Alienação/estranhamento, reificação e sujeito como fetiche no ‘Capital’ de Karl Marx

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[Por Santiago Marimbondo]

O ‘Capital’ de Karl Marx é uma obra ampla, complexa, multifacetada; qualquer tentativa de reduzir o livro a um debate puramente econômico, ou, a partir dessa visão reducionista, tentar separar de forma marcada a produção teórica do revolucionário alemão em uma divisão cronológica entre um jovem filósofo e um velho e maduro economista é algo totalmente infundado. Essas afirmações deveriam parecer obviedades, mas ainda hoje esse debate se apresenta em grande parte da produção acadêmica sobre os escritos do mouro.

Um estudo aprofundado e criterioso de sua obra madura, no entanto, mostra que os temas e questões presentes em sua obra de juventude, como os ‘Manuscritos de Paris’, de 1844, ou a ‘Ideologia Alemã’, não são suprimidos ou apagados, que não há uma ruptura com essa temática, mas sim que há um amadurecimento e aprofundamento das posições, que ganham formulações mais precisas e embasadas (– essa continuidade se mostra não só no ‘Capital’, mas em todos os escritos, manuscritos, etc, envolvidos diretamente nesse grande projeto intelectual, desde o momento em que o revolucionário começa efetivamente a empreitada de redigir e sistematizar os anos de estudo no campo da economia política em sua nova concepção crítica com os ‘Grundrisse’, em 1857, passando pela primeira formulação, em forma de manuscrito, de sua obra de 1859 a ‘Crítica da economia política’, conhecida como ‘Urtext’, os manuscritos de 1861-63, que deram origem às ‘Teorias da Mais-Valia’, os manuscritos de 1864-65, que são a base a partir da qual Engels editará o livro 3 do ‘Capital’, as diferentes edições de sua grande obra, como as edições de 1867 e 1872, com suas diferentes formulações do debate sobre a forma-valor, principalmente as diferentes elaborações do primeiro capítulo –).

É o filosofo francês Louis Althusser, em sua influente leitura do ‘Capital’, o principal proponente dessa visão que leva a um pretenso ‘corte epistemológico’ na obra de Marx. O francês, contudo, mostra quão limitada é sua visão da obra que se propõe a “ler” quando sugere uma separação entre uma leitura filosófica e uma leitura econômica do livro. É essa visão que vai levá-lo a defender que mesmo em sua grande obra o mouro ainda estava preso a preconceitos idealistas e apenas no final da vida, na ‘Crítica ao programa de Gotha’ e nas ‘Glosas Marginais contra Adolph Wagner’ o tal ‘corte epistemológico’ teria efetivamente se consumado.

“Quando é lançado o Livro I d’O capital (1867), ele ainda apresenta vestígios da influência hegeliana. Estes só desaparecerão totalmente mais tarde: a Crítica do Programa de Gotha (1875), assim como as “Glosas marginais ao ‘Tratado de economia política’ de Adolfo Wagner” (1882), são total e definitivamente destituídos de qualquer vestígio de influência hegeliana.”

Althusser, Louis: ”ADVERTÊNCIA AOS LEITORES DO LIVRO I D’O CAPITAL”

No ‘Capital’, no entanto, os temas econômicos, filosóficos, sociológicos, históricos, estão sintetizados de forma tão profunda e complexa que é impossível isolar um dos elementos sem solapar as bases de cada um dos outros; desde a questão sobre a mercadoria como elemento inicial do livro, que envolve temas econômicos e epistemológicos, ao debate sobre o capital em geral e o metabolismo social com a natureza, sobre a relação entre o processo de trabalho e o processo de valorização, envolvendo temas sobre a ontologia do ser social e a economia política; sobre a reificação das relações sociais, que envolve temas sociológicos e econômicos; sobre a acumulação primitiva, envolvendo história e economia, etc, cada um dos muitos debates que podem ser abertos a partir das questões levantadas pela grande obra de Marx envolvem esses campos de conhecimento de forma tão imbrincada e profunda que tentar apagar sua relação com os outros momentos que compõe o conjunto é fazer uma violência a sua complexidade conceitual.

Em nenhum dos muitos debates que envolvem as diferentes leituras do ‘Capital’, no entanto, essa tentativa de separar as questões pretensamente propriamente econômicas dos debates filosóficos e sociológicos é tão marcada quanto quando se fala sobre os conceitos de alienação/estranhamento, reificação, fetiche, e sua relação com os conceitos que supostamente seriam mais marcadamente e claramente econômicos.

Não nos deteremos aqui na questão de se os temas referentes aos conceitos de alienação/estranhamento estão ainda presentes na obra madura de Marx. Basta uma leitura atenta do ‘Capital’ para ver que as categorias entfremdung/entaüsserung continuam a estar presentes em todos os 3 livros; a obra seminal de Istiván Meszáros ‘Teoria da Alienação em Marx’ mais que dirime as dúvidas, com muitas e muitas citações textuais e um profundo debate teórico sobre a questão. Assim, nos ateremos ao debate sobre como esses conceitos estão articulados ao conjunto da obra, e sua relação com os conceitos de fetiche e reificação, mostrando que apesar de não haver identidade entre essas categorias elas tem uma relação bastante profunda.

Outra questão chave será mostrar que esses conceitos não são elucubrações filosóficas extrínsecas em relação aos debates pretensamente propriamente econômicos, mas elementos fundamentais para a crítica da economia política empreendida pelo mouro. É impossível, por exemplo, entender a categoria da forma-valor, um dos conceitos centrais do ‘Capital’, como mostra Marx já no prefácio ao livro, sem entender sua relação com a reificação das relações sociais e o fetiche da mercadoria, próprias ao capitalismo.

Ao defender-se aqui que os conceitos de alienação/estranhamento, imbrincados com as categorias da reificação e do fetichismo, continuam a ser centrais na obra madura de Marx não se quer dizer que esses conceitos sejam idênticos aos formulados em sua obra de juventude. Ali os conhecimentos econômicos do revolucionário alemão eram ainda bastante limitados e isso não podia deixar de ter grande influência sobre suas formulações teóricas (ontológicas, sociológicas) de conjunto. Contudo, antes de uma ruptura o que acontece é um amadurecimento e desenvolvimento das categorias, que passam a ser integradas e articuladas dentro de uma concepção cada vez mais complexa e profunda.

Nesse estudo além do ‘Capital’ utilizaremos todos os demais escritos diretamente envolvidos na formulação da grande obra do revolucionário alemão publicados na nova versão da MEGA (obras completas de Marx e Engels na sigla em alemão). Os novos manuscritos e fragmentos, alguns publicados pela primeira vez a alguns poucos anos apenas, permitem um aprofundamento dos debates sobre a obra do mouro que não pode ser negligenciado pelos militantes que se pretendem revolucionários e tem interesse nos debates teóricos suscitados pela obra de Marx, sob pena de que esses debates sejam monopolizados pelo “marxismo” acadêmico, com sua busca inerente de castrar e suprimir sua verve eminentemente revolucionária.

 

 O papel civilizador do capital e o sujeito como fetiche

Um erro fundamental na leitura do ‘Capital’ de Marx é supor que na obra são apagados ou suprimidos os debates presentes no idealismo alemão clássico sobre as formas de construção da socialização do ser humano e da efetivação do ser genérico da humanidade, em prol de um debate estritamente econômico. Muito pelo contrário no ‘Capital’ Marx busca estabelecer as bases fundamentais, centrais, para o fazer-se humano, ser genérico, da humanidade, como ser histórico, e não naturalmente determinado.

Esse fundamento da construção do humano como ser genérico socialmente estabelecido é o processo através do qual a humanidade se apropria de seu ambiente natural e o transforma em um ambiente humanizado. É o trabalho a base ontológica fundamental da construção do humano como ser genérico, de sua socialização, base insuperável para qualquer sociedade humana que existe ou possa existir:

“O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio.”

Marx, Karl: O Capital, livro 1. Edição Boitempo pág 326

Contudo, o trabalho não é uma abstração a-histórica, que existe idealmente de forma exterior as suas múltiplas expressões historicamente concretas, mas sempre forma particular e temporalmente específica de efetivação dessa apropriação prática do ser humano sobre seu ambiente natural.

O processo de trabalho na sociedade capitalista se manifesta fenomenicamente como processo de valorização. É a produção e reprodução do valor, de forma potencialmente ampliada como mais-valor, o elemento coordenador e articulador das múltiplas formas de trabalho aparentemente independentes, pois efetivadas a partir de unidades produtivas formalmente privadas, que a partir dessa categoria basilar, o valor, se constituem como um efetivo organismo produtivo, organizado e regulado, o organismo produtivo capitalista:

“O processo de valorização

O produto – a propriedade do capitalista – é um valor de uso, como o fio, as botas etc. Mas apesar de as botas, por exemplo, constituírem, de certo modo, a base do progresso social e nosso capitalista ser um “progressista” convicto, ele não as fabrica por elas mesmas. Na produção de mercadorias, o valor de uso não é, de modo algum, a coisa qu’on aime pour lui-même [que se ama por ela mesma]. Aqui, os valores de uso só são produzidos porque e na medida em que são o substrato material, os suportes do valor de troca. E, para nosso capitalista, trata-se de duas coisas. Primeiramente, ele quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, isto é, um artigo destinado à venda, uma mercadoria. Em segundo lugar, quer produzir 337/1493 uma mercadoria cujo valor seja maior do que a soma do valor das mercadorias requeridas para sua produção, os meios de produção e a força de trabalho, para cuja compra ele adiantou seu dinheiro no mercado. Ele quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria; não só valor de uso, mas valor, e não só valor, mas também mais-valor.”

Marx, Karl: O Capital, livro 1.Edição Boitempo pág 337

Essa regulação e organização do organismo produtivo capitalista, no entanto, não se constitui de forma consciente e controlada pelos seres humanos, que concretamente a constroem, mas como força estranha e independente. O valor, assim, apesar de construção humana, aparece como uma força independente e estranha, dotada de vontade e consciência:

“O valor passa constantemente de uma forma a outra, sem se perder nesse movimento, e, com isso, transforma-se no sujeito automático do processo. Ora, se tomarmos as formas particulares de manifestação que o valor que se autovaloriza assume sucessivamente no decorrer de sua vida, chegaremos a estas duas proposições: capital é dinheiro, capital é mercadoria. Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito de um processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma, aparecendo ora como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria grandeza e, como mais-valor, repele [abstösst] a si mesmo como valor originário valoriza a si mesmo. Pois o movimento em que ele adiciona mais-valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto, autovalorização. Por ser valor, ele recebeu a qualidade oculta de adicionar valor. Ele pare filhotes, ou pelo menos põe ovos de ouro.”

Marx, Karl: O Capital, livro 1.Edição Boitempo pág 297

Esse processo de constituição de uma força estranha e independente em relação aos seres humanos que concretamente a constroem, no entanto, não se restringe ao processo imediato de apropriação pelos seres humanos de seu ambiente natural. O capital, como categoria que expressa o desenvolvimento necessário do valor em seu processo de auto-valorização, é a força historicamente constituída que permitiu pela primeira vez na historia mundial a construção de uma efetiva comunidade universalmente humana, superando as barreiras étnicas, nacionais, entre os povos. É dentro do mercado capitalista, de sua esfera de produção/distribuição/circulação, que pela primeira vez na história praticamente toda humanidade se torna efetiva e concretamente conectada.

O humano como gênero deixa de ser um ideal abstrato para ser uma realidade concreta e efetiva, percebida empiricamente no real processo de trabalho (que aparece na sociedade capitalista como processo de valorização). Hoje ao irmos a qualquer mercado, a qualquer loja, em nossos empregos e nos mais diferentes aspectos da vida, podemos perceber nossa conexão direta e efetiva com os mais diferentes cantos do mundo, que eram praticamente desconhecidos pelos nossos pais ou avós.

Assim, os debates presentes no idealismo alemão clássico, de Kant a Hegel, por exemplo, sobre as formas de constituição do humano como ser genérico não são apagados ou suprimidos no ‘Capital’; muito pelo contrário, na obra de Marx eles perdem seu caráter idealista e místico, onde essa generidade é garantida pelo pertencimento dos seres humanos a um sistema de categorias transcendentais, ou como expressão da alienação e reconhecimento de si do espírito absoluto, ou ainda como expressão de uma essência humana como generidade muda naturalmente existente, para ser reconhecido esse pertencimento ao gênero humano em sua expressão real e material, historicamente determinada, como forma de manifestação do desenvolvimento de uma força concreta e efetiva, socialmente constituída, o capital, que é a expressão alienada e estranhada do processo de trabalho através do qual os seres humanos socialmente constituídos se apropriam de seu ambiente natural e o transformam em ambiente humanizado.

Se esses debates aparecem já em obras da juventude de Marx, como a ‘Ideologia Alemã’:

“Ora, quanto mais no curso desse desenvolvimento se expandem os círculos singulares que atuam uns sobre os outros, quanto mais o isolamento primitivo das nacionalidades singulares é destruído pelo modo de produção desenvolvido, pelo intercâmbio e pela divisão do trabalho surgida de forma natural entre as diferentes nações, tanto mais a história torna-se história mundial, de modo que, por exemplo, se na Inglaterra é inventada uma máquina que na Índia e na China tira o pão a inúmeros trabalhadores e subverte toda a forma de existência desses impérios, tal invenção torna-se um fato histórico- -mundial”

Marx, Karl: ‘A ideologia Alemã’, edição Boitempo pag. 40

isso de forma alguma quer dizer que eles não estão presentes em suas obras maduras. Basta citarmos trecho dos ‘Grundrisse’ para vermos que essa continua a ser uma preocupação central na obra do revolucionário alemão:

“Portanto, da mesma maneira que a produção baseada no capital cria, por um lado, a indústria universal – isto é, trabalho excedente, trabalho criador de valor –, cria também, por outro lado, um sistema da exploração universal das qualidades naturais e humanas, um sistema da utilidade universal, do qual a própria ciência aparece como portadora tão perfeita quanto todas as qualidades físicas e espirituais, ao passo que nada aparece elevado-em-si mesmo, legítimo-em-si-mesmo fora desse círculo de produção e troca sociais. Dessa forma, é só o capital que cria a sociedade burguesa e a apropriação universal da natureza, bem como da própria conexão social pelos membros da sociedade. |Daí a grande influência civilizadora do capital ; sua produção de um nível de sociedade em comparação com o qual todos os anteriores aparecem somente como desenvolvimentos locais da humanidade e como idolatria da natureza. Só então a natureza torna-se puro objeto para o homem, pura coisa da utilidade; deixa de ser reconhecida como poder em si; e o próprio conhecimento teórico das suas leis autônomas aparece unicamente como ardil para submetê-la às necessidades humanas, seja como objeto do consumo, seja como meio da produção. O capital, de acordo com essa sua tendência, move-se para além tanto das fronteiras e dos preconceitos nacionais quanto da divinização da natureza, bem como da satisfação tradicional das necessidades correntes, complacentemente circunscrita a certos limites, e da reprodução do modo de vida 542/1285 anterior. O capital é destrutivo disso tudo e revoluciona constantemente, derruba todas as barreiras que impedem o desenvolvimento das forças produtivas, a ampliação das necessidades, a diversidade da produção e a exploração e a troca das forças naturais e espirituais.”  

Marx, Karl: Grundrisse. Edição Boitempo pág 542

 

A dupla existência da mercadoria e o capital como força social fetichizada

A construção do humano como ser genérico sob o domínio do capital, contudo, não se dá de forma harmônica e consciente, muito pelo contrário. O capital se constitui, e só pode se constituir, como força estranha e independente em relação a seus produtores, que passam a ser dominados e controlados por sua criação:

“Assim, o poder do capital cresce, em outras palavras, a autonomia das condições sociais de produção, personificadas pelo capitalista, é cada vez mais afirmada contra os efetivos produtores. O capital se mostra mais e mais ser um poder social (com o capitalista como seu funcionário), um poder que não existe mais em nenhum tipo possível de relação com o que o trabalho de um indivíduo em particular pode criar. Em vez disso, é um  poder social estranhado [entfremdet], poder social que ganhou uma posição autônoma e confronta a sociedade como uma coisa, e como o poder que o capitalista tem através dessa coisa.”

Marx, Karl: Manuscritos de 1864-65 (Manuscritos esses que são a base para a edição feita por Engels para livro 3 do Capital). Pág 372. Tradução própria a partir da edição inglesa¹

A forma mais imediata, e mais fundamental, de expressão desse caráter de fetiche do capital, que se constitui como um efetivo sujeito social, se dá na e pela troca de mercadorias no mercado capitalista. Na sociedade burguesa os indivíduos se constituem como possuidores e trocadores de mercadorias no mercado. A mercadoria, no entanto, tem um duplo caráter, uma dupla forma de existência, ela é valor de uso e valor.

O valor de uso é expressão de suas propriedades concretas, capazes de satisfazer particulares necessidades humanas, sejam elas corporais ou espirituais, naturais ou sensíveis, de forma imediata no consumo ou como meio para a produção de novas mercadorias. Mas é apenas como valor, que tem como expressão fenomênica o valor de troca, que a mercadoria passa a participar efetivamente da riqueza social na sociedade capitalista.

No capitalismo uma miríade de unidades produtivas formalmente independentes produzem com aparente indiferença umas em relações as outras. Não há nenhum elemento regulador e organizador que conscientemente planifica a produção social, permitindo sua coordenação e articulação. É apenas quando reconhecido como valor, ou seja, quando é reconhecido socialmente como parte da riqueza social, que o produto de uma determinada unidade produtiva passa a fazer parte do conjunto de mercadorias que constitui efetivamente a riqueza na sociedade capitalista.

Uma unidade produtiva só mostra sua efetividade social, sua concreta necessidade para a sociedade, na medida em que seus produtos são reconhecidos como valores e se tornam, assim, valores de troca, capazes de participar, por via do intercambio das mercadorias, da riqueza social na sociedade burguesa.

No entanto, como é possível o reconhecimento dessa efetividade social de um determinado conjunto de produtos, sua efetiva constituição como mercadorias, se não há nenhum órgão regulador e planificador da distribuição das forças produtivas? Como estabelecer o caráter efetivamente social do dispêndio de determinada quantidade de forças produtivas para a produção de determinados produtos, se não há essa planificação e organização social consciente da produção?

Para que emerja uma coordenação e articulação entre as múltiplas unidades produtivas aparentemente indiferentes umas em relação as outras, para que uma relativa estabilidade surja apesar da anarquia na produção imperante, é necessário que se constitua um elemento que apareça como forma de riqueza social que seja o objetivo direto e imediato de todos os produtores independentes e indiferentes em relação uns aos outros, pois a propriedade desse produto dá a seu possuidor a capacidade e a força social de possuir todas as demais mercadorias. Esse produto, essa mercadoria, passa a ter a propriedade, única entre todas as mercadoria, de ter um caráter imediatamente social, pois ela é passível de ser trocada, de forma imediata, por todas as demais mercadorias:

“O dinheiro é propriedade ‘impessoal’. Eu posso carregá-lo comigo no meu bolso como o poder social universal e nexo social universal, a substância social. O dinheiro coloca o poder social como uma coisa nas mãos da pessoa particular, que, como tal, usa esse poder. O nexo social, a troca social de materiais, aparece em si mesmo no dinheiro como algo totalmente externo, sem ter nenhuma relação individual com seu possuidor, de modo que o poder que ele exerce apareça como algo bastante incidental e externo a ele.”

Marx, Karl: ‘Primeiro esboço da Critica da Economia política’, também conhecido como ‘Urtext’- 1858- (tradução propria a partir do inglês.)², pag 432.

Essa mercadoria, que se constitui como o equivalente geral do valor (ou seja, do caráter socialmente necessário do dispêndio de forças produtivas para a produção de mercadorias) de todas as demais mercadorias passa a ser o elemento organizador e regulador da produção capitalista, pois só é socialmente necessário o trabalho dispendido em produtos, em mercadorias, que conseguem estabelecer uma equivalência social efetiva, conseguem ser trocadas realmente, de forma direta ou indireta, com esse equivalente geral. É socialmente necessário, e portanto tem valor, apenas o produto que consegue se confirmar e efetivar num sistema hierárquico de produção cujo centro é esse equivalente geral.

Esse produto que se constitui como equivalente geral do valor, contudo, não é escolhido de forma consciente e planejada, nem pode sê-lo. Numa sociedade em que múltiplas unidades produtivas independentes produzem sem estar, e sem poder estar, submetidas a um plano socialmente organizado, esse equivalente geral só pode se estabelecer como tal se na miríade infinita de trocas que acontecem constantemente no mercado, de forma simultânea e sucessiva ao mesmo tempo, vai se estabelecendo de forma espontânea e inconsciente uma mercadoria que se impõe sobre todas as demais e cuja possessão passa a ser o objetivo final, de forma imediata ou mediatizada, de todos os produtores.

O dinheiro, como forma acabada do equivalente geral, se constituí, assim, como forma alienada e estranhada do nexo social entre os produtores, que se conectam no processo produtivo não pelo reconhecimento mútuo consciente do pertencimento de todos a um mesmo organismo produtivo ou a uma mesma comunidade, mas pelo desejo, socialmente imposto, de forma inconsciente e espontânea, de possuir e se apropriar dessa força social que se constitui de forma independente e autônoma em relação a seus possuidores.

As relações entre os indivíduos dentro da comunidade, que tem como base fundante a relação de produção material da vida, de apropriação do ambiente natural e de sua humanização, aparecem assim como relações entre coisas, o equivalente geral, o dinheiro, sendo a forma final e mais desenvolvida desse fetiche, onde as coisas, criadas pelos seres humanos, parecem dominar seus criadores:

“É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação 206/1493 umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.”

Marx, Karl: O Capital, livro 1. Edição Boitempo pág 206 

E algumas páginas depois: 

“Portanto, o enigma do fetiche do dinheiro não é mais do que o enigma do fetiche da mercadoria, que agora se torna visível e ofusca a visão.”

 Marx, Karl: O Capital, livro 1. Edição Boitempo pág 228

 

O capital como fetiche, reificação das relações sociais e a alienação do trabalho

Na sociedade burguesa, assim, a conexão e o nexo social entre os indivíduos se estabelece não por um reconhecimento consciente de seu pertencimento mútuo a um mesmo gênero, a uma mesma comunidade, mas por meio da relação entre coisas, que aparecem como as efetivas relações sociais, enquanto as relações entre os seres humanos aparecem como relações fortuitas e indiferentes.

Esse nexo e conexão social é garantido, de forma fetichizada, pela alienação mútua das mercadorias no mercado capitalista. Os indivíduos se reconhecem, em última instância, apenas como possuidores de mercadorias, e afirmam e confirmam seu pertencimento à comunidade apenas na medida em que a alienação de suas mercadorias pode se efetivar nas relações de troca no mercado. É apenas pela confirmação da mercadoria no mercado que seu pertencimento ideal ao mundo da riqueza social se torna um pertencimento real e concreto, pela sua capacidade de confirmar seu valor na troca com o equivalente geral do valor:

“A alienação [Entäusserung] da forma original da mercadoria se consuma mediante a venda [Veräusserung] da mercadoria, isto é, no momento em que seu valor de uso atrai efetivamente o ouro que, em seu preço, era apenas representado. Desse modo, a realização do preço ou da forma de valor apenas ideal da mercadoria é, ao mesmo tempo e inversamente, a realização do valor de uso apenas ideal do dinheiro, a conversão de mercadoria em dinheiro e, simultaneamente, de dinheiro em mercadoria. Trata-se de um processo bilateral: do polo do possuidor de mercadorias é venda; do polo do possuidor de dinheiro, compra. Ou, em outras palavras, venda é compra, e M-D é igual a D-M.”

Marx, Karl: O Capital, livro 1. Edição Boitempo pág246

Se esse processo de alienação mútua dos indivíduos, que só confirmam seu pertencimento à comunidade na medida em que confirmam o valor de suas mercadorias por meio de sua venda no mercado já aparece como um processo de estranhamento em relação à sociedade, que aparece como uma força exterior e autônoma em relação a seus membros, esse processo se torna ainda mais agudo e profundo na medida em que compreendemos que a maior parte da humanidade, dos membros da comunidade humana socializada de forma estranhada dentro das relações capitalistas, é a de uma massa de despossuídos, que não tem propriedade sobre mercadorias que possam ser alienadas no mercado.

Numa sociedade em que seu pertencimento à comunidade é reconhecido apenas na medida em que é possível participar da riqueza socialmente produzida quando se tem uma mercadoria para ser negociada, essa massa de despossuídos encontra apenas uma mercadoria passível de ser alienada no mercado capitalista, sua própria capacidade produtiva, sua força de trabalho:

“A capacidade de trabalho do trabalhador produtivo é uma mercadoria para o próprio trabalhador”

Marx, Karl: Manuscritos de 1861-63 (esses manuscritos serão base para a publicação posterior por Kautsky, com várias modificações, das ‘Teorias da Mais-Valia’) traduzido a partir da edição em inglês³, pág. 16

A alienação universal de mercadorias por parte de proprietários formalmente independentes uns em relação aos outros, assim, ganha sua forma mais desenvolvida e concreta na alienação do trabalhador, que para confirmar seu pertencimento e reconhecimento como membro da comunidade precisa alienar sua única propriedade, sua força de trabalho, no mercado capitalista, se trocando, e assim confirmando seu valor, pela força reificada, que como fetiche se manifesta como forma efetiva e concreta das relações comunitárias, o equivalente geral, que em sua forma mais desenvolvida aparece como dinheiro:

O pressuposto elementar da sociedade burguesa é que o trabalho produz imediatamente valor de troca, por conseguinte, dinheiro; e então, igualmente, que o dinheiro compra imediatamente o trabalho e, por isso, o trabalhador tão somente na medida em que ele próprio aliena sua atividade na troca. Portanto, trabalho assalariado, por um lado, e capital, por outro, são apenas outras formas do valor de troca desenvolvido e do dinheiro enquanto sua encarnação. Com isso, o dinheiro é, ao mesmo tempo, imediatamente a comunidade real, uma vez que é a substância universal da existência para todos e o produto coletivo de todos. No entanto, a comunidade no dinheiro, como já vimos, é pura abstração, pura coisa exterior e contingente para o singular e, simultaneamente, puro meio de sua satisfação como singular isolado”

Marx, Karl: ‘Grundrisse’ edição Boitempo pág. 251

Sendo o trabalho a base fundamental da sociedade, posto que a apropriação e transformação do ambiente natural é pressuposto insuperável das relações sociais, são esses trabalhadores, proletarizados, o elemento chave, basilar, da construção das relações sociais dentro da sociedade burguesa. A riqueza social só pode existir na medida em que no processo de trabalho, que aparece fenomenicamente como processo de valorização, se sintetizam todos os pressupostos que permitem que essa atividade, base de toda práxis, se efetive.

A riqueza produzida pelos trabalhadores, no entanto, lhes aparece não como expressão e confirmação de sua atividade e de suas potencialidades, mas, ao contrário, aparece como força e potência estranha e que se contrapõe a eles. O trabalhador, proletarizado, é “sujeito” desprovido de substância e aparece na sua pura nudeza, como não pertencente ao mundo da riqueza objetiva, que não lhe pertence e é propriedade de outro que se confronta com ele. O indivíduo proletarizado só confirma sua individualidade, que pressupõe seu pertencimento à comunidade como organismo que permite sua participação na apropriação do ambiente natural e da riqueza socialmente produzida, na medida em que se venaliza, se vende, se aliena:

“as condições objetivas do trabalho assumem uma autonomia cada vez mais colossal, que se apresenta por sua |própria extensão, em relação ao trabalho vivo, e de tal maneira que a riqueza social se defronta com o trabalho como poder estranho e dominador em proporções cada vez mais poderosas. A tônica não recai sobre o ser-objetivado, mas sobre o ser-estranhado, ser-alienado, ser-venalizado [Entfremdet-, Entäussert-, Veräussertsein] – o não pertencer-ao-trabalhador, mas às condições de produção personificadas, i.e., ao capital, o enorme poder objetivado que o próprio trabalho social contrapôs a si mesmo como um de seus momentos.”

Marx, Karl: ‘Grundrisse’ edição Boitempo pág. 1150

A alienação do trabalhador, dessa forma, não é um processo abstrato de exteriorização forçada de uma essência natural idealmente existente, mas o processo concreto de submissão de uma massa de indivíduos proletarizados a uma força social da qual eles são produtores ativos e fundamentais, mas que aparece como propriedade estranha e exterior a eles, que objetiva e concretamente os controla e domina. Não só no processo de trabalho, mas em todas as esferas de nossa vida nós trabalhadores podemos constatar empiricamente a realidade desse processo de alienação. Na medida em que nossa única mercadoria, nossa força de trabalho, é inseparável de nossa subjetividade viva e ativa, toda nossa vida deve estar voltada e direcionada para que nossa mercadoria seja a mais alienável e negociável.

Assim, quando trabalhamos e quando descansamos, quando nos divertimos e quando supostamente fruímos, todos nossos sentidos e sensibilidades devem estar voltados para que não degrademos nossa mercadoria, para que a desenvolvamos, para que a tornemos passível de alienação (como qualquer outro possuidor de mercadorias deve zelar para que seus produtos tenham a qualidade exigida pelo mercado).

Esse processo de reconhecimento e pertencimento à sociedade só e apenas na medida em que se confirma o valor de sua mercadoria, sua força de trabalho, no mercado é tão mais real e concreto quanto vemos, nós trabalhadores, que se não conseguimos realizar o valor de nossa mercadoria no mercado capitalista de trabalho somos reduzidos a condição de parias sociais, como desempregados, mendigos, sem-teto, etc, e todas as muitas formas de despertencimento e não reconhecimento a que a sociedade capitalista pode nos reduzir.

E assim como as habilidades e capacidades dos indivíduos não são um dom natural, existente de forma inerente, como uma essência a-histórica, mas são fruto do desenvolvimento das relações sociais, contraditoriamente desenvolvidas de forma estranhada sob a égide do capital:

“O grau e a universalidade do desenvolvimento das capacidades em que essa individualidade se torna possível pressupõem justamente a produção sobre a base dos valores de troca, que, com a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros, primeiro produz a universalidade e multilateralidade de suas relações e habilidades.”

Marx, Karl: ‘Grundrisse’ edição Boitempo pág.164

O próprio processo de alienação e estranhamento dessas potencialidades não é um processo natural, mas expressão de um determinado e específico processo histórico que separou, de forma violenta, os trabalhadores de seus meios de produção e produziu essa massa de despossuídos como trabalhadores proletarizados:

“Se um pressuposto do trabalho assalariado e uma das condições históricas do capital são o trabalho livre e a troca desse trabalho livre por dinheiro a fim de reproduzir e valorizar o dinheiro, a fim de ser consumido pelo dinheiro não como valor de uso para a fruição, mas como valor de uso para o dinheiro, outro pressuposto é a separação do trabalho livre das condições objetivas de sua realização – do meio de trabalho e do material de trabalho.”

Marx, Karl: ‘Grundrisse’ edição Boitempo pág. 627

Esse processo de inversão, no qual os produtos dominam e aparecem como potência estranha e dominante em relação a seus efetivos produtores se consuma e cristaliza com a reificação das relações sociais, nas quais as diferenças de classe, historicamente determinadas, aparecem como diferenças técnicas exigidas por uma suposta racionalidade do aparato produtivo. Segundo a racionalidade BURGUESA, que tem como interprete e porta-voz o economista, as diferenças sociais não são expressão das contingências do processo histórico, e portanto passiveis de transformação, mas são expressão racional das necessidades inerentes à produção e acumulação da riqueza (vide as formas vulgares de justificação dos ataques aos direitos trabalhistas e sociais como as reformas da previdência e trabalhista hoje no Brasil, que são embasadas em pretensas necessidades racionais da “economia” e na suposta racionalidade dos “mercados”).

As diferenças sociais e contradições de classe, assim, aparecem como necessidades técnicas, como expressão das próprias coisas, como diferenças coisificadas, reificadas, e o capitalista, como funcionário da acumulação de capital, como o capital “dotado de vontade e inteligência”, como expressão necessária, supostamente, do processo produtivo em si mesmo, na medida em que ele é supostamente racional, independente de suas determinações históricas.

Compreendemos, dessa forma, que a alienação, o estranhamento, a reificação e o fetiche inerentes à sociedade burguesa não são abstratas elucubrações filosóficas, apartadas da realidade, mas expressão conceitual, na forma de categorias, de processos reais, materiais, objetivos, presentes de forma efetiva na sociedade burguesa, e com os quais nós trabalhadores convivemos diariamente. Essas categorias, assim, são parte fundamental da reprodução conceitual do concreto como concreto pensado.

A compreensão do caráter fetichizado e anárquico da sociedade burguesa, em que as forças socialmente construídas aparecem como forças naturais estranhas e contrapostas aos indivíduos e à comunidade nada tem a ver com uma denuncia moralista da sociedade burguesa, mas com o entendimento de seu caráter contraditório e das possibilidades criadas em seu interior de construção de uma sociedade mais justa e fraterna, que deve ser o objetivo da práxis social, do qual o conhecimento científico de nossa realidade é parte integrante. Se os filósofos devem se preocupar em mudar o mundo, traçar objetivos possíveis, baseados em um conhecimento concreto da realidade, é tarefa fundamental, pois apenas assim as armas da crítica podem se tornar efetiva força material, capaz de mover massas humanas para que por suas próprias mãos elas submetam a sociedade burguesa a uma concreta crítica das armas.

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1-“Thus the power of capital grows, in other words the autonomy of the social conditions of production, as personified by the capitalist, is asserted more and more as against the actual producers. Capital shows itself more and more to be a social power (with the capitalist as its functionary), a power that no longer stands in any possible kind of relationship to what the work of one particular individual can create. It is instead an alienated [entfremdet] social power which has gained an autonomous position, and confronts society as a thing, and as the power that the capitalist has through this thing.”

https://libcom.org/files/Fred_Moseley_Ed._Marxs_Economic_Manuscript_ofz-lib.org_.pdf

2-“Money is “impersonal” property. I can carry it around with mein my pocket as the universal social power and the universal social nexus, the social substance. Money puts social power as a thing into the hands of the private person, who as such uses this power.”

The social nexus, the social exchange of matter, itself appears in money as something entirely external, not having any individual relation at all to its possessor, so that the power he wields appears to be something quite incidental and external to him.”

http://www.hekmatist.com/Marx%20Engles/Marx%20&%20Engels%20Collected%20Works%20Volume%2029_%20M%20-%20Karl%20Marx.pdf

 

3-“The labour capacity of the productive labourer is a commodity for the labourer himself.”

http://www.hekmatist.com/Marx%20Engles/Marx%20&%20Engels%20Collected%20Works%20Volume%2031_%20Ka%20-%20Karl%20Marx.pdf

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