguida. 343 Livro IV Apolônio visita várias cidades da Jônia, livra Éfeso de uma praga com suas adivinhações, busca pelo túmulo do herói Palamedes e encontra-se com o espírito de Aquiles. Depois da Jônia, Apolônio passa por Atenas e por outras regiões da Grécia. Ainda neste livro, Filóstrato narra a viagem e a chegada de Apolônio a Roma, o que ocorre, precisamente, em 66. Sua presença em Roma tem por finalidade compreender a situação da filosofia e dos filósofos, que nessa ocasião eram perseguidos pelo imperador Nero. São apontadas várias críticas a Nero, que proclama em público, na Grécia, que ninguém deveria ensinar filosofia em Roma. Apolônio conhece o cônsul Tigelino e, então, parte para Gades, na Hispânia Bética. Livro V Temos a descrição da estadia de Apolônio na Hispânia Bética e as conversas com o governador da Bética sobre Nero. Novamente Apolônio passa por Atenas, depois por Rodes e Alexandria, onde se encontra com Vespasiano. No final do livro, Apolônio, então, parte para a terra dos gimnosofistas. Livro VI Neste livro há a descrição da estadia de Apolônio na terra dos gimnosofistas, nas fronteiras entre o Egito e a Etiópia. Após a estadia entre os gimnosofistas, Apolônio vai para Tarso onde se encontra com o futuro imperador Tito. Apolônio fala para Tito sobre quais são, para ele, as características do monarca ideal. Por fim, prevê sobre a morte do futuro imperador. Livro VII Filóstrato inicia essa parte da obra com seu Apolônio de volta à região da Jônia. Em seu regresso, Apolônio passa pela Grécia e pela Península Itálica, rumo a Roma a fim de encontrar o imperador Domiciano que o acusa. São descritas a prisão e a acusação contra Apolônio, assim como o encontro com o imperador. Apolônio desaparece misteriosamente na frente de Domiciano e aparece em Dicearquia, na frente de Damis e de Demétrio. Juntos, Apolônio e seus discípulos, partem para Sicília, na Península Itálica, e dali para Olímpia, na Grécia. Seguem para Beócia e depois voltam à Jônia. Segundo as descrições de Filóstrato, Apolônio praticou filosofia na maior parte do tempo em Esmirna e Éfeso, visitando ainda outras cidades não descritas. No início do Livro VII há um discurso sobre a tirania como o pior entrave para os homens que se dedicam à filosofia. O Apolônio de Filóstrato caracteriza 344 o imperador Domiciano como um tirano e também critica Nero por, como Domiciano, não gostar dos filósofos. Livro VIII Nesse livro não há relato de viagens, apenas menções sobre as mesmas. O texto começa com Apolônio ante o tribunal de Domiciano sob a acusação de práticas mágicas. Filóstrato narra a defesa de Apolônio. Domiciano absolve Apolônio das acusações. O fim do Livro VIII, e da obra como um todo, mostra Nerva, elogiado por Apolônio em todo texto, chegando ao poder imperial em Roma. Ainda no final do texto, Apolônio pede que Damis leve uma carta ao novo imperador e depois desaparece. O narrador escreve sobre a beleza das estátuas de Apolônio no santuário de Tiana, cita a existência de várias versões sobre a morte do tianeu e comenta que o túmulo de Apolônio nunca foi encontrado e, no fim, Filóstrato comenta sobre a construção do templo em Tiana pelo imperador, que, por informações de outra documentação textual (Dião Cássio), parece ter sido Caracala. 345 APÊNDICE 2 CATÁLOGO DA TRADIÇÃO EPISTOLAR EM TORNO DE APOLÔNIO DE TIANA 1 Nº1 1 Remetente Apolônio de Tiana Destinatário2 O filósofo estoico Eufrates (de Tiro), inimigo de Apolônio 2 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates (de Tiro), inimigo de Apolônio 3 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates (de Tiro), inimigo de Apolônio Assunto e relação com a VA, de Filóstrato - Sentimento de Apolônio em relação à amizade com sofistas e filósofos. - Filósofos e sofistas são colocados em categorias diferentes. - Essa carta não está na VA. - Embora na VA Apolônio seja apresentado como um filósofo (como, por exemplo, em: I, 23), há passagens que Apolônio é tratado como um sofista, como em: VII, 16-17. - Importância da virtude na vida dos homens sábios. - Há uma confusão entre filósofos e sofistas, pois Apolônio recomenda ao filósofo Eufrates que se ele não possuir a virtude deve desistir da carreira de sofista. Portanto, filósofos podem ser sofistas pelo que se entende aqui. - Essa carta não está na VA. - Na VA também há, como mencionamos acima, filósofos tratados como sofistas em: VII, 16-17, além de alusões a elementos em comum entre sofistas e filósofos, como em: I, 7; I, 14; I, 17; II, 41; III, 16; III, 43; V, 29; VII, 8; VI, 35; VII, 8; VIII, 19 e VIII, 26. - Crítica ao gosto de Eufrates em relação à riqueza. - Na VA (I, 13), Filóstrato comenta que Eufrates caluniava Apolônio por valorizar a riqueza. Nas cartas vemos o contrário, embora a acusação de Apolônio contra Eufrates pelos bens materiais também esteja na VA. - Interessante perceber que há um paralelo em filósofos e viagens (Eufrates viajou muito, menciona esta carta), como na VA (Apolônio é um filósofo que viaja). A numeração das cartas segue a atribuída por Jones (2006), encontrada no volume III da VA da Harvard University Press (Loeb Classical Library), por acharmos que esta catalogação é completa, pois reúne tanto as vinte e três cartas transmitidas nos manuscritos de Stobaeo (autor do século V), cartas de possível autoria de Apolônio transmitidas em manuscritos medievais, cartas da VA (em um total de treze cartas: 42a até 42h e 77a até 77e – dez delas são cartas de Apolônio, três são respostas para Apolônio) e cartas conjecturais de Apolônio de acordo com interpretações de achados arqueológicos posteriores (Cartas 67a e 75a). Tivemos contato com as cartas organizadas por Conybeare (1921), também da Loeb Classical Library, volume II da VA. A coleção traduzida por Jones divide algumas cartas por seu longo conteúdo (Cartas 8.1, 8.2, 11.1, 11.2, 44.1, 44.2, 44.3, 48.1, 48.2, 48.3, 55.1, 55.2, 58.3, 58.4, 58.5, 58.6, 58.7) e, nesse sentido, revisa a tradução de Conybeare, além de incluir as cartas conjecturais de acordo com interpretações de achados arqueológicos posteriores (67a e 75a). Tanto nas cartas organizadas por Jones, como nas de Conybeare, não há datação para as mesmas. 2 Apresentamos algumas referências de Jones (2006) sobre quem são os destinatários. 346 4 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates (de Tiro), inimigo de Apolônio 5 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates (de Tiro), inimigo de Apolônio 6 Apolônio de Tiana 7 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates (de Tiro), inimigo de Apolônio O filósofo estoico Eufrates 8.1 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates - Descrição do filósofo ideal para Apolônio: é aquele que usa um manto barato, uma barba e não tem nada mais. - Essa carta não está na VA. - Várias passagens da VA mostram Apolônio criticando a riqueza e valorizando o desapego aos bens materiais, como em: I, 34; V, 29 e VIII, 3. - O valor da riqueza para um filósofo. - Apolônio aconselha Eufrates a distribuir seus bens para seus concidadãos e para seus amigos. - Essa carta não está na VA. - Como já mencionamos acima, a recusa da riqueza encontra-se na VA. Porém, não há na VA a preocupação de Apolônio com sua cidade natal. - Crítica a Eufrates, que embora seja estoico é defensor do prazer epicurista. - Crítica à preocupação de Eufrates com o pagamento pelos seus serviços como filósofo. - Essa carta não está na VA, porém a crítica à riqueza e a valorização do desprendimento material aparecem em diversas passagens da VA, tais como: I, 21, 34, 38; III, 24; V, 22; VI, 2, 21; VII, 23, 33; VIII, 3. - Em VA, VIII, 3, Apolônio ensina que a autêntica filosofia não busca a riqueza, tema tratado, de certa forma, nessa carta. - Novamente há uma crítica ao valor que Eufrates dá aos bens materiais. - Essa carta não está na VA. - Em VA, V, 38 e VIII, 3, Apolônio critica o valor que Eufrates dá aos bens materiais. - Novamente há uma crítica ao valor que Eufrates dá aos bens materiais, que contrapõe ao ideal de homem virtuoso, valorizado por Apolônio. - Essa carta não está na VA. - O Apolônio da VA valoriza o homem virtuoso, sobretudo quando este é um governante. Em suas conversas e discursos o tema da virtude estava sempre presente. Passagens sobre o tema em: I, 28; III, 24; IV, 31; VI, 20-21, 31, entre outras. - A carta configura-se como uma espécie de resposta de Apolônio aos ataques de Eufrates sobre seu modo de vida: evitar banhos, evitar sair de casa, usar cabelos longos como os gregos, usar roupas de linho, praticar a 347 8.2 Apolônio de Tiana 9 Apolônio de Tiana 10 Apolônio de Tiana adivinhação (atividade reconhecida aqui por Eufrates como incorreta para um filósofo). - Essa carta não está na VA. - Apolônio é mencionado como grego, em oposição ao bárbaro. - Em toda VA temos Apolônio apresentado como grego em seus costumes, como em: II, 17; III, 25; IV, 41, entre várias outras passagens. Não há - Também é uma espécie de resposta às críticas destinatário sobre o modo de vida de Apolônio. mencionado, - As principais características sobre Apolônio mas durante o ressaltadas aqui são: ele alivia dores e acalma texto da carta paixões, ele fala pouco e brevemente, ele tem o percebe-se que poder de ficar em silêncio, ele não come carne e se abstém de coisas relacionadas a animais. a mesma é endereçada para - Essa carta não está na VA. - Todas as características acima são Eufrates. apresentadas na VA ao longo da apresentação de Apolônio. Apolônio curando dores, ver: I, 9. Apolônio e o silêncio, ver: I, 14; IV, 44. Sobre a alimentação e a estética existencial de Apolônio, ver: I, 8, 21, 32, 35, entre outras passagens. Dião de Prusa - Conselhos ao amigo filósofo sobre a importância da verdade aos filósofos. - O começo desta carta é citado na VA, V, 41. - Amizade entre Apolônio e Dião de Prusa é citada na VA em: V, 31. - Não encontramos referências a essa amizade em outros documentos. Dião de Prusa - Sobre o fato de Apolônio ter parado de falar para grandes plateias, nos indicando que antes ele falava para públicos grandes. - Razão pela qual ele parou de falar para grandes plateias: prefere dirigir seus discursos para uma única pessoa, no singular, confia mais na eficácia desse tipo de discurso. - Essa carta não está na VA. - Na VA, Apolônio dialoga, na maior parte das vezes passando ensinamentos, com públicos pequenos, em geral governantes (como, por exemplo, em: I, 33, diálogo com Vardanes e VI, diálogos com os gimnosofistas) e também com grandes públicos (como em: IV, discursos para cidades da Grécia). 348 11.1 Apolônio de Tiana 11.2 Apolônio de Tiana 12 Apolônio de Tiana 13 Apolônio de Tiana Os dirigentes de Cesareia (capital da Judéia) - Conselhos de Apolônio para os governantes de Cesareia sobre a importância de terem os deuses acima deles. - Diz que as pessoas sensatas devem dar prioridade aos assuntos de sua cidade. - Essa carta não está na VA. - Apolônio preocupado com assuntos de sua cidade não está na VA. - Tal conselho a essas pessoas não aparece na VA. Na VA os conselhos aos dirigentes de cidades e regiões são relacionados, em geral, à resolução de conflitos, como em: I, 15; IV, 33; V, 10. Os dirigentes de - Apolônio é homenageado pela cidade de Cesareia Cesareia. (capital da - Apolônio se mostra como recebendo favores Judéia) dos deuses por ter bom caráter. - Apolônio valoriza a cidade por ter costumes gregos. - Essa carta não está na VA. - Cesareia não aparece na VA. - Em várias passagens da VA Apolônio é mostrado como divino, como em: I, 9; III, 50; IV, 10, 44; VII, 38; VIII, 8, 13, 26. - Na VA, Apolônio valoriza os costumes gregos, especialmente áticos, como em II, 40. Outra passagem de valorização dos costumes gregos, mesmo fora do território da Hélade, está na descrição de Gades, na Hispânia: V, 4. Os dirigentes de - Apolônio diz que irá invocar os deuses em Selêucia nome de Selêucia. (provavelmente - No final da carta Apolônio diz ter recebido trata-se de dois enviados de Selêucia, Hieronimo e Zeno, Selêucia na porém não diz o motivo do envio destes dois Antioquia) homens ao seu encontro. - Apolônio trata sobre Selêucia com respeito e a menciona como se fosse também sua terra natal. - Essa carta não está na VA. - Apolônio visita Selêucia na VA, III, 58. - Em nenhuma passagem da VA aparece Apolônio mencionando Selêucia como sua “terraΝ natal”,Ν nemΝ TianaΝ apareceΝ dessaΝ formaέΝ Filóstrato menciona sua ida a Tiana apenas na ocasião da morte do pai, em: I, 13. Os dirigentes de - Apolônio trata do falecimento de um amigo, Selêucia que a carta indica ser de Selêucia, e sua preocupação em educar o filho do amigo. - Apolônio adverte os destinatários a ajudarem a cuidar dos negócios do amigo falecido. - Essa carta não está na VA. 349 14 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates 15 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates 16 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates 17 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates 18 Apolônio de Tiana O filósofo Eufrates 19 Apolônio de Tiana O sofista Escopeliano - Na VA não vemos Apolônio preocupado com seu círculo de amizades desta maneira. - Apolônio diz que as pessoas lhe perguntam porquê ele não tem convites para ir até a Itália ou, se teve, porque nunca foi como todas as pessoas. Ele responde que não sabe a razão, mas que só iria se convidado. - Essa carta parece um ataque sutil ao inimigo Eufrates que, pelo que a carta nos leva a compreender, vai à Itália sem ter recebido convites. - Essa carta não está na VA. - A VA mostra Apolônio na Península Itálica em tais livros: IV, VII, VIII. - Sobre a impossibilidade de se aprender a ser virtuoso, de acordo com o ensinamento de Platão. - Essa carta não está na VA. - Como já mencionamos na Carta 7: Nas conversas e discursos de Apolônio o tema da virtude estava sempre presente na VA. Passagens sobre o tema em: I, 28; III, 24; IV, 31; VI, 20-21, 31, entre outras. - Sobre os filósofos pitagóricos serem chamados de magos. - Sobre quem são os magos - Há uma defesa do uso do termo mago. - Essa carta não está na VA. - Novamente, sobre o emprego do termo mago - Aqui Apolônio emprega o termo mago como feiticeiro, praticante de magia, mostrando que o mesmo termo, usado pelos persas para definir homens piedosos, é usado também para definir o praticante de magia. - Essa carta não está na VA. - Na VA (I, 2), Filóstrato cita os sábios persas como magos, mas defende que os feitos de seu biografado não são arte mágica, são feitos de um homem sobrenatural e divino. No entanto, ao mencionar a magia como algo negativo, Filóstrato usa o temo goeteia (VA, IV, 18; VII, 39). - Sobre a irracionalidade dos homens. - Essa carta não está na VA. - O tema não aparece na VA. - Sobre os estilos de discurso - Essa carta não está na VA. - Escopeliano aparece na VA em I, 23, 3. - O sofista Escopeliano é um dos biografados da 350 VS (I, 515). 20 Apolônio de Tiana 21 Apolônio de Tiana 22 Apolônio de Tiana 23 Apolônio de Tiana 24 Apolônio de Tiana 25 Apolônio de Tiana 26 Apolônio de Tiana O imperador Domiciano - Conselhos a Domiciano sobre o poder e a relação disso com a capacidade de prever os acontecimentos. - Essa carta não está na VA. - A relação de Apolônio com Domiciano é mostrada na VA de forma bem tensa, é Domiciano que o acusa de praticante de magia, VII, 39. O imperador - Apolônio aconselha Domiciano sobre os Domiciano romanos evitarem governar os bárbaros. - Essa carta não está na VA. - Na VA, Apolônio diz para o imperador Domiciano que os bárbaros não devem ser levados a sério (VIII, 7-8), mas não em forma de carta. Lesbonax - Conselhos de Apolônio sobre a pobreza. (desconhecido) - Essa carta não está na VA. - Filóstrato trata dos votos de Apolônio de pobreza em VA, VIII, 3. Críton - Sobre a arte da medicina. (importante - Essa carta não está na VA. médico do - Nessa carta Apolônio não trata sobre suas período dos curas, apenas fala sobre a arte da medicina, mas imperadores uma das atividades de Apolônio na VA como Domiciano e homem divino é curar enfermidades, como em: Trajano) IV, 4. Para os juízes - Apolônio trata da solicitação destes juízes de de Helenes sua presença nos jogos olímpicos, uma vez que (provável liga ele recebeu emissários solicitando sua presença. ou confederação - Diz que sua luta maior é pela virtude. de cidades do - Essa carta não está na VA. Peloponeso) - Apolônio não é solicitado para jogos olímpicos na VA, ele é solicitado para outras ocasiões, como em IV, 27, que enviados lacedemônios solicitam uma conversa com ele, cujo tema, no entanto, não é mencionado. - Passagens sobre o tema da virtude: I, 28; III, 24; IV, 31; VI, 20-21, 31, entre outras. Os peloponesios - Sobre os Jogos Olímpicos (não se sabe ao - Essa carta não está na VA. certo a quem - Não há referência a esse assunto na VA. essa expressão se refere) Um sacerdote - Adverte o destinatário contra a prática de de Olímpia sacrifícios aos deuses. Para Apolônio a busca da sabedoria é a melhor forma de agradar os 351 27 Apolônio de Tiana 28 Apolônio de Tiana 29 Apolônio de Tiana 30 Apolônio de Tiana 31 Apolônio de Tiana 32 Apolônio de Tiana 33 Apolônio de Tiana 34 Apolônio de Tiana deuses. - Essa carta não está na VA. - Em várias passagens da VA Apolônio é mostrado sendo contra o sacrifício de sangue, como em: I, 10, 31, etc. Os sacerdotes - Novamente adverte os destinatários contra a de Delfos prática de sacrifícios de sangue aos deuses. - Essa carta não está na VA. Um rei dos - Sobre a busca de liberdade dos scítios contra scítios (termo os romanos. Apolônio usa uma metáfora com geral usado para um rei desse povo, dizendo que se ele fosse do definir povos do tempo de confronto de poderes com os romanos, norte do Mar teria sido amigo dos romanos. Negro) - Apolônio aconselha o rei, metaforicamente, a se tornar um filósofo, pois assim será livre. - Essa carta não está na VA, mas a importância dos governantes saberem filosofia pode ser encontrada em: II, 26. Um legislador - Sobre como os festivais podem ser nocivos para a saúde, pois fomentam a gula. - Adverte o destinatário contra a prática de sacrifícios aos deuses. Para Apolônio a busca da sabedoria é a melhor forma de agradar os deuses. - Essa carta não está na VA. - Não há esta advertência na VA. Os questores - Aconselha os questores sobre a importância de romanos sua função ser bem desenvolvida para o bem das cidades. - Essa carta não está na VA. - Há na VA conselhos a administradores romanos, mas não aos questores. Os procuradores - Usa uma metáfora para aconselhar sobre a da Ásia – tipo melhor forma de administração de funcionários - Essa carta não está na VA. romanos) Os escribas de - Aconselha sobre a importância de uma cidade Éfeso (cidade ser rica em leis e em sabedoria, e não em da Ásia) monumentos e arquitetura. - Essa carta não está na VA. - Na VA, 5, 36, Apolônio mostra a Vespasiano um princípio grego de governo, que um homem não deve governar acima das leis. Os milesianos - Conselhos sobre comportamento. - Essa carta não está na VA. - Nenhum conselho como esse ou menção a esse nome aparecem na VA. Os sábios do - Não se sabe ao certo qual museu seria esse, Museu havia vários no período (santuários das Musas), 352 35 Apolônio de Tiana Seu irmão Hestiaeo 36 Apolônio de Tiana Basso, o coríntio (aliado de Eufrates) 37 Apolônio de Tiana 38 Apolônio de Tiana Basso, o coríntio (aliado de Eufrates) Habitantes de Sardes 39 Apolônio de Tiana Habitantes de Sardes 40 Apolônio de Tiana Habitantes de Sardes 41 Apolônio de Tiana Habitantes de Sardes 42 Apolônio de Tiana Os platônicos mas o mais famoso era o de Alexandria. - Sobre as viagens de Apolônio e a razão pela qual parou de falar em público por meio de conferênciasμΝ “tornou-se bárbaro, não por se ausentarΝdaΝύrécia,ΝmasΝporΝpermanecerΝnelaέ” - O fato de Apolônio ter parado de falar em público aparece também na Carta X e na VA (I, 14). - Crítica aos costumes gregos de sua época, por não respeitarem as tradições. Na VA esta crítica também aparece em IV, 16, 24. - Essa carta não está na VA. - Sobre sua negação à riqueza e a importância da virtude. - Esses temas aparecem em outras cartas e na VA. A pobreza aparece em passagens como VIII, 3. A valorização da virtude em: I, 28; III, 24; IV, 31; VI, 20-21, 31, entre outras. - Essa carta não está na VA. - A menção a um de seus irmãos, que pode ser esse ou outro, está em: VA, I, 13. - Apolônio afronta Basso, que encomendou seu assassinato por um homem chamado Praxiteles. - Essa carta não está na VA. - Nenhuma passagem da VA menciona que alguém quis um dia matar Apolônio. - Apolônio diz que Basso matou o próprio pai. - Essa carta não está na VA. - Basso não é mencionado na VA. - Conselhos em relação a conflitos em Sardes. - Essa carta não está na VA. - Não há menção a estes conselhos na VA. - Crítica a nomes de clubes de Sardes. - Essa carta não está na VA. - Não há menção a esta crítica na VA. - Continuação da crítica aos nomes de clubes de Sardes. - Essa carta não está na VA. - Não há menção a esta crítica na VA. - Continuação da crítica, mas agora alertando sobre o problema dos servos não serem fiéis em relação aos destinatários. - Essa carta não está na VA. - Não há menção a esta crítica na VA. - Sobre a renúncia de Apolônio em receber dinheiro por seus conhecimentos filosóficos. - Essa carta não está na VA. - O tema da renúncia aos bens materiais, ligada à prática da filosofia, aparece na VA em: VIII, 3. 353 42a3 Apolônio de Tiana Os éforos espartanos 42b Apolônio de Tiana O filósofo estoico Musônio 42c Musônio Apolônio 42d Apolônio de Tiana 42e Musônio O filósofo estoico Musônio Apolônio de Tiana 42f Apolônio de Tiana Apolônio de Tiana Apolônio de Tiana Apolônio de Tiana 42g 42h 43 3 O imperador Vespasiano O imperador Vespasiano O imperador Vespasiano Os que se acham sábios - Conselhos sobre erros. - Essa carta está na VA, IV, 27. - Na VA compreendemos que a carta é remetida após Apolônio encontrar com enviados espartanos para uma entrevista e os achar muito efeminados, apenas pela carta, fora de seu contexto na VA, não podemos compreender o que leva Apolônio a escrever tais conselhos aos éforos. - Oferecimento de ajuda de Apolônio ao amigo Musônio. - Essa carta está na VA, IV, 46. - Pela VA e pelo contexto que está carta está inserida na obra, percebemos que a ajuda referese à situação de prisão de Musônio pelo imperador Nero. - Musônio recusa a ajuda de Apolônio, pois diz que irá provar sua inocência sendo seu próprio libertador. - Essa carta está na VA, IV, 46. - Continuação da oferta de ajuda de Apolônio para o amigo Musônio. - Essa carta está na VA, IV, 46. - Nova recusa de Musônio para a ajuda de Apolônio. - Essa carta está na VA, IV, 46. - Defesa da liberdade dos gregos. - Essa carta está na VA, V, 41. - Defesa da liberdade dos gregos. - Essa carta está na VA, V, 41. - Defesa da liberdade dos gregos. - Essa carta está na VA, V, 41. - Adverte os homens sábios para saberem reconhecer alguém que seja de fatos seu aluno. - Essa carta não está na VA. - Assim como a dieta de Apolônio é mostrada na VA (I, 8), nessa carta ele alerta que seus alunos não comam carne e nem matem animais. As cartas cuja numeração aparece sublinhada e marcada em negrito são as cartas que estão na VA. Essas cartas não estão na versão de Kayser. 354 44.1 Apolônio de Tiana Seu irmão Hestiaeo 44.2 Apolônio de Tiana Seu irmão Hestiaeo 44.3 Apolônio de Tiana Seu irmão Hestiaeo 45 Apolônio de Tiana Seu irmão Hestiaeo 46 Apolônio de Tiana Seu amigo Gordio - Apolônio pergunta ao irmão porque sua própria cidade não o reconhece, quando a maior parte da humanidade já o reconheceu como mais próximo dos deuses. - Apolônio se reconhece como superior em princípios e caráter. - Essa carta não está na VA. - Apolônio sendo reconhecido como homem divino está em várias passagens da VA, tais como: II, 29, 40; V, 24; VII, 38; VIII, 13. - Na biografia não há preocupações de Apolônio com sua cidade natal, Tiana, nem com seus irmãos. - Apolônio se reconhece como honrado por considerar toda terra como sua cidade ancestral. - Essa carta não está na VA. - Na VA percebemos que Apolônio não vê o mundo de uma perspectiva local, mas global, como em III, 34-5. Essa carta menciona o cosmopolitanismo de Apolônio, embora seja para seu irmão, mostrando seus vínculos familiares. A VA não mostra os vínculos familiares de Apolônio, apenas seu forte cosmopolitanismo em toda obra. - Sobre a importância de ter ligações com sua terra natal. - Essa carta não está na VA. - Há menções a Apolônio como um homem de Tiana em toda VA. No entanto, suas ligações com sua terra natal e com os habitantes de Tiana não são mencionadas. - Diz que irá retornar para Tiana para reencontrar seus irmãos e amigos no final da primavera. - Pela carta podemos compreender que Apolônio está sendo acusado de ter desprezado seus irmãos e amigos pelos próprios. Apolônio diz que acredita que ele fez isso por dinheiro. - Essa carta não está na VA. - Na VA Apolônio não mantém contatos com irmãos e amigos de Tiana. Ele apenas vai para Tiana na ocasião da morte do pai (I, 13) e no final da obra (VIII, 31) ele aparece para um jovem em Tiana quando este duvidava da imortalidade da alma. - Na carta temos indicação de que o destinatário era amigo de Apolônio durante a juventude. - Adverte o antigo amigo por cometer injustiças contra seu irmão Hestiaeo. - Essa carta não está na VA. 355 47 Apolônio de Tiana A Boulé de Tiana e o povo de Tiana 48.1 Apolônio de Tiana Diotimo, antigo amigo de Apolônio 48.2 Apolônio de Tiana Diotimo, antigo amigo de Apolônio 48.3 Apolônio de Tiana Diotimo, antigo amigo de Apolônio 49 Apolônio de Tiana Ferociano, parente de Apolônio 50 Apolônio de Tiana O filósofo estoico Eufrates - Apolônio não aparece em contato com concidadãos de Tiana na VA. - Apolônio diz que irá voltar para Tiana, atendendo ao pedido de seus concidadãos. Menciona que em todas suas viagens buscou trazer fama e honra a sua cidade natal. - Essa carta não está na VA. - Este tema não está na VA. - Apolônio nessa carta mostra que troca favores com seus concidadãos. - Podemos compreender, claramente, que Diotimo é um concidadão de Apolônio, da cidade de Tiana. - Essa carta não está na VA. - Novamente podemos perceber Apolônio em contato com seus concidadãos, antigos amigos, de Tiana, o que não aparece na VA. - Apolônio pede que o antigo amigo não se irrite se souber de histórias contraditórias a seu respeito, pois isso é comum com homens conhecidos, como foi com Pitágoras, Orfeu, Platão e Sócrates. - Essa carta não está na VA. - Novamente vemos Apolônio em contato com seus concidadãos, antigos amigos de Tiana, o que não aparece na VA. - Apolônio continua sua discussão sobre aceitar a versão verdadeira do que dizem sobre ele. - Diz que os deuses o consideram um homem divino. - Essa carta não está na VA. - Novamente vemos Apolônio em contato com seus concidadãos, antigos amigos de Tiana, o que não aparece na VA. - Resposta para uma carta que recebeu de um parente, o que lhe causou felicidade, uma vez que isso mostra a lembrança do parentesco entre ambos. Diz que está convencido da ansiedade de Ferociano para encontrá-lo e que irá ao encontro. - Essa carta não está na VA. - Novamente vemos Apolônio em contato com seus concidadãos, antigos amigos e parentes de Tiana, o que não aparece na VA. - Afronta a Eufrates em relação à diminuição de seu valor como filósofo. - Essa carta não está na VA, mas Filóstrato menciona que as acusações de Apolônio a Eufrates podem ser conhecidas por meio das 356 51 Apolônio de Tiana 52 53 Apolônio de Tiana Cláudio 54 Apolônio 55.1 Apolônio 55.2 Apolônio cartas de Apolônio (VA, V, 39). O filósofo - Crítica a Eufrates por ter recebido dinheiro estoico Eufrates várias vezes do imperador. - Essa carta não está na VA. - Apolônio recusa dinheiro do imperador na VA em V, 38. Apolônio crítica esta prática de Eufrates em V, 38. Ele é elogiado por Vespasiano por não dar valor ao dinheiro em VIII, 7.3. O filósofo - Crítica aos valores de Eufrates estoico Eufrates - Esta carta não está na VA. A Boulé de - Cláudio; um cidadão de alguma parte da Tiana Grécia, que Jones não acredita ser o imperador Cláudio (JONES, 2006, p. 05); envia uma carta a Boulé de Tiana para agradecer a Apolônio, cidadão dessa cidade, por ter visitado a Grécia e melhorado sua juventude. - Esta carta não está na VA. - Nesta carta também vemos a ligação de Apolônio com sua cidade natal, o que não aparece na VA. Os procuradores - Apolônio chama a atenção de administradores romanos de Roma para governarem as pessoas, não apenas cuidarem da supervisão de portos, edifícios, cercas e passarelas. - Essa carta não está na VA. - Carta interessante para vermos a aceitação de Apolônio de ser governado por Roma, o que também acontece na apresentação da relação de Apolônio com o poder romano na VA, como em VIII, 7.7. Seu irmão (sem - Consolo ao irmão que perdeu a mulher. nome - Essa carta não está na VA. mencionado) - Não há nenhum relato deste tipo na VA. O Apolônio que nos é apresentado na VA não se mostra preocupado nem com sua família, nem com Tiana. Seu irmão (sem - Apolônio mostra-se preocupado em relação à nome continuação de sua família. mencionado) - Apolônio tinha mais dois irmãos - Apolônio mostra-se preocupado com Tiana, sua cidade ancestral. - Essa carta não está na VA. - Não há nenhum relato deste tipo na VA. O Apolônio que nos é apresentado na VA não tem preocupações nem com sua família, nem com Tiana. 357 56 Apolônio O povo de Sardes 57 Apolônio Autores instruídos 58.1 Apolônio Valério 58.2 Apolônio Valério 58.3 Apolônio Valério 58.4 Apolônio Valério 58.5 Apolônio Valério - Apolônio aconselha o povo de Sardes a se reconciliar. A carta nos leva a compreender que há um conflito interno na cidade e Apolônio, usando exemplos míticos, chama este povo à reconciliação. - Essa carta não está na VA. - Imagem de Apolônio intermediador de conflitos internos nas cidades está em várias passagens da VA, como em I, 15-16; IV, 33. - Por meio de linguagem metafórica, Apolônio aconselha os escritores a serem persuasivos. - Essa carta não está na VA. - A opinião de Apolônio sobre a importância do conhecimento dos escritores está em VA, IV, 30. - Provavelmente o destinatário era Valério Asiático Saturnino, cônsul e procônsul da Ásia em 108/109 ou Valério Festo, cônsul em 71 e 85 (JONES, 2006, p. 51). Pela possível datação da vida de Apolônio, analisada a partir de dados da VA e da documentação material, possivelmente, se o destinatário for Valério Asiático Saturnino, ele não era cônsul na época de troca das cartas. - Discussão filosófica sobre a morte. - Essa carta não está na VA. - A carta mostra a relação de Apolônio e um administrador de alta posição nas estruturas político-administrativas romanas, o que também pode ser visto em diversas passagens da VA, como em: I, 15 (relação com o governador da Panfília), IV, 40 (relação com um cônsul romano), V, 10 (relação com o governador da Bética), VIII, 8 (relação com possíveis futuros imperadores romanos), VIII, 23 (relação com o governador da Grécia) - O tema aqui não é um conselho político, mas uma discussão sobre um tema filosófico. - Continuação da discussão filosófica. - Essa carta não está na VA. - Continuação da discussão filosófica. - Essa carta não está na VA. - Continuação da discussão filosófica. - Nessa carta, Apolônio pede que o amigo continue governando o povo que lhe foi confiado e mostra, em nossa leitura, sua capacidade de aconselhar governantes de Roma. - Essa carta não está na VA. - Continuação da discussão filosófica. - Essa carta não está na VA. 358 58.6 Apolônio Valério 58.7 Apolônio Valério 59 Garmo, rei babilônico Neogyndes, rei indiano 60 Apolônio O filósofo estoico Eufrates 61 Apolônio Lesbonax 62.1 Os Lacedemônios Apolônio 62.2 Os Lacedemônios Apolônio - Continuação da discussão filosófica. - Essa carta não está na VA. - Continuação da discussão filosófica. - Essa carta não está na VA. - Essa carta é transmitida junto da coleção de Apolônio, embora não mencione seu nome - Essa carta não está na VA. - Os dois reis não são conhecidos. Há menção apenas a um rei de nome Garmo em uma obra de Jâmblico (JONES, 2006, p. 57). - Talvez essa carta esteja junto à tradição de cartas de Apolônio por sua temática semelhante ao papel que percebemos no Apolônio da VA: o de conselheiro de administradores das partes orientais de dentro e de fora do Império Romano, pois esta carta se refere às tentativas do rei indiano em negociar com os babilônicos, sendo rejeitado pelo rei babilônico, remetente da carta. - Apolônio conta para Eufrates que um homem chamado Praxiteles veio até sua porta para matá-lo. - O tema já apareceu na Carta 36. - Essa carta não está na VA. - Alguém odeia Apolônio a ponto de desejar matá-lo. Isso não aparece na VA. - Comentário sobre os conhecimentos do sábio Anarcase, que é considerado sábio por Apolônio por ser da região da Cítia. Porém, esta região não aparece na VA, mesmo diante das viagens de Apolônio em busca de terras de sábios. - Essa carta não está na VA. - Oferecimento de honras dos espartanos para Apolônio. - Essa carta não está na VA. - Oferecimento de honras dos espartanos para Apolônio. - Os lacedemônios concedem a cidadania espartana para Apolônio e o direito de ter terras e casas em Esparta. Também dizem que irão pintar o um retrato dele em bronze por sua excelência. - Essa carta não está na VA. 359 4 63 Apolônio Os éforos e os lacedemônios4 64 Apolônio Os éforos e os lacedemônios 65 Apolônio Os efésios, no santuário de Artêmis. 66 Apolônio Os efésios, no santuário de Artêmis. - Crítica a alguns costumes dos embaixadores espartanos que vão até Apolônio: não tinham barbas, depilavam pernas e coxas, usavam tecidos macios e muitos anéis finos, além de sapatos aos costumes jônicos. Crítica ao luxo dos embaixadores. - Essa carta está na VA, IV, 27. - Essa carta, que está na VA, mostra que Apolônio recebia embaixadas. O termo usado aqui é o mesmo usado para as embaixadas oficiais entre delegações de cidades, por exemplo, até os imperadores romanos (como em: VS, I, 482, 495, 508, 520, 521, 530, 531, 536, 571). Mas podemos considerar a busca por Apolônio como a busca de membros das cidades por um intermediador capaz de ajudá-las na resolução de seus problemas. - Diz que Esparta tantas vezes o chamou para ajudar em relação à sua legislação, enquanto Atenas não faz isso. - Essa carta não está na VA. - Na VA, Apolônio apenas é rejeitado pelo hierofante de Atenas ao não querer iniciá-lo, julgando-o um goes (VA, IV, 18). Apolônio rejeitado pelos governantes de Atenas não aparece na VA. - A carta aparenta ser uma crítica aos organizadores das festas sagradas em honra a Artêmis, por deixarem qualquer tipo de pessoa se abrigar no templo. - Essa carta não está na VA. - Não há esta crítica na VA (VI, 20), mas um costume do ritual da deusa Artêmis é comentado na VA nas conversas entre Apolônio e um sábio gimnosofista. Na VA Apolônio visita Éfeso (IV, 1-4), mas não há estadia dele no templo e nem pedido para se alojar ali, como mostra essa carta. - Apolônio pede abrigo no templo de Artêmis. - Apolônio se diz grego por natureza, mas não ateniense. - Essa carta não está na VA, mas a representação de Apolônio como um grego está presente em toda obra, porém na VA ele é identificado como um ático. Na tradição manuscrita temos a indicação: Aos éforos e lacedemônios. Na VA, de Filóstrato, o destinatário são apenas os éforos. Segundo Funari (2004, p. 30), os éforos eram espécie de prefeitos escolhidos em número de cinco pela Assembleia de Esparta (Gerúsia), permaneciam no cargo por um ano com poderes executivos na cidade. 360 5 67a5 Lúcio Pompeu Apolônio de Éfeso Lúcio Floro Mestrio, procônsul romano 68 Apolônio de Tiana Os milesianos 69 Apolônio Os tralianos 70 Apolônio O povo de Sais - Apolônio pede pelos direitos dos sacerdotes dos cultos mistéricos de Deméter em Éfeso, tarefa que lhe foi pedida pelos sacerdotes. - Essa carta não está na VA. - Apolônio não aparece na VA como intermediador de direitos de sacerdotes junto a uma autoridade romana. - Resposta ao povo de Mileto que o acusou de ser responsável por um terremoto que abalou a cidade e que foi profetizado por Apolônio antes de acontecer. - Essa carta não está na VA, mas o terremoto é citado em VA, IV, 6. - Elogios ao povo de Trales (cidade da Ásia Menor). - Essa carta não está na VA. - Trales não é mencionada na VA. - Nessa carta há uma crítica aos povos com os quais os tralianos têm ligações, essa crítica, embora não muito clara, parece ser aos romanos. Se esta citação fizer mesmo referência aos romanos, os tralianos são citados como superiores aos romanos, isso não aparece na VA. - Crítica de Apolônio aos costumes atuais da cidade de Atenas - A carta é dirigida ao povo de Sais (antiga cidade no delta do rio Nilo) por estes serem descendentes dos atenienses, segundo informações da epístola. - Essa carta e nem esta crítica não estão na VA. - Outras críticas aos costumes dos atenienses podem ser vistas em VA, IV, 19, em relação aos sacrifícios religiosos e VA, IV, 22, em relação a espetáculos de gladiadores, envolvendo mortes humana. - Em VA, IV, 22, há a mesma citação dessa carta sobre a deusa Atena ter abandonado Atenas e Filóstrato diz que esse comentário, e outros, Apolônio deixou em uma carta que provavelmente é essa. - No entanto, de maneira muito diferente da VA, nessa carta Apolônio tece duras críticas à Atenas, que não aparecem na VA (IV, 22). Essa carta é classificada como 67a, por Jones, pois foi incluída à tradição manuscrita. Trata-se de uma carta preservada em uma inscrição de Éfeso. A identificação do Apolônio mencionado na inscrição com Apolônio de Tiana é conjectural. No caso desta hipótese ser realidade, Apolônio de Tiana recebeu a cidadania de Éfeso, como mostra a denominação do remetente (JONES, 2006, p. 63). 361 71 Apolônio Os jônios 72 Apolônio Seu irmão Hestiaeo 73 Apolônio Seu irmão Hestiaeo 74 Apolônio Os filósofos estoicos 75 Apolônio Pessoas em Sardes - Crítica de Apolônio aos costumes dos jônios de tomarem nomes romanos, elogio à cultura helênica desse povo e crítica a isso estar se perdendo em favor da cultura romana. - Essa carta não está na VA, porém o mesmo assunto é apresentado em VA, IV, 5. Filóstrato escreve que Apolônio censura os costumes dos jônios em utilizarem nomes latinos em forma de carta para a Assembleia de Esmirna. De fato essa carta pode ser anterior à escrita da VA e o tema incorporado por Filóstrato na obra ou a carta pode ter sido criada após a escrita da VA, utilizando da criação filostratiana sobre a censura de Apolônio. Acreditamos que esta carta é anterior a VA, pois Filóstrato não censura tais práticas em outras obras do seu corpus, ele próprio possuía um prenome latino, Flávio. - Apolônio crítica o irmão por adotar um nome romano. - Como a carta 71, essa carta não está na VA, porém a crítica à adoção dos nomes romanos é apresentada em VA, IV, 5. - Essa carta não está na VA. Novamente, temos Apolônio se correspondendo com familiares, o que jamais aparece na VA. - Apolônio diz estar longe de sua cidade natal, mas se mostra preocupado com relação ao futuro político da mesma. - Esta carta não está na VA. Novamente, temos Apolônio se correspondendo com familiares e preocupado com assuntos de sua cidade natal, o que não aparece na VA. - Crítica a Basso, aliado de Eufrates, o inimigo de Apolônio. A crítica diz respeito às questões de sexualidade de Basso - Essa carta não está na VA. - Basso não aparece na VA. - Aconselha certas pessoas de Sardes (sem nomes específicos) a não entrarem em uma guerra. - Essa carta não está na VA, mas por meio dela podemos perceber o papel de Apolônio já nas tradições manuscritas como um intermediador, capaz de falar para pessoas de uma cidade sobre questões de guerra e paz. 362 6 75a6 Apolônio Pessoas em Sardes 76 Apolônio Pessoas em Sardes 77 Apolônio 77a Apolônio 77b O rei indiano Fraotes 77c Apolônio 77d Apolônio - Críticas aos costumes religiosos das pessoas em Sardes. - Essa carta e seu conteúdo não estão na VA. - Apolônio fala de seu desejo de visitar Sardes e torná-la única em relação ao comportamento, leis e religião. - Essa carta não está na VA. - Apolônio diz ser convidado para visitar várias cidades, como em várias partes da VA. - A ideia de Apolônio reformador de cidades helênicas está em várias partes da VA, como em: I, 16 e em várias passagens do Livro IV. - Interessante perceber que Sardes, embora mencionada nas cartas como local que Apolônio desejava visitar, não é sequer citada na VA. Seus alunos - Apolônio diz que nunca se intimidou com Praxiteles, que desejou matá-lo, nem com Lísias. - Essa carta não está na VA. - Novamente ataca o filósofo estoico Eufrates. - Esse Praxiteles, nem Lísias não são mencionados na VA. Os - Apolônio tenta, por meio dessa carta, comerciantes de convencer os comerciantes de trigo da cidade a milho não se preocuparem apenas com a exportação do cereal, já que a população da cidade passava fome por isso. - Papel de Apolônio como negociador aparece também aqui. - Essa carta está na VA, destinada aos comerciantes de trigo de Aspendo (Província da Panfília), em VA, I, 15. O sábio - Essa carta foi incluída na tradição de cartas de brâmane Apolônio por estar na VA (II, 41) e fazer indiano Iarcas referência a Apolônio, mas nem o remetente, nem o destinatário são Apolônio. - O rei Fraotes apresenta Apolônio ao sábio brâmane em tons elogiosos. O sábio - Apolônio diz que aprendeu muito com Iarcas e brâmane levará esse conhecimento para os gregos. indiano Iarcas - Essa carta foi incluída na tradição de cartas de Apolônio por estar na VA (III, 51). Tito, nesta - Elogio às atitudes de Tito em relação ao poder. ocasião general - Essa carta foi incluída na tradição de cartas de romano, futuro Apolônio por estar na VA (VI, 29). Na tradução de Conybeare (1921, vol. II), a Carta 75a não é mencionada, apenas a 75. Jones (2006, vol. III) agrupa a Carta 75a à coleção de cartas de Apolônio, encontrada na epigrafia de um altar de culto de Deméter em Sardes em 1984. A identificação do autor da carta com Apolônio é conjectural e baseada na semelhança de conteúdo com a Carta 75 da coleção de Apolônio de Tiana. 363 imperador. Demétrio, filósofo cínico 77e Apolônio 78 Apolônio Sábios brâmanes indianos 79 Apolônio Glauco 80 Apolônio Herodiano 81 Apolônio Numenio 82 Apolônio O filósofo estoico Eufrates 83 Apolônio Delio 84 Apolônio Idomeneu 85 Apolônio Seus alunos 86 Apolônio Macedo - Diz a Demétrio que o recomendou como professor de Tito, para ensinar a este, já imperador na ocasião de envio da carta, sobre a realeza. - Essa carta foi incluída na tradição de cartas de Apolônio por estar na VA (VI, 33). - Sobre conhecimento adquirido com os sábios brâmanes. - Essa carta não está na VA, mas a estadia de Apolônio junto aos brâmanes está narrada no Livro III. - Conselho sobre o uso do manto filosófico - Essa carta não está na VA, mas em algumas passagens Apolônio menciona seu uso do manto filosófico, como em II, 40; VII 15. - Conselho moral a Herodiano, cuja identificação não é conhecida. - Essa carta não está na VA, trata-se de uma carta curta, de tema também não comentado na obra de Filóstrato. - Conselho moral a Numenio, cuja identificação não é conhecida. - Esta carta não está na VA, trata-se de uma carta curta de tema também não comentado na obra. - Conselho moral a Eufrates. - Esta carta não está na VA, trata-se de uma carta curta de tema também não comentado na obra. - Conselho moral a Delio, cuja identificação não é conhecida. - Esta carta não está na VA, trata-se de uma carta curta de tema também não comentado na obra. - Conselho moral a Idomeneu, cuja identificação não é conhecida. - Essa carta não está na VA, mas seu tema, o valor da pobreza, é tratado em diversas passagens, como em VIII, 3. - Recomendação geral aos alunos, Apolônio trata rapidamente sobre aspectos de sua dieta. - Essa carta não está na VA, mas aspectos gerais sobre a dieta de Apolônio são apresentados em diversas passagens da biografia, tais como: I, 8, 21, 35; II, 35; IV 42. - Brevíssimo comentário sobre a loucura. - Essa carta não está na VA, trata-se de um a carta curta de tema também não comentado na obra. 364 87 Apolônio Aristócles 88 Apolônio Demócrates 89 Apolônio Sátiro 90 Apolônio Dião 91 Apolônio Danao 92 Apolônio Seus alunos 93 Apolônio Seus alunos 94 Apolônio O filósofo estoico Eufrates 95 Apolônio Seus irmãos - Brevíssimo comentário sobre a raiva. - Essa carta não está na VA, trata-se de um a carta curta de tema também não comentado na obra. - Brevíssimo comentário sobre a irritabilidade. - Essa carta não está na VA, trata-se de um a carta curta de tema também não comentado na obra. - Brevíssimo comentário sobre a autocrítica. - Essa carta não está na VA, trata-se de um a carta curta de tema também não comentado na obra. - Brevíssimo comentário sobre a dor existencial. - Essa carta não está na VA, trata-se de um a carta curta de tema também não comentado na obra. - Brevíssimo comentário moral. - Essa carta não está na VA, trata-se de um a carta curta de tema também não comentado na obra. - Breve comentário advertindo seus alunos a preferirem o silêncio a falar sobre o que não sabem. - Essa carta não está na VA, trata-se de um a carta curta. - A importância do silêncio para Apolônio aparece na VA em I, 14. - Novamente, breve comentário sobre o valor do silêncio. - Essa carta não está na VA, trata-se de um a carta curta. - A importância do silêncio para Apolônio aparece na VA em I, 14. - Breve comentário sobre a importância de usar poucas palavras. - Essa carta não está na VA, trata-se de um a carta curta. - A importância do silêncio para Apolônio aparece na VA em I, 14. - Brevíssimo comentário moral sobre o valor de ser bom. - Essa carta não está na VA. Mas o valor de ser bom aparece na VA em passagens como VIII, 7. Sobre Apolônio como homem bom VA, I, 28; III, 25. -Também não aparece na VA, nenhuma ligação de Apolônio com seus irmãos ou outros familiares. 365 96 Apolônio Dionísio 97 Apolônio Lyco 98 Apolônio Corneliano 99 Apolônio Numenio 100 Apolônio Theaeteto - Brevíssimo comentário moral sobre o valor da tranquilidade. - Essa carta não está na VA, assim como seu tema. - Sobre a questão da pobreza não ser algo vergonhoso, apenas o motivo que pode ser vergonhoso. - Essa carta não está na VA. Sobre a pobreza e sua valorização por Apolônio temos diversas passagens da biografia, tais como: VIII, 3 - Brevíssimo comentário moral sobre a brevidade da vida. - Essa carta não está na VA, assim como seu tema. - Brevíssimo comentário moral sobre a amizade. - Essa carta não está na VA, assim como seu tema. - Brevíssimo comentário moral sobre a tristeza e seu conforto. - Essa carta não está na VA, assim como seu tema. 366 APÊNDICE 3 CATÁLOGO GEOGRÁFICO DA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA E SITUAÇÃO DAS LOCALIDAES APRESENTADAS EM RELAÇÃO AO IMPÉRIO ROMANO NA ÉPOCA DOS SEVEROS1 Local Localização e situação na VA em relação a Apolônio de Tiana:2 Tiana Livro I – local de nascimento Tarso Livro I – local de educação Egas Livro I – local de educação Tiana Livro I – local de nascimento Região da Panfília3 Livro I – local de estadia Aspendo Livro I – local de estadia Antioquia Livro I – local de estadia Região da Cilícia Livro I – local de estadia Antiga Ninos (Nínive ou Livro I – local de estadia Hierápolis)4 Zeugma Região da Armênia 1 Localização geográfica e situação em relação ao Império Romano na época dos Severos: Província da Capadócia Província da Cilícia Província da Cilícia Província da Capadócia Província da Panfília Província da Panfília Província da Síria Província da Cilícia Nínive: Mesopotâmia/Região da Assíria – região subjugada ao Império Parto5 e posteriormente, durante o período dos Severos, aos persas da dinastia Sassânida. Partos e persas eram inimigos dos romanos. Hierápolis: cidade da Província da Síria. Livro I – local de passagem Província da Síria. Livro I – local de passagem Essa região não era parte do Império Romano na época de Apolônio, nem na de Filóstrato, mas foi considerada reino cliente dos romanos desde a época de Augusto. Chegou a ser província romana com Trajano em 114, após isso foi invadida pelos partos, mas por pouco tempo. Foi Algumas cidades são mencionadas na VA precisamente. No entanto, algumas vezes, o autor menciona apenas o nome de região e/ou província do Império Romano. Nossa exposição segue a ordem que cada localidade é mencionada na obra conforme o ordenamento cronológico da vida e das viagens de Apolônio. 2 Estamos considerando locais de estadia de Apolônio tanto as localidades onde ele permanece por muito tempo, como as regiões por onde ele simplesmente passa, mas resolve alguma situação. Locais de passagens são os que estão apenas mencionados durante o trajeto do tianeu na VA, sem menção a nenhuma atividade realizada no local. 3 No caso da região da Panfília, Filóstrato menciona a mesma e depois uma cidade, Aspendo. Compreendemos, nesse último caso, que Filóstrato busca mostrar que Apolônio esteve em outras cidades além da mencionada em detalhes, mas ou não tem mais informações a mencionar ou seleciona o que quer mencionar. 4 Ver discussão de Jones (2001, 2005) sobre a problemática desse lugar não ser Nínive, na Assíria, mas Hierápolis, na Síria no subcapítulo 4.2. 5 Sobre as influências do Império Parto em Nínive sugerimos o site do arqueólogo Murray Eiland (University of Damascus). Disponível em: <http://www.parthia.com/nineveh/default.htm>. Acesso em: 09 jan. 2014. 367 Região de povos árabes Livro I – local de passagem (norte da Mesopotâmia)6 Ctesifonte8 (Mesopotâmia) Livro I – local de passagem Região da Císsia ou região Livro I – local de passagem dos cosseos Babilônia (Mesopotâmia) Livro I – local de estadia Região do Cáucaso e do Livro II Tauro9 passagem – local de Região do Monte Nisa Livro II passagem – local de Nisa Livro II – local de passagem Livro II – local de estadia Taxila (Índia) Região do Rio (Índia) Paraca (Índia) Cidade 6 dos Hifasis Livro III – local de passagem Livro III – local de passagem sábios Livro III – local de estadia região de ocupação e disputa de partos e romanos, que reivindicavam estabelecer na região um reino cliente. Província de Osroena (o norte da Mesopotâmia tornou-se província romana com a conquista de Septímio Severo).7 Uma das capitais, junto com Susa e Ecbátana, do Império Parto – subjugada aos persas da dinastia Sassânida. Foi também capital do Império Sassânida. Todas as duas regiões faziam parte do Império Parto – região subjugada aos persas da dinastia Sassânida. Império Parto – conquistada pelos persas da dinastia Sassânida. A região chegou a constituir parte do Império Helenístico e depois do Império Romano (região sudoeste). O sudeste da região foi parte do Império Parto e depois do Império Persa Sassânida. Região mitológica para os gregos. Embora seja território do Império parto, Filóstrato descreve a região como se já estivesse em contato com indianos (VA, II, 6). Possivelmente foi a primeira capital do Império Parto. Índia – região nunca anexada pelos romanos ao seu Império. Índia – região nunca anexada pelos romanos ao seu Império. Índia – região nunca anexada pelos romanos ao seu Império. Índia – região nunca anexada pelos A região da Arábia Petrea (parte da atual Arábia Saudita) foi anexada por Trajano (século II) e seguiu sendo província romana (Província da Arábia) na época dos Severos. No entanto, está região estaria muito fora do trajeto de Apolônio descrito na VA. Assim, quando o narrador diz que Apolônio passou pela terra dos árabes (VA, I, 21) está se referindo ao norte da Mesopotâmia que, segundo Jones (2001, p. 81) havia uma população predominantemente árabe. 7 O norte da Mesopotâmia foi conquistado pelo imperador Trajano em 115 e anexado como uma província romana em 116, mas nos anos posteriores a morte de Trajano, os romanos perderam esses territórios, que voltaram a fazer parte do Império Parto. O norte da Mesopotâmia, incluindo a região de Osroena, voltou, novamente, ao controle dos romanos com as conquistas do imperador Lúcio Vero (161-169), mas não foi organizado formalmente como província. Septímio Severo reorganizou Osroena como província em 198. 8 Grande cidade da Mesopotâmia de importância estratégica e palco de diversas guerras e invasões romanas. 9 Região que, conforme Filóstrato (VA, II, 2), limitava a Índia com a região dos medos/partos e se estende até o atual Golfo Pérsico, chamado, erroneamente, pelo sofista de Mar Vermelho. 368 brâmanes (não é mencionado o nome deste lugar) Caminho da Índia até o Livro III – local de Golfo Pérsico10 passagem Volta à Babilônia Livro III – local de estadia Volta à Antiga Ninos Livro III (Nínive ou Hierápolis) passagem – local Terras indianas e terras do Império Parto. Império Parto – região conquistada pelos persas da dinastia Sassânida. de Nínive: Mesopotâmia/Região da Assíria – região subjugada ao Império Parto e posteriormente aos persas da dinastia Sassânida. Partos e persas eram inimigos dos romanos. Hierápolis: cidade da Província da Síria. de Província da Panfília Livro III – local passagem Ilha de Chipre – cidade de Livro III – local de Pafos11 passagem Éfeso Livro IV – local de estadia Esmirna Livro IV – local de estadia Volta a Éfeso Livro IV – local de estadia Pérgamo Livro IV – local de estadia Ilíon Livro IV – local de estadia Selêucia Túmulo de Palamedes na Livro IV – local de estadia região da Eólia (parte próxima à ilha de Lesbos e a cidade de Metima nessa ilha) Ilha de Lesbos Livro IV – local de estadia Atenas Livro IV – local de estadia Região da Tessália Outras cidades gregas14 Corinto Olímpia Esparta 10 romanos ao seu Império. Livro IV – local de estadia Livro IV – local de estadia Livro IV – local de estadia Livro IV – local de estadia Livro IV – local de estadia Província de Chipre Província da Ásia Província da Ásia Província da Ásia Província da Ásia Lendária cidade de Troia, região da Província da Ásia Província da Ásia Província da Ásia Cidade livre em sinal de honra (civitates foedaratae).12 Não pertencia a nenhuma província. Província da Macedônia13 Província da Acaia Província da Acaia Província da Acaia Cidade livre por concessão unilateral de Roma, imune de impostos Novamente Filóstrato confunde o Golfo Pérsico com o Mar Vermelho (VA, III, 50), assim como faz em VA, II, 2 e III, 35. 11 Antigo centro de peregrinação do mundo greco-romano, pois segundo a mitologia clássica era onde tinha nascido a deusa Afrodite. 12 Porém, como indica Sartre (1994, p. 219), não devemos nos enganar sobre o valor da liberdade destas cidades gregas (em seus diferentes estatutos), pois elas nunca escaparam a vigilância do procônsul e às interferências imperiais. 13 Pertenceu, primeiramente, à Província da Acaia, mas passou a ser parte da Província da Macedônia em 67 d.C. (SARTRE, 1994, p. 212). 14 Filóstrato não cita nomes de cidades especificamente, apenas nomes de templos e santuários que Apolônio visita (VA, IV, 23-25). 369 Livro IV – local de passagem Cidonia (Ilha de Creta) Livro IV – local de passagem Cnosos (Ilha de Creta) Livro IV – local de estadia Gortina (Ilha de Creta) Livro IV – local de estadia Roma Livro IV – local de estadia Gades (chamada na VA de Livro V – local de estadia Gadeira) Líbia Livro V – local de passagem Etruria Livro V – local de passagem Malea Província da Cirenaica e Creta Província da Cirenaica e Creta Província da Cirenaica e Creta Capital do Império Romano Província da Hispânia Bética Província da África Pronconsular Península Itálica – não era uma província propriamente por seu status. de Província da Sicília Livro V – local passagem Siracusa (Ilha da Sicília) Livro V – local de estadia Mesina (Ilha da Sicília) Livro V – local de passagem Catana (Ilha da Sicília) Livro V – local de passagem Ilha e cidade de Lêucade Livro V – local de passagem Volta a Atenas Livro V – local de estadia Ilha de Quios Livro V – local de passagem Ilha de Rodes Livro V – local de estadia Alexandria Livro V – local de estadia Outras regiões do Egito Livro V – local de passagem Outras regiões do Egito, Livro VI – local de talvez cidade de Tebas passagem (Templo de Mêmnon) Região da Etiópia Livro VI – local de estadia Região costeira do Egito Livro VI – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Tarso Livro VI – local de estadia Região da Fenícia Livro VI – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Região da Cilícia Livro VI – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas Lilibeu (Ilha da Sicília) obrigatórios a Roma. Província da Acaia Província da Sicília Província da Sicília Província da Sicília Província da Acaia Cidade livre em sinal de honra. Província da Acaia Província da Ásia Província do Egito Província do Egito Província do Egito Região não anexada pelos romanos Província do Egito Província da Cilícia Província da Síria Província da Cilícia 370 Volta à região da Jônia15 Região de Acaia Antioquia Cnido Península Itálica16 Corinto Sicília Dicearquia Volta a Roma Volta a Dicearquia Siracusa Região da Sicília Tauromenio 15 não se relata nada sobre sua estadia neste local. Livro VI – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Livro VI – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Livro VI – local de estadia Livro VI – local de estadia Livro VI – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Livro VII – local de estadia Livro VII – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Livro VII – local de estadia Livro VII – local de estadia Livro VIII – local de estadia Livro VIII – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Livro VIII – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Livro VIII – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Província da Ásia Província da Acaia Província da Síria Província da Ásia Província da Itália Província da Acaia Província da Sicília Província da Itália Capital do Império Província da Itália Província da Sicília Província da Sicília Província da Sicília A única cidade que Filóstrato menciona nesta região como rota de Apolônio, neste momento, é Sardes (VA, VI, 37). 16 Filóstrato narra que Apolônio esteve em várias regiões (VA, IV, 35) e depois cita algumas cidades especificamente, Sardes e Antioquia. Organizamos essas regiões conforme a sequência mencionada das mesmas no texto e as cidades específicas conforme as regiões próximas a elas. 371 Olímpia Leubadéia/Beócia Grécia17 Atenas Região da Beócia Volta à Jônia desaparecimento19 17 Livro VIII – local de estadia Livro VIII – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Livro VIII – local de estadia Livro VIII – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, neste momento, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. Livro VIII – Na VA essa região é mencionada como destino de Apolônio, mas não se relata nada sobre sua estadia neste local. e Livro VIII – local de estadia Província da Acaia Província da Acaia Províncias de Épiro e da Acaia.18 Cidade livre em sinal de honra (civitates foedaratae). Não pertencia a nenhuma província. Província da Acaia Província da Ásia. Filóstrato diz que Apolônio permaneceu por mais dois anos na Grécia, não descrevendo mais nenhum lugar específico nesta região além dos já citados e classificados e de uma ida de Apolônio a Beócia a pedido do governador. 18 Compreendemos como Grécia na época do Principado Romano as Províncias de Épiro e Acaia. Segundo SartreΝ (1λλ4,Ν pέΝ β1β),Ν “asΝ duasΝ provínciasΝ gregasΝ estãoΝ majoritariamenteΝ formadasΝ porΝ cidades,Ν masΝ estasΝ dividem de forma desigual entre si e gozam de estatutosΝvariadosέ”ΝAlémΝdisso,ΝdevemosΝnosΝatentarΝparaΝaΝideiaΝ bem expressa por este mesmo historiador (1994, p. 211) de que na época imperial romana era difícil traçar limites claros entre o antigo mundo grego e a região dos Balcãs (Província da Macedônia), que desde muito tempo esteve em processo de assimilação de aspectos da cultura helênica. Também devemos considerar que para Filóstrato as cidades da Província da Ásia são gregas. 19 De acordo com Filóstrato (VA, VIII, 24), Apolônio permanece, nesse período, essencialmente em Esmirna e Éfeso, onde praticou filosofia. ANEXOS ANEXO 1 Mapa 1: Mapa das viagens de Apolônio de Tiana segundo a VA. Fonte: MEUNIER, M. Apollonius de Tyane ou le séjour d’un dieu parmi les hommes. Paris: Grasset, 1936. Obs.: O mapa não considera a passagem de Apolônio pela região da Armênia – acima da Mesopotâmia (I, 20), nem pela chamada na VA terra dos árabes – norte da Mesopotâmia (I, 21). 373 374 ANEXO 2 Figura 1: Imagem superior: O nascimento de Apolônio de Tiana na Capadócia (VA, I, 4-5). Imagem inferior: Apolônio de Tiana admirando os relevos do templo em Taxila, na Índia (VA, II, 20). Desenho de Johannes Stradanus. New York, Cooper-Hewitt Museum of Design, Smithsonian Instititution. Fonte: YSSELT, D.V.S. StradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δife ofΝApolloniusΝofΝTyana”, Master Drawings, n. 32, n. 04, 1994, p. 352. 375 ANEXO 3 Figura 2: Imagem superior: Apolônio encontra o mensageiro dos brâmanes (VA, II, 11-13). Imagem inferior: Apolônio discursa para a população de Éfeso sobre a praga (VA, IV, 10). Desenho de Johannes Stradanus. New York, Cooper-Hewitt Museum of Design, Smithsonian Instititution. Fonte: YSSELT, D.V.S. StradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δifeΝofΝApolloniusΝofΝTyana”, Master Drawings, vol. 32, n. 04, 1994, p. 352. 376 ANEXO 4 Figura 3: Imagem superior: Apolônio cura um jovem ateniense possuído (VA, IV, 20). Imagem inferior: Apolônio ressuscita uma garota morta em Roma (VA, IV, 45). Desenho de Johannes Stradanus. New York, Cooper-Hewitt Museum of Design, Smithsonian Instititution. Fonte: YSSELT, D.V.S. StradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δifeΝofΝApolloniusΝofΝTyana”, Master Drawings, vol. 32, n. 04, 1994, p. 353. 377 ANEXO 5 Figura 4: Imagem superior: Apolônio prevê o ano dos três imperadores (VA, V, 13). Imagem inferior: Apolônio prevê a absolvição do homem condenado à morte em Alexandria (VA, V, 24). Desenho de Johannes Stradanus. New York, Cooper-Hewitt Museum of Design, Smithsonian Instititution. Fonte: YSSELT, D.V.S. StradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δifeΝofΝApolloniusΝofΝTyana”, Master Drawings, vol. 32, n. 04, 1994, p. 353. 378 ANEXO 6 Figura 5: Imagem superior: Apolônio encontra os animais e os nativos da Etiópia (VA, VI, 24-26). Imagem inferior: Apolônio e o sátiro da Etiópia (VA, VI, 27). Desenho de Johannes Stradanus. New York, Cooper-Hewitt Museum of Design, Smithsonian Instititution. Fonte: YSSELT, D.V.S. StradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δifeΝofΝApolloniusΝofΝTyana”, Master Drawings, vol. 32, n. 04, 1994, p. 354. 379 ANEXO 7 Figura 6: Apolônio prevê a absolvição do homem condenado à morte em Alexandria (VA, V, 24). Desenho de Johannes Stradanus. London, Courtauld Institute Galleries, Witt Collection. Fonte: YSSELT, D.V.S. StradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δifeΝofΝApolloniusΝofΝTyana”, Master Drawings, vol. 32, n. 04, 1994, p. 355. 380 ANEXO 8 Figura 7: Apolônio encontra animais e nativos na Etiópia (VA, VI, 24-26). Desenho de Johannes Stradanus. Leiden University, Print Room. Fonte: YSSELT, D.V.S. StradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δifeΝofΝApolloniusΝofΝTyana”, Master Drawings, vol. 32, n. 04, 1994, p. 355. 381 ANEXO 9 Figura 8: Os animais e os nativos na Etiópia (VA, VI, 24-26). Desenho de Johannes Stradanus. London, Courtauld Institute Galleries, Witt Collection. Fonte: YSSELT, D.V.S. StradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δifeΝofΝApolloniusΝofΝTyana”, Master Drawings, vol. 32, n. 04, 1994, p. 356. 382 ANEXO 10 Figura 9: A perseguição do fantasma de um perverso sátiro na Etiópia (VA, VI, 27). Desenho de Johannes Stradanus. Amsterdam, Rijksprentenkabinet Fonte: YSSELT, D.V.S. StradanusΝDrawingsΝforΝtheΝ“δifeΝofΝApolloniusΝofΝTyana”, Master Drawings, vol. 32, n. 04, 1994, p. 357. 383 ANEXO 11 Mapa 2: Mapa do Antigo Mar Egeu, localizando a ilha de Lemnos, a ilha de Imbro e a cidade de Eritrai, na Jônia. Fonte: TALBERT, R. J. A. Atlas of Classical History. London/New York: Routledge, 1985, p. 31. Obs.: As marcações foram feitas por nós. 384 ANEXO 12 Esquema genealógico 1: Esquema genealógico da Família dos Severos com imagens de bustos. Fonte: Disponível em: <http://www.edgarlowen.com/SeveranDynasty2.jpg>. Acesso em: 24 set. 2013. Obs.: Os membros dos Severos que chegaram ao cargo imperial estão destacados nas imagens. 385 ANEXO 13 Esquema genealógico 2: Esquema genealógico da Família dos Severos com datas de nascimento e morte. Fonte: Disponível em: <http://www.edgarlowen.com/SeveranDynasty.png>. Acesso em: 24 set. 2013. Obs.: Os membros dos Severos que chegaram ao cargo imperial estão destacados em negrito e com a data de nascimento, início do governo imperial e morte. 386 ANEXO 14 Figura 10: Busto de mármore de um sofista, datado da época imperial romana. Acervo do Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, Itália. Fonte: Foto do acervo pessoal, tirada em 07 nov. 2012. 387 ANEXO 15 Figura 11: Busto de mármore do sofista Herodes, o ático, datado da época imperial romana. Acervo do Museu do Louvre, Paris. Fonte: Foto do acervo pessoal, tirada em 06 jan. 2013. 388 ANEXO 16 Figura 12: Busto de mármore de um filósofo, datado da época imperial romana. Acervo do Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, Itália. Fonte: Foto do acervo pessoal, tirada em 07 nov. 2012. 389 ANEXO 17 Figura 13: Busto de mármore, possivelmente, de Apolônio de Tiana, datado da época do imperador Adriano. Acervo do Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, Itália. Fonte: Disponível em: <http://www.usp.br/iac/ai10/056.JPG>. Acesso em: 11 jul. 2013. ANEXO 18 Mapa 3: As províncias romanas da África do Norte no final do século II d.C., localizando Leptis Magna, cidade de Septímio Severo, na província da África Proconsular. Fonte: MOKHTAR, G. (coord.) História geral da África. A África Antiga. Tradução de Carlos Henrique Davidoff. São Paulo: Ática/UNESCO, 1983, vol. 2, p. 474. Obs.: A marcação foi feita por nós. 390 391 ANEXO 19 Mapa 4: A Síria Romana, a Pártia Ocidental e a Armênia, localizando a cidade de Emesa, onde nasceu Júlia Domna, Hierápolis (Síria), Zeugma (Síria) e Nínive (Assíria). Fonte: TALBERT, R. J. A. Atlas of Classical History. London/New York: Routledge, 1985, p. 162. Obs.: As marcações foram feita por nós. 392 ANEXO 20 Figura 14: Júlia Domna em representação datada, aproximadamente, do ano 200. Acervo do Museu Palatino, Roma, Itália. Fonte: Foto do acervo pessoal, tirada em 04 nov. 2012. ANEXO 21 Mapa 5: O Império Romano e o Império Parto em 138 d.C. Fonte: McEVEDY, C. The Penguin Atlas of Ancient History. New York: Penguin Books, 1979, p. 81. Obs.: Mapa concebido por Colin McEvedy e desenhado por John Woodcock. 393 394 ANEXO 22 Mapa 6: As guerras romano-partas do período de Septímio Severo. Fonte: SCARRE, C. The Penguin Historical Atlas of Ancient Rome. New York: Penguin Books, 1995, p. 99. ANEXO 23 Mapa 7: O Império Romano em 230. Fonte: Disponível em: <http://sitemaker.umich.edu/mladjov/files/romana235ad.jpg>. Acesso em: 12 dez. 2013. 395 396 ANEXO 24 Mapa 8: Caracala no Oriente, 214-217. Fonte: SCARRE, C. The Penguin Historical Atlas of Ancient Rome. New York: Penguin Books, 1995, p. 98. ANEXO 25 Mapa 9: O Império Romano e o Império Persa sassânida em 230. Fonte: McEVEDY, C. The Penguin Atlas of Ancient History. New York: Penguin Books, 1979, p. 84. Obs.: Mapa concebido por Colin McEvedy e desenhado por John Woodcock. 397 ANEXO 26 Mapa 10: O Império Romano e os conflitos no Oriente. Fonte: CONSTABLE, N. Historical Atlas of Ancient Rome. New York: Checkmark Books, 2003, p. 144. 398 399 ANEXO 27 Mapa 11: Mapa da Índia Antiga, localizando a região indiana por onde Apolônio viaja na VA e a cidade de Taxila. Fonte: Disponível em: <http://www.mapsofindia.com/history/ancient-india.jpg>. Acesso em: 17 abr. 2012 Obs.: A marcação foi feita por nós. Na VA Apolônio passa por essa região marcada, mas não estabelece pouso em todas as cidades mencionadas no mapa, algumas das localidades mencionadas como locais de estadia de Apolônio nessa região não citadas neste mapa, apenas Taxila, ver Apêndice 3.