Transição Socialista

Sionismo e limpeza étnica

Neste momento de conflito entre palestinos e israelenses, a Transição Socialista se solidariza com o povo oprimido palestino, contra o enclave militar britânico-estadunidense estabelecido no Oriente Médio ao final da II Guerra Mundial.

Para melhor localizar nossos leitores a respeito dos problemas de fundo por trás do atual conflito entre israelenses e palestinos, publicamos abaixo um texto escrito por Rolando Astarita em 2021. O propósito inicial do texto de Astarita é a defesa do deputado argentino Juan C. Giordano, que criticou no parlamento o sionismo e o Estado de Israel. Baseado na obra de Ilan Pappe, o texto de Astarita faz uma boa e sintética apresentação do processo histórico de limpeza étnica na Palestina por parte do sionismo e do Estado de Israel, retratando um processo sistemático de ataque que, em mais de 70 anos, nunca acabou. 

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Sobre o ataque a Giordano, sionismo e limpeza étnica

Por Rolando Astarita

Dias passados, desencadeou-se uma feroz campanha contra o deputado Juan Carlos Giordano, da Izquierda Socialista – Frente de Izquierda [Esquerda Socialista – Frente de Esquerda]. O «pecado» de Giordano foi criticar o sionismo e o Estado de Israel. Organizações sionistas, jornalistas e políticos (na primeira fila, os de Juntos por el Cambio [Juntos pela Mudança]) acusaram-no de anti-semita e alguns até pediram a sua expulsão do Congresso. Os acusadores argumentam que «estar contra o sionismo equivale a ser anti-semita». Em outros termos, segundo essas pessoas Giordano é um nazista, ou pouco menos que um nazista. É claro que nenhum dos “gênios” dessa campanha pode explicar como é que um partido trotskista, que lutou contra ditaduras militares, que sempre se opôs ao nazismo e ao fascismo, tenha agora deputados e líderes defendendo nazistas e anti-semitas. Menos ainda explicam quais são as causas, históricas, políticas e sociais, subjacentes ao confronto entre palestinos e israelitas. Será que os palestinos têm, por nascimento, o gene do anti-semitismo?

Para fins de fornecer elementos para a análise e debate destas questões, nesta nota resumo o principal de The Ethnic Cleansing of Palestine [ed. bras.: A limpeza étnica da Palestina, São Paulo: Sundermann, 2016], do historiador israelense Ilan Pappe. O livro de Pappe está focado na limpeza étnica da Palestina, realizada em 1948 pelas unidades militares judaicas. Um fato que, como veremos, é revelador da natureza do sionismo e do Estado de Israel.

A ordem de 10 de março de 1948

Pappe começa observando que em 10 de março de 1948 veteranos líderes sionistas, acompanhados de jovens oficiais judeus, deram a ordem às unidades de combate para iniciar a limpeza étnica da Palestina. Ou seja, executar o chamado plano D, ou plano Dalet, que consistia na expulsão de palestinos de vastas áreas do país.

Com esse objetivo, a direção sionista fez uma descrição detalhada dos métodos que deveriam ser empregados para a expulsão forçada dos palestinos: intimidação em larga escala; cerco e bombardeio de povoados e centros populacionais; incêndio de casas, propriedades e bens; expulsões; demolições; e, finalmente, a colocação de minas entre os escombros para impedir que os expulsos retornassem. A cada unidade militar foi atribuída a sua lista de alvos, consistindo em povoados e bairros. Era o plano elaborado pela direção sionista para lidar com a presença de tantos palestinos que viviam no território que o movimento nacional judeu cobiçava.

Pappe afirma que o plano de limpeza foi tanto o produto inevitável do impulso ideológico sionista para ter uma presença exclusivamente judaica na Palestina, como a resposta aos desenvolvimentos no terreno uma vez que o gabinete britânico tinha decidido terminar o seu domínio direto. Os confrontos com milícias palestinas locais forneceram o contexto perfeito e o pretexto para implementar a visão ideológica de uma Palestina etnicamente limpa. Pappe observa que a política sionista foi baseada primeiro em represálias contra os ataques palestinos de fevereiro de 1947, e se transformou, em março de 1948, em uma iniciativa para limpar etnicamente o país como um todo. Demorou seis meses para concluir a operação. Quando terminou, mais da metade da população palestina nativa, cerca de 800.000 pessoas, tinha sido desarraigada; 531 vilas ou aldeias destruídas e 11 bairros urbanos esvaziados de seus habitantes. Ou seja, metade da população indígena que vivia na Palestina tinha sido expulsa; e metade de suas aldeias e cidades destruídas. Muitos poucos dos expulsos puderam voltar. Apenas cerca de 150.000 palestinos permaneceram dentro do novo Estado de Israel.

“O plano decidido em 10 de março de 1948, e sobretudo sua implementação sistemática nos meses que se seguiram, foi um caso claro de uma operação de limpeza étnica, considerada sob a atual lei internacional como um crime contra a humanidade. Um crime desta magnitude, no entanto, foi quase totalmente apagado da memória pública global: a desposessão, em 1948, dos palestinos por Israel. Este evento, o mais formativo na história moderna do território da Palestina, tem sido sistematicamente negado, e ainda hoje não é reconhecido como um fato histórico. A limpeza étnica é um crime contra a humanidade e as pessoas que a perpetram hoje são consideradas criminosos de guerra que devem ser levados diante de tribunais especiais. No entanto, muitos dos que decidiram e participaram dessa limpeza tiveram papéis principais na política de Israel e na sociedade até sua morte. Para os palestinos, eram criminosos que nunca seriam levados a julgamento” (ênfase agregada).

A historiografia oficial e a «nova história»

A versão historiográfica oficial israelense pretende que em 1948 milhares de palestinos abandonaram suas casas e povoados por vontade própria, com o propósito de dar lugar a um exército invasor árabe que destruiria o Estado de Israel. Esta história foi então embelezada de múltiplas formas pelos defensores do programa sionista. Não por acaso, o livro Exodus, de Leon Uris, afirma que os líderes árabes queriam que a população palestina deixasse o território. Este relato, um épico sionista, foi levado ao cinema em 1960. Lá se vê o comandante israelense, encarnado por Paul Newman, tentando convencer os palestinos a permanecer em suas casas.

A história oficial foi desmentida por historiadores palestinos, que, usando transcrições de transmissões de rádio, mostraram que não foram os líderes árabes que impulsionaram a saída dos povoadores árabes palestinos, mas os líderes sionistas. A propaganda israelense tentou apagar essas denúncias, insistindo em «o abandono voluntário dos árabes». No entanto, nas décadas de 1980 e 1990 apareceu a chamada «nova história», que começou a rever o relato sionista. O contexto imediato foi a invasão do Líbano, em 1982, e a intifada em 1987. Este último ano foram publicados em inglês The Birth of Israel – Myths and realities de Simha Flapan, jornalista e historiador israelense; The Birth of the Palestinian Refugee Problem, de Benny Morris, também israelense e líder do partido Mapam. Da mesma forma, nesse ano foi publicado The Palestinian Catastrophe do pesquisador americano Michael Palumbo. Os israelenses Pappe, Tom Segev e Avi Shlaim são outros representantes da historiografia revisionista.

Pappe argumenta que, embora os novos historiadores israelenses tenham colocado a limpeza étnica em segundo plano, de qualquer forma, usando principalmente arquivos militares israelenses, eles mostraram o quão falsa e absurda é a afirmação israelense de que os palestinos abandonaram voluntariamente suas casas e populações. Eles foram capazes de confirmar muitos casos de expulsões em massa de vilas e cidades e mostraram que as tropas israelenses tinham cometido um número considerável de atrocidades, incluindo massacres. Por exemplo, embora Morris tenha se baseado exclusivamente em documentos dos arquivos militares israelenses e concluído com uma visão muito parcial do que aconteceu, foi suficiente para que alguns de seus leitores israelenses percebessem que «o voo voluntário» dos palestinos era um mito, e que a auto-imagem israelense de ter travado uma guerra «moral» em 1948 contra o mundo árabe «primitivo» e hostil era falida. Mas, por outro lado, segue Pappe, Morris ignorou atrocidades como envenenar o abastecimento de água da cidade de Acre com tifoide; ignorou inúmeros casos de estupro; e dezenas de massacres perpetrados pelos judeus. Morris também continuou afirmando que antes de 15 de maio de 1948 não houve despejos forçados. No entanto, observa Pappe, fontes palestinas mostram como meses antes da entrada de tropas árabes na Palestina, e enquanto os britânicos ainda eram responsáveis pela lei e pela ordem no país, as forças judaicas já tinham tido sucesso em expulsar à força quase um quarto de milhão de palestinos. É por isso que Pappe conclui que se Morris e outros tivessem usado fontes árabes ou se voltado para a história oral, eles poderiam ter tido uma melhor compreensão do planejamento sistemático por trás da expulsão dos palestinos em 1948 e fornecer uma descrição mais ajustada à verdade da enormidade de crimes cometidos por soldados israelenses. Acrescentemos que Morris, como outros revisionistas, nunca questionou seriamente o projeto sionista. Ainda assim, e como aponta Pappe, contribuíram para desacreditar o relato sionista (sobre os novos historiadores, bem como as represálias e ameaças que receberam, ver também Palumbo, 1990; Gijón Mendigutia, 2008; González, 2020).

Definição de limpeza étnica

A fim de esclarecer mal-entendidos ou falsas críticas, Pappe define a limpeza étnica como o esforço para tornar homogêneo um país etnicamente misturado, expulsando um grupo particular de pessoas e transformando-os em refugiados ao demolir as casas das quais foram retirados. Pode haver um plano mestre, mas a maioria das tropas empenhadas na limpeza étnica não precisa de ordens diretas: elas sabem de antemão o que se espera delas. Os massacres acompanham as operações, mas não fazem parte de um plano genocida: são uma tática chave para acelerar a fuga da população destinada à expulsão. Mais tarde, os expulsos são apagados da história oficial e popular, e removidos de sua memória coletiva. Pappe argumenta que desde o estágio de planejamento até a execução final, o que aconteceu na Palestina constitui um caso claro, de acordo com as definições acadêmicas e informadas, de limpeza étnica. Nos tratados internacionais, a limpeza étnica é considerada um crime contra a humanidade.

Na Palestina, a limpeza étnica foi planejada e liderada pelos dirigentes do Estado de Israel, começando pelo líder inconteste do movimento sionista, David Ben-Gurion, e por funcionários da linha de frente do futuro exército israelense, como Yigael Yadin e Moshe Dayan. No mesmo sentido que Pappe, Gijón Mendigutia escreve: “Há inúmeras provas baseadas em documentos de arquivos israelenses que revelam que os principais políticos, como Chaim Weitzman, primeiro presidente de Israel, David Ben Gurion, primeiro-ministro, e Moshe Sharret, ministro das Relações Exteriores, tinham previamente aprovado “a transferência” entre 1937-1948 e previsto a “limpeza da terra” em 1948. Além disso, tentaram por todos os meios influenciar as propostas da Comissão Peel em 1937, na qual se propunha uma partição da Palestina entre árabes e judeus, algo que implicava por si só a ideia da transferência”.

Desde as origens do movimento sionista, a expulsão dos palestinos

A ideia de «limpar o território», ou «transferência de população» foi considerada uma opção válida para os fundadores do movimento sionista. Pappe cita um de seus pensadores mais liberais, Leo Motzkin, que, em 1917, escrevia: “Nosso pensamento é que a colonização da Palestina tem que ir em duas direções: Judeu em Eretz Israel [o nome da Palestina na religião judaica] e reassentamento dos árabes de Eretz Israel em áreas fora do país. A transferência de tantos árabes pode, em princípio, parecer inaceitável economicamente, mas de qualquer forma é prática. Não é preciso muito dinheiro para reassentar uma aldeia palestina em outra terra”. 

Na consideração do movimento sionista, a Palestina estava ocupada por ‘estranhos’, e deveria ser recuperada. ‘Estranhos’ significava todo aquele não-judaico que tinha vivido na Palestina desde o período romano.

Para muitos sionistas, a Palestina não era sequer uma terra “ocupada” quando chegaram pela primeira vez, em 1882, mas uma terra “vazia”: os palestinos nativos eram em grande parte invisíveis para eles ou, se não isso, faziam parte da adversidade da natureza e, como tal, seria conquistada e removida. Notemos que, em uma versão pouco diferente, o mito sionista passou por «uma terra sem povo para um povo sem terra». Mas na Palestina havia um povo.

Gijón Mendigutia também destaca que a expulsão dos palestinos foi inerente ao projeto sionista. O plano de expulsões “é o próprio conceito sionista, sua aplicação tem sua origem no pensamento estratégico do sionismo. As diretrizes traçadas e os objetivos marcados levavam a um mesmo fim: a criação de um Estado judeu. E sabiam que se quisessem alcançá-lo era preciso fazer desaparecer a comunidade que existia anteriormente, destruindo as bases que a sustentavam, expulsando os seus habitantes e cometendo assassinatos para que esse êxodo fosse mais rápido e eficaz”. A execução do plano «iniciou uma situação interminável e dramática ainda não resolvida e parte indispensável da solução do conflito, os refugiados».

No mesmo sentido, González (2020) escreve: “… dada a demografia da Palestina em 1947, o estabelecimento de um Estado judeu exigia inexoravelmente retirar os palestinos de suas aldeias e cidades. A decisão crucial foi evitar a todo custo o regresso aos seus lares dos palestinos árabes, ignorando as circunstâncias em que os tinham abandonado, e independentemente do fato de a sua saída ter sido inicialmente prevista de forma explícita como uma transferência temporária feita sob coação no meio da guerra. Houve, é claro, expulsões deliberadas e em massa. A Operação D, realizada entre 10 e 14 de julho de 1948, que terminou em um massacre em Lydda e com a transferência forçada de toda a população das cidades de Ramla e Lydda – dez milhas a sudeste de Tel Aviv – para a Jordânia, foi um exemplo relevante. Mas a decisão realmente crucial, plenamente consciente e explícita, foi assegurar que o afundamento da comunidade palestina, que se revelou sob a pressão de uma guerra aberta entre Israel e os Estados árabes, fosse irreversível» (ênfase adicionada).

Para que não fiquem dúvidas: em dezembro de 1947 Ben Gurion dizia: “Há 40% de não-judeus nas áreas concedidas ao Estado judeu. Esta composição não constitui uma base sólida para um Estado judeu. E devemos enfrentar esta nova realidade com toda a sua severidade e diferença. Tal balanço demográfico questiona nossa capacidade de manter a soberania judaica… Apenas um Estado com pelo menos 80% de judeus é um Estado viável e estável” (citado por Pappe).

Colonialismo e militarismo sionista sob proteção britânica

Segundo Pappe, até a ocupação da Palestina pelos britânicos, em 1918, o sionismo foi uma mistura de ideologia nacionalista e prática colonialista. Era de dimensões limitadas: os sionistas não compunham mais de cinco por cento do total da população do país na época. Eles viviam em colônias e não afetavam nem eram particularmente notáveis para os palestinos. Mas o movimento visava formar um Estado judeu na Palestina. Em 1917, o Secretário de Relações Exteriores britânico, Lord Balfour, prometeu ao movimento sionista estabelecer um lar nacional para os judeus na Palestina. Em 1920 é criada a Haganah, a principal organização paramilitar da comunidade judaica.

Nos anos seguintes, e com a ajuda dos britânicos, os sionistas foram avançando em posições, a imigração judaica aumentou (a população judaica da Palestina passou a representar 30% em 1947), e os palestinos perderam territórios. Esta situação gerou revoltas palestinas, algumas de grande envergadura: a rebelião popular de 1936 foi tão profunda que obrigou o governo britânico a estacionar mais tropas na Palestina do que as que tinha destinadas à Índia. Somente depois de três anos de lutas, e repressão brutal, o movimento foi sufocado. Enquanto isso, o sionismo tinha organizado mais enclaves e colônias independentes. A defesa e os novos avanços desses enclaves – e o consequente despejo de palestinos – exigiam o apoio das armas, ou seja, militarismo e exército. Portanto, a Haganah foi fortalecida, e muitos de seus membros receberam treinamento militar britânico. Em 1947 a ONU decidiu a partição da Palestina em dois Estados independentes, um árabe palestino e o outro judeu (Jaffa seria um enclave árabe no Estado judeu e Jerusalém ficava sujeita a um regime internacional especial). Os palestinos rejeitaram essa partição.

David contra Golias?

Em 14 de maio de 1948, Israel foi proclamado como um Estado independente. Segundo Pappe, naquela época a força militar judaica consistia em cerca de 50.000 efetivos, dos quais 30.000 eram de combate e o resto auxiliares que viviam em diversos assentamentos. Essas tropas podiam contar com a assistência de uma pequena força aérea e naval, e unidades de tanques, veículos blindados e artilharia pesada. Em frente estavam as forças irregulares palestinas, não mais de 7000 efetivos, sem organização e mal equipadas em comparação com as forças judaicas. Em fevereiro de 1948 chegaram cerca de 1000 voluntários vindos do mundo árabe, e nos meses seguintes atingiram os 3000 efetivos. Até maio, ambas as forças estavam mal equipadas. Mas então o exército israelense recebeu, com a ajuda do Partido Comunista, grandes remessas de armas enviadas pela Checoslováquia e pela URSS. Os exércitos árabes, por sua vez, trouxeram alguma artilharia pesada aos palestinos. Ambos os exércitos aumentaram em número, mas os palestinos nunca ultrapassaram os 50.000 efetivos, enquanto o exército israelense aumentou para 80.000, bem treinados. Nas etapas seguintes a força judaica quase duplicou o número de todas as forças árabes combinadas. Além disso, nas margens da força militar judaica operavam dois grupos, Irgun (um desprendimento de Haganah) e Stern Gang. Por outro lado, havia Palmach, que eram unidades de comando. Nas operações de limpeza étnica, essas organizações foram as que efetivamente ocuparam as aldeias e cidades palestinas. Irgun e Stern cometeram inúmeros atos de terrorismo para intimidar e expulsar árabes palestinos de suas casas.

Pappe escreve: “Imediatamente após a adoção pela ONU da Resolução 181 (partição da Palestina), os líderes árabes declararam oficialmente que enviariam tropas para defender a Palestina. No entanto, nem uma vez entre o final de novembro de 1947 e maio de 1948 Ben Gurion e o pequeno grupo de líderes sionistas ao seu redor tiveram receio de que seu futuro Estado estava em perigo, ou que a lista de operações militares era tão esmagadora que afetou a expulsão dos palestinos. Em público, os líderes da comunidade judaica retratavam cenários apocalípticos, e alertavam suas audiências para a iminência de um “segundo Holocausto”. Entretanto, em privado, eles nunca usaram esse discurso. Estavam plenamente conscientes de que a retórica de guerra árabe não era de forma alguma seguida de uma preparação séria. (…) Os líderes sionistas estavam confiantes de que militarmente tinham vantagem e que poderiam realizar a maior parte do seu ambicioso plano. E eles estavam certos”.

Estes dados desarmam então o mito de um frágil Israel diante de um poderoso inimigo árabe. A este respeito, Gijón Mendigutia sustenta que com esse mito se procura apresentar a fundação de Israel «como heróica ao ser vista como uma “vitória milagrosa” de “pessoas desfavorecidas”, pois era comum difundir a ideia de que a comunidade judaica era composta por um grande número de sobreviventes do holocausto dificilmente capazes de combater». O velho relato de David contra Golias. «Mas novamente, a abertura dos arquivos determinou esta linha de pesquisa com uma nova abordagem e em sentido contrário ao relato sionista predominante: o Yishuv e o resto dos judeus na Palestina não estavam em inferioridade de condições e seu poder não era menor que o dos exércitos árabes».

Destacamos também que imediatamente após a proclamação do novo Estado, Israel “expandiu seu controle para além das fronteiras que lhe tinham sido atribuídas, ocupando territórios que correspondiam ao Estado árabe em virtude da resolução de partição. Jaffa foi ocupada, assim como cidades como Acre, Haifa, Tiberias e parte da zona internacional de Jerusalém” (González, 2020).

Quem começou a guerra de 1948?

Uma das questões que a historiografia israelense mais tentou esconder é a responsabilidade sionista na origem da guerra de 1948. Como afirma Palumbo (1990), a causa subjacente do conflito foi a tomada de consciência dos sionistas de que o Estado de Israel não poderia ser formado sem deslocar a grande população árabe. Ele cita Flapan, que lembra que Ben-Gurion e a direção sionista rejeitaram várias propostas de paz. No entanto, observa Palumbo, a guerra não podia ser evitada indefinidamente. É que o Estado judeu criado pela resolução da ONU de 1947 não era viável sem o deslocamento dos palestinos. Por outro lado, Morris argumentou que a principal responsabilidade pelo início da guerra é dos palestinos, que queriam destruir o Estado de Israel. Mas Palumbo mostra que em 1947 as manifestações palestinas, contrárias à partição, e armadas com paus e pedras, foram reprimidas pelas organizações terroristas judaicas Irgun e Stern, escalando o conflito. Mesmo em dezembro de 1947, o Alto Comissário da ONU relatou que a Agência Judaica também era responsável pelo terrorismo «disidente» de Irgun e Stern.

Por outro lado, e contra o discurso sionista, Palumbo observa que não há razão para acreditar que os Estados árabes planejaram o extermínio dos colonos judeus em 1948. Não existe nenhum elemento que permita sustentar tal coisa. Com exceção da retaliação pelo massacre de Deir Yassin (ver parágrafo seguinte), os judeus capturados pelos árabes em 1948 foram bem tratados. Isso até foi reconhecido pela rádio da Haganah.

Uma amostra da crueldade na «limpeza»

O livro de Pappe está cheio de dados e descrições da limpeza étnica de 1948. A fim de não tornar esta nota excessivamente longa, reproduzo algumas passagens referentes ao que aconteceu no povoado de Deir Yassin. Pappe considera que é representativo do sentido da operação.

Em 9 de abril de 1948, tropas judaicas ocuparam Deir Yassin. À medida que invadiram, os soldados judeus pulverizavam as casas com fogo de metralhadoras, matando assim muitos de seus habitantes. Os aldeões restantes foram reunidos em um local e mortos a sangue frio, e seus corpos foram abusados. Um número de mulheres foram estupradas e posteriormente assassinadas. Fahim Zaydan, que na época tinha 12 anos, lembrou-se de como viu a sua família ser assassinada. “Eles nos levaram um por um; mataram um homem idoso e quando uma de suas filhas gritou, ela também foi assassinada. Então chamaram meu irmão Muhammad e o mataram diante de nós, e quando minha mãe gritava inclinando-se para ele, carregando minha pequena irmã Hudra em seus braços, ainda amamentando-a, eles também a mataram. Zaydan foi baleado enquanto estava numa fila com outras crianças. Todos foram baleados por soldados judeus, «apenas por diversão». Zaydan teve a sorte de sobreviver às suas feridas.

Pappe relata que pesquisas recentes levaram o número de massacrados em Deir Yassin de 170 para 93. Claro que, além das vítimas do massacre, dezenas de outros foram mortos na luta e não foram incluídos na lista oficial de vítimas. No entanto, como as tropas judaicas consideravam todo aldeão palestino como um inimigo militar, era ténue a distinção entre massacrar pessoas e matá-las «em batalha». Sempre de acordo com Pappe, 30 bebês foram mortos. Ele escreve: «À época, a direção judaica anunciou orgulhosamente que havia um elevado número de vítimas, de modo a fazer de Deir Yassin o epicentro da catástrofe, um aviso a todos os palestinos de que um destino semelhante lhes esperava se se recusassem a deixar as suas casas e lutassem». 

Palumbo cita Morris, que admite que as atrocidades de Deir Yassin tiveram «o efeito mais duradouro de um único evento de guerra em precipitar a fuga dos aldeões árabes da Palestina». Morris, de qualquer forma, tenta diminuir a responsabilidade do comando sionista no massacre. A este respeito, Palumbo cita o testemunho de um oficial de Irgun dizendo que o Stern Gang «propôs liquidar os moradores da aldeia após a conquista para mostrar aos árabes o que acontece quando Irgun e Stern Gang realizam juntos uma operação».

No geral, Pappe observa que fontes palestinas, combinando arquivos militares israelenses com histórias orais, estabelecem 31 massacres confirmados, começando com o de Tirat Haifa em 11 de dezembro de 1947, e terminando com Khirbat Ilin na área de Hebron, em 19 de janeiro de 1949; e poderia ter havido pelo menos seis outras matanças.

Nunca acabou

Os massacres israelenses não pararam em 1949. Pappe escreve: “A 15 minutos de carro da Universidade de Tel Aviv está a aldeia de Kfar Oassim, onde, em 29 de outubro de 1956, as tropas israelenses massacraram 49 aldeões que voltavam de seus campos. Depois foi Qibya, nos anos 1950; Samoa, nos 1960; aldeias da Galiléia, em 1976; Sabra e Shatila, em 1982; Kfar Qana em 1999; Wadi Ara, em 2000; e o Campo de Refugiados Jenin, em 2002. A isto devem ser acrescentado numerosos assassinatos registrados por Belselem, a organização de direitos humanos de Israel. Nunca foi posto fim ao massacre de palestinos por Israel.

O imperativo de lutar contra a negação do crime

Pappe argumenta que além da necessidade de entender as raízes do conflito contemporâneo israelense-palestino, existe, acima de tudo, um imperativo moral de continuar a luta contra a negação do crime: «Quando criou seu Estado-nação o movimento sionista não travou uma guerra «que trágica mas inevitavelmente levou à expulsão de “partes” da população indígena», mas foi o oposto: o principal objetivo foi a limpeza étnica de toda a Palestina que o movimento cobiçava para seu novo Estado. Algumas semanas após o início das operações de limpeza étnica, os Estados árabes vizinhos enviaram um pequeno exército – pequeno em comparação com o seu poder militar total – para tentar, em vão, impedir a limpeza étnica. A guerra com os exércitos regulares árabes não parou as operações de limpeza étnica até a sua conclusão bem sucedida no outono de 1948.

Depois escreve: “Eu acuso, mas também faço parte da sociedade que é condenada neste livro. Sinto-me tanto responsável como parte da história e, como outros na minha própria sociedade, estou convencido, como mostro nas páginas finais, que uma viagem tão dolorosa para o passado é o único caminho a seguir se quisermos criar um futuro melhor para todos nós, palestinos e israelenses”. É por isso que o livro é “a simples mas aterrorizante história da limpeza étnica da Palestina, um crime contra a humanidade que Israel quis negar e fazer o mundo esquecer. Recuperá-lo do esquecimento é nossa tarefa, não só porque é já um ato muito atrasado de reconstrução historiográfica ou dever profissional. É, como eu vejo, uma decisão moral, o primeiro passo que devemos dar se quisermos que a reconciliação tenha uma chance e enraize a paz nas terras rasgadas da Palestina e de Israel”.

Finalmente, Gijón Mendigutia observa que em Israel líderes políticos e acadêmicos fizeram todo o possível para boicotar e silenciar os estudos históricos que questionam a «história oficial». Ele escreve: “nos departamentos de Estudos do Oriente Médio das universidades israelenses continuam ignorando e tentando esconder a Nakba [a catástrofe] palestina como fato histórico ou objeto de estudo. E para atingir este objetivo fazem parte das numerosas represálias que foram realizadas contra os «novos historiadores» ou qualquer pessoa que vá contra o establishment sionista».

Bem, as suas cópias argentinas não ficam para trás. «Expulsemos Giordano do Congresso». Bela prova de respeito pela liberdade de opinião e de investigação, e de amor pela verdade histórica. Giordano é o nazista e o antissemita. Aqueles que encobrem e defendem limpezas étnicas e massacres são os paladinos da liberdade. À vista de dados e testemunhos de tantas vozes silenciadas, não lhes dá um pouco, mesmo que um pouco, de nojo?

Textos utilizados:

Gijón Mendigutia, M. (2008): “Los ‘nuevos historiadores’ israelíes. Mitos fundacionales y desmitificación”, Revista de Estudios Internacionales Mediterráneos, N° 5, mayo-agosto, pp. 27-41.

González, D. F. (2020): “Aportes para la comprensión del conflicto palestino–israelí a partir del análisis del eurocentrismo en la ideología sionista”, Departamento de Historia, Facultad de  Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad Nacional de La Plata.

Palumbo, M. (1990): “What Happened to Palestine? The Revisionists Revisited”, Link, vol. 23, N° 4.

Pappe, I. (2011): The Ethnic Cleansing of Palestine, edición en ebook, Oneworld Publications.